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Esta Jornada de Estudos propõe-se como espaço de reflexão sobre a posição dos estudos literários

na teoria mimética desenvolvida por René Girard. Professor de literatura comparada, Girard
construiu uma antropologia do fenómeno religioso assente no conceito de desejo mimético que
descobre em Cervantes, Stendhal, Flaubert, Proust, Dostoievski, Shakespeare. Mas se a literatura
constitui o ponto de partida da teoria mimética e se a análise de textos, nomeadamente bíblicos e
trágicos, nunca deixou de acompanhar e de alimentar as reflexões de Girard sobre a função dos ritos
e dos fenómenos de multidão nas sociedades humanas, é tempo de pensar a literatura como ponto
de chegada da teoria mimética, estudando o seu impacto na teoria e na hermenêutica literárias.
Sendo a obra de Girard explorada em campos científicos como a antropologia, a sociologia, as
ciências políticas, a história, a psicologia, a filosofia, a teologia, devemos interrogar o potencial do
seu aparelho teórico-conceptual para a elaboração do pensamento sobre a literatura.

Lugar privilegiado do encontro entre antropologia e estudos literários, o pensamento de Girard


propõe coordenadas para uma abordagem inovadora da literatura enquanto fenómeno cultural,
permitindo revisitar a relação do literário ao religioso, mais precisamente a relação dos textos aos
ritos e aos mitos. René Girard explica-nos primeiro que os ritos e os mitos não são formações
simbólicas e imaginárias mas operadores reais da sacralização da violência coletiva que funda e
estrutura os grupos (sendo o sacrifício a instituição matricial da ordem humana); explica-nos em
seguida que a violência fundadora se perpetua mimeticamente graças ao mecanismo do bode
expiatório, apesar de o cristianismo, religião que dessacralizou e deslegitimou a violência ao revelar
a verdadeira natureza de perseguição do dito mecanismo, constituir um corte antropológico maior.

Sem nenhuma pretensão à exaustividade, propomos alguns eixos de reflexão:

1. Teoria mimética e géneros literários.

- A divisão do campo religioso em duas matrizes, o religioso arcaico e o religioso moderno, traduz-se
em dois regimes da narratividade: o regime mítico, cujo princípio de estruturação, o bode expiatório,
determina que a história seja contada do ponto de vista dos perseguidores (textos de perseguição);
e o regime evangélico, no qual o bode expiatório é tematizado, narrativizado, denunciado, sendo por
consequência a história contada do ponto de vista da vítima. Poderiam estes dois regimes da
narratividade contribuir para repensar, redefinir, resituar os critérios em que assentam os géneros
literários? Categorias transversais como mítico e evangélico poderiam operacionalizar uma
reformulação da teoria dos géneros literários sobre uma base antropológica ?

- O que é que a teoria mimética traz ao romance e à tragédia, os dois géneros literários que Girard
mais estudou? Qual é a contribuição da noção de desejo mimético para a(s) teoria(s) do romance?
Como é que o postulado segundo o qual a tragédia constitui uma transição entre o mítico e o
evangélico, contribui para o conhecimento deste género literário antigo?

- Romântico e mítico por um lado, romanesco e evangélico por outro, são categorias de natureza
diferente, literária e religiosa, às quais Girard atribui uma função semelhante. Desafiando a
convicção tenaz segundo a qual o mito encerra a verdade sobre o fenómeno humano, Girard diz-nos
que romântico e mítico estão do lado da mentira, da cegueira, do não querer saber; enquanto
romanesco e evangélico estão do lado da verdade, da desmontagem, da desconstrução, da
revelação. Quais as implicações destas aproximações para as categorias romântico e romanesco?
Que vias sustentariam o aprofundamento, por exemplo, da intuição da ação desmitificadora do
romanesco, apesar da profusão dos chamados mitos literários e do inesgotável poder
remitologisante da literatura ?
- Quid das implicações da teoria mimética para outros géneros, outros media, outras artes
narrativas? (ver, por exemplo, os ensaios de Bernard Lassablière, Yves Vaillancourt, Claude Forest,
Olivier Pourriol).

2. Teoria mimética e humanimalidades

A noção de desejo mimético estabelece a natureza e o alcance intra-humano da violência coletiva


ritualizada, mas Girard não exclui o mundo animal porquanto pensa de maneira radical o processo
de hominização a partir da animalidade, defendendo a intercompreensão da etnologia e da etologia.
Mimetismo animal e mimetismo humano, sacrifício entre os animais, caça e sacrifício, domesticação
dos animais para substituir a vítima humana pela vítima animal, «tendência teriomorfa da
mitologia», são motivos girardianos a explorar no âmbito dos Human and Animal Studies e da Eco-
crítica, correntes em expansão nos Estudos literários e nos Estudos culturais.

3. Teoria mimética e escrita

As Escrituras ocupam um lugar central no pensamento de Girard, mas a escrita enquanto tal, a coisa
escrita, não parece ter merecido a sua atenção, nomeadamente o papel que ela possa ter tido na
rutura que os Evangelhos, precedidos de outros textos como o Antigo Testamento e as tragédias
gregas, abriram com o religioso arcaico. Será que a letra não tem nenhuma ação na desconstrução
do mítico e na revelação do assassínio fundador que o rito sacrificial repete e que a retórica do mito
dissimula? O episódio evangélico em que Jesus se põe a escrever na areia, assim se destacando da
multidão histérica pronta a lapidar a mulher adúltera, não indica o alcance anti mimético da escrita
que desvocaliza, desativa e desarticula o grupo? A teoria mimética é suscetível de desenvolvimentos
com Derrida, Goody, Quignard?

4. Teoria mimética e literatura contemporânea

Uma das características mais salientes da literatura contemporânea é o diálogo que mantém com as
ciências sociais e humanas. Quem são os escritores e as escritoras que dialogam com Girard, que
retomam o seu léxico, os seus tópicos, as suas especulações? O discurso girardiano está implícito ou
explícito nessas obras? Em que quadros temáticos ou em que cenários é ele convocado ? Quais são
as vias e as formas da sua reapropriação e da sua transformação na literatura? Como se processa a
reorientação ou a redefinição dos conceitos e dos postulados da teoria mimética? Quais são as
críticas, formuladas ou subentendidas, dirigidas à teoria mimética?

5. Teoria mimética e outras abordagens antropológicas da literatura

Que relações de convergência e de divergência tem a teoria mimética com outras teorias
antropológicas que se implicam mais ou menos diretamente na literatura, como a teoria do
imaginário de Gilbert Durand, a teoria do sagrado de Roger Caillois ou a teoria dos ritos de passagem
de Victor Turner, entre outras?

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