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Ética e Deontologia

Módulo de Ética
Ano Letivo 2020-2021
2.º semestre

Bruno Nobre, sj
1
1. Introdução à ética
geral

2
1.1. A dimensão moral do ser humano

Ética: Remete para o grego ethos, que significa «toca»,


«morada», «lugar onde vivemos», ou, segundo Aristóteles,
«caráter», «modo de ser», «costume», «hábito».

Moral: deriva do latim mos, mores e traduz a ideia de costume,


caráter, modo de ser.

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1.1. A dimensão moral do ser humano

O Facto Moral:
«Parafraseando Ortega – “Eu sou eu e as minhas circunstâncias” –,
podemos dizer, no mesmo sentido, que cada ser humano é o seu eu
mais as suas normas sociais e morais; cada homem e cada mulher,
enquanto indivíduos, são eles mesmos mais os códigos e normas
morais, a moral a que aderem. A moral é, para os humanos, como
que uma segunda pele, tão unida à primeira que resulta dificilmente
discernível, passível de ser rejeitada ou renovada. A moral é um
elemento tão constitutivo do ser humano, como a sua condição de
ser mortal, finito e limitado.
Guisán, Introducción a la Ética, p. 31.

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1.1. A dimensão moral do ser humano
Moral: nível do mundo social, constituído por valores, normas e
instituições morais, existentes numa sociedade e merecedores de
reconhecimento geral. Vincula os seus membros em forma de ideias
compartilhadas e de obrigações e proibições. Tem um papel
importante na vida quotidiana, muitas vezes de forma inconsciente.
Neste nível encontramos, sobretudo, três componentes:

(1) Sistemas morais concretos ou conjunto de normas e valores de uma


sociedade que orientam, de modo imediato, a conduta dos indivíduos;

(2) Linguagem moral ligada à ação, que se concretiza em juízo morais


espontaneamente emitidos e que se apoiam nos referidos sistemas
morais.

(3) Catálogos de ações classificadas como morais ou imorais.


Xabier Etxeberria, Temas Básicos de Ética, p. 23.
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1.2. Definição de conceitos

Ética: reflexão de caráter filosófico, de segunda ordem, sobre a moral;


o objeto de estudo da ética é a moral. Como área da filosofia, a ética
procura construir-se racionalmente, utilizando, para tal, o rigor
conceptual e os métodos de análise e explicação próprios da filosofia.

Como reflexão de caráter filosófico sobre a moral, a ética normativa


pretende encontrar conceitos e argumentos que permitam
compreender a dimensão moral da pessoa humana enquanto
dimensão moral, isto é, sem reduzi-la aos seus componentes
psicológicos, sociológicos, económicos ou de qualquer outro tipo.
A. Cortina, Ética, p. 9; X. Etxeberria, pp. 23-24.

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1.2. Definição de conceitos
Funções da ética:
(1) Clarificar o que pertence à dimensão moral e quais as suas
características específicas, distinguindo a moral das outras dimensões
do humano;
(2) fundamentar a moralidade, ou seja, encontrar razões que possam
justificar determinados sistemas morais;

(3) aplicar aos diversos âmbitos da vida humana o que se descobriu nos
dois primeiros pontos;

(4) Precisar os bens supremos e/ou regras ou imperativos que se


constituem como referente moral último das nossas ações;

(5) Incitar à vivência da vida moral.


J. Silveira de Brito, “Ética Geral e Éticas Aplicadas,” pp. 287-288.

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1.2. Definição de conceitos
A ética como saber prático.
1) A ética é um saber da praxis para a praxis. Neste sentido, não se trata
de um saber meramente teórico. A ética não orienta de modo imediato
para a ação, não dá prescrições concretas de ação. O seu objetivo
consiste em clarificar as normas sociais, identificando os bens
fundamentais e encontrando regras gerais. No entanto, a ética não deixa
de ter consequências práticas, ou seja, orienta, de forma indireta, para a
ação. Como dizia Aristóteles, “investigamos não para saber o que é a
virtude, mas para ser virtuosos.”

2) Enquanto saber prático, a ética distingue-se do saber próprio da


racionalidade teórico-científica, que se baseia na demonstração
dedutiva e indutiva. Trata-se, não obstante, de um saber autêntico, ao
qual está associada uma racionalidade própria.
X. Etxeberria, Temas Básicos da Ética p. 27-28.

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1.2. Definição de conceitos
Classificação Aristotélica dos saberes
Teóricos Poiéticos Práticos

Saberes descritivos: Servem-nos de guia para Tratam de orientar-nos


versam sobre o que não a elaboração de algum no que diz respeito ao
pode ser de outra produto, quer seja um que devemos fazer para
maneira; descrevem o artefacto útil ou um que a nossa vida, no seu
que há. objeto belo. São conjunto, seja boa. São
normativos. normativos.
- Ciências Naturais
(Física, Química, - Técnica - Ética
Astronomia, etc.) - Belas artes - Economia
- Metafísica - Política

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1.2. Definição de conceitos
Momentos da reflexão ética:
1. Estudo e reconhecimento do mundo dos valores e normas em todas as
esferas da atividade humana (passo prévio ao início do estudo da ética)
→ ciência da moral ou ética descritiva;

2. Exame crítico (de caráter filosófico) das normas, valores, virtudes e


guias de ação existentes → ética normativa ou simplesmente ética. Ao
longo da história do pensamento, a maior parte da investigação em ética
aconteceu neste âmbito.

3. Num segundo momento de reflexão filosófica, são submetidos a uma


reflexão mais profunda os próprios princípios e argumentos esgrimidos
no âmbito da ética normativa → metaética. Meta-reflexão sobre a
própria reflexão ética. Algumas abordagens chegam mesmo a negar a
possibilidade da ética normativa.
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1.2. Definição de conceitos

4. Como fruto do momento metaético, tem lugar um reajustamento, ou


mesmo uma supressão, da atividade ético- normativa, com uma
consequente mudança de paradigmas axiológicos e um maior ou menor
predomínio do relativismo ético, do consenso ético, dos construtivismo,
etc.

5. A atividade anterior conduz à consolidação de determinados modelos


ético-normativos que se traduzem, por sua vez, em códigos
deontológicos concretos e conjuntos de virtudes aplicáveis aos vários
âmbitos da atividade humana → ética aplicada ou ética prática.

A vida quotidiana é o ponto de partida e o ponto de chegada da


reflexão ética!
E. Guisán, Introducción a la Ética, p. 31.
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1.3. Definição de conceitos

Ética Ética
Descritiva Normativa

Ética
Ética Metaética
Aplicada
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1.2. Definição de conceitos

A ética aplicada:
Procura aplicar as normas morais a situações concretas, em contextos
específicos. «A ética posterior visa refletir sobre o modo como essas
normas se devem modelar nos contextos concretos do agir, como seja
a vida profissional.» A ética aplicada centra-se em campos concretos da
atividade humana. (Silveira de Brito, p. 288).

As éticas aplicadas aplicam-se a dois campos: (i) âmbitos ou problemas


da vida social; (ii) ética das profissões.

Exs.: Ética da Comunicação, Bioética, Ética da atividade científica, etc.

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1.3. Ética e direito; ética e religião

Ética e Direito:
- as fontes do direito não se restringem à razão autónoma dos
indivíduos e englobam a tradição e a legislação positiva.

- O Direito não requer a adesão da consciência moral, mas apenas a


conformação externa do indivíduo.

- A ética pode considerar reprováveis muitas ações que aquele não


proíbe.
João Rosas, “Conceitos que Pensam a Ação”, p. 86.

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1.3. A ética e outras dimensões do humano
Diferenças entre ética e direito:
- Exigência de positivização: As normas morais obrigam a consciência
moral independentemente de terem sido postas em vigor num sistema
jurídico positivo; pelo contrário, as normas jurídicas precisam de ser
promulgadas pelos poderes políticos competentes.

- Modo de coação: As normas jurídicas têm mecanismos externos de


sanção – o poder repressivo do Estado – que impõem o seu
cumprimento; no caso das normas morais a sanção é interna – o
sentimento de culpa.

- Grau de institucionalização: As normas jurídicas são constitutivas de


uma praxis social institucionalizada; as normas morais estão associadas
a mundos mais pessoais.
X. Etxeberria, “Temas Básicos de Ética”, p. 132.
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1.3. A ética e outras dimensões do humano
- Papel da intenção: No cumprimento da norma ética, a intenção é
decisiva, enquanto que no direito o que conta é o cumprimento
material do mesmo. Esta é a razão pela qual a ignorância da lei não
exime da obrigação da norma jurídica, algo que acontece no campo
moral.

- Alcance: A ética é mais ampla do que o direito: nem toda a ética


deve ser incorporada no direito.

X. Etxeberria, “Temas Básicos de Ética”, p. 132.

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1.3. A ética e outras dimensões do humano
Em que medida existe uma vinculação entre a ética e o direito?
- Tese da vinculação absoluta: Tese clássica dos defensores da lei
natural; a moral pode ser mais do que o direito, mas este só é
propriamente direito quando é moral.

- Tese da separação radical: Positivismo jurídico radical – ética e direito


são duas ordens normativas autónomas, com lógicas próprias, que
regulam setores da conduta humana diferentes e independentes.

- Tese da separação matizada ou relativa: O jurídico não é em si moral,


nem o moral jurídico. A moral e o direito devem ser conceptualmente
separados, mas deve existir um controlo moral do direito.

- Tese da integração relativa entre direito e moral: Existe autonomia e


independência relativa entre ambos em determinados aspetos e
coincidência necessária noutros.
X. Etxeberria, “Temas Básicos de Ética”, pp. 133-134.17
1.3. A ética e outras dimensões do humano

Argumentos a favor da vinculação entre direito e moral:


- Todo o sistema jurídico pressupõe a existência de um ponto de vista
moral; todo o direito é estruturalmente moral na medida em que
corresponde a um determinado ponto de vista sobre a justiça, ainda
que possa ser considerado imoral à luz de certas conceções de justiça.

- Seria absurdo que uma Constituição abrisse com a seguinte


afirmação: “X é uma república soberana que se rege por leis injustas”.

- Sem um respeito mínimo pela moral, cair-se-ia na pura arbitrariedade


e na força bruta, o que é contrário ao direito.
X. Etxeberria, “Temas Básicos de Ética”, pp. 135.

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1.3. A ética e outras dimensões do humano

Argumentos contra a vinculação entre direito e moral:


- Tese da neutralidade: o conceito de direito tem que ser definido
prescindindo do seu conteúdo; o conceito de direito como tal não
impõe nenhuma limitação ao que pode ser ordenado ou proibido.

- tese do subjetivismo: os critérios do direito “reto” não são de


natureza objetiva, isto é, não existem critérios objetivamente válidos;
estes são de natureza subjetiva e não têm fundamentos metafísicos; a
sua base é intersubjetiva.
X. Etxeberria, “Temas Básicos de Ética”, pp. 135-136.

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1.3. A ética e outras dimensões do humano
Ética e religião: as éticas religiosas têm como ponto de partida a
autoridade de determinado livro ou da tradição. A ética filosófica ou
filosofia moral remete para o uso da razão independentemente dos
apelos à autoridade religiosa, quer sob a forma de textos sagrados,
quer sob a forma de tradições.
João Rosas, “Conceitos que Pensam a Ação”, p. 85.

Teologia moral: ciência teológica que se fundamenta na revelação, da


qual dão testemunho a Sagrada Escritura e a Tradição viva da Igreja e
através da qual Deus dá a conhecer a sua vontade a respeito do ser
humano. O intérprete fiel da Sagrada Escritura e da Tradição é o
magistério autorizado da Igreja.

Ética filosófica: disciplina filosófica que se apoia na luz da razão e que


oferece orientações para a ação.
Etxeberria, Temas Básicos de Ética, p. 66.
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1.3. A ética e outras dimensões do humano
I. A presença da ética na religião
Todas as religiões propõem determinados ideais de vida boa e
prescrevem determinadas condutas aos seus fiéis. Estas situam-se num
fenómeno que é muito mais vasto:
- no centro de uma religião está a experiência religiosa, que pode
definir-se como “o confronto do ser humano com a realidade
essencial.”
- Esta experiência expressa-se: i) num conjunto de crenças; ii) numa
praxis, que inclui duas dimensões: o culto e o serviço; iii) na
comunidade, que se organiza através de determinadas instituições. A
dimensão moral está especialmente relacionada com a ação,
sobretudo na sua dimensão de serviço.
- A moral oferece aos fiéis: i) orientação, ii) motivação; iii) legitimação.
Etxeberria, Temas Básicos de Ética, p. 67. 21
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23
1.4. Classificação das teorias éticas
Éticas teleológicas e éticas deontológicas
Éticas teleológicas
«‘Teleologia’ vem do grego telos, que significa ‘fim’ […]. A tarefa de
uma ética deste género consiste em determinar, justificadamente, o
que é o ‘bem’ do ponto de vista do homem, qual o fim último e
genérico para cuja realização devem contribuir todas as ações de uma
vida, ou mesmo de um conjunto de vidas, isto é, de uma comunidade
de pessoas» (José Manuel Santos, Introdução à Ética, p. 89).
«São éticas teleológicas as que se ocupam em discernir o que é o bem
não moral antes de determinar o dever, e consideram como
moralmente boa a maximização do bem não moral» (Adela Cortina,
Ética, p. 115). Ou seja, uma ação é ‘boa’ ou ‘má’ em função do telos
que se pretende alcançar.
Exs.: Eudemonismo (Aristóteles), Epicurismo (Epicuro); Utilitarismo
(Bentham, Stuart Mill).
24
1.4. Classificação das teorias éticas
Éticas teleológicas e éticas deontológicas
Éticas deontológicas
«O termo que designa este tipo de éticas, deontologia, vem do grego
deon, que significa ‘dever’ ou ‘obrigação’. Daí que também se chame às
deontologias ‘éticas do dever’. A principal tarefa de uma ética
deontológica consistirá em explicitar ou ‘fundamentar’ a lei moral».
(José Manuel Santos, Introdução à Ética, p. 89). O critério para
determinar a correção de uma ação reside na conformidade desta
relativamente a um dever que se exprime sob a forma de princípio ou
lei moral.
«São éticas deontológicas as que determinam o âmbito do dever antes
de ocupar-se do bem, considerando boas apenas as ações que se
adequam ao dever» (Cortina, Ética. 115)». Ou seja, uma ação é ‘boa’
ou ‘má’ dependendo de estar ou não em conformidade com o dever.
Exs.: Kant, Rawls, éticas discursivas, éticas jusnaturalistas, etc.
25
2.1. Classificações éticas
Éticas consequencialistas e éticas não consequencialistas
Éticas consequencialistas (teleologia): devemos agir por forma a
maximizar as consequências positivas a longo prazo.
Éticas não consequencialistas (deontologia): alguns tipos de ação,
como por exemplo quebrar uma promessa ou matar uma pessoa
inocente, são más em si mesmas e não apenas por causa das suas
consequências.
Ex. Suponha-se que um homem casado acabou de sair de uma consulta
médica na qual ficou a saber que tem cancro. Se este homem for um
consequencialistas, ponderará mentir à esposa sobre o diagnóstico que
acabou de receber, caso pense que esta opção será melhor para a sua
esposa. Caso o homem seja um não consequencialistas, pensará,
certamente, que mentir é em si errado e por isso dirá a verdade à sua
mulher porque ela tem o direito de saber o que se passa com o seu
marido. (Harry Gensler, Ethics: A Contemporary Introduction, pp. 174-175)
26
1.4. Classificação das teorias éticas

Ética da convicção e ética da responsabilidade


(M. Weber, “A política como vocação”, 1919)
Éticas da convicção: ética absoluta, incondicionada, a qual coloca a
ênfase na convicção interna e na pureza da intenção. Mais do que as
consequências, importa a conformidade com princípios e máximas
associadas a determinada religião ou cosmovisão. O principal aspeto
negativo desta visão ética tem que ver com as possíveis consequências
negativas de uma ação bem-intencionada.
Éticas da responsabilidade: a ética da responsabilidade tem em conta
os efeitos das suas ações, ou seja, procura agir com responsabilidade.
O principal defeito desta visão ética é a possibilidade de aceitação de
um mal como meio para atingir um fim.

27
1.4. Classificação das teorias éticas
Éticas de máximos e éticas de mínimos
Éticas de máximos ou da felicidade: procuram oferecer ideais de vida
boa, hierarquizando os bens disponíveis de modo a produzir a maior
felicidade possível. As éticas de máximos fazem uma proposta de
plenitude, mas não podem exigir que todos a sigam.
Éticas de mínimos ou da justiça: ocupam-se exclusivamente da
dimensão universalizável do fenómeno moral, ou seja, daqueles
deveres de justiça que são exigíveis a qualquer ser racional e que
constituem apenas exigências mínimas.
Esta distinção reconhece que a moralidade tem duas facetas: i) existem
juízos morais que exigem universalidade; ii) existe nas sociedades
atuais um pluralismo axiológico. A ética de mínimos exige que sejam
respeitados critérios mínimos de justiça que permitem a convivência
pacífica, deixando ao critério de cada a escolha de uma conceção de
vida plena ou feliz. (Cortina, Ética, p. 118)
28
1.5.1. Ética das Virtudes

A ética de Aristóteles (384-322 a.C.)


Ética como ciência prática: para
Aristóteles, a ética é uma das ciências
práticas (os saberes dividem-se em
saberes teóricos, poiéticos e práticos). A
ética é distinta da política, mas
intimamente relacionada com ela: o ser
humano não pode alcançar felicidade
fora de uma comunidade política.
Abordagem teleológica: a problemática
ética é sistematizada a partir da questão
do «bem», naturalmente desejado pelo
sujeito para ter uma vida satisfatória,
bem-sucedida.
29
1.5.1. Ética das Virtudes
O que é a felicidade?
1. A felicidade é o bem supremo para o ser humano. Todos os outros
bens estão em função deste. O bem supremo, ou felicidade, é
completo e autossuficiente.
2. A felicidade tem que ver com o funcionamento excelente da
função (ergon) própria do ser humano: «o bem humano é uma
atividade da alma conformada por uma excelência, e se houver
muitas excelências, será conformada pela melhor e mais completa»
(Ética a Nicómaco, p. 33).
3. Para ser feliz, o ser humano precisa de bens exteriores. Os que
estão privados destes bens exteriores, ou sujeitos à desventura, não
pode ser felizes.
4. É feliz quem pratica a excelência e tem os bens exteriores
necessários durante todo o tempo da vida. (p. 40)
30
1.5.1. Ética das Virtudes
O que é a excelência (virtude)?
Existe na alma humana uma dimensão que é incapaz de uma relação
com a razão, como por exemplo as capacidades associadas às
funções do crescimento e da nutrição. Estas capacidades não são
exclusivas do ser humano. As excelências autenticamente humanas
têm que ver com a parte racional da alma. Neste sentido, a
excelência é uma atividade da alma, mas mais especificamente das
dimensões da alma que são racionais ou que estão em relação com a
razão. (Ética a Nicómaco, pp. 44-45).

«Há uma dimensão da alma que é, de algum modo, capaz de tomar


parte na razão. A possibilidade de autodomínio resulta, efetivamente, da
obediência ao comando da razão, mas são as disposições fundamentais
do sensato e do corajoso que melhor permitem escutá-la e obedecer-
lhe. Tudo neles resulta ressoa em uníssona com a razão.» (p. 44)
31
1.5.1. Ética das Virtudes
Dois tipos de excelências
✓ Excelências teóricas (intelectuais ou também dianoéticas): são
disposições da parte racional da alma. As excelências teóricas são a
sabedoria, o entendimento e a sensatez.
✓ Excelências éticas: são disposições de uma subparte da alma que,
embora não sendo racional, é capaz, de algum modo, de obedecer à
razão. (p. 45)

«A capacidade de razão diz-se de duas maneiras, em primeiro lugar, em


sentido estrito e de forma absoluta; em segundo lugar, no sentido em
que temos a possibilidade de escutar um pai. A possibilidade de
excelência será também dividida em conformidade com esta
experiência. Dizemos que uma excelências são teóricas e outras éticas.
A sabedoria, o entendimento e a sensatez são disposições teóricas; a
generosidade e a temperança são disposições éticas» (p. 45).
32
1.5.1. Ética das Virtudes

Partes da Alma e Respetivas Virtudes

Alma (psychê)
Parte irracional Parte racional
Parte vegetativa Parte apetitiva Parte calculadora Parte científica

«Virtudes» do Virtudes éticas Virtudes dianoéticas: Virtudes dianoéticas:


crescimento e da 1) sensatez ou 2) Sabedoria teórica
nutrição prudência (phronesis) (sophia)

33
1.5.1. Ética das Virtudes
Aquisição das excelências
As excelências não nascem connosco por natureza. Existe no ser
humano uma potencialidade (condição de possibilidade) para
desenvolver as excelências.
Excelências teóricas: adquirem-se através do ensino e por isso
requerem experiência e tempo. (1103a15; p. 47)
Excelências éticas: adquirem-se através de um processo de
habituação. (1103a15; p. 47)

«Tornamo-nos jutos praticando ações justas, temperados, agindo com


temperança e, finalmente, tornamo-nos corajosos realizando atos de
coragem» (1103b; p. 48). «Assim, numa palavra, as disposições
permanentes do caráter constituem-se através de ações levadas à
prática em situações que podem ter resultados opostos» (1103b20; p.
49).
34
1.5.1. Ética das Virtudes
As excelências são disposições
Na alma surgem três tipos de fenómenos:
1) as afeções: paixões, emoções, tais como por exemplo o desejo, a
ira, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, a
saudade, o ciúme, a compaixão e, em geral, tudo o que vem
acompanhado por prazer e ou sofrimento;
2) as capacidades, que são condições de possibilidade para sermos
afetáveis por afeções;
3) as disposições, ou seja, géneros de fenómenos de acordo com os
quais nos comportamos bem ou mal relativamente às afeções e às
ações (p. 54).
«Toda a excelência é capaz de desenvolver plenamente o potencial do
ente que o detém, ao restituir-lhe assim a sua função específica de
modo correto» (p. 55).
35
1.5.1. Ética das Virtudes
A excelência consiste numa mediania entre dois extremos.
✓ Mediania não significa, aqui, o ponto que se mantém a uma
distância igual de cada um dos extremos, o qual é um e o mesmo
para todas as coisas, ou seja, não é a média aritmética (p. 56).
✓ «O meio relativamente a nós […] é a medida que não tem a mais
nem a menos. Uma tal medida não é a mesma para todos» (p. 56).
«O meio procurado não é o meio absoluto da coisa em si, mas o meio
da coisa relativamente a cada um» (p. 56).
«A excelência, tal como a natureza, é mais rigorosa e melhor do que toda a
perícia, por que é sempre hábil a atingir o meio. […] Por exemplo, sentir medo
do audaz, estar de desejos, ficar irritado, ter compaixão e, em geral, ter prazer
ou sentir sofrimento, admitem um mais e um menos. Quer dizer, admitem
modos errados [de nos relacionarmos com eles]. Mas o sentir isto no tempo em
que se deve, nas ocasiões em que se deve, relativamente às pessoas que se
deve e do modo como se deve, isso é o meio e o melhor de tudo, ou seja, o
meio e o melhor de tudo é a medida da excelência» (p. 56).
36
1.5.1. Ética das Virtudes

Adequação às circunstâncias
«Não se deve enunciar isto apenas na sua generalidade, é necessário
também procurar adequar os enunciados às circunstâncias
particulares. Isto é, de facto, os enunciados proferidos
universalmente acerca das ações são mais abrangentes, mas o que
proferidos acerca das ações concretas que cada vez se constituem
particularmente são mais reveladores da verdade» (p. 58).

37
1.5.1. Ética das Virtudes

Definição de Excelência
«A excelência é, portanto, uma disposição do caráter escolhida
antecipadamente. Ela está situada no meio e é definida
relativamente a nós pelo sentido orientador, princípio segundo o qual
também o sensato a definirá para si próprio. A situação do meio
existe entre duas perversões: a do excesso e do defeito» (p. 57).

«Foi então dito de modo suficiente que 1) a excelência ética é uma


disposição intermédia e de que modo assim é; 2) depois, também,
que a disposição intermédia está entre duas disposições perversas,
uma segundo o excesso, outra segundo o defeito; 3) finalmente, que
a disposição intermédia é assim por visar alcançar o meio tanto nas
afeções como nas ações» (p. 63).

38
Virtudes teóricas

Atividades
Subparte da alma racional Virtudes teóricas correspondentes Modos ou tipos de saber Objeto do saber
próprias

Conhecimento obtido por


Conhecimento científico raciocínio silogístico (inferência
necessária)
Alcançar
conhecimento
Apreensão (intuitiva) dos Entes eternos e
científico: visa
Razão teórica: Poder de compreensão «primeiros princípios de tudo» (por necessários (ex.: o
descobrir a
Consideração teórica de indução) primeiro motor e
verdade teórica, a
entes que não podem ser entidades
verdade sobre as
doutra maneira matemáticas,
coisas que não
natureza);
podem ser doutra Apreensão dos primeiros princípios
maneira Sabedoria
+ inferência necessária; o mais
Conhecimento científico +
rigoroso dos conhecimentos
Poder de compreensão
científicos

Saber fazer (poesis); transforma Produção de coisas


Perícia: disposição produtora
coisas naturais em utensílios; que podem ser ou
segundo um princípio verdadeiro
obtém-se através da experiência não ser
Deliberar e
calcular; visa Sensatez (prudência): disposição Deliberar corretamente acerca
Razão prática:
deliberar e prática em conformidade com o daquelas coisas que são boas e O bem humano em
Consideração teórica de
calcular de forma bem orientador em vista do bem vantajosas para si próprio, não de geral:
entes que podem ser
correta sobre o para o ser humano um modo particular, mas de todas respeitante à vida do
doutra maneira
bem para o ser aquelas qualidades que dizem indivíduo, da família
humano respeito ao viver bem em geral; ou da polis (sensatez
saber do agente sobre si próprio política); a obra do
agente é a sua
própria vida39
1.5.1. Ética das Virtudes

A sensatez (ou virtude da prudência)


✓ A sensatez diz respeito ao bem para o ser humano, sobre o qual é
possível deliberar-se (p. 154).
✓ A sensatez é «uma disposição prática conforme a um sentido
orientador e capaz de pôr a descoberto o bem humano» (p. 151).
✓ O homem sensato é capaz de ver as coisas que são boas para si
próprio e para os homens em geral (p. 151).
✓ «Tem sensatez aquele que é capaz de ter em vista de um modo
correto as circunstâncias particulares em que de cada vez se encontra
a respeito de si próprio» (p. 153).

40
1.5.1. Ética das Virtudes
S. Tomás de Aquino 1225-1274.
A ética Tomista, cujo impacto na cultura ocidental
é difícil de exagerar, resulta, fundamentalmente,
da síntese entre o pensamento Aristotélico e a
tradição cristã. Tal como Aristóteles, Epicuro ou
Santo Agostinho, S. Tomás reflete sobre a
felicidade. A sua ética tem um alcance vasto e
inclui temas como: as virtudes, a consciência
moral, a ação moral ou a lei natural.

Para S. Tomás, os seres humanos, criaturas dotadas de inteligência e


vontade, são atraídos, pelo seu desejo natural, para aquilo que
contribui para a sua perfeição e realização. Este é o fundamento da vida
moral. Para S. Tomás, a perfeição, a realização humana e o bem
coincidem com a felicidade, conceito que não se confunde, como
sabemos, com um sentimento de bem-estar passageiro.
41
1.5.1. Ética das Virtudes

➢ S. Tomás e as virtudes
Segundo a perspetiva de S. Tomás, o nosso agir é guiado pela razão: a
synderesis permite-nos conhecer os princípios morais, que através da
consciência aplicamos aos casos particulares. Contudo, para o
Aquinate, como para Aristóteles, o uso da razão não é suficiente para
assegurar uma vida moral boa. Para isso, precisamos da virtudes. (S.T.
I-II, 55 ss.)

→ As virtudes em geral. De acordo com S. Tomás, que neste ponto


segue de perto Aristóteles, as virtudes são hábitos (ou disposições)
bons, orientados para a ação, ou seja, operativos, e que implicam a
perfeição de determinada potência ou faculdade (ou seja, a virtude é
uma excelência). As virtudes correspondem ao funcionamento
excelente de determinada disposição ou potência, por exemplo o
apetite concupiscível. (S. T. I-II, 55, 1-3)
42
1.5.1. Ética das Virtudes
➢ Tipos de virtudes
S. Tomás distingue três tipos de virtudes: as virtudes intelectuais, as
virtudes morais e as virtudes teologais. As virtudes intelectuais têm
que ver com o reconhecimento do bem e da verdade. As virtudes
morais dizem respeito à faculdade apetitiva e ajudam-nos a escolher
o que nos aparece como bom. As virtudes teologais (fé, esperança e
caridade) são infundidas diretamente por Deus.

Para agirmos retamente é necessário não só a razão estar bem disposta


pelo hábito da virtude intelectual, mas também a potência apetitiva o
estar pelo hábito da virtude moral. Portanto, assim como o apetite se
distingue da razão, a virtude moral se distingue da virtude intelectual
(S.T. I-II, 58, 2). Os atos humanos só têm dois princípios: o intelecto, ou
razão, e o apetite. São estes os dois princípios motores do homem. Toda
a virtude humana é perfetiva de um destes princípios. Se o for do
intelecto especulativo ou prático, a virtude será intelectual; e moral, se
da parte apetitiva (S.T. I-II, 59, 3). 43
1.5.1. Ética das Virtudes

Virtudes intelectuais especulativas:


(i) A sapiência ou sabedoria: julga e ordena convenientemente
todas as coisas; considera as coisas altíssimas; aperfeiçoa o que é
último em relação ao conhecimento humano total; a sapiência é
uma só.
(ii) A ciência: aperfeiçoa o intelecto para o que é último num
determinado género de cognoscíveis; existem várias ciências.
(iii) O intelecto: hábito dos princípios; conhecimento intuitivo dos
princípios gerais do conhecimento. «É pela virtude intelectual
especulativa que o intelecto especulativo se aperfeiçoa para
considerar a verdade, pois nisto consiste a retidão da sua
atividade.»
(S.T. I-II, 57,2)
44
1.5.1. Ética das Virtudes
Virtudes intelectuais práticas (têm em vista a ação):
(i) A arte: é a razão reta que nos dirige naquilo que produzimos.
«A arte não é mais do que a razão reta de acordo com a qual
fazemos certas obras. E a bondade destas não consiste em o
apetite humano se comportar de um determinado modo, mas
em ser boa, em si mesma, a obra feita» (S.T. III, 57, 3).

(ii) A prudência: é a razão que nos dirige quando agimos; ajuda-nos


a encontrar os meios adequados aos fins. «A prudência está para
os atos humanos, consistentes no uso das potências e dos
hábitos, como a arte está para o que produzimos
exteriormente…. A prudência, que é a razão reta, que nos guia
nas nossas ações, exige que estejamos bem dispostos em
relação aos fins, o que se dá pelo apetite reto; e, portanto, ela
também supõe a virtude moral, que torna reto o apetite» (S.T. I-
II, 57,4).
45
1.5.1. Ética das Virtudes

As virtudes morais
As virtudes morais são hábitos das potências apetitivas e dispõem-nos
para agir bem. O conhecimento intelectual, por si só, não faz de nós
pessoas boas ou completamente virtuosas.

«Para agirmos retamente é necessário, não só a razão estar bem


disposta pelo hábito da virtude intelectual, mas também a potência
apetitiva o estar pelo hábito da virtude moral. Portanto, assim como o
apetite se distingue da razão, a virtude moral se distingue da
intelectual.» (S.T. I-II, 58, 2).

46
1.5.1. Ética das Virtudes

Relação entre as virtudes morais e intelectuais


As virtudes morais têm uma ligação especial à virtude da prudência (S.T.
I-II, 58, 4-5) e distinguem-se de acordo com as faculdades ou objetos a
que estão associadas. Algumas têm a ver com as obras (justiça) outras
com as paixões (temperança, fortaleza, mansidão, etc.). (S.T. I-II, 59, 2).

As virtudes morais podem existir sem certas virtudes intelectuais, como


sejam a sabedoria, a ciência e a arte. Mas não podem existir sem o
intelecto e a prudência. (S.T. I-II, 59, 4)

47
1.5.1. Ética das Virtudes
As quatro virtudes cardeais
→ «Toda a virtude que faz o bem, levando em conta a consideração da
razão, chama-se prudência.»
→ «Toda a [virtude] que, nos seus atos, observa o bem no atinente ao
devido e ao reto, chama-se justiça.»
→ «Toda a [virtude] que coíbe as paixões e as reprime chama-se
temperança.»
→ «Toda a [virtude] que dá firmeza ao ânimo contra quaisquer paixões se
chama fortaleza.»
«O filósofo diz que a virtude exige: primeiro, a ciência; depois a eleição de uma obra, em
si mesma considerada; e terceiro, uma disposição firme e imutável. Ora, a primeira
destas condições pertence à prudência, que é a razão reta dos nossos atos, a segunda,
i.e., eleger, à temperança, que nos faz refletir não apaixonada, mas refletidamente,
refreadas as paixões; a terceira, i. e., para o fim devido, implica, de um lado, a retidão,
que pertence à justiça e, de outro, a firmeza e a imobilidade, que pertence à fortaleza.»
(S.T. I-II 61, 4). 48
1.5.1. Ética das Virtudes

49
1.5.1. Ética das Virtudes

50
1.5.1. Ética das Virtudes
As virtudes teologais
✓ A virtude aperfeiçoa o ser humano para os atos pelos quais se ordena
para a felicidade.
✓ A felicidade ou beatitude do ser humano é dupla: uma, proporcionada
à natureza, pode obtê-la pelos princípios desta; outra que excede a
natureza e só pode ser alcançada pelo auxílio divino, por participação da
natureza divina.
✓ Portanto, é necessário lhe sejam acrescentados por Deus certos
princípios pelos quais se ordene à beatitude sobrenatural, assim como,
pelos princípios naturais, se ordena a um fim que lhe é conatural; mas,
isso não é possível o auxílio divino.
«Ora, esses princípios se chamam virtudes teologais, quer por terem Deus
como objeto, enquanto nos ordenam retamente para ele; quer por nos
serem infundidos só por Deus; quer por nos serem essas virtudes
conhecidas só pela divina revelação, na Sagrada Escritura» (S.T. I-II, 57, 2).
51
1.5.1. Ética das Virtudes

52
1.5.1. Ética das Virtudes

✓ FÉ: «primeiramente ao intelecto se lhe acrescentam certos


princípios sobrenaturais apreendidos pela iluminação divina, e que são
os princípios da crença, objeto da fé.»

✓ ESPERANÇA: «a vontade ordena-se para o fim sobrenatural pelo


movimento intencional, tendendo para ele, como o que é possível de
conseguir, o que pertence à esperança.»

✓ CARIDADE: «por uma como que união espiritual, pela qual, de certo
modo, se transforma nesse fim, o que se realiza pela caridade. Pois, o
apetite de cada ser move-se naturalmente e tende para o seu fim
conatural, e esse movimento procede de certa conformidade da coisa
com o seu fim.»
(S.T. I-II, 58, 2).

53
1.5.1. Ética das Virtudes

Alasdair MacIntryre (1929-)


✓ É um dos pioneiros, juntamento com
autores como M. Sandel ou Charles
Taylor, da perspetiva filosófica conhecida
como comunitarismo.

✓ MacIntyre defende que não existe


moral em abstrato. Existem morais
concretas, situadas em tempos e espaços
determinados: a filosofia moral não é
uma disciplina separada da história, da
antropologia ou da sociologia; consiste,
sobretudo, em mores, costumes, e estes
são incompreensíveis se separados das
suas circunstâncias.
54
1.5.1. Ética das Virtudes
✓ O diagnóstico que MacIntyre faz da moral no mundo
contemporâneo é desalentador: o ethos configurado pela
modernidade deixou de ser credível e o projeto do iluminismo foi um
fracasso; é inútil a busca de uma racionalidade e de uma moral
universais. Vivemos numa época «pós-virtuosa».

✓ No que diz respeito à moral, o nosso mundo é desordenado, uma


mescla de doutrinas, ideias e teorias que provêm de épocas
longínquas e distintas.

✓ Como neoaristotélico que é, MacIntyre defende que é possível uma


ética das virtudes nos dias de hoje, com a condição de renunciarmos a
fazê-la universal. As virtudes aristotélicas tiveram origem numa
comunidade concreta: a democracia ateniense. O que hoje precisamos
são novas formas de comunidade.
Victoria Camps, «Prefácio à la nueva edición», in Tras la virtud.
55
1.5.1. Ética das Virtudes

Três conceções distintas de virtude:


✓ Virtude como qualidade que permite a um indivíduo desempenhar
bem o seu papel social → Homero.
✓ Virtude como qualidade que permite a um indivíduo alcançar o telos
especificamente humano, natural ou sobrenatural → Aristóteles, Novo
Testamento, S. Tomás de Aquino.
✓ Virtude como qualidade útil para alcançar êxito nesta vida ou na
vida futura → Benjamin Franklin.
Questão: será possível encontrar um conceito unitário e central de
virtude que englobe as distintas conceções de virtude? MacIntyre
oferece uma definição unitária de virtude com base em três outros
conceitos: prática, ordem narrativa e tradição moral.
MacIntyre, Tras da virtud, p.
56
1.5.1. Ética das Virtudes
Prática e bens internos
Prática: «por ‘prática’ entenderemos qualquer forma coerente e
complexa de atividade humana cooperativa, estabelecida socialmente,
mediante a qual se realizam os bens inerentes à mesma e se tentam
alcançar os modelos de excelência que são apropriados para essa
forma de atividade.» (Tras la virtud, p.) Exemplos de práticas: xadrez, a
agricultura, investigação em física ou em química, etc. As práticas não
são instituições, embora sejam sustentadas por estas. (Tras la virtud, p. 233)
Bens internos e bens externos a uma prática: os bens internos a uma
prática não podem obter-se a não ser através da prática e só podem
identificar-se e reconhecer-se participando na prática em questão; os
bens externos podem ser alcançados de outras formas. Os bens
externos, quando se alcançam, são sempre propriedade de um
indivíduo; em geral, quanto mais tem um menos têm os outros. Os
bens internos, pelo contrário, beneficiam também a comunidade que
participa na prática. (Tras la virtud, pp. 234-235) 57
1.5.1. Ética das Virtudes

Definição de virtude I:
«Uma virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e
exercício tende a fazer-nos capazes de alcançar os bens internos às
práticas e cuja ausência nos impede efetivamente de alcançar esses
bens.» (Tras la virtud, p. 237)

58
1.5.1. Ética das Virtudes
Virtudes chave:
Existe um conjunto de virtudes chave, transversais a qualquer prática,
sem as quais não poderemos ter acesso a bens internos às práticas.
Estas virtudes são: a justiça, a coragem e a honestidade.
Justiça: precisamos aprender a distinguir os méritos de cada um e a
monitorizar o progresso alcançado.
Coragem: precisamos estar dispostos a enfrentar os riscos e
dificuldades que se atravessarem no nosso caminho.
Honestidade/verdade: precisamos aprender a reconhecer as nossas
insuficiências, escutando cuidadosamente as críticas.

Ao mesmo tempo que são indispensáveis para alcançar os bens


internos a uma prática, as virtudes podem impedir-nos de alcançar
certos bens externos. (Tras la virtud, p. 238)
59
1.5.1. Ética das Virtudes

Incompletude da primeira definição de virtude:


1. Se estivesse informada apenas pelo conceito de virtude até agora
esboçado, a vida humana estaria invadida por um excesso de conflitos
e de arbitrariedade.

2. A não ser que exista um telos que transcenda os bens limitados das
práticas e constitua o bem da vida humana completa concebido como
uma unidade, a vida moral é invadida por uma certa arbitrariedade.

3. Existe pelo menos uma virtude reconhecida pela tradição que não
pode especificar-se a não ser por referência à totalidade da vida da
vida humana: é a virtude da «integridade».
(Tras la virtud, p. 249-251)

60
1.5.1. Ética das Virtudes
Ordem narrativa
✓ As nossas ações, e as dos outros, fazem sentido no contexto de uma
narrativa mais ampla, fora da qual se tornam ininteligíveis. Um ato
torna-se inteligível na medida em que encontra o seu lugar numa
narrativa. (Tras la virtud, pp. 258-259)
✓ O ser humano, nas suas ações e práticas, é essencialmente um
animal que conta histórias. Sou capaz de dar sentido às minhas ações
na medida em que sou capaz de identificar a história ou histórias de
que faço parte. Não há forma de entender uma sociedade, incluindo a
nossa, que não passe pela identificação das narrativas que constituem
os seus recursos dramáticos básicos. (Tras la virtud, p. 266)
✓ A unidade da vida humana é a unidade de um relato de busca,
orientado por uma determinada conceção de bem último ou final, que
se vai ajustando ao longo da «viagem». (Tras la virtud, p. 270)
61
1.5.1. Ética das Virtudes

Definição de virtude II:


«As virtudes são aquelas disposições que, além de manterem as
práticas e nos capacitarem para alcançar os seus bens internos,
também nos sustentam na nossa busca do bem, ajudando-nos a
vencer os riscos, perigos, tentações e distrações com que nos
depararmos e oferecendo-nos um conhecimento cada vez maior de
nós próprios e do bem para nós. (Tras la virtud, p. 270)

62
1.5.1. Ética das Virtudes

Tradição
✓ A busca do bem e o exercício das virtudes não acontece no vazio:
«sou herdeiro do passado da minha família, da minha cidade, da
minha tribo, da minha nação, de uma variedade de heranças,
expetativas e obrigações. Elas constituem os dados prévios da minha
vida, o meu ponto de partida moral». (Tras la virtud, p. 271)
✓ A história da minha vida está embebida na história daquelas
comunidades das quais derivo a minha identidade. Ou seja, a minha
identidade tem sempre como ponto de referência a tradição a que
pertenço. Tentar escapar à particularidade é sempre uma ilusão. (Tras la
virtud, p. 272)

63
1.5.1. Ética das Virtudes

Definição de virtude III:


«As virtudes encontram o seu fim e propósito, não só em promover as
condições necessárias para que possam alcançar-se os bens internos
às práticas, e não só em sustentar a forma de vida individual na qual o
indivíduo pode buscar o bem enquanto bem da sua vida inteira, mas
também no sustento das tradições que proporcionam, tanto às
práticas como às virtudes, o seu necessário contexto.» (Tras la virtud, p.
274)

64
1.5.1. Ética das Virtudes

Martha Nussbaum (1947-)


✓ Filósofa americana, especializada na
antiguidade grega, em filosofia da Roma
antiga, em filosofia política, em ética e
em estudos sul-asiáticos. É professora de
Filosofia na Universidade de Chicago.

✓ Durante os anos 1980 colaborou com o


economista Amartya Sen em temas
relacionados com o desenvolvimento
humano e a ética. Em 2011, publicou um
volume sobre esta temática, intitulado
Creating Capabilities. Trata-se de uma
abordagem no âmbito da ética das
virtudes.
65
1.5.1. Ética das Virtudes

O enfoque das capacidades


✓ O enfoque das capacidades trata-se de uma abordagem ao
problema do desenvolvimento humano que concebe cada pessoa
como um fim em si mesmo. A pergunta central é: «o que é capaz de
ser e de fazer cada pessoa?»

✓ Este enfoque está centrado na liberdade de cada pessoa, e defende


que as sociedades devem promover um conjunto de oportunidades
para cada sujeito. Trata-se de um enfoque comprometido com o
respeito pela autodeterminação das pessoas.

✓ Em vez de centrar-se no aumento do PIB, o enfoque das


capacidades toma como referência os relatos de vida de pessoas reais,
procurando promover para cada uma um conjunto de oportunidades.
M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 38.
66
1.5.1. Ética das Virtudes

O que são as capacidades?


✓ As capacidades são a resposta à questão: «o que é capaz de fazer e
de ser esta pessoa?». As capacidades são «liberdades substanciais», ou
seja, um conjunto de oportunidades para escolher e atuar.

✓ Uma capacidade é uma espécie de liberdade. Além das habilidades


residentes no interior da pessoa, as capacidades incluem também as
liberdades e oportunidades criadas pela combinação dessas faculdades
pessoais com o meio político, social e económico. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, p. 40)

✓ Dito de outro modo, uma capacidade é uma «liberdade para


escolher». Promover capacidades significa promover áreas de
liberdade. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 45)

67
1.5.1. Ética das Virtudes

Capacidades básicas, internas e combinadas


✓ Capacidades básicas: trata-se do «equipamento inato» da pessoa,
ou seja, as faculdades inatas da pessoa que tornam possível o seu
posterior desenvolvimento e formação. Estas capacidades nascem com
a pessoa, mas para se desenvolverem precisam de um meio favorável.
O desenvolvimento destas capacidades, ainda antes do nascimento,
depende das condições de vida da mãe. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p.
43)

✓ Capacidades internas: aptidões que se adquirem através da


aprendizagem e da prática, em interação com o meio social,
económico e político. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 41)
✓ Capacidades combinadas: soma das capacidades internas com as
condições sociais, políticas e económicas que possibilitam o real
funcionamento daquelas. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 42)
68
1.5.1. Ética das Virtudes

Funcionamento
✓ Funcionamento: um funcionamento é a realização ativa de uma ou
mais capacidades. Ou seja, os funcionamentos são os produtos ou
materializações das capacidades (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 44)
✓ Funcionamento fértil: é aquele que tende a favorecer, também,
outras capacidades com ele relacionadas. Por exemplo, o acesso ao
crédito bancário é uma capacidade fértil, uma vez que possibilita a
promoção de muitas outras possibilidades. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, p. 64)

✓ Desvantagens corrosivas: são, na prática, o contrário dos


funcionamento férteis. Trata-se de privações que têm efeitos
significativos em várias áreas da vida. Exemplo: sujeição a violência
doméstica. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 65)
69
1.5.1. Ética das Virtudes

Capacidades centrais
O enfoque das capacidades centra-se na proteção de âmbitos de
liberdade tão cruciais que a sua supressão faz com que uma vida
humana não seja humanamente digna. O mínimo que se exige de uma
vida humana para que seja digna é que ela supere um limiar mínimo
no que diz respeito a dez capacidades centrais. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, pp. 52-53)

1. Vida: poder viver uma vida com duração normal: não morrer de
forma prematura ou antes que a duração da vida se veja tão reduzida
que não mereça a pena ser vivida.
2. Sáude física: poder manter uma boa saúde, incluindo a saúde
reprodutiva; receber uma alimentação adequada; dispor de um lugar
apropriado para viver.

70
1.5.1. Ética das Virtudes

3. Integridade física: poder deslocar-se livremente de um lugar para o


outro; estar protegido de ataques violentos, incluindo agressões
sexuais e violência doméstica; dispor de oportunidades para satisfazer
a satisfação sexual e poder escolher em matéria de reprodução.

4. Sentidos, imaginação e pensamento: poder utilizar os sentidos, a


imaginação, o pensamento e a capacidade de pensar, e fazê-lo de
modo «verdadeiramente humano», formado e cultivado por uma
educação adequada que inclua a alfabetização e a formação
matemática e científica básica. Poder usar a imaginação para fazer
experiências e para a produção de obras e atos religiosos, literários,
musicais ou outros, segundo a própria escolha.
(M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 53)

71
1.5.1. Ética das Virtudes
5. Emoções: poder sentir afetos por coisas e pessoas externas nós
próprios; poder amar aqueles que nos amam e se preocupam
connosco, e sentir dor pela sua ausência; em geral, poder amar, sentir
compaixão, gratidão e indignação justificada. Que o nosso
desenvolvimento emocional não seja impedido por causa do medo e
da ansiedade.
6. Razão prática: poder formar uma conceção de bem e poder refletir
acerca da planificação da própria vida.
7. Afiliação: a) poder viver com e para os outros, poder reconhecer e
mostrar interesse por outros seres humanos, poder participar em
formas diversas de interação social; b) dispor das bases sociais
necessárias para que não nos sintamos humilhados; ser tratado como
ser humano com um valor igual ao dos demais. Isto supõe introduzir
disposições que combatam a descriminação com base na raça, sexo,
orientação sexual, etnia, casta, religião ou nacionalidade. (M. Nussbaum,
Crear capacidades, p. 54)
72
1.5.1. Ética das Virtudes

8. Relação com as outras espécies: poder viver numa relação próxima


e respeitosa com os animais, plantas e o mundo natural.
9. Lazer: poder rir, divertir-se e desfrutar de atividades recreativas.
10. Controlo sobre o meio: a) político: poder participar de forma
efetiva nas decisões políticas que governam a nossa vida; ter direito à
participação política e à proteção da liberdade de expressão e de
associação; b) poder possuir propriedade (tanto móvel como imóvel) e
ser detentor de direitos de propriedade em igualdade com os demais;
ter direito a procurar trabalho num plano de igualdade com os demais;
estar legalmente protegido face a detenções que não contem com a
devida autorização judicial; no contexto laboral, ser capazes de
trabalhar como seres humanos, exercendo a razão prática e mantendo
relações valiosas e positivas de reconhecimento mútuo com outros
trabalhadores e trabalhadoras. (M. Nussbaum, Crear capacidades, pp. 54-55)
73
1.5.2. O utilitarismo
Utilitarismo
Das teorias clássicas da felicidade, a mais influente na atualidade é o
utilitarismo. Embora tenha antecedentes em vários autores, em sentido
estrito o utilitarismo é fundado por Jeremy Bentham (1748-1832).
Pertencem também a esta tradição autores como John Stuart Mill (1806-
1873), Henry Sidgwick (1838-1900) e Peter Singer (1946-).
Algumas características gerais do utilitarismo:
- O utilitarismo é um hedonismo social. Finalidade: procurar a maior
felicidade para o maior número de pessoas → PRINCÍPIO DA UTILIDADE.
-Não existe um bem a priori que se imponha: condena-se ou aprova-se
algo na medida em que piora ou melhora o bem estar do maior número
de pessoas (utilitarismo). São aceites as preferências de cada um e, na
maximização do prazer, procura-se a imparcialidade.
Problemas: (1) Como definir utilidade, felicidade? (2) por que razão deve a
utilidade ser o fim supremo da moralidade? (3) Como devemos e
podemos calcular a sua maximização?
74
1.5.2. O utilitarismo
1) O que é a felicidade? Várias versões:
- Hedonismo quantitativo: maximização das sensações de prazer e
minimização das sensações dolorosas. (Bentham)
- Hedonismo qualitativo: Stuart Mill corrige Bentham, afirmando que
existem vários tipos de prazeres que não podem ser comparados entre si.
A hierarquização dos prazeres deve ser feita por quem tem experiência, e
por isso é necessária uma educação para aprender a apreciar os prazeres
superiores.
- O enfoque nas sensações é problemático, o que leva alguns autores a
centrar-se nas preferências da pessoas. O útil passa a ser o que maximiza
essas preferências. O problema que surge agora tem a ver com a
constatação de que, por ignorância e outros fatores, as pessoas nem
sempre escolherem o que lhes convém. Por isso, alguns utilitaristas
enunciam o princípio da utilidade como o dever de maximizar a satisfação
das preferências informadas das pessoas (ex. Mill).
Etxeberria, Temas Básicos de Ética, pp. 34-38.
75
1.5.2. O utilitarismo
- Outras formulações do princípio da utilidade falam da maximização do
dos interesses de bem-estar, que devem ter em conta os desejos reais das
pessoas e os recursos que cada um necessita para satisfazer as suas
preferências.

2. Por que razão deve o prazer ser o bem último para o ser humano?
Em princípio, da constatação empírica de que desejamos o prazer devido à
nossa condição natural, deduz-se que é desejável que façamos do prazer
(ou algo equivalente) o horizonte da nossa realização pessoal e que
procuremos, também, a felicidade dos outros.
Habitualmente, diz-se que esta argumentação cai em duas falácias: (i) a
falácia naturalista (passagem injustificada do ser ao dever ser); (ii) a falácia
da composição (passagem injustificada do pessoal – cada um procura a
sua felicidade – ao coletivo – devemos procurar a felicidade do maior
número de pessoas). A ligação entre o utilitarismo como teoria descritiva e
dos comportamentos humanos e o utilitarismo como teoria normativa é
problemática. (Etxeberria, p. 36)
76
1.5.2. O utilitarismo

3) Problemas relacionados com a quantificação da felicidade:


(i) dificuldade em comparar bens (como comparar o prazer de comer com
o prazer de ler poesia); (ii) necessidade de manter uma atitude
estritamente imparcial, o que muito difícil; (iii) necessidade de valorizar
igualmente as preferências sem levar em conta as circunstâncias; (iv) por
vezes é necessário sacrificar uma minoria em prol do bem estar da maioria
(tratar a minoria como simples meio).

Se a sensação de prazer ou de bem-estar é o critério último da


moralidade, e se os animais têm a capacidade de sentir, então estes
devem ser incluídos no cálculo da maximização do bem-estar (ex. Peter
Singer)

77
1.5.3. Éticas Kantianas

A ética Kantiana - característica gerais


- A filosofia moral de Kant constitui a formulação mais
sistemática e acabada de uma moralidade moderna cujo
conteúdo nuclear – o princípio absoluto da benevolência
na relação com outrem e o «respeito» pela dignidade da
«pessoa» - apresenta a marca indelével do cristianismo.

- Ao mesmo tempo, a filosofia moral kantiana pretende manter-se nos


«limites da simples razão», libertando-se de toda e qualquer referência ao
teológico ou ao religioso.
- A ética kantiana constitui o mais claro exemplo de uma ética
deontológica: a bondade uma ação é avaliada pela conformidade da
intenção do agente moral com a lei moral ou o dever. Para tal avaliação, os
fins ou consequências da ação são indiferentes, ao contrário do que
acontece com as éticas de tipo teleológico.

78
1.5.3. Éticas Kantianas
- Questão central que qualquer indivíduo racional deve fazer no âmbito da
sua vida ética: «o que devo fazer?». Esta questão substitui as questões
orientadoras das éticas teleológicas: «Como viver?» «Viver para quê?»
«Como ser feliz?»
- Constante estrutural do pensamento antigo: cada ação particular da vida
do sujeito é por ele racionalmente pensada em função da conceção do bem
a partir da qual esse sujeito organiza da sua vida. Com Kant, a questão deixa
de ser «o que devo fazer na vida, ou o que devo fazer à minha vida» e passa
a ser: «o que devo fazer nesta situação concreta?»
- A ética de Kant é, no essencial, uma teoria moral cujo objetivo é
demonstrar a superioridade absoluta do «dever» moral enquanto critério
de orientação do agir prático, em relação a todos os outros candidatos à
orientação propostos por outras éticas, tais como o próprio interesse, o
bem-estar pessoal ou global, ou a felicidade. A superioridade do dever
justifica-se em termos de pura racionalidade.
- A ética Kantiana é autonómica, por oposição a heteronómica, no sentido
em que é a razão que concebe e fundamenta a lei moral e a dá a si própria.
79
1.5.3. Éticas Kantianas

Crítica Kantiana das éticas materiais:


Características das éticas materiais (com conteúdo): (i) a bondade dos atos
depende do facto de nos aproximarem de um bem supremo ou finalidade
(éticas teleológicas); (ii) estabelecem-se normas concretas a respeito dos
meios para alcançar esse bem. (Etxeberria, p. 97)
Três características inaceitáveis das éticas teleológicas:
1) São empíricas ou a posteriori: o conteúdo extrai-se experiência (ex.
constatamos que o prazer nos atrai).
2) São hipotéticas ou condicionais (a aceitação de determinada norma
depende de querermos ou não o fim que lhe está associado).
3) São heterónomas: a norma que nos guia não é fruto da nossa razão.

As máximas das éticas teleológicas não são universalizáveis!

80
1.5.3. Éticas Kantianas
Características de uma ética universalizável e absoluta:
- É a priori, não empírica, ou seja, não estabelece nenhum bem que deva
perseguir-se;
- É categórica e não hipotética: as normas que propõe são absolutas e
universais.
- É autonómica: é o sujeito que se dá a si mesmo a lei, com independência
de tudo o que não é a sua própria determinação racional.

“A moralidade da ação não se avalia pela ação em si mesma, nem pelas suas
consequências, mas pela intenção da vontade que atua por dever, por
respeito à lei moral”. (Etxeberria, p. 98)
O bem moral não depende do conteúdo das ações ou das normas, mas sim da
forma das normas, máximas ou princípios. Para Kant, a forma racional das
normas descobre-se quando adotamos a perspetiva da igualdade (num mundo
de pessoas empiricamente desiguais) e da universalidade (num mundo de
pessoas empiricamente desiguais).
81
1.5.3. Éticas Kantianas

Distinção entre Dever e Normas:


Dever: remete à situação de obrigação em relação a algo, normalmente a
um ato que deve fazer-se ou evitar-se. Do ponto de vista ético, é o sujeito
que se obriga a si próprio. Existe uma relação entre dever e consciência.

Norma: aquilo que temos o dever de cumprir. O que obriga como dever
adquire a forma de norma (lei, regra ou imperativo). A nossa conduta deve
estar de acordo com esta norma. A pressão obrigante da norma moral é
interna, ou seja, tem como referência a consciência (caso contrário
entramos no âmbito do Direito).

82
1.5.3. Éticas Kantianas
Dever, «boa vontade» e racionalidade:
- O que é o dever? Qual a sua natureza e a sua origem?

- O dever, tal como Kant o entende, tem a sua raiz no foro mais íntimo da
subjetividade, na própria vontade do sujeito. Para agir «por dever» é preciso
querer, ter vontade de agir por dever. «O conceito de dever contém o de boa
vontade».

- Segundo Kant, a fonte de que brota a de agir «por dever», «a boa


vontade», é a própria razão. Ou seja, o dever não é imposto por uma
autoridade externa ao indivíduo → a moral kantiana é autonómica.
- Numa ética racional do dever, como a de Kant, as ações não são avaliadas
em função dos efeitos ou consequências que possam ter para a realização de
um bem positivo, mas em função da sua própria «forma» como ações
praticadas por dever, ou seja, em função da racionalidade imanente à
vontade de as realizar, numa vontade que não se manifesta necessariamente
na exterioridade do próprio ato.
83
1.5.3. Éticas Kantianas
- Em Kant, o dever não é apenas um dever interiorizado, mas um dever
interno. O conceito de dever implica a ideia de coação, de obrigação
(interna) de fazer algo. Todavia, o dever kantiano não tem a forma de lei
jurídica, que é uma obrigação externa que me é imposta por determinada
autoridade.
- Agir «por dever» não significa ser legalista, ou seja, cumprir à letra e de
maneira automática as leis em vigor ou as ordens do poder estatal sem
pensar na sua consistência e legitimidade moral. O dever kantiano não
exprime uma obrigação legal, mas moral. Em certas circunstâncias, o
«dever» moral exige a desobediência a leis ou ordens imorais.

- O dever kantiano também não deve ser entendido como simples resultado
interiorizado da pressão social, a qual criaria no indivíduo um hábito muito
forte através do processo a que os sociólogos chama socialização. O dever
não é uma obrigação social importa pelo processo de socialização, mas uma
obrigação interna que emana da «boa vontade» do próprio sujeito, a qual é
determinada pela razão.
84
1.5.3. Éticas Kantianas
- As normas sociais vigentes numa sociedade só podem ser consideradas
como moralmente válidas se forem conformes à «boa vontade», o que é o
mesmo que dizer, à racionalidade prática.
- O que significa, para Kant, ser «racional» no âmbito do agir? No caso das
ética teleológicas, a razão determina os fins do ser humano e os meios para
os alcançar, ou seja, está ao serviço de determinado bem humano. A razão
prática kantiana, pelo contrário, não depende de fins exteriores a si própria.
A razão kantiana só está ao serviço de si própria, de um interesse mais alto
do que qualquer bem natural ou empírico.

Classificação das ações:


- Ações contrárias ao dever → ações próprias da «má vontade».
- Ações conformes ao dever mas realizadas por inclinação imediata ou por
interesse pessoal → Ações próprias da «vontade legal».
- Ações praticadas pelo dever, em que a lei moral é o fim em si mesmo →
ações próprias da boa vontade. (FMC, pp.26-29)
85
1.5.3. Éticas Kantianas
- Pode um ser humano ser animado por uma «boa vontade» puramente
racional, capaz de se abstrair de todos os interesses empíricos e naturais?
Para Kant, uma «vontade absolutamente boa seria» seria uma «vontade
santa» ou «divina», a qual seria exclusivamente determinada pelo «dever»
ditado pela razão e nunca por interesses particulares ou desejos naturais do
sujeito. Uma «vontade humana real», contudo, é determinada
simultaneamente pela razão e pelas «inclinações naturais».

- A primeira tarefa de uma ética do dever consistirá em formular o princípio


de uma lei moral suscetível de servir de critério de racionalidade e,
portanto, de validade, para toda e qualquer máxima formalmente correta
correlativa de uma ação «por dever».

- O cumprimento do dever moral, exprimível em qualquer máxima válida,


corresponderia ao «interesse» superior exclusivo da razão prática. Sempre
que estiver em causa apenas e somente o «interesse» da razão, estão
excluídos à partida interesses subjetivos e egoístas.
86
1.5.3. Éticas Kantianas
O imperativo categórico:
- Como faculdade intelectual, a função da razão prática é orientar o
indivíduo no campo do agir, dando resposta à questão «o que devo fazer?»
A razão prática determina a vontade que, por seu turno, realiza a ação.
Os imperativos exprimem-se pelo verbo dever e dizem o que se deve, ou
não, fazer, o que não significa que a vontade lhe obedeça. O imperativo diz
o que é bom e determina a vontade pela lei da razão.
Imperativos hipotéticos – constituem o núcleo das éticas teleológicas;
comandam uma determinada ação considerada necessária para o alcance
de um fim previamente considerado como bom. Um tal imperativo
hipotético diz respeito aos meios que a razão considera racionalmente
necessários para realizar determinados fins:
«se quiseres alcançar o fim X, é necessário que faças Y.»
Imperativos hipotéticos técnicos (problemáticos) – exprimem uma
necessidade de ordem técnica, física ou lógica. (ex.: «se queres ir de
Lisboa ao Porto em menos de uma hora, vai de avião») 87
1.5.3. Éticas Kantianas

- Imperativos hipotéticos de prudência (assertóricos)– são de


ordem ética, e dizem respeito à felicidade, considerada como fim
natural do ser humano.
- Nos imperativos hipotéticos de prudência encontramos uma
dupla incerteza ou contingência: não só a realização do fim é
contingente (está condicionada por muitos fatores), como depende
da forma como cada um concebe a felicidade.

Imperativo categórico – é o único imperativo propriamente moral e


exprime uma «necessidade incondicionada objetiva e universal». O objetivo
de Kant é conferir à lei moral, ao imperativo categórico, uma necessidade
de caráter lógico ou, na sua terminologia, a priori, independente da
experiência, baseada no princípio formal de não-contradição. O imperativo
categórico não estabelece uma relação condicional entre um meio e um
fim. A forma do seu enunciado é, simplesmente:
«faz Z!»
88
1.5.3. Éticas Kantianas

- A única razão para não fazer Z decorre da necessidade de evitar a


contradição que seria não fazer Z. Em termos Kantianos, isso seria uma
contradição entre a máxima da ação particular e um princípio superior e
geral do agir.

- Com o imperativo categórico, Kant pretende fornecer uma «lei» tão formal
e geral que abranja todas as máximas particulares, isto é, todas as
proposições normativas, de caráter moral.

«Mas que lei pode então ser essa, cuja representação, mesmo sem tomar
em conta o efeito [isto é, o resultado e as consequências materiais] que
delas se espera, tem de determinar a vontade para que esta se possa
chamar boa absolutamente e sem restrição?» (Kant, FMC, p. 33)

89
1.5.3. Éticas Kantianas

Três formulações do princípio categórico


1 – «Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo
querer que ela se torne lei universal» (FMC, p. 59)
1a – «Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua
vontade, em lei universal da natureza» (FMC, p. 59)

2 – «Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio» (FMC, p. 69)

3 – «Age de tal maneira que a [tua] vontade, pela sua máxima, se possa
considerar ao mesmo tempo como legisladora universal». (FMC, p. 76)

3a – «[Age] como se fosse[s] sempre, pelas [tuas] máximas, um membro


legislador do reino dos fins» (FMC, p. 80)
90
1.5.3. Éticas Kantianas

Exemplos:
1 – Promessas:
«A universalidade de uma lei que permitisse a cada homem que se julgasse
em apuros prometer o que lhe viesse á ideia com a intenção de o não
cumprir, tornaria impossível a própria promessa […]; ninguém acreditaria
no que lhe viessem a prometer».

2 – Dever de contribuir para o bem-estar dos outros ou de os socorrer.


A tentativa de fazer da máxima «não sou obrigado a ajudar os outros nem a
socorrê-los na necessidade» uma lei universal conduziria, segundo Kant, a
uma contradição.

91
1.5.3. Éticas Kantianas
Três versões da Autonomia:
1) Autonomia como princípio de liberdade individual: é lícito (e bom) que
cada um procure a liberdade do modo que melhor lhe pareça. “Sou
autónomo para decidir os meus projetos de realização pessoal e atuar em
conformidade”. Condenação de qualquer intervenção paternalista por
parte de indivíduos e instituições (Stuart Mill, Sobre a Liberdade).

2) Autonomia como auto-legislação (Kant): é o sujeito racional quem


formula a lei moral, mas como membro da humanidade, de tal modo que
a lei moral tem que ter alcance universal. Tensão entre a autonomia do
sujeito real e do sujeito racional. → ética dialógica (Habermas e Karl Otto-
Apel).

3) Autonomia como autenticidade (Charles Taylor): Desejo de realizar a


nossa identidade de modo único, autonomia como “ser eu mesmo”.
Tensão entre autenticidade e universalidade.
92
1.5.3. Éticas Kantianas
Apreciação crítica da abordagem Kantiana:
1. Uma das críticas mais sérias à ética Kantiana denuncia o dualismo que
supostamente subjaz à abordagem de Kant: os nossos desejos, inclinações
e ações pertencem ao domínio dos fenómenos naturais e são causalmente
determinados; por outro lado, os seres humanos são livres, ou seja,
capazes de auto-determinação (O. O’Neill, Kantian Ethics, p. 180).
2. Formalismo: muitos dos críticos de Kant (Ex. Hegel e Stuart Mill)
denunciam o formalismo da sua ética, alegando que o imperativo
categórico é vazio, trivial, puramente formal e incapaz de identificar
princípios do dever (pp. 181-182).
3. Rigorismo: acusação de que a ética kantiana dá origem a regras rígidas,
que não têm em conta as circunstâncias particulares de cada caso. Como
resposta a esta crítica, poderíamos dizer que princípios universais não
exigem necessariamente um tratamento indiferenciado; por exemplo, o
princípio da tributação deve ser ter em conta os rendimentos de cada
membro da sociedade. Até que ponto a moral Kantiana pode ser vivida por
93
seres humanos reais? (p. 182)
1.5.3. Éticas Kantianas
4. Conflito entre diferentes obrigações: segundo alguns críticos, o
imperativo categórico impõe de forma absoluta normas que podem estar
em conflito entre si, sem dar um critério para distinguir as que são mais ou
menos prioritárias. (pp. 182-183)

Aspetos positivos:
Valorização da dignidade do ser humano: a dignidade atribuída por Kant
ao ser humano, considerado como próprio legislador, coloca o filósofo
entre aqueles que mais confiaram no ser humano. A ética Kantiana afirma
a dignidade inalienável de cada ser humano, que nunca pode ser usado
como meio. (Silveira de Brito, Introdução à FMC, p. 86)
Universalidade: o aspeto positivo do caráter formalista da ética kantiana
consiste na sua capacidade de enfrentar o subjetivismo e o relativismo
contemporâneos.
A abordagem kantiana continua a ser a servir de base à tentativa de
encontrar princípios morais universalizáveis, sem referência a preferências
ou quadros de referência teológicos (ex. direitos humanos). 94
1.5.5. A lei natural

A lei natural
As teorias da lei natural são teorias cuja normatividade se encontra inscrita
na natureza humana. Nas versões da lei natural desenvolvidas pelos
pensadores antigos e medievais, a lei natural está associada à finalidade do
ser humano (abordagem teleológica). Nas abordagens modernas, a lei
natural tem que ver com qualidades que se encontram na natureza humana
e que implicam determinados direitos e deveres (abordagem deontológica).
O ideal da universalidade:
«Há valores morais objetivos capazes de unir os homens e de fazê-los
procurar paz e felicidade? Quais são eles? Como discerni-los? Como colocá-
los em prática na vida das pessoas e das comunidades? Estas questões de
sempre em torno do bem e do mal são, hoje, mais urgentes do que nunca,
na medida em que os homens tomaram mais consciência de formar uma só
comunidade mundial.» (Comissão Teológica Internacional (2009), Em busca de uma ética
universal: novo olhar sobre a lei natural, n.º 1)

95
1.5.5. A lei natural
A lei natural na síntese medieval
-Por lei natural entende-se a ordenação para um fim, inscrita na própria
natureza das coisas.
- Distinção entre seres inertes e seres vivos: nos primeiros existem apenas
característica atuais; nos segundos existem diversas virtualidades que se vão
atualizando progressivamente, a partir da interação entre o dinamismo
interior do ser vivo, de acordo com a sua natureza, com o meio. No caso dos
seres inertes, a lei natural identifica-se com as leis físicas. No caso dos seres
vivos, as leis naturais definem as condições de sobrevivência e crescimento.
- A vida precisa ser regulada para poder persistir. No caso especial dos seres
humanos, a regulação instintiva ou espontânea é incompleta, e
necessitamos de uma «regulação inteligente». Esta opera ao nível dos meios
(técnicas em sentido amplo) e ao nível dos fins (ao definir as nossas
necessidades e objetivos); os primeiros estão ao serviço dos segundos.
Surgem, assim, as várias áreas da atividade humana: higiene, medicina,
moral, direito e política. (Etxeberria, Temas Básicos de Ética, p. 74)
96
1.5.5. A lei natural
- Dadas as várias pressões externas e internas, a nossa vontade precisa ser
guiada: a higiene e a medicina guiam-nos no que concerne à nossa
existência física; a moral natural no que concerne à nossa conduta
individual; o direito natural no que diz respeito à vida social.

- A lei natural no domínio da moral e do direito deve ser dada por quem tem
o poder correspondente. Se esta depende da essência das coisas, quem tem
o poder é aquele que as criou. Nesse sentido, deve ser chamada, na sua
origem, lei divina, e está internamente unida à essência e ordem das coisas,
as quais foram fixadas pela própria criação.
(Etxeberria, Temas Básicos de Ética, p. 74)

97
1.5.5. A lei natural
Na medida em estão inscritas na essência das coisas, as leis morais naturais:
1) podem ser conhecidas pela razão, em qualquer lugar e em todas as
circunstâncias (universalidade); 2) são necessárias e imutáveis no espaço e no
tempo, devido à unidade da natureza humana e à indissolúvel ligação entre
ser e dever ser.
- A teoria medieval da lei natural não afirma que a natureza imponha um
código detalhado de leis morais e jurídicas; o que a lei natural dita são
princípios gerais do direito e prescrições morais primordiais que se aplicam a
todos os seres humanos.
Princípios gerais da lei natural:
- «O primeiro princípio da razão prática está fundamentado sobre a razão de
bem e é o seguinte: “o bem é aquilo que todos apetecem”. Portanto, este é o
primeiro preceito da lei: “o bem deve ser praticado e procurado, o mal deve
ser evitado”. Sobre isso estão fundamentados todos os
demais preceitos da lei da natureza, de tal modo que tudo o que deve ser
praticado ou evitado, que a razão prática naturalmente apreende ser bem
humano, pertence aos preceitos da lei da natureza.» (S.T. I-II, 94, 2)
98
1.5.5. A lei natural

«Todo ser humano, que chega à consciência e à responsabilidade, faz a


experiência de um apelo interior de cumprir o bem. Ele descobre que é,
fundamentalmente, um ser moral, capaz de perceber e de exprimir a
interpelação que, como já foi visto, se encontra no interior de todas as
culturas: “É necessário fazer o bem e evitar o mal”. É sobre esse preceito que
se fundamentam todos os outros preceitos da lei natural. Esse primeiro
preceito é conhecido naturalmente, imediatamente, pela razão prática,
assim como o princípio da não contradição (a inteligência não pode,
simultaneamente e sob o mesmo aspeto, afirmar e negar algo de um
sujeito), que está na base de todo o raciocínio especulativo, e apreendido
intuitivamente, naturalmente, pela razão teórica, quando o sujeito
compreende o sentido dos termos empregados. Tradicionalmente, esse
conhecimento do primeiro princípio da vida moral é atribuído a uma
disposição intelectual inata, que se chama de sindérese.» (Comissão
Teológica Internacional, Em busca de uma ética universal: novo olhar sobre a
lei natural, n.º 39)
99
1.5.5. A lei natural
- O primeiro preceito pode ser especificado num conjunto concreto de
preceitos derivados dos dinamismos fundamentais do ser humano e que
compreendem a conservação da vida, as relações sexuais, a educação da
prole, etc.
«Tradicionalmente, distinguem-se três grandes conjuntos de dinamismos
naturais, que estão presentes na pessoa humana. O primeiro, que é comum
a todo ser substancial, compreende essencialmente a inclinação a conservar
e a desenvolver a sua existência. O segundo, que é comum a todos os seres
vivos, compreende a inclinação a se reproduzir para perpetuar a espécie. O
terceiro, que é próprio como ser racional, comporta a inclinação a conhecer
a verdade sobre Deus assim como para viver em sociedade. A partir destas
inclinações se podem formular os preceitos primeiros da lei natural,
conhecidos naturalmente. Esses preceitos são muito gerais, mas formam
como que um primeiro substrato, o qual está na base de toda reflexão
ulterior sobre o bem a praticar e o mal a evitar.» (Em busca de uma ética
universal, nº 46)
100
1.5.5. A lei natural

«Em terceiro lugar é inerente ao homem a inclinação para o bem segundo a


natureza da razão que lhe é própria, como ter o homem uma inclinação
natural para conhecer a verdade sobre Deus e viver em sociedade. E
segundo isto pertence à lei natural aquilo que diz respeito a esta inclinação
como que o homem evite a ignorância, não ofenda a outros com os quais
deve conviver, e tudo o mais que a isso diz respeito.» (S.T. I-II, 94, 2)

101
1.5.5. A lei natural
«Nós identificamos, na pessoa humana, uma primeira inclinação, que ela
compartilha com todos os seres: a inclinação para conservar e desenvolver
sua existência. Há, habitualmente, entre os seres vivos, uma reação
espontânea em face da ameaça iminente de morte: fuga, defesa da
integridade da própria existência, luta para sobreviver. A vida física aparece,
naturalmente, como um bem fundamental, essencial, primordial: daí brota o
preceito de proteger a própria vida. Sob esse enunciado de conservação da
vida se perfilam as inclinações para tudo o que contribui, de uma forma
própria ao homem, à manutenção e à qualidade da vida biológica:
integridade do corpo; uso dos bens exteriores, que garantam a subsistência
e integridade da vida, tal como a nutrição, a vestimenta, a moradia, o
trabalho; a qualidade do ambiente biológico… A partir dessas inclinações, o
ser humano se propõe fins a realizar, que contribuem ao desenvolvimento
harmonioso e responsável do próprio ser e que, portanto, lhe aparecem
como bens morais, valores a buscar, obrigações a cumprir e direitos a fazer
valer.» (Em busca de uma ética universal, nº 48)
102
1.5.5. A lei natural
«A segunda inclinação, que é comum a todos os seres vivos, concerne à
sobrevivência da espécie, que se realiza pela procriação. A geração inscreve-se
no prolongamento da tendência de perpetuar o ser. Se a perpetuação da
existência biológica é impossível ao próprio indivíduo, ela é possível à espécie, e,
assim, em certa medida, se encontra vencido o limite inerente a todo ser físico.
O bem da espécie aparece, então, como uma das aspirações fundamentais
presentes na pessoa. Particularmente, em nossos dias tomamos consciência
quando certas perspetivas, como o aquecimento climático, avivam nosso senso
de responsabilidade para com o planeta como tal e da espécie humana em
particular. Essa abertura a um certo bem comum da espécie anuncia já algumas
aspirações próprias ao homem. O dinamismo para com a criação está
intrinsecamente ligado à inclinação natural, que leva o homem para a mulher e
a mulher para o homem, dado universal reconhecido em todas as sociedades. O
mesmo vale para a inclinação de cuidar dos filhos e de educá-los. Essas
inclinações implicam que a permanência do casal de homem e mulher, e até
mesmo sua fidelidade mútua, já sejam valores a buscar, mesmo se eles só
possam se manifestar plenamente na ordem espiritual da comunhão
interpessoal.» (Em busca de uma ética universal, nº 49)
103
1.5.5. A lei natural
«O terceiro conjunto de inclinações é específico do ser humano como ser
espiritual, dotado de razão, capaz de conhecer a verdade, de entrar em diálogo
com os outros e de estabelecer relações de amizade. Assim, deve-se reconhecer
sua particular importância. A inclinação a viver em sociedade deriva,
primeiramente, do fato de que o ser humano tem necessidade dos outros para
superar seus limites individuais intrínsecos e atingir sua maturidade nos
diferentes âmbitos de sua existência. Mas, para manifestar plenamente sua
natureza espiritual, ele tem necessidade de estabelecer relações de amizade
generosa com seus semelhantes e de desenvolver uma cooperação intensa na
busca da verdade. Seu bem integral está, assim, intimamente ligado à vida em
comunidade, que existe em virtude de uma inclinação natural e não por uma
simples convenção, e que o faz se organizar em sociedade política. O caráter
relacional da pessoa se exprime-se também pela tendência de viver em
comunhão com Deus ou o Absoluto. Isso se manifesta no sentimento religioso e
no desejo de conhecer a Deus. Certamente, ela pode ser negada por aqueles
que se refutam admitir a existência de um Deus pessoal, mas que permanece
mais ou menos implícita na busca da verdade e do sentido que habita em todo
ser humano.» (Em busca de uma ética universal, nº 50)
104
1.5.5. A lei natural
A historicidade da lei natural
«É impossível permanecer no nível de generalidade, que é aquele dos
princípios primeiros da lei natural. A reflexão moral, com efeito, tem
necessidade de descer ao concreto da ação para aí lançar sua luz. Mas
quanto mais ela enfrenta situações concretas e contingentes, tanto mais
suas conclusões são afetadas por uma nota de variabilidade e de incerteza.
Não é surpreendente, pois, que a aplicação concreta dos preceitos da lei
natural possa tomar formas diferentes nas diversas culturas ou mesmo em
épocas diferentes dentro de uma mesma cultura. Basta invocar a evolução
da reflexão moral sobre questões como a escravatura, empréstimo a juros,
duelo ou pena de morte. » (Em busca de uma ética universal, nº 53)
«A razão prática ocupa-se de realidades contingentes, nas quais se exercem as ações
humanas. É por isto que, embora nos princípios gerais haja alguma necessidade, quanto
mais se afronta as coisas particulares tanto mais há indeterminação (...). No campo da
ação, a verdade ou a retidão prática não é a mesma para todos nas aplicações
particulares, mas unicamente nos princípios gerais; e para aqueles que a retidão é
idêntica em suas próprias ações, ela não é igualmente conhecida por todos. (...) E aqui,
quanto mais se desce no particular, mais a indeterminação aumenta.» (S.T. I-II, 94, 4)105

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