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QUANDO O AMOR VEIO À TERRA

DJALMA ARGOLO

Quando o amor veio à terra (A).pmd 1 25/9/2007, 11:53


1ª Edição
Do 1º ao 5º milheiro

Criação da capa: Objectiva Comunicação e Marketing


Equipe de Revisão: Lúcia Araújo e Sheldon Menezes
Revisão Final: Maria Angélica de Mattos
Editor: Adenáuer Novaes

© Copyright 1997
Fundação Lar Harmonia
Rua Dep. Paulo Jackson, 560 – Piatã
41650-020 – Salvador – Bahia – Brasil
distribuidora@larharmonia.org.br
(71) 3375-1570 e 3286-7796

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-86492-23-5

Todo o produto da venda desta obra é destinado às obras


sociais da Fundação Lar Harmonia

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Djalma Argollo

QUANDO O AMOR VEIO À TERRA

CNPJ (MF) 00.405.171/0001-09


Rua Dep. Paulo Jackson, 560 – Piatã
41650-020 – Salvador – Bahia – Brasil
2007

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Argollo, Djalma.
Quando o amor veio à terra. – Salvador:
Fundação Lar Harmonia, 2007

224 p.

1. Espiritismo. I. Argollo, Djalma,


1940. – II. Título

CDU – 133.7
CDD – 133.9

Índice para catálogo sistemático:


1. Espiritismo 139.9

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A Jesus, filho de José de Nazaré,
que me ensinou a viver um ideal: o meu amor
e o desejo de, um dia, ser tão bom quanto ele.

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Sumário

1. A Visão de Zacarias ............................................ 31

2. A Anunciação ..................................................... 35

3. Visitando Isabel .................................................. 41

4. Momento Difícil ................................................. 49

5. “Nasceu-vos Hoje um Salvador” ....................... 55

6. A Circuncisão ..................................................... 65

7. Entre os Doutores ............................................... 69

8. A Despedida ....................................................... 77

9. Elias Retorna ...................................................... 81

10. O Início da Nova Era ......................................... 87

11. “Eu o Sou...” ....................................................... 97

12. O Dia Inesquecível ............................................. 107

13. Fenômenos Notáveis .......................................... 117

14. Resgate Interrompido ......................................... 129

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15. Histórias que Transformam ................................ 139

16. Alimentando Almas e Corpos ............................ 147

17. Na Calada da Noite ............................................ 155

18. Uma Sessão Espírita no Tabor ........................... 161

19. Expulsão dos Vendilhões do Templo ................. 169

20. A Última Semana ............................................... 175

21. A Traição ............................................................ 181

22. Trevas Densas .................................................... 191

23. Madrugada de Luz ............................................. 209

24. Os Felizes Galileus ............................................ 217

25. Betânia: o Último Encontro ............................... 225

Posfácio .................................................................... 231

Sugestões Bibliográficas .......................................... 233

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Quando o amor veio à terra

Prefácio
Jesus é o maior fenômeno da História. Com menos
de três anos de atividade missionária, sua influência foi,
e continua sendo, decisiva no desenvolvimento social da
humanidade. Alguns espíritas parecem desconhecer que
é por causa dele que a humanidade passou por radical
inflexão evolucionária em seu processo histórico.
Historiadores imaginam que a hegemonia de Roma foi
destruída pelas invasões bárbaras, mas se esquecem que,
na sua maioria, os bárbaros já haviam se convertido ao
Cristianismo por causa dos esforços missionários de
hereges, como os novacianos, arianos e outros.
Mais ainda, foi Jesus quem desencadeou o único
movimento de renovação social que tem direito ao título
de revolução em toda a história da humanidade. Todos os
movimentos que os historiadores louvam em seus tratados
foram, até hoje, meras maquiagens sociais que mudaram
apenas aspectos superficiais da sociedade sem atingir o
ponto fundamental – o Homem. Por isso, ainda não se
conseguiu uma sociedade justa em todos os sentidos. Que
o homem deve ser o objeto principal de qualquer
movimento transformador, é uma derivação lógica da
própria definição durkheimiana da sociedade como sendo
a síntese dos indivíduos que a compõem. Ora, observando-
se os problemas da sociedade humana contemporânea,

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pode-se ver que a síntese denuncia a qualidade dos


componentes. A prova dessa afirmação pode ser
constatada em dois grandes movimentos sociais – a
Revolução Francesa e a Revolução Bolchevista.
A primeira desfraldou as bandeiras de Liberdade,
Igualdade e Fraternidade. Diziam seus líderes que
começava uma nova ordem político-social na história
humana. Não haveria fome, discriminação social,
privilégio ou despotismo. Todavia, mesmo em pleno
processo revolucionário, todo esse ideário se perdeu na
orgia autofágica das diversas facções que dele faziam
parte.
Com a Revolução Russa de 1818 foi diferente. Ela
conseguiu criar um Estado Socialista, vencendo as reações
contra-revolucionárias, bem como as tentativas
neutralizadoras das nações capitalistas. Dado o primeiro
passo – a conquista do poder pela classe proletária –,
começou a estruturação do processo político-econômico
que terminaria por construir, segundo pensavam os seus
ideólogos, o Estado Comunista. O estágio político básico
– a ditadura do proletariado – foi iniciado e nunca
terminou. Foi liquidado por um defeito congênito da teoria
inspiradora – o Materialismo. Produto artificial na cultura
humana, o Materialismo é uma filosofia desagregadora,
por radicalizar o individualismo e estimular o egoísmo.

Certas pessoas, e até entre as mais céticas, se fazem


apóstolos da fraternidade e do progresso; mas a
fraternidade supõe o desinteresse, a abnegação da per-
sonalidade. Com a verdadeira fraternidade, o orgulho
é uma anomalia. Com que direito impondes um sacri-
fício àquele a quem dizeis que quando morre tudo
acabou para ele; que o amanhã talvez não seja mais
que uma velha máquina desconjuntada e jogada fora?

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Quando o amor veio à terra

Que motivo tem ele para se impor qualquer privação?


Não é mais natural que, durante os breves instantes
que lhe concedeis, procure viver o melhor possível?
Daí o desejo de possuir muito para melhor gozar. Desse
desejo nasce o ciúme dos que possuem mais que ele
e, desse ciúme, para a cobiça do que eles têm é um
passo. O que o retém? É a lei? Mas a lei não abrange
todos os casos. Direis que é a consciência, o senti-
mento do dever? Mas sobre o que baseais o sentimen-
to do dever? Esse sentimento tem alguma razão de ser
com a crença de que tudo acaba com a vida? Com
essa crença só uma máxima é racional: cada um por
si. As idéias de fraternidade, de consciência, de dever,
de humanidade e mesmo de progresso não passam de
palavras vãs. Oh! Vós, que proclamais semelhantes
doutrinas, não sabeis todo o mal que fazeis à socieda-
de nem de quantos crimes assumis a responsabilida-
de! Mas eu falei de responsabilidade? Para o cético,
não existe responsabilidade; ele só presta homenagem
à matéria.1

Vê-se, nesses raciocínios, uma análise lógica das


conseqüências do Materialismo Histórico, que os fatos
vieram testificar.
O Marxismo, com seu brilhante humanismo,
pretendendo a criação de uma sociedade justa e igualitária,
não teve condições de sobreviver ao embate contra o
egoísmo das coletividades em que triunfou. A perspectiva
materialista do sistema levou Marx à conclusão de que,
não havendo alma que sobrevivesse após a morte, a
consciência humana era apenas um epifenômeno
produzido pelas reações físico-químicas do sistema
nervoso. Ela refletiria, tão somente, o movimento da

1 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma Motta
Argollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p.421-2.

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matéria no seu entorno. Por sua vez, a ação consciente do


ser humano sobre o meio provocaria modificações, e o
meio modificado voltaria a agir sobre o homem, levando-
o a uma nova transformação, e assim sucessivamente. A
sociedade, sendo regida pela infra-estrutura econômica,
as relações de produção a ela inerentes construiriam a
superestrutura ideológica, a qual, refletida pela cons-
ciência através dos procedimentos sociais, comandaria o
comportamento individual e coletivo. Para resolver o
problema das desigualdades e injustiças da sociedade
atual, seria bastante socializar os meios de produção para
que os indivíduos mudassem por via de conseqüência.
Acontece que a teoria tem um diagnóstico, até certo ponto,
correto do problema, mas a eliminação do Espírito,
enquanto entidade preexistente e sobrevivente ao corpo,
foi um erro fatal. Primeiramente, porque o Espírito,
mesmo que não existisse, teria de ser levado em conta,
dado o critério lógico utilizado pela crítica marxista da
sociedade – a dialética hegeliana. Essa dialética preceitua
que toda tese exige, necessariamente, uma antítese para
ser construída uma síntese, tese de um novo binômio tese-
antítese em nível mais elevado. Nessa linha de pensa-
mento, a matéria requer, como premissa coligada e
antagônica, a negação da matéria, ou seja, o Espírito, para
que a equação do raciocínio se apresente harmônica, com
todos os seus termos claramente posicionados. Ao
considerar o espiritual uma irrealidade, portanto descartá-
vel, os corifeus do Materialismo Histórico serraram o
galho onde estavam sentados. Esqueceram-se da antítese,
mergulhando unilateralmente no interior da tese para
construírem raciocínios e tirarem conclusões. Como
resultado, suas premissas foram edificadas sobre falsos
supostos, o que prejudicou a elaboração sistêmica.

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Quando o amor veio à terra

O Espírito é imperativo categórico requerido pela


análise dialética, não apenas por ser uma variável
necessária, mas porque é uma realidade da Natureza. Sem
ele, seria impossível a existência da matéria, por ser a
força que lhe dá consistência e objetividade. Sem qualquer
dúvida, como Marx e Engels concluíram, o Espírito e a
matéria interagem dialeticamente, um modificando o
outro, em regime de aperfeiçoamento constante.
Diferentemente da consciência evanescente do Marxismo,
o Espírito é permanente, preexistindo e sobrevivendo ao
corpo que o alberga temporariamente. Os resultados da
interação com o meio material ficam indelevelmente
impressos nele.
Sem dúvida que, em curto prazo, o apelo humanista
do Marxismo é capaz de motivar alguns idealistas a gestos
nobres de desprendimento e doação, mas, a longo prazo,
mostrou-se incapaz de inspirar o mesmo sentimento às
coletividades. Os regimes comunistas foram corroídos
pelos germes da dissolução inerentes à própria base do
sistema, terminando por implodirem fragorosamente,
tragados pelo vórtice genético auto-aniquilante. Isto é, o
egoísmo findou por vencer a diminuta capa de altruísmo.
Um dado importante para análise é que, quando o
Manifesto Comunista foi lançado em fevereiro de 1848,
com ele, o Materialismo Histórico passava a ser a
ideologia da proposta política da Revolução Proletária
para implantar uma sociedade de absoluta justiça e
igualdade social. É interessante notar que assim começa
o Manifesto: “Um espectro ronda a Europa – o espectro
do comunismo” 2. Acontece que, no mês seguinte,

2 MARX,Karl; ENGELS, Friedrick. Manifesto do partido comunista. São Paulo:


Ed. e Liv. Anita, 1989. p.29.

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justamente no dia 31 de março, numa casa da pequena


vila de Hydesville, no Condado de Wayne, no Estado de
Nova York, nos EUA, um espectro não apenas rondou,
mas literalmente assombrou o mundo – o espectro de
Carlos Rosma, o infeliz pedlar, ali assassinado por causa
de um punhado de dólares. Ora, enquanto o Manifesto
baseava-se numa ideologia que propugnava o mundo
material como única e absoluta realidade, o Espírito do
caixeiro viajante demonstrava a continuidade do
psiquismo e todas as suas funções, além do fenômeno da
morte numa realidade dimensional que envolve e permeia
o citado mundo, ou seja, o mundo espiritual. Assim, o
Materialismo Histórico foi contestado pelos fatos logo
nos primórdios de sua existência, desmoralizado em seu
niilismo esdrúxulo e socialmente nefasto, como demons-
trado linhas atrás.
Que o egoísmo é o maior obstáculo à elevação moral
da Humanidade, é reconhecido pelos ensinos espirituais:

Qual vício podemos considerar radical?


Já dissemos muitas vezes que é o egoísmo, pois dele
deriva todo o mal. Estudai todos os vícios e vereis
que na sua base está o egoísmo. Podereis combatê-
los, mas não conseguireis extirpá-los enquanto não
atacardes o mal pela raiz, não tiverdes destruído a
causa. Que todos os vossos esforços, portanto, sejam
nesse sentido, pois no egoísmo se encontra a verda-
deira chaga da sociedade. Quem quiser aproximar-
se, desde esta vida, da perfeição moral, deve extirpar
do seu coração todo o sentimento de egoísmo, pois
ele é incompatível com a justiça, o amor e a carida-
de. Ele neutraliza todas as qualidades.3

3 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma Motta
Argollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p. 366. (Questão 913).

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Quando o amor veio à terra

No que tange à falência do sistema socialista, podem


ser alegados vários outros fatores na vã tentativa de se
encontrar uma explicação diferente, como, por exemplo,
a pressão econômica sistemática das nações capitalistas,
lideradas pelos Estados Unidos da América do Norte.
É verdade que isso aconteceu. Todavia, se os povos
que viviam a experiência marxista houvessem adquirido
noção efetiva de dedicação ao bem coletivo, crendo
firmemente nos valores que os regiam, teriam suplantado
qualquer obstáculo, mesmo à custa de imensos sacrifícios.
Existe um exemplo formidável a esse respeito, que nos
foi dado pelos cristãos dos primeiros séculos. Mesmo
perseguidos de forma cruel pelo Império Romano,
colocados fora da lei em regime absoluto, sendo-lhes
negada a mínima proteção legal, dever impostergável de
qualquer Estado Civilizado, mantiveram-se fiéis aos
postulados abraçados, embora lhes custassem a tortura
pessoal e dos entes queridos, bem como a morte. Foram
três séculos, que não são três dias, de luta ciclópica, em
que a arma dos oprimidos era a perseverança, o perdão e
a caridade para com os algozes, ou seja, a anti-revolução.
Um outro elemento que tem prejudicado as
tentativas de transformação social por via revolucionária
é o emprego da violência para implantação dos princípios
idealizados. Jesus foi taxativo: “Todos que tomam a
espada, pela espada perecerão” 4.
O problema com a forma da luta revolucionária é
justamente o método empregado para assumir o poder.
Na Revolução Francesa e na Revolução Russa, a sanha
assassina dos revolucionários vitoriosos foi um triste
espetáculo de crueldade. Acontece que só o corpo é morto,

4 Mt 26, 52.mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm

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mas o Espírito permanece guardando toda sua condição


emocional, ou seja, odiando e antagonizando seus algozes,
aos quais acompanha ininterruptamente, procurando por
todos os meios e modos a desforra, considerada justa.
Além do mais, a Lei de Causa e Efeito estabelece que
estamos ligados, impreterivelmente, às conseqüências de
nossas ações, boas ou más, num sistema de responsa-
bilidade impostergável pelo resultado das atitudes e
escolhas tomadas. Por isso, as vítimas de uma revolução
terminam por voltar à vida física através da reencarnação
no círculo familiar ou social dos seus verdugos diretos e
indiretos, os quais lhes restituem automaticamente o poder
tirado, o que é o mesmo que anular os ideais que susten-
tavam o movimento, a médio e longo prazos.
A violência desnecessária, cometida quando da
implantação do Socialismo, levou a maioria dos executa-
dos à ação obsessiva sobre seus algozes, bem como a um
permanente trabalho de solapa do sistema, pela inspiração
de planos e decisões que, ao longo do tempo, redundariam
em fracasso, lançando ao descrédito a instituição
socioeconômica.
Trabalhando o egoísmo dos indivíduos e das
corporações, os exilados da espiritualidade findaram por
conseguir fazer da ditadura do proletariado uma tirania
brutal. A abnegação revolucionária foi substituída pela
opressão estatal. No lugar do despotismo czarista,
entronizou-se o despotismo ideológico do partido único
no poder. Pela centralização de todos os meios de produ-
ção nas mãos do Estado, todos viraram funcionários
públicos, instituindo-se um governo paralelo, corporati-
vista, mais poderoso do que o Institucional – a ditadura
da burocracia. Os burocratas passaram a se conceder todas
as mordomias e benesses possíveis enquanto o povo era

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instado aos maiores e mais difíceis sacrifícios, como


acontecia no regime anterior e acontece nos países do
terceiro mundo, como o Brasil. A falta de exemplos de
altruísmo por parte dos quadros dirigentes privou a
coletividade de uma fonte natural de estímulos ao despren-
dimento e à abnegação. O materialismo entronizado como
visão de mundo, e permanentemente difundido pela
propaganda estatal, levou ao apodrecimento das institui-
ções por incentivar a falta de caráter e a inescrupulosidade
em todos os escalões do governo, gerando a revolta e o
antagonismo na população, a qual terminou por impor a
queda do sistema, o que aconteceu em apenas três anos.
De acordo com o exposto, só existirá uma sociedade
realmente justa quando se conseguir implantar em cada
indivíduo a certeza de que ele é um Espírito imortal. Veja-
se bem que dissemos certeza, e não uma mera crença
imposta de cima para baixo, como aconteceu na Europa,
Ásia Menor e Norte da África quando da transformação
do Cristianismo em religião de Estado. As religiões
tradicionais diferem do Espiritismo nessa condição básica.
Enquanto aquelas informam, baseadas no critério da
autoridade, sobre a imortalidade da alma, esse leva à
certeza, por comprovar o fato experimentalmente.
Enquanto as religiões apelam para o credo quiam
absurdum5, a Doutrina Espírita estatui que “Fé inabalável
só é aquela que pode encarar a razão face a face, em todas
as épocas da humanidade” 6.
Conscientizado o homem da sua condição de
Espírito, a etapa seguinte é fazê-lo viver as conseqüências

5 Creio, porque é um absurdo. mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm


6 KARDEC, Allan. L´évangile selon le spiritisme. 3 ed. Paris: Les Editeurs du
Livre des Esprits, 1866. Página de rosto. Tradução Djalma Motta Argollo.(Il n´y
a de foi inébranlable que celle qui peut regarder la raison face à face, a tous lês
ages de l´humanité)

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dessa conscientização, pela reforma de hábitos e atitudes,


de acordo com a ética cristã, instando-o para viver o
altruísmo e o amor, destruindo o impulso centralizador
da personalidade – o egoísmo.
Mas será que existe um processo para a eliminação
do câncer infeliz e virulento do egoísmo? Sim, existe.
Encontra-se no Livro dos Espíritos a fórmula
fundamental para eliminação desse fator negativo, causa
real das misérias morais do Homem.
Qual o meio de destruir o egoísmo?
De todas as imperfeições humanas, a mais difícil de
erradicar é o egoísmo, porque se prende à influência
da matéria da qual o homem, ainda muito próximo
da sua origem, não pôde se livrar e essa influência
concorre para mantê-lo: suas leis, sua organização
social, sua educação. O egoísmo diminuirá com a pre-
dominância da vida moral sobre a vida material e,
sobretudo, com a compreensão que o espiritismo vos
dá do vosso real estado futuro, não desnaturado pelas
ficções alegóricas. O espiritismo bem compreendido,
quando estiver identificado com os costumes e as cren-
ças, transformará os hábitos, os usos e as relações so-
ciais. O egoísmo tem por base a importância da per-
sonalidade; ora, o espiritismo bem compreendido, re-
pito, faz ver as coisas de tão alto que, de certa manei-
ra, o sentimento da personalidade desaparece diante
da imensidão. Destruindo essa importância ou, pelo
menos, em fazendo vê-la tal como é, combate neces-
sariamente o egoísmo.
Ofendido pelo egoísmo dos outros, o homem torna-se
egoísta, porque sente necessidade de se colocar na
defensiva. Ao ver que os outros pensam em si próprios
e não nele, é levado a ocupar-se mais de si que dos
outros. Que o princípio da caridade e da fraternidade
esteja na base das instituições sociais, das relações
legais entre os povos e entre os homens, e o homem
pensará menos em si próprio quando vir que os ou-

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tros pensam nele. Sofrerá a influência moralizadora


do exemplo e do contato. Em face dessa recrudescên-
cia do egoísmo, é preciso uma verdadeira virtude para
fazer o homem abnegar da sua personalidade em pro-
veito dos outros que, em geral, não são reconhecidos;
É sobretudo aos que possuem essa virtude que o rei-
no dos céus está aberto; a eles está reservada a felici-
dade dos eleitos, pois em verdade vos digo que, no
dia do juízo, quem só tiver pensado em si próprio será
apartado, e sofrerá do seu abandono (785). 7

A base das conquistas citadas está nos ensinos de


Jesus, que o Espiritismo, como Consolador Prometido8,
recorda e aprofunda.
O rabi Galileu nunca assumiu uma postura de
Filósofo das massas; muito pelo contrário. Os ensina-
mentos que ministrou sempre foram dirigidos, de forma
particular, para cada um dos seus ouvintes, e continuam a
ter um caráter individual. Seu postulado sociológico é a
teoria do fermento: “O Reino dos Céus é semelhante ao
fermento que uma mulher tomou e pôs em três medidas
de farinha, até que tudo ficasse fermentado” 9.
O significado é óbvio; a transformação social deve
acontecer de dentro para fora. Será necessário que os
indivíduos se transformem individualmente, em primeiro
lugar, antes de exigirem a modificação dos outros. A partir
daí, ajam como fermento, levedando a massa lentamente,
mas com segurança. O Mestre sabia que uma sociedade é
sempre a síntese dos elementos que a compõem. Através
do exemplo particular, cada um que realize sua reforma

7 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma Motta
Argollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p.367 (Questão 917).
8 Negar esse caráter da Doutrina Espírita, sob o argumento de que é muita
pretensão, é de um simplismo tão grande que não merece maior atenção.
9 Mt 13, 33.

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íntima atua positivamente, modificando outros seres


humanos. É uma aplicação da Lei de Imitação definida
por Gabriel Tarde, considerado o Pai do Psicologismo
Social, no século XIX. Essa Lei explica como se dá o
processo de socialização dos seres humanos, cujo apren-
dizado se faz por imitação dos atos sociais em vigor na
sociedade, como a fala, a cultura, os usos e costumes etc..
Note-se que, na citação de Fénelon, seu Espírito diz a
mesma coisa quando fala na importância do exemplo para
aprimoramento das relações sociais, pela difusão de
normas éticas de conduta.
Na medida em que se expande a vivência dos
princípios éticos do Evangelho do Cristo pela vivência
individual, a imitação faz com que as atitudes morais
elevadas se propaguem pelos indivíduos, promovendo a
mudança das unidades sociais numa progressão constante
através dos séculos, culminando por transformar comple-
tamente a sociedade. Por isso, o Mestre insta com seus
seguidores, de todas as épocas, para que exemplifiquem
Seus ensinamentos:
Vós sois o sal da terra: porém se o sal se tornar insulso,
com o que será salgado? Para nada mais serve, a não
ser para se jogar fora e ser pisoteado pelos homens.
Vós sois a luz do mundo, não pode uma cidade situa-
da sobre um monte ser escondida. Nem se acende uma
lamparina e se a põe sob uma vasilha, mas no cande-
labro, e brilha para todos que estão na casa. Assim,
deixai brilhar vossa luz ante os homens, para que pos-
sam enxergar vossas realizações nobres e louvem vos-
so Pai, que está nos céus.10

Allan Kardec, inspirado pelos Espíritos Codifi-


cadores, endossou tal proposta de forma decisiva: “A
10 Mt 5, 13-16.

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humanidade progride pelos indivíduos que se aperfeiçoam


e se esclarecem pouco a pouco. Então, quando eles se
tornam a maioria, lideram e arrastam os outros” 11.
Essa revolução, sem qualquer dúvida, é a única com
capacidade para promover a reformulação social absoluta,
realizando as utopias sonhadas por grandes pensadores,
desde Platão até Karl Marx, sem retrocessos destrutivos.
Mas, à Lei de Imitação, será necessário ajuntar o
princípio natural da reencarnação, explicada e aprofun-
dada pela Doutrina Espírita. Os indivíduos que lutam pela
própria transformação moral não o conseguem numa só
existência, de um modo geral, e ao retornarem, depois da
desencarnação, à vida física, terão sempre maior facilidade
em aderir ao processo, progredindo gradualmente no seu
objetivo. Além disso, sua influência sobre os outros ho-
mens se propaga no tempo através das vidas sucessivas,
aumentando o poder de atuação da citada Lei. O número
crescente de Espíritos em processo de renovação já se faz
sentir no momento presente, quando surgem e se expan-
dem, como nunca, os movimentos em prol da modificação
positiva do comportamento humano, tanto individual
como coletivo. Está nascendo uma consciência de valores
comportamentais éticos em todos os níveis da atividade
social. Movimentos pela valorização da vida, pelo desapa-
recimento dos métodos cruéis da tortura, pelo respeito à
liberdade de pensamento, pela preservação da Natureza,
pela paz entre as nações, pela melhoria das condições de
existência dos pobres, pelo apoio aos deficientes físicos,
pela abolição da fome etc.. Esses são indicadores positivos
de que as proposições de Jesus estão agindo como um
11 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma Motta
Argollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p.324 (Comentário à
Questão 789).

{ {
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levedo na estrutura social, construindo lenta, mas segura-


mente, o Reino de Deus na face da Terra.
Profundamente vinculada aos ensinos de Jesus, a
Doutrina Espírita não pode ser dissociada deles, sob pena
de perder sua finalidade – o aprimoramento moral e
espiritual do ser humano. É por isso que todas as tentativas
de estabelecer um Espiritismo inteiramente científico, isto
é, podado de sua feição religiosa, tende ao mais absoluto
fracasso. O assunto já foi abordado em outra obra.
Aqui se põe a discussão do problema do Espiritismo
laico.
Segundo os defensores desta idéia, o Espiritismo deve-
ria cortar os laços com qualquer tipo de religiosidade,
principalmente a cristã, para, sobrepairando as diferen-
ças e radicalismos religiosos, universalizar-se, cumprin-
do o objetivo de fazer progredir a humanidade.
Argumentam que a cristianização da Doutrina Espíri-
ta põe barreiras à sua aceitação por parte da maioria
não-cristã da Humanidade, o que é possível pelos seus
princípios fundamentais que, de resto, já são aceitos
por grande parcela dos povos, desde a mais remota
antiguidade, independentemente do nível de civiliza-
ção que possuam. Allan Kardec concorda com esta
parte, escrevendo que o mérito da Doutrina está em
provar o que os outros sempre afirmaram, apoiados
apenas no critério da autoridade ou da tradição.12

Analisando o problema, escreve o Codificador:


Do ponto de vista religioso, o Espiritismo tem por base
as verdades fundamentais de todas as religiões: Deus,
a alma, a imortalidade, as penas e as recompensas fu-
turas, sendo, porém, independente de qualquer culto
em particular. Seu objetivo é provar àqueles que ne-

12 ARGOLLO, Djalma Motta. O novo testamento: um enfoque espírita. 2 ed. São


Paulo: Mnêmio Túlio, 1994. p.45-9.

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Quando o amor veio à terra

gam ou duvidam, que a alma existe, que ela sobrevive


ao corpo e que sofre, após a morte, as conseqüências
do bem ou do mal que praticar durante a vida corpórea:
o objetivo de todas as religiões. Quanto à crença nos
espíritos, também se encontra em todas as religiões,
assim como em todos os povos, porquanto, em toda
parte em que há homens, há almas ou espíritos. Suas
manifestações pertencem a todas as épocas, e, em to-
das as religiões, sem exceção, há narrativas a este res-
peito. Católicos - gregos ou romanos -, protestantes,
judeus ou muçulmanos podem crer nas manifestações
dos Espíritos e ser, por conseguinte, Espíritas. A pro-
va está em que o Espiritismo tem adeptos em todas as
seitas. Como moral é essencialmente cristão, porque
a doutrina que ensina nada mais é que o desenvolvi-
mento e a prática daquela do Cristo, a mais pura den-
tre todas, cuja superioridade ninguém contesta, pro-
va evidente de que é a expressão da lei de Deus. Ora,
a moral está ao alcance de todos. O Espiritismo, in-
dependente de qualquer forma de culto, não aconse-
lhando nenhum e não se preocupando com dogmas
particulares, não constitui uma religião especial, pois
não possui nem sacerdotes, nem templos. Aos que lhe
perguntam se fazem bem em seguir tal ou tal prática,
apenas responde: Se sua consciência aprova o que
você faz, faça-o. Numa palavra, o Espiritismo nada
impõe a ninguém. Não se destina aos que têm fé, e a
quem esta fé é suficiente, mas à numerosa classe dos
inseguros e dos incrédulos. Não os afasta da Igreja,
porquanto já estão dela moralmente afastados, de
modo total ou parcial, mas os leva a fazer três quar-
tos do caminho para nela entrarem; cabe à Igreja fa-
zer o resto.13

O pensamento de Kardec é pleno de lógica e


coerência argumentativa; contudo, a psicologia humana,

13 KARDEC, Allan. O espiritismo em sua mais simples expressão. In: __. Iniciação
espírita. Tradução Joaquim da Silva Sampaio Lobo e Cairbar Schutel. 12 ed.
Sobradinho-DF: Edicel, 1990. p.27-8.

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Djalma Argollo

egocentrista, raciocina geralmente de acordo com padrões


maniqueístas, em que as proposições são mutuamente
excludentes.
O Espiritismo como ponto axiologicamente neutro,
em que as religiões pudessem se encontrar acima de
quaisquer sentimentos antagônicos, não vingou. A oposi-
ção hostil da Igreja Católica e das Igrejas Reformadas
pôs seus crentes que aceitavam o pensamento Espírita
diante de um impasse – ou abjuravam o conhecimento e
os ensinos que os fatos demonstravam verdadeiros, retor-
nando à crença nos dogmas vetustos, senis e irracionais,
ou seriam implacavelmente excomungados como heréti-
cos. Paralelamente a isso, deslancharam perseguição
sistemática contra os espíritas, que atingiu paroxismos
de intolerância e perversidade. Kardec assim descreve
esses lamentáveis episódios inquisitoriais:
Em certas localidades, não foram indicados (os espí-
ritas) à censura de seus concidadãos, até serem perse-
guidos e injuriados nas ruas? Não se ordenou aos fiéis
fazê-los fugir como enfestados, não se dissuadiram os
empregados de entrar para o seu serviço? Não se soli-
citou às mulheres separarem-se de seus maridos e aos
maridos de suas esposas, por causa do Espiritismo?
Não se fizeram despachar empregados, retirar a ope-
rários o seu pão de cada dia e a necessitados o pão da
caridade por serem espíritas? Até cegos não foram
expulsos de certos hospitais, porque tinham recusado
abjurar suas crenças? 14

E, finalmente, conclui o sábio lionês:


Em resumo, a Igreja, repelindo sistematicamente os
espíritas que voltavam a ela, forçou-os a se refugia-

14 KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. 12 ed. Sobradinho-DF: Edicel, 1990.


p.99.

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Quando o amor veio à terra

rem na meditação. Pela violência de seus ataques, alar-


gou a discussão e a levou para um novo terreno. O
Espiritismo não era mais que simples doutrina filosó-
fica; foi a própria Igreja que o desenvolveu, apresen-
tando-o como um temível inimigo. Foi ela, enfim,
quem o proclamou como nova religião. Era uma de-
monstração de inépcia, mas a paixão não raciocina.15

Atingido o status de religião, que o Codificador


procurara evitar, a situação se tornou altamente compli-
cada. Acabou-se a neutralidade axiológica. Desde então,
todo aquele que se torna espírita abandona sua religião
tradicional numa típica atitude de conversão.
Se o problema é tão grave entre pessoas da mesma
tradição cristã, imagine-se com as de tradições absoluta-
mente diversas, ou até antagônicas, como a dos islamitas.
Nesse caso particular, a situação tem um agravante – a afir-
mação supramencionada de ser, como o é, a moral espírita
absolutamente cristã, que Kardec afirma ser superior a todas
as outras, é ponto fatal de rejeição ao Espiritismo.
Pretender-se retornar ao status quo ante pela simples
exclusão do Evangelho segundo o Espiritismo, de forma
arbitrária, do elenco da Codificação é de uma ingenuidade
gritante. Seria preciso fazer uma recodificação, eliminando
dela toda e qualquer afirmativa de cristianidade, o que,
além de absurdo, é totalmente impossível.
A Doutrina Espírita surgiu como o Consolador
prometido pelo Cristo, como afirmamos linhas atrás. Sua
moral é a estabelecida nos Evangelhos, como escreveu
Kardec, e ratificou a publicação do Evangelho segundo o
Espiritismo.
No Brasil, onde o Espiritismo encontrou sua pátria
real e se desenvolveu de forma extraordinária, ele é total-

15 KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. 12ed. Sobradinho – DF: Edicel, 1990, p. 100.

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Djalma Argollo

mente evangélico, e com essa característica está retornando


ao berço de origem, a França, e se expandindo pelo mundo,
propagado pelos nossos médiuns e expositores. Assim, o
Espiritismo laico não passa de um sonho impossível, em
completa discordância com a realidade histórica.
A essas ilações, pode-se acrescentar que os princí-
pios nos quais se estriba o Espiritismo são, por si mesmos,
universais, porque são Leis da Natureza. Todos os seres
vivos, pelo menos, possuem um campo organizador da
forma, o qual preexiste e sobrevive à morte do organismo.
Esse campo, enquanto desligado do corpo, permanece com
todos os seus atributos mentais e emocionais ativos, numa
dimensão própria que envolve e penetra a nossa.
Por guardar suas funções de racionalidade e senti-
mentos, continua a interagir com os demais campos, tanto
no sentido horizontal do hábitat onde vive quanto no
vertical, com os que ainda se encontram vinculados à
matéria, influenciando-os e sendo por eles influenciados.
Graças à faculdade mediúnica, podem provocar
fenômenos diversos, através dos quais atestam sua
existência e continuidade. Ora, o Espírito – como
denominamos geralmente o campo organizador da forma
– é, portanto, um fato independente de crença, posição
social, condição econômica, ética ou cultural. Assim,
budistas, maometanos, protestantes, católicos, ateus,
xintoístas e outros podem promover os meios e modos de
intercambiarem com os seres espirituais, criando seus
próprios sistemas filosóficos em torno do que consegui-
rem, o que não é proibido nem pode sê-lo, a não ser pelos
dogmas e preconceitos alienantes que cultivam. Não é a
feição cristã da Doutrina Espírita que os impede. São eles
que se impedem de ter acesso ao manancial de ensinos e
consolações que o intercâmbio mediúnico enseja.

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Quando o amor veio à terra

Os Evangelhos, bem como o Novo Testamento, são


livros fundamentais para a Doutrina Espírita, que os
esclarece e aprofunda da mesma forma como Jesus o fez
com o Mosaismo.
O Movimento Espírita necessita se preocupar sem-
pre, mais e mais, com o seu papel de veiculador dos
princípios evangélicos. Não se pode esquecer que o Espiri-
tismo está no mundo para influenciar decisivamente no
progresso da Humanidade, justamente por ser uma revi-
vescência do Cristianismo.

De que forma o espiritismo pode contribuir para o


progresso?
Destruindo o materialismo, que é uma das chagas da
sociedade, ele faz compreender em que se encontra o
verdadeiro interesse dos homens. A vida futura não
estando mais sob o véu da dúvida, o homem compre-
enderá melhor que pode assegurar o seu futuro pelo
presente. Destruindo os preconceitos de seitas, cas-
tas e cor, ele ensinará a grande solidariedade que deve
unir os homens como irmãos 16

E para conseguir esse desiderato, apresenta-nos um


padrão, que deve ser seguido de maneira absoluta: “Qual
o tipo mais perfeito que Deus ofereceu ao homem para
lhe servir de guia e modelo? Vede Jesus17”. Ao que o
Mestre de Lyon, com sua intuição privilegiada, acrescenta:

Jesus é para o homem o tipo de perfeição moral a que


pode aspirar a Humanidade na Terra. Deus no-lo ofe-
rece como o mais perfeito modelo, e a doutrina que
ele ensinou é a mais pura expressão de Sua lei, por-

16 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. 2 ed. 1860. Tradução Djalma Motta
Argollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007. p.328. (Questão 799).
17 Ibid., p.273 (Questão 625).

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Djalma Argollo

que ele estava animado do Espírito divino e foi o ser


mais puro que já apareceu na Terra.18

Este livro tem como finalidade chamar atenção para


o estudo e a meditação sobre Jesus e seus ensinamentos.
Não é uma Vida de Jesus, no sentido tradicional do termo;
são histórias em torno da pessoa do Mestre, enquanto
viveu entre nós.
O Encontro com Jesus nasceu sob a inspiração do
Espírito Mnêmio Túlio, responsável pelo conteúdo das
histórias, mas absolutamente inocente dos erros históricos
ou de outro gênero nelas existentes, que devem ser
debitados à incompetência do co-autor encarnado. Isso
porque elas aconteceram por via da mediunidade de
inspiração, a qual, segundo Allan Kardec, não permite
que seja feita uma separação objetiva entre o pensamento
da entidade comunicante e o do médium. Nesse caso, por
que o médium não assume definitivamente a completa
autoria do livro? Pelo simples fato de perceber, quando o
fenômeno inspirativo se dava, que a idéia nascia fora da
sua mente e, nessas condições, ao assumir sua total autoria,
seria uma apropriação indébita, incompatível com o culto
à honestidade que o Espiritismo ensina.
Um esclarecimento. Alguns leitores questionaram
o fato de ser apresentado o nascimento de Jesus como o
faz a tradição, ou seja, que Maria era virgem quando da
concepção. O problema é que este livro não se propõe a
ser uma obra crítica dos Evangelhos e da vida de Jesus
conforme apresentada pela ortodoxia, mas uma releitura
de episódios constantes dos Evangelhos, emoldurada em

18 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. 2ed. 1860. Tradução Djalma Motta
Argollo. Salvador-Bahia: Fundação Lar Harmonia, 2007, p. 273 (Comentário
à Questão 625).

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Quando o amor veio à terra

narrativas para ilustrar o núcleo original. Assim, o


nascimento virginal, mesmo que seja um mito, enseja uma
série de questões emocionais, transformando-se num rico
manancial de circunstâncias que a imaginação pode, e
deve, explorar em todas as dimensões da arte. Aliás, isso
tem acontecido, e os museus e as bibliotecas do mundo
inteiro guardam o resultado das projeções do inconsciente
de inúmeros artistas e escritores que foram arrebatados
pela força e dinamismo do arquétipo do nascimento
virginal. Preferi deixar falar a grandiosidade do arquétipo,
incomensurável e transcendente, constelando toda a
numinosidade do mito da natividade e, confesso, senti a
alma invadida por sensações indescritíveis que, em muitas
oportunidades, continuam a repercutir no meu psiquismo,
gerando estados alterados de consciência bastante
prazerosos. Para os que quiserem, porém, saber o que
penso realmente sobre o assunto, aconselho ler o livro O
Novo Testamento: um enfoque espírita.

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Quando o amor veio à terra

{ 1
A Visão de Zacarias
Zacarias 19
, de pé no Hekal 20, em frente ao
Debir21, diante do Altar dos Perfumes, coberto de lâminas
de ouro batido, aprontara-se para derramar a taça de ouro
com o perfume que a família Abtinai, possuidora do
monopólio de produção e fornecimento, preparava com
catorze substâncias aromáticas escolhidas e manipuladas
de acordo com métodos tradicionais. Ele estava sozinho.
Os demais sacerdotes já se haviam retirado para o
vestíbulo, tomando posição diante do Altar dos Sacrifícios,
rezando a Deus pela vinda do Messias, junto com o povo
que se aglomerava nos pátios e adros do Templo de
Jerusalém, cuja construção fora iniciada por Herodes, o
Grande, em 19 a.C., e que só terminaria em 66 d.C., às
vésperas do levante contra o domínio romano e de sua
conseqüente destruição.
Durante o reinado de Davi, os sacerdotes foram
divididos em vinte e quatro classes, dentre os que eram
descendentes de dois filhos de Aarão, Eleazar e Itamar, já

19 Zekaryah, nome hebraico que significa Iahweh se lembra.


20 Lugar Santo, a primeira das duas divisões do Santuário, onde se encontrava o
Menorá, candelabro de sete braços, o Altar dos Perfumes e a mesa para os
pães da proposição.
21 O Santo dos Santos, local onde antes do Cativeiro da Babilônia era guardada a
Arca da Aliança. Estava separado do Santo, no Templo de Herodes, por uma
cortina – o Véu do Templo.

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Djalma Argollo

que os outros dois, Nadab e Abiú, desencarnaram sem


deixar filhos. Dezesseis classes ficaram com os chefes de
família que descendiam de Eleazar e oito, com os que
descendiam de Itamar. Da primeira classe, a de Joiarib,
derivavam os Asmoneus, que governaram a Palestina de
140 a 63 a.C.22. Essas classes eram responsáveis pelos
serviços religiosos diários do Templo, revezando-se em
turnos semanais, sendo os oficiadores do dia escolhidos
por sorteio para desempenharem as funções que iam da
limpeza e preparação dos objetos e locais sagrados até a
oferta dos sacrifícios. Por esse tempo, não mais existiam
as classes originais. Somente quatro – a segunda, de
Jedeias; a terceira, de Harim; a quinta, de Melquias e a
sexta, de Maimô – haviam retornado do cativeiro da
Babilônia. Para voltar à estrutura original, elas foram
redivididas em grupos de seis, que mantinham os nomes
primitivos sem, todavia, descenderem diretamente dos
seus fundadores.
Zacarias fora sorteado para realizar a queima dos
perfumes no período da oração da tarde, durante o turno de
sua classe – a de Abias. Segundo os estudiosos, o evento
aconteceu no primeiro dia da semana, tendo o sacerdote
exercido suas diversas obrigações no decorrer desse tempo.
A solenidade do momento fez seu coração pulsar de
emoção. Fora escolhido por sorteio, durante a madrugada,
para o sacrifício do incenso, honra longamente esperada e
que chegava quando ele alcançava uma velhice honrada,
depois de uma existência consagrada ao serviço de Deus.
Sob o impacto emocional da solenidade do instante,
o velho sacerdote recordou a mágoa que trazia sufocada
22 Os Asmoneus chefiaram o levante contra o jugo Selêucida, conhecido pelo nome
de Revolta Macabaica – de Macabeu, que pode ser traduzido por cabeça de
martelo, apelido de Judas, um dos filhos de Matatias, o desencadeador da rebelião.

{ {
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Quando o amor veio à terra

no peito: não tinha filhos. Sobre ele e sua amada esposa


Elisheba (Isabel)23 pesava o duro castigo da esterilidade.
Não podia compreender a razão dessa punição
divina. Sempre fora fiel servidor do Senhor e intransigente
seguidor dos seus mandamentos, como seu pai e o pai de
seu pai. Sua mulher, também descendente de Aarão, era
de linhagem sacerdotal e inteiramente submissa à Lei
desde a mais tenra infância. Com lágrimas a escorrer pela
veneranda barba grisalha, orou contrito enquanto se
preparava para realizar a sagrada oblação:
Tu és justo, Iahweh, e tuas normas são retas, por isso
eu e Isabel nos curvamos resignados diante delas.
Embora não encontrando em nossas consciências
motivo algum de reproche, sabemos que não punes o
inocente. Acredito que, à semelhança de Jó, colocas à
prova nossa fé em Ti. Sabes, contudo, que nada nos
desviará dos Teus Caminhos. Compadece-Te de nós,
e retira dos nossos ombros o peso do opróbrio, para
que sejamos felizes o resto de nossos dias sobre a Ter-
ra. Glória a Ti Senhor, Deus único e Verdadeiro, sus-
tentáculo de nossas vidas, esperança de Israel.24

No momento em que, soluçando emocionado, o


Servo de Deus ia espargir o perfume sobre o braseiro, o
Santo se iluminou e, à direita do altar, materializou-se
um Espírito, cuja elevação se traduzia pela luz violeta
suave que emanava do seu corpo. O sacerdote se assustou
com a aparição, enchendo-se de temor. A nobre entidade
falou, então, buscando acalmá-lo:
– Não temas, Zacarias, porque a tua súplica foi ouvi-
da, e Isabel, tua mulher, vai te dar um filho, ao qual
porás o nome de João25. Terás alegria e regozijo, e
muitos se alegrarão com o seu nascimento, pois ele

23 Deus é plenitude.
24 Salmos 119, 137.
25 Em hebraico Yohanan ou Yehohanan: Iahweh é propício

{ {
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Djalma Argollo

será grande diante do Senhor; não beberá vinho, nem


bebida embriagante; ficará pleno do Espírito Santo
ainda no seio de sua mãe e converterá muitos dos fi-
lhos de Israel ao Senhor, seu Deus. Ele caminhará à
sua frente, com o espírito e o poder de Elias, a fim de
converter os corações dos pais aos filhos, e os rebel-
des à prudência dos justos, para preparar ao Senhor
um povo bem disposto26.

Zacarias não podia acreditar no que estava ouvindo;


por isso, aproveitando o staccato na comunicação, inqui-
riu, mostrando na voz a dúvida que o assaltava: “– De
que modo saberei disso? Pois sou velho e minha esposa é
de idade avançada 27”.
Em pouco tempo o ancião passara da fé ardente,
extravasada na prece contrita que fizera, ao nível estreito
da racionalidade humana, apegada às demonstrações
lógicas e comprováveis. O mensageiro, então, respondeu:
– Eu sou Gabriel 28; assisto diante de Deus e fui envi-
ado para anunciar-te essa boa nova. Eis que ficarás
mudo e sem poder falar até o dia em que isso aconte-
cer, porquanto não creste em minhas palavras, que se
cumprirão no tempo oportuno.
O povo esperava por Zacarias, admirado com sua de-
mora no Santuário. Quando ele saiu, não lhes podia
falar; compreenderam que tivera alguma visão no San-
tuário. Falava-lhes com sinais e permanecia mudo.
Completados os dias do seu ministério, voltou para
casa. Algum tempo depois, Isabel, sua esposa, conce-
beu e se manteve oculta por cinco meses, dizendo:
– Isto fez por mim o Senhor, quando se dignou retirar
o meu opróbrio perante os homens!29

26 Lc 1, 13-17.
27 Lc 1, 18.
28 Homem de Deus ou Deus mostrou-se forte.
29 Lc 1, 19-25.

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Quando o amor veio à terra

{ 2
A Anunciação 30

Nazaré, pequena e graciosa vila, erguia-se sobre


um alto do complexo de colinas a sudeste do Lago de
Genesaré. Simples e pobre, sua história, anterior a Jesus,
não foi marcada por eventos importantes que lhe outorgassem
o mérito de constar das páginas do Antigo Testamento.
Seus habitantes, rústicos camponeses e criadores
de ovelhas, eram pobres e incultos, além de não possuírem
boa reputação nas cercanias. Quando Filipe, recém-
conquistado pelo Mestre, comunica a Natanael, que era
da vizinha Cana, “– Encontramos aquele de quem
escreveram Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, o filho
de José, de Nazaré” 31, este retrucou: “– De Nazaré pode
sair algo de bom?” 32. E até hoje, na Palestina, corre o
ditado: “A quem Deus quer castigar, com uma nazarena o
faz casar” 33.
Sobre Nazaré, escreveu o protestante racionalista
Ernesto Renan:

30 O tema deste capítulo e dos dois seguintes se refere ao pretendido nascimento


virginal de Jesus e segue a tradição, pois o livro pretende dar uma visão da
vida do Mestre tal como está nos Evangelhos, dando-lhe apenas uma forma
literária de contos, não significando a aceitação, por parte do autor, da tese
citada.
31 Jo 1, 45.
32 Jo 1, 46.
33 URBEL, J. Perez. A vida de Cristo. São Paulo: Quadrante, 1967. p. 33.

{ {
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Djalma Argollo

O horizonte da cidade é estreito, mas quem subir um


pouco, até chegar à planura bafejada por uma brisa
contínua que domina as habitações mais altas, acha
uma majestosa perspectiva.34.

Do local em que se demora, pode-se vislumbrar, ao


norte, os limites de Dan, onde o Hermon projeta seus
cimos nevados com o característico tom azulado, e as
montanhas de Safed lançando-se em direção ao mar por
onde se recorta o Golfo de Haifa. A nordeste, distinguem-
se as alturas da Gaulonítida, em plena Decápolis, com
suas cidades em estilo grego, embelezadas pelo senso
estético dos descendentes dos helenos. Ao sul, numa
abrangência de sudeste a sudoeste, por entre espaços do
relevo montanhoso, aparecem flagrantes do Carmelo, em
cuja extremidade norte situava-se a antiga fortaleza cana-
néia de Megido, rebatizada pelos romanos como Legio,
vigilante sentinela do vale de Jezreel; do Gilboá, local da
morte de Saul e Jônatas em combate contra os Filisteus; e
do Garizim, onde fora construído o templo rival do de
Jerusalém, que João Hircano destruiu em 128 a.C. durante
o interregno de liberdade proporcionado pela revolta
Macabaica. Por ali, também se podem ver a colina de
Endor, onde Samuel foi evocado pelo primeiro rei de Israel
graças à mediunidade de uma mulher, e o Tabor, palco de
outra sessão mediúnica, presidida pelo próprio Jesus e
sem as sinistras implicações daquela. Mais adiante, na
mesma direção, abrem-se o vale do rio Jordão e as
altiplanuras da Peréia.
Sua flora apresentava uma grande variedade, onde
se podiam encontrar ciprestes escuros, oliveiras de folhas

34 História das origens do cristianismo. Porto: Lelo, s.d., p. 25. Vida de Jesus,
Livro 1.

{ {
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Quando o amor veio à terra

prateadas, vinhedos, trigo, verbena, lírios, tamargueiras,


tamarindeiros, sicômoros e outros, espalhados por entre
relva olente e macia, pintalgada de pequeninas flores de
matiz variado.
Naquele dia, a Natureza se apresentava festiva,
vestindo seus mais alegres tons e derramando, generosa,
pelas mãos delicadas e ágeis das brisas, ondas de perfumes
suaves produzidos pela mistura bem dosada e proporcional
das essências elaboradas pelas flores silvestres.
O Sol fazia destacar toda a beleza da paisagem,
saturando-a de luz amena estruturada em claridade
inusitada.
Tocada pela magia reinante na atmosfera, toda a
fauna buscava emprestar seus encantos particulares para
aumentar a pulcritude ambiente e, assim, seus chilreios,
pipilos, zurros, balidos e zumbidos formavam a onomato-
péia ambiente, compondo rústicas sinfonias, que encanta-
vam os ouvidos e pacificavam os corações.
Os habitantes da cidadezinha, empolgados com o
encanto daquele dia incomum, deixavam-se tomar pelos
mais puros e nobres sentimentos, esquecendo momenta-
neamente suas querelas mesquinhas e banais, entregando-
se prazerosamente às atividades prosaicas do cotidiano,
nelas descobrindo encantos e motivações insuspeitados.
Maria35, havendo chegado da fonte, que ainda lhe
guarda o nome – Ain Sitti Mariam –36, posou o cântaro à
entrada da casinha singela, pondo-se a apreciar o crepús-
culo que se avizinhava célere. O céu se assemelhava a
uma imensa tela azul, onde o agigantado disco solar,

35 Miryam, em hebraico. É de etimologia incerta, não havendo acordo entre os


especialistas quanto ao seu significado. Era o nome da irmã de Moisés, por
isso muitos acham que deve ser de origem egípcia.
36 A fonte de Maria.

{ {
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Djalma Argollo

matizado de carmim, pintava uma paisagem surrealista


em tons de ouro eterizado, entremeado de púrpura lumi-
nescente. Seu coração, puro e generoso, estuava de alegria
enquanto um imenso sentimento de felicidade lhe povoava
os centros emotivos, estimulando anseios de sublime
espiritualidade. Lágrimas de ventura rolavam por sua face,
delicada como uma pétala de rosa, fazendo brilhar seus
olhos castanho-claros, em que pairavam límpidos reflexos
de inocência. A brisa vespertina, encantada com sua beleza
cândida e sem mácula, veio gárrula e lépida brincar com
os cachos castanho-dourados de sua cabeleira vasta e
cheia, agradavelmente perfumada com essência de nardo.
Com um suspiro profundo de pura emoção, a jovem
recém-comprometida com José, o carpinteiro, entrou em
casa dirigindo-se para o quarto de dormir, depois de colocar
a vasilha com água na cozinha rústica, localizada em
pequena gruta que fora incorporada à residência quando
da sua construção. Ali, assentando-se sobre a cama singela,
pôs-se a meditar sobre as sensações diferentes que sentia.
Sempre cultivara sentimentos puros, e toda sua vida
transcorrera numa atmosfera de harmonia e tranqüilidade,
em que o culto a Deus era uma atividade constante de sua
alma. Nunca sentira atração por futilidades e inconseqüên-
cias na infância, como soe acontecer, mostrando-se
responsável e criteriosa desde a mais tenra idade. Ao
chegar à puberdade, não fora arrebatada pelos sonhos e
impulsos juvenis nem se entregara às vaidades comuns
do narcisismo instintivo da menina que desabrocha para
uma nova etapa de vida.
O casamento lhe chegara como uma coisa normal,
sem impactos emocionais nem grandes surpresas, um fato
natural como qualquer outro da existência. Esperava a
consumação do contrato esponsalício sem maiores

{ {
38

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Quando o amor veio à terra

anseios. Seu futuro marido era um homem digno, traba-


lhador, sem vícios nem costumes degradantes. Afável,
simples, franco e jovial, fora por ela recebido como um
amigo e companheiro, com o qual partilharia os momentos
bons e maus da vida. Também ele era profundamente
religioso, uma alma empolgada pelo senso do divino, sem
as preocupações legalistas dos partidários das diversas
facções político-religiosas da Judéia. Aliás, pouco ecoa-
vam, nos altos onde moravam, as questiúnculas escolás-
ticas que fermentavam em Jerusalém, quase cento e doze
quilômetros de distância.
Repentinamente, em meio a suas cogitações, a Rosa
Mística de Nazaré sentiu uma presença invisível no
ambiente, o que a fez abandonar a atitude cismarenta sem,
contudo, sentir qualquer receio. Uma luz suave e incomum
iluminou o recinto, tendo como fonte um ser de beleza
angelical que, fitando-a amorosamente, lhe falou em tom
carinhoso: “– Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está
contigo. Ela ficou intrigada com essas palavras e pôs-se a
pensar qual seria o significado da saudação” 37. A entidade
angelical, todavia, prosseguiu:
Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus.
Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho,
e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será gran-
de, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus
lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa
de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim.38

Maria, surpresa com aquela revelação, externou sua


perplexidade: “– Como é que vai ser isso, se eu não
conheço homem algum?” 39

37 Lc 1, 28.
38 Lc 1, 30-33.
39 Lc 1, 34.

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39

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Djalma Argollo

Ao que o elevado ser espiritual retrucou: “– O


Espírito Puro virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te
cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será
chamado Filho de Deus” 40.
Em seguida, para corroborar seu anúncio, o Espírito
Superior lhe fez uma revelação comprobatória, como
acontece nas comunicações mediúnicas quando é preciso
vencer as resistências da dúvida, justificável em situações
que tais:

Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na


velhice, e este é o sexto mês para aquela que chama-
vam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impos-
sível.
Disse, então, Maria:
– Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo
a tua palavra 41.

Nesse ponto, o Mensageiro do Alto desapareceu,


deixando o ambiente impregnado de perfume desco-
nhecido e suave.

40 Lc 1, 35.
41 Lc 1, 36-38.

{ {
40

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Quando o amor veio à terra

{ 3
Visitando Isabel
Maria estava perplexa com o que acabara de
acontecer. Fora tudo tão repentino e extraordinário. Sentia,
bem no imo d’alma, que era absolutamente real o que
vira e ouvira. Todavia, a razão lhe colocava algumas
questões ponderosas: ela, apesar do compromisso com
José, não havia convivido maritalmente com ele, o que
só aconteceria dentro de dois meses; uma gravidez trans-
cendente? Seria tal coisa possível? No mesmo instante,
como se uma voz lhe falasse diretamente no íntimo,
recordou-se da história de Sara, a mulher de Abraão, o
patriarca maior do seu povo. Ela era muito idosa e já havia
perdido o costume das mulheres. Mensageiros do Senhor
disseram a Abraão que ela lhe daria um filho, e o fato se
cumpriu dando origem ao povo Hebreu. Aliás, como povo
escolhido por Deus, Ele nunca deixara de participar de
sua história com prêmios e castigos. Sofriam então o
castigo da dominação romana, como outrora a de outros
povos.
Mas contrapôs-se consigo mesma. Sara tinha
marido, e ela não. O Mensageiro de Deus lhe revelara
que Isabel estava grávida, e que isto serviria de sinal
comprobatório do que dissera. Como saber se era real?
Não havia um meio de, com ela, comunicar-se, pois vivia
em Aim Karim, nas bordas do Deserto da Judéia. Só lhe

{ {
41

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Djalma Argollo

restava uma coisa a fazer: ir visitá-la e, dessa forma,


constatar a realidade da visão.
Resolvida essa parte, havia uma segunda: em sendo
verdade, como haveria José de receber a notícia? Afinal
de contas, ela fora avisada; ele, entretanto, não. Como
reagiria? Será que a teria como adúltera? A palavra
adúltera lhe despertou um temor inesperado. Não havia
ainda cogitado nisto. Ficando grávida de um filho que
não era de seu noivo, todos, inclusive José, só poderiam
pensar que ela tivesse adulterado. Seria uma situação
difícil. Segundo a Lei, a pena aplicável a tal crime era a
morte por lapidação. Sabia-se inocente, mas os outros
acreditariam? Começou a ficar aflita ante os pensamentos
que lhe ocorriam quanto aos problemas que enfrentaria.
Mas, reagindo, disse em voz alta: Senhor! coloco-me,
como disse ao Teu Mensageiro, em Tuas mãos como
escrava submissa. O que deliberares a meu respeito,
aceitarei com resignação.
No mesmo instante, sentiu uma Paz indescritível.
Era a resposta do céu à oração. As preocupações e anseios
a abandonaram completamente, dando lugar a uma alegria
imensa, que lhe invadiu todo o ser.
Comunicou, aos parentes que a tutelavam desde a
morte dos pais, a resolução de visitar Isabel e Zacarias.
Apesar de surpresos, concordaram prontamente, pois lhe
tinham muito afeto. José também não opôs obstáculos, e
providenciou tudo, pois naquele mesmo dia ficara sabendo
que seu irmão Cleofas partiria com uma caravana para a
região de Belém, onde realizaria negócios comerciais.
Contatado, concordou em levar Maria até Aim Karim e,
três meses depois, apanhá-la de volta, o que era conve-
niente, pois seria o tempo justo para a realização das bodas
definitivas.

{ {
42

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Quando o amor veio à terra

Cinco dias depois, Maria entrava em Aim Karim, o


pequeno povoado que ficava a sete quilômetros de
Jerusalém, na direção sudoeste. Ao chegar à casa de
Zacarias, sentia-se envolvida por vibrações espirituais
intensas. Foi recebida por uma serva, acomodando-se na
pequena sala de entrada enquanto a dona da casa era
informada de sua chegada.
O seu encontro com Isabel, cuja gravidez estava no
sexto mês, foi cheio de alegria, pois não se viam há muito
tempo. Em meio às efusões de carinho, as duas foram
arrebatadas por transcendentes presenças espirituais,
entrando em estado alterado de consciência.
Isabel, mediunizada, exclamou:

Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de


teu ventre! Donde me vem que a mãe do meu Senhor
me visite? Pois quando a tua saudação chegou aos
meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meu
ventre. Feliz aquela que creu, pois o que lhe foi dito
da parte do Senhor será cumprido! 42

Maria ficou admirada, mas ao mesmo tempo alegre,


pois via a confirmação do que lhe dissera o enviado
espiritual. Isabel estava grávida e, sem que lhe dissesse
qualquer coisa, falara sobre sua gravidez. Era tudo, pois,
a expressão da verdade. Desde aquele momento, qualquer
vacilação a abandonou por completo. Num estado de
profunda felicidade e júbilo, sentiu-se a falar, impelida
por forças transcendentes:

Minh’alma engrandece o Senhor,


e meu espírito exulta em Deus meu Salvador,
porque olhou para a humilhação de Sua serva.

42 Lc 1, 42-45.

{ {
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Djalma Argollo

Sim! Doravante todas as gerações me chamarão de


bem-aventurada, pois o Todo-Poderoso fez grandes
coisas em meu favor.
Santo é o Seu nome,e Sua misericórdia
perdura de geração em geração,
para aqueles que O temem.
Agiu com a força de Seu braço,
dispersou os homens de coração orgulhosos.
Depôs poderosos de seus tronos,
e a humildes exaltou.
Cumulou de bens a famintos,
e despediu ricos de mãos vazias.
Socorreu Israel, Seu servo,
lembrado de Sua misericórdia
– conforme prometera a nossos pais –
em favor de Abraão e de sua descendência,
para sempre! 43

Asserenados os ânimos, passaram a conversar sobre


as novidades comuns de suas vidas simples, trocando
confidências familiares, dando-se notícias mútuas sobre
parentes que não viam há muito. Pouco depois, Zacarias
chegou de seus afazeres normais, expressando-se por
sinais por causa da mudez que lhe havia sido imposta
como sinal do que lhe dissera o mensageiro espiritual no
Templo. O velho sacerdote chorava de emoção ao lhe ser
narrado o que acabara de suceder. O coração parecia
explodir no peito, sob a pressão emocional. Sua família
estava sendo cumulada de bênçãos pelo Senhor Deus e, o
mais importante, chegara o tempo em que as profecias
teriam cumprimento. O Messias estava vindo, sentia ele,
e a parenta de sua mulher teria a glória de carregá-lo no
ventre, provendo-lhe o corpo físico indispensável para
sua gloriosa missão.

43 Lc 1, 46-55.

{ {
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Quando o amor veio à terra

Foram quase três meses de grande enlevo espiritual.


Todos os dias, o sacerdote reunia os moradores da casa e
vizinhos para cultuar o Senhor. Cantavam hinos, liam
salmos e passagens de Isaías, apontados por ele, que os
circunstantes interpretavam profundamente inspirados,
pois refletiam o pensamento dos Espíritos Iluminados que
os mantinham sob guarda constante. Quase sempre
alguém da assembléia começava a profetizar, isto é,
transmitia mensagens mediúnicas, através da psicofonia,
arrancando lágrimas dos presentes.
Foi, portanto, com grande tristeza que Maria se
despediu de Zacarias e Isabel para voltar à sua terra quando
Cleofas a foi buscar. Sentiria falta daquelas reuniões, em
que a Misericórdia Divina se fazia presente, infundindo
paz e alegria, num ágape inefável de espiritualidade. Sentia-
se forte para enfrentar todos os obstáculos que viriam;
todavia, não podia deixar de sentir um aperto no coração
ante a perspectiva da revelação de sua gravidez, tanto ao
noivo quanto à parentela de Nazaré. Deus, porém, haverá
de prover tudo, pensava ela, enquanto a caravana seguia
preguiçosamente rumo ao norte pelo Caminho do Mar.
Cerca de cinco meses depois da partida de Maria,
Isabel teve a criança. A casa de Zacarias era só alegria.
Amigos e parentes se regozijavam com aquela manifes-
tação da Misericórdia Divina. O velho sacerdote, contudo,
permanecia sem conseguir falar, o que era complicado
pela surdez que o acompanhava há algum tempo. Mas,
no oitavo dia, foram circuncisar o menino. Queriam dar-
lhe o nome de seu pai, Zacarias, mas a mãe, tomando a
palavra, disse:
Não, ele vai se chamar João. Replicaram-lhe: Em tua
parentela não há ninguém que tenha esse nome! Por
meio de sinais, perguntavam ao pai como queria que

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Djalma Argollo

se chamasse. Pedindo uma tabuinha, ele escreveu: Seu


nome é João; e todos ficaram admirados 44.

Nesse momento, para espanto e alegria de todos,


voltou-lhe a voz. Seus louvores a Deus ecoavam pela casa.
De repente, sua expressão se transformou. Parecia que
uma luz transcendente o envolvera, iluminando-lhe o
semblante. Um Espírito de alta hierarquia, dominando-
lhe o centro da fala, transmitiu uma mensagem psicofônica
que até hoje nos emociona pelo seu conteúdo de profunda
espiritualidade:

Bendito seja o Senhor Deus de Israel,


porque visitou e redimiu o seu povo,
e suscitou-nos uma força de salvação
na casa de Davi, seu servo,
como prometera, desde tempos remotos,
pela boca de seus santos profetas,
salvação que nos liberta dos nossos inimigos
e da mão de todos os que nos odeiam;
para fazer misericórdia com nossos pais,
lembrado de sua aliança sagrada,
do juramento que fez ao nosso pai Abraão,
de nos conceder que - sem temor,
libertos da mão dos nossos inimigos, -
nós o sirvamos com santidade e justiça,
em sua presença, todos os dias.
E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo;
pois irás à frente do Senhor,
para preparar-lhe os caminhos,
para transmitir ao seu povo o
conhecimento da libertação,
pela remissão de seus erros.
Louvores ao misericordioso coração do nosso Deus,
pelo qual nos visita o Astro das alturas,
para iluminar os que jazem nas trevas

44 Lc 1, 59-63.

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Quando o amor veio à terra

e na sombra da morte,
para guiar nossos passos
no caminho da paz 45.

Um poema mediúnico dos mais belos da literatura


cristã, guardado com carinho pela memória dos que o
ouviram e que chegou até o Evangelista Lucas, que o
registrou para toda a posteridade. Nele encontramos um
resumo notável dos acontecimentos que marcaram o
advento da Nova Era, em que são postas de forma clara,
em rápidas sentenças, as missões de Jesus e daquele que
seria conhecido mais tarde como o Batista. Repare-se que
Jesus não é apresentado como Filho de Deus, ou o próprio
Deus, mas como um Astro que desce das alturas para
iluminar as trevas de nossa inferioridade. E, sem dúvida,
sua luz o credencia a tal analogia, pois irradia-se até hoje
sobre nós, guiando-nos em direção aos páramos da
inefável perfeição.
João, por sua parte, é citado como um preparador
de caminhos, um profeta a reviver a tradição de médiuns
inspirados e lutadores que, há mais de quatrocentos anos,
haviam desaparecido das terras da Palestina. Espírito fiel
aos desígnios superiores, soube viver essa missão grandio-
sa, ele que já era tarimbado missionário, como o demons-
trara no passado, quando, reencarnado sob o nome de
Elias, dera exemplos suficientes de perseverança e fé.

45 Lc 1, 67-79.

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Quando o amor veio à terra

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Momento Difícil 46
Maria chegou a Nazaré uma semana antes do
dia marcado para a consolidação dos laços esponsalícios
com José. Todos a receberam com as naturais efusões de
júbilo, após o período de ausência. José, dentre todos, era
o mais alegre, pois o seu afeto pela Rosa Mística era real
e profundo.
Naquela noite, a pedido de Maria, os dois saíram a
conversar, sentando-se em algumas pedras que ficavam à
margem do monte em que a cidade se situava, faceando
uma queda abrupta, de onde, um dia, os nazarenos
buscariam despencar Jesus por lhes ter revelado ser o
Messias, de acordo com os textos do profeta Isaías47.
O coração da jovem batia um tanto descompassado,
apesar de, nas circunstâncias, manter uma tranqüilidade
inusitada. Desde a volta de Aim Karim, vivera pensando
naquele momento. Não podia imaginar como seria a
reação do noivo ao tomar conhecimento da sua gravidez;
não obstante, seria impossível retardar o assunto, pois o
ventre começava a dilatar. Em Israel, esse era um assunto
profundamente grave, e a lei previa pena de morte por
apedrejamento para a mulher infiel. Ela, contudo, trazia a
consciência em paz pela realidade de sua inocência. A
46 Sobre o conteúdo deste capítulo, ver nota 31.
47 Ver Lc 4, 14-30.

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Djalma Argollo

criança que se desenvolvia no seu ventre fora gerada pela


vontade de Deus, conforme lhe dissera o Enviado Celeste.
– Maria, querida de minh’alma, desde que voltaste
da casa de Isabel e Zacarias tens estado pensativa e
preocupada. Aconteceu alguma coisa enquanto estavas
com eles? Penso que a notícia da gravidez dela, que sofria
a marca da esterilidade, deveria ser motivo de júbilo...
– José, meu amado, não aconteceu nada em casa de
Isabel. Pelo menos nada de mau. Foram dias maravilhosos
como lhe contei. As bênçãos de Deus se multiplicaram
fartas. Todas as noites, a palavra do Senhor se fazia ouvir
por diversas bocas, anunciando os dias das promessas
realizadas.
– Contudo, tenho verificado que estás diferente...
preocupada...
– De fato, guardo uma certa inquietação desde que
alguns fatos aconteceram...
– Que fatos foram esses, capazes de abalar tua
natural tranqüilidade? Partilha-os comigo, para que juntos
possamos entendê-los e, se for o caso, resolvê-los.
– Na verdade, eles dependem muito de ti.
– Estás me deixando preocupado e ansioso. Abre o
teu coração logo.
– Bem, tudo começou no dia em que foste à casa de
Efrém, em Caná, para consertar o eirado de sua casa...
E Maria contou ao noivo, detalhadamente, tudo o
que lhe ocorrera. Enquanto ela o fazia, uma entidade
espiritual, de indescritível luminosidade, envolvia o casal.
Sob sua influência, José escutava o relato, cheio de
assombro, mas sem qualquer arroubo de amor-próprio
ferido.
Quando Maria terminou, José permaneceu silencio-
so. O assunto era por demais grave. Sentia, no entanto,

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Quando o amor veio à terra

que a noiva falava a verdade. Seus olhos castanhos,


límpidos, refletiam-lhe a pureza de sentimentos. Não podia
deixar de acreditar em sua palavra, mas um sem número
de considerações percorriam sua mente.
Maria, ansiosa, indagou:
– O que me dizes?
– Estou muito perplexo para poder emitir qualquer
juízo no momento. Contudo, tenho profunda confiança
na tua honestidade. Sei que és incapaz de mentir em
qualquer circunstância, mas preciso pensar. Concede-me
até amanhã para que te possa expressar minha posição
diante dos fatos.
Maria respeitou a atitude do seu amado, e os dois
voltaram. Tenso, José se despediu à entrada da casa de
Maria, rumando cismarento para a sua.
O carpinteiro ainda deambulou, sem destino certo,
pela estrada que descia em direção ao lago, imerso em
cogitações difíceis. Como entender a ocorrência? A noiva,
que sabia honesta e pura, comunicava-lhe uma gravidez
de origem transcendente. Acreditava que para Deus tudo
era possível; entretanto, nunca se ouvira tal coisa na
história de Israel: um filho gerado sem a intervenção
masculina! Se essa história se divulgasse, ele seria alvo
da chacota geral. Maria, por sua vez, ficaria exposta às
calúnias, bem como vulnerável a um processo legal,
culminando em pena de morte por apedrejamento. Ele,
entretanto, não podia assumir a paternidade de um filho
que não gerara, mas repudiar Maria era condená-la à
execração pública. Quem sabe, o melhor talvez fosse
abandoná-la sem qualquer explicação. Poderia fugir para
bem longe. Tinha uns parentes no Egito, iria para lá sem
comunicar a ninguém. Deixaria com ela uma carta de
repúdio sem qualquer explicação. Naturalmente, iria ser

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Djalma Argollo

malquisto pela opinião geral e nunca mais poderia voltar


à Galiléia. Não importava. Estava diante de uma situação
difícil. Cria na sinceridade de Maria, mas não recebera
qualquer aviso de Deus nesse sentido; logo, deveria estar
excluído dos planos do Senhor. O melhor mesmo era se
afastar para não interferir de forma negativa nas delibera-
ções de Iahweh.
Tranqüilizado pela resolução, foi para casa, pois
sentia uma imensa necessidade de dormir. Mal se deitou,
adormeceu. Era, no entanto, um sono diferente. Sim, só
podia ser sonho. Via-se de pé junto ao leito, onde uma
sua cópia estava deitada. Aproximou-se e verificou ser o
seu corpo. O carpinteiro não podia saber que estava
vivendo um fenômeno que os parapsicólogos chamam de
OBE (Out of Body Experiency48) e que o Espiritismo
denomina de desdobramento. Repentinamente, percebeu
que não estava sozinho. Ao seu lado, uma entidade
espiritual de beleza singular, irradiando luz de matiz
azulado com cintilações safirinas, sorria-lhe, envolvendo-
o numa onda de imensa simpatia.
A paz que lhe invadia o íntimo evitou que sentisse
medo. Indagava-se quem seria o ser que ali estava. Antes
que pudesse formular a pergunta de modo explícito,
escutou, não pelos ouvidos, pois a entidade espiritual não
mexeu os lábios. A voz lhe chegava diretamente ao cérebro:
José, filho de Davi, não receies receber Maria, tua
esposa, porque o que nela foi gerado é do Espírito
Santo (Comunidade de Espíritos Puros, responsável
pela Terra). Ela dará à luz um filho, no qual porás o
nome de Jesus, pois ele haverá de salvar teu povo dos
vossos erros (indicar como evoluir espiritualmente).49

48 Experiência fora do corpo.


49 Mt 1, 20-21.

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Quando o amor veio à terra

Era a elucidação de que necessitava. Compreendia,


agora, que Deus estava agindo para realizar as esperanças
do seu povo, conforme promessas antigas. E ele, José,
fora eleito para ser o guardião do Enviado em sua trajetória
inicial pela existência.
Lágrimas de alegria lhe aljofravam a face, escorren-
do pela barba em que pontilhavam alguns fios de prata50.
O Espírito Superior lhe falou ainda por algum tempo, mas
sua mente consciente só pôde reter a primeira parte da
conversação.
O carpinteiro acordou, então, com o coração pulsan-
do de imensa alegria. O Senhor não o abandonara, e o
fizera saber da sua vontade. Os fatos contados por Maria
tinham sido plenamente confirmados. A criança que estava
se desenvolvendo no ventre de sua esposa teria uma
missão superior a desenvolver. Quem sabe não seria um
profeta? Um novo Elias, verberando contra as autoridades
dissolutas e recolocando o Povo de Deus no caminho da
virtude e do temor a Deus?
Aguardou ansioso o nascer do sol, que o encontrou
de pé no mesmo local onde conversara com Maria na noite
anterior. Seus olhos se enchiam de lágrimas à medida que
o crepúsculo da manhã prenunciava a aurora.
Quando os primeiros raios do sol nascente desenha-
ram seus arabescos de ouro nas nuvens que estacionavam
no firmamento, encaminhou-se em direção à casa de
Maria. Ela estava à porta, cântaro no ombro, bela como
nunca. Viu com ansiedade o noivo se aproximar. Que reso-
lução tomara? O rosto sorridente do amado, entretanto,
transmitiu-lhe um alívio imediato, e seu coração pulsou

50 O corpo espiritual, ou perispírito, é uma cópia fiel do corpo físico, conservando-


lhe os detalhes específicos.

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Djalma Argollo

de alegria quando ele, osculando-lhe de leve a testa, disse,


olhando-a nos olhos puros e lúcidos: Eu te amo! E o
Evangelista resumiu, na sua forma característica, o episó-
dio, dizendo:

José, havendo despertado do sono, fez como o anjo


(Espírito Superior) lhe ordenara, e recebeu sua mu-
lher. E não a conheceu (não teve relações sexuais com
ela) até que desse à luz o filho, ao qual pôs o nome de
Jesus.51

51 Mt 1, 24.

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Quando o amor veio à terra

{ 5

“Nasceu-vos
Hoje um Salvador” 52

Lucas entrou na cidade de Belém por volta da


terceira hora.
Seu coração batia um tanto descompassado por
causa da emoção que dele se assenhoreara desde o
momento em que, à distância, avistara o casario da cidade.
Ali nascera Jesus, o Mestre que lhe polarizava os ideais.
Mas não era apenas uma viagem de turismo sentimental.
Era parte essencial do seu projeto de escrever duas obras:
uma, sobre a vida e os ensinos de Jesus, e outra, sobre o
movimento cristão.
A palavra cristão lhe lembrou o fato de que ela fôra
empregada por ele, pela primeira vez, para denominar o
seguidor de Jesus. Fôra em Antioquia da Selêucida,
recordava-se claramente; estavam reunidos após o culto,
conversando sobre o Mestre, quando um dos irmãos
dissera: Nós, os seguidores do Nome..., e ele, imediata-
mente, num arroubo de inspiração, propusera: Irmãos! Nós
que amamos e seguimos a Jesus, deveríamos nos fazer
conhecidos por uma denominação específica. Ante o olhar

52 Lc 2, 11.

{ {
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Djalma Argollo

indagador dos demais, continuara: Seguidores do Nome é


uma forma muito vaga de sermos conhecidos. Existem,
no mundo, seguidores de nomes variados, também de
nomes que caracterizam a perversão, o crime, o ódio, o
roubo etc.. Jesus nos disse que deveríamos ser como uma
cidade sobre um monte, que não pode ser escondida53, e
que deixássemos brilhar nossa Luz diante dos homens
para que nossas boas obras pudessem ser vistas e,
conseqüentemente, Deus fosse louvado pelos que nos
virem54. Penso que o Senhor queria dizer com isso que
deveríamos nos expor aos olhos de todos, e nunca ficarmos
escondidos por qualquer forma. O próprio Jesus, desde o
momento em que começou a viver como um Rabi, nunca
deixou o foco da atenção geral; foi, porque queria ser,
visto e ouvido nas ruas e praças, nas cidades e nos campos,
por poucos e por multidões. Para que sejamos identifi-
cados plenamente como seguidores da Boa Nova, sugiro
que usemos, como um galardão, o apelativo de Kristianós,
que deriva do grego Kristós, termo que, quase todos aqui
sabem, é em hebraico Maschia, cujo significado é Ungido,
pois que Jesus foi, por Deus, ungido para trazer a salvação
para todos os povos. Salvação dos enganos em que vivem
mergulhados; salvação da iniqüidade e do erro. Todos
haviam ficado entusiasmados e, desde aquele momento,
passaram a se tratar pelo nome de cristãos. Em pouco
tempo, a Comunidade dos discípulos de Jesus, em
Antioquia, era conhecida como Comunidade Cristã por
todos na cidade e, gradativamente, o novo nome fôra se
espalhando, ganhando foros de universalidade.
Como estava alcançando a praça central da cidade, o
médico procurou se informar sobre a residência de seu

53 Mt 5, 14.
54 Mt 5, 16.

{ {
56

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Quando o amor veio à terra

colega de profissão e velho amigo Heráclides de Tebas, da


qual logo lhe deram a direção. Em alguns minutos, estava
frente a frente com o médico grego, que o recebeu com
imensa alegria, convidando-o para o interior da casa, que,
apesar de não ser suntuosa, era ampla e muito bem cuidada.
Depois de um banho refrescante e de uma boa
alimentação servida por dois escravos núbios, puseram-
se a conversar no átrio, colocando em dia alguns anos de
separação:
– Lucannus, amigo, Chronos55 parece gostar de ti,
pois tens conservado uma perpétua juventude.
– Continuas a mesma alma alegre e generosa,
sempre pronta a encontrar a frase certa, capaz de levantar
o ânimo e despertar o júbilo nos corações. Mas a verdade
é que o tempo está cumprindo pacientemente a sua tarefa,
como posso ver na superfície polida dos espelhos de prata.
– Apesar de tudo, manténs uma forma invejável.
Eu, todavia, não posso dizer o mesmo de mim. Desde a
morte da querida Artemísia, parece-me ter envelhecido
largos anos.
Uma nuvem de tristeza pareceu se abater sobre a
face do anfitrião.
– Soube da sua morte em Trôade e te escrevi uma
carta para que soubesses que tens um amigo com quem
contar, sempre.
– Recebi tua missiva, que me foi de muito alento. A
amizade é um dom inefável dos deuses... Ora, eu aqui
falando em deuses, e tu, que és crente na existência de
um só deus, deves estar escandalizado.
– De forma nenhuma. Respeito tua crença, como
quero ver a minha respeitada.

55 Deus do tempo, na mitologia grega.

{ {
57

Quando o amor veio à terra (A).pmd 57 25/9/2007, 11:53


Djalma Argollo

– Sempre apreciei o teu liberalismo. Felizmente não


és intransigente e fanático como os outros judeus.
– É que, além de judeu, sou cristão, e os cristãos
aprendem a respeitar os pontos de vista alheios, muito
embora sem concordar com eles, muitas vezes.
– Será interessante conversarmos sobre esse
conceito. Mas, diz-me, o que vem a ser cristão?
– Cristão, caro amigo, é quem segue Jesus de
Nazaré, que é o Messias, ou Cristo.
– Ah! Entendo. Segues, então, os ensinos daquele
galileu que Pilatos mandou crucificar, às instâncias dos
sacerdotes e do povo, em Jerusalém...
– Isso mesmo, amigo.
– Não estava em Jerusalém quando aconteceu, mas
sei que Pilatos passou maus momentos com a populaça
amotinada, e a condenação saiu sob pressão do povo,
insuflado pelos líderes do Sinédrio.
– E, diga-se de passagem, condenado injustamente,
pois não se conseguiu encontrar nenhum crime de que
fosse culpado.
– Muito ouvi a respeito dele e sinto uma grande
curiosidade em saber melhor sobre seus ensinos e práticas.
Dizem que curava todo tipo de doença; é verdade,
Lucannus?
– Sem qualquer dúvida.
– Confesso que me é difícil, como médico, acreditar.
Mas como sei que és um médico criterioso, pois acompa-
nhei teus estudos, quando sempre foste o melhor, como
igualmente conheço teu racionalismo, não me posicionarei
decididamente contra, mas manterei um discreto
cepticismo.
– Tens toda a razão de reagires dessa forma. Eu
também o faria se não tivesse presenciado, com meus

{ {
58

Quando o amor veio à terra (A).pmd 58 25/9/2007, 11:53


Quando o amor veio à terra

próprios olhos, curas extraordinárias realizadas pelos


discípulos do Rabi. Ora, se os seus seguidores são capazes
de curar aleijados, cegos, surdos-mudos, de nascença,
além de outras enfermidades, logo, tudo o que se conta
sobre o Mestre só pode ser verdade. Além do mais, tive
oportunidade de entrevistar vários que foram por ele
curados, conferindo suas histórias com vizinhos e paren-
tes, os quais as confirmaram completamente.
– Meu caro Lucannus. Sei que és incapaz de uma
mentira, e tais fatos são deveras extraordinários. Eu,
todavia, estou muito velho e descrente para me preocupar
com as coisas religiosas. Diz-me: além de ver um velho
amigo, o que mais te trouxe por essas bandas?
– É que estou escrevendo um livro e venho coletan-
do informações.
– Sabia que eras pintor, mas escritor não. Isso me
alegra muito, pois se escreveres tão bem como pintas, a
nossa cultura se embelezará. Estás escrevendo sobre o
quê?
– Sobre Jesus de Nazaré e o movimento cristão,
que está vicejando em todo o mundo.
– Ah! é uma apologia sobre esse Nazareno?
– Não. É um tratado em dois livros. O primeiro,
contendo os ensinamentos e feitos de Jesus até sua morte
e ressurreição. E o segundo, sobre tudo o que vem
acontecendo desde que ele se despediu dos seus discípulos,
mais de quarenta dias após ter morrido na cruz, dando-
lhes a tarefa de levar sua mensagem a todos os povos da
Terra.
– Ressurreição! Não me digas que, médico como
és, acreditas que um defunto possa retornar à vida.
– Sabes, muito bem, que existem casos de pessoas
mortas durante algum tempo que voltaram a viver.

{ {
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Djalma Argollo

– Sem dúvida. Mas sabe-se que isto é devido a um


ataque que paralisa os músculos, provocando a aparência
de morte. Todavia, a respiração, apesar de quase imper-
ceptível, continua a operar, e as batidas do coração sofrem
um grande espaçamento; mas o sangue, apesar de lenta-
mente, continua a correr pelas veias. Se foi esse o caso do
teu Jesus, tudo bem. Mas ele não foi crucificado?
– Justamente, e os soldados se certificaram de que
estava bem morto, antes de liberar o seu corpo. Chegaram
a lhe trespassar o coração com a ponta de uma lança,
manando da ferida sangue e água. Mas, apesar de tudo,
quase dois dias depois, ele apareceu aos seus discípulos
numa sala fechada em Jerusalém, conversando e tomando
alimento na frente de todos.
– É uma história inacreditável...
– Todavia verídica, pois atestada por inúmeras
testemunhas. Na Galiléia, pude conversar com mais de
cem pessoas que o viram, juntamente com mais quatro-
centas, em plena luz do dia, escutando suas palavras, e,
depois, elevar-se no ar e desaparecer.
– Meu amigo, não quero polemizar contigo. Como
te disse, estou cansado dos problemas religiosos. Se é que
existem deuses, como acredita a quase totalidade dos seres
humanos, ou um deus, como afirmam, como exceção, os
judeus, pouco se me dá. Quero é viver em paz os últimos
dias de minha vida.
– É pena, amigo, pois terias muito o que aprender
com os ensinos de Jesus...
– Mas, sem querer ferir-te os sentimentos, não tenho
o menor interesse. Entretanto, estou pronto a te ajudar a
coletar os depoimentos que necessitas para teu livro.
– Ótimo. Talvez não saibas, mas Jesus nasceu aqui
em Belém, quando ainda reinava Herodes. E estou

{ {
60

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Quando o amor veio à terra

buscando ver se encontro algumas testemunhas da época,


bem como o local do seu nascimento, uma gruta que servia
de estábulo conforme me contou a própria mãe do Senhor
quando a encontrei com meu irmão Paulo, em Éfeso.
– Sei quem pode te auxiliar nessas buscas: o velho
Palu, com seus oitenta e cinco anos de vida, todos vividos
aqui, donde nunca se afastou. Mandarei chamá-lo.
– Não, prefiro que mandes alguém me levar até ele,
pois quero que se sinta à vontade. Todo homem fica
inseguro quando fora do seu ambiente.
– Certo. Levar-te-ei, então, pois preciso fazer algum
exercício, e as recordações do velho Palu serão interessantes
e quebrarão um pouco a monotonia em que vivo mer-
gulhado.
Saíram, acompanhados de alguns escravos de Herá-
clides, em direção às casas mais pobres, localizadas na
fímbria da cidade, perto do campo de Oliveiras.
A casa de Palu, o pastor de ovelhas, era simples e de
poucos cômodos. À entrada, sentado num banco rústico,
seu dono contemplava o pôr-do-sol. As cãs e barbas brancas
diziam do muito que havia vivido, bem como as rugas que
se lhe estampavam na face cor de papiro envelhecido.
Surpreso com a presença de Heráclides, o médico a
quem já consultara umas duas vezes por causa da tosse
renitente que o acompanhava, levantou-se a custo,
saudando os recém-chegados:
– Que a Paz esteja convosco!
Lucas teve um gesto de surpresa, ante a saudação
cristã, respondendo:
– E permaneçam tu e tua casa na Paz do Caminho!
Dessa vez foi Palu quem denotou surpresa, procu-
rando disfarçar com um gesto de agradecimento, e
dirigindo-se a Heráclides:

{ {
61

Quando o amor veio à terra (A).pmd 61 25/9/2007, 11:53


Djalma Argollo

– O que trás o ilustre médico à minha humilde


morada?
– O prazer de revê-lo, bem como para atender a
este amigo e colega, Lucannus, que procura certas
informações dos tempos da tua juventude.
– Terei imenso prazer em dispor de minha humilde
memória, que aliás só possui informações bastante restri-
tas, pois nunca saí de Belém nem para ir até Jerusalém,
que fica tão perto. Este foi o meu mundo, desde que nasci
até o momento em que estou falando convosco.
– É justamente de acontecimentos que tiveram lugar
aqui que estou coletando informações.
Agora já estavam os dois sentados em bancos
rústicos de madeira, que o dono da casa mandara vir,
enquanto os servos se retiravam a alguma distância, longe
do alcance da conversa que se desenrolava.
Sem mais delongas, Lucas foi direto ao assunto:
– Devo te informar que sou seguidor de Jesus de
Nazaré, o Messias prometido pelas escrituras.
Falou e ficou esperando a reação do velho, que foi
de profunda calma.
– Já havia notado, pela tua saudação. Apesar de
nunca ter me locomovido para fora dos limites desta
cidade, estou informado de tudo o que aconteceu com o
Enviado de Deus.
Dito isso, retirou, das dobras da túnica, um rolo de
papiro no formato tradicional das Escrituras Sagradas,
lidas nas Sinagogas, estendendo-o a Lucas, que o recebeu,
abrindo-o com cuidado ante o olhar curioso de Heráclides.
Viu que se tratava de um escrito em aramaico e,
com surpresa, leu a coletânea de ensinamentos de Jesus,
escrita por Mateus, da qual ouvira falar, mas que ainda
não havia conseguido copiar. Isto porque Tiago e seus

{ {
62

Quando o amor veio à terra (A).pmd 62 25/9/2007, 11:53


Quando o amor veio à terra

colaboradores a guardavam a sete chaves, só permitindo


sua reprodução pelos adeptos judaicos do Cristo estrita-
mente vinculados à Sinagoga.
– São as sentenças do Senhor devidamente anotadas
por Mateus! É um documento raro, pois está em aramaico.
Permitir-me-ias copiá-lo?
– Naturalmente, desde que mo devolvas; é um
tesouro que desejo legar ao meu neto.
No mesmo instante, Heráclides interveio, dizendo:
– Lucannus, colocarei à tua disposição dois servos
meus, peritos na arte de escrever. Começarão hoje mesmo
e, pelo tamanho do rolo, terminarão amanhã à noite, ou
depois de amanhã até a hora sexta.
– Ficar-te-ei eternamente grato. Agora, porém,
vamos ao que desejo saber. Foi aqui que nasceu o nosso
Amado Mestre. Gostaria de saber se tens conhecimento
das coisas que então se passaram.
Os olhos do ancião se encheram de lágrimas, que
começaram a lhe escorrer pela face, molhando-lhe a barba
grisalha.
– Naturalmente que sei, pois fui testemunha dos
fatos extraordinários que então aconteceram.
Lucas se levantou surpreso:
– Glória a Deus! Conta-me, então, tudo o que
ocorreu sem faltar nada.
– Satisfarei o teu desejo com muita alegria; sempre
me faz um enorme bem recordar aquele episódio sublime.
E, com o olhar se perdendo por detrás do horizonte
das recordações, o velho pastor contou, para o embevecido
médico, todos os acontecimentos daquela noite de bênçãos
inesquecíveis. Depois, visitaram o local onde os Espíritos
Sublimados haviam aparecido com seus cânticos transcen-
dentes. Em seguida, foram à gruta, onde Lucas se deixou

{ {
63

Quando o amor veio à terra (A).pmd 63 25/9/2007, 11:53


Djalma Argollo

envolver pelas vibrações que ainda impregnavam o


ambiente.
Mais tarde, Lucas, no quarto que Heráclides
colocara à sua disposição, escreveu com mão trêmula de
emoção:

Existiam uns pastores que, naquela região, passavam


a noite em claro, guardando seus rebanhos. Subita-
mente, apareceu diante deles um mensageiro do Se-
nhor, e a luz de Deus os circundou de luminosidade, e
eles foram tomados de grande medo. Mas o mensa-
geiro lhes disse: Não temais, porque eis que vos anun-
cio uma boa nova, que será para todo o povo: nasceu
hoje, para vós, o Salvador, que é o Ungido e Senhor,
na cidade de Davi. E isto vos será como sinal: achareis
a criança envolta em faixas e deitado numa manje-
doura. E logo juntou-se ao mensageiro uma grande
multidão do exército celeste, louvando a Deus e di-
zendo:
Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de
Sua eleição.
Depois que os mensageiros retornaram para o céu,
disseram-se os pastores: Vamos, pois, a Belém e veja-
mos este acontecimento que o Senhor nos deu a co-
nhecer.
Foram a toda pressa e encontraram Maria, José e o
menino, deitado na manjedoura. Tendo visto tudo,
contaram o que lhes fora dito a respeito do menino. E
todos que ouviam se maravilhavam do que contavam
os pastores. Maria guardava com cuidado todas essas
coisas, meditando-as em seu coração.
Voltaram, os pastores, louvando e glorificando a Deus
por tudo o que acabavam de ver e ouvir, assim como
lhes fora dito 56.

56 Lc 2, 8-20.

{ {
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Quando o amor veio à terra

{ 6
A Circuncisão
Naquele dia, o Templo estava praticamente vazio.
Poucas pessoas conversavam no pórtico de Salomão e
somente dois sacrifícios tinham sido solicitados aos sacer-
dotes; mesmo assim só se realizariam no fim da tarde.
Quando José e Maria chegaram, Jesus dormia
tranqüilamente nos braços dela. Atraíram poucos olhares
curiosos, até mesmo porque o casal de pombas que adqui-
riram no pórtico denunciava que não eram pessoas ricas.
Quando atravessavam o átrio dos gentios em direção
ao local onde se praticava a circuncisão, foram abordados
por um homem idoso, cujos olhos desfocados como se
contemplassem paisagens ou acontecimentos invisíveis
apresentavam o estado alterado de consciência que carac-
teriza o transe mediúnico. Estendendo as mãos, tomou a
criança dos braços da mãe, que, surpresa, não esboçou
nenhuma reação.
Com lágrimas a escorrer pela face emurchecida pelos
anos, ele levantou os olhos para o alto, orando:
Agora, Senhor, despede em paz o teu servo, segundo
a tua palavra, pois os meus olhos viram a tua salva-
ção, a qual tu preparaste diante da face de todos os
povos: luz para revelação aos gentios e para a glória
do teu povo de Israel.57

57 Lc 2, 29-32.

{ {
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Djalma Argollo

Maria e José estavam sem entender o que se passava.


Acontece que Simeão, médium notável desde a mais tenra
infância, havia recebido, ainda jovem, uma revelação espi-
ritual de que não desencarnaria sem ver o Messias. Naquele
dia, tivera um desdobramento espiritual, em que conversara
com seu mentor, que ele sabia ter sido, numa encarnação
passada, o profeta Samuel, que ungira os dois primeiros
reis dos Hebreus, Saul e Davi, sendo Saul protagonista da
discutida manifestação mediúnica em Endor.
Séculos depois, reuniam-se outra vez, o primeiro
rei, completamente redimido dos seus erros de séculos
atrás – depois de muitas vidas de expiações e dedicação
ao bem –, e o seu ungidor. O profeta desencarnado lhe
disse, na oportunidade:
– Simeão, o dia de hoje será o da tua libertação.
O ancião compreendeu imediatamente que ele
falava de sua morte e replicou:
– Mas não me disseste, durante a visão no dia do
meu Bar-Mitzvá, que eu só voltaria ao seio de Abraão
depois de tocar no Messias com minhas próprias mãos?
Isso não aconteceu ainda...
– Mas acontecerá horas antes de te despedires desta
vida. Portanto, prepara-te.
– Estou pronto como fiel servidor do Senhor, que
sabes que sempre fui.
Nesse momento, acordou sentindo uma profunda
alegria no coração. Ele teria o privilégio de ver o Salvador
de Israel. Por isso, levantou-se fazendo uma esmerada
purificação do corpo com as abluções prescritas na Lei.
Não tomou qualquer alimento e, abrindo a Tôrah de
joelhos, seus olhos caíram sobre a seguinte passagem:
O Senhor, teu Deus, suscitará do meio de ti, dentre
teus irmãos, um profeta semelhante a mim (Moisés);

{ {
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Quando o amor veio à terra

a ele ouvirás. Conforme tudo o que pediste ao Senhor


teu Deus em Horeb, no dia da assembléia, dizendo:
Não ouvirei mais a voz do Senhor, meu Deus, nem
mais verei este grande fogo para que não morra. En-
tão o Senhor me disse: Falaram bem naquilo que dis-
seram. Do meio de seus irmãos, suscitar-lhe-ei um
profeta semelhante a ti, porei as minhas palavras na
sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu ordenar. E de
qualquer que não ouvir as minhas palavras, que ele
falar em meu nome, eu exigirei contas 58.

Soluços espoucaram no peito de Simeão, que via


ali confirmada a visão que tivera no sonho. Assim, vibran-
do da mais elevada emoção, lançou sua mente aos em-
píreos numa prece que era só de louvor e gratidão. Quanto
tempo permaneceu nesse enlevo, ele não saberia respon-
der. Voltou a si quando escutou, pela clariaudiência, a voz
de Samuel, que lhe dizia: Está na hora. Vai ao templo.
Ali, atravessando o átrio das gentes, encontrarás um casal
com uma criança nascida de oito dias, trazida para a
circuncisão e cerimônia de purificação da mãe. Compra-
rão, na entrada, um casal de pombos, pois não são ricos.
Eu estarei contigo por todo o tempo.
Simeão, entregando o menino de volta à sua mãe,
levantou os braços e suplicou as bênçãos de Deus para a
família. Depois, voltando-se para Maria, olhou-a profun-
damente nos olhos, dizendo:

Eis que este é posto para queda e para levantamento


de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição.
Sim, e uma espada trespassará a tua própria alma, para
que se manifestem os pensamentos de muitos cora-
ções. 59

58 Dt 18, 15-19.
59 Lc 2, 34-35.

{ {
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Djalma Argollo

Os pais estavam aturdidos com o que se passava, e,


em volta dos quatro, formara-se um pequeno grupo de
curiosos, atraídos pelas declarações de Simeão em voz
alta. Nem bem se calara o ancião, uma voz de mulher se
fez ouvir: Glórias sejam dadas ao Deus de Abraão, pela
alegria que dá ao seu povo! O Salvador de Israel está entre
nós. Este menino haverá de estender a misericórdia divina
a todos os povos.
Os circunstantes, freqüentadores habituais do
Templo, reconheceram a mulher que se aproximou de
Maria e José como

Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era avançada


em idade, tendo vivido com o marido sete anos desde
a sua virgindade. E era viúva, de quase oitenta e qua-
tro anos. Não se afastava do Templo, servindo a Deus
dia e noite, em jejuns e orações. 60

Simeão, Ana e o pequeno cortejo de curiosos


seguiram o casal à cerimônia de circuncisão por entre
comentários discretos. Quando o prepúcio foi cortado, o
choro da criança encheu o recinto. Jesus acabara de entrar
para a Sagrada Aliança, feita por seus mensageiros com
Abraão há quase dois mil anos...

60 Lc 2, 36-37.

{ {
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Quando o amor veio à terra

{ 7
Entre os Doutores
Sob a lua cheia daquele mês de Nisã, José, sentado
no banco rústico, fitava o horizonte distante para os lados
do Genesaré, onde diminutos, fugazes, cambiantes e
esparsos pontos luminosos indicavam a localização de
moradias nos altos platôs da Gaulonítida. De dentro da
casa, ampla, mas simples, vinha aquela mistura de apelos,
gritos, risadas e correrias das crianças menores e, a interva-
los, a voz de Maria ralhando com um e com outro, bus-
cando acabar com a confusão doméstica que se formava
no instante em que era dada a ordem de irem todos para a
cama. Seus lábios esboçaram um sorriso de satisfação.
Deus o abençoara com uma prole numerosa e sadia, com
uma mulher bonita, virtuosa e trabalhadora. Nisso, a bela
voz do seu filho mais velho se fez ouvir, chamando a mãe
para lhe dar qualquer coisa.
Como se fora movida por um impulso mágico, sua
memória fê-lo recordar-se dos acontecimentos da viagem
que fizera, anos atrás, a Jerusalém, com sua mulher e seus
filhos para celebrar a Páscoa, como fazia todos os anos, e
comemorar o fato do seu primogênito ter se tornado um
Bar-Mitzvá 61. Ele, como qualquer pai judeu, ficara

61 Filho do preceito; era o rito de passagem hebraico quando a criança se tornava


adulto, responsável por seus atos diante da lei.

{ {
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Djalma Argollo

orgulhoso por ver que o seu Jesus estava se tornando um


homem, mas, naquela oportunidade, pregara-lhes um
grande susto. Quando pensava no assunto, sentia ainda,
se bem que muito amenizada, a aflição que lhe atormentara
durante as horas de angustiosa procura do filho querido.
Jerusalém, como sempre acontecia na época da
Páscoa, fervilhava de gente de todas as partes do mundo.
Parecia uma imensa Babel, onde se podiam ouvir os mais
diversos idiomas ou escutar o aramaico falado com os
sotaques mais variados possíveis. Por todas as ruas encon-
travam-se mercadores e comerciantes, mas os lugares onde
mais se concentravam eram no Templo e sua vizinhança
e por todo o Vale dos Queijeiros. As portas da cidade e a
região do Monte das Oliveiras serviam de acampamento
e de imensa feira livre, onde se vendiam e compravam as
mais diferentes, exóticas ou prosaicas mercadorias. Apesar
de acostumados a verem o mesmo espetáculo todos os
anos, ele sempre se deixava empolgar por aquele clima
de confusão e inquietação. Hospedaram-se, como de
costume, em casa de parentes no Monte Sião, parte nobre
da cidade.
Foram ao templo todos os dias da semana, obrigação
impreterível de qualquer judeu quando estava na Cidade
Santa. Cumpriram os rituais prescritos, participando dos
sacrifícios e orações com devoção.
Ele e Maria compraram vários objetos necessários
à vida cotidiana, que só tinham oportunidade de encontrar
ali ou quando, eventualmente, alguma caravana de
mercadores passava nas imediações de Nazaré.
A comemoração da Páscoa fora, como sempre, o
grande momento da viagem.
Após o pôr-do-sol, ou seja, às primeiras horas do
dia quinze de Nisã, como acontecia todos os anos, Jasub,

{ {
70

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Quando o amor veio à terra

o dono da casa, começara a celebração. No grande salão


do andar superior da residência, reuniam-se umas vinte
pessoas, sentadas em almofadas ou sobre o imenso tapete
persa, em volta da grande mesa.
Iniciando as festividades, foi servido o primeiro dos
quatro copos de vinho que marcavam as etapas do ritual,
preparado, segundo instruções tradicionais, com duas
partes de água e uma de vinho. Após o Qiddush62, foram
pronunciadas as duas bênçãos iniciais:
Louvado sejas, Javé nosso Deus, rei da Terra, que cri-
aste o fruto da vinha e Louvado sejas, Javé nosso Deus,
rei da Terra, que deste a Israel, teu servo, dias de festa
para alegria e comemoração. Louvado sejas, Javé, que
santificas Israel e os tempos.63

Fora então bebido o primeiro copo. Jasub, prosseguindo,


lavara as mãos e distribuíra as ervas amargas e o molho
especial com que eram comidas, os pães ázimos e as
verduras, pronunciando uma ação de graças e provando
os alimentos. Logo depois foi servido o cordeiro assado,
comprado no décimo dia de Nisã, que, de acordo com as
prescrições da Torah, tinha um ano de idade, macho, sem
defeito algum. Havia sido assado em fogo vivo, preso
por uma vara de romãzeira. Com o seu sangue, foram
aspergidos os umbrais e a verga da porta com um feixe de
hissopo, em recordação ao trágico dia em que o Senhor
destruíra os primogênitos egípcios, poupando os de Israel.
Antes de se comer o carneiro, fora servido o segundo
copo de vinho, e o dono da casa explicara o sentido da
celebração64. Emocionados, como em todos os anos,

62 Bênção do dia festivo e da primeira taça.


63 DANIEL-ROPS. Jesus no seu tempo. Porto-Portugal: Liv. Tavares Martins,
1950. p. 509.
64 Haggadah.

{ {
71

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Djalma Argollo

reviveram a epopéia do Êxodo, principalmente o dia tenso


e difícil da fuga das terras do Faraó, cantando, com todos,
a primeira parte do Hallel65. Beberam o segundo copo,
lavando as mãos e pronunciando uma oração de louvor a
Deus, passando a comer o cordeiro com ervas amargas e
pão fermentado, que embebiam num molho feito com
diversas frutas, o haroset66. Comido todo o animal, pois
nada podia sobrar para o dia seguinte, lavaram-se as mãos
e foi preparado o terceiro copo de vinho, o copo de ação
de graças por causa do agradecimento que se fazia a Deus.
Quando foi servido o quarto copo, cantaram a segunda
parte do Hallel67 numa expressão de esperança na vinda
do Messias e na restauração do Reino de Israel,
terminando assim a celebração.
Dois dias após a Páscoa, todos os componentes da
caravana se encontraram fora dos muros da cidade, em
frente à Porta de Damasco, alegres e felizes.
Com a chegada do último componente, o grupo
partiu em demanda aos seus lares na Galiléia. As crianças,
tanto seus filhos como os dos outros, dividiam-se em
bandos alegres a correrem em torno e por entre os grupos
de pessoas e animais. Caminharam toda a madrugada e
parte do dia, vencendo cerca de dez mil passos (em torno
de quinze quilômetros), até parar para descanso e almoço.
Nesse momento, quando se reuniram todos os seus filhos,
percebera, juntamente com Maria, a ausência de Jesus.
Era um fato inusitado, pois ele era sempre o que primeiro
se apresentava nessas horas, pronto para colaborar em
qualquer tarefa, sem exigências nem reclamações, sempre

65 Salmo 112.
66 O haroset era feito com figos, tâmaras, uvas passas, maçãs e amêndoas,
temperados com vinagre.
67 Salmos 113-117.

{ {
72

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Quando o amor veio à terra

alegre e contente, estimulando todos com palavras de


incentivo ou, com sua voz bela e cheia, cantando salmos
que harmonizavam o ambiente. A princípio, sem maiores
preocupações, mas com uma crescente aflição à medida
em que se frustrava a busca, procuraram-no por toda a
caravana, sem que ninguém o houvesse visto em momento
algum da viagem.
Deixando os outros meninos aos cuidados de
parentes para que os levassem a Nazaré, retornara com
Maria à casa de Jasub, esperando encontrá-lo ali. Nova
desilusão os aguardava; não havia sinal do filho, e nin-
guém lhe sabia o paradeiro.
Sentira o coração se estraçalhar de dor. Pela sua
mente aflita, passara a idéia terrível de que seu querido
primogênito poderia ter sido seqüestrado por mercadores
de escravos, o que era habitual, para ser vendido em outras
regiões do império. Orou, como nunca, ao Senhor, supli-
cando-lhe afastar de si e de sua família tamanha provação.
Enquanto Maria ficava em casa orando por entre
soluços de aflição, sendo confortada pelas mulheres da
casa e da vizinhança que buscavam envolvê-la em solida-
riedade e carinho, ele, Jasub e vários amigos percorriam
todos os cantos de Jerusalém e seus arredores, buscando
uma informação sobre o jovem.
Foram quase três dias de ansiedade e dor. Apareciam
informações que lhes acendiam a esperança, mas se
transformavam em desilusões que se multiplicavam numa
cascata interminável de ansiedade e frustração. Já
desiludido, tivera notícia, por um amigo de Jasub, que
um jovem com a descrição do seu Jesus fora visto nas
imediações da Escola do Templo. Em seu íntimo, sentira
uma forte certeza de que daquela vez o encontraria.
Tomara Maria e, com vários parentes e amigos, correra
ao lugar indicado, encontrando o filho amado.

{ {
73

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Djalma Argollo

Assentado no hemiciclo de estudantes, em volta de


vários Rabis, mantinha uma discussão religiosa com eles.
Durante algum tempo, assistiram, admirados, como
dialogava com os encanecidos mestres, com proposições
claras e lógicas, arrancando-lhes expressões de assombro.
Respondia-lhes as questões de forma pronta e irretorquí-
vel, apresentando argumentos simples, porém definitivos.
Quando lhes percebeu a presença, despediu-se dos
mestres e alunos com sua habitual gentileza e
simplicidade, indo-lhes ao encontro. Não chegara a dizer-
lhes nada, pois Maria se adiantara, num arroubo: “– Meu
filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e
eu, aflitos, procurávamos-te” 68.
Ao que ele, gentil, mas com firmeza, respondera:
“– Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu deveria
estar na casa de meu Pai?” 69
A resposta lhe causara um impacto. Jesus sempre
fora uma criança diferente das outras. Responsável,
atencioso, delicado, trabalhador, dedicava-se, desde a mais
tenra infância, aos assuntos religiosos com toda a aplica-
ção. Suas brincadeiras eram sempre puras e nunca preju-
diciais, preferindo estar sempre perto das pessoas que
mantinham conversações edificantes e em torno de Deus.
Nunca lhe havia surpreendido em mentiras ou gestos
menos dignos, de qualquer espécie. Sempre chamara o
Senhor de Pai, mostrando para com ele uma devoção sem
limites, que o deixava satisfeito, pois Deus era a razão de
ser do Povo de Israel. Naquele momento, José teve suas
reminiscências interrompidas pela visão da silhueta do
filho, que se recortava na noite estrelada, ao sair da casa e
se dirigir, como habitualmente o fazia, aos lugares mais
68 Lc 2, 48.
69 Lc 2, 49.

{ {
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Quando o amor veio à terra

altos do monte onde Nazaré repousava. Dali só retornaria


em plena madrugada.
– O que fazia?
Quando lhe pusera essa questão, ele, com um sorriso
terno, respondera:
– Converso com meu Pai Celeste!

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Quando o amor veio à terra

{ 8
A Despedida
A aurora surgia no horizonte pelos lados do Monte
Carmelo, fazendo esmaecer o brilho das estrelas na
promessa ridente de um novo dia primaveril naquele final
do mês de Adar.
Pelo Caminho do Mar, pelo Caminho Real, pelo
Caminho do Norte, pelo Caminho de Damasco e demais
estradas da Palestina, as caravanas já haviam recomeçado
seu andar lento, cujo ritmo era marcado pelo caminhar
dos animais carregados, na eterna faina de atender às
necessidades reais ou imaginárias dos seus usuários.
Nazaré, engastada na vertente da colina onde
repousa serena e bucólica, também desperta para os
labores de um novo dia. Suas casas simples e humildes
deixam escapar a dissonância onomatopaica dos seus
habitantes a se prepararem para as tarefas monotonamente
recorrentes do cotidiano.
A brisa fresca da manhã transporta a umidade do
orvalho noturno que, à semelhança de pingentes de cristal,
perolam a superfície das folhas, flores e ervas, e ativam o
cheiro forte de terra umedecida.
À distância, escuta-se o balido das ovelhas como a
chamar seus pastores para conduzi-las às regiões mais
baixas, onde as esperam os campos cobertos de gramíneas
variadas.

{ {
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Djalma Argollo

À porta de singela, mas formosa moradia, desenrola-


se uma cena singular. Uma mulher de meia idade, de porte
altivo e beleza suave, dialoga com um moço no auge dos
seus trinta e seis anos, cujos traços fisionômicos caracteri-
zam a condição de filho. O semblante da bela matrona se
apresenta triste e ansioso, com duas lágrimas, diminutos
aljofres de dor a deslizarem mansamente pela face
acetinada, enquanto o moço, sereno, busca transmitir-lhe
consolo e tranqüilidade.
– Meu filho, reconsidera tua decisão de nos deixar.
És o sustentáculo de todos nós, que te amamos tanto...
– Sabes que não é bem assim, mãe. Todos os meus
irmãos já estão trabalhando ativamente, minhas irmãs
estão casadas, com exceção de Noemi, que se casa nos
meados de Nisã, em Caná, com Abdias Bensalim, nosso
primo. E a ela já prometi estar presente às bodas.
– E o amor que temos por ti não te diz nada?...
– Diz muito, porque também amo todos com muita
ternura e sempre agradeço ao Pai a abençoada família que
me deu. Mas amo da mesma forma todos os seres humanos
e preciso transmitir-lhe a Boa Nova que o Pai me confiou.
– Nunca consegui entender essas tuas idéias...
– Um dia entenderás. Agora, é preciso ir ao encontro
de João. Mas nunca te abandonarei nem aos meus irmãos.
Estaremos sempre ligados pelo afeto, mas é necessário
que se cumpra a Vontade de Deus, e ela é de que eu
inaugure a nova era proclamada por Isaías e outros
profetas.
– Mas, filho, meu coração se angustia com terríveis
presságios. Ainda esta noite, no momento em que consegui
dormitar, vi Simeão, o homem de Deus que fez profecias
sobre ti no Templo de Jerusalém quando da tua circun-
cisão. Ele me olhava com um sorriso triste e compassivo,

{ {
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Quando o amor veio à terra

repetindo uma frase que me disse naquela ocasião e que


nunca consegui esquecer: e tua alma será trespassada de
uma espada... . Ó meu filho, tenho tanto medo...
– Mãe, não te preocupes antes do tempo. Basta a
cada dia o seu problema. Quando Deus solicitar de nós o
necessário sacrifício, então enfrentaremos a situação com
a devida atitude. No momento, é tempo de trabalhar na
semeadura do bem. Vê como a primavera cobre toda a
terra de flores. A nossa amendoeira está toda enfeitada,
preparando o milagre do fruto e da semente, promessas
de continuação da vida. Da mesma forma, mãe querida, o
Reino de Deus irá fazer as almas se enflorescerem para
que se produzam os frutos do Amor, num amanhã de
Felicidade e Paz, quando a humanidade formar uma só
família, embalada pelos cânticos da Fraternidade e da
Concórdia. Até mais ver, mãe. Beija todos os meus irmãos
por mim.
– Mas não levas nada para tua viagem: nem dinheiro,
nem roupas, nem alimento... Retrucou a sofrida mãe, com
natural preocupação, como também para prolongar um pouco
mais aquele instante com seu amado filho. E ele, que já
começara a andar, detendo-se um pouco, disse-lhe:
– Meu Pai proverá todas as minhas necessidades.
Não veste ele as flores do campo com roupas de belo
colorido? e não alimenta as aves e os animais, que não
semeiam, nem colhem, nem estocam alimentos? Da
mesma forma, terei tudo o que preciso, pois Deus está
comigo, como eu estou com ele.
E, enquanto a pobre mulher soluçava nas tristezas
da separação, o moço se pôs a descer pelo caminho que
levava em direção ao Lago de Genesaré.
Assim, no anonimato daquele dia distante, iniciava-
se a epopéia da Boa Nova. A Humanidade, nas várias

{ {
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Djalma Argollo

partes do mundo, começava ou prosseguia mais um dia


em suas atividades boas ou más, ignorante de que, a partir
dele, o mundo não mais seria o mesmo. Jesus assumia,
naquele instante, Sua missão sagrada de acender a Luz
Divina em pleno habitáculo das trevas. A ignorância
espiritual começava a contar os dias para sua extinção.
Nos Planos Espirituais Superiores, os Espíritos
enobrecidos cantavam hinos de glória ao Criador,
jubilosos pelo evento transcendente que começava.
Legiões de entidades angelicais formavam um cortejo
luminoso, acompanhando os passos do Mestre, invisíveis
para os olhos comuns, mas evidentes à visão superior do
Nazareno, que, com eles, comungava o estado de oração
em louvor ao Senhor dos Universos, sob cujas bênçãos a
tarefa tinha início.

{ {
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Quando o amor veio à terra

{ 9
Elias Retorna
C
orria o ano de 28. Deitado sobre a pele de camelo
estendida no chão, que lhe servia de cama, João se
preparava para começar sua rotina diária, repetida há quase
tantos anos quanto sua própria idade, que era no momento
trinta e cinco anos. Sim, começara os exercícios espiri-
tuais, jejum, oração, estudo das Sagradas Escrituras e
trabalho árduo, aos seis anos de idade quando o Pai o
colocara na comunidade ascética dos Filhos da Luz, nas
imediações do Mar Morto.
Antes de se levantar para realizar as abluções rituais,
já recitara o Schemá Yitzrael – Ouve, ó Israel. O Senhor
teu Deus é Um só. Amarás o Senhor teu Deus de todo o
teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente
–, obrigação de todo judeu do sexo masculino, pela manhã
e pela tarde. Às mulheres, era proibido, sob severas
ameaças, fazê-lo.
Antes de se erguer para executar as obrigações
habituais, o filho de Zacarias meditava no sonho que tivera
aquela noite. Vira-se como o profeta Elias, a exorar fogo
do céu para consumir a vítima colocada sobre um
improvisado altar de pedra, sobre o qual ainda derramara
água para tornar o feito mais notável. Ainda escutava os
gritos de assombro e admiração da multidão, bem como
as súplicas de misericórdia e piedade dos sacerdotes de
Baal, vencidos, que tinham suas cabeças cortadas nas

{ {
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Djalma Argollo

margens do Quisom, cujas águas se tingiam com o ver-


melho rubro do sangue derramando em profusão pelos
corpos decapitados a se contorcerem em espasmos finais.
A cena fora extremamente real, sem os elementos
esdrúxulos e mirabolantes dos sonhos normais. Talvez –
imaginava – fosse porque vinha, há quase dois meses,
atraído para o estudo dos feitos do grande profeta, cuja
figura enérgica, extremamente fiel a Deus, era-lhe parti-
cularmente querida, a ponto de conhecer de cor todas as
passagens de sua vida, que sempre lhe pareciam mais
recordações do que algo aprendido.
João se preparava para levantar quando o quarto
foi invadido por uma intensa luz azul, entremeada com
reflexos dourados, que, apesar de extremamente brilhante,
não lhe ofuscava a visão. No centro da luminosidade,
configurou-se um ancião de face austera, mas que refletia
uma grande paz. Espantado, exclamou:
– Meu pai!
Um sorriso fugaz atenuou a austeridade do rosto da
entidade ante o reconhecimento:
– Sim, meu filho. Respondeu, prosseguindo:
Chegou a hora de dares início à missão para a qual vieste
à Terra, passando por tão longa preparação.
Na mente de João, perpassou rapidamente uma parte
do dito profético que o Senhor, como aprendera desde a
mais tenra infância, teria falado por intermédio de seu pai
quando da sua circuncisão, e que tinha ouvido repetidas
vezes por ele até sabê-la de memória:
E tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo; pois
irás à frente do Senhor, para lhe preparar os caminhos
para transmitir ao seu povo o conhecimento da salva-
ção pela remissão dos seus erros.70

70 Lc 1, 76-77.

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Quando o amor veio à terra

O Espírito, dando a entender que lhe conhecia os


pensamentos, prosseguiu: Isso mesmo. Sairás adiante do
Mensageiro de Deus, revivendo a tradição profética do
nosso povo, interrompida por mais de quatro séculos. É
chegado o momento sobre o qual Moisés e os Intérpretes
Espirituais dos Filhos de Israel falaram. O Messias já se
encontra no seio do seu povo e está pronto para começar
seu ministério redentor. Vai, meu filho, e prega aos
descendentes de Abraão que é chegado o Reino dos céus.
Tua palavra deverá dirigir-se a todos, incentivando-os a
mudar a forma de proceder. Combate os vícios, a hipo-
crisia, os sentimentos menos dignos. Usa, como sinal da
transformação moral, a imersão em água. Os que se
arrependerem de suas transgressões e aceitarem o roteiro
de transformação moral deverão ser mergulhados, como
símbolo da morte do homem velho e corrompido; e, ao
emergirem, serão como renascidos, iniciando uma vida
nova no cumprimento da Lei e da Vontade de Deus. Não
seguirás, em teus ensinamentos, os caminhos da liderança
apodrecida do Sinédrio nem entrarás pelos caminhos
tortuosos das discussões estéreis em torno de preciosismos
legalistas. Cumpre teus deveres com abnegação e devota-
mento e te prepara para sofrer o ataque dos inimigos do
bem, que terminarão por matar teu corpo físico. Por
verberar os desatinos dos poderosos, far-te-ão provar o
ferro da espada, pelo qual resgatarás um erro cometido
no passado.
Ante a referência, veio, à mente do moço, o sonho
que tivera. Ao que a entidade respondeu sem que ele
verbalizasse: Sim. Como Elias, fizeste destruir a vida física
dos teus opositores num momento de exacerbação do
dever. Agora redimirás tua culpa assim que tiveres
concluído tua missão de preparador dos caminhos do

{ {
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Djalma Argollo

Senhor. Serás a voz do que clama no deserto. Preparai os


caminhos do Senhor. Endireitai as suas veredas. Quando
ele aparecer diante de ti, reconhecê-lo-ás porque, no
instante em que se submeter à imersão, verás os céus se
abrirem e, diante de tua visão espiritual, o Espírito do
Bem, no formato de uma pomba, se fará visível. Terás
encontrado o Messias. Daí por diante, tua tarefa estará
terminada. Ele crescerá, porque seu trabalho é infinita-
mente mais importante, e tu te recolherás, pois os deveres
que te foram confiados terão atingido sua finalidade.
Voltarás ao Mundo Espiritual por incitamento da que se
fez tua inimiga, e que ainda mantém os sentimentos
toldados pelo ódio. Retornarás, porém, triunfante, livre
dos débitos contraídos, para prosseguir na jornada de
ascensão espiritual. Que o Senhor te conduza pelo espi-
nhoso, mas gratificante, caminho do serviço do Bem. Sei
que não esmorecerás, pois já conquistaste a virtude da
dedicação absoluta ao Ideal Superior. Estarei sempre,
como estive até agora, ao teu lado, inspirando-te em todos
os momentos, com amor e muito carinho.
E diante dos olhos enevoados de pranto de João,
Zacarias desapareceu lentamente, deixando o ambiente
impregnado de perfume delicado e suave.
O precursor, então, após orar por muito tempo,
agradecendo a Deus pela tarefa confiada, levantou-se
resolutamente e, dirigindo-se ao encontro do dirigente da
comunidade, comunicou-lhe que se afastava para atender
ao chamamento de Deus, dele recebendo a pronta aquies-
cência e bênçãos.
Após alguns dias, nos arredores de Beit-árabat,
caravaneiros e viajantes escutavam, admirados, aquele
homem magro, de longos cabelos negros e barba hirsuta,
vestido com uma roupa feita com pelo de camelo, presa

{ {
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Quando o amor veio à terra

por um largo cinturão de couro, clamando: “Mudai a vossa


mente, porque é chegado o Reino dos céus” 71.
Sua palavra desataviada e contundente penetrava o
coração dos que o ouviam, pois nele sentiam a força moral
dos legítimos homens espirituais, cuja vida representa o
sustentáculo de suas afirmativas.
Em breve, as multidões o buscavam porque sua
fama se espalhava rapidamente. Eram habitantes de
Jerusalém, das regiões ribeiras do Jordão, da Judéia e da
longínqua Galiléia. A todos, ministrava a palavra da
renovação dos hábitos e costumes e a verdadeira integra-
ção nos preceitos divinos. E aos que lhe aceitavam a
direção espiritual e confessavam seus erros, imergia nas
águas do Jordão, como seu pai Zacarias ordenara, incutin-
do-lhes a idéia da transformação para o Bem.
Mas, diante dos representantes das diversas
correntes religiosas dos Judeus – Escribas, Fariseus,
Saduceus e Sacerdote –, mudava de tom:
Geração de serpentes venenosas, quem vos instruiu a
fugir da ira que virá? Produzi, portanto, frutos dignos
da mudança na maneira de pensar. E não penseis, di-
zendo dentro de vós mesmos: temos por pai a Abraão,
porque eu vos digo que Deus pode, destas pedras, fa-
zer se elevem filhos a Abraão. Porém já está colocado
o machado à raiz das árvores; toda árvore que não
produzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo.
Eu, verdadeiramente, mergulho-vos em água, como
sinal de mudança na forma de pensar, porém aquele
que está vindo após mim é mais poderoso do que eu,
do qual não sou digno de carregar as sandálias; ele
vos imergirá no Espírito Santo (energia espiritual pura)
e em fogo. Com a pá de joeirar que tem na mão, lim-
pará sua eira, reunirá o trigo no celeiro, mas a palha
queimará, completamente, em fogo inextinguível. 72.
71 Mt 3, 2.
72 Mt 3, 7-12.

{ {
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Djalma Argollo

Assim admoestados, os líderes religiosos dos judeus


se enfureciam, mas o povo, que vivia a lhes suportar as
imposições difíceis e os longos ditirambos moralistas,
vibrava de alegria por vê-los escutando tais coisas sem
poder retrucar, porque ficavam impotentes diante da
verdade pronunciada por alguém com a devida autoridade
espiritual.
Estava ali um profeta digno do nome, falando e
agindo como aqueles sobre os quais falavam as Escrituras.

{ {
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Quando o amor veio à terra

{ 10
O Início da Nova Era
João havia terminado de aplicar o ritual da imersão
em um grupo de novos adeptos, quando uma sensação
inusitada o instou a se voltar e olhar para a margem, onde
a multidão se demorava expectante. Seus olhos pousaram
sobre um homem, cuja figura o destacava da aglomeração.
Era alto, tinha cabelos longos – denunciando o Nazireu,
olhos castanho-claros como os cabelos e a barba, que,
bem delineada, terminava em duas pontas sob o mento.
Sua pele amorenada pela exposição constante ao sol da
Palestina deixava entrever o azul das veias sob a epiderme.
Todo o seu ser exsudava tal magnetismo pessoal que as
pessoas em torno se afastaram, reverentes e curiosas.
Assim que os seus olhos se encontraram, o desco-
nhecido tirou a túnica e a capa, ficando semi-desnudo, e
se dirigiu ao encontro do Batista na clara intenção de ser
por ele mergulhado nas águas do Jordão. No mesmo
momento, o Precursor ouviu, mediunicamente, a voz de
seu pai, que lhe sussurrava aos ouvidos: Eis o Enviado do
Senhor.
Quando Jesus chegou junto a ele, João inclinou
levemente a cabeça, baixando os olhos, e disse:
– Por que vens a mim para a imersão? Ela é um
símbolo para os que estão manchados pelos erros. Tu,
porém, és puro. Eu é que deveria ser mergulhado por ti,

{ {
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Djalma Argollo

pois sou uma alma impura. Estou pronto para receber de


tuas mãos a purificação.
O Mestre, porém, lhe retrucou:
– Filho de Zacarias! Conheço a beleza de tua alma
devotada e fiel. Se, no passado, cometeste ações duras,
foi por excesso de zelo para com as coisas de Deus e nunca
por maldade. Por isso, vamos cumprir o que foi progra-
mado pelos que são responsáveis pelo destino da Terra.
Ao ouvir tais palavras, João, com os olhos mareja-
dos de pranto, que um imenso júbilo fazia surgir, colocou,
com imenso respeito, a mão direita sobre o ombro esquer-
do do Mestre e, com uma leve pressão, fé-lo mergulhar
nas águas límpidas do rio, soerguendo-o de imediato.
Findo o ritual, Jesus lhe disse: Que a Paz continue
habitando em seu coração generoso. E retornou à margem,
onde colocou suas roupas, enquanto o Batista o seguia
com olhos de felicidade, incapaz de pronunciar palavra,
imerso em delicadas e indescritíveis vibrações espirituais.
Nos dias que se seguiram, o Mestre era um ouvinte
atento das palavras de João, que, mais inspirado e doce
do que nunca, transmitia mensagens de otimismo e
esperança àqueles que o vinham ver e escutar.
No dia seguinte, lá pelas quatro horas da tarde,
quando apenas um seleto grupo de discípulos o cercava,
o mergulhador, vendo Jesus que passava por perto,
apontou-o, dizendo num ímpeto: “Eis o Cordeiro de Deus,
que tira os erros do mundo” 73. E se dirigindo a dois em
especial: Ele é o Esperado, por quem Israel tem ansiado
desde os tempos de Moisés.
Tomados de um impulso irresistível, fizeram menção
de se levantar para ir ao encontro do indicado, mas,

73 Jo 1,

{ {
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Quando o amor veio à terra

titubeando, olharam para o Precursor, que, com um sorriso


e leve meneio de cabeça, incentivou-os a continuar.
Alegres com a permissão, levantaram-se e, apressando o
passo, dirigiram-se ao encontro de Jesus.
Ao chegarem perto dele, tímidos, não sabiam como
abordá-lo. O Mestre, todavia, voltando-se, olhou-os com
um sorriso, dizendo:
– João e André, dois bravos pescadores galileus, o
que desejam de mim?
Surpresos por se ouvirem chamados pelo nome,
ficaram ainda mais embaraçados; João, porém, o mais
novo dos dois, conseguiu balbuciar:
– Gostaríamos de conversar contigo, Senhor.
Ao que Jesus respondeu:
– Vinde comigo até Betânia, e conversaremos pelo
caminho.
Enquanto andavam, Jesus, com simplicidade, come-
çou a perguntar a André sobre Simão, o seu irmão mais
velho, e a respeito de outros dos seus parentes, citando-
lhes os nomes e fazendo comentários sobre suas personali-
dades. Com João, comentou sobre Tiago, seu irmão, seu
pai Zebedeu e sua mãe.
Os dois, profundamente admirados, respondiam,
intrigados como aquele homem podia conhecer tanto sobre
os detalhes mais íntimos deles e de seus parentes, suas
relações comerciais numa empresa de pesca, e assim
sucessivamente. Sem dúvida, estavam diante do Messias,
como o Batista sugerira.
Em Betânia, foram levados por Jesus à casa de Lázaro,
antigo conhecido da família do Mestre, ao qual devotava
imensa afeição, bem como a suas irmãs, Marta e Maria.
Recebidos carinhosamente, permaneceram por três
dias na companhia do Mestre, que, a cada momento,

{ {
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Djalma Argollo

empolgava-os com seus pensamentos sobre os diversos


incidentes da vida cotidiana e dos relacionamentos entre
as criaturas. À noite, reunidos no pequeno jardim interno
da casa, viviam momentos de intensa espiritualidade,
cercados por vibrações doces e suaves. Testemunharam
também as primeiras curas levadas a efeito por Jesus em
pessoas doentes, amigas da família de Lázaro, que eram
trazidas discretamente e atendidas pelo Mestre com
imenso carinho. O episódio que mais os tocou foi o de
uma criança de cinco anos, parenta de Lázaro, que nascera
cega. Marta conseguiu trazê-la, sem dizer aos pais o
motivo. Levou-a até Jesus e, ante o assombro dos circuns-
tantes, disse:
– Senhor, sei que o teu coração generoso se compa-
dece dos aflitos e sofredores. Eis Rute, filha única de nosso
primo Jefté.
Enquanto o Nazareno a tomava nos braços,
beijando-lhe as faces rosadas e sentando-a sobre os
joelhos, a menina, com os olhos mortos, tateava-lhe o rosto
com um sorriso singelo nos lábios.
Ela prosseguiu: Seus pais têm sofrido muito com a
sua cegueira. Rogo-te misericórdia para ela. Cura-a, para
que possa ver as belezas do mundo e trazer a alegria de
volta aos seus genitores sofridos.
As lágrimas lhe sufocaram a rogativa, enquanto
Jesus, olhando-a com carinho, falou-lhe:
– Marta, és uma advogada eloqüente. Se tivesses
nascido em Roma, superarias os preconceitos e brilharias
no Fórum para inveja dos teus colegas masculinos...
O riso espontâneo de todos, ante a observação dita
com humor sutil, quebrou a tensão que nublara o ambiente,
e Jesus, beijando os olhos da menina, continuou: Rute,
minha filha, seja feito como Marta solicitou.

{ {
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Quando o amor veio à terra

No mesmo instante, a criança soltou um grito de


alegria e percorreu os olhos pelo recinto, com a admiração
de quem enxerga pela primeira vez.
Os pais, que se mantinham à distância, acorreram
pressurosos a exclamar em uníssono:
– Filhinha querida!
E ela, que os via pela primeira vez, associando as
vozes às figuras que se projetavam sobre ela, abriu os
bracinhos para recebê-los, dizendo:
– Papai! Mamãe!
A emoção intensa arrancava lágrimas de todos que
ali se encontravam.
Os pais, agradecidos, lançaram-se aos pés de Jesus,
procurando beijá-los, a clamar sua gratidão. O Mestre,
contudo, delicadamente os ergueu, dizendo:
– Reservemos nossa gratidão ao Pai Misericordioso,
único credor dela. Somente ele merece todos os nossos
louvores porque todo o Bem dele promana, e nós, seus
filhos, somos unicamente veículos de sua Infinita Bondade.
Cessado o natural tumulto, Jesus, com naturalidade,
pôs-se a comentar: A Terra poderia ser um paraíso de
alegria e felicidade, onde o sofrimento não encontrasse
guarida. Os homens, contudo, a transformaram num vale
de lágrimas pelo egoísmo feroz que cultivam. A dor se
tornou companheira de todos por causa disso. É chegado,
entretanto, o momento de iniciarmos a redenção humana.
Será uma tarefa árdua e demorada, porque a maldade está
profundamente arraigada no coração do homem. Mas o
Reino de Deus chegou para se implantar, definitivamente,
no mundo porque assim o deseja nosso Pai Celeste. Tempo
virá em que não mais assistiremos o triste espetáculo de
criancinhas sofredoras, e a dor deixará de ser a companhei-
ra constante de todos os seres. Para isso, deverão, todos

{ {
91

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Djalma Argollo

os que aceitarem a mensagem libertadora do Reino,


começar, como ensina João, a tarefa da transformação
interior, modificando os hábitos infelizes de maldade e
egoísmo em sentimentos de fraternidade e amor, pois o
Pai é Amor Puro a nos envolver com Sua Providência
constante.
E dirigindo-se aos pais da menina: O Amor do Pai
vos socorreu em vosso infortúnio, mas não podeis descurar
da educação de vossa filha. Ensinai-lhe a viver de acordo
com a Lei Divina, incentivando-lhe o coração para as
coisas nobres que elevam o Espírito. Nenhum sofrimento
existe sem causa, e o dela tem raízes no passado, em
circunstâncias que não poderíeis entender por agora.
Requererá de vossa parte toda dedicação, para que os
sentimentos infelizes que lhe motivaram a expiação não
retomem sua força, fazendo-a resvalar para os mesmos
caminhos do mal, ontem trilhados. Que o vosso amor por
ela seja equilibrado, ensinando-lhe a disciplina dos
impulsos menos dignos e a valorização das virtudes, para
que não sejais defrontados amanhã por situações desagra-
dáveis. De vossa parte, colocai também vossas vidas à
disposição do Pai, cumprindo-lhe os ditames e transfor-
mando-as em oportunidade de elevação e enobrecimento
de vossas almas.
Já alta noite, todos foram dormir enlevados e felizes.
Na manhã seguinte, João e André, tocados de
entusiasmo, saíram em busca de Simão, irmão de André,
que estava em Jerusalém. Ao o encontrarem, disseram
cheios de alegria: “– Encontramos o Messias” 74.
Simão era do tipo emotivo. Assim que escutou o
relato, entusiasmou-se:

74 Jo 1, 43.

{ {
92

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Quando o amor veio à terra

– Bem que eu sentia que os tempos são chegados.


João sempre disse que está apenas preparando os
caminhos do Senhor. Vai começar uma nova era. Com o
Messias, teremos condições de expulsar os malditos
romanos de nossa terra, e a promessa feita por Deus a
Abraão, de que sua descendência herdaria toda a Terra,
vai se concretizar. Já pensou, irmão, que estamos sendo
escolhidos para participar, como os que seguiram os
Macabeus, de uma epopéia gloriosa?
E os três se puseram, por longo tempo, a discretear
sobre o futuro promissor de riquezas e glórias, com as
mentes incendiadas por sonhos grandiosos, enquanto
voltavam para Betânia. Quando ali chegaram, sem que
lhe anunciassem o nome do que lhes acompanhava,
ouviram, espantados, o Mestre dizer: “Tu és Simão, filho
de João, e serás chamado Cefas” 75.
Jesus colocava o apelido de pedra no oscilante
Simão, como a lhe indicar que precisaria ser mais firme e
comedido nas suas resoluções.
O mestre, então, programou partir para a Galiléia
no dia seguinte, sendo acertado que ficaria morando,
enquanto permanecesse em Cafarnaum, na casa de Simão.
E assim foi feito.
Quando estavam em caminho, encontraram um
amigo dos novos companheiros do Nazareno, que também
era discípulo de João. Correram ao seu encontro, contan-
do-lhe a respeito do Messias, que haviam encontrado, e
como o Batista lhes havia esclarecido a respeito. Trouxe-
ram-no, pois, a Jesus, que, pousando nele os olhos lúcidos
e penetrantes convidou-o, dizendo apenas: Segue-me76.

75 Jo 1, 42.
76 Jo 1, 43.

{ {
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Djalma Argollo

Ao que Filipe, pois assim se chamava, aquiesceu


prontamente, sentindo que, de fato, estava diante do
Prometido. Ele era conterrâneo de André e Simão, pois
nascera em Betsaida, na margem do Jordão onde o rio se
abre para formar o Lago da Galiléia.
Os quatro amigos retornavam imersos em profunda
felicidade. Em chegando a Cafarnaum, dirigiram-se logo
à casa de Simão, acorrendo João à sua casa para dar a boa
notícia e levar seus familiares para conhecer o Mestre.
Foram encontros cheios de emoção. O Rabi, com simplici-
dade, chamou os recém-chegados pelos nomes, sem que
os soubesse previamente, inquirindo sobre parentes distan-
tes, deixando-os espantados com sua clarividência.
Enquanto isso, Filipe foi ao encontro do seu velho ami-
go Natanael, pois o sabia um cumpridor fiel da Lei e digno
de entrar para o grupo que Jesus estava formando. Nata-
nael, igualmente, fizera-se discípulo do Batista, tendo sido
por ele mergulhado nas águas do Jordão, no ritual de praxe.
Após as saudações usuais, foi logo dizendo:
“– Encontramos aquele sobre quem escreveram Moisés e
os profetas, na Lei: Jesus, filho de José, de Nazaré” 77.
O rosto do canaense expressou de imediato sua
incredulidade: “– E de Nazaré pode sair alguma coisa
boa?” 78.
Mas Filipe resolveu a questão, dizendo: “– Vem e vê”79.
Assim o fizeram.
Logo que entrara, mesmo antes das apresentações,
Jesus se dirigiu a Natanael, dizendo: “– Eis aí um
verdadeiro israelita, em quem não existe falsidade” 80.

77 Jo 1, 45.
78 Jo 1, 46.
79 Jo 1, 46.
80 Jo 1, 47.

{ {
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Quando o amor veio à terra

Surpreso, o canaense perguntou: “– De onde me


conheces?” 81.
Ao que Jesus retrucou: “– Antes que Filipe te
chamasse, via-te eu, debaixo da figueira” 82.
O espanto de Natanael não teve limites. Sem dúvida,
ali estava um profeta, pois o olhar dele indicava que sabia
tudo o que acontecera naquele dia em que, com o coração
em frangalhos, pusera-se a chorar e a clamar ao Senhor
sob a fronde de uma figueira, em sua cidade natal. Por
isso, disse de pronto:

– Mestre, tu és o Filho de Deus; tu és o Rei de Israel.


Respondeu-lhe Jesus, dizendo-lhe:
– Crês, porque te disse que te vira debaixo da figuei-
ra. Verás coisa maior que isto. E prosseguiu, dizendo-
lhes: Certamente, certamente vos digo que, doravante,
vereis o céu aberto e os mensageiros de Deus descen-
do e subindo sobre o Filho do Homem.83

Dessa forma, teve início o movimento de renovação


da Humanidade, sob o qual ainda vivemos, e do qual a
Doutrina Espírita, como o Consolador Prometido, é uma
nova e decisiva etapa.

81 Jo 1, 48.
82 Jo 1, 48.
83 Jo 1, 49.

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Quando o amor veio à terra

{ 11
Eu o Sou...”
O Sol, atingindo o zênite, derramava sobre a
paisagem a ardência dos seus raios inclementes.
Fatigado da viagem que os levava de volta para a
Galiléia, Jesus decidira parar ali, no poço que a tradição
atribuía ao patriarca Jacó, em pleno coração do território
samaritano.
O Mestre preferira o caminho mais rápido, em vez
do normalmente usado, que passava pela Transjordânia e
evitava contatos com os impuros samaritanos, porque
tinha pressa em chegar à região do Lago de Genesaré.
Quanto mais se afastasse, juntamente com seus
discípulos, das proximidades do local onde João, O Que
Mergulha, exercia o seu mister de despertar a consciência
religiosa do Povo de Israel, melhor. As imperfeições
humanas tendentes a criar exclusivismos doentios em
torno de suas crenças e ídolos ameaçavam a harmonia do
trabalho de difusão do Reino de Deus entre ele e o seu
precursor.
É claro que os dois tinham plena consciência das
respectivas funções, mas seus seguidores principiavam
uma esdrúxula disputa sobre a primazia dos seus
respectivos líderes. A cúpula dominante, através do partido
dos fariseus, tentava aproveitar-se desses sentimentos
negativos para intrigar, insuflando a discórdia e a cizânia,

{ {
97

Quando o amor veio à terra (A).pmd 97 25/9/2007, 11:53


Djalma Argollo

com a finalidade de provocar um conflito que os


enfraquecesse, anulando a eficácia de suas missões.
Sabia, o Mestre, que João, plenamente consciente
do seu papel de preparador do caminho, repelira os
pruridos exclusivistas dos seus seguidores quando lhe
foram dizer:

– Rabi, aquele que estava contigo do outro lado do


Jordão, de quem deste testemunho, está batizando, e
todos vão a ele.
João respondeu:
– Um homem nada pode receber, a não ser que lhe
tenha sido dado do céu. Vós sois testemunhas de que
eu disse: Não sou eu o Cristo, mas sou enviado antes
dele. Quem tem a esposa é o esposo; mas o amigo do
esposo, que está presente e o ouve, é tomado de ale-
gria à voz do esposo. Essa é a minha alegria, e ela é
completa! É necessário que ele cresça e eu diminua.
Aquele que vem do alto está acima de todos; o que é
da Terra é terrestre. Aquele que vem do céu dá teste-
munho do que viu e ouviu.84

Mas, profundo conhecedor da natureza humana,


Jesus preferiu colocar distância entre os dois grupos para
evitar maiores problemas, retirando dos inimigos do Bem
a possibilidade de fomentarem a maledicência e o mal-
estar.
Como não haviam trazido alimentos, dada a rapidez
da partida, enviou os discípulos à cidade de Sicar, bem
no meio do vale entre os montes Ebal e Garizim, que se
via à distância e que outrora fôra um importante centro
da Samaria, agora em plena decadência. Fizera questão
que fossem todos, permanecendo sozinho à beira do poço.

84 Jo 3, 26-32.

{ {
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Quando o amor veio à terra

Quando todos se foram, sentou-se à beira da


cisterna, resguardado do calor do Sol pelo teto de proteção
do receptáculo de água. Olhando a cidade ao longe, o
Mestre aguardava. Com a visão psíquica, discernia, à
distância, alguém que se preparava para sair de casa a
fim de buscar água ali no poço.
Em breve, ela apareceu à saída da cidade. Cântaro
apoiado no quadril direito e a corda para amarrar nele
enrolada no ombro esquerdo, caminhava perdida em seus
pensamentos...
A certa distância, pôde ver que alguém se encontrava
sentado à borda da cisterna. Um homem, com toda certeza.
Mais um pouco e identificou: um imundo judeu! Pensou
consigo mesma. Raça presunçosa e desprezível. Conti-
nuou de si para consigo. Provavelmente vai me provocar,
insultando-me, pelo fato de ser uma mulher samaritana.
Mas vai se arrepender, pois lhe retribuirei à altura, devol-
vendo-lhe o cêntuplo de doestos e ironias. Se tentar me
agredir, dar-lhe-ei com o cântaro. Vai apanhar como nunca
apanhou quando criança. Ante tal perspectiva, deu um
sorriso de satisfação e, com o coração acelerado pela pers-
pectiva de conflito, aproximou-se do poço.
Fingia não olhar para o desconhecido; todavia, sua
visão periférica já o tinha analisado. A contragosto,
admitiu que era um homem bonito e, apesar dos traços
finos e delicados, tinha um porte viril. Sentiu que o seu
olhar a seguia, mas não o sentia como um olhar lascivo,
coisa que ela conhecia muito bem. Era um olhar tranqüilo
que, por algum motivo, deixava-lhe inquieta.
Ao chegar à beira do poço, preparava-se para
amarrar a corda ao cântaro quando ouviu o judeu dizer:
“– Dá-me de beber!” 85.

85 Jo 4, 7.

{ {
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Djalma Argollo

Assustou-se. Não com a voz do homem, que era


muito agradável de se ouvir, mas pelo pedido.
Samaritanos e judeus eram inimigos ferrenhos há
séculos. Viviam em atritos permanentes e, sempre que
podiam, causavam-se danos mutuamente. Sabia também
que os Rabinos ensinavam que tomar água dada por um
samaritano era o mesmo que beber um copo cheio de
sangue de porco.
Apoiou o cântaro e a corda junto à borda do poço
e, voltando-se para o estranho, indagou com ironia:
“– Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim que
sou samaritana?” 86
Imperturbável, Jesus respondeu: “– Se conhecesses
o dom de Deus e quem é que te diz: Dá-me de beber, tu é
que lhe pedirias e ele te daria água viva!” 87.
Apesar do tom natural da resposta, a samaritana
interpretou como se fôra arrogância da parte dele. Por
isso, carregou na ironia e, com as duas mãos nos quadris,
numa clara mímica de deboche, argumentou:
– Senhor, nem sequer tens uma vasilha, e o poço é
profundo; de onde, pois, tiras essa água viva? És
porventura maior do que o nosso pai Jacó, o qual nos
deu esse poço, do qual ele mesmo bebeu, assim como
seus filhos e animais?.88

Sereno, o Mestre replicou:


– Aquele que bebe desta água terá sede novamente.
Mas quem beber da água que eu lhe der, nunca mais
terá sede, pois a água que eu lhe der tornar-se-á, nele,
uma fonte de água jorrando para a vida eterna.89

86 Jo 4, 9.
87 Jo 4, 10.
88 Jo 4, 11-12.
89 Jo 4, 13-14.

{ {
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Quando o amor veio à terra

O homem é louco, pensou a Samaritana, como, de


resto, todos da sua raça. E, acentuando o sorriso e os gestos
irônicos, solicitou: “– Senhor, dá-me dessa água para que
eu não tenha mais sede nem tenha de vir mais aqui para
tirá-la!” 90.
Jesus, muito naturalmente, redargüiu: “– Vai, chama
teu marido e volta aqui” 91.
A ironia se transmudou em perturbação. O homem
lhe tocara num ponto sensível: seu problema na área
afetiva. Insegura, retrucou: “– Eu não tenho marido” 92.
Agora o Mestre chegara ao ponto principal. A
mulher estava preparada para receber a informação
transformadora. Amadurecida pelas desilusões, sua alma
ansiava por algo que a preenchesse, libertando-a de uma
busca que não conseguia definir: “– Falaste bem, não tenho
marido, pois cinco maridos já tiveste, e o que tens agora
não é teu marido; nisso falaste a verdade” 93.
O assombro se estampou no rosto da samaritana.
Aquele homem tinha o poder de penetrar no íntimo das
pessoas, retirando de lá os mais recônditos segredos. Por
sua mente, em turbilhão, passaram vários pensamentos.
Tinha de aproveitar a ocasião, pois não é sempre que se
encontra um profeta, e ali estava um. O seu inconsciente
deixou aflorar o problema básico que motivava sua sede
de integração, de plenitude, a qual se manifestava como
inquietação sexual, sem encontrar saciedade. Seus muitos
maridos, os quais não conseguia suportar por muito tempo,
representavam, em última análise, sua busca de saciedade
íntima, de realização espiritual, que a falta de diretriz

90 Jo 4, 15.
91 Jo 4, 16.
92 Jo 4, 17.
93 Jo 4, 17-18.

{ {
101

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Djalma Argollo

segura no campo religioso a levava a confundir com desejo


sexual, pois o sexo é, já o intuíra Platão, busca da unidade
perdida, vontade inconsciente de quebrar a barreira que
isola o ser humano de Deus, causa efetiva do sentimento
de solidão que leva os indivíduos à eterna busca de alguém
que os preencha.
Na medida em que a alma vai atingindo o ponto de
maturação espiritual, o princípio inteligente começa a
enviar mais fortemente seus impulsos pelas vias do
inconsciente, procurando romper com as estruturas centra-
lizadoras do complexo do ego, procurando reatar sua
ligação com a fonte de origem – Deus. O ego, todavia,
perdido nos intrincados mecanismos de ações e reações,
criados ao longo do devir evolutivo, interpreta erronea-
mente tais estímulos, tentando vias imediatas para a
solução do conflito que se estabelece entre o Self e ele. É
quando o ser geralmente deriva para a busca do poder, da
fama, ou da fruição dos sentidos, tentando resolver a
inquietação íntima não devidamente esclarecida. Quando
se lê a magnífica obra de Santo Agostinho, Confissões,
pode-se acompanhar as terríveis angústias dessa busca
monumental.
Nesse ponto, provavelmente sob o estímulo da
vibração de Jesus, a mente da mulher de Samaria liberou
seu problema real: “– Senhor, vejo que és um profeta.
Nossos pais adoraram sobre esta montanha, mas vós
dizeis: é em Jerusalém que está o lugar onde é preciso
adorar” 94.
Finalmente aparece o cerne do conflito – a busca
de Deus. Ela estava no ponto exato de dar o salto
qualitativo da espiritualidade. A ânsia de integração com

94 Jo 4, 19-20.

{ {
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Quando o amor veio à terra

a Divindade se expressou totalmente, fazendo-se


consciente, mesmo que ela não o percebesse.
Jesus, então lhe responde:
– Crê, mulher, vem a hora, e é esta, em que nem sobre
esta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós
adorais o que não conheceis; nós adoramos o que co-
nhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas
vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois
tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espí-
rito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em Espí-
rito e Verdade. 95

Era uma definição nova, que lhe atingia em cheio o


coração. Era preciso deixar de procurar um local externo
para adorar a Deus, mas trazer o ato de adoração para o
íntimo. Todavia, somente alguém com bastante autoridade
poderia realmente corroborar isso. E apenas o Ungido
poderia dilucidar todas essas questões: “– Eu sei que virá
o Ungido” 96. “Quando ele vier, anunciarar-nos-á todas as
coisas” 97.
A resposta lhe causou um impacto: “– Eu o sou, eu
que falo contigo” 98.
Agora ela tinha certeza de que tudo era verdade. O
seu coração já lhe dizia, há algum tempo, que estava diante
do Enviado de Deus. Seus conflitos se resolviam ali,
naquele mesmo instante. Nunca mais teria aquela sede
interior que a levava a procurar no prazer físico, na com-
panhia de um homem, o remédio para os anseios que lhe
coagiam o peito. Era o momento em que franqueava a
95 Jo 4, 21-24.
96 A palavra cristo é uma tradução para o grego da palavra hebraica messiah, que
significa ungido.
97 Jo 4, 25.
98 Jo 4, 26.

{ {
103

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Djalma Argollo

fronteira das incertezas materiais para entrar no vale da


autoconsciência plena.
Vibrações desconhecidas lhe penetravam a alma,
fazendo-a sentir uma emoção diferente das que sentira
até então. Era uma inefável plenitude, uma paz jubilosa,
uma serenidade transcendente.
Estava tão inebriada com os sentimentos novos que
não percebera a aproximação dos discípulos, só tomando
conhecimento da sua chegada quando rentearam ela e
Jesus.
Seus rostos exprimiam estranheza por verem o
Mestre conversando tão intimamente com uma mulher
naquele local deserto, o que era contrário aos costumes
reinantes. O redator das lembranças do Apóstolo João
descreveu assim o momento:

E nisto vieram os seus discípulos, e se admiravam de


que estivesse falando com uma mulher; todavia ne-
nhum lhe perguntou: O que é que procuras? ou: Por
que falas com ela?.99

Jesus impunha respeito naturalmente. Por isso é que


não ousaram, os discípulos, pedirem-lhe qualquer
explicação. Aliás, não lhes devia, nem a ninguém, pois
essa é a atitude das almas que transcenderam os sentimen-
tos mesquinhos da malícia e da maldade. Agem com tal
pureza que não têm sequer consciência de que os outros
possam julgar mal seus atos nem fazer inferências menos
dignas sobre suas atitudes.
A partir desse dia, a mulher samaritana passou a
integrar o grupo dos discípulos do Mestre que, á distância,
entregavam-se à tarefa de divulgar-lhe a presença e as

99 Jo 4, 27.

{ {
104

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Quando o amor veio à terra

idéias, anunciando que o Ungido, por quem a nação de


Abraão esperava, já se encontrava no mundo, executando
sua missão sublime. Sairei ao vosso encontro a fim de
iniciarmos a difusão da Boa Nova.
Assim, alegres, retornaram aos seus, com o coração
em festa, para lhes anunciar o cumprimento das Promessas
das Escrituras...

{ {
105

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Quando o amor veio à terra

{ 12
O Dia Inesquecível
Aquele foi o dia em que tudo começou.
Estava em meu sítio recém-adquirido, perto do lago
que os Judeus chamam presunçosamente de Mar da
Galiléia. Localizava-se perto da pequena enseada de El-
Tabga, a cerca de um tiro de flecha de pequena aglome-
ração de pescadores, dos quais comprávamos os saborosos
peixes fáceis de apanhar nas águas piscosas do belo lago,
cuja forma lembra uma cítara. Dizem os entendidos na
história dos Judeus que, nos tempos heróicos dos seus
ancestrais, seu nome era justamente esse, que na lingua-
gem deles se chama Quineret.
Meu nome é Marco Túlio Scipião e, como se pode
ver, como se isto tivesse valor, descendo de linhagens
ilustres do patriciado romano. A verdade é que, desde esse
dia sobre o qual escrevo agora, considero essas coisas,
bem como tudo aquilo de que meus conterrâneos se
orgulham, como lixo, usando a expressão preferida do
meu irmão e concidadão de nascimento Paulo, judeu da
cidade de Tarso, a importante cidade da Cilícia, o qual,
ontem, foi juntar-se ao nosso querido Mestre nas Regiões
da Eterna Luz. Dentre em breve, espero que não demore
muito, seguirei o mesmo caminho, dado o duvidoso
privilégio, que me é conferido pela cidadania romana, de
morrer pelo gládio. Mas, como costumava afirmar aquele

{ {
107

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Djalma Argollo

estimado Servo de Deus: Morrer para mim é lucro, pois


sei que esta vida não é tudo, e que, num corpo glorioso e
incorruptível, viverei para sempre no Reino de Deus junto
ao meu Senhor e Mestre Jesus, por e para quem tenho
vivido nesses últimos trinta e quatro anos.
Minha mente volta, mais uma vez, para aquele dia
inesquecível que marcou de forma indelével a minha
existência, e pelo qual tenho agradecido ao querido Pai,
que vive nos céus cotidianamente até este momento, espe-
rando poder fazê-lo pessoalmente o mais rápido possível.
Acordara bem cedo. O sol ensaiava nascer, e sua
claridade principiava a espancar as trevas noturnas com
seus matizes róseo-dourados.
Tirando a túnica, corri até o lago e mergulhei em
suas águas tranqüilas, cujo frio espantou os restos de sono
que ainda me anuviava o cérebro e entorpecia os músculos.
Depois de nadar algum tempo, voltei à margem e me vesti,
ajudado por Menandro, o escravo grego que meu pai me
dera de presente no dia em que usei pela primeira vez a
toga pretexta. Naquele tempo, orgulhoso de ser descen-
dente de Rômulo e Remo, possuía os prejuízos da minha
raça e achava que tínhamos o direito de privar os filhos
de Deus, nossos irmãos, de sua liberdade, reduzindo-os à
humilhante servidão.
Depois da primeira refeição, quando o sol já
mostrava inteiro o seu disco de ouro, saí a cavalgar pelos
arredores, exercício diário que fazia para manter a forma
física, pois me preparava para integrar o quadro de oficiais
do exército imperial, sonhando com o prestígio, a glória
e a fama; a riqueza não me preocupava, já que meu pai
era considerado um dos homens mais ricos do Império.
Logo percebi que algo de anormal acontecia.
Afluíam barcos de todas as regiões ribeirinhas carregados

{ {
108

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Quando o amor veio à terra

de pessoas, alguns ameaçando adernar de tão cheios,


enquanto, pelas estradas, multidões se deslocavam,
convergindo para o interior em direção ao leste.
Intrigado com a ocorrência, e suspeitando de algum
movimento subversivo, pois os Judeus nunca se confor-
maram com nossa dominação, voltei à casa e, colocando
uma roupa que disfarçasse meu tipo romano, misturei-
me ao povo, seguindo o mesmo rumo. Levava o gládio
oculto sob a túnica e me fazia acompanhar de Menandro
e outro escravo robusto, ambos igualmente armados. Era
meu dever, como cidadão romano, investigar, para
prevenir qualquer levante que, por acaso, estivesse sendo
tramado.
Além do número enorme de doentes de todos os
tipos, muitos dos quais exibiam suas horríveis e nausea-
bundas chagas, intrigavam-me os retalhos de conversações
que surpreendiam a cada passo. Aprendera muito cedo a
linguagem bárbara da Judéia, pois meu pai tinha muitos
interesses na região e deles me fizera administrador
quando completei a maioridade.
– Ele é o Messias Prometido por Moisés e os
profetas. Afirmava um jovem, com a certeza fácil que a
idade juvenil favorece.
– Não creio, pois se o fosse, as nossas autoridades
em Jerusalém já o teriam declarado. Contrapunha um
homem idoso, cuja vestimenta, adereçada de filactérios,
denunciava o fariseu militante.
– Aquele bando de ladrões, vendidos aos nojentos
romanos, não querem nem saber desse assunto, pois não
desejam arriscar seus indignos privilégios. Retrucava o
rapaz, com a impulsividade irrefletida de quem não
aprendeu ainda a virtude da prudência. E, naturalmente,
anotei seus traços para posterior averiguação.

{ {
109

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Djalma Argollo

À minha frente, uma senhora dizia a outra que


carregava uma criança de cerca de dois meses de idade,
cujos olhos baços falavam de cegueira:
– Ouvi dizer que ele cura todo tipo de enfermidade,
seja do corpo ou da mente, como também expulsa espíritos
malignos.
– Oh! Tomara que sim. Pois lhe implorarei para fazer
com que meu filhinho possa enxergar. Se ele o fizer, dar-
lhe-ei até minha vida se pedir.
À minha esquerda, falava um ancião para outro:
– Imagine só! Soube que ele prega o amor até pelos
inimigos. Que disparate!
Adiantei os passos e, mais adiante, surpreendi o
seguinte diálogo:
– Confesso que ainda estou estarrecido! Quando
entraste correndo pela casa adentro, rindo, chorando e
louvando a Deus, pensei que fosse morrer de tanta emoção.
Exclamava um senhor de meia idade, continuando: Pena
que minha Léia não pudesse participar deste júbilo. E,
com a capa, enxugava as lágrimas que lhe escorriam pela
face.
– É, pai, sinto muito que minha mãe tenha morrido
sem me ver andando. Disse o rapaz de uns dezessete anos
que ia ao seu lado.
– Ah! meu filho, quando descobrimos que havias
nascido paralítico, nossa dor foi imensa. E, ainda por cima,
foste nosso primeiro e único filho. Quantas vezes, em
minhas orações, perguntei angustiado ao Senhor: Por que
nos castigas assim? e a minha pobre criancinha?
– Também eu, meu pai, sofri muito, vendo as
crianças de minha idade correndo e pulando, enquanto eu
não podia fazê-lo. Cresci com profundo sentimento de
frustração e de revolta. Queria participar dos jogos e

{ {
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Quando o amor veio à terra

brincadeiras das crianças de minha idade; todavia me


tornava um estorvo que procuravam afastar com desculpas
sem sentido. Isso me feria muito mais do que quando
algum me atirava ao rosto o meu defeito. Muito cedo
aprendi a dissimular meus reais sentimentos; por isso,
desde que me tornei um Bar-Mitzvá100 e me conscientizei
que não podia casar e ter filhos, passei a alimentar a idéia
do suicídio... Qual a jovem que se casaria com um aleijão
como eu? Mas, quando pensava em minha mãe, já tão
doente, prorrogava o projeto para uma ocasião mais
oportuna. Depois de sua morte, que me despedaçou o
coração, tomei a deliberação. Sentia pena de te deixar,
pai, pois te admiro muito, mas sabia que és forte, capaz
de superar o choque de minha morte. Além do mais,
pensava, livrar-te-ia de um peso morto. Decidi que me
deixaria afogar no lago, cuja margem fica perto de nossa
casa. Sabia que a melhor hora era depois do escurecer,
quando todos os pescadores já chegaram, recolheram suas
redes, depois de limpá-las, e foram para suas casas.
Poderia, então, arrastar-me até a margem e, protegido pela
escuridão, entrar na água, nadando bem para o seu meio,
até que, vencido pelo cansaço, afundasse para a liberdade
da morte. Naquele dia, agi de acordo com o planejado.
Quando, porém, já na margem, preparava-me para
adentrar a água, ouvi uma voz dizer: Deus é o Senhor da
vida. Ele a dá e somente ele a pode tomar. Voltei-me,
assustado e descoroçoado por me sentir descoberto.
Nossos olhos se encontraram, e então tive a certeza de
que ele sabia tudo o que se passava comigo. Era como se
eu sentisse o seu olhar lendo meus pensamentos e

100 Filho do Preceito. Rito de passagem hebraico quando a criança se tornava um


adulto, responsável por seus atos diante da lei, o que acontecia entre os doze e
treze anos.

{ {
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Djalma Argollo

sentimentos, mesmo os mais escondidos: Quem destrói a


própria vida atenta contra uma propriedade que não é sua,
tornando-se, dessa maneira, um criminoso. Em
pensamento, retruquei: De que vale a vida para um aleijado
inútil como eu? E escutei: Achas que Deus poderia criar
alguma coisa inútil? O teu pensamento não só te deprecia,
mas é uma ofensa ao Pai Celeste, a quem temos obrigação
de louvar e amar sempre. Fiquei estarrecido. Ele era capaz
de ler pensamentos. Disse-me, então: Deus, todavia, é
misericórdia constante, por isso me enviou, para que não
levasses a efeito tão nefasta atitude. Teu pai, homem
caridoso e bom, não merece passar por um golpe desses,
pois ainda tem muito que realizar pelos outros, mas,
principalmente, por si mesmo, pelo seu crescimento
espiritual. Assim, levanta-te e anda! Uma força estranha
percorreu todo o meu corpo, enquanto um estranho arrepio
fazia tremer as minhas pernas. Ante os meus olhos
espantados, elas se endireitaram, firmes e fortes. Ele me
estendeu as mãos e, após alguma hesitação, segurei-as,
levantando-me; pela primeira vez na vida, fiquei de pé.
Hesitante, movimentei uma perna, e ela me obedeceu;
movimentei a outra, e a mesma coisa aconteceu. Caminhei
assim alguns passos com o coração batendo como um
louco no meu peito. Finalmente, ele me soltou e disse:
Vai, em nome do Pai. Aprende a tua lição e não tornes a
pecar para que não te venha a suceder coisa muito pior.
Continuei a andar, e, quando dei por mim, estava entrando
em casa. O resto, tu já sabes.
– Sim. E, desde então, temos buscado por ele. Quero
lhe agradecer pelo que nos fez e colocar minha vida em
suas mãos. O que quer que ele me peça, eu farei.
Conversa de alienados, pensei comigo. Acho que
vim para o meio de loucos. Mas, nesse instante, chegamos

{ {
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Quando o amor veio à terra

ao pé do morro onde uma multidão já estava postada. Um


pouco acima, na vertente do monte em que havia uma
espécie de anfiteatro natural, estava um homem de cabelos
longos e barba, do qual pessoas se aproximavam, doentes
na sua maioria. Precisava escutar e ver o que se passava;
por isso, empurrando aqui e ali, sem ligar para os protestos
que se erguiam à minha volta, aproximei-me o mais
possível do lugar onde estava o homem, cuja postura
indicava o líder. Precisava ver e gravar tudo para indicá-
lo às nossas autoridades.
De inopino, senti-me empurrado para o lado. A
mulher, cujo filhinho era cego, fôra quem me empurrara,
no afã de ir até o homem. Agora eu queria ver. O homem,
naturalmente, iria embrulhar a pobre mulher, cuja decep-
ção não teria limites. Era uma crueldade brincar-se dessa
forma com a dor humana. Cheguei mais perto. A mulher
estava junto a ele e, pondo-se de joelhos, disse-lhe:
– Senhor, sei que atendes aos pobres e infortunados
com amor e carinho. Por isso, trago-te o meu filhinho.
Ele nasceu cego, Senhor, e é o meu primogênito. Compa-
dece-te de nós. Cura-o.
O homem lhe colocou a mão no ombro e, antes de
dizer qualquer coisa, seu olhar se encontrou com o meu.
Senti como se ele soubesse o que eu pensava. Era uma
sensação estranha, como se, de repente, a minha privacida-
de íntima tivesse sido invadida, e todos os meus senti-
mentos e pensamentos ficassem expostos. Sua voz, então,
falou dentro de mim: Verás muitas coisas extraordinárias,
e também tu realizarás, porque foste escolhido por mim
para levar minha mensagem ao coração do Império junto
com outros.
Quando seu olhar se desviou, fiquei estarrecido, e
foi como em sonho que escutei ele dizer à mulher:

{ {
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Djalma Argollo

– Seja feito conforme o teu desejo. Teu filho volta a


enxergar, mas deverás ensiná-lo a usar os olhos para o
bem.
A mulher, fitando a criancinha, deu um grito de
alegria, e, jogando-se ao chão, pôs-se a lhe beijar os pés.
Ele a fez levantar-se e, quando passou por mim, detive-a
e, olhando a criança, vi os seus olhos negros, límpidos e
claros, completamente diferentes do azul desmaiado de
algum tempo antes. Voltei-me espantado e notei que ele
me olhava novamente com a sombra de um sorriso fugaz,
assim me pareceu, nos lábios.
Meu coração era um turbilhão e meus pensamentos
me ferviam no cérebro. Foi então que ele começou a falar:

Felizes os pobres em espírito,


pois deles é o Reino dos céus.
Felizes os que estão aflitos, porque serão consolados.
Felizes os humildes, porque herdarão a Terra.
Felizes os que têm fome e sede de retidão,
porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos,
pois eles encontrarão misericórdia.
Felizes os puros de coração,
porque eles entenderão a Deus.
Felizes os pacificadores,
pois eles serão chamados filhos de Deus.
Felizes os que são perseguidos por causa da retidão,
porque deles é o Reino dos céus.
Felizes sois vós, quando vos ultrajarem, perseguirem
e, mentindo, disserem qualquer tipo de maldade con-
tra vós, por causa de mim.
Alegrai-vos e exultai, pois grande é a vossa recom-
pensa nos céus, porque dessa forma perseguiram os
profetas que foram antes de vós...101

101 Mt 5, 3-12.

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Quando o amor veio à terra

Durante um largo espaço de tempo, sua voz ecoou


em meu coração e, pelo que pude perceber, no de todos
que ali estavam. Era um convite à construção de um
mundo novo, de valores diferentes dos atuais. Uma
revolução profunda nos usos e costumes tradicionais –
amar os inimigos; fazer bem aos que nos perseguem e
caluniam; ceder, para não entrar em litígio; ajudar sempre;
perdoar ininterruptamente; viver a espiritualidade em si
mesmo; só fazer aos outros o que gostaríamos que os
outros nos fizessem... Era o oposto de tudo o que eu
aprendera.
Mas tenho que terminar, pois já estão vindo os que
me levarão. Pensam que irão me matar, quão enganados
estão... O gládio será a chave que abrirá a porta do Reino
do meu Senhor. Voltarei a encontrar Jesus, o amor da
minha vida, no seu Sólio de Luz.
A ti, que por acaso vieres a ler estas linhas, faço um
convite: vem ao encontro de Jesus, e ele te fará conhecer
as belezas indescritíveis do Espírito...
Até logo.

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Quando o amor veio à terra

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Fenômenos Notáveis
ONilo azul corria mansamente, como há milhares
de anos, criando, às suas margens, uma estreita faixa de
terra fértil roubada à aridez do deserto que se estendia a
uma distância pequena de suas margens. No terraço
ensombrado de sua residência luxuosa, onde estava
prostrado num coxim forrado de tecido caro e recheado
de penas, que o tornavam macio, Âmen-Ra agonizava
lentamente, vitimado por insidiosa moléstia que lhe
devorava as entranhas aos poucos, provocando dores
agudas e terríveis, mal anestesiadas pelas infusões dos
médicos que enxameavam em sua casa, aproveitando a
oportunidade de cuidar de um doente tão rico e generoso.
Sabendo-se perto de ser levado pelos embalsamado-
res a fim de ser preparado para a caminhada para o Oeste,
expulsara os médicos à sua volta, fazendo-se transportar
para o terraço a fim de ver, pela última vez, com os olhos
físicos, a silhueta do Deus Benfeitor e suas águas brilhan-
tes de sol.
O neto querido, que nunca o abandonava, sentava-
se rente, segurando-lhe a mão emurchecida e fria.
– Seneribe, amado neto, estou sendo chamado ao
tribunal da eternidade a fim de prestar contas dos atos da
minha vida...
– Não fale assim, avô. Replicou o moço, interrom-
pendo o ancião com um gesto de ternura e os olhos aflitos.

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Djalma Argollo

– Deixa-me falar sem interrupção, pois necessito


que saibas de uma série de coisas que se passaram na
minha mocidade e que, só agora, se me apresentam em
seu valor real. Muitas vezes te falei de minhas andanças
por terras distantes, em particular de minha estada na terra
dos judeus. Como sabes, ali conheci um homem extraor-
dinário, de nome Jesus. Uma figura de beleza incompará-
vel, cujos ensinamentos refletiam um altruísmo muito
distante da realidade dos nossos tempos. Ele era só bon-
dade e amor. Por isso mesmo, terminou morto, crucificado
entre dois ladrões. Por esse motivo abandonei aquela terra
e, durante algum tempo, procurei viver de acordo com
seus ensinamentos. Meu coração, contudo, ainda não tinha
a madureza necessária, e o mundo, com seus enganos,
terminou por sufocar a semente de luz que ele implantara
em meu coração. Deixei-me envolver pela ambição do
ter, mergulhando nas águas turvas de empreendimentos
comerciais vários que me trouxeram luxo e riqueza, mas,
por outro lado, ressecaram meus sentimentos e ideais
enobrecedores. Depois da morte de teu pai, meu único e
inesquecível filho, e de tua mãe, nora que me foi uma
filha carinhosa e boa, afastei-me dos negócios para cuidar
de ti e viver a dor da perda das jóias mais preciosas que
Deus me dera um dia e me tirara tão repentinamente sem
qualquer aviso.
Uma estremeção de dor percorreu o corpo do
doente, que parou arfante com a testa porejada de suor,
enquanto sua mão apertava convulsivamente a do neto.
– Vovô! Exclamou o moço. Não te canses...
Com voz lenta e entrecortada, o moribundo
continuou:
– Preciso... continuar. Sinto que... me resta pouco...
tempo...

{ {
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Quando o amor veio à terra

Fazendo grande esforço, pediu ao rapaz que


mandasse buscar, em seu gabinete, um baú de marfim
incrustado de pedras preciosas com um formato de cruz.
Ao chegar o servo com o objeto pedido, disse o
enfermo:
– Neste recipiente está o que considero a maior
riqueza que vou te deixar. São pergaminhos onde escrevi
minhas lembranças dos acontecimentos da Palestina.
Durante a minha permanência ali, colhi uma série de
testemunhos dos feitos notáveis de Jesus de Nazaré, os
quais escrevi cuidadosamente. Gostava de pesquisar os
fenômenos extraordinários que ele fazia, alguns dos quais
presenciei pessoalmente, e, depois, fui em busca dos que
haviam sido beneficiados com curas incríveis, entrevis-
tando-os, bem como seus amigos, parentes e vizinhos.
Esse foi o meu grande erro. Deslumbrado pelos fatos, perdi
de vista o que eles realmente representavam. Embriagado
pelo anseio de pesquisar, esqueci que a finalidade deles
era chamar a atenção para a proposta de transformação
moral e espiritual que o Galileu – como muitos o
chamavam – apresentava para todos nós, objetivando levar
os homens a edificar uma sociedade mais justa, mais
generosa e mais fraterna. Hoje, quando a morte me
convoca, compreendo melhor o tempo desperdiçado com
uma curiosidade que, se bem dirigida, poderia ter me
levado a uma situação interior muito mais pacífica e
tranqüila do que agora tenho.
Entregando então o recipiente ao rapaz, sofreu um
desmaio por causa do esforço despendido, voltando a si
pouco depois, apenas para despedir-se do neto em prantos
e mergulhar no coma final.
Dois dias depois, Âmen-Ra partia para o Oeste a
fim de receber o julgamento de suas ações na vida, e o

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Djalma Argollo

seu corpo era entregue à Casa da Vida para receber o


tradicional processo de embalsamamento, findo o qual
foi sua múmia repousar no mausoléu adredemente
preparado para guardá-la eternamente.
Seneribe passou mais de três meses mergulhado em
profunda tristeza, vagando em prantos pela solidão da
imensa casa. Um dia, porém, sonhou com o avô. Estavam
ambos numa imensa construção, onde se abrigavam várias
pessoas. Âmen-Ra lhe informou que era um lugar de
recuperação dos que haviam perdido o corpo físico. Ele
próprio estava sentado numa cama, com o semblante
abatido. Falaram-se da saudade, mas o avô lhe dissera ser
preciso retomar o curso normal da vida. Não poderia ficar
se lamentando por todo o sempre. Existiam obrigações
inadiáveis, compromissos com o destino, que não podiam
ser postergados. Terminou instando para que ele lesse os
pergaminhos que deixara.
O rapaz levantou bem disposto, com um novo
ânimo. Tinha certeza de que estivera com o querido avô
nas regiões da morte. Chamando os servos, tomou uma
série de providências que se faziam necessárias, tanto em
relação à casa quanto aos negócios que o avô deixara.
Durante uma semana esteve afadigado, pondo em ordem
muita coisa, assumindo o seu papel de administrador dos
bens que lhe haviam sido legados. Certo dia, lembrou-se
dos pergaminhos e, tomando o cofre em que estavam
guardados, pôs-se a lê-los cheio de curiosidade.

Como um novo Sinhuê, deixei o regaço do deus Hapi,


em busca de fortuna e aventuras. Conheci Roma, a
cidade que domina o mundo atualmente, estendendo
suas legiões por todos os países que circundam o Gran-
de Mar; a Grécia, cuja sabedoria foi aprendida
conosco, que existimos há muitos milhares de anos

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Quando o amor veio à terra

antes de todos os povos. Estive entre os povos da


Mesopotâmia, vendo os restos dos grandes reis que
um dia lutaram conosco e que já não existem mais,
enquanto o Egito permanece para sempre. Finalmen-
te, estive na terra dos judeus, que já foram, como eles
propagam, nossos escravos, e aí tive oportunidade de
viver uma experiência singular. Tinha chegado a uma
cidade de nome Kephar-Nahum, situada à beira de um
lago que eles chamam de Mar da Galiléia. Vinha de
Damasco, onde adquirira muitas mercadorias, depois
de vender as que levara. Ao chegar nessa cidade, em
pouco tempo consegui negociar os tapetes e quinqui-
lharias que trouxera. Como me sentia cansado, com-
prei uma casa à beira do lago e alguns escravos para
cuidarem dela, e, para não perder a oportunidade, co-
mecei a negociar com peixes, que no lago são abun-
dantes. Assim, fiz amizade com Zebedeu, que tinha
uns barcos de pesca, do qual comecei a comprar o
pescado, salgando-o e vendendo-o para as caravanas
e para o comando da legião, sediado em Cesaréia de
Filipe.
Através de Zebedeu, fiquei sabendo a respeito de um
homem chamado Jesus, originário de uma cidade de
nome Nazaré, a quem seus filhos estavam seguindo,
tendo abandonado os negócios de pesca. Esse Jesus
era chamado por ele de Messias e realizador de prodí-
gios. Claro que não acreditei, porque, tendo visto tan-
tas explorações em nome dos deuses por todos os lu-
gares onde estive, tinha me tornado um descrente de
tudo que dissesse respeito a religião. Um dia, porém,
Zebedeu me convidou para conhecer Jesus, que esta-
va na cidade, em casa de um antigo seu sócio chama-
do Simão. Quando chegamos lá, a casa estava cheia;
também do lado de fora havia pessoas de todas as clas-
ses sociais, principalmente doentes. Zebedeu, por ser
muito conhecido e pai de dois seguidores do Rabi (tí-
tulo que dão àqueles que estudam e pregam a religião
deles), conseguiu atravessar a multidão, levando-me
consigo. Lá, pude ver uma cena singular. Uns homens
haviam trazido um outro, aleijado, deitado numa maca

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Djalma Argollo

improvisada. Como não conseguissem entrar no re-


cinto onde Jesus estava, subiram no telhado por uma
escada junto à parede do lado de fora, que todas as
casas possuem para permitir reparos no teto quando
necessário. Ali, fizeram uma abertura, quebrando a
mistura de barro e palha, e por ela desceram o paralí-
tico. Estava curioso pelo que aconteceria. O Homem
de Nazaré, para minha decepção, disse apenas: ‘Fi-
lho, os teus pecados estão perdoados’102. Mais um
embusteiro, pensei comigo mesmo; isso eu também
poderia ter falado sem que precisassem fazer tanto
sacrifício para trazê-lo. Nesse momento, porém, Je-
sus, voltando-se para alguns sacerdotes e outros sig-
natários da religião deles, disse: ‘Por que pensais as-
sim em vossos corações? O que é mais fácil dizer ao
paralítico: Os teus pecados te são perdoados ou le-
vanta-te, toma o teu leito e anda?’103 Diante do silên-
cio deles, prosseguiu: ‘Pois bem, para que saibais que
o Filho do Homem tem poder de perdoar pecados na
Terra, eu te ordeno – disse ele ao paralítico – levanta-
te, toma o teu leito e vai para tua casa’104.
Deu-se, então, um fato notável. O paralítico, como
que impulsionado por uma força misteriosa, ergueu-
se lentamente, ficando de pé, e, um tanto vacilante,
pôs-se a caminhar no pequeno espaço que se abrira
para ele. Sua expressão era de imensa alegria, e lágri-
mas rolavam por sua face. Ajoelhou-se e tentou beijar
as mãos de Jesus, que não o permitiu, instando para
que tomasse sua maca e se fosse, o que ele fez em
seguida, agora já sem nenhum titubeio. Não pude me
conter e segui o ex-paralítico. Precisava me informar
de tudo que lhe dizia respeito. Conversei primeira-
mente com ele, que me informou se chamar Heli e ser
da cidade de Betsaida, na confluência do Jordão com
o lago. Era aleijado de nascença, tendo vivido toda
sua vida sustentado pelos irmãos, que o haviam trazi-

102 Mc 2, 5.
103 Mc 2, 8-9.
104 Mc 2, 10-11.

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Quando o amor veio à terra

do. Sentia-se muito humilhado com isso e, durante


muito tempo, orara a Deus pedindo que o curasse.
Quando soubera que Jesus estava realizando curas
extraordinárias, resolvera procurá-lo, e seus irmãos,
que muito o amavam, vieram trazê-lo, primeiro de
barco até ali e depois no leito. Estava admirado, mas
muito desconfiado, pois já havia presenciado muitas
enganações dos sacerdotes, principalmente na minha
terra, para arrancar dinheiro dos incautos. Assim, pas-
sei a semana colhendo informações, em Betsaida, so-
bre Heli e sua família. Terminei por lhe confirmar a
narrativa, pois todos os que moravam na cidade o co-
nheciam muito bem e estavam maravilhados com sua
cura. Um médico do local, que atendia a família de
Heli, deu-me um atestado por escrito sobre a sua pa-
ralisia, corroborando, sob juramento, a sua cura, que,
em condições normais, seria impossível, pois tinha as
pernas atrofiadas.
Quando tornei a Kephar-Nahum, Jesus já havia parti-
do. Passei então a investigar todas as curas que fizera.
Soube que curara uma mulher com um fluxo de san-
gue há muitos anos. Fui atrás dela. Consegui encontrá-
la, tecendo panos e costurando roupas para mulheres
e crianças pobres. Contou-me emocionada seus sofri-
mentos e que, aproximando-se do Mestre e tocando-
lhe a roupa, ficou imediatamente curada. Não confor-
mado com suas narrativas, procurei testemunhos lo-
cais, fui a médicos que a haviam assistido e todos con-
firmaram por escrito o que ela contara.
Na verdade, mesmo diante de todos esses fatos, bus-
cava uma forma de explicá-los. Não podia admitir que
Jesus realizara o prodígio de curar. Deveria haver uma
explicação mais simples. Os sacerdotes do Egito co-
nhecem as artes de curar pela imposição das mãos e
pelo convencimento do doente, repetindo, de forma
monótona, palavras determinadas.
Um acontecimento deixou-me intrigado. Dizia-se que
ele havia ressuscitado uma menina, filha de um chefe
da Sinagoga local, que é como chamam, os judeus,
seus templos. Era demais. Fui procurá-lo. Chamava-

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Djalma Argollo

se Jairo, e contou o episódio emocionando-se muito.


Sua filha única estava doente e piorando a olhos vis-
tos. Como os médicos a desenganassem, em desespe-
ro de causa, foi em busca de Jesus. Mas, quando
retornava à casa, chegara a triste notícia: sua filhinha
acabara de falecer. Começara a chorar e a se lamentar,
mas Jesus o interrompera, dizendo-lhe que tivesse fé.
Chegando à casa, o Mestre afastara todos os que esta-
vam no quarto, dizendo que a menina não estava mor-
ta, mas dormia. Os médicos e escribas que ali esta-
vam começaram a ironizá-lo e rir dele. Ficaram a sós,
ele, sua esposa, Jesus e o cadáver da criança. O rabi,
então, aproximando-se do leito e tomando a mão inerte
da menina, dissera Talitha Kum105, que, na língua dos
judeus, significa menina, levanta-te. Tendo ela estre-
mecido, aberto os olhos e se levantado para alegria
deles e de todos na casa, menos, é claro, dos médicos
e sacerdotes, que procuravam minimizar o fato, sem
que Jesus lhes desse a mínima importância. Fiquei
como um louco. Procurei todos que estavam na casa
naquele dia. Ouvi as mais contraditórias versões. Os
médicos diziam que a menina estava aparentemente
morta, como às vezes acontece, e que, por acaso, quan-
do ele falara, voltara a si. Os sacerdotes diziam que
eram artes mágicas, comandadas pelos Espíritos ma-
lignos, sem verem a contradição do que afirmavam,
pois fosse Deus ou um Espírito mau que houvesse
produzido a cura, ela existira; logo, era um fenômeno
notável. Além do mais, dera-se para benefício tanto
da criança quanto dos pais; logo, deveria ser um bom
Espírito mau. Mas os religiosos são sempre irracio-
nais.
Confesso que, na época, fiquei em dúvida quanto a
esse fato.
Durante mais de um ano, passei a viajar de um lado
para o outro, colhendo informações e testemunhos a
respeito das curas e ressurreições feitas por Jesus. Ti-
nha ânsia de saber, mas sempre ficava uma dúvida

105 Mc 5, 41.

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Quando o amor veio à terra

fundamental: não se poderiam encontrar explicações


lógicas sem apelar para Deus ou Espíritos? Achava
que sim. Tendo nas mãos um grande acervo de fatos e
testemunhos, resolvi procurar o próprio Jesus, para
lhe pedir esclarecimento. Depois de muita busca, fui
encontrá-lo numa cidade de nome Betânia, a cerca de
quinze estádios106 de Jerusalém, a principal cidade da
Judéia. Ali, encontrei o povo em agitação. Dizia-se
que Jesus ressuscitara o dono da casa onde estava, que
se encontrava sepultado há quatro dias, já recendendo
a putrefação. Era demais. Esquecendo-me da conver-
sa que pretendia manter com o Mestre, comecei mi-
nhas investigações, arrolando testemunhas e toman-
do depoimentos. Só não consegui falar com Lázaro,
que se recusava a prestar qualquer esclarecimento so-
bre o que vira e sentira. Perdido nas minhas pesqui-
sas, soube que Jesus partira para Jerusalém. Não ha-
via problema; a pesquisa era mais importante. Outro
dia conversaria com ele e pediria para que fizesse uma
cura sob expresso controle meu, para meu pleno con-
vencimento (como eu era pretensioso!).
Uma semana depois, soube que Jesus havia sido pre-
so. Corri para Jerusalém, mas, quando ali cheguei, ele
já estava sepultado. Tomei conhecimento de que fora
julgado e crucificado. Confesso que minha decepção
era grande. No primeiro dia da semana, contudo, uma
notícia sensacional: Jesus ressuscitara. Corri à sua se-
pultura, onde consegui penetrar, e ela estava vazia.
Procurei os filhos de Zebedeu, e eles me contaram
uma história inverossímil, de que o Mestre aparecera
a todos eles reunidos numa casa, na parte velha da
cidade, sentando à mesa e comendo. Era demais. Não
podia acreditar. Talvez, se João e os outros não esti-
vessem mentindo, todos tivessem sido vítimas de uma
ilusão, como acontece a pessoas que perdem seus en-
tes queridos e não querem admitir que estejam mor-
tos. Uma alucinação que envolvesse todos. Só pode-
ria ser isso. Procurei saber onde estava o corpo de Je-

106 Cerca de 2,8 Km, sendo cada estádio de 185 m.

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Djalma Argollo

sus. Ninguém sabia informar. Fui a Madalena, que


primeiro o vira, e ela me contou uma história
inacreditável. Desconfiei que houvesse roubado o cor-
po e escondido em algum lugar. Cheguei a pagar a
alguns homens e mulheres para que a mantivessem
sob vigilância. Tudo em vão.
Como aumentassem os boatos de que ele estava apa-
recendo na Galiléia, fui para lá, onde pude contatar
várias pessoas que me disseram tê-lo visto, assim como
mais de quinhentas outras, em pleno dia; ouviram-no
e viram-no desaparecer, da mesma forma que surgira,
isto é, do nada. Subitamente, cansado de tanta procu-
ra e das muitas dúvidas, resolvi desistir e voltar para
minha terra.

Seneribe leu, emocionado, o relato do avô, e folheou


uma grande quantidade de papiros com anotações e
testemunhos escritos, todos amarelecidos pelo tempo. Um,
porém, mais novo, destacava-se. Abriu-o, lendo o
seguinte:
Amado Seneribe, neto do meu coração. Estou deixan-
do por escrito a minha última experiência com Jesus.
Pouco antes de ficar doente, tive um sonho extraordi-
nário. Sonhei que estava na Palestina, nas margens do
Lago da Galiléia. De repente, percebi alguém atrás de
mim. Voltei-me, e lá estava Jesus tal qual o conhece-
ra. Olhava com uma expressão triste. Pensei comigo
mesmo: isto é apenas um sonho, uma simples imagi-
nação. Jesus, balançando lentamente a cabeça, retru-
cou: Continuas o mesmo Âmen-Ra. Sempre perdido
em pesquisas, contestando fatos, procurando explica-
ções. Sem dúvida que procurar saber a verdade é uma
atitude correta; todavia, quando fazemos disso um
meio em si, representa uma doença mental muito gra-
ve. A busca de fatos e explicações deve ser realizada
com serenidade e ponderação. Perdendo-nos na
volúpia de indagar sem parar, desconfiando de todos
e de tudo, aproximamo-nos dos que aceitam tudo sem

{ {
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Quando o amor veio à terra

procurar saber a verdade. Tanto um como outro estão


perdidos diante da realidade da vida. Toda procura tem
de ter um objetivo e, no caso do Espírito, deve ter
como meta a consolidação da fé. Quando, ao contrá-
rio, o homem se perde num mar de desconfianças e
indagações sem fim, torna-se um terrível obstáculo
ao crescimento, pois se transmuta em vício de conse-
qüências imprevisíveis. Procura, meu irmão, o cami-
nho do bem e da caridade, pois o intelecto divorciado
do sentimento é caminho certo para o crime.
Acordei, nesse momento, ainda com as palavras do
Mestre nos meus ouvidos e, pela primeira vez na vida,
não fiquei indagando sobre a realidade ou não do que
se passara. Algo me dizia que estive mesmo com o
Mestre, e ali estava a prova de sua ressurreição. Meu
coração está mais calmo. Lamento apenas o tempo
que perdi quando estava tão próximo de Jesus. Pode-
ria ter aprendido muito, sendo mais feliz. Entretanto,
não adianta lamentar. Sei que dentro em breve estarei
no Reino, assim chamava as regiões do Oeste, para
onde todos vamos após a morte. Procura, querido neto,
informar-te sobre Jesus e seus ensinos, para que a ale-
gria da vida seja tua para sempre. Junto com esses
papéis, encontrarás uma síntese que fiz dos seus
ensinamentos, mas que poderás enriquecer, buscando
seus discípulos que por acaso ainda vivam. Deus te
abençoe e te guarde de todo o mal.

{ {
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Quando o amor veio à terra

{ 14
Resgate Interrompido
Artabanes despertou numa paisagem diferente,
repleta de névoa estranha. Adivinhava-se a luz do Sol pela
difusa claridade que saturava o ambiente. Perto dele, uma
árvore mirrada, quase sem folhas, estendia galhos secos
e crestados em direção aos céus, ou melhor, onde deveria
sê-lo, pois não se podia enxergar uma réstia do azul cerúleo
uma vez que a paisagem em volta cobria-se com a densa
e mal cheirosa neblina, um extenso e contínuo véu de
nuvens.
Olhando-se, percebeu-se cheio de cortes, por onde
manava sangue espesso e abundante. No mesmo momen-
to, a memória se abriu, e tudo lhe voltou de jato à lembran-
ça, enquanto uma onda de dor percorria-lhe todo o corpo,
fazendo-o rebolcar-se pelo chão lamacento. Sim, fora
vítima da traição pérfida de Fasate, o amigo em quem
depositava toda a confiança. Via, ainda, o falso a se encos-
tar contra a parede de um muro na rua dos tecelões, na
parte comercial de Susa, a magnífica capital do Império
Persa, enquanto ele era atacado pela súcia de malfeitores.
Ainda se ouvia gritando o nome do amigo, pedindo
socorro. Como oficial de Dario, rei dos Persas, era acostu-
mado à luta, pois fora arduamente treinado para o combate,
e já participara de várias missões em satrápias diversas,
principalmente nas fronteiras do Império. Certamente, se

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Djalma Argollo

Fasate o houvesse auxiliado, teriam vencido os assaltantes


com facilidade. Surpreso, porém, e essa fora a causa
principal de sua derrota, percebera que o seu mais fiel
amigo estava de conluio com os desconhecidos.
Apesar de lutar com a força dos desesperados, as
estocadas que o atingiam minavam-lhe as forças, termi-
nando por lhe quebrar a resistência. Em pouco tempo,
fora atravessado por diversas lâminas, o que deveria tê-lo
morto. Entretanto, ali estava ele, ferido e coberto de
sangue, mas vivo.
Vivo! Mas isso era impossível. Sentira o aço das
espadas e punhais longos atravessarem-no vezes sem
conta. Dores cruéis acompanhavam essas transfixações
até que, num ponto qualquer daquela agonia, uma paz
imensa lhe descera sobre o ser.
Naquele justo instante, recordava-se surpreso, um
fenômeno interessante desviara toda a sua atenção do que
acabara de ocorrer. Com uma precisão mínima nos deta-
lhes, recordara-se de todos os fatos de sua vida até aquele
momento. Não se tratava de simples evocação de fatos
isolados. Era a visão de todas as frações de tempo que
vivera, em todos os detalhes, não só de episódios, mas de
pensamentos e sentimentos. Acrescentava-se, ao extraor-
dinário evento mnemônico, uma faculdade interessante:
em todos os episódios, desde a mais tenra infância, em
que seu comportamento fugira aos padrões da ética, um
quadro paralelo exibia qual deveria ter sido o comporta-
mento correto, o que abrangia até mesmo os pensamentos
e emoções mais recônditos e todos os eventos que haviam
permanecido oculto de todos.
Depois viera o sono irresistível, mas cheio de
pesadelos desagradáveis. Sua mãe e parentes chorando
diante de um cadáver que se parecia consigo; sua noiva,

{ {
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Quando o amor veio à terra

desesperada, a gritar pelo seu nome por entre soluços de


dor, sendo consolada pelo infame Fasate, o assassino
ignóbil e covarde. Em seguida, fora a exposição do
cadáver, ao qual se sentia ligado, ao relento, conforme
estabelecia o costume religioso. Durante algum tempo,
sentiu os insetos, os vermes e os abutres cevarem-se no
corpo que se decompunha. O horror da situação o fez
implorar piedade a Ahura-Mazda e que, por Sua Imensa
Misericórdia, livrasse-o das garras cruéis de Ahrimã. Fora
atendido, pois acordara naquele lugar desconhecido.
Nesse instante, um coro plangente de gemidos
cortou o ar, seguido de imprecações, uivos, blasfêmias e
gritos desesperados. Era tão sinistra a estranha algazarra
que seus cabelos se eriçaram e seu coração disparou no
peito, enquanto uma onda de calafrio lhe percorria a
espinha dorsal. Apesar de ter, como soldado, habituado-
se a viver com o perigo e ver os quadros mais dantescos,
aquelas vozes, a exprimirem dores, revoltas e desesperos
superlativos, faziam-no sentir medo. Um medo irracional,
que esmagava os sustentáculos do amor próprio e do
orgulho do guerreiro. Arrastou-se pelo chão escorregadio,
procurando distância daquele coro infernal, até encontrar
um paredão de terra batida, e nele, uma espécie de nicho
escavado, onde buscou abrigo e proteção. Ali, em calma
relativa, pôs-se a pensar em sua vida passada. A face da
noiva se apresentou clara à sua memória, de tal maneira
que lhe parecia estar a vê-la. De fato, enxergava-a através
da clarividência, o que ele não podia saber. Sahamara
estava linda como nunca. E pensava nele, sim, pensava
nele, e ele ouvia e via seus pensamentos, espantado. Ela
recordava o dia em que ele morrera. Revia o instante em
que Fasate chegara à sua casa com o corpo do amado nos
braços, chorando e lhe contando como foram assaltados

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Djalma Argollo

na rua e, apesar de lutarem, os agressores eram muitos e


os sobrepujaram. Com o aparecimento de alguns soldados,
que haviam sido atraídos pela luta, os bandidos fugiram.
O amigo, porém, estava morto, e ele ferido, com cortes
pelos braços e pernas.
Artabanes estava revoltado pelo cinismo e desfaça-
tez do miserável traidor. Chegara a ponto de se cortar,
para dar mais realidade à sua história. E os soldados que
ele apresentava como salvadores eram alguns dos que o
haviam assassinado e que também se apresentavam feridos
pelas suas estocadas e cutiladas. O ódio começou a se
desenvolver em seu coração. Sabia agora que fora arreba-
tado por Astivihad, o deus da morte, encontrando-se então
no seu reino sombrio.
Mas, perguntava-se, por que Fasate o fizera matar.
Como resposta, a cena que via. Sua amada, continuou
pensando nos fatos que se seguiram ao seu desapareci-
mento, Fasate a cumulara de atenção e carinho. Apoiava-
lhe a saudosa lembrança do noivo, mas, lentamente,
conseguiu fazê-la interessar-se por ele, suprindo a carência
que sentia. Agora estavam casados, e ela, grávida, esperava
um filho.
Aquela revelação foi demais para o oficial. Compre-
endia agora o porquê da trama sinistra. O traidor o fizera
matar para lhe roubar a mulher amada. O ódio, agora,
toma-lhe todas as fibras, fazendo-o tremer e espumar.
Desejou, com todas as forças, ver o infame traidor para
exercer sobre ele uma vingança terrível.
Bastou-lhe desejar intensamente o encontro com o
inimigo, e lá estava ele na sala, onde via sua antiga noiva
agora acompanhada do seu assassino. Investiu contra ele
com toda fúria, procurando estrangulá-lo, mas suas mãos
não conseguiam segurá-lo. Constatava, com raiva, a sua

{ {
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Quando o amor veio à terra

impotência em exercer a desforra quando alguém lhe


falou:
– É inútil, companheiro. Para atingi-lo temos de usar
outros métodos que não a força.
Verificou, então, que não se encontrava sozinho.
Outros Espíritos, em estado tão deplorável quanto o dele,
estavam no ambiente, seguindo Fasate e demonstrando
ódio intenso, tanto na fácies como nos gestos e palavras.
E continuava a escutar: Temos de ter paciência e aguardar.
Esse miserável deve aqui a todos nós, e muito. Deixemos
ele guardado por outros sequiosos de vingança, tanto
quanto nós. Venha, vou levá-lo ao comando dos Guerrei-
ros de Ahrimã 107.
– Guerreiros de Ahrimã? o que vem a ser isso?
– Somos todos nós, os mortos, que temos sede de
justiça. A justiça que nos foi negada, enquanto nossos
algozes permanecem vivendo alegres e felizes, como se
nada houvesse acontecido. Nós agimos para retificar esse
estado de coisas.
Algum tempo depois, chegaram a uma fortificação
espiritual, construída nos moldes das existentes no Império
Persa. Entraram, depois do companheiro de Artabanes se
ter identificado. Depois de atravessarem vários comparti-
mentos, todos fortemente vigiados, chegaram a uma sala
onde se lia Comando da Divisão de Susa, dos Guerreiros
de Ahrimã, e se fizeram anunciar.

107 Antiga cooperativa do Oriente, de Espíritos infelizes, destinada à manutenção


do mal sobre a terra. Mais tarde, com as modificações históricas ocorridas na
área, fundiu-se com grupos semelhantes formados por muçulmanos
desencarnados em estado deplorável, gerando os Verdugos Celestes que
inspiraram movimentos cruéis, como o dos Assassinos, Janizaros etc.. Hoje
em dia estão desenvolvendo um vasto movimento de instabilidade política no
Oriente, inspirando os grupos radicais, principalmente na prática do terrorismo
indiscriminado (Nota do Espírito Mnêmio Túlio).

{ {
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Djalma Argollo

Depois de longa espera, foram recebidos pelo


comandante, que asperamente intimou:
– Diga logo o que quer, Astrodalos, pois não tenho
tempo a perder. Quem é esse? Disse, olhando desconfiado
para Artabanes.
– É um recém-chegado que vem se inscrever nas
nossas fileiras.
– Tem condições para isso?
– Sim, comandante. É mais uma vítima de Fasate, e
vem cheio de ódio, querendo a justiça a que tem direito.
– Ótimo. Integre-o na sua turma e veja que venha a
ser treinado. E despediu-os de forma brusca.
Depois de algum tempo em que foi instruído nas
técnicas da influência espiritual, usando o magnetismo, a
projeção mental etc., Artabanes foi testado na prática,
participando de ações de obsessão, primeiramente como
estagiário, depois como membro atuante. O desejo de
vingança, aliado à sua inteligência e dedicação, fez com
que se destacasse em pouco tempo, galgando postos de
comando. Tornara-se frio e impiedoso, desconhecendo o
significado da palavra compaixão.
Os anos se passaram, mas nunca perdera Fasate de
vista, nem a ex-noiva, pois os dois se casaram, vivendo
ela uma vida infeliz porque, após o consórcio, o pobre
coitado mostrara sua verdadeira face, fazendo-a viver num
inferno em vida. Ela, por sua vez, refugiava-se nas práticas
de sua religião, bem como nas lembranças dos momentos
em que vivera feliz com o noivo falecido.
Rufião, perverso e beberrão, Fasate foi perdendo
rapidamente suas defesas psíquicas, terminando por se
tornar um joguete nas mãos de suas antigas vítimas
desencarnadas. Um dia, chegando em casa bêbado, como
era de costume, agrediu a mulher com tanta violência que

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Quando o amor veio à terra

a matou. Preso, foi condenado à morte, sendo decapitado


pela sua condição de soldado.
Sahamara, que passara tão difíceis momentos, foi
recebida por amigos espirituais, sendo acolhida a uma
região de Espíritos equilibrados, onde se refez e se dedicou
a socorrer as esposas maltratadas, que eram inúmeras por
causa dos costumes de então. Assim que se equilibrou,
pôs-se a indagar sobre o noivo que desencarnara tanto
tempo antes dela, vindo a saber das condições em que se
encontrava. Desde então, sempre que podia, visitava-o
sem que ele lhe pudesse detectar a presença, em virtude
da diferença vibratória.
Enquanto isso, Fasate, entregue à sanha vingativa
de Artabanes, amargava torturas inimagináveis nos cala-
bouços da sede administrativa dos Guerreiros, agora sob
o comando deste último.
Muito tempo se passou até que um dia Artabanes,
que intimamente já se cansava do que fazia, foi atraído
por Sahamara até o local onde começara o romance dos
dois. Ali, inspirado pela antiga noiva, pôs-se a rememorar
os seus dias de felicidade, sentindo uma saudade enorme.
As lágrimas começaram a correr dos seus olhos, e soluços
doloridos espocavam-lhe no peito. A jovem desencarnada,
envolvendo-o em vibrações de intensa emoção, conseguiu
elevar-lhe o nível vibratório, induzindo-o a reconhecer
no que havia se tornado. Lentamente, uma súplica a Ormuz
surgiu-lhe na mente. Tímida, a princípio, foi se intensifi-
cando, graças a amorosa pressão de Sahamara, até que se
transformou num brado de socorro às potências celestes.
Nesse momento, companheiros de Artabanes que vinham
em sua busca ficaram surpreendidos com o fenômeno
singular do implacável chefe das sombras, chorando como
criança, cercado de luz, abraçado por uma linda mulher.

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Djalma Argollo

Tentaram interferir, querendo arrebatar o seu comandante


daquela situação, mas uma parede vibratória impedia a
aproximação, e os dois seres desapareceram em outro nível
de realidade da dimensão espiritual.
Transcorrido muito tempo, Artabanes reencarnou
na Judéia, na região de Gérasa. Desde pequeno, todavia,
apresentou desequilíbrios singulares. Era um sono agitado,
cheio de pesadelos tenebrosos, que lhe deixava com os
nervos exangues. Quando se tornou adulto, a obsessão
explodiu de vez. Os antigos companheiros o haviam
encontrado e exerciam uma atroz vingança sobre o
trânsfuga, que passou a viver acorrentado por causa dos
seus violentos acessos. Um dia, quebrando as correntes,
fugiu, escondendo-se pelos cemitérios do lugar, vivendo
uma vida de animal sob o guante dos inimigos invisíveis
até que:

Chegaram do outro lado do mar, à região dos


gerasenos. Logo que Jesus desceu do barco, caminhou
ao seu encontro, vindo dos túmulos, um homem pos-
suído por um espírito impuro; habitava no meio das
tumbas e ninguém podia dominá-lo, nem mesmo com
correntes. Muitas vezes já o haviam prendido com
grilhões e algemas, mas ele arrebentava os grilhões e
estraçalhava as correntes, e ninguém conseguia
subjugá-lo. E, sem descanso, noite e dia, perambulava
pelas tumbas e pelas montanhas, dando gritos e se fe-
rindo com pedras. Ao ver Jesus, de longe, correu e se
prostrou diante dele, clamando em alta voz:
– Que queres de mim, Jesus, filho do Deus altíssimo?
Conjuro-te, por Deus, que não me atormentes!
Com efeito, Jesus lhe disse:
– Sai deste homem, espírito impuro! E perguntou-lhe:
Qual é o teu nome?
Respondeu:
– Legião é o meu nome, porque somos muitos.

{ {
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Quando o amor veio à terra

E rogava-lhe insistentemente que não os mandasse


para fora daquela região. Ora, havia ali, pastando, uma
grande vara de porcos.
Rogava-lhe, então, dizendo: Manda-nos para os por-
cos, para que entremos neles.
Ele o permitiu.
E os Espíritos impuros saíram, entraram nos porcos, e
a manada – cerca de dois mil – arrojou-se no mar, pre-
cipício abaixo, e eles se afogavam. Os que apascenta-
vam fugiram e contaram o fato na cidade e nos cam-
pos. E acorreram a ver o que havia acontecido. Foram
até Jesus e viram o possuído por Espíritos maus senta-
do, vestido e em são juízo, aquele mesmo que tivera a
legião. E ficaram com medo. As testemunhas lhes con-
taram o que acontecera com o obsediado e o que houve
com os porcos. Começaram então a lhe rogar que se
afastasse do seu território. Quando entrou no barco,
aquele que fora obsediado rogou-lhe que o deixasse fi-
car com ele. Ele não deixou, e disse-lhe:
– Vai para tua casa e para os teus, e anuncia-lhes tudo
o que fez por ti, o Senhor, na sua misericórdia.
Então partiu e começou a proclamar na Decápole o
quanto Jesus fizera por ele. E todos ficavam espanta-
dos108.

108 Mc 5, 1-20.

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Quando o amor veio à terra

{ 15
Histórias que Transformam
A lua cheia envolvia todo o Oásis em prata e,
mais adiante, sua luz se refletia, aqui e ali, em pequeninos
cristais, misturados com a areia que se amontoava em
simétricas dunas construídas pelos ventos.
As tendas armadas num hemiciclo, os camelos um
pouco distantes, os servos a se movimentarem, atendendo
seus serviços, formavam a babélica mistura de sons e
movimentos, dando um colorido especial à cena.
Após a refeição, os negociantes e viajantes agrega-
dos à caravana espalhavam-se em pequenos grupos ao
redor da fogueira, descansando da caminhada do dia e
espancando o frio do deserto que começava a descer sobre
a ilha de fertilidade, em meio ao mar de areia.
Um pouco isolado, um homem de meia idade lia
um pergaminho com muito interesse. Aproximou-se dele,
então, um moço, no auge dos seus trinta anos, dizendo:
– Tarik, o sábio, aumenta o seu saber!
– A cultura vem dos livros, mas o saber da vida,
amigo Marued.
– Mais uma de tuas frases, que é alimento para a
mente. Mas, dize-me Tarik, o que lês com tão grande
interesse?
– São umas anotações que fiz das lições que ouvi
de um Mestre da Sabedoria, junto com outras que copiei.

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Djalma Argollo

– Que Mestre é esse, que conseguiu tua simpatia?


– Jesus de Nazaré.
– Jesus... Jesus... Bem, Nazaré sei que é na Galiléia,
pois já estive em seus arredores quando comerciei nas
cidades em volta do lago que ali existe. Seus moradores
não são muito bem vistos pelos das outras cidades
vizinhas. Fica um pouco acima de Caná. Não é assim?
– É isso mesmo. Esse Jesus era daquela cidade, mas
não pode ser incluído na fama negativa dos seus con-
terrâneos. Eu o conheci durante minha estada, há pouco
menos de um ano, na região do lago, numa cidade
chamada Kephar-Nahum.
– Sei onde fica, pois sempre passamos por ela
quando pretendemos ir para Damasco.
– Isso mesmo.
– Mas, fala-me desse Jesus.
– Eu o conheci um dia, à beira do lago. Ali estava
uma grande multidão e, por curiosidade, aproximei-me
perguntando do que se tratava, e me disseram que ali
estava um profeta que operava maravilhas. Dei risada,
interiormente, é claro, pois temos visto, como tu sabes,
os mais diversos charlatões roubando, sem qualquer
vergonha, os incautos, com seus encantamentos e poções
maravilhosas. Nesse estado de ânimo, abri caminho por
entre a multidão, em que havia um grande número de
doentes de todos os tipos, e me acerquei da borda do lago.
Ali, pude observar, num barco de pesca, assentado, um
homem moço, na flor dos seus trinta e poucos anos. Nesse
momento, ele se pôs a falar:
Eis que o semeador saiu a semear. E, enquanto semea-
va, uma parte da semente caiu à beira do caminho. E
vieram as aves e a comeram. Uma outra parte caiu em
solo rochoso, onde havia pouca terra, e logo nasceu,

{ {
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Quando o amor veio à terra

por causa da pouca terra. Levantando-se o sol, quei-


mou-a, e, porque não tinha raiz, secou. Outra caiu so-
bre espinhos, e os espinhos cresceram e a sufocaram.
Outra caiu em boa terra e deu fruto: a cem, sessenta e
trinta por um. Ouça, quem tem ouvidos de ouvir109.

Fiquei intrigado com a história, percebendo que havia


nela uma lição, mas não conseguia atinar qual. Sim, porque
não era uma história comum, contada pelos que são
especialistas, com o fim de divertir. Jesus estava sério,
enquanto a contava. Profundamente sério. E a multidão
percebia isso, pois estava num silêncio profundo, impos-
sível de se conseguir com um tão grande aglomerado de
gente. Olhando em volta, percebi que todos estavam atentos,
e que, apesar dele não haver elevado muito a voz, todos o
tinham escutado muito bem, coisa que comprovei mais tarde
perguntando a um paralítico que não conseguira acesso à
praia, ficando bem atrás da multidão, muito distante da
borda. Era como se ele falasse diretamente e junto de cada
um de nós. E, visto as coisas extraordinárias que fez, e eu
testemunhei, para mim era um prodígio o que realizava
sempre que falava. Nesse comenos, verifiquei que um dos
que estavam com ele no barco, de nome Simão, seu
discípulo, que todos chamavam de Kephas, que significa
pedra, o interrogou e, apesar de lhe falar com voz normal,
todos o escutamos claramente: – Por que lhes falas por
parábolas? E sua resposta foi clara e precisa:
– Porque é permitido a vós conhecer os segredos do
Reino dos céus; a eles, todavia, não lhes é permitido.
Porque ao que tem, mais se lhe dará, e terá em abun-
dância. Mas ao que não tem, até o que tem lhe será
tirado. Por isso, em parábolas eu lhes falo, pois vendo,
não enxergam; ouvindo, não escutam nem entendem.

109 Mt 13, 3-9.

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Djalma Argollo

E cumpre-se neles a profecia de Isaías, a qual diz:


Ouvireis com os ouvidos, e de forma alguma enten-
dereis. E vereis com os olhos, e de forma alguma
percebereis, pois o coração deste povo está endureci-
do. E, de má vontade, ouviram com os ouvidos; e cer-
raram os olhos, para não acontecer que vejam com os
olhos, nem escutem com os ouvidos, nem entendam
com o coração, nem se convertam, e eu os cure. Porém,
felizes os vossos olhos, pois vêem, e os vossos ouvi-
dos, pois escutam. Verdadeiramente, vos digo, muitos
profetas e pessoas corretas ansiaram ver o que enxergais,
e não viram, ouvir o que ouvis e não ouviram110.

– Interessante a filosofia desse seu contador de


histórias, meu amigo. Sem dúvida que a vida nos ensina
que aquele que mais tem ganha muito mais, enquanto os
que nada têm perdem até mesmo o pouco que possuem.
É uma coisa que nós, mercadores, conhecemos bastante
bem. Mas o que ele queria dizer com esta história?
– Ele mesmo a explicou, no momento:

Escutai vós, pois, o que diz a parábola do semeador. A


todo aquele que escuta a palavra do Reino e não a en-
tende, vem o maligno e arranca o que lhe foi semeado
no coração; este é o que foi semeado na beira do cami-
nho. O que foi semeado em solo rochoso é o que ouve
a palavra, logo a recebendo com alegria, porém não
possui raiz em si mesmo, antes é de pequena duração.
Sobrevindo a angústia e a perseguição, por causa da
palavra, logo a abandona. O que foi semeado sobre es-
pinhos, este é o que escuta a palavra; mas os cuidados
deste mundo e a fascinação das riquezas sufocam a
palavra e ela não produz fruto. Mas, o que foi semeado
em terra boa, este é o que escuta a palavra, entendendo-
a, e produz frutos a cem, sessenta e trinta por um111.

110 Mt 13, 10-17.


111 Mt 13, 18-23.

{ {
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Quando o amor veio à terra

– Para quem não conheça a forma de plantar trigo


como os judeus, egípcios e árabes fazemos, poderá
estranhar a forma como o semeador lançou suas sementes.
Porque, por exemplo, na região que os romanos chamam
Hispânia, eles primeiro limpam o terreno e aram, para
semear depois, enquanto nós jogamos primeiro a semente
sobre o campo a ser plantado, para depois revolvermos a
terra com o arado...
– Muito bem lembrado, meu amigo. Eu não tinha
percebido esse detalhe, pois é tão natural para nós essa
forma de plantio. Tua inteligência aguçada e teu raciocínio
rápido abriram espaço para esse esclarecimento...
– Interessante essa forma de ensinar. Mas que reino
é esse? Será que ele prega uma revolução contra os
romanos, para se tornar rei?
– Nada disso. Não é um sedicioso comum, pois
sempre afirmou que o Reino começa no coração, e, para
que se o alcance, tem que se amar o inimigo e fazer o
bem a quem nos faz o mal.
– Aí não concordaremos nunca. Se alguém me faz
algum mal, vai receber em dobro, disso tenha certeza!
– É nisso que ele se diferencia dos demais religiosos
que eu conheci. Faz do amor e da bondade uma regra
básica para os seus seguidores.
– Tudo isto soa estranho aos meus ouvidos, pois,
como comerciante, sempre aprendi que devo procurar, por
todos os meios, levar vantagem sobre os outros. O inimigo
sempre me prejudicará, e prejuízo, amigo, é o que não
posso ter... Todavia, deixemos de lado essa discussão.
Gostei da forma desse seu pregador ensinar. Como se
chama esse método?
– Mathla, na língua dos judeus, que possui vários
significados: comparação, enigma, provérbio, revelação,
símbolo, figura de ficção, piada. Mas creio que, com

{ {
143

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Djalma Argollo

respeito a ele, podemos dizer que o mathla é uma


comparação, senão vejamos:
O Reino dos céus se assemelha ao homem que se-
meou boa semente no seu campo. Mas, enquanto dor-
mia, veio o seu inimigo, semeou joio no meio do tri-
go, e se foi. A erva cresceu e começou a dar espigas,
então o joio apareceu. Vindo os servos do dono da
casa, disseram-lhe: Queres que vamos e o arranque-
mos? Ele todavia disse: Não, para que, colhendo o
joio, não arranqueis também o trigo. Deixai-os cres-
cer juntos, até a colheita. Por ocasião da colheita, di-
rei aos segadores: Ajuntai primeiramente o joio e o
atai em feixes, para queimar. O trigo, entretanto,
guardai-o no meu celeiro112.

– Realmente, interessante esse mathla. Ele usa


elementos da vida cotidiana para expressar uma idéia. Essa
do joio e do trigo é absolutamente correta. As plantas são
extremamente parecidas e facilmente seriam confundidas
pelos que fossem arrancar o joio, com prejuízo, e isso
não é bom. Estou gostando cada vez mais desse teu Jesus.
Teria dado um grande comerciante...
– E Jesus transformou o mathla não apenas num
instrumento de ensino, mas num instrumento poderoso
de defesa contra as armadilhas dos escribas, sacerdotes e
doutores da Lei, que se erigiram em seus adversários.
Vivem procurando fórmulas para desmoralizá-lo. Assim
é que lhe propõem perguntas e situações, tentando pegá-
lo numa contradição. Certa feita, estava a escutá-lo nos
arredores de Betânia, que fica perto de Jerusalém, na
vertente do Monte das Oliveiras, que dá para o Jordão.
Escutávamos atentos suas palavras, quando um Doutor
da Lei se levantou e lhe perguntou:

112 Mt 13, 24-30.

{ {
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Quando o amor veio à terra

Mestre, que hei de fazer para alcançar a vida eterna?


Todos ficamos de sobreaviso, pois não era uma per-
gunta gratuita; atrás da aparente simplicidade estava
uma armadilha. Jesus lhe retrucou com outra pergun-
ta: O que está escrito na Lei? Como é que lês? O Dou-
tor da Lei, após alguma hesitação, respondeu: ‘Ama-
rás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda
a tua alma, com todas as tuas forças e de toda a tua
mente; e a teu próximo como a ti mesmo.’ Respon-
deste bem – disse-lhe Jesus – Faze isto e terás a vida.
O Doutor da lei, então, dando um sorriso matreiro,
que parecia dizer: agora te apanhei, inquiriu: E quem
é o meu próximo? Ao que Jesus, tomando a palavra,
disse:
Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu
nas mãos de ladrões, que o roubaram, cobriram-no de
feridas e, deixando-o meio morto, foram-se embora.
Casualmente, descia um sacerdote pelo mesmo cami-
nho; viu-o e passou para o outro lado. Igualmente,
chegou ao lugar um levita; viu-o e passou para o ou-
tro lado. Chegou perto dele, também, um samaritano
que ia de viagem; viu-o e se moveu de compaixão;
aproximou-se, deitou-lhe óleo e vinho nas chagas e as
ligou; em seguida, fê-lo montar no seu jumento, con-
duziu-o a uma hospedaria e cuidou dele. No dia se-
guinte, tirou dois denários e os deu ao hospedeiro,
dizendo: Tem cuidado dele, e o que gastares a mais,
pagar-te-ei na volta. Qual destes três mostrou-se pró-
ximo daquele que caíra nas mãos dos ladrões? Aque-
le que lhe fez misericórdia – respondeu o Doutor da
Lei. Retrucou-lhe Jesus: Vai tu e faze o mesmo113.

A gargalhada de Marued ecoou pelo Oásis fazendo


com que todos se voltassem para olhar na direção dos dois.
– Esse Jesus é de fato muito inteligente! Imagino
como não ficou o Doutor da Lei, sendo obrigado a admitir

113 Lc 10, 25-37.

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Djalma Argollo

que um inimigo execrado como o samaritano tinha sido


melhor do que um sacerdote e um levita. Somente quem
sabe o ódio mútuo que se devotam os dois povos, que por
ironia veneram os mesmos princípios, pode entender a
dura lição que o enfatuado entendido no mosaísmo
recebeu... Mas vejo, pelo teu enorme bocejo, que estás
com sono. Empresta-me tuas anotações para que leia um
pouco mais, pois estou tão curioso sobre estes ensinos
que não conseguirei dormir tão cedo.
– Leva-os; amanhã me devolverás.
– Durma o sono dos justos, meu bom amigo.
Na manhã seguinte, antes do sol nascer, Tarik foi
acordado pelo seu amigo Marued.
– Acorda, amigo Tarik, pois quem cedo se levanta
tem mais tempo para realizar suas tarefas e aproveitar a
vida. Quem dorme demais perde preciosas oportunida-
des... Vim devolver o teu tesouro, guarda-o no cofre do
teu coração, e me despedir.
– Não ias conosco?
– Depois de ler os teus pergaminhos, resolvi conhe-
cer o homem que contou tão interessantes histórias. Elas
são como água em pleno deserto: vida! Como o meu
escravo grego já fez uma cópia dos teus manuscritos, vou
lendo-os até chegar à Judéia. Assim, quando encontrá-lo,
já saberei muito sobre os seus ensinamentos.
– Tens razão, meu amigo. E quando conheceres
Jesus, verás que o que acabas de ler não é senão uma
pálida amostra do que ele realmente é: o Mestre da Vida.

{ {
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Quando o amor veio à terra

{ 16

Alimentando
Almas e Corpos
S
imão Barjonas estava sentado num banco rústico
em casa de Ananias, situada no bairro dos vendedores de
azeite, na cidade de Damasco. Desde que chegara à cidade
milenar, fugindo da perseguição de Herodes Agripa I, o
antigo pescador evitava se expor em público, e apenas
uma seleta assembléia de cristãos, ao todo cinco pessoas,
fora os moradores da casa, reuniam-se para escutar-lhe
as lembranças de palavras e episódios da vida de Jesus.
Os olhos do Filho de Betsaida brilhavam ao calor
das lembranças, enquanto a voz lhe traía a emoção
provocada pelas cenas que a memória liberava. Recordo-
me perfeitamente – dizia ele – do dia em que o Mestre
nos reuniu, a nós que fazíamos parte dos doze que ele
escolheu para o acompanharmos em todos os momentos,
e disse que era chegado o momento de partilharmos do
seu trabalho de difusão da Boa Nova do Reino de Deus.
Dividiu-nos em seis grupos de dois, designando para cada
dupla uma região da Terra Santa, onde deveríamos pregar
a Palavra, bem como atender os doentes, curando-os de
seus males. Eu e João ficamos juntos, cabendo-nos a
região ao norte de Jerusalém, compreendendo as cidades

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Djalma Argollo

de Jope, Lida, Arimatéia, Emaús, Jericó e Efraim, além


de povoados diversos. Deu-nos autoridade sobre os
Espíritos impuros e o poder de curar todo tipo de doença.
Não deveríamos levar coisa alguma, além da roupa do
corpo, das nossas sandálias e um cajado em que nos
apoiássemos na caminhada, principalmente nos lugares
íngremes. Nem dinheiro ou comida, pois deveríamos
exercitar a fé na Providência Divina, a qual sempre ampara
e provê aqueles que se colocam sob sua proteção numa
entrega absoluta. Escuto ainda sua voz, dizendo:

Onde quer que entreis numa casa, nela permanecei


até vos retirardes do lugar. E se algum lugar não vos
receber, nem quiser ouvir, ao partirdes de lá, sacudi o
pó de debaixo dos vossos pés em testemunho contra
eles. 114

O ex-pescador parou um pouco para respirar e beber


um gole de água, continuando: Foi uma experiência muito
boa. Éramos desajeitados e tímidos no começo, como
acontece com todo e qualquer novato. Mas aos poucos
fomos ganhando confiança, pois tudo acontecia com muita
facilidade, porque Deus nos amparava sempre. Lembro
com emoção a primeira cura que realizamos. Foi em
Arimatéia. Tínhamos falado na sinagoga, despertando
alguns para o Reino de Deus. Dentre os que ouviram a
palavra e foram tocados por ela, estava um fariseu de nome
José, que se tornou discípulo de Jesus e, quando da sua
morte, deu o sepulcro de sua propriedade, que havia acaba-
do de mandar escavar. Convidou-nos para ir à sua casa,
hospedando-nos com muito carinho e gentileza, pois
desejava saber mais sobre o Mestre, sobre o qual já ouvira

114 Mc 6, 10-11.

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Quando o amor veio à terra

referências, e seus ensinamentos. Quando lá chegamos,


vimos seu filho mais novo doente com o corpo aberto em
feridas. Perguntamos-lhe se desejava que o menino ficasse
bom, respondendo-nos que era o que mais queria, pois
tanto ele como sua esposa estavam angustiados com o
seu sofrimento. Pedimos licença à mãe e untamos o
corpinho ferido da criança com óleo, como o Rabi nos
ensinara a fazer, e, em seguida, estendemos as mãos sobre
ela, invocando as bênçãos de Deus para que a cura se
realizasse. Imediatamente o menino dormiu como se
tivesse tomado uma infusão anestesiante. Os pais deram
louvores a Deus de alegria, pois há quatro noites o garoto
não conseguia dormir tão profundamente. Passamos a outro
cômodo onde foi servida a refeição, pois era a hora sexta,
enquanto falávamos sobre os ensinamentos em que Jesus
nos instruíra. Quando terminamos todos de nos alimentar,
a esposa de José foi ao quarto do filho de onde saiu em
exclamações de surpresa e júbilo – o corpo da criança estava
completamente limpo, sem qualquer ferida ou marca, como
se nunca tivesse sofrido daquela doença. Confesso que
chorei de emoção diante daquela prova evidente de que
Deus nos amparava o trabalho. Depois de um mês,
conforme Jesus estabelecera, voltamos para dar conta de
nossa missão. Chegando em Cafarnaum, em minha casa,
Jesus não se encontrava, pois tinha saído durante a noite
para orar nos montes da cercania da cidade. Mas lá já se
encontravam Natanael e Bartolomeu, que nos receberam
com muita alegria, e passamos a conversar sobre os
acontecimentos de nossas missões. Eles estavam eufóricos,
pois haviam conseguido curar alguns que estavam
possuídos por Espíritos impuros. Pouco a pouco, foram
chegando os outros, todos muito felizes com o sucesso de
seus esforços. Finalmente, chegou o Rabi. Abraçou-nos um

{ {
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Djalma Argollo

por um, dando-nos as boas vindas e comentando, antes que


houvéssemos contado qualquer coisa, lances importantes
acontecidos com cada dupla. Apesar de já estarmos
acostumados com sua capacidade de ver à distância, por
mais longínqua que fosse, bem como ler os pensamentos
das pessoas, ficamos admirados, mais uma vez, com o seu
poder espiritual. O mestre então nos disse: “Vinde vós,
sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco115”. Isto
porque a casa estava repleta de gente, e uma multidão já se
aglomerava à porta, impedindo qualquer descanso.
Rumamos para o lago, tomamos o barco e fomos em direção
a Betsaida, para uma região deserta nas margens do Jordão.

Assim que ele desembarcou, viu uma grande multi-


dão e ficou tomado de compaixão por eles, pois esta-
vam como ovelhas que não têm pastor. E começou a
ensinar-lhes muitas coisas.116

Simão parou novamente para respirar e umedecer a


garganta ressequida, com mais um gole de água, prosse-
guindo: Foi mais uma oportunidade de estafante trabalho,
atendendo todos. Nós, os seus discípulos, esforçávamo-
nos para protegê-lo da multidão e organizar o atendimento,
pois todos, à uma, queriam falar com ele, tocá-lo. Se não
mantivéssemos constante vigilância, formando um cordão
protetor com nossos corpos, ele poderia ser esmagado pela
turba. O impressionante é que, em meio a toda confusão
de empurra-empurra, o Rabi permanecia sereno. Nunca
lhe ouvi a menor palavra ou gesto de irritação nem surpre-
endi no seu rosto qualquer sinal de contrariedade. Parecia
que nada estava ocorrendo, e quando acontecia algum de

115 Mc 6, 31.
116 Mc 6, 34.

{ {
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Quando o amor veio à terra

nós tratar com rispidez ou empurrar alguém, mesmo que


ligeiramente, ele imediatamente repreendia, chamando
atenção para o dever do amor e carinho ao próximo. Como
a hora ia muito avançada, aproximamo-nos dele durante
um momento em que houve um aquietar de toda a
multidão, e Simão, o Zelota, fazendo-se intérprete das
nossas preocupações, disse-lhe: “– O lugar é deserto e a
hora já muito avançada. Despede-os, para que vão aos
campos e povoados vizinhos e comprem para si o que
comer 117”. Para surpresa nossa, Jesus respondeu: “– Dai-
lhes vós mesmos de comer118”. Retrucamos todos, a uma
só voz: “– Iremos nós e compraremos duzentos denários119
de pão para dar-lhes de comer?120”. A verdade é que não
tínhamos aquela quantia, mas talvez pudéssemos arrecadá-
la da multidão, e, mesmo assim, não tínhamos certeza de
que daria para alimentar todos, o pão que adquiríssemos
com aquele dinheiro. Mas ele perguntou: “– Quantos pães
tendes? Ide ver121”. Ao verificarmos entre nós, voltamos
para ele e respondemos: “– Cinco pães e dois peixes122”.
O Mestre, então, ordenou-nos que fizéssemos todos se
assentarem na relva, em grupos, para facilitar o trânsito
entre eles. Fizemos o que nos ordenara, muito admirados
e confusos. “E se sentaram no chão, repartindo-se em
grupos de cem e de cinqüenta”.123 Apesar de já termos
presenciado, como também realizado, muitos prodígios,

117 Mc 6, 35-36.
118 Mc 6, 37.
119 Denário era uma moeda romana, cunhada em prata, que trazia a efígie do
imperador com uma inscrição. Valia uma dracma. Era a diária de um trabalhador
nas vinhas. Quando havia carestia, era esse o valor de uma medida de trigo ou
três de cevada.
120 Mc 6, 37.
121 Mc 6, 38.
122 Mc 6, 38.
123 Mc 6, 40.

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Djalma Argollo

a verdade é que começamos a imaginar que ele não estava


bem. Havia tomado a cesta com os pães e os peixes e agia
como se fora distribuí-los ao povo. Não iria dar nem um
farelo para cada um, pensávamos, sem coragem de
externar nossos pensamentos. Quando todos estavam
acomodados, o Senhor,
Tomando os cinco pães e os dois peixes, elevou os
olhos ao céu, abençoou, partiu os pães e os deu aos
discípulos para que lhes distribuíssem. E repartiu tam-
bém os dois peixes entre todos. Todos comeram e fi-
caram saciados. E ainda recolheram doze cestos chei-
os de pedaços de pão e de peixes. E os que comeram
dos pães eram cinco mil homens.124

Nosso espanto não teve limites. Íamos e vínhamos


com pedaços de pães e peixes, distribuindo-os com os
grupos, que os passavam de mãos em mãos. Primeiro,
conforme ordem de Jesus, eram para as crianças, as
pessoas mais idosas, as mulheres, os doentes e finalmente
os jovens. Cada vez que ele punha a mão no cesto, eu
imaginava – vai acabar –, e a verdade é que nunca acabava.
Os pães e peixes pareciam se multiplicar, o que aconteceu
de fato, e de uma forma maravilhosa. Coisa semelhante
em nossas escrituras só a farinha de trigo e o azeite da
viúva de Sarefta125, abençoados pelo profeta Elias, que
produziu por cerca de três anos sem se esgotar126.
Calou-se Simão, com os olhos perdidos nas brumas
da lembrança, como a reviver todas as minúcias do episó-
dio, enquanto duas lágrimas de saudade rolavam sobre
sua vasta barba, molhando-lhe a túnica.

124 Mc 6, 41 a 44.
125 Hoje, com o nome de Sarafand, cidade situada na costa do Mediterrâneo, a 15
km de Sidon.
126 Ver 1 Rs, 17.

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Quando o amor veio à terra

No rosto de todos, estava expressa a emoção que o


relato de Simão transmitiu.
Ananias, com voz trêmula, anunciou: Meus irmãos,
o Mestre está conosco neste momento. Vejo-o envolto em
luz, ao lado de Simão Pedro, com a mão direita sobre o
seu ombro.
Sob o impacto da revelação do notável médium de
Damasco, todos se puseram de joelhos com a mente em
prece.
Vibração de imensa paz envolveu o recinto enquanto
oloroso e suave perfume desconhecido saturava o
ambiente...

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Quando o amor veio à terra

{ 17
Na Calada da Noite
L
ázaro estava sentado com Jesus no jardim de sua
casa em Betânia. Alguns dos discípulos haviam ficado
em Jerusalém, em casa de Maria Marcos, enquanto os
que tinham vindo até ali com o Mestre já estavam dormin-
do, cansados das andanças do dia. Com o seu anfitrião,
Jesus aguardava um visitante que viria de Jerusalém,
trazido por João, a fim de ter consigo uma entrevista.
A primeira vigília já ia a meio quando chamaram
no portão de entrada. Era João, acompanhado do esperado
visitante.
O recém-chegado foi apresentado como Nicodemos,
membro da facção dos fariseus e de alguma projeção no
Sinédrio. O seu nome, de origem grega, denunciava um
judeu oriundo da diáspora, e de fato seu pai morara em
Éfeso, onde comerciava com vinho, e ali ele havia nascido.
Mais importante do que ser um Vencedor do Povo127 é ser
vencedor de si mesmo, disse Jesus ao visitante, à guisa
de saudação, enquanto lhe dava o ósculo de boas vindas.
Depois de Nicodemos ter recebido o tratamento que
era dispensado aos hóspedes, iniciou a conversa, motivo
da visita: “– Rabi, sabemos que vens da parte de Deus
como um Mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que
fazes se Deus não estiver com ele”128.
127 Nicodemos, em grego, significa Vencedor do Povo.
128 Jo 3, 2.

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Djalma Argollo

Nicodemos vinha tomando conhecimento dos feitos


do Mestre desde que recebera uma carta do seu amigo
Jairo, um dos principais da sinagoga de Cafarnaum,
contando-lhe como sua filha fora revivida por ele, bem
como a cura instantânea de uma mulher portadora, havia
muitos anos, de um incurável fluxo de sangue, da qual
fora testemunha, justamente no dia em que estivera a ponto
de se ver privado de sua querida Débora.
Ainda nesse mesmo dia, acompanhara a estada de
Jesus no Templo, vendo-o curar vários doentes e escutando
seus pronunciamentos à multidão. No Sinédrio, antes de
vir para Betânia, acompanhara acerba discussão sobre o
Nazareno, tendo como ponto quase unânime o aspecto
subversivo do Rabi Galileu. Muitos exigiam medidas
drásticas para eliminar no nascedouro o perigo que ele
representava. Havia, entretanto, alguns, como José de
Arimatéia, que ponderavam a necessidade de se ter
cuidado, pois seus sinais indicavam uma origem divina
de poderes, e nesse caso poderiam entrar em conflito
aberto com o próprio Deus, o que seria um absurdo, já
que eles todos buscavam justamente cumprir a Vontade
do Todo-Poderoso. Já os Saduceus, unanimemente, procu-
ravam descaracterizar as curas como sendo realizadas por
intervenção do Senhor dos Estercos129. Finalmente, se
havia decidido que alguns Escribas, Sacerdotes, Fariseus
e Saduceus procurariam, independentemente, investigar
o novo Rabi, acompanhando suas andanças e testando-o
com argumentações religiosas e políticas para apanhá-lo
em algum deslize, montando uma base legal para que
pudesse ser levado a julgamento e, como a maioria deseja-
va, condená-lo à pena máxima. Eliminar-se-ia, então,

129 Baal-Zebu, aliterado para o grego como Belzebu.

{ {
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Quando o amor veio à terra

aquele foco de distúrbios sociais que punha em risco a


própria estabilidade da nação, como sublinhara Caifás,
o Sumo Sacerdote em exercício, que era um mero títere
do seu sogro Anás, afastado do cargo pelos romanos, mas
que continuava a exercer o poder como eminência parda.
Jesus, olhando nos olhos do fariseu que se mostrou
inquieto com o olhar que sentia vasculhar-lhe os segredos
mais íntimos, retrucou: “– Em verdade, em verdade te
digo: quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de
Deus”130.
A autoridade do Sinédrio ficou perplexa. O que
significaria nascer de novo? de que maneira? Muitos
fariseus defendiam que as almas das pessoas boas
retornavam à terra em outros corpos. Nunca conseguira
atinar como isso era possível, e agora o Rabi falava a
mesma coisa. Por isso, inquiriu: “– Como pode um homem
nascer, sendo já velho? Poderá entrar uma segunda vez
no seio de sua mãe e nascer?”131
O Mestre, com sua paciência, esclarece a Nicode-
mos: “– Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer
da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus”132.
A água, desde os primórdios da Humanidade,
sempre foi considerada como representação da matéria e
origem de tudo. Tales de Mileto (±620-547 a.C.) faz eco
dessa tradição quando, iniciando a era do pensamento
filosófico, postula que a água seria o princípio originário
e fundamental de tudo o que existe. Portanto, estabelece
Jesus duas condições básicas: nascer da matéria, isto é,
em novo corpo, através da reencarnação, e simultanea-
mente do Espírito, ou seja, espiritualizar-se, libertando-
130 Jo 3, 3.
131 Jo 3, 4.
132 Jo 3, 5.

{ {
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Djalma Argollo

se da prisão material. Para corroborar o que afirmamos,


sigamos o Mestre nos seus esclarecimentos: “O que é
gerado pela carne é carne, o que é gerado pelo Espírito é
Espírito. Não te admires, pois, de eu te haver dito: Importa
para vós nascer outra vez”.133
Ficava caracterizada a necessidade do renascimento
material na geração carnal e da regeneração espiritual,
fruto do aperfeiçoamento moral, numa evolução ética. “O
Espírito sopra onde quer, e escutas a sua voz; mas não
sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele
que é nascido do Espírito”.134
Hoje, à luz dos ensinos espíritas, diríamos: o Espírito
se manifesta onde deseje e, pela audiência, escutas sua
voz, mas não sabes de sua origem ou destino. Da mesma
forma, o que se espiritualiza transcende os níveis mate-
riais, e tu, que ficaste preso às necessidades das lides
reencarnatórias, não podes conhecer seus caminhos.
O fariseu estava atônito: “– De que maneira isso
pode acontecer?” 135
Foi quando o Mestre denotou surpresa:

– És o mestre em Israel e ignoras essas coisas? Em


verdade, em verdade te digo: falamos do que sabe-
mos e damos testemunho do que vimos, porém não
acolheis o nosso testemunho. Se não credes quando
vos falo das coisas da Terra, como ireis crer quando
vos falar das coisas do céu? 136

Durante muito tempo, Jesus falou sobre o problema


das vidas sucessivas, usando uma linguagem passível de

133 Jo 3, 6-7.
134 Jo 3, 8.
135 Jo 3, 9.
136 Jo 3, 9.

{ {
158

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Quando o amor veio à terra

entendimento se bem interpretada pelo fariseu. Fê-lo saber


que, acima de todas as considerações de ordem dogmática,
está a necessidade de se realizar a mudança da mente numa
transformação radical, sempre para melhor, de hábitos e
atitudes, idéias e conceitos, terminando por fazer do bem
e da virtude uma prática normal da existência.
Alta madrugada, Nicodemos se despediu do Mestre,
demandando a Jerusalém em fundo cismar. Jesus, por seu
lado, saiu da casa de Lázaro tomando caminho encosta
acima do Monte das Oliveiras em busca do horto do
Getsêmani, onde se entregaria á oração pelo resto da noite.

{ {
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Quando o amor veio à terra (A).pmd 160 25/9/2007, 11:53
Quando o amor veio à terra

{ 18

Uma Sessão
Espírita no Tabor

Era a primeira vez que Flávio Marcelo participava


de uma assembléia cristã. Ainda se sentia fraco, devido
ao longo período de obsessão pertinaz que sofrera, mas
estava espiritualmente renovado desde que lhe fora minis-
trada a cura por Clódio, a mando do Espírito de Jesus137.
Foi recebido com carinho pelos colaboradores da
instituição; sentia, embora, a natural inadaptação, comum
a todos os neófitos. Os freqüentadores se assentavam em
bancos rústicos de madeira no grande átrio da Casa de
Jesus. Eram pessoas de todos os níveis sociais, sendo
predominantes as das classes pobres, também escravos,
que vinham participar da reunião de esclarecimento sobre
os ensinos da Boa Nova e procurar, em muitos casos, a
cura de seus males físicos ou morais.
Clódio o abraçou gentilmente com um sorriso de
alegria, dizendo:
– Marcelo, que a Paz de Jesus seja contigo. É com
imenso júbilo que a Casa de Jesus te recebe, pois sei que

137 Ver Encontro com Jesus, Djalma Argollo. Salvador–Bahia: Fundação Lar
Harmonia, 2005.

{ {
161

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Djalma Argollo

em breve serás um dos grandes trabalhadores da seara do


Mestre.
Acanhado pela falta de hábito de conviver em
ambiente de sincera espontaneidade, sem os habituais
prejuízos da sociedade, respondeu meio sem jeito:
– A tua generosidade é muito grande para um
criminoso infeliz.
Imediatamente, Clódio pôs as mãos sobre seus
lábios, impedindo-o de continuar:
– Flávio, Jesus oferece a todos nós a oportunidade
da renovação dos hábitos e atitudes. Nenhum de nós aqui
tem passado imaculado. O Mestre veio para os doentes
da alma e não para os bons. Sua misericórdia nos acolhe
e socorre, ajudando-nos no processo de remissão do
passado enegrecido pela culpa.
Retirando, então, de dentro da túnica, um rolo de
pergaminho, o ofereceu ao centurião: Eis aqui um livro
que te ajudará a compreender melhor o que te expliquei
quando do nosso primeiro encontro. É uma coleção dos
ditos do Senhor, escrita pelo Apóstolo Levi, a qual fiz
traduzir do aramaico, tanto em grego como em latim,
acrescentando-lhe vários episódios da vida do Mestre, que
ouvi de discípulos que tiveram a ventura de conviver com
ele, principalmente de Simão Pedro e Natanael. Esta é
uma tradução para o grego, língua que manejas com
perfeição. Lê e medita para melhor conheceres seus
ensinamentos e exemplos. Agora, vem sentar-te perto de
mim, participando de nosso ensino público, quando
recordaremos passagens da vida de Jesus para edificação
de todos e oraremos a suplicar suas bênçãos para todos
nós e os doentes em particular.
Colocando Flávio Marcelo num banco próximo a
ele, o discípulo do Nazareno, de pé, pôs-se a falar: Meus

{ {
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Quando o amor veio à terra

irmãos, que a bondade do Senhor habite nossas almas.


Hoje estive meditando num episódio que me foi narrado
por Tiago, um dos primeiros a serem chamados por Jesus
para o apostolado, juntamente com João – do qual era
irmão –, e que, à semelhança do Mestre, foi morto pelos
inimigos da Verdade. Contou-me então:
Certo dia, quando nos dirigíamos para Jerusalém,
depois de atravessarmos a Samaria, o Senhor nos fez parar
no sopé do monte Tabor, onde havia uma plantação de
Oliveiras, para descansarmos um pouco. Era a primeira
hora do dia, e caminhávamos desde a terceira vigília da
Noite. O Sol havia se levantado há pouco no horizonte, e
as folhas das árvores, bem como a relva, apresentavam-
se molhadas de orvalho. Chamando-nos, a mim, João e
Simão Barjonas, recomendou aos outros que ficassem ali,
ao redor do poço, enquanto subiríamos ao alto do monte.
Seguimo-lo intrigados, mas sem fazer perguntas. Ao
chegarmos no alto, fez-nos sentar sobre nossas capas,
estendidas sob a copa de árvores ali existentes. Depois de
conversar conosco por algum tempo, recomendando que
mantivéssemos a mente em oração e o coração livre de
quaisquer preocupações, fechou os olhos, pondo-se em
atitude de prece. Começamos a sentir que a atmosfera em
redor tornava-se leve, enquanto uma doçura indescritível
tomava-nos o peito como se estivéssemos sendo preenchi-
dos por um mel divino. Ao mesmo tempo, um torpor
agradável passou a tomar conta de todos nós. Sentíamos
como se uma substância invisível saísse de nossos corpos,
espalhando-se pelo ambiente. De repente, o corpo de Jesus
principiou a emitir uma luz impossível de ser descrita, e
suas vestes tornaram-se imaculadamente alvas. E então,
ó prodígio dos prodígios, ladeando o Mestre, apareceram
duas pessoas imponentes, emitindo, da mesma forma,

{ {
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Djalma Argollo

intensa luminosidade, se bem que de menor beleza e fulgor


do que a dele. Uma voz misteriosa sussurrou aos nossos
ouvidos: o da direita é Moisés, o libertador de nosso povo,
e o da esquerda é Elias, o vigoroso mensageiro de Deus.
Um gozo celestial nos encheu a alma. Estávamos diante
de duas personalidades marcantes da História de nossa
raça. Lágrimas de alegria nos inundavam a face. Havíamos
assistido a notáveis prodígios realizados pelo Rabi, mas
aquele excedia a todos, sendo superado apenas pelo seu
ressurgimento após a morte. Moisés e Elias conversavam
com ele sobre os eventos de sua prisão e morte, que,
segundo informavam, aconteceriam, como de fato
aconteceram em breves dias. Jesus lhes transmitia
instruções sobre como deveríamos ser protegidos. Sei
apenas o geral, pois não conseguia fixar detalhes por me
sentir como querendo adormecer, o mesmo ocorrendo com
os outros dois. Repentinamente, com o açodamento que
sempre lhe marcou a personalidade, Simão falou, dirigindo-
se ao Senhor: “Mestre, é bom estarmos aqui. Se quiseres,
construiremos três tendas: uma para ti, outra para Moisés e
outra para Elias”.138 Mal acabara de falar, uma espécie de
nuvem luminosa envolveu todos nós, e uma voz, impossível
de descrever, disse: “Este é o filho em quem me rejubilo. A
ele, ouvi”.139 A nós, pareceu que o próprio Deus nos falava.
O medo tomou de assalto os nossos corações. Lançamo-
nos por terra, com o rosto coberto pelas mãos e o corpo
todo a tremer. Senti, então, a mão de Jesus tocar-me o
ombro, enquanto ele dizia: “Não temais, e levantai-vos”.140
Ergui o rosto, ainda assustado, mas tudo havia voltado ao
normal. Moisés, Elias e a nuvem tinham desaparecido.
138 Mt 17, 4.
139 Mt 17, 5.
140 Mt 17, 7.

{ {
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Quando o amor veio à terra

Enquanto descíamos o monte, o Mestre recomendou: “Nada


digais do que acabastes de ver, até que o Filho do Homem
tenha se levantado de entre os mortos”.141 Nesse instante,
lembrei-me de uma profecia que corria entre os Doutores
da Lei, que levantara em mim uma dúvida, havia algum
tempo, e perguntei: “– Mestre, por que dizem os Escribas e
os Fariseus que Elias haveria de vir primeiro?”142 Preocu-
pava-me o assunto, pois Jesus, não tinha dúvidas, era o
Messias, mas se Elias não viera, então havia uma falha nas
profecias. O Mestre respondeu à minha inquirição, dizendo:
– Sem dúvida, Elias há de vir para restaurar todas as
coisas. Eu, porém, vos digo que Elias já veio, mas
não o reconheceram. Pelo contrário, fizeram com ele
tudo o que quiseram. Da mesma forma, o Filho do
Homem sofrerá da parte deles.143

No mesmo instante compreendi, como também os outros,


que se referia a João, O Que Mergulha. Entendi, então, o
porquê da minha pergunta. Alguma coisa na figura de Elias,
que acabáramos de ver, lembrava João. Não que houvesse
semelhança nos traços do rosto, mas havia algo sutil na
maneira de falar, nos gestos, que me havia parecido familiar.
As profecias, portanto, haviam se cumprido integralmente.
Elias renascera como João, O Que Mergulha. Era um
mistério para mim, mas já houvera muito mistério naquele
dia, e não quis aprofundar o assunto.
Assim, meus irmãos, foi a vida de Jesus. Uma
sucessão de prodígios, que continuam ocorrendo por sua
Divina intercessão, entre nós...
Nesse momento, a pessoa de Clódio sofreu uma
mudança radical. Seu corpo se inteiriçou e a fisionomia

141 Mt 17, 9.
142 Mt 17, 10.
143 Mt 17, 11-12.

{ {
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Djalma Argollo

se transformou com os olhos voltando-se para cima,


deixando aparecer o branco do globo ocular, como
acontece com aqueles que sofrem desmaio. A voz se
alterou, e ele se pôs a falar completamente mediunizado:
Irmãos queridos. Alegra-me o coração que Clódio tenha
relembrado esse episódio que lhe narrei quando nos
encontramos em Jerusalém, pouco depois do
ressurgimento do Mestre. Jesus, em sua bondade,
aprouve fazer de nós, humildes servos, testemunhas do
seu poder incalculável para que fôssemos, entre os
homens, intérpretes do seu incomensurável Amor. Hoje,
na Pátria Celestial, posso afirmar que seus ensinamentos
são a expressão da Vontade do Pai Celeste e guias seguros
para a nossa redenção espiritual. Venho a esta casa,
edificada em seu nome, para trazer mensagens de
estímulo e alegria a todos e, em particular, ao nosso irmão
Flávio Marcelo, que nos visita pela primeira vez, à
disposição do Senhor.
Citado nominalmente, o centurião se moveu,
espantado, arregalando os olhos, postos na figura de
Clódio em transe, enquanto o Espírito de Tiago prosseguia:
Meu irmão, nosso Mestre te resgatou das sombras do mal
e da possessão para uma grande tarefa. Em breve, o irmão
Clódio virá para o Seio de Abraão a fim de receber o justo
prêmio pela dedicação aos ideais de Amor e Caridade,
para os quais tem vivido de maneira integral. De acordo
com a vontade de Jesus, assumirás o seu lugar à frente
deste núcleo do Bem. Prepara-te, pois, com empenho e
perseverança, lutando para te transformares interiormente,
sepultando o militar arbitrário e arrogante que ainda existe
em ti e deixando surgir o Filho dos Céus, ainda em embrião
em tua alma. É a oportunidade de quitares os débitos
contraídos com a Lei Divina, através do serviço fraternal.

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Quando o amor veio à terra

Voltando-se para o auditório, que escutava emocio-


nado suas palavras e, em lágrimas, após a revelação da
morte próxima do missionário por quem todos nutriam
imensa afeição, prosseguiu: Não deixeis que a tristeza
ensombre vosso coração. O irmão Clódio se fez merecedor
do prêmio do retorno à Pátria Celestial. Ao contrário do
que imaginam os homens, presos a uma visão restrita da
realidade, a morte é uma bênção para todos os que
souberam fazer da existência uma oportunidade de
elevação. Só devem temê-la os que carregam a consciência
marcada pelo crime, enlameada pelos vícios, ou as mãos
vazias de boas obras. Além do mais, o nosso irmão
prosseguirá em Espírito junto a vós, compartilhando com
os nobres trabalhos desse ninho de amor, que, como já
vos disse, não sofrerão solução de continuidade,
permanecendo ativos e no mesmo nível de espiritualidade.
Jesus guarda muitas esperanças naquele que escolheu para
a sagrada missão de dirigir sua casa.
A frase foi dita com marcada intensidade, voltando-
se a entidade para Flávio Marcelo, em cujas faces
escorriam lágrimas de emoção.
A seguir, dirigindo-se aos cooperadores presentes,
solicitou que fossem trazidos os doentes, e, impondo as
mãos sobre eles, a todos curou em nome de Jesus,
enquanto perfumes variados percorriam o ar, saturado de
sublimes vibrações. Depois, deslocando o médium para
o interior da casa, atendeu muitos enfermos que ali
estavam internados, portadores de doenças muito graves.
Poucos receberam a cura completa. Outros, em fase
terminal, receberam estímulos para uma desencarnação
tranqüila, tendo suas dores estancadas, o que se percebia
em suas faces, que estampavam alívio e paz.
Em continuação, retornando à assembléia, falou-
lhes ainda por algum tempo, dizendo que em breve seriam

{ {
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Djalma Argollo

todos os cristãos a demonstrarem fidelidade à Fé, pois as


aglomerações do mal, na espiritualidade inferior,
planejavam uma perseguição sistemática contra os Servos
da Boa Nova. Mas que ninguém se atemorizasse, porque
as Forças do Bem, lideradas pelo Cristo, estariam ao lado
de todos, amparando-os nos transes difíceis. Finalmente,
orou fervorosamente, deprecando, ao Senhor, amparo e
proteção para todos.
Enquanto a prece se evolava através dos lábios do
médium, ele se iluminava num fenômeno de transfigu-
ração semelhante ao que fora narrado. Irradiava um azul
claro com reflexos violeta, e do seu tórax projetavam-se,
a intervalos regulares como que marcados por invisível
compasso, jatos luminosos que atingiam a todos os
presentes, fazendo-os sentir indescritível paz e alegria.
Finda a prece, retirou-se do médium, que foi cercado
por todos. Clódio se mostrava consciente do aviso da
próxima desencarnação. Seus olhos irradiavam alegria,
enquanto confortava os mais tristes com palavras de
ânimo, edificando pela serenidade natural. Voltando-se
então para Flávio Marcelo, disse-lhe: Sabia que o Mestre
tinha um propósito quando me enviou à tua casa. Dou-
lhe graças pela providência. Sei que serás um fiel servidor,
e que esta Casa crescerá em espiritualidade e serviço sob
a tua direção. Vem, não percamos tempo. Vou te introduzir
nos simples segredos da nossa administração, pois anseio
ir ao encontro do querido Mestre.
Um sorriso de pura alegria iluminava o rosto do
servo abnegado. Flávio, em lágrimas, não sabia o que dizer
diante de tantas e inesperadas emoções. Abraçado por
Clódio, demandou ao interior da Casa de Jesus,
começando a tarefa de se integrar nos serviços da Caridade
Ativa.

{ {
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Quando o amor veio à terra

{ 19

Expulsão dos
Vendilhões do Templo
C
aio Valério ao seu amigo muito querido Tércio.
Saudações.
Exoro aos deuses muitas felicidades para tua amada
Níobe, que, além da aparência bela das ninfas, possui a
nobreza de Juno, bem como para teus diletos filhos
Ascânio e Pulquéria.
Aproveitando o Correio Imperial, que parte hoje
ainda para Roma, envio-te um ligeiro resumo dos
acontecimentos desde a minha chegada a este território
do nosso Império.
A viagem foi muito agradável. De Óstia até o porto
de Cesaréia Marítima, o mar esteve calmo como um
espelho líquido, coisa bastante incomum nesta época do
ano.
Fiquei hospedado no palácio do Procurador, que
tinha partido para Jerusalém, principal cidade da Judéia,
como sabes.
Dois dias depois, fui conduzido por uma escolta
de legionários até aquela cidade, que fervilhava de gente.
Soube, depois, que eles comemoram várias festas
religiosas, mas esta que encontrei em preparação é a

{ {
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Djalma Argollo

principal. Chama-se Páscoa e, segundo dizem, recorda


eventos acontecidos há muitos séculos, no Egito, quando
um de seus heróis ancestrais, de nome Moisés, libertou o
seu povo do jugo servil que sofria sob os faraós.
A história tem o sabor mitológico dos contos gregos,
pois fala de fenômenos maravilhosos e atuação de forças
divinas – ou será melhor dizer de uma força divina? pois
este povo adora um Deus apenas, que afirmam pretensio-
samente ser o único que existe. Comemoram a data com
um banquete que segue uma norma ritualística. O chefe
da família faz uma oração de abertura da cerimônia.
Depois, há um ritual de abençoar os cálices de vinhos.
Finalmente, come-se o cordeiro, um espécime imaculado,
sacrificado pelos sacerdotes no Templo. Esse requisito é
fundamental e, por isso, não se pode comemorar a Páscoa
fora de Jerusalém. Juntamente com o animal, comem-se
ervas amargas, pães não fermentados e uma bebida feita
de várias frutas – o Haroset.
Você deve estar se perguntando como sei de tudo
isso, pois o banquete é vedado a não-judeus. Quem me
fez um relato disso e de muitos outros costumes deste
povo foi um escravo do Procurador, que pertenceu a um
judeu eminente daqui por muitos anos.
O fato é que, por esta época, judeus de todas as
partes do Império acorrem a Jerusalém, que fica super-
lotada. É muito comum, devido à multidão e à exaltação
religiosa, explodirem atitudes de rebeldia contra o domínio
de Roma, por parte de elementos radicais. Por isso, as
medidas de vigilância são redobradas e severas.
Apesar das preocupações naturais do momento de
tensão, Pôncio Pilatos se mostrou deveras gentil e atencio-
so para comigo diante da tua carta de apresentação.
Providenciou acomodações excelentes e um serviço

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Quando o amor veio à terra

perfeito, levado a efeito por seis escravos, sendo dois


homens e quatro mulheres, todos da Bitínia. O Procurador
se referiu a ti e ao teu pranteado pai com expressões de
carinho e reconhecimento. Encontrei aqui o Senador
Publius Lentulus, que veio comissionado pelo Senado,
acredito que em alguma missão política. Veio com a
família, e tive oportunidade de encontrá-lo, e a esposa,
num jantar que Pilatos ofereceu em sua homenagem.
Como o tempo urge, quero narrar-te um episódio
interessante ocorrido ontem. Estava visitando o Templo,
acompanhado do escravo a quem me referi, que me
explicava tudo o que ali havia e acontecia. O primeiro
Templo foi erguido por Salomão, o terceiro rei judeu. Por
sinal, esse rei era um déspota oriental. Imagine que,
segundo narrado nas escrituras judaicas, teve trezentas
esposas e setecentas concubinas. Como vês, um verdadei-
ro fauno. Dizem que foi o mais sábio dos governantes da
Judéia. Imagina.
Esse Templo, contudo, é novo. Foi construído por
Herodes sobre as ruínas do anterior, incendiado pelas
tropas do teu ancestral Pompeu quando conquistou
Jerusalém. Na verdade, ainda não está terminado, pois
faltam ser erguidos alguns muros externos.
É uma construção imponente. Possui uma série de
colunatas, os átrios, que o dividem internamente em três
grandes espaços: o átrio das gentes, a que tem acesso
qualquer pessoa, judeu ou não; em seguida, o átrio das
mulheres, que, como o nome indica, é até onde têm acesso
as mulheres; mais adiante, o átrio onde somente os judeus
podem entrar; é proibido a qualquer não-judeu ultrapassar
o átrio das gentes, sob pena de ser morto imediatamente.
No átrio externo, sob as colunatas, estão os chama-
dos pórticos. O de Salomão, em homenagem àquele rei, é

{ {
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Djalma Argollo

dos mais freqüentados. E foi aí que justamente ocorreu o


fato interessante. Os pórticos estavam regurgitando de
gente. Ouviam-se as línguas mais variadas, bem como
viam-se as vestimentas mais estranhas. Grande número
de pequenas mesas encontravam-se espalhadas por todo
o lugar, atrapalhando o trânsito das pessoas. Eram mesas
em que os cambistas estavam exercendo o seu mister de
trocar moedas para os visitantes de todas as partes do
mundo que precisavam de dinheiro romano a fim de
comprar os animais destinados aos sacrifícios que ali se
realizam. Esses animais ficavam espalhados por ali: bois,
ovelhas e pombas. Imagina que barulho e que fedor. Mais
parecia um mercado do que um templo. Repentinamente,
amigo, apareceu um homem de cabelos compridos e barba,
cercado de alguns acólitos. Vim a saber depois que seu
nome é Jesus, de Nazaré, uma cidade da região da Galiléia
que fica bem ao norte e onde existe um lago que eles
chamam ufanamente de Mar da Galiléia.
Sua voz estrondou no recinto, e o meu escravo
traduziu para mim: “Tirai daqui essas coisas e não façais,
da casa de meu Pai, casa de mercado”144. Ao mesmo
tempo, brandindo uma corda que estava no chão como se
fora um azorrague, ameaçava os vendedores como se lhes
fosse bater. Uma coisa interessante: todos saíram correndo,
derrubando mesas e soltando os animais. Durante muito
tempo, reinou uma confusão terrível, que foi acalmando
aos poucos com a chegada da milícia do templo. Pensei
que fossem prender o homem que causara tudo aquilo, o
que na verdade pretenderam, mas ele calmamente lhes
falou, e eles se retiraram sem lhe fazer nada. Fiquei
admirado, mas você precisava ter visto a cena. Apesar do

144 Jo 3, 16.

{ {
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Quando o amor veio à terra

gesto agressivo, não havia, em seus olhos ou face, nada


que lembrasse uma pessoa furiosa. Sua voz era enérgica;
sua face, porém, tranqüila. Parecia emanar, daquele
homem, uma tão serena autoridade, que todos, inclusive
eu mesmo, fomos tomados de medo.
Meu servo me disse que o tal homem é, por muitos,
tido como o Messias, palavra hebraica que significa
Ungido. Assim como se faz quando se passa óleo
perfumado na cabeça. Não entendi muito, mas parece que
ele teria sido ungido por Deus; seja lá o que isto queira
dizer.
Preciso terminar, pois o mensageiro já chegou.
Ex corde 145.

145 Do coração. Expressão latina, empregada para finalizar correspondências para


pessoas íntimas.

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Quando o amor veio à terra

{ 20
A Última Semana
As ondas do Mar Egeu, à distância, quebravam-
se na praia em miríades de espumas em recorrência
monótona, enquanto o sol da tarde caminhava lentamente
em direção ao ocaso.
A primavera enfeitava de flores a paisagem, fazendo
a alegria das abelhas, que zumbiam alegremente na faina
de colher o néctar, indispensável para a produção de mel
em suas colméias. Os passarinhos pipilavam por entre os
galhos das árvores frondosas do sítio à beira mar e também
saltitavam nervosos pela grama do solo, perto do grupo
que se sentava em semicírculo debaixo de antigo carvalho
de ampla copa, em cujo tronco se recostava o Apóstolo
João, com seu rosto sereno e olhos mansos. Apesar da
idade avançada, que as rugas acentuadas demonstravam,
sua voz fluía doce e calma, rememorando passagens da
vida do amado Rabi Galileu.
Naquele momento, falava sobre a última semana
do Mestre entre os homens:
Depois que Jesus fez Lázaro sair do sepulcro,
devolvendo-lhe a vida, os principais do Sinédrio se
reuniram em conselho para estudar um meio de se livrarem
dele. Tomando a palavra, Anás disse, conforme me relatou
depois Nicodemos, que era também discípulo, mas de
maneira oculta: “Que faremos? Esse homem realiza

{ {
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Djalma Argollo

muitos sinais. Se o deixarmos assim, todos crerão nele e


os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e a
nação” 146.
Um dos ouvintes, discípulo antigo, de origem grega,
mas que, ao ser batizado pelo irmão de Tiago, tomara-lhe
o nome, interrompeu as anotações que fazia e, dirigindo-
se ao ancião, exclamou: Como pode o homem ficar tão
cego pelos seus interesses pessoais, a ponto de se transfor-
mar em adversário do próprio Deus?
João sorriu ante a indignação que vibrava na voz
do seguidor açodado: João, meu querido João, não
devemos esquecer que o Mestre nos ordenou amar todas
as criaturas, principalmente os nossos inimigos. Anás e
seus sequazes estavam enceguecidos pelo mal de seus
corações e naturalmente devem estar sendo objeto da
rigorosa justiça de Deus.
O discípulo baixou os olhos, confuso, enquanto o
Apóstolo prosseguia:
Naquele ano, estava como Sumo Sacerdote, Caifás,
que era genro de Anás, que, na verdade, exercia o poder
por seu intermédio. Ele, então, interferiu, dizendo aos
circunstantes: “Vós não estais entendendo nada. Não
compreendeis que é de vosso interesse que morra um só
homem pelo povo, para que não pereça a nação toda?”147.
Depois de discutirem por algum tempo, resolveram que
Jesus teria de ser morto. Em breve sabíamos da resolução
do Sinédrio, e o Mestre resolveu que deveríamos nos
afastar de Jerusalém por algum tempo. Por isso, fomos
para Efraim, perto da Samaria, onde ficamos em casa de
um discípulo chamado Abdiel, até que se aproximasse a
época da celebração da Páscoa. O Mestre, então, resolveu

146 Jo 11, 47.


147 Jo 11, 49-50.

{ {
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Quando o amor veio à terra

voltar para Jerusalém, a fim de celebrarmos ali a ceia


pascal, como fazíamos todos os anos. Assim, seis dias
antes da festa, deslocamo-nos para Betânia, do outro lado
do Monte das Oliveiras, hospedando-nos em casa de
Lázaro, a quem o Senhor amava muito, e quem o retirara
do sepulcro. A alegria do ressurrecto e de suas irmãs foi
grande. Deram um banquete em homenagem ao Mestre.
Enquanto, reclinados nos coxins, comíamos os pratos
deliciosos que Marta sabia preparar como ninguém, Maria,
agradecida a Jesus por ter feito seu irmão retornar à vida,
quebrou uma ampola de preciosa e perfumada essência
de nardo puro, de grande valor, e com ele untou os pés do
Mestre, enxugando-os com seus cabelos. Nesse momento,
Judas de Quêriot, aquele que terminou por traí-lo,
comentou: “– Por que não se vendeu esse perfume por
trezentos denários, para dá-los aos pobres?”148 Nós outros
nos entreolhamos, pois havia um disse-que-disse entre
nós que Judas retirava para si importâncias da caixa
comum de esmolas. Ao comentarmos o fato com Jesus,
ele nos repreendeu, dizendo-nos que deveríamos cada um
cuidar da própria conduta, deixando a Deus o julgamento
da ação dos outros. O amor – prosseguiu ele – entre vocês
deve superar qualquer antipatia, pois devem dar exemplos
de fraternidade ao mundo inteiro. Assim, nunca mais
voltamos a tocar no assunto. Naquele momento, Jesus
retrucou ao discípulo: “– Deixe-a. Que ela conserve o meu
corpo para o dia da sepultura, pois sempre tereis pobres
convosco; a mim, porém, nem sempre tereis”149. Como
sempre acontecia, a presença de Jesus atraiu uma grande
multidão, que vinha, além de solicitar curas e ouvir o
Mestre, conhecer Lázaro, sobre o qual corria a notícia de

148 Jo 12, 5.
149 Jo 12, 7.

{ {
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Djalma Argollo

que havia sido retirado do vale escuro da sombra e da


morte. Sabedores de que o Mestre estava na região, os
chefes dos sacerdotes se reuniram para traçar um plano
para a sua prisão. Também decidiram que Lázaro deveria
ser morto, pois era motivo para que muitos acreditassem
que Jesus era o Messias. Confesso que, apesar das notícias
de conspiração contra o Mestre, não estávamos nem um
pouco preocupados. Sempre imaginamos que ele haveria
de vencê-los, como fizera até aquele momento. Dessa
forma, o acompanhamos felizes e despreocupados quando
resolveu ir à cidade de Jerusalém. Na porta da cidade,
éramos aguardados por uma multidão. O Mestre, então,
montou num jumento que havia mandado buscar e, assim,
entrou na cidade. A multidão, empolgada pela sua
presença, começou a tomar de ramos de palmeira, gritan-
do: “Hosanas! Bendito o que vem em nome do Senhor e
Rei de Israel”150. Confesso que estávamos orgulhosos.
Sentíamos que se inaugurava ali o Reino Messiânico,
previsto pelas Escrituras. O fato foi levado ao Sinédrio,
onde os fariseus reclamavam: “Vede! Nada conseguis.
Todo mundo vai atrás dele!”151. Apesar da euforia de todos,
Jesus mantinha um semblante grave e, na primeira
oportunidade, alertou-nos de que acontecimentos
dolorosos estavam por vir. Recordo-me de suas palavras:
“Quando eu for elevado da Terra, atrairei todos a mim”152.
Nenhum de nós, todavia, entendeu o que ele dizia. Vivía-
mos, como que fascinados, o momento de glória, que se
assemelhava ao da vitória definitiva dos anseios
messiânicos. Nesse clima de júbilo, preparamo-nos para
comer a ceia pascal, servida na casa de Maria Marcos, no
150 Jo 12, 13.
151 Jo 12, 19.
152 Jo 12, 32.

{ {
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Quando o amor veio à terra

Monte Sião, no primeiro andar da residência daquela que


era uma das discípulas da primeira hora, e que fazia parte
do grupo de mulheres que apoiavam os trabalhos de
caridade que Jesus nos ensinava ser a atividade básica
dos que o seguissem. Antes do ritual da ceia, o Mestre fez
questão de nos dar mais um exemplo de humildade,
lavando-nos os pés. Ante os protestos de Simão, ele
retrucou: – Se eu não lavar os teus pés, não terás parte
comigo. Depois, disse a todos nós:
Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais de
Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. Se, por-
tanto, eu, o Mestre e Senhor, lavei-vos os pés, tam-
bém deveis lavar-vos os pés uns dos outros. Dei-vos o
exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o
façais. Em verdade, em verdade vos digo: o servo não
é maior do que o seu senhor nem o enviado maior do
que quem o enviou. Se compreenderdes isso e o
praticardes, sereis felizes.153

Recordo que, na ocasião, com um ar triste, Jesus


disse: “– Em verdade, em verdade, vos digo: um de vós
me entregará”154. Fiquei perturbado com a declaração e,
instado por Pedro, aproximei-me do Senhor e lhe perguntei
ao ouvido: – Quem é, Senhor? Ao que ele me respondeu,
em voz baixa: “– É aquele a quem eu der o pão que vou
umedecer no Haroset”155. Assim disse, assim fez. Tomando
do pão molhado no molho, ofereceu-o a Judas, filho de
Simão de Quêriot e, à meia voz, disse-lhe: “O que estás a
fazer, faze-o depressa”156. Judas, um tanto perturbado pelo
que o Mestre lhe disse, saiu apressado, sem que ninguém

153 Jo 13, 12-17.


154 Jo 13, 21.
155 Jo 13, 25-26.
156 Jo 13, 27.

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Djalma Argollo

soubesse o que estava acontecendo, imaginando que Jesus


lhe houvesse ordenado realizar alguma ação de caridade,
pois ele era quem controlava o dinheiro do grupo para
tais finalidades. Depois que o discípulo saiu, o Mestre
ainda falou durante algum tempo conosco, com palavras
que só mais tarde compreendemos que eram de despedida.
Finalmente, convidou-nos para irmos ao jardim no Monte
das Oliveiras, onde costumava se recolher à noite, pois
nunca permaneceu em Jerusalém durante esse período.
Ali, costumava se entregar a longas horas de oração. Nesse
dia, em particular, Jesus estava muito triste, quase se
podendo sentir nele um toque de ansiedade. Depois que
se consumou a tragédia de sua prisão e morte, pudemos
avaliar que ele sabia de tudo o que estava para acontecer.
Embalados pelo sonho de um reinado messiânico às
portas, não conseguíamos entender a tensão a que estava
submetido. E ele, com seu carinho por todos nós, evitava
firmemente inquietar-nos antes da hora, embora nos
tivesse, todo o tempo, alertado muito sutilmente sobre os
dolorosos episódios que estavam para acontecer.

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Quando o amor veio à terra

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A Traição
Era um sentimento de remorso gigantesco,
indescritível. Judas parecia carregar um vulcão em feroz
erupção na intimidade da consciência. Em aterrador
monoideísmo, a frase se repetia em seu pensamento,
queimando e dilacerando os delicados tecidos mentais:
Matei o Messias! Sou um réprobo sem remissão.
Alucinado, fechava-se à influência dos Espíritos
Amigos que procuravam ajudá-lo, tornando-se um mero
joguete nas mãos de cruéis obsessores, que se divertiam
em lhe aguçar o complexo de culpa, sugerindo-lhe a idéia
nefanda do autocídio. Na verdade, todas as falanges das
trevas vibravam de alegria com a prisão e sofrimentos de
Jesus, para o que muito contribuíram, e inspiravam seus
algozes a serem extremamente cruéis com ele. Seria a
lição definitiva para todos os que ousassem desafiar-lhes
o poder. Exultavam só de imaginar que, com aquela
façanha, estariam perpetuando sua influência sobre a
Humanidade, mantendo indefinidamente seu império
sobre ela. Daquele momento em diante, imaginavam
loucamente, seriam os senhores incontestes do Planeta
Terra para todo o sempre.
Desde que tomaram conhecimento da encarnação
de Jesus, movimentaram-se para eliminá-lo. Herodes foi
o primeiro instrumento de que se utilizaram, sendo co-

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Djalma Argollo

responsáveis pela matança das crianças belemitas e pela


fuga de José, Maria e a criança para o Egito. Frustrados
em seus planos, e como o Mestre permanecesse em regime
de anonimato na vila insignificante de Nazaré, devidamen-
te protegido pelas Falanges do Bem, limitaram-se à
observação sistemática do seu desenvolvimento, talvez
incertos de que seria mesmo o Messias prometido pelos
Escritos Sagrados. Quando, porém, ele se revelou plena-
mente diante do Batista, resolveram agir na esperança de
corrompê-lo, anulando-lhe a missão no obscuro episódio
da tentação no deserto. Desde então, agindo sobre os
incautos e irresponsáveis líderes das facções político-
religiosas da nação judaica, tentaram, por todos os meios,
fazê-lo matar. Uma vez, em Nazaré, quase conseguiram o
nefando intento quando insuflaram os conterrâneos de Jesus
a lançá-lo do alto da montanha, tragédia evitada pela pronta
ação do Mestre e dos Espíritos que o acolitavam.
Agindo sobre a infeliz Herodiades, Salomé e o
pusilânime Herodes Antipas, participaram da prisão e
morte de João Batista, crendo terem logrado uma vitória
sobre as Forças do Bem. Por alguns momentos, moveram
Herodes Antipas contra Jesus, tentando executá-lo
juntamente com o Precursor. Mas o Mestre escapou,
exilando-se voluntariamente por algum tempo na Siro-
fenícia, quando se deu o episódio da cura da filha da
mulher daquela região.
Jesus estava sempre a escapar das ciladas que os
ferozes perseguidores espirituais lhe armavam através dos
sacerdotes, escribas, fariseus e saduceus, com sutilezas
legalistas diversas. Os discípulos, às vezes, sofriam-lhes
as influências, prontamente anuladas pelo Rabi Galileu
em intervenções corretivas. Judas, porém, perdido em
cogitações de ordem política, findou por cair
gradativamente sob o seu domínio.

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Quando o amor veio à terra

Enquanto preparava o próprio enforcamento, o


infeliz discípulo rememorava os momentos passados junto
ao Mestre, desde quando este o convidara para fazer parte
do seu círculo íntimo, dando-lhe também a incumbência
de gerir o fundo financeiro do grupo, cuja finalidade era
atender à imensa necessidade dos pobres da nação judaica.
Dessa forma, buscava o Nazareno despertar-lhe para a
Caridade Ativa, procurando fazer seu coração se expandir
nas ondas do Amor.
Seus colegas de apostolado, todavia, não nutriam
muita simpatia por ele. Viviam a acusá-lo de se aproveitar
dos recursos fiduciários sob sua guarda, tendo-o como
ladrão. Isso o magoava muito, principalmente por não ser
verdade. Assim, vivia quase isolado, sendo que Simão, o
Zelota, era quem mais dele se aproximava, pelas afinida-
des ideológicas. Ambos desejavam uma vitória armada
sobre os romanos e sonhavam com a implantação do
reinado do Messias, que acreditavam ser Jesus. Não
podiam compreender a atitude de passividade do Mestre,
tomando-a como estratégia até que surgissem as condições
efetivas de um levante geral. Imaginavam que os ensinos
do Rabi sobre o Amor e a Fraternidade eram apenas um
disfarce para ocultar-lhes os propósitos libertários.
Quando da apoteótica entrada de Jesus na Cidade
Santa, ao ver a multidão aclamá-lo, julgou ser chegado o
momento. O Mestre, contudo, parecia não perceber a feliz
oportunidade. Jerusalém regurgitava de peregrinos, e o
efetivo romano, cria, não teria condições de resistir a uma
rebelião que ali fosse levada a efeito. Além do mais,
conhecendo os poderes do Rabi, e sendo ali a sede do
Templo, portanto, a morada do próprio Deus, imaginara,
incentivado por cruéis gênios do Mal, ser preciso tomar
uma resolução imediata.

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Djalma Argollo

O plano lhe surgiu à mente como se fora uma


iluminação. Precisava fazer Jesus ser obrigado a agir.
Sabia que os dirigentes do Sinédrio viviam buscando uma
oportunidade para prender o Mestre, mas não tinham a
devida coragem, pois sempre que procuravam fazê-lo
geralmente eram obstados pela presença da multidão que
o acompanhava. Além do mais, o Rabi vivia em
deslocamento constante, sem que os próprios discípulos
tivessem, de antemão, conhecimento do itinerário que
seguiria. Porém, no dia da ceia Pascal, que Jesus realizara
com antecipação, pois deveria ocorrer no sábado, havia
anunciado que pernoitariam no Jardim do Monte das
Oliveiras. Enquanto comia a ceia, os pensamentos roda-
vam em turbilhão por sua cabeça. Era a oportunidade ideal
para o que planejava. Na primeira oportunidade, iria à
casa de Caifás, fingindo entregar-lhe a ansiada presa. Ele
e os seus sequazes morderiam a isca. Apressar-se-iam a
prender o Mestre e, então, este haveria de ser forçado a
reagir, dando início à luta de libertação com a conseqüen-
te implantação do Reino de Deus, sobre o qual falava com
tantas metáforas. Quando Jesus, em pleno Banquete
Pascal, dissera-lhe que fizesse logo o que tinha para fazer,
imaginou que, com os seus poderes extraordinários, havia
captado suas intenções, aprovando-as. Não se apercebera
do olhar triste e resignado que Jesus depositara sobre ele.
Saíra apressado, com o coração acelerado pela emoção,
prelibando a vitória dos seus planos e, naturalmente,
imaginando sua posição de relevância na Nova Ordem,
dado o papel destacado que teria na sua fundação. Todos
os outros discípulos haveriam de se curvar perante ele,
pois fora o único que teria demonstrado espírito de
iniciativa, o que não deixaria de ser reconhecido por Jesus.
Seria seu triunfo sobre os companheiros, sua vingança

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Quando o amor veio à terra

pelo menosprezo que lhe votavam. Daquele dia em diante,


seria o principal, que todos procurariam cortejar e adular.
Enquanto atravessava o vale do Cedron em direção
às escadarias que conduziam ao Templo, não podia, o
infeliz apóstolo, ver a multidão sombria que o cercava,
envolvendo-o em fluidos negros, nem escutar suas
gargalhadas sinistras como se saboreasse antecipadamente
uma vitória.
Chegando ao Templo, encaminhou-se ao lugar de
reunião do Sinédrio. Ali estavam reunidas as principais
lideranças, chefiadas por Anás e Caifás, discutindo sobre
os últimos acontecimentos e deliberando o que fazer para
prenderem e executarem Jesus. Tendo indagado a respeito
de Anás, foi, após curto intervalo, conduzido à sua presen-
ça. Interrogado sobre o que desejava, fez saber que conhe-
cia o paradeiro do Mestre e que pretendia entregá-lo às
autoridades. Desconfiado, o sagaz manipulador do poder
o interrogou sobre o porquê, como discípulo do Nazareno,
queria fazer aquilo. Deu-lhe a entender que o fazia por
dinheiro. Foi conduzido a um aposento para que
aguardasse uma resposta.
Cheio de alegria, o velho político convocou seus
pares e expôs o que se passava:
– Deus, na sua sabedoria, pôs o charlatão Galileu
em nossas mãos. Exultou. E ante às perguntas que lhe
faziam, deu-lhes a conhecer sobre a proposta de Judas.
– Melhor não poderia ser, exclamou Caifás. Um dos
seus é que o entregará para nós. Será uma ótima desculpa
para prendê-lo sem que nos exponhamos à ira do povo.
Enquanto aguardava, Judas meditava na situação.
A consciência lhe dava indicativos de que não agia
corretamente. Será essa a atitude correta? Jesus sempre
lhe demonstrara confiança. Não estaria lhe traindo a

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Djalma Argollo

confiança? Uma voz interior o advertia da necessidade


de meditar melhor nas conseqüências de sua atitude.
Mesmo o enganar as autoridades, como estava pensando
fazer, não se coadunava com os ensinos do Mestre, que
exortava a veracidade em toda e qualquer situação. O
coração parecia apertar-se-lhe no peito. Uma sensação de
desastre iminente tomava-lhe o ser. Pensou em fugir dali.
Mas como fazê-lo? Tinha ido muito longe. Sentiu-se
invadir pelo pânico. Nesse momento, como a lhe forçar a
mão, um dos soldados do Templo veio buscá-lo para ir ao
encontro de Anás e Caifás. Ali, foi-lhe dito que aceitavam
sua proposta. Quanto desejava para guiar os esbirros do
Sinédrio até o local onde Jesus estava? Sem saber o que
falava, balbuciou a quantia: Trinta dinheiros. Ela foi
providenciada imediatamente e lhe entregue numa bolsa.
À saída, uma guarda composta de uma coorte,
comandada por um tribuno, e guardas do Templo,
devidamente disfarçada e fortemente armada, aguardava-
o. Como poderiam saber, na escuridão, a quem deveriam
prender? O comandante da patrulha sugeriu: Aproxime-
se dele e lhe dê o beijo de boas-vindas; então o prendere-
mos.
Aquiesceu automaticamente. Tomaram, então, o
mesmo caminho por onde viera.
Judas andava como um autômato. Várias vezes
pensou em sair correndo, embrenhando-se pelas oliveiras
que cobriam o aclive do monte. Como se lhe adivinhasse
o pensamento, o capitão da guarda se lhe pôs ao lado,
enquanto dois outros soldados ficavam um ao seu lado e
outro às suas costas, todos rentes a ele.
O caminho se iluminava com as tochas que traziam,
e, com os varapaus que portavam, apoiavam-se durante a
subida. Quando chegaram onde estava o Mestre junto com

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Quando o amor veio à terra

os discípulos que haviam acorrido ante o barulho da


chegada do bando, Judas foi ao encontro de Jesus, dizendo:
“– Salve, Rabi!”157 E o beijou na face.
Jesus, com um quê de ternura e piedade na voz,
inquiriu-lhe: – Amigo, para que estás aqui?
Nesse instante, ante a senha combinada, os sequazes
do Templo avançaram sobre o Nazareno para subjugá-lo.
Simão Pedro, impetuoso como sempre, sacou da espada
que trazia consigo e desferiu um golpe contra o Coman-
dante da Guarda do Templo, de nome Malco, que servia
diretamente ao Sumo Sacerdote e que dirigia o grupo,
atingindo-o na orelha direita porque, à última hora, num
ato reflexo, desviara a cabeça. Ante o ataque, soltaram
Jesus, voltando-se para enfrentar o agressor. Mas o Rabi,
com a força de sua palavra, conteve os esbirros do templo
e, voltando-se para Simão, disse-lhe: “Embainha a tua
espada. Deixarei eu de beber o cálice que o Pai me deu?”158
Dirigindo-se então aos que o prendiam, falou:

Como a um ladrão, saístes para prender-me com es-


padas e paus! Eu estive convosco no Templo, ensi-
nando todos os dias, e não me prendestes. Mas é para
que se cumpram as escrituras. Então, abandonando-o,
fugiram todos. Um jovem o seguia, e a sua roupa era
só um lençol enrolado no corpo. E foram agarrá-lo.
Ele, porém, deixando o lençol, fugiu nu159.
Então a coorte, o tribuno e os guardas dos judeus pren-
deram a Jesus e o ataram. Conduziram-no, primeiro,
a Anás, que era sogro de Caifás, o Sumo Sacerdote
daquele ano.160

157 Mt 26, 49.


158 Jo 18, 11.
159 Mc 14, 48-52.
160 Jo 18, 12-13 .

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Djalma Argollo

Os discípulos, quando viram que Jesus estava preso,


fugiram em carreira desabalada, cada um para um canto.
Quando da entrada na cidade, Judas, que vinha atrás
dos guardas, afastou-se, demandando à casa de um amigo
pertencente ao grupo dos zelotas, com quem se afinava
quanto às idéias políticas. Estava taciturno, com a mente
cheia de dúvidas. A consciência lhe dizia que não agira
bem. A voz do Mestre, chamando-o de amigo na hora em
que o entregou, ecoava-lhe no cérebro incendido.
Não conseguira pregar os olhos. Por toda a noite,
vira desfilar diante de si todos os momentos em que
estivera com Jesus. Suas palavras eram recordadas em
detalhe e, a cada minuto, ficava claro que o Mestre não
tencionava liderar uma revolta popular para expulsar os
romanos nem fazer de Israel um Império.
Mal surgiram os primeiros alvores da manhã,
demandou às cercanias do Templo, tomando conheci-
mento da condenação de Jesus à morte e de sua flagelação.
Correu ao Templo na ânsia de desfazer o tremendo erro.
Ali, foi recebido por Caifás, que estava acompanhado de
autoridades do Sinédrio. Dirigiu-se, então, a eles, procu-
rando devolver-lhes as trinta moedas de prata e dizendo:

– Errei, entregando sangue inocente.


Porém eles disseram:
– O que nos importa? Veja-te com isso.
E, tendo atirado as peças de prata no santuário, ele se
retirou161.

Agora, num campo situado fora dos muros, no Vale


do Cedron, as lágrimas lhe empanavam a visão, e os
soluços o sufocavam. Vozes sinistras lhe soavam aos

161 Mt 27, 3-5.

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Quando o amor veio à terra

ouvidos: Traidor infame. Onde haverá para ti perdão?


Traíste o Santo de Deus, miserável infeliz. A morte será
um castigo pequeno para o teu crime.
Assim, os cruéis verdugos invisíveis, inimigos seus
do passado e tenebrosos vampiros das trevas, induziam-
no ao suicídio para atingirem seus nefandos objetivos.
Como um autômato, lançou a corda sobre o tronco
da árvore morta, cujos galhos pareciam braços retorcidos
e nus, qual espectro sinistro a se debruçar sobre o vazio.
Fixou uma ponta no tronco enegrecido e, colocando o nó
corrediço no pescoço, atirou-se, procurando dar um fim
ao turbilhão de remorso em que se engolfava. Em poucos
minutos, o corpo jazia inerte e sem vida. Mas, ante seus
olhos espirituais, enquanto a dor do pescoço esmagado e
a sufocação atingiam o indescritível, uma turba de
Espíritos infelizes, mais parecendo uma matilha de
espectros produzidos pelo dementado horror, lançava-se
sobre ele...
Passaram-se alguns anos de sofrimentos inenarrá-
veis para o discípulo invigilante. Um dia, quando sua
mente se voltou para Deus numa súplica suprema de
perdão, sentiu uma paz infinita lhe penetrar o imo,
enquanto, envolvido por uma luz transcendente, viu a
figura do Mestre que, aproximando-se dele com um
sorriso amorável, tomou-o nos braços, ergueu-o do solo
onde se encontrava prostrado e, beijando-o no rosto com
muito carinho, disse-lhe: Meu amigo e meu irmão.
Ninguém poderá conceber o sentimento de alívio e
júbilo daquela alma combalida por anos de desespero e
remorso, ao receber o perdão incondicional de sua Divina
Vítima.

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Quando o amor veio à terra

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Trevas Densas
Era noite alta quando Marued entrou em Jerusalém
pela porta das ovelhas, depois de ter acampado nas
imediações. A cidade, às vésperas da festa tradicional da
Páscoa, estava cheia de pessoas de todas as partes do
mundo, a grande maioria Judeus que vinham comer o
Cordeiro Pascal, que só podia ser preparado na Cidade
Santa. Notou logo que se passava algo diferente; a guarda
estava reforçada, tendo os soldados romanos revistado-o
minuciosamente, inquirindo-o sobre sua procedência e o
que viera fazer. Tudo explicado, deixaram-no passar.
Já dentro dos muros, verificou que havia inusitado
trânsito de pessoas pelas ruas, coisa inabitual àquela hora
da noite. Fez parar um dos passantes, perguntando-lhe o
que estava acontecendo. O homem o olhou intrigado, e
Marued esclareceu:
– Amigo, acabo de chegar e estou estranhando ver
tanta gente na rua a essa hora.
– Acabam de prender o Nazareno, que se diz o
Messias.
A notícia causou surpresa a Marued, que perguntou:
– Jesus de Nazaré?
O judeu o olhou desconfiado:
– És por acaso seu discípulo?
– Não, todavia já ouvi falar dele.

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Djalma Argollo

O homem deixou o ar desconfiado, continuando:


– Ele está sendo julgado agora na casa do Sumo
Sacerdote. Estou indo para lá.
Marued acompanhou seu interlocutor, aproveitando
para se inteirar mais a respeito da situação:
– Mas, o que houve? Soube que esse Jesus era um
homem que só fazia o bem.
– É o que dizem; mas o Sinédrio sempre lhe fez
oposição, pois, ao que se sabe, ele não lhe seguia as regras
e, ainda por cima, desafiava-lhe a autoridade.
– Mas, por que só agora resolveram prendê-lo?
– Era que tinham medo, pois sempre estava cercado
de grande número de pessoas. Mas, ao que soube, essa
noite, um dos seus discípulos o traiu, entregando-o aos
principais dos sacerdotes.
Marued estava perplexo. Havia lido as anotações
de Tarik, chegando à conclusão de que aquele homem era
completamente diferente dos religiosos que conhecia,
sempre ávidos de dinheiro e profundamente hipócritas.
Quando chegaram à Casa do Sumo Sacerdote, em
sua frente, uma grande multidão se aglomerava. Pôs-se,
então, a circular por entre o povo, buscando escutar o que
diziam.
– É um impostor; o messias, quando vier, será um
líder militar, que haverá de restaurar a glória de Israel.
Dizia um, cujos filactérios denunciavam o fariseu.
– Contudo, Isaías fala de um Messias sofredor, e
não de um comandante de exércitos. Retrucava um seu
companheiro.
– Ora, Eliaquim, o profeta se referia naturalmente
aos sacrifícios que teria de fazer para cumprir sua missão.
Não é possível que o Libertador dos Judeus seja um
derrotado, pois, assim, não seria Libertador. Veja você:

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Quando o amor veio à terra

Moisés, Josué e Davi sempre viveram lutando sem


qualquer contemplação para com os seus inimigos. Esse,
todavia, falava até que se devia amar os inimigos e lhes
fazer o bem. É um absurdo.
Mais adiante, dizia alguém:
– Ainda há uns quatro dias, esse Jesus causou a
maior celeuma no Pórtico de Salomão, investindo contra
os que comerciavam ali, dizendo que estavam transfor-
mando a Casa de Deus num covil de ladrões. A confusão
foi geral. Um dos meus amigos, que fazia câmbio como
representante da Casa dos Boetos, teve um prejuízo
enorme, pois sua mesa foi revirada pelos que corriam, e
as moedas, espalhadas por todos os lados. Não conseguiu
reaver nem a metade. Agora mesmo, encontra-se lá dentro
testemunhando contra ele.
Mal acabara de falar, um homem aproximou-se
cercado por várias pessoas.
– Olhem, é ele quem está vindo, Asaf!
Ao ouvir seu nome, o judeu aproximou-se. Via-se
que estava profundamente irritado.
– Então, amigo, como é que foi?
– Um absurdo. Estão perdendo tempo, procurando
testemunhas contra esse malfeitor. Ele é um perigo para
nossa sociedade. Deviam, sem mais delongas, levá-lo para
fora da cidade e apedrejá-lo.
– E ele, o que diz em sua defesa?
– Nada. Nunca vi tanto cinismo. Por mais que o
interroguem, permanece em silêncio num acinte às
autoridades. Minha opinião é de que não se deve perder
tempo. Esse homem é um subversivo. Se não for
eliminado imediatamente, causará uma catástrofe. A mim
mesmo, já deu um prejuízo imenso, deixando-me numa
situação difícil com os meus patrões. Tive de pagar dois
talentos de minhas economias. Quero vê-lo morto.

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Djalma Argollo

Continuando a circular, Marued ouvia expressões


diversas contra Jesus. Percebia, contudo, que aqueles que
se pronunciavam contra o Nazareno estavam ligados, de
alguma forma, aos que faziam parte do Sinédrio. Em parte
alguma escutou alguém defendê-lo. Ninguém ousava se
expor, exprimindo simpatia pelo preso, com medo da
reação.
Muito tempo depois, a multidão se mostrou
alvoroçada. Foi condenado por blasfêmia! Exclamavam
várias vozes.
Uma explosão de alegria se fez uníssona. Asaf, o
cambista, passou por ele, juntamente com seus acompa-
nhantes, celebrando em altas vozes: Deus seja louvado!
O miserável já está me pagando. Deus seja louvado!
Marued sentiu ânsias de vômito. Toda aquela
manifestação diante do infortúnio de alguém era
revoltante. Aproveitou-se do momento para aproximar-
se do portão da Casa, onde permaneceu pelo resto da noite.
Quando a madrugada se desenhava no horizonte,
viu movimentação de soldados rumo à saída. Ao passarem,
viu que Jesus seguia enquadrado por eles. Sua face se
apresentava cheia de hematomas, que denunciavam os
maus tratos sofridos, enquanto um filete de sangue lhe
escorria dos lábios partidos, manchando a barba e a túnica.
O Sumo Sacerdote Caifás, como alguém lhe informara,
seguia logo atrás do prisioneiro, acompanhado de outras
autoridades do Sinédrio, cheio de empáfia, agradecendo
as saudações que muitos do povo lhe endereçavam.
Da multidão choviam doestos sobre o condenado,
dando trabalho aos soldados do Templo para evitar que
se atirasse sobre ele, despedaçando-o ali mesmo. Os
Fariseus, Saduceus, Escribas e doutores da lei urravam
ferozmente: Dize, agora, quem é sepulcro caiado, infeliz....

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Quando o amor veio à terra

Raça de víbora é a tua, verme... Impostor, onde estão tuas


práticas de magia...
O comerciante árabe sentia o coração se confranger.
O homem maltratado lhe causava infinita piedade.
Gostaria de fazer algo para ajudá-lo, mas o quê, pergun-
tava-se impotente.
Seguiu a multidão e os guardas até a entrada da
residência do Procurador. Nela, conseguiu ingressar, pois
era fornecedor antigo de fazendas e jóias para a família
do representante imperial. A multidão e as autoridades
permaneciam de fora, pois os judeus não podiam entrar
no local onde estavam os incircuncisos, sob pena de
ficarem imundos e não poderem realizar a Páscoa.
Somente o prisioneiro, que fora entregue aos soldados
romanos, foi conduzido para dentro a fim de ser
interrogado pelo representante do Imperador. A acusação
era de tentativa de revolta contra os romanos:

Verificamos que este homem amotina o nosso povo, proí-


be de dar tributo a César e diz que é o Ungido, o Rei.
Interrogou-o Pilatos:
– És o Rei dos Judeus?
Respondeu-lhe Jesus:
– Tu o dizes.
Ao que Pilatos declarou aos príncipes dos sacerdotes e
ao povo:
– Não acho crime neste homem.
Eles, porém, insistiram:
– Amotina o povo com a sua doutrina, em toda a Judéia,
a começar pela Galiléia, até aqui162.

As acusações eram todas falsas. Pilatos estava


informado de que o problema era exclusivamente

162 Lc. 23, 2-5 .

{ {
195

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Djalma Argollo

religioso, e sabia que as imputações eram mentirosas.


Tomando conhecimento de que o homem era Galileu,
portanto, súdito de Herodes Antipas, resolveu livrar-se
do problema, enviando-o ao monarca, que se encontrava
em Jerusalém para comemorar a Páscoa.
Marued soube, depois, que Herodes ficou alegre por
se encontrar com Jesus, pois há muito tinha curiosidade
de ver o homem sobre quem se contavam tantas coisas.
Diante do monarca, o Mestre manteve-se no mais
absoluto silêncio, enquanto os representantes do Sinédrio
assacavam as mais diversas e mentirosas acusações.
Como Jesus não correspondesse à sua curiosidade,
Herodes resolveu ironizá-lo. Já que afirmavam que ele se
dizia rei, mandou que fosse vestido com uma capa vistosa,
devolvendo-o a Pilatos sem apresentar qualquer base que
ajudasse o procurador a resolver o problema.
Mandando trazer Jesus para a sala de audiências, o
representante de César procurava um jeito de resolver o
impasse. O clima era de preocupação com o tumulto e de
expectativa. A mentalidade jurídica do romano, bem como
sua experiência com os homens, dizia-lhe que ali estava
um inocente. Mesmo assim, resolveu inquiri-lo novamente.
A essa altura, o Nazareno apresentava a face cheia
de hematomas, por causa das brutalidades que vinha
sofrendo desde o momento da prisão. Ante a visão daquela
figura maltratada, mas digna, o rosto do procurador se
abrandou. Pôs-se a sondá-lo novamente a respeito da
acusação principal de tentar subverter a ordem,
proclamando-se rei.
– És tu o rei dos judeus?
Respondeu Jesus:
– Dizes isso de ti mesmo, ou foram outros que to dis-
seram de mim?

{ {
196

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Quando o amor veio à terra

Replicou Pilatos:
– Porventura sou eu judeu? O teu povo e os principais
sacerdotes entregaram-te a mim; que fizeste?
Respondeu Jesus:
– O meu reino não é deste mundo; se o meu reino
fosse deste mundo, pelejariam os meus servos para
que eu não fosse entregue aos judeus; entretanto, o
meu reino não é daqui.
Perguntou-lhe Pilatos:
– Logo, tu és rei?
Respondeu-lhe Jesus:
– Tu dizes que sou rei. Para isso nasci, e para isso vim
ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo
aquele que é da verdade ouve a minha voz.
Perguntou-lhe Pilatos:
– Que é a verdade?163

Jesus apenas o olhou profundamente nos olhos e


manteve silêncio.
Marued pensou que o representante imperial fosse
explodir de raiva, mas, ao contrário, mostrou-se surpreso
pela reação do Rabi, que, diferentemente de outros
acusados, não se punha a alegar inocência, nem a clamar
por justiça, nem a desafiar sua autoridade num gesto de
rebeldia.
Via-se que o Procurador não estava convencido da
culpabilidade do réu, como não o estavam todos os que
testemunhavam o interrogatório. Percebia-se que ali estava
em jogo um problema de mera questão religiosa, em que
a inveja e o despeito das autoridades judaicas eram
preponderantes. A situação, todavia, era explosiva, pois a
multidão estava a vociferar excitada.
Nesse momento, um servo se aproximou de Pilatos
e pediu para lhe falar em particular. Afastando-se para

163 O diálogo encontra-se em Jo 18, 34-40.

{ {
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Djalma Argollo

um lado, escutou o servo por alguns instantes e, depois,


com um gesto de impaciência, despediu-o, voltando para
junto do réu. Em breve, corria, a boca pequena, que a
esposa do Procurador lhe mandara um recado, pedindo
que não se envolvesse com a morte daquele homem, pois
tivera um sonho angustiante, em que se via envolvida por
inúmeros espectros clamando contra a injustiça que se
estava para cometer.
Pôncio Pilatos buscava uma saída para o impasse.
De repente, chegando à sacada, como se houvesse tido
uma inspiração, pediu silêncio e falou:
– Judeus. Como estamos às vésperas da Páscoa,
festa importante da vossa religião, em nome de César,
resolvi conceder-vos uma graça. Como sabeis, temos dois
prisioneiros: um, Jesus, a quem chamam de Ungido, e
outro, denominado Jesus Filho do Pai164. Assim, coloco à
vossa escolha: qual dos dois quereis que ponha em
liberdade?
Tomada de surpresa, a multidão ficou em silêncio
por alguns instantes. Marued, que se aproximara de um
vigia, observou quando Asaf, que se encontrava à frente,
pôs-se a gritar, fazendo gestos com as mãos para que as
pessoas à sua volta o acompanhassem:
– O Filho do Pai! Solta-nos o Filho do Pai!
Em pouco tempo, a multidão, incentivada também
pelos principais dos sacerdotes e outras autoridades que ali
estavam, urrava a uma só voz: Solta-nos o Filho do Pai!
Evidentemente desapontado diante da falha do seu
estratagema, Pôncio Pilatos fez um gesto pedindo silêncio
à multidão. Quando este se fez, ele inquiriu:

164 Barrabás é uma transliteração grega do aramaico Bar Abba, que significa Filho
do Pai. Quanto ao prenome Jesus, aparece em vários manuscritos antigos, tendo
sido retirado depois, na opinião de muitos críticos, por parecer uma blasfêmia
aos olhos dos cristãos posteriores.

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Quando o amor veio à terra

– E o que quereis que seja feito com Jesus, chamado


o Ungido?
Mais uma vez, Asaf começou a gritar:
– Crucifica-o! Crucifica-o!
No que foi seguido pela multidão.
Marued sentiu um choque diante da terrível
sentença. Era uma forma cruel e perversa de se executar
alguém. Somente os rebeldes, traidores e servos crimino-
sos sofriam-na. Olhando para Pôncio Pilatos, percebeu
que ele se fizera lívido. Em seu íntimo, travava-se
naturalmente um conflito de insondáveis proporções. De
um lado, a certeza de que se exigia a prática de inominável
injustiça e, do outro, o medo das conseqüências que viriam
se contrariasse a turba, instigada pelos seus líderes
religiosos. O estratagema de que lançara mão não funcio-
nara. O que parecia uma saída transformara-se numa
armadilha contra si próprio.
Sem olhar para o acusado, Pôncio Pilatos mandou
que os soldados o levassem e o açoitassem.
O árabe ficou perplexo. Como era possível tal coisa?
O Homem era visivelmente inocente; todavia, o
Governador estava cedendo à pressão do povo. Seguiu
os soldados com o coração confrangido. Sabia como eram
sádicos. Mas o que viu, encheu-lhe o coração de horror.
Aplicaram-lhe os quarenta açoites, menos um, tradicional,
que arrancaram pedaços dos músculos das costas, de onde
o sangue jorrava aos borbotões. A cada chicotada, todo o
corpo do Rabi estremecia; mas não se lhe ouviu um só
gemido ou queixume.
Indo além das ordens, os legionários mandaram
buscar talos de espinheiros e, trançando-os, fizeram com
eles uma imitação de coroa e cravaram na cabeça de Jesus,
enquanto lhe punham sobre os ombros um manto de cor

{ {
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Djalma Argollo

púrpura e, nas mãos amarradas, um talo de cana.


Aproveitando o momento para debocharem dos judeus
em geral, fizeram fila diante dele e, cada qual, em chegada
sua vez, fazia exagerada reverência, dizendo: “Salve, rei
dos judeus 165”. E o esmurravam, uns, e outros, tomando
do pedaço de cana, batiam-lhe com ele na sua cabeça,
fazendo cravarem-se mais fundamente os espinhos.
Quando se cansaram da lúgubre patacoada, levaram-
no a Pilatos. Todos se confrangeram diante do lastimável
estado em que se encontrava. Numa última tentativa,
imaginando talvez, pensou Marued, comover a populaça,
o Governador o levou à sacada e o apresentou, dizendo:
– Eis aqui! Vo-lo trago fora, para que saibais que
não acho nele crime algum.
Saiu, pois, Jesus, trazendo a coroa de espinhos e o
manto de púrpura.
E lhes disse Pilatos: “Eis o homem!”166
Fez-se um profundo silêncio no Pátio do Pretório.
Marued chegou a pensar que a estratégia poderia dar certo,
pois o quadro era doloroso demais, podendo comover a
população. Mas, olhando para o lugar onde se achava Asaf,
viu que este lançava olhares de um lado para o outro,
como que pressentindo que o humor da multidão estava a
pique de mudar em favor do pobre flagelado. Por isso,
como um desesperado, começou a gritar, enquanto sua
boca espumava de ódio:
– Crucifica-o! Crucifica-o! O que pareceu acordar
os principais dos sacerdotes, que passaram a lhe fazer coro,
incentivando os guardas do templo que estavam com eles
a engrossar a lúgubre cantilena que, em breve, enchia o
pátio num tétrico uníssono:

165 Jo 19, 3.
166 Jo 19, 4.

{ {
200

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Quando o amor veio à terra

– Cru...ci...fi...ca-o... cru...ci...fi..ca-o...
Agora, o Procurador tinha o rosto crispado de raiva
e, erguendo a mão num gesto de silêncio, esperou que a
multidão se calasse, e disse com a voz transtornada pela
fúria íntima: “– Tomai-o, vós, e o crucificai, porque eu
nenhum crime acho nele” 167.
Apanhados de surpresa, os principais dos sacerdotes
e doutores da lei se entreolhavam espantados, sem saber
o que dizer, pois só os romanos podiam aplicar a pena
capital, com poucas exceções. Se tomassem a justiça nas
suas mãos, sem a chancela do Governador romano,
poderiam ser acusados de iniqüidade, pois o Juiz máximo
declarava a inocência do réu.
Marued, que acompanhava o duelo singular com o
coração opresso oscilando entre a esperança e o receio,
viu, mais uma vez, Asaf, que parecia intermediário de
todas as forças do mal, brandir os punhos cerrados em
direção à sacada e gritar: “– Nós temos uma lei, e, segundo
esta lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus168.
No que foi seguido dos gritos de aprovação dos líderes
religiosos ali aglutinados.
O Procurador se fez lívido. Retirou-se do lugar onde
estava e, aproximando-se de Jesus, falou-lhe nitidamente
desorientado:

– De onde és tu?
Mas Jesus não lhe deu resposta. Disse-lhe, então,
Pilatos:
– Não me respondes? Não sabes que tenho poder para
te soltar e poder para te crucificar?
Respondeu-lhe Jesus:

167 Jo 19, 6.
168 Jo 19, 7.

{ {
201

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Djalma Argollo

– Nenhum poder terias sobre mim, se de cima não te


fora dado; por isso, aquele que me entregou a ti,
maior pecado tem169.

O coração de Marued confrangeu-se; sem dúvida,


referia-se a Caifás, o factótum de Anás. Mas, ponderou
consigo mesmo: a causa está perdida, é só uma questão
de tempo.
O Governador buscava, por todos os meios, sair-se
daquela situação difícil, que conduzia com incrível
inabilidade e completa falta de condições para exercer o
poder de que estava investido.
Pilatos confabulou, a um canto, com alguns
conselheiros. Depois, chamou o comandante da guarnição,
e com ele conversou reservadamente por um longo tempo.
Marued pensou consigo: está verificando a possibilidade
de usar a força. Mas o soldado fazia ponderações nitida-
mente contrárias à idéia.
Nisso, ouviu-se uma voz que, atrevidamente, gritou:
“– Se soltares a este, não és amigo de César; todo aquele
que se faz rei é contra César”170.
O susto de Pilatos foi grande. O argumento era uma
ameaça velada. O Governador sabia que existia uma forte
oposição a ele por parte do Legado da Síria, que proclama-
va abertamente sua incompetência. O medo lhe alterou
as feições.
Pilatos, pois, quando ouviu isto, trouxe Jesus para fora
e se sentou no tribunal, no lugar chamado pavimento,
e em hebraico Gabatá.
Ora, era a preparação da Páscoa171, e cerca da hora
sexta172. E disse aos judeus:

169 Jo 19, 9-11.


170 Jo 19, 12.
171 Parasceve, ou seja, sexta-feira, segundo nosso calendário.
172 Seis horas da manhã, de acordo com o método romano de contar as horas do dia.

{ {
202

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Quando o amor veio à terra

– Eis o vosso rei.


Mas eles clamaram:
– Tira-o! Tira-o! Crucifica-o!
Disse-lhes Pilatos:
– Hei de crucificar o vosso rei?
Responderam os principais dos sacerdotes:
– Não temos rei, senão a César173.

Ironias dispensáveis, pois apenas pretende, com


isso, mascarar a capitulação covarde e vergonhosa, pensou
Marued, fremindo de raiva e desprezo pelo pusilânime
Procurador.

Ao ver Pilatos que nada conseguia, mas, pelo contrá-


rio, que o tumulto aumentava, mandando trazer água,
lavou as mãos diante da multidão, dizendo:
– Sou inocente do sangue deste homem; seja isso lá
convosco.
E todo o povo respondeu:
– O seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos
filhos174.

Fazendo, então, uma fácies de nojo e desprezo,


pronunciou a sentença, ordenando sua execução imediata.
Marued notou que o Procurador evitava, por todos
os meios, olhar para Jesus, retirando-se do recinto com
atitudes de arrogância depois de cumprir os ritos legais
prescritos pelo Direito romano. Não tem coragem de
encarar a vítima de sua covardia, dizia a si mesmo,
fremindo de raiva impotente.
Os soldados enquadraram o condenado, retirando-
o para a via pública aos empurrões, depois de fazerem-no
colocar sobre os ombros a trave da cruz que seria fixada à

173 Jo 19, 13-15.


174 Mt 27, 24-25.

{ {
203

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Djalma Argollo

haste, que já se encontraria fincada no Monte da Caveira,


fora dos muros, local tradicional desse tipo de execução.
Quando surgiram à frente da multidão, esta prorrompeu
em doestos e ditos irônicos. Os mais pertinazes eram os
representantes do Sinédrio e, naturalmente, Asaf, que, na
ânsia inglória de tripudiar sobre o inimigo que considerava
derrotado, chegou a tentar agredi-lo, varando a escolta, o
que lhe proporcionou uma violenta bastonada em pleno
rosto, dada por um soldado, que o fez tombar sobre os
circunstantes com nariz e boca sangrando, para deleite de
Marued, que seguia de perto a patrulha.
Mas era evidente que Jesus não agüentaria carregar
a tábua por causa da fraqueza visível, motivada pela perda
de sangue, falta de alimentação e à desgastante tensão
emocional das mais de quatorze horas durante as quais se
arrastara toda a farsa legal. Por isso, o comandante da
guarnição que dirigia a escolta chamou um homem que
passava, vindo do seu trabalho do campo. Depois de um
rápido interrogatório, acompanhado à pequena distância
pelos que, como nosso árabe, se encontravam por perto,
declarou que se chamava Simão e era natural de Cirene,
recebendo, então, ordens para carregar o travessão de
madeira. O pobre coitado quis protestar, mas, ante o gesto
de ameaça do militar, acedeu contrafeito, tomando o
madeiro e seguindo à frente do condenado.
Por todo o trajeto, só se escutavam impropérios e
injúrias lançadas contra o Sublime Condenado. Marued
notou, todavia, que um grupo de mulheres seguia o cortejo
à distância, com os rostos cobertos. Mas os olhos percu-
cientes do mercador perceberam que elas choravam.
Devem ser pessoas ligadas a ele, pensou consigo.
Ao chegarem ao local da execução, começou a parte
mais hedionda da tortura, cujos detalhes cruéis omitirei

{ {
204

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Quando o amor veio à terra

por serem demasiadamente chocantes. Além do mais, já


foram suficientemente explanados em obras específicas.
Marued não conseguiu conter o pranto diante de
tanto horror, ainda mais em dose tripla, pois dois ladrões
foram crucificados ao mesmo tempo em que Jesus.
Sobre a cruz do mestre, foi colocada uma placa, e
nela estava escrito em latim e grego: Jesus de Nazaré,
Rei dos Judeus. Tinha, a inscrição, um duplo motivo: o
primeiro, explicitava o porquê da execução, ou seja, que
Jesus fora condenado por crime de sedição, e o segundo,
uma ironia cruel dos romanos, que assim buscavam
humilhar os dominados.
Marued resolveu não esperar pelo fim. Cheio de
raiva, com o coração amargurado, retornou ao seu
acampamento e, ordenando aos criados embalarem tudo,
afastou-se de Jerusalém pela estrada que conduzia a Jericó,
onde, em Beit-Arabá, atravessou o Jordão rumando para
o sul, em direção à sua região. O céu estava coberto de
nuvens cinzentas, anunciando uma tempestade pronta a
cair. Aliás, desde a noite anterior o tempo havia mudado.
Até as forças da Natureza protestam contra a iniqüidade
que foi cometida, pensava o árabe. Fazia meia hora que
havia deixado a Cidade, atravessando o Cedron, e
ultrapassado o Monte das Oliveiras quando o terremoto
aconteceu. Os animais já vinham inquietos há algum
tempo, dando trabalho para serem controlados. Alguns
dispararam, enquanto outros estacaram tremendo de medo.
Como estavam em campo aberto, não havia o que temer.
Mas, na mesma hora em que aconteceu o sismo, a mente
do negociante vinculou-o à morte de Jesus. Sem saber
porquê, tinha a certeza de que, naquele momento, tudo
estava consumado. Uma confusão de sentimentos se
estabeleceu em seu íntimo. Era um misto de raiva,

{ {
205

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Djalma Argollo

frustração e piedade. Igualmente, um profundo desprezo


pela espécie humana e pelos que haviam cometido tão
brutal injustiça.
No segundo dia de viagem, foi surpreendido pelo
encontro inesperado com Tarik, que vinha em sentido
contrário. Correu ao encontro do amigo, abraçando-o a
chorar convulsivamente. Tarik o acolheu com a mesma
efusão, enquanto lhe falava também em pranto:
– Sim, meu amigo, sei que o mataram.
Somente algum tempo depois, quando Marued
conseguiu se asserenar, e os criados haviam armado as
barracas à beira da estrada, é que se deu conta de que o
amigo falara sobre a morte de Jesus, sem que lhe houvesse
dito coisa alguma.
– Tarik, você já sabia da morte do Mestre. Como
foi isso possível? Durante toda a viagem até agora,
ninguém passou por nós.
O árabe, então, narrou-lhe que, durante a tarde do
dia em que Jesus morrera, sentira um sono muito grande,
sendo obrigado a parar e montar acampamento para
descansar. Esperara, nervoso, que os servos aprontassem
tudo, tendo se jogado aos tapetes da tenda imediatamente.
Sentira-se, no mesmo instante, fora do corpo. Era uma
sensação diferente. Flutuava sobre ele, estarrecido, quando
se sentiu atraído para fora da tenda, cujos panos atravessou
num átimo, e, mal teve tempo de fixar o quadro em redor,
viu-se voando pelo espaço. Em pouco tempo, chegara a
Jerusalém. Era a hora sexta, e uma grande escuridão cobria
toda a cidade. Ao longe, podia divisar três cruzes, das
quais se aproximou rapidamente. Numa delas, enxergara
Jesus todo ferido e ensangüentado. Olhando a multidão,
tivera um momento de pânico – nela misturavam-se
pessoas e verdadeiros monstros de formas horrendas. Os

{ {
206

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Quando o amor veio à terra

representantes do Sinédrio, que se posicionavam à frente,


estavam imantados a figuras horripilantes que lembravam
animais disformes, contornados por uma luminosidade à
semelhança do ferro em brasa. Mas, em meio à escuridão,
brilhavam algumas luzes muito belas. Notara, então, que
toda a cruz em que o Mestre agonizava brilhava
intensamente, dela partindo raios luminosos que alcança-
vam o negrume que envolvia a multidão e, quando entra-
vam em contato com a espessa nuvem escura, geravam
fagulhas intensas. Da mesma forma, um permanente raio
de luz projetava-se sobre um grupo de mulheres que
estavam perto do madeiro, como a protegê-las. Em
seguida, percebera que havia numerosos seres, como que
feitos de luzes de cores diversas, em volta da cruz e sobre
ela, que choravam, não de revolta, mas de piedade do
povo ali reunido, que cometera a terrível atrocidade de
torturar e condenar o Amor, materializado em forma
humana. Em determinado instante, a luminosidade que
incidia do alto sobre o inominável instrumento de suplício
fizera-se mais intensa. Viu que Jesus, num supremo
esforço, fizera pressão sobre os pés cravejados no poste
e, erguendo o corpo, como a liberar os pulmões, lançara
um brado, entregando o Espírito a Deus. No mesmo
momento, o corpo voltara a cair com a cabeça pendendo
para frente. Mas o que veio a seguir causara-lhe sumo
espanto: uma forma luminosa, semelhante à que estava
pendente da cruz, afastara-se do corpo inerme. Todavia,
prodígio dos prodígios, diferentemente da forma ensan-
güentada e ferida que acabara de deixar, apresentava-se
indene. O mestre desencarnado estava como quando o
conhecera, somente que a emitir ondas luminosas
impossíveis de descrever. Durante algum tempo, o Espírito
de Jesus contemplara o corpo que acabara de deixar;

{ {
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Djalma Argollo

depois, desceu suavemente até o grupo de mulheres,


abraçando-as carinhosamente, como também a um jovem
que estava junto a elas. A seguir, acompanhado por um
reluzente cortejo de seres luminosos, voara em direção
ao firmamento, subindo sempre até desaparecer dos seus
olhos. Sentira então uma espécie de vertigem, acordando
a soluçar de dor e alegria na tenda onde adormecera.
Marued estava estarrecido com a descrição, sem
saber o que pensar. Mas, no íntimo, fervia uma cólera
intensa contra os matadores do Mestre.
Naquele momento, aconteceu algo inesperado. A
tenda onde se encontravam iluminou-se, fazendo com que
os dois amigos se assustassem. No meio da luminosidade,
apareceu a figura radiante de Jesus, reconhecido pelos dois
de imediato: Fica em paz, Marued. Eu não tenho o menor
ressentimento contra os que pensavam me destruir, pois
eles foram vitimados pela ilusão dos que vivem nesse
mundo, ainda repleto de mentiras e falsos conceitos em
torno da realidade da vida. Aprende a perdoar, pois quem
perdoa é livre, e quem guarda ódio ou rancor é prisioneiro
dos próprios sentimentos desequilibrados. Aprende a amar;
o amor é a matéria de que se formam os seres e as coisas,
porque o Amor nasce do coração do Pai Celestial. E
voltando-se para Tarik: Meu irmão, tua fé sincera e pura
proporcionou-te ver o que muitos desejariam. Mantém-te
nela, firme e sereno, pois serás intérprete do meu ensina-
mento entre os que vivem nas areias escaldantes do deserto.
Ensina-lhes a amar e servir, compreender e tolerar.
Assim como surgira, o Mestre se foi da vista dos
dois amigos, em cujos corações penetrava uma imensa
paz, só concedida aos que se tornam, pelo esforço próprio
no crescimento espiritual, credores do intercâmbio com
as Forças Superiores que dirigem e mantêm a mesma
estrutura da Criação.

{ {
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Quando o amor veio à terra

{ 23
Madrugada de Luz
Maria de Magdala chegara cedo à frente do
sepulcro. Dos olhos inchados já não escorriam lágrimas.
Seus movimentos se faziam de forma automática, mecâ-
nica, e ela os percebia, bem como ao corpo, como algo
distante que lhe não pertencesse.
Em sua mente, num movimento perpétuo, as
terríveis cenas que culminaram na crucificação se repe-
tiam. A memória reproduzia fielmente todas as particulari-
dades do dantesco episódio. Acompanhara-o, desde o
momento em que o cortejo macabro deixara a Fortaleza
Antonia com um homem carregando a trave horizontal
da cruz. Seu coração quase explodira de dor quando o
vira desfigurado e sangrento pelas sevícias passadas. As
outras mulheres que estavam com ela sofriam da mesma
dor. Tinha vontade de se aproximar, de verberar contra a
situação, de arrebatá-lo daquela situação terrível, mas era
uma simples mulher de uma sociedade em que as mulheres
não tinham quase nenhum direito. Junto com suas
companheiras, seguira tudo de longe, chorando sem parar.
Quando o prenderam à cruz, sentira como se os cravos se
cravassem em sua alma. Vivera-lhe toda a agonia.
Havia algum tempo que ele estava crucificado,
quando Maria, sua mãe, chegara. Sua dor era tão
formidável que ela parecia estar em transe. Mesmo os

{ {
209

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Djalma Argollo

mais empedernidos motejadores e os soldados não tiveram


coragem de evitar que se aproximasse do madeiro e ali se
deixasse ficar, como que petrificada, de olhar fixo na cena
cruel. Não dera nem sinal de entender o momento em que
Jesus, fixando nela o olhar, dissera: “Mulher, eis aí teu
filho. E, dirigindo-se a João, filho de Zebedeu: Filho, eis
aí tua mãe”175, explicitando, assim, que o discípulo deveria
substituí-lo no cuidado daquela por quem, como filho mais
velho, tinha a obrigação de zelar.
Ouvira-lhe os gemidos, que não paravam de ecoar
em sua mente. Dobrara-se sobre si mesma, tomada de
uma emoção superlativa, no momento em que ele,
correndo os olhos pela multidão ensandecida, dissera:
“Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem”176.
Num momento tão doloroso, quando lhe faziam
tantas perversidades e injustiças, ele era o mesmo de
sempre, cheio de amor, compreensão e, acima de tudo,
perdão.
Escutara-lhe as últimas palavras, de coração opres-
so: “Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito”177.
Mas a revolta tomara-lhe todo o ser quando os
soldados lhe perfuraram o lado com uma lança para
verificar se havia morrido, depois de quebrarem as pernas
dos dois infelizes que haviam sido crucificados juntamente
com ele.
Ali, aos pés da cruz, deixara-se ficar com Maria,
mãe de Tiago e João, além de Salomé e a mãe do Mestre,
por largo tempo, quando já ia começando o dia da Páscoa,
momento em que José de Arimatéia chegou com a ordem
de Pilatos para que o corpo de Jesus lhe fosse entregue a
175 Jo 19, 26-27.
176 Lc 23, 34.
177 Lc 23, 46.

{ {
210

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Quando o amor veio à terra

fim de ser sepultado. Junto com as outras, cuidou do corpo,


rapidamente, com os ungüentos e o lençol de linho que
haviam sido trazidos para a ocasião. Depois de o terem
colocado no sepulcro, cuja entrada fora selada com uma
grande pedra, José de Arimatéia a levara, quase à força,
para sua casa. Naturalmente, não conseguira, como
ninguém, dormir, ficando a soluçar sentada a um canto
da parede do quarto onde fora colocada. Uma pergunta
pairava sobre todas as lembranças: Por que, meu Deus?
Ele só fazia o bem. Por que, meu Deus, tanta atrocidade?
Ele era a personificação do Amor. Por que, Meu Deus,
trataram-no com tanto ódio? Suas mãos, tão bonitas e
generosas, cujo toque leve e suave curava, acalmava,
libertava e consolava. Por que, meu Deus, foram cravadas
no madeiro, por cravos dilacerantes? Por que, meu Deus,
seu rosto sereno e bonito, onde os olhos castanho-escuros,
lúcidos e tranqüilos, brilhavam ao falar do Pai Celeste e,
penetrantes, podiam ler os mais recônditos segredos das
almas, teve de ser deformado pelas agressões estúpidas
das bestas-feras do Sinédrio e dos monstros travestidos
de homens, que eram os romanos? E, por que, meu Deus,
foi abandonado por todos, padecendo sozinho aquelas
torturas inomináveis? Por que, meu Deus?
Trazia nas mãos os ungüentos necessários para tratar
o cadáver querido, que haveria de, carinhosamente, untar
acarinhando-o com amor. Queria vê-lo pela última vez e
chorar sobre ele toda sua saudade.
Quando chegou à frente do Sepulcro, tomou susto.
A enorme pedra que lhe tapava a entrada estava deslocada
e caída no chão. Os guardas, colocados pela camarilha do
Templo para vigiar o local, não mais ali se encontravam.
Aproximou-se da entrada do local, apreensiva. Ali, depois
de olhar cuidadosamente o local mergulhado em semi-

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Djalma Argollo

escuridão, entrou resolutamente, e o corpo havia desapare-


cido. Os panos em que fora envolvido estavam no mesmo
lugar, estendidos. Largou todos os apetrechos que trouxera
e saiu sem saber o que fazia. Caminhou sem direção pelo
horto até que viu um vulto por entre algumas árvores.
Deveria ser o homem que cuidava do jardim. Natural-
mente saberia dar-lhe alguma informação sobre o paradei-
ro do corpo que, pensava, alguém tirara dali. Talvez ele
mesmo.
Aproximou-se quase a correr e, com os olhos baixos,
sem fitar o desconhecido, o que o costume proibia,
falou-lhe:
– Por favor, levaram o corpo do meu Senhor, e não
sei onde o puseram. Se foste tu quem o fizeste, dize-me
onde está para que eu possa cuidar dele.
A resposta do homem fê-la tomar um choque:
– Maria.
Aquela voz... Não era possível! Devia estar sendo
vítima de alguma alucinação. Ergueu os olhos lentamente,
quase a medo, e, ó prodígio dos prodígios, ali estava o
Mestre querido a sua frente com o sorriso inesquecível, e
não havia nenhuma marca das torturas sofridas. Seu rosto
era o mesmo que ela se acostumara a fitar com veneração.
Os punhos e os pés não traziam qualquer sinal dos cravos
que os transfixaram. Era ele mesmo. Nenhuma dúvida
atravessou seu coração. Transida de alegria, deixou-se cair
de joelhos, e, do íntimo de seu ser, convulsionando por
indescritíveis sentimentos, brotou a exclamação:
– Rabúni!178
Ia lançar-se aos seus pés, para beijá-los, quando sua
voz a deteve:

178 Meu querido Mestre.

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Quando o amor veio à terra

– Não me toques, pois este novo corpo ainda não


está completamente preparado. Mas vai e dize aos meus
discípulos que, como os avisei, estou retornando da morte,
para lhes demonstrar que só existe vida. Vai, e que a Paz
se faça em tua alma fiel e boa, para sempre.
E, com um aceno de despedida, dissolveu-se
lentamente diante dos seus olhos deslumbrados.
Agora, todo o sofrimento desaparecera do seu
íntimo, substituído por uma alegria infinita. Deixou-se
ficar ainda ali, de joelhos, por algum tempo, enquanto
balbuciava preces de agradecimento a Deus. Não entendia,
é bem verdade, o que estava acontecendo, mas o importan-
te é que o Mestre amado estava vivo.
Levantou-se e, quase a correr, entrou na cidade. Não
se preocupou com os olhares de estranheza que lhe lança-
vam os transeuntes. Chorava, enquanto caminhava veloz,
mas agora de júbilo. Entrou na casa de Maria Marcos,
subindo as escadas que davam para os cômodos superiores
em desabalada carreira. Entrou arfante no recinto. Os
discípulos ali reunidos assustaram-se com a entrada intem-
pestiva, e só se acalmaram quando a identificaram. Ela
queria falar, mas a voz não saía.
Pedro se aproximou, dizendo:
– Acalma-te, mulher. Conta-nos o que aconteceu.
Aos arrancos, vencendo o cansaço que a assaltava,
retrucou, aos arroubos:
– O Mestre... O Mestre... Está vivo... Vivo... Eu o
vi... No jardim... Vivo...
Alguém exclamou:
– Coitada, enlouqueceu!
Voltou-se na direção da voz:
– Não... Eu o vi... Está vivo...
Deixou-se cair no chão, num desmaio, vencida pela
debilidade, pelo cansaço.

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Djalma Argollo

As mulheres acorreram pressurosas. Maria Marcos


se assentou no chão, colocando sua cabeça no colo,
enquanto lhe dizia palavras tranqüilizadoras e procurava
fazê-la beber um gole de água.
Passado muito tempo, recuperou-se e, mais calma,
contou tudo o que acontecera.
– Em verdade, disse Natanael, perdeste completa-
mente o juízo.
Ela protestou, lembrando que Jesus afirmara, várias
vezes, que voltaria depois de morto.
Depois de muita discussão, Pedro e João resolveram
ir até o sepulcro para verificar o que acontecera e voltaram
confirmando que o corpo havia desaparecido. Ali ficaram
apenas os panos com que José de Arimatéia o havia
envolvido.
– Provavelmente as autoridades do Templo o
mandaram retirar para consumar a infâmia. Disse-lhes
Filipe, revoltado.
Estavam, assim, discutindo o que poderia ter havido.
A porta estava trancada. Maria, a um canto com as outras
mulheres, descrevia-lhes, sem parar, o que vira. No cora-
ção delas não pairavam dúvidas. Diferentemente dos
homens, racionais e lógicos, o coração lhes dizia que a
história de Maria era verdadeira – o Mestre ressuscitara.
Por volta da hora sexta, entraram, esfuziantes de
alegria, dois discípulos que, antes da chegada de Maria,
haviam resolvido voltar para Emaús, onde moravam,
cheios de angústia por causa dos acontecimentos da morte
de Jesus, e lhes disseram: O Mestre se levantou de entre
os mortos. Nós o vimos.
Cercados pelos outros discípulos, ouviam indaga-
ções de todos os lados. Pedro, finalmente, fez cessar a
balbúrdia, pedindo que fizessem silêncio para que
pudessem contar o que acontecera.

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Quando o amor veio à terra

Então, Matias Barbetel, um dos dois, contou o que


se passara: Como vocês sabem, saímos daqui pelo início
do primeiro dia da semana. Íamos tristes e aflitos,
comentando nossa dor, em virtude dos acontecimentos
infelizes do parasceve. A certa altura de nossa caminhada,
acercou-se de nós um desconhecido, que comentou ter
percebido nosso acabrunhamento, perguntando-nos a razão.
Tentamos negar que estivéssemos com algum problema,
mas, diante de sua insistência, Josias lhe narrou os episódios
dolorosos da crucificação, comentando que não sabíamos
o que deduzir de tudo aquilo. Se Jesus era o Messias, por
que Deus permitiu que fosse morto de forma tão cruel, sem
intervir? inquiriu, ao final da narrativa, expondo assim o
nosso desapontamento. O desconhecido, tomando da
palavra, pôs-se a comentar, à luz das Escrituras, que tudo
acontecera conforme as predições ali registradas. Dessa
forma, escutando-o, enlevados pela fluência e lógica do
companheiro inesperado, percebemos que chegáramos à
entrada de Emaús. Como a madrugada já se fizesse sentir,
convidamos o nosso amigo para que tomasse a primeira
refeição do dia conosco, na estalagem que ali existe. Quando
fomos servidos, o desconhecido tomou o pão e o partiu,
pronunciando uma bênção. Nossos olhos pareceram, então,
abrir-se, pois o gesto era por demais conhecido. Diante de
nós, estava o Mestre com um sorriso nos lábios.
Exclamamos a uma só voz: Senhor! e, no mesmo instante,
ele desapareceu. Um misto de alegria e medo assaltou-nos
a alma. Começamos a comentar as impressões que
sentíamos enquanto caminhávamos ao seu lado, escutando
seus comentários. Era uma sensação de que o conhecíamos;
entretanto, não conseguíamos lembrar de onde. Levantamo-
nos rapidamente e resolvemos voltar para lhes dar a boa
notícia.

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Djalma Argollo

Exclamações partiam de todos os lados. As mulheres


e alguns dos discípulos louvavam a Deus, enquanto outros
permaneciam incrédulos, afirmando que estavam todos
enlouquecendo.
Nesse comenos, quando todos falavam ao mesmo
tempo sem chegar a qualquer conclusão, uma voz se fez
ouvir, calando a balbúrdia: A Paz esteja convosco.
No meio de todos, Jesus, face serena e sorriso leve,
fitava-os.
Susto, medo, alegria, emoções conflitantes percorre-
ram todos os corações. As mulheres choravam de alegria.
Ali estava a prova de que Madalena falara a verdade.
Jesus acalmou todos, continuando: Não temais, sou
eu mesmo. E, dirigindo-se à mesa onde estavam alguns
restos de comida, reclinou-se, tomou um pão, partiu-o e
o comeu. Disse-lhes então: Estais vendo? não sou uma
alucinação, porque elas não se alimentam.
Foi envolvido por todos. O medo foi substituído
por incrível alegria. Todos lhe falavam ao mesmo tempo.
O Mestre os acalmou com um gesto, dizendo: Voltai
para a Galiléia. Ali nos veremos outra vez. E, desejando-
lhes paz, desapareceu diante dos seus olhos espantados.
Assim, a fé e a esperança voltaram ao coração
daqueles até então descoroçoados discípulos. Pela primei-
ra vez, tomavam consciência de que o Mestre não era um
Messias Guerreiro como acreditavam antes, mas um reno-
vador de mentes e corações, e o seu Reino era um reino
de paz a ser construído pelas vitórias alcançadas contra
os próprios impulsos negativos. Sua revolução era espiri-
tual, objetivando a construção de um novo Homem pleno
de sentimentos nobres, em que o amor seria o dirigente
de todos os impulsos e instintos.

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Quando o amor veio à terra

{ 24
Os Felizes Galileus
Corria o ano 60 quando Clódio desencarnou. Foi
um momento de profunda emoção e de magnífica demons-
tração de Fé. Apenas dois meses haviam transcorrido do
aviso público de sua desencarnação, dado pelo Espírito
do Apóstolo Tiago em reunião pública, através da
mediunidade do próprio Clódio.
Durante a semana final, o fundador da Casa de Jesus
foi tomado de febre súbita, tendo de guardar o leito forçado
pelos companheiros, pois queria continuar exercendo suas
tarefas a todo transe.
Flávio Marcelo assumiu a direção dos serviços para
a qual já vinha sendo preparado como assistente de Clódio,
a fim de substituí-lo definitivamente quando da sua
desencarnação, conforme a ordem de Jesus.
O ex-centurião, pois já havia se desligado do
exército romano, evoluía rapidamente no conhecimento
e prática dos ensinos do Mestre. Dia e noite, ficava
cuidando dos enfermos com todo carinho, pensando
feridas, impondo as mãos sobre todos, assistindo os que
desencarnavam. Nos momentos de rápido descanso, era
visto em seu quarto, lendo e meditando. Dormia muito
pouco, pois a oração se tornara um exercício mental
contínuo, que aprendera a executar com fervor, e no qual
hauria revitalização e paz. Quando instado a repousar

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Djalma Argollo

mais, redargüia: Não posso me dar a esse luxo. Tenho de


recuperar o tempo perdido. Além do mais, aprendi, nos
meus tempos de militar, a cultivar a disciplina, dominando
o corpo pela vontade. Passava noites em claro, preparando
ações contra os que chamavam, em minha ignorância, de
inimigos. Em plena madrugada, levantava para fazer
exercícios de adestramento e, quando em ação, deslocava-
me por longos trechos à frente de meus comandados e,
no campo de batalha, dormia muito pouco e me expunha
aos perigos da luta com todo empenho. Agora, que
despertei para as tarefas da Boa Nova, tenho de me
preparar, exercitando-me constantemente, para atender as
ordens do meu Divino Comandante. Se me preparava com
denodo, em minha cegueira espiritual, para prejudicar os
que chamava de inimigos do Império, quanto não tenho
que fazer para conquistar almas para o Reino de Deus?
Marcelo já começara a se dirigir à assembléia, sob
orientação de Clódio, fazendo pequenas interpretações de
passagens da vida de Jesus e seus ensinamentos. A
princípio titubeante pela falta de prática, progredia rapida-
mente no manejo da palavra, tendo momentos de profunda
inspiração.
Na véspera do desencarne, Clódio o chamou e lhe
disse:
– Meu irmão, sinto que amanhã será o dia da minha
libertação.
Ante os protestos do outro de que isso não aconte-
ceria, pois ele ainda tinha muito que fazer pela difusão da
mensagem do Senhor, disse com bom humor: Vade retro
me Satana, quoniam non sapis quae Dei sunt, sed quae
sunt hominum.179

179 Mc. 8, 33. Passa para trás Adversário, pois não cuidas das coisas que são de
Deus, mas das coisas que são dos homens.

{ {
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Quando o amor veio à terra

Flávio sorriu ante a recordação oportuna, enquanto


o Servo do Mestre prosseguia: A continuação das
atividades de nossa casa já está garantida pelo seu legítimo
responsável – Jesus. Isto é algo que você nunca deverá
esquecer – quem é o dirigente efetivo de qualquer institui-
ção cristã. Cabe a ele tomar as providências com relação
à continuidade ou não das obras erguidas em seu nome.
Por isso, nunca me detive sobre a questão de quem seria
o meu substituto, guardando a certeza de que tal escolha
lhe pertencia por direito inalienável. E, como vimos, o
Mestre agiu no momento oportuno, escolhendo-o para o
encargo de fazer prosseguir os serviços de divulgação do
Evangelho e assistência aos necessitados, que é nosso
objetivo. Parando para descansar um pouco, o Servo de
Jesus continuou: Não tenho nada que me pertença em
termos materiais; por isso, não haverá complicações de
heranças, pois já me desfiz há muito tempo de todas as
posses materiais. No caixote que está aos pés desta cama,
encontrarás os documentos que fazem desta instituição a
proprietária dos bens que um dia foram meus, como este
terreno e suas construções, bem como as somas em
dinheiro aplicadas em mãos de banqueiros sérios, cujos
rendimentos ajudam a manter todas as atividades de
socorro e amparo aos pobres e doentes que nos procuram.
Nele também estão os rolos de pergaminho onde escrevi
todas as informações que me chegaram sobre os ensinos
e feitos de nosso amado Senhor. Considero-o um tesouro
de valor incalculável. Faço-te herdeiro deles. Se os
estudares e praticares com diligência o que ali está, serás
profundamente rico espiritualmente.
Flávio sorriu ante tais palavras, dizendo:
– Sem dúvida, procurarei aplicar bem esse tesouro,
com a ajuda do Mestre.

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Djalma Argollo

Algumas horas depois, rodeado pelo carinho de


assistidos e trabalhadores da Casa de Jesus, Clódio exalou
o último suspiro, sendo suas últimas palavras: Jesus, em
tuas mãos entrego o meu Espírito!
Vibrações suaves enchiam o recinto e, embora as
lágrimas de saudade escorressem pelas faces de todos,
havia paz nos corações.
Após o enterro do corpo de Clódio, em Catacumba
próxima, Flávio Marcelo, envolto em recordações saudosas,
abriu a caixa que lhe fora legada, pondo-se a verificar o
seu conteúdo. Em um rolo de pergaminho, encontrou
anotações sobre a vida de Jesus, pondo-se a ler:
Embora não tivesse a oportunidade de assistir à exe-
cução do Mestre, tive a alegria de vê-lo novamente
num dia inesquecível.
Estava em Cafarnaum, hospedado na casa de Simão
Barjonas, onde todos se reuniam após as fainas do dia,
esperando o momento de revê-lo, conforme Ele havia
prometido.
Numa noite, enquanto conversávamos sobre nossas
recordações dos dias maravilhosos em que o Senhor
estivera conosco, a sala onde nos reuníamos foi ilu-
minada por luz transcendente de um matiz violeta bri-
lhante. No centro da luz, desenhou-se um jovem de
beleza ímpar, que nos falou:
Irmãos, que a Paz esteja convosco! O Senhor pediu
que avisasse a todos os seus fiéis discípulos que, ama-
nhã, pelo cedo da manhã, irá encontrá-los no Monte
das Flores, no Vale de Genesaré, onde costumava orar
antes de deixar a Galiléia. Todos os seus seguidores
desta região, neste momento, estão recebendo esta
informação.
Após o anúncio, o mensageiro celeste desapareceu
enquanto lágrimas de alegria visitavam todos os sem-
blantes.
Imediatamente apressamo-nos em partir para a locali-
dade indicada. A lua cheia parecia mais bela e clara

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Quando o amor veio à terra

naquela noite, iluminando o nosso trajeto, enquanto


os barcos em que nos encontrávamos singrava em
manobras rumo à pequena enseada de Genesaré, e dali
até a encosta do monte onde se daria o encontro. Ali,
deitamo-nos sobre nossas capas para descansar, em-
bora não conseguíssemos dormir tal era a nossa ex-
pectativa. Por todo o resto da noite, foram chegando
pessoas, vindas de todas as regiões do lago, acomo-
dando-se em grupos após as saudações naturais e as
alegrias de reencontros.
Ao nascer do Sol, uma multidão de cerca de quinhen-
tas pessoas estava reunida. Era uma notável assem-
bléia de seguidores de Jesus. Impressionava ver todos
os rostos alegres e, diferentemente dos agrupamentos
comuns, naquele havia um real sentimento de
fraternidade. As pessoas se ajudavam entre si, tratan-
do-se com imenso carinho e total espontaneidade.
Era algo tão inusitado que me pus a meditar sobre
como seria o mundo quando a Mensagem Sublime do
Evangelho fizesse parte do cotidiano de toda a Huma-
nidade. O Reino, do qual o Mestre falava com tanta
insistência, será realmente uma sociedade absoluta-
mente diversa da qual estamos acostumados. Sem hi-
pocrisia, ciúmes, indiferença, antagonismo; enfim, sem
todas as mazelas existentes nos relacionamentos en-
tre os indivíduos, como em voga atualmente.
Pessoas de diversas raças se abraçavam, chamando-
se de irmão, também a alguns de nós, romanos, o que
não deixava de ser notável, dado o fato de que, natu-
ralmente, deveriam ter ressentimentos óbvios. Isto dá
uma dimensão da revolução que os ensinos de Jesus
está provocando. O Amor é, sem qualquer sombra de
dúvidas, uma força transformadora. Ele haverá de criar
o Homem Novo, cheio de Paz e Alegria.
Quando o Astro Rei se levantou no Horizonte, o mur-
múrio natural das conversas foi amainando paulatina-
mente até cessar por completo. O silêncio se fez pro-
fundo, colorido de certa expectativa.
O ambiente se preencheu de energias diferentes. Uma
sensação agradável, misto de alegria e paz, tomou-

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Djalma Argollo

nos o íntimo. Emoções diversas, elevadas, empolga-


ram-nos o coração a ponto de banhar-nos o rosto com
lágrimas de júbilo. Foi então que, a meia altura da
encosta do monte, sobre uma saliência que dele se
projetava, o Mestre apareceu. Todo o seu corpo esta-
va iluminado por uma luz indescritível. Em seu sem-
blante, de beleza ímpar, pairava um sorriso terno. No
mesmo instante, ouvimos sua voz doce e suave. Eco-
ava em nossas mentes, pois o ouvíamos nitidamente
fosse qual fosse a distância que dele estivéssemos:
Irmãos queridos. Este não é um momento de despedi-
da, como os que acontecem na Terra. Na verdade,
nunca estaremos separados, enquanto mantiverdes o
clima espiritual que detendes neste momento, persis-
tindo na vivência da Boa Nova. Seguirei atentamente
todo o desenrolar de vossas vidas como companheiro
inseparável. Sempre contareis com meu auxílio em
qualquer circunstância. Ensinei-vos o caminho da rea-
lização espiritual; cabe a vós vos manterdes nele sem
esmorecimento. O Pai espera muito de cada um, para
que o mundo possa sofrer uma radical transformação,
encontrando, na fraternidade, a forma natural de vi-
ver, conquistando a felicidade que todos sempre al-
mejaram. Já vos disse que não será uma fácil tarefa.
Assim como me trataram, também sereis tratados, pois
os homens ainda se debatem na ignorância da realida-
de maior do Espírito. Para que alcancem a sabedoria,
serão necessários exemplos vivos de uma nova forma
de viver. Sereis responsáveis por essa exemplificação.
Amar, perdoar e servir sempre será o vosso lema. Se
perseverardes nessa trilha, tereis encontrado a vossa
Paz e ministrado aos homens as lições imprescindí-
veis para que também a encontrem. Agora, irmãos
amados, é chegado o momento de nos despedirmos.
Junto do Pai, estarei cuidando para que a Boa Nova se
dissemine entre todos os povos, pois, para ele, não
existem privilegiados. Todos são seus filhos diletos.
Que a Paz permaneça em vossos corações.
Essas palavras ficaram indeléveis em nossa memória.
Tenho certeza de que, como eu, nenhum dos que ali

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Quando o amor veio à terra

estavam as esqueceu. Já tive oportunidade de encon-


trar, depois, algumas das testemunhas daqueles subli-
mes momentos, e suas lembranças conferiam exata-
mente com as minhas.
Enquanto o Mestre desaparecia lentamente diante dos
nossos olhos marejados de pranto, de sua mão direita,
erguida, saía um jato de luz que nos atingia a todos,
em pleno coração, saturando-nos de imensa felicidade.
Quando ele se foi totalmente, ficamos, durante muito
tempo, a olhar o local onde estivera, talvez esperando
vê-lo retornar. Depois, com as faces molhadas de lá-
grimas, pusemo-nos a trocar abraços de despedida,
encaminhando-nos cada qual para o seu destino.
Tenho certeza de que dali saíram fiéis representantes
do seu Amor. Onde quer que se encontrem, estarão
exemplificando os ensinamentos ouvidos com todo o
empenho de suas almas fiéis.
Que o Senhor ajude a minha pobre alma, cheia de de-
feitos, a cumprir, pelo menos, uma parte da tarefa que
ele me confiou.

Com lágrimas nos olhos, Flávio Marcelo retrucou,


respondendo à última manifestação de Clódio: Meu irmão,
tenho certeza de que agora já sabes que cumpriste fielmen-
te tudo o que o Mestre esperava de ti. Todos nós, deste
Pouso de Amor, somos testemunhas efetivas do resultado
do teu trabalho. Ajuda-nos, o Senhor, a segui-lo com a
mesma fidelidade com que o fizeste.
E, nas telas da mente, parecia-lhe ver a figura de
Clódio abraçando-o com infinita ternura, ladeado de Jesus,
sorridente e belo como sempre.

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Quando o amor veio à terra

{ 25

Betânia:
o Último Encontro
F
oi um momento inesquecível!
Com essas palavras, Lissandro começou a narrativa
que Paulo de Tarso lhe pedira para fazer à comunidade
cristã de Tessalônica, reunida na casa de Jasão. Eram
pouco mais de vinte pessoas que o verbo inflamado do
Apóstolo das Gentes atraíra para as luzes do Evangelho.
Encontrava-me hospedado em casa de Lázaro há
três dias, atendendo à curta missiva que enviara à minha
residência na Peréia, cidade que fica além do Jordão, na
região denominada de Decápolis. Nela, dizia apenas que
os fiéis seguidores do Rabi Nazareno estavam sendo
convocados para uma reunião urgente na cidade onde
morava.
Atendi prestamente porque queria inteirar-me das
ocorrências que davam conta de que Jesus havia
ressuscitado e aparecera a vários de seus discípulos.
Soubera que, na Galiléia, ele havia se mostrado em plena
luz do dia a mais de quinhentos discípulos.
Não havia em meu coração qualquer dúvida quanto
ao fato, pois, quem era capaz de restituir a visão a um
cego de nascença, como fizera comigo, e trazido meu

{ {
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Djalma Argollo

amigo Lázaro à vida após quatro dias de enterrado, como


eu mesmo testemunhei, poderia tudo.
Assim que cheguei, Lázaro me recebeu eufórico:
Não poderia deixar que perdesses essa oportunidade. O
Mestre marcou um encontro com alguns dos seus
discípulos, aqui em Betânia, para daqui a três dias.
A notícia me encheu de alegria. Iria poder vê-lo mais
uma vez, agora na situação ímpar de vencedor da morte.
A espera se fazia longa devido a nossa ansiedade.
Quase não dormíamos, passando o tempo a relembrar as
palavras e feitos do querido Amigo. Lázaro, Marta e Maria
me contaram vários episódios de aparição do Mestre, que
lhes tinham chegado ao conhecimento. Era uma coisa
fantástica. Nunca, na História de Israel, havia acontecido
algo semelhante. Nem o próprio Moisés, que falara
diretamente com Deus, havia proporcionado tamanha
demonstração de poder.
As noites, antes do dia da prometida aparição, foram
povoadas de sonhos extraordinários. Víamo-nos em
regiões de beleza indescritível, reunidos em assembléias
à volta do Mestre, que atendia e socorria multidões de
pessoas, cujos rostos e corpos apresentavam os mais
diversos sintomas de desequilíbrio e enfermidade.
Perguntando a um dos luminosos acompanhantes do Rabi
onde nos achávamos e quem eram aquelas criaturas, ouvi
uma explicação singular: Meu irmão, esta é a Região da
Sombra da Morte, de que falam as escrituras. E esses
nossos irmãos, quando na Terra, não souberam viver os
preceitos do Amor e da Caridade, praticando toda a sorte
de ações indignas. O Senhor está lhes estendendo a sua
ajuda misericordiosa, assim como fez com os que ainda
estão no corpo físico.
Confesso que fiquei surpreso, mas tenho hoje a
certeza de que os mortos também foram e são atendidos

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Quando o amor veio à terra

pelo carinho e solicitude do Mestre, cuja Bondade se


estende tanto sobre os que estão vivos quanto àqueles que
se acham no Vale Escuro da Morte.
Quando chegou o dia anunciado, antes que o Sol
raiasse, fomos para um dos lados do Monte das Oliveiras,
ensombrado por diversas dessas árvores, onde havia uma
pequena clareira encimada por uma rocha que se projetava
ligeiramente. Ali encontramos os onze discípulos que
viviam mais constantemente com o Rabi Nazareno
acompanhados de uma pequena multidão, que calculei
em torno de duzentas pessoas. Havia uma expectativa
quase palpável no ar.
Pouco depois do Astro Rei se levantar no horizonte,
sentimos que o ambiente à nossa volta se modificava. Era
algo muito sutil. Um silêncio profundo, como se a própria
Natureza entrasse em estado de espera de um aconteci-
mento singular. A brisa que sacudia levemente as folhas
das oliveiras estava carregada de perfume. Sentimentos
de alegria e paz profundos percorriam-nos a alma. De
repente, como se atendendo a um alerta silencioso, volta-
mo-nos todos para a projeção rochosa e o Mestre foi apare-
cendo lentamente diante de nossos olhares espantados.
Primeiro, era um contorno transparente que se foi
concretizando aos poucos, até que ele se fez presente em
todos os detalhes. Todo o seu ser irradiava uma luminosi-
dade deslumbrante, mas que não ofuscava, enquanto suas
roupas se apresentavam extraordinariamente alvas.
A emoção tomou conta de todos, manifestando-se
nas lágrimas que escorriam por todas as faces.
Sua voz, inesquecível, soou novamente aos meus
ouvidos ou parecia soar, pois, rememorando o episódio,
sinto que ela parecia brotar dentro do meu cérebro, em
vez de ser captada pelos meus ouvidos:

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Djalma Argollo

Meus irmãos! É chegado o momento em que me


despeço da convivência material convosco. Foram
momentos de lutas e dificuldades, mas de imensas
realizações, cujos frutos só serão colhidos daqui a muitos
séculos. A plantação da semente do Bem no coração
humano é tarefa árdua e de germinação difícil,
necessitando de muito trabalho e dedicação para que
medre convenientemente. Todavia, não vos deixarei
órfãos. Acompanharei vossos passos como um amigo
constante, embora invisível. Nas horas necessárias, senti-
reis mais efetivamente a minha presença. Se permanecer-
des nas trilhas do Amor e da Caridade que vos indiquei,
nada vos faltará, nem no que concerne ao Espírito nem
no que diz respeito às coisas materiais. Seja vossa vida
dedicada a difundir, entre todas as criaturas, a Boa Nova
do Reino de Deus, tanto por palavras quanto por ações no
socorro aos desvalidos do corpo e da alma. Mas, principal-
mente, façais de vossas existências o mais eloqüente
discurso, vivenciando tudo o que vos ensinei, para que
sejais luz do mundo e sal da Terra. O mais belo e sentido
discurso será de mínima valia se não for fundamentado
no exemplo sistemático. Como eu, enfrentareis o ódio
gratuito dos que fazem do mal a razão de suas vidas.
Semearão armadilhas em torno de vossos passos; levan-
tarão torpes calúnias a vosso respeito; procurarão vos
ridicularizar e, finalmente, farão prender muitos de vós,
julgando, torturando e condenando-vos à morte em seus
tribunais iníquos, dos quais a Justiça nunca se aproximou.
Mas, se mantiverdes o coração fiel a mim, recebereis a
Coroa da Vida Imperecível. Tomai-me como exemplo.
Revesti-me com a vossa carne, vivi todas as circunstâncias
de vossas vidas, enfrentei as mesmas tentações, sofri as
mesmas dores, sorri e chorei como todos vós. Mas, em

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Quando o amor veio à terra

toda e qualquer situação, mantive estrita fidelidade ao Pai


Celeste. Assim, posso me colocar diante de todos como
um padrão a ser seguido, pois demonstrei que o Espírito
é o senhor da matéria densa, e a vontade firmemente
centrada em Deus nos faz superar o assalto dos impulsos
primitivos, sempre. Deixo convosco a minha paz.
Sua mão se ergueu num gesto de bênção, deixando
fluir sobre nossas cabeças uma chuva de raios luminosos,
que, acredito, transformaram nossa tristeza, pela
separação, em alegria, pela certeza da perene companhia
do Mestre inesquecível.

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Ao final da narrativa, tanto o orador quanto os


ouvintes choravam de emoção. Os olhos do Apóstolo das
Gentes, marejados de pranto, brilhavam intensamente.
Lembrava-se, naturalmente, da visão que tivera às portas
de Damasco, e que lhe mudou o rumo da existência.
O átrio onde se encontravam estava repleto de
vibrações sublimes, e muitos videntes percebiam a
presença dos Espíritos, cuja luminosidade, a se irradiar
de seus corpos espirituais enobrecidos pela prática do bem,
criava uma policromia de matizes delicados e
transcendentes.
Envolvidos nos fluidos sutis que dimanavam das
Esferas Superiores da Vida, todos escutaram, por
fenômeno de Voz Direta, a voz augusta do Cristo Imortal
ressoar no ambiente e em seus corações:
Eu estarei convosco até a consumação dos
séculos.

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Quando o amor veio à terra

Posfácio
Leitor amigo. As páginas que acabas de ler são
fruto de um entranhado amor ao Mestre e Senhor de todos
nós. O Espírito que as inspirou, Mnêmio Túlio, transmite
profunda afetividade pela figura excelsa de Jesus,
arrebatando-me aos mais altos cimos da emoção. Auguro
que também possas ter vivido momentos semelhantes
durante sua leitura. Todavia, o mais importante não é se
emocionar com a vida do Rabi Galileu, mas procurar viver
a Boa Nova que ele nos trouxe.
Assim procedendo, estaremos realizando nossa
parte na imensa tarefa da implantação do Reino de Deus
entre nós. Afinal, já deveríamos estar cansados de viver
uma longa erraticidade de descaminhos e inconseqüências,
através de vidas sucessivas, correndo atrás das mesmas
ilusões, cultivando os mesmos sentimentos conflituosos
e alimentando as mesmas ambições espúrias, para terminar
inevitavelmente nos braços espinhosos da dor, bebendo
na taça de fel de amarguras reiteradas e chorando lágrimas
ardentes de remorsos cruéis. É preciso dar um basta nessa
jornada sem rumo e sem objetivo real.
O Espiritismo, abençoada oportunidade de reeduca-
ção espiritual, revive os ideais evangélicos do Cristianismo
Primitivo através das línguas de fogo do Pentecostes
Universal, que são os Espíritos. Esses, por meio da

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Djalma Argollo

mediunidade triunfante, vêm-nos conclamar ao renasci-


mento espiritual, que deterá a recorrência infeliz das
reencarnações dolorosas e cheias de aflições que temos
vivenciado habitualmente.
Não deixemos escapar, por entre os dedos, a sublime
oportunidade. Corajosamente, tomemos a resolução da
autotransformação, integrando à consciência os aspectos
negativos da personalidade, recolhendo as projeções
injustificáveis que procuram perpetuar a via ilusória por
onde estamos transitando, através de incontáveis eras. O
Cristo, na sua Infinita compaixão, abre-nos, mais uma
vez, seus braços amoráveis, convidando-nos a aceitar o
seu jugo suave e a pôr sobre os ombros o seu fardo leve.
Por que postergar novamente a entrega? Saltemos, resolu-
tos, no imenso pélago do seu Amor, superando atavismos
e apegos tradicionais, pois ele é a única possibilidade de
encontro definitivo com a Felicidade.

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Quando o amor veio à terra

Sugestões Bibliográficas
ALAND, Kurt et al. The greek new testament. 2 ed. Stuttgart: United
Bible Societies, 1968.
ALAND, Kurt et al. The greek new testament. Introdução em castelhano
e dicionário. 3 ed. Stuttgart: United Bible Societies. 1975.
ANDRÉ LUIZ. Entre a terra e o céu. Psicografado por Francisco
Cândido Xavier. 13 ed. Brasília: FEB, 1990.
ANDRÉ LUIZ. Mecanismos da mediunidade. Psicografado por
Francisco Cândido Xavier. 13 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1983.
ANDRÉ LUIZ. Nos domínios da mediunidade. Psicografado por
Francisco Cândido Xavier. 13 ed. Brasília: FEB, 1984.
ANDRÉ LUIZ. Nosso lar. Psicografado por Francisco Cândido Xavier.
35 ed. Brasília: FEB, 1988.
ANDRÉ LUIZ. Obreiros da vida eterna. Psicografado por Francisco
Cândido Xavier. 17 ed. Brasília: FEB, 1984.
ANDRÉ LUIZ. Os mensageiros. Psicografado por Francisco Cândido
Xavier. 17 ed. Brasília: FEB, 1984.
ARGOLLO, Djalma Motta. Encontro com Jesus. Salvador-Bahia:
Fundação Lar Harmonia, 2005.
ARGOLLO, Djalma Motta. O novo testamento: um enfoque espírita.
São Paulo: Mnêmio Túlio, 1994.
ARGOLLO, Djalma Motta. O sermão do monte. São Paulo: Mnêmio
Túlio, 1993.
ARGOLLO, Djalma Motta. Possibilidades evolutivas. São Paulo:
Mnêmio Túlio, 1994.

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Quando o amor veio à terra (A).pmd 233 25/9/2007, 11:53


Djalma Argollo

CHAPLIN, Russell Norman. O novo testamento interpretado versículo


por versículo. São Paulo: Milenium Distribuidora Cultural, 1982. 6v.
DRANE, John. A vida da igreja primitiva. São Paulo: Paulinas, 1985.
DRANE, John. Jesus. São Paulo: Paulinas, 1982.
DRANE, John. Paulo. São Paulo: Paulinas, 1982.
EMMANUEL. Caminho, verdade e vida. Psicografado por Francisco
Cândido Xavier. 13 ed. Brasília: FEB, 1989.
EMMANUEL. Fonte viva. Psicografado por Francisco Cândido Xavier.
17 ed. Brasília: FEB, 1990.
EMMANUEL. Palavras de vida eterna. Psicografado por Francisco
Cândido Xavier. 7 ed. Uberaba: CEC, 1975.
EMMANUEL. Pão nosso. Psicografado por Francisco Cândido Xavier.
9 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1982.
EMMANUEL. Paulo e Estevão. Psicografado por Francisco Cândido
Xavier. 11 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1975.
EMMANUEL. Vinha de luz. Psicografado por Francisco Cândido
Xavier. 10 ed. Brasília FEB, 1987.
FRIEBERG, Bárbara; FRIEBERG, Timothy. O novo testamento
analítico. São Paulo: Vida Nova, 1987.
FREIRE, Antônio. Gramática grega. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
GINGRICH, F. Wilbur; DANKER, Frederick W. Léxico do N.T. grego
português. São Paulo: Vida Nova, 1984.
KARDEC, Allan. La gênese. Paris: La Diffusion Scientifique, 1952.
KARDEC, Allan. Le ciel e l´enfer. Farciennes-França: Union Spirite, 1865.
KARDEC, Allan. Le livre des esprits. Paris: Didier, 1860.
KARDEC, Allan. Le livre des médiums . Paris: Dervy-Livres, 1972.
LASOR, William Sanford. Gramática sintática do grego do N.T. São
Paulo: Vida Nova, 1986.
MCKIBBEN, Jorge Fitch. Nuevo lexico grieco-español del Nuevo
Testamento. 4 ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978.
RODRIGUES, Amélia. Primícias do reino. Psicografado por Divaldo
Pereira Franco. 4 ed. Salvador: Livraria Espírita Alvorada Editora, 1987.

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A Editora e Distribuidora Harmonia é responsável
pela publicação e comercialização de diversos títulos,
tanto os próprios como os de outras editoras.
Tem lançado obras que abordam temas de caráter
psicológico e espírita, fundamentadas
nas obras de Allan Kardec.

Conheça suas obras e as adquira


através do site www.larhamonia.org.br
ou pelo telefone (71) 3375-1570

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A Fundação Lar Harmonia é uma instituição
beneficente, sem fins lucrativos, cujas ações se destinam
à promoção social e ao desenvolvimento psíquico, social,
emocional e espiritual do ser humano. Suas atividades
são mantidas por doações, eventos beneficentes, vendas
de livros, realização de cursos, seminários e diversos
convênios. Mantém uma Escola de primeiro grau e uma
Creche Escola, que funcionam em tempo integral,
destinadas a crianças carentes. Além da educação
formal, as escolas proporcionam a essas crianças
assistência médica, nutricional, psicológica, odontoló-
gica, espiritual e lhes fornecem fardamento e transporte.
Desenvolve um trabalho de promoção social com as
famílias dos alunos da Escola e da Creche Escola,
possibilitando-lhes cuidados médicos, odontológicos e
psicológicos, cursos de capacitação profissional e uma
cesta básica mensal. Os recursos oriundos da venda
deste livro lhe são destinados.

Quando o amor veio à terra (A).pmd 236 25/9/2007, 11:53


Outras obras do autor:

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Outros livros da
Distribuidora Harmonia

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Conhecendo o Espiritismo Alquimia do Amor – Sonhos– Mensagens
– Um curso básico Depressão, Cura e da Alma
Adenáuer Novaes Espiritualidade Adenáuer Novaes
14 x 21cm | 130 páginas Adenáuer Novaes 14 x 21cm | 236 páginas
ISBN 85-86492-04-3 14 x 21cm | 256 páginas ISBN 85-86492-03-5
ISBN 85-86492-17-5
O livro apresenta o Espiritismo Um estudo sério a
numa linguagem simples para O autor faz um estudo profundo a respeito dos sonhos,
aqueles que se iniciam no seu respeito da depressão, considerando-os como
estudo. É utilizado como manual apresentando seus principais recados ao sonhador.
no Curso Básico de Espiritismo. sintomas, suas causas e formas de Introduz o leitor no
Apresenta os princípios básicos tratamento. Procura desmistificar a mundo onírico,
do Espiritismo de forma a depressão, estabelecendo as mostrando sua
facilitar o estudo e a diferenças em relação a outros importância para o
compreensão de sua estados de consciência, visando desenvolvimento psíquico
importância para o ser um diagnóstico mais preciso. e espiritual com uma
humano. Considera a depressão como um análise comparada
processo de auto-erotização e de esclarecendo o
alquimia de energias internas. O pensamento espírita a
enfoque é psicológico e espírita. respeito.

Filosofia e
Espiritualidade
– Uma
abordagem
Psicológica
Adenáuer
Novaes
14 x 21cm |
Psicologia e 240 páginas
Mediunidade ISBN 85-
Adenáuer Novaes 86492-15-9
14 x 21cm | 172
páginas Nesse livro,
ISBN 85-86492-11-6 o autor analisa a
evolução do pensamento da
Este trabalho tenta estabelecer uma ponte entre o humanidade, trazido pelos mais diversos
espiritual e o psicológico, apresentando a pensadores, sob uma perspectiva psicológica e
mediunidade como uma faculdade que deve ser espiritual. Encontram-se referências filosóficas
utilizada pelo ser humano nas diversas atividades da de temas constantes em O Livro dos Espíritos.
vida. A mediunidade é um dos instrumentos de que O psiquismo humano é considerado como
dispõe a mente humana para o acesso ao instrumento flexível e moldável às idéias
inconsciente, permitindo que a realização pessoal se coletivas que nortearam o pensamento em
dê com a inserção do espiritual. várias épocas.

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