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Módulo de Ética
Ano Letivo 2020-2021
2.º semestre
Bruno Nobre, sj
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1. Introdução à ética
geral
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1.1. A dimensão moral do ser humano
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1.1. A dimensão moral do ser humano
O Facto Moral:
«Parafraseando Ortega – “Eu sou eu e as minhas circunstâncias” –,
podemos dizer, no mesmo sentido, que cada ser humano é o seu eu
mais as suas normas sociais e morais; cada homem e cada mulher,
enquanto indivíduos, são eles mesmos mais os códigos e normas
morais, a moral a que aderem. A moral é, para os humanos, como
que uma segunda pele, tão unida à primeira que resulta dificilmente
discernível, passível de ser rejeitada ou renovada. A moral é um
elemento tão constitutivo do ser humano, como a sua condição de
ser mortal, finito e limitado.
Guisán, Introducción a la Ética, p. 31.
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1.1. A dimensão moral do ser humano
Moral: nível do mundo social, constituído por valores, normas e
instituições morais, existentes numa sociedade e merecedores de
reconhecimento geral. Vincula os seus membros em forma de ideias
compartilhadas e de obrigações e proibições. Tem um papel
importante na vida quotidiana, muitas vezes de forma inconsciente.
Neste nível encontramos, sobretudo, três componentes:
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1.2. Definição de conceitos
Funções da ética:
(1) Clarificar o que pertence à dimensão moral e quais as suas
características específicas, distinguindo a moral das outras dimensões
do humano;
(2) fundamentar a moralidade, ou seja, encontrar razões que possam
justificar determinados sistemas morais;
(3) aplicar aos diversos âmbitos da vida humana o que se descobriu nos
dois primeiros pontos;
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1.2. Definição de conceitos
A ética como saber prático.
1) A ética é um saber da praxis para a praxis. Neste sentido, não se trata
de um saber meramente teórico. A ética não orienta de modo imediato
para a ação, não dá prescrições concretas de ação. O seu objetivo
consiste em clarificar as normas sociais, identificando os bens
fundamentais e encontrando regras gerais. No entanto, a ética não deixa
de ter consequências práticas, ou seja, orienta, de forma indireta, para a
ação. Como dizia Aristóteles, “investigamos não para saber o que é a
virtude, mas para ser virtuosos.”
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1.2. Definição de conceitos
Classificação Aristotélica dos saberes
Teóricos Poiéticos Práticos
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1.2. Definição de conceitos
Momentos da reflexão ética:
1. Estudo e reconhecimento do mundo dos valores e normas em todas as
esferas da atividade humana (passo prévio ao início do estudo da ética)
→ ciência da moral ou ética descritiva;
Ética Ética
Descritiva Normativa
Ética
Ética Metaética
Aplicada
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1.2. Definição de conceitos
A ética aplicada:
Procura aplicar as normas morais a situações concretas, em contextos
específicos. «A ética posterior visa refletir sobre o modo como essas
normas se devem modelar nos contextos concretos do agir, como seja
a vida profissional.» A ética aplicada centra-se em campos concretos da
atividade humana. (Silveira de Brito, p. 288).
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1.3. Ética e direito; ética e religião
Ética e Direito:
- as fontes do direito não se restringem à razão autónoma dos
indivíduos e englobam a tradição e a legislação positiva.
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1.3. A ética e outras dimensões do humano
Diferenças entre ética e direito:
- Exigência de positivização: As normas morais obrigam a consciência
moral independentemente de terem sido postas em vigor num sistema
jurídico positivo; pelo contrário, as normas jurídicas precisam de ser
promulgadas pelos poderes políticos competentes.
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1.3. A ética e outras dimensões do humano
Em que medida existe uma vinculação entre a ética e o direito?
- Tese da vinculação absoluta: Tese clássica dos defensores da lei
natural; a moral pode ser mais do que o direito, mas este só é
propriamente direito quando é moral.
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1.3. A ética e outras dimensões do humano
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1.3. A ética e outras dimensões do humano
Ética e religião: as éticas religiosas têm como ponto de partida a
autoridade de determinado livro ou da tradição. A ética filosófica ou
filosofia moral remete para o uso da razão independentemente dos
apelos à autoridade religiosa, quer sob a forma de textos sagrados,
quer sob a forma de tradições.
João Rosas, “Conceitos que Pensam a Ação”, p. 85.
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1.4. Classificação das teorias éticas
Éticas de máximos e éticas de mínimos
Éticas de máximos ou da felicidade: procuram oferecer ideais de vida
boa, hierarquizando os bens disponíveis de modo a produzir a maior
felicidade possível. As éticas de máximos fazem uma proposta de
plenitude, mas não podem exigir que todos a sigam.
Éticas de mínimos ou da justiça: ocupam-se exclusivamente da
dimensão universalizável do fenómeno moral, ou seja, daqueles
deveres de justiça que são exigíveis a qualquer ser racional e que
constituem apenas exigências mínimas.
Esta distinção reconhece que a moralidade tem duas facetas: i) existem
juízos morais que exigem universalidade; ii) existe nas sociedades
atuais um pluralismo axiológico. A ética de mínimos exige que sejam
respeitados critérios mínimos de justiça que permitem a convivência
pacífica, deixando ao critério de cada a escolha de uma conceção de
vida plena ou feliz. (Cortina, Ética, p. 118)
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1.5.1. Ética das Virtudes
Alma (psychê)
Parte irracional Parte racional
Parte vegetativa Parte apetitiva Parte calculadora Parte científica
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1.5.1. Ética das Virtudes
Aquisição das excelências
As excelências não nascem connosco por natureza. Existe no ser
humano uma potencialidade (condição de possibilidade) para
desenvolver as excelências.
Excelências teóricas: adquirem-se através do ensino e por isso
requerem experiência e tempo. (1103a15; p. 47)
Excelências éticas: adquirem-se através de um processo de
habituação. (1103a15; p. 47)
Adequação às circunstâncias
«Não se deve enunciar isto apenas na sua generalidade, é necessário
também procurar adequar os enunciados às circunstâncias
particulares. Isto é, de facto, os enunciados proferidos
universalmente acerca das ações são mais abrangentes, mas o que
proferidos acerca das ações concretas que cada vez se constituem
particularmente são mais reveladores da verdade» (p. 58).
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1.5.1. Ética das Virtudes
Definição de Excelência
«A excelência é, portanto, uma disposição do caráter escolhida
antecipadamente. Ela está situada no meio e é definida
relativamente a nós pelo sentido orientador, princípio segundo o qual
também o sensato a definirá para si próprio. A situação do meio
existe entre duas perversões: a do excesso e do defeito» (p. 57).
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Virtudes teóricas
Atividades
Subparte da alma racional Virtudes teóricas correspondentes Modos ou tipos de saber Objeto do saber
próprias
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1.5.1. Ética das Virtudes
S. Tomás de Aquino 1225-1274.
A ética Tomista, cujo impacto na cultura ocidental
é difícil de exagerar, resulta, fundamentalmente,
da síntese entre o pensamento Aristotélico e a
tradição cristã. Tal como Aristóteles, Epicuro ou
Santo Agostinho, S. Tomás reflete sobre a
felicidade. A sua ética tem um alcance vasto e
inclui temas como: as virtudes, a consciência
moral, a ação moral ou a lei natural.
➢ S. Tomás e as virtudes
Segundo a perspetiva de S. Tomás, o nosso agir é guiado pela razão: a
synderesis permite-nos conhecer os princípios morais, que através da
consciência aplicamos aos casos particulares. Contudo, para o
Aquinate, como para Aristóteles, o uso da razão não é suficiente para
assegurar uma vida moral boa. Para isso, precisamos da virtudes. (S.T.
I-II, 55 ss.)
As virtudes morais
As virtudes morais são hábitos das potências apetitivas e dispõem-nos
para agir bem. O conhecimento intelectual, por si só, não faz de nós
pessoas boas ou completamente virtuosas.
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1.5.1. Ética das Virtudes
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1.5.1. Ética das Virtudes
As quatro virtudes cardeais
→ «Toda a virtude que faz o bem, levando em conta a consideração da
razão, chama-se prudência.»
→ «Toda a [virtude] que, nos seus atos, observa o bem no atinente ao
devido e ao reto, chama-se justiça.»
→ «Toda a [virtude] que coíbe as paixões e as reprime chama-se
temperança.»
→ «Toda a [virtude] que dá firmeza ao ânimo contra quaisquer paixões se
chama fortaleza.»
«O filósofo diz que a virtude exige: primeiro, a ciência; depois a eleição de uma obra, em
si mesma considerada; e terceiro, uma disposição firme e imutável. Ora, a primeira
destas condições pertence à prudência, que é a razão reta dos nossos atos, a segunda,
i.e., eleger, à temperança, que nos faz refletir não apaixonada, mas refletidamente,
refreadas as paixões; a terceira, i. e., para o fim devido, implica, de um lado, a retidão,
que pertence à justiça e, de outro, a firmeza e a imobilidade, que pertence à fortaleza.»
(S.T. I-II 61, 4). 48
1.5.1. Ética das Virtudes
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1.5.1. Ética das Virtudes
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1.5.1. Ética das Virtudes
As virtudes teologais
✓ A virtude aperfeiçoa o ser humano para os atos pelos quais se ordena
para a felicidade.
✓ A felicidade ou beatitude do ser humano é dupla: uma, proporcionada
à natureza, pode obtê-la pelos princípios desta; outra que excede a
natureza e só pode ser alcançada pelo auxílio divino, por participação da
natureza divina.
✓ Portanto, é necessário lhe sejam acrescentados por Deus certos
princípios pelos quais se ordene à beatitude sobrenatural, assim como,
pelos princípios naturais, se ordena a um fim que lhe é conatural; mas,
isso não é possível o auxílio divino.
«Ora, esses princípios se chamam virtudes teologais, quer por terem Deus
como objeto, enquanto nos ordenam retamente para ele; quer por nos
serem infundidos só por Deus; quer por nos serem essas virtudes
conhecidas só pela divina revelação, na Sagrada Escritura» (S.T. I-II, 57, 2).
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1.5.1. Ética das Virtudes
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1.5.1. Ética das Virtudes
✓ CARIDADE: «por uma como que união espiritual, pela qual, de certo
modo, se transforma nesse fim, o que se realiza pela caridade. Pois, o
apetite de cada ser move-se naturalmente e tende para o seu fim
conatural, e esse movimento procede de certa conformidade da coisa
com o seu fim.»
(S.T. I-II, 58, 2).
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1.5.1. Ética das Virtudes
Definição de virtude I:
«Uma virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e
exercício tende a fazer-nos capazes de alcançar os bens internos às
práticas e cuja ausência nos impede efetivamente de alcançar esses
bens.» (Tras la virtud, p. 237)
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1.5.1. Ética das Virtudes
Virtudes chave:
Existe um conjunto de virtudes chave, transversais a qualquer prática,
sem as quais não poderemos ter acesso a bens internos às práticas.
Estas virtudes são: a justiça, a coragem e a honestidade.
Justiça: precisamos aprender a distinguir os méritos de cada um e a
monitorizar o progresso alcançado.
Coragem: precisamos estar dispostos a enfrentar os riscos e
dificuldades que se atravessarem no nosso caminho.
Honestidade/verdade: precisamos aprender a reconhecer as nossas
insuficiências, escutando cuidadosamente as críticas.
2. A não ser que exista um telos que transcenda os bens limitados das
práticas e constitua o bem da vida humana completa concebido como
uma unidade, a vida moral é invadida por uma certa arbitrariedade.
3. Existe pelo menos uma virtude reconhecida pela tradição que não
pode especificar-se a não ser por referência à totalidade da vida da
vida humana: é a virtude da «integridade».
(Tras la virtud, p. 249-251)
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1.5.1. Ética das Virtudes
Ordem narrativa
✓ As nossas ações, e as dos outros, fazem sentido no contexto de uma
narrativa mais ampla, fora da qual se tornam ininteligíveis. Um ato
torna-se inteligível na medida em que encontra o seu lugar numa
narrativa. (Tras la virtud, pp. 258-259)
✓ O ser humano, nas suas ações e práticas, é essencialmente um
animal que conta histórias. Sou capaz de dar sentido às minhas ações
na medida em que sou capaz de identificar a história ou histórias de
que faço parte. Não há forma de entender uma sociedade, incluindo a
nossa, que não passe pela identificação das narrativas que constituem
os seus recursos dramáticos básicos. (Tras la virtud, p. 266)
✓ A unidade da vida humana é a unidade de um relato de busca,
orientado por uma determinada conceção de bem último ou final, que
se vai ajustando ao longo da «viagem». (Tras la virtud, p. 270)
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1.5.1. Ética das Virtudes
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1.5.1. Ética das Virtudes
Tradição
✓ A busca do bem e o exercício das virtudes não acontece no vazio:
«sou herdeiro do passado da minha família, da minha cidade, da
minha tribo, da minha nação, de uma variedade de heranças,
expetativas e obrigações. Elas constituem os dados prévios da minha
vida, o meu ponto de partida moral». (Tras la virtud, p. 271)
✓ A história da minha vida está embebida na história daquelas
comunidades das quais derivo a minha identidade. Ou seja, a minha
identidade tem sempre como ponto de referência a tradição a que
pertenço. Tentar escapar à particularidade é sempre uma ilusão. (Tras la
virtud, p. 272)
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1.5.1. Ética das Virtudes
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1.5.1. Ética das Virtudes
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1.5.1. Ética das Virtudes
Funcionamento
✓ Funcionamento: um funcionamento é a realização ativa de uma ou
mais capacidades. Ou seja, os funcionamentos são os produtos ou
materializações das capacidades (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 44)
✓ Funcionamento fértil: é aquele que tende a favorecer, também,
outras capacidades com ele relacionadas. Por exemplo, o acesso ao
crédito bancário é uma capacidade fértil, uma vez que possibilita a
promoção de muitas outras possibilidades. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, p. 64)
Capacidades centrais
O enfoque das capacidades centra-se na proteção de âmbitos de
liberdade tão cruciais que a sua supressão faz com que uma vida
humana não seja humanamente digna. O mínimo que se exige de uma
vida humana para que seja digna é que ela supere um limiar mínimo
no que diz respeito a dez capacidades centrais. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, pp. 52-53)
1. Vida: poder viver uma vida com duração normal: não morrer de
forma prematura ou antes que a duração da vida se veja tão reduzida
que não mereça a pena ser vivida.
2. Sáude física: poder manter uma boa saúde, incluindo a saúde
reprodutiva; receber uma alimentação adequada; dispor de um lugar
apropriado para viver.
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1.5.1. Ética das Virtudes
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1.5.1. Ética das Virtudes
5. Emoções: poder sentir afetos por coisas e pessoas externas nós
próprios; poder amar aqueles que nos amam e se preocupam
connosco, e sentir dor pela sua ausência; em geral, poder amar, sentir
compaixão, gratidão e indignação justificada. Que o nosso
desenvolvimento emocional não seja impedido por causa do medo e
da ansiedade.
6. Razão prática: poder formar uma conceção de bem e poder refletir
acerca da planificação da própria vida.
7. Afiliação: a) poder viver com e para os outros, poder reconhecer e
mostrar interesse por outros seres humanos, poder participar em
formas diversas de interação social; b) dispor das bases sociais
necessárias para que não nos sintamos humilhados; ser tratado como
ser humano com um valor igual ao dos demais. Isto supõe introduzir
disposições que combatam a descriminação com base na raça, sexo,
orientação sexual, etnia, casta, religião ou nacionalidade. (M. Nussbaum,
Crear capacidades, p. 54)
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1.5.1. Ética das Virtudes
2. Por que razão deve o prazer ser o bem último para o ser humano?
Em princípio, da constatação empírica de que desejamos o prazer devido à
nossa condição natural, deduz-se que é desejável que façamos do prazer
(ou algo equivalente) o horizonte da nossa realização pessoal e que
procuremos, também, a felicidade dos outros.
Habitualmente, diz-se que esta argumentação cai em duas falácias: (i) a
falácia naturalista (passagem injustificada do ser ao dever ser); (ii) a falácia
da composição (passagem injustificada do pessoal – cada um procura a
sua felicidade – ao coletivo – devemos procurar a felicidade do maior
número de pessoas). A ligação entre o utilitarismo como teoria descritiva e
dos comportamentos humanos e o utilitarismo como teoria normativa é
problemática. (Etxeberria, p. 36)
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1.5.2. O utilitarismo
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1.5.3. Éticas Kantianas
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1.5.3. Éticas Kantianas
- Questão central que qualquer indivíduo racional deve fazer no âmbito da
sua vida ética: «o que devo fazer?». Esta questão substitui as questões
orientadoras das éticas teleológicas: «Como viver?» «Viver para quê?»
«Como ser feliz?»
- Constante estrutural do pensamento antigo: cada ação particular da vida
do sujeito é por ele racionalmente pensada em função da conceção do bem
a partir da qual esse sujeito organiza da sua vida. Com Kant, a questão deixa
de ser «o que devo fazer na vida, ou o que devo fazer à minha vida» e passa
a ser: «o que devo fazer nesta situação concreta?»
- A ética de Kant é, no essencial, uma teoria moral cujo objetivo é
demonstrar a superioridade absoluta do «dever» moral enquanto critério
de orientação do agir prático, em relação a todos os outros candidatos à
orientação propostos por outras éticas, tais como o próprio interesse, o
bem-estar pessoal ou global, ou a felicidade. A superioridade do dever
justifica-se em termos de pura racionalidade.
- A ética Kantiana é autonómica, por oposição a heteronómica, no sentido
em que é a razão que concebe e fundamenta a lei moral e a dá a si própria.
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1.5.3. Éticas Kantianas
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1.5.3. Éticas Kantianas
Características de uma ética universalizável e absoluta:
- É a priori, não empírica, ou seja, não estabelece nenhum bem que deva
perseguir-se;
- É categórica e não hipotética: as normas que propõe são absolutas e
universais.
- É autonómica: é o sujeito que se dá a si mesmo a lei, com independência
de tudo o que não é a sua própria determinação racional.
“A moralidade da ação não se avalia pela ação em si mesma, nem pelas suas
consequências, mas pela intenção da vontade que atua por dever, por
respeito à lei moral”. (Etxeberria, p. 98)
O bem moral não depende do conteúdo das ações ou das normas, mas sim da
forma das normas, máximas ou princípios. Para Kant, a forma racional das
normas descobre-se quando adotamos a perspetiva da igualdade (num mundo
de pessoas empiricamente desiguais) e da universalidade (num mundo de
pessoas empiricamente desiguais).
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1.5.3. Éticas Kantianas
Norma: aquilo que temos o dever de cumprir. O que obriga como dever
adquire a forma de norma (lei, regra ou imperativo). A nossa conduta deve
estar de acordo com esta norma. A pressão obrigante da norma moral é
interna, ou seja, tem como referência a consciência (caso contrário
entramos no âmbito do Direito).
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1.5.3. Éticas Kantianas
Dever, «boa vontade» e racionalidade:
- O que é o dever? Qual a sua natureza e a sua origem?
- O dever, tal como Kant o entende, tem a sua raiz no foro mais íntimo da
subjetividade, na própria vontade do sujeito. Para agir «por dever» é preciso
querer, ter vontade de agir por dever. «O conceito de dever contém o de boa
vontade».
- O dever kantiano também não deve ser entendido como simples resultado
interiorizado da pressão social, a qual criaria no indivíduo um hábito muito
forte através do processo a que os sociólogos chama socialização. O dever
não é uma obrigação social importa pelo processo de socialização, mas uma
obrigação interna que emana da «boa vontade» do próprio sujeito, a qual é
determinada pela razão.
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1.5.3. Éticas Kantianas
- As normas sociais vigentes numa sociedade só podem ser consideradas
como moralmente válidas se forem conformes à «boa vontade», o que é o
mesmo que dizer, à racionalidade prática.
- O que significa, para Kant, ser «racional» no âmbito do agir? No caso das
ética teleológicas, a razão determina os fins do ser humano e os meios para
os alcançar, ou seja, está ao serviço de determinado bem humano. A razão
prática kantiana, pelo contrário, não depende de fins exteriores a si própria.
A razão kantiana só está ao serviço de si própria, de um interesse mais alto
do que qualquer bem natural ou empírico.
- Com o imperativo categórico, Kant pretende fornecer uma «lei» tão formal
e geral que abranja todas as máximas particulares, isto é, todas as
proposições normativas, de caráter moral.
«Mas que lei pode então ser essa, cuja representação, mesmo sem tomar
em conta o efeito [isto é, o resultado e as consequências materiais] que
delas se espera, tem de determinar a vontade para que esta se possa
chamar boa absolutamente e sem restrição?» (Kant, FMC, p. 33)
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1.5.3. Éticas Kantianas
2 – «Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio» (FMC, p. 69)
3 – «Age de tal maneira que a [tua] vontade, pela sua máxima, se possa
considerar ao mesmo tempo como legisladora universal». (FMC, p. 76)
Exemplos:
1 – Promessas:
«A universalidade de uma lei que permitisse a cada homem que se julgasse
em apuros prometer o que lhe viesse á ideia com a intenção de o não
cumprir, tornaria impossível a própria promessa […]; ninguém acreditaria
no que lhe viessem a prometer».
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1.5.3. Éticas Kantianas
Três versões da Autonomia:
1) Autonomia como princípio de liberdade individual: é lícito (e bom) que
cada um procure a liberdade do modo que melhor lhe pareça. “Sou
autónomo para decidir os meus projetos de realização pessoal e atuar em
conformidade”. Condenação de qualquer intervenção paternalista por
parte de indivíduos e instituições (Stuart Mill, Sobre a Liberdade).
Aspetos positivos:
Valorização da dignidade do ser humano: a dignidade atribuída por Kant
ao ser humano, considerado como próprio legislador, coloca o filósofo
entre aqueles que mais confiaram no ser humano. A ética Kantiana afirma
a dignidade inalienável de cada ser humano, que nunca pode ser usado
como meio. (Silveira de Brito, Introdução à FMC, p. 86)
Universalidade: o aspeto positivo do caráter formalista da ética kantiana
consiste na sua capacidade de enfrentar o subjetivismo e o relativismo
contemporâneos.
A abordagem kantiana continua a ser a servir de base à tentativa de
encontrar princípios morais universalizáveis, sem referência a preferências
ou quadros de referência teológicos (ex. direitos humanos). 94
1.5.5. A lei natural
A lei natural
As teorias da lei natural são teorias cuja normatividade se encontra inscrita
na natureza humana. Nas versões da lei natural desenvolvidas pelos
pensadores antigos e medievais, a lei natural está associada à finalidade do
ser humano (abordagem teleológica). Nas abordagens modernas, a lei
natural tem que ver com qualidades que se encontram na natureza humana
e que implicam determinados direitos e deveres (abordagem deontológica).
O ideal da universalidade:
«Há valores morais objetivos capazes de unir os homens e de fazê-los
procurar paz e felicidade? Quais são eles? Como discerni-los? Como colocá-
los em prática na vida das pessoas e das comunidades? Estas questões de
sempre em torno do bem e do mal são, hoje, mais urgentes do que nunca,
na medida em que os homens tomaram mais consciência de formar uma só
comunidade mundial.» (Comissão Teológica Internacional (2009), Em busca de uma ética
universal: novo olhar sobre a lei natural, n.º 1)
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1.5.5. A lei natural
A lei natural na síntese medieval
-Por lei natural entende-se a ordenação para um fim, inscrita na própria
natureza das coisas.
- Distinção entre seres inertes e seres vivos: nos primeiros existem apenas
característica atuais; nos segundos existem diversas virtualidades que se vão
atualizando progressivamente, a partir da interação entre o dinamismo
interior do ser vivo, de acordo com a sua natureza, com o meio. No caso dos
seres inertes, a lei natural identifica-se com as leis físicas. No caso dos seres
vivos, as leis naturais definem as condições de sobrevivência e crescimento.
- A vida precisa ser regulada para poder persistir. No caso especial dos seres
humanos, a regulação instintiva ou espontânea é incompleta, e
necessitamos de uma «regulação inteligente». Esta opera ao nível dos meios
(técnicas em sentido amplo) e ao nível dos fins (ao definir as nossas
necessidades e objetivos); os primeiros estão ao serviço dos segundos.
Surgem, assim, as várias áreas da atividade humana: higiene, medicina,
moral, direito e política. (Etxeberria, Temas Básicos de Ética, p. 74)
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1.5.5. A lei natural
- Dadas as várias pressões externas e internas, a nossa vontade precisa ser
guiada: a higiene e a medicina guiam-nos no que concerne à nossa
existência física; a moral natural no que concerne à nossa conduta
individual; o direito natural no que diz respeito à vida social.
- A lei natural no domínio da moral e do direito deve ser dada por quem tem
o poder correspondente. Se esta depende da essência das coisas, quem tem
o poder é aquele que as criou. Nesse sentido, deve ser chamada, na sua
origem, lei divina, e está internamente unida à essência e ordem das coisas,
as quais foram fixadas pela própria criação.
(Etxeberria, Temas Básicos de Ética, p. 74)
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1.5.5. A lei natural
Na medida em estão inscritas na essência das coisas, as leis morais naturais:
1) podem ser conhecidas pela razão, em qualquer lugar e em todas as
circunstâncias (universalidade); 2) são necessárias e imutáveis no espaço e no
tempo, devido à unidade da natureza humana e à indissolúvel ligação entre
ser e dever ser.
- A teoria medieval da lei natural não afirma que a natureza imponha um
código detalhado de leis morais e jurídicas; o que a lei natural dita são
princípios gerais do direito e prescrições morais primordiais que se aplicam a
todos os seres humanos.
Princípios gerais da lei natural:
- «O primeiro princípio da razão prática está fundamentado sobre a razão de
bem e é o seguinte: “o bem é aquilo que todos apetecem”. Portanto, este é o
primeiro preceito da lei: “o bem deve ser praticado e procurado, o mal deve
ser evitado”. Sobre isso estão fundamentados todos os
demais preceitos da lei da natureza, de tal modo que tudo o que deve ser
praticado ou evitado, que a razão prática naturalmente apreende ser bem
humano, pertence aos preceitos da lei da natureza.» (S.T. I-II, 94, 2)
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1.5.5. A lei natural
101
1.5.5. A lei natural
«Nós identificamos, na pessoa humana, uma primeira inclinação, que ela
compartilha com todos os seres: a inclinação para conservar e desenvolver
sua existência. Há, habitualmente, entre os seres vivos, uma reação
espontânea em face da ameaça iminente de morte: fuga, defesa da
integridade da própria existência, luta para sobreviver. A vida física aparece,
naturalmente, como um bem fundamental, essencial, primordial: daí brota o
preceito de proteger a própria vida. Sob esse enunciado de conservação da
vida se perfilam as inclinações para tudo o que contribui, de uma forma
própria ao homem, à manutenção e à qualidade da vida biológica:
integridade do corpo; uso dos bens exteriores, que garantam a subsistência
e integridade da vida, tal como a nutrição, a vestimenta, a moradia, o
trabalho; a qualidade do ambiente biológico… A partir dessas inclinações, o
ser humano se propõe fins a realizar, que contribuem ao desenvolvimento
harmonioso e responsável do próprio ser e que, portanto, lhe aparecem
como bens morais, valores a buscar, obrigações a cumprir e direitos a fazer
valer.» (Em busca de uma ética universal, nº 48)
102
1.5.5. A lei natural
«A segunda inclinação, que é comum a todos os seres vivos, concerne à
sobrevivência da espécie, que se realiza pela procriação. A geração inscreve-se
no prolongamento da tendência de perpetuar o ser. Se a perpetuação da
existência biológica é impossível ao próprio indivíduo, ela é possível à espécie, e,
assim, em certa medida, se encontra vencido o limite inerente a todo ser físico.
O bem da espécie aparece, então, como uma das aspirações fundamentais
presentes na pessoa. Particularmente, em nossos dias tomamos consciência
quando certas perspetivas, como o aquecimento climático, avivam nosso senso
de responsabilidade para com o planeta como tal e da espécie humana em
particular. Essa abertura a um certo bem comum da espécie anuncia já algumas
aspirações próprias ao homem. O dinamismo para com a criação está
intrinsecamente ligado à inclinação natural, que leva o homem para a mulher e
a mulher para o homem, dado universal reconhecido em todas as sociedades. O
mesmo vale para a inclinação de cuidar dos filhos e de educá-los. Essas
inclinações implicam que a permanência do casal de homem e mulher, e até
mesmo sua fidelidade mútua, já sejam valores a buscar, mesmo se eles só
possam se manifestar plenamente na ordem espiritual da comunhão
interpessoal.» (Em busca de uma ética universal, nº 49)
103
1.5.5. A lei natural
«O terceiro conjunto de inclinações é específico do ser humano como ser
espiritual, dotado de razão, capaz de conhecer a verdade, de entrar em diálogo
com os outros e de estabelecer relações de amizade. Assim, deve-se reconhecer
sua particular importância. A inclinação a viver em sociedade deriva,
primeiramente, do fato de que o ser humano tem necessidade dos outros para
superar seus limites individuais intrínsecos e atingir sua maturidade nos
diferentes âmbitos de sua existência. Mas, para manifestar plenamente sua
natureza espiritual, ele tem necessidade de estabelecer relações de amizade
generosa com seus semelhantes e de desenvolver uma cooperação intensa na
busca da verdade. Seu bem integral está, assim, intimamente ligado à vida em
comunidade, que existe em virtude de uma inclinação natural e não por uma
simples convenção, e que o faz se organizar em sociedade política. O caráter
relacional da pessoa se exprime-se também pela tendência de viver em
comunhão com Deus ou o Absoluto. Isso se manifesta no sentimento religioso e
no desejo de conhecer a Deus. Certamente, ela pode ser negada por aqueles
que se refutam admitir a existência de um Deus pessoal, mas que permanece
mais ou menos implícita na busca da verdade e do sentido que habita em todo
ser humano.» (Em busca de uma ética universal, nº 50)
104
1.5.5. A lei natural
A historicidade da lei natural
«É impossível permanecer no nível de generalidade, que é aquele dos
princípios primeiros da lei natural. A reflexão moral, com efeito, tem
necessidade de descer ao concreto da ação para aí lançar sua luz. Mas
quanto mais ela enfrenta situações concretas e contingentes, tanto mais
suas conclusões são afetadas por uma nota de variabilidade e de incerteza.
Não é surpreendente, pois, que a aplicação concreta dos preceitos da lei
natural possa tomar formas diferentes nas diversas culturas ou mesmo em
épocas diferentes dentro de uma mesma cultura. Basta invocar a evolução
da reflexão moral sobre questões como a escravatura, empréstimo a juros,
duelo ou pena de morte. » (Em busca de uma ética universal, nº 53)
«A razão prática ocupa-se de realidades contingentes, nas quais se exercem as ações
humanas. É por isto que, embora nos princípios gerais haja alguma necessidade, quanto
mais se afronta as coisas particulares tanto mais há indeterminação (...). No campo da
ação, a verdade ou a retidão prática não é a mesma para todos nas aplicações
particulares, mas unicamente nos princípios gerais; e para aqueles que a retidão é
idêntica em suas próprias ações, ela não é igualmente conhecida por todos. (...) E aqui,
quanto mais se desce no particular, mais a indeterminação aumenta.» (S.T. I-II, 94, 4)105