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MICHEL FOUCAULT: MODERNIDADE E EDUCAÇÃO

Solange Nonnenmacher *
Vera Lúcia B. Pereira**
Resumo:
Este texto tem como objetivo enfocar, de forma sintética e por isso pretensiosa, o pensamento
de Foucault dentro do projeto da modernidade, onde a razão domina a natureza e é vista
como o meio para garantir ao homem sua felicidade e liberdade.E também, desenvolver
algumas idéias de como Foucault percebia e analisava a formação dos sujeitos modernos, e
desmistificava a expressão “o sujeito desde sempre aí” ao relacionar sujeito, discurso,
identidade, verdade e poder não excluindo a racionalidade, mas questionando a idéia
totalitária de razão. Dentro dessas considerações encontra-se também de modo resumido,
como Foucault percebe a escola na construção desse sujeito moderno.

Palavras-chave: Modernidade. Sujeitos. Educação.

Introdução

Muitos pensadores têm se dedicado à crítica da razão moderna, que tem no


pensamento marcado pela unidade, sua característica fundamental. Unidade, homogeinização,
unidimensionalidade, oposições binárias de pensamento, etnocentrismo, monoculturalismo,
são alguns postulados da razão moderna que desconsideram a pluralidade das formas de vida
que, contemporaneamente, já não são mais passíveis de enquadramento no modelo unitário da
racionalidade.
Entre tantos filósofos que examinam o discurso e a unicidade do pensamento
moderno, trazemos a este estudo Michel Foucault, que pretendeu “mostrar como as práticas e
os saberes vêm funcionando, nos últimos quatro séculos para fabricar a Modernidade e o
assim chamado sujeito moderno”(Veiga-Neto, 2005, p.18).

*
Professora da UERGS, com Graduação em Pedagogia, Habilitação em Supervisão Escolar e Especialização em
Administração Escolar. Mestranda em Educação da UFSM.
Endereço eletrônico: tupanci@brturbo.com.br.
**
Professora Estadual, com Licenciatura Plena em Matemática com cursos de Especialização em Matemática e
Educação Especial. Mestranda em Educação da UFSM.
Endereço eletrônico: verabis@uol.com.br
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Caracterizando a Modernidade

O projeto da Modernidade identifica-se com a ilimitada confiança na razão, capaz de


compreender e subjugar a natureza em proveito da humanidade e com a crença no progresso
como trajetória humana que, pelo uso da razão, garantiria à sociedade ingressar em um
estágio mais desenvolvido no sentido de maior humanização, entendida como liberdade (e,
idealmente, também como igualdade e fraternidade). Na busca da concretização deste
projeto, houve um admirável crescimento em termos de quantidade e refinamento em todos
os campos do conhecimento e de suas aplicações.
Goergen (2002) propõem que se considere as contribuições de alguns pensadores que
delinearam o espírito da Modernidade, tais como Roger Bacon (1214-1294) que propunha a
separação entre a teologia e as ciências profanas, cujos pilares seriam a experiência, o
experimento e a matemática; Nicolau Copérnico (1473-1543) que substituiu a imagem
geocêntrica pela heliocêntrica; Francis Bacon (1561-1626), para quem a tarefa maior da
ciência seria o domínio da natureza pela compreensão de seus processos e para quem o único
método realmente confiável de conhecimento era o indutivo, que procede da observação e do
experimento; René Descartes (1596-1650), fundador do racionalismo moderno, para quem o
mundo funciona como uma máquina (mecanicismo), cujos segredos de funcionamento podem
ser desvelados pelo uso da razão. O conhecimento da mecânica do funcionamento da natureza
permitiria ao homem antecipar acontecimentos e dispor de domínio sobre a natureza;
Immanuel Kant (1724-1804), fundador do criticismo, para quem o conhecimento é obtido
exclusivamente pela experiência dos sentidos e para quem “a teoria do conhecimento é uma
espécie de polícia que controla as escapadas da razão para além desses limites”. (Goergen,
2002, p.12)
A racionalidade científica tornou-se a principal referência do conhecimento associada
à utilidade, que agregou poder ao conhecimento. O homem empreendeu, então, um esforço de
autonomia, num sistema baseado na centralidade do indivíduo e seus direitos, tornando-se a
subjetividade uma norma central do projeto moderno de sociedade. Nesse contexto, o
coroamento do conhecer seria a capacidade e a ação transformadoras. Resultantes desse
conjunto de idéias, os processos históricos da Revolução Francesa e da Revolução Industrial
foram, respectivamente, a expressão política e a base material de uma revolução
epistemológica e de uma nova civilização no ocidente, que levaria o homem à plena
liberdade.
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Porém, o final do século XX ficou marcado pela angústia e pela decepção, pois a
promessa de felicidade/liberdade construída pelo mito do progresso, percebido como redentor
da humanidade, não se concretizou. Nas palavras de Edgar Morin, “o século XX pareceu dar
razão à fórmula atroz segundo a qual a evolução humana é o crescimento do poderio de
morte”.(Morin, 2003 p.70)
Na pós-modernidade, os fundamentos éticos que o ocidente conhecia foram suplantados
pela razão; muitos vivem uma atitude de resignação, como sendo o estado das coisas corrente,
o destino final da humanidade (o fim da história); há um mal-estar coletivo, em que a
frustração é negada através da ideologia do individualismo; solidifica-se a tensão entre
mundialização e localismo; a felicidade, o bem-estar é concebido apenas em termos de
hedonismo e materialidade; o triunfo da democracia não está assegurado; a ciência revela-se
ambivalente, servindo tanto aos valores da vida como da morte; o progresso danifica
irremediavelmente a natureza e inúmeras culturas; a cultura do mercado exclui populações
inteiras das condições mínimas de dignidade da vida humana. Vivemos “um tempo de
barbárie”, segundo Edgar Morin.

Domínios e temas do pensamento de Foucault

A crítica de Foucault à racionalidade moderna não exclui a própria racionalidade, mas


questiona a idéia unificadora e totalitária de razão. O homem não preexiste ao mundo social,
afirma, e o racional não é pré-determinado: ele se constrói através do social, que por sua vez
vai se moldando pela ação humana. Rejeita as idéias totalizantes e as metanarrativas, pois
aquele que fala, fala de um lugar situado e específico. Sua crítica tem sempre presente que
nenhuma questão tem resposta definitiva e acabada e pretende-se desancorada, por isso
preocupa-se em desterritorializar, desfamiliarizar, levar ao estranhamento; apóia-se sempre
provisoriamente nos acontecimentos. Fala-nos, também, de uma liberdade que se efetiva em
pequenas doses, no cotidiano concreto, que é “alcançável nas pequenas revoltas diárias,
quando podemos pensar e criticar o nosso mundo”.(Veiga-Neto, 2005 p.26)
Sua crítica é arqueológica na medida em que trata tanto dos discursos que articulam o
que pensamos, dizemos ou fazemos, quanto de levar em conta os acontecimentos históricos.
É uma crítica genealógica porquanto trata das contingências que nos fazem ser o que somos,
e da possibilidade de não mais sermos, fazermos ou pensarmos aquilo que somos, fazemos ou
pensamos. Acrescente-se, ainda, que a crítica foucaultiana não é salvacionista ou messiânica:
“se quisermos um mundo melhor teremos que inventá-lo, já sabendo que conforme vamos
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nos deslocando para ele, ele vai mudando de lugar”(Veiga-Neto, 2005, p.30). Ao configurar a
racionalidade moderna no pensamento de Foucault, nota-se sua preocupação em responder à
pergunta: “como nos tornamos o que somos como sujeitos?” Parte, então, da expressão “o
sujeito desde sempre aí” – visto como objeto das influências sociais, culturais, políticas,
econômicas, educacionais – e por isso mesmo, facilmente manipulável. Esta condição seria a
fonte dos maiores problemas sociais, na medida em que ela agiria encobrindo e naturalizando
o seu caráter manipulador, arbitrário e opressor.
Suas pesquisas abordaram três modos de subjetivação que transformam os seres
humanos em sujeitos: a objetivação do sujeito no campo dos saberes (arqueologia); esta tem
um caráter histórico e político, procurando descobrir como os saberes aparecem e se
transformam; a objetivação do sujeito nas práticas do poder que divide e classifica
(genealogia):

A genealogia seria (...) um empreendimento para libertar da sujeição


os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta
contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico.
A reativação dos saberes locais (...) contra a hierarquização científica
do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o projeto
destas genealogias desordenadas e fragmentárias.(Foucault, 2004,
p17).

E ainda, a subjetivação de um sujeito que trabalha e pensa sobre si mesmo (ética), ou


o “ser consigo”. Nesse domínio Foucault trata das tecnologias do eu e conclui que as
identidades e as subjetivações são geradas pela sociedade através de procedimentos ou
técnicas (que ele denomina tecnologias), que

permitem que os indivíduos efetuem, por conta própria ou com a ajuda


de outros, operações sobre seu corpo, sua alma, seus pensamentos,
conduta ou qualquer outra forma de ser, obtendo, assim, uma
transformação de si mesmo, com o fim de alcançar felicidade,pureza,
sabedoria ou imortalidade. (Foucault apud Veiga-Neto, 2005, p.124)

Analisando essas formas de subjetivação Foucault identifica três tipos de lutas sociais
sempre ativas, porém variantes em distribuição, combinação e intensidade no decorrer da
História: as lutas contra a dominação – religiosa, de gênero, racial etc; as lutas contra a
exploração do trabalho e as lutas contra as amarras do sujeito em relação a si próprio e aos
outros. Todas essas dimensões e lutas que construíram o homem moderno teriam sua razão de
ser na própria configuração disciplinadora da sociedade moderna, pois, por intermédio da
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disciplinação dos corpos e mentes assegurar-se-ia o pensamento unitário e o êxito do projeto


social da Modernidade.
Foucault percebeu a racionalidade se estruturando ao fazer observações nas minúcias dos
regulamentos, das técnicas de controle e na disciplina presente no dia-a-dia das diversas
instituições: os hospitais, as fábricas, as escolas, os quartéis, as prisões etc. As instituições
determinam fronteiras, decidem sobre os indivíduos que as constituem, recebem mandatos e
por sua vez instalam uma estrutura de organização e funcionamento, rotinas, procedimentos,
modos próprios de regulação de conflitos, estratégias de controle e de ação, dispositivos de
poder, e até mesmo uma arquitetura favorecedora do controle que produzem seus “regimes de
verdade” e assim, disciplinam e fabricam corpos e mentes dóceis, maleáveis e moldáveis.
Relaciona sujeito, discurso, identidade, verdade e poder, pois o discurso seria um
ordenador, classificador, e assim instaurador de regimes de verdades. Para ele, as afirmações
fazem as pessoas e os discursos constituídos de verdades prevalecer. O homem fica, então,
submetido às metanarrativas e às verdades impostas. Nesse emaranhado de relações, as
identidades vão tomando forma com luta ou submissão, conforme a realidade que cada um
vivencia.

A verdade é uma coisa deste mundo: ela é produzida apenas em


virtude de múltiplas formas de constrangimento. E ela induz efeitos
regulares de poder.Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
política geral de verdade, isto é, os tipos de discurso que ela aceita e
que ela faz com que funcionem como verdadeiros; os mecanismos e
instâncias que nos permitem distinguir entre afirmações falsas e
verdadeiras; os meios pelos quais cada uma delas é sancionada; as
técnicas e procedimentos que atribuem valor na aquisição da verdade,
o status daqueles que são encarregados de dizer o que conta como
verdadeiro. (Foucault apud Cherryholmes, C. In: Silva, p.151)

As relações sociais são permeadas pelo poder, porém ele não é algo que emana de um
centro, como por exemplo, o Estado; nem mesmo é algo que esteja nas mãos de alguns ou
que algum grupo exerça sobre outro; tampouco resulta de arranjos políticos. Ao contrário, o
poder está distribuído difusamente por todo o tecido social. Foucault entende o poder como
uma ação sobre as ações e considera sua ação insidiosa, microscópica, microfísica,
permanente e penetrante.
Com relação aos estudos sobre o poder, há ainda o conceito foucaultiano de
governamentalidade, que designa as práticas de governamento que “têm na população seu
objeto, na economia seu saber mais importante e nos dispositivos de segurança seus
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mecanismos básicos”. (Machado apud Veiga-Neto Op.cit. 2005, p.86.) Este conceito refere-
se ao poder disciplinar do Estado, mais especificamente.
Estuda, também, um novo tipo de poder, o biopoder que segundo ele, surgiu no final do
século XVIII. O biopoder trata o corpo coletivamente, num conjunto de corpos – a população.
Toma os corpos naquilo que eles têm em comum: a vida, o pertencimento a uma espécie.
Enquanto o poder disciplinar referia-se ao corpo individual, o biopoder faz uma “biopólítica
da espécie humana”. A população é, então, descrita e quantificada através da Estatística, da
Demografia,da Medicina Sanitária, do Serviço Social, etc. Estas descrições e quantificações
podem ser combinadas, comparadas, cruzadas e assim, produzem-se inúmeros saberes, com o
objetivo de controlar, prever riscos e regulamentar a vida coletiva.
Na educação, e de modo especial no currículo, os professores, a princípio, têm
domínio dos discursos que formam o currículo. Segundo Foucault, os professores tornam-se
locutores anônimos e com autoridade, mas desconhecem as origens do discurso que praticam.
Por outra parte, Foucault desconstrói a idéia de sujeito epistêmico, base da
epistemologia construtivista exaustivamente estudada e proposta como método de trabalho
aos professores, ao propor que “não é a atividade do sujeito do conhecimento que produz um
saber útil ou arredio ao poder, mas o saber-poder, os processos e as lutas que o atravessam e
o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento” (Foucault,
2005, p.30)
Ao fazer um esquema imaginário das práticas escolares, desvela como pano de fundo o
disciplinamento, a vigilância, os exames, as autonarrativas e outras práticas de controle e
poder. Tais práticas são adequadas para a construção do sujeito moderno, cidadãos da
sociedade disciplinar e capazes de autogoverno. Assim a escola cria condições para
possibilitar a modernidade. Observa Foucault que as práticas sociais, mais propriamente as
práticas escolares estão envolvidas pela cultura e têm uma dimensão discursiva. E vê o
discurso como uma rede de representações que utiliza textos, imagens, códigos de conduta,
estruturas narrativas que também contribuem para moldar a vida social. Todas estas
tecnologias de poder têm por função impor uma conduta determinada a uma multiplicidade
de indivíduos ou ao indivíduo isoladamente, de forma a que respondam às expectativas das
instituições criadas pela sociedade moderna.
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Considerações finais

Embora com as limitações de um estudo que introduziu as autoras no pensamento de


Michel Foucault, acreditamos ter logrado uma modesta síntese de alguns aspectos
importantes das teorizações desenvolvidas pelo filósofo. De modo geral, ele estudou de que
maneira o homem se torna essa entidade que denominamos sujeito moderno e, adentrando a
teia das relações sociais, desvendou as táticas impostas ao indivíduo e à população
submetendo-os às exigências da sociedade moderna. Ao desprezar as metanarrativas que,
segundo ele, são saturadas de regimes de verdade, pulveriza o racionalismo moderno
enquanto valoriza os fragmentos de verdades, os textos locais, os recortes da realidade com o
intuito de ativar as consciências e possibilitar a reestruturação da hierarquia dos
conhecimentos científicos e a construção de novos saberes.

não se trata de pensar que ele tem a chave, a solução, a verdade; nem
mesmo pensar que ele chegou mais perto de uma suposta verdade.
Trata-se, tão somente de colocar em movimento uma vontade de
saber. O que importa é, junto com Foucault, tentarmos encontrar
algumas respostas para a famosa questão nietzchiana – que estão (os
outros) e estamos (nós) fazendo de nós mesmos? – para, a partir daí,
nos lançarmos adiante para novas perguntas, num processo infinito
cujo motor é a busca de uma existência diferente para nós mesmos e,
se possível, uma existência melhor”.(Veiga-Neto, Op.cit., p.12)

Através de toda sua obra, Foucault transgride as verdades que a modernidade


construiu e é esse mesmo exercício que sua obra sugere ao pesquisador. Não se considerou o
fundador de uma teoria, ou de um método, nem mesmo filiado a alguma tradição de
pensamento. Propôs-se a que seus achados e trajetórias servissem de ferramenta para mais
descobertas, bem como para ele não haveria um caminho pré-estabelecido (a não ser uma
“vigilância” epistemológica) e não haveria um lugar para se chegar que fosse estabelecido por
antecipação. Esse entendimento, no entanto, permite que se caminhe por lugares inusitados e
se faça descobertas surpreendentes e valiosas para que possamos ultrapassar as fronteiras que
o mundo social impõe a si mesmo e a todos nós.

Referências bibliográficas

FISCHER, Rosa Maria Bueno.Foucault e o Desejável conhecimento do sujeito. Educação e


Realidade.v.24,n.1.Porto Alegre.UFRGS.jan/jun.1999.
FOUCAULT,Michel.Vigiar e Punir. Petrópolis. Vozes.2005.
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_________. Microfísica do Poder. São Paulo. Paz e Terra S/A. 2004.


GOERGEN, Pedro.Pós-Modernidade, Ética e Educação.Campinas.Editores Associados.
2002.
HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Pós-Modernidade. São Paulo. Martins
Fontes.2002.
MORIM, Edgar. Os sete saberes Necessários à Educação no futuro. São Paulo. Cortez.
Brasília. DF.2003
ROUANET, Sérgio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo. Companhia das Letras.
1987.
SILVA,Tomaz Tadeu da. O Sujeito da Educação – Estudos Foucaultianos. Petrópolis.
Vozes. 2002.
______. (org.). Teoria Educacional Crítica em Tempos Pós-Modernos.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação. Belo Horizonte. Autêntica.2005.

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