Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Revel - 2005 - FOUCAULT Conceitos Essenciais PDF
Revel - 2005 - FOUCAULT Conceitos Essenciais PDF
MICHELFOUCAULT
CONCEITOS ESSENCIAlS
~
claraluz
EDITORA
Juclith Revel
MICHELFOUCAULT
CONCEITOS ESSENCIAIS
$
claraluz
EDITORA
Título original:
Le Vocabulaire de Foucault
© Ellipses Édition Marketing S.A., 2002
32, rue Bargue 75740 Paris cedex 15
ISBN 2-7298-1088-9
Diagramação
Malra Valencise
Capa
Dez e Dez Mu/timeios
ISBN 85-88638-09-6
EDITORA CLARALUZ
Rua Rafael de A. Sampaio Vidal, 1217
CEP 13560-390 - Centro / São Carlos - SP
FonelFax: (16) 3374 8332
Site: www.editoraclaraluz.com.br
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou
transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em banco de
dados sem permissão da Editora Claraluz Ltda.
Acontecimento 13
Arqueologia 16
Arquivo 18
Atualidade 20
Aufklarung 22
Autor 24
Biopolitica 26
Controle 29
Corpos (investimento politico dos) 31
Cuidado de si / Técnicas de si 33
Disciplina 35
Discurso 37
Dispositivo 39
Episteme 41
Expêriencia 47
Exterior 50
Genealogia 52
Governamentalidade 54
Guerra 56
História 58
Loucura 62
Norma 65
Poder 67
Problematização 70
Razão / Racionalidade 72
Resistência / Tran gressão 74
Saber / Saberes 77
Sexualidade 80
Subjetivação (processo de) 82
Sujeito / Subjetividade 84
I NT: Dits et écrits foi publicado, no França, pela Gallimard (1994, 04 volumes),
sob a direção de Oaniel Oefert e François Ewald com a colaboração de Jacques
Lagrange. A edição brasileira de Ditos e Escritos, organizada por Manoel Barros da
Morta, foi publicada, em 05 volumes, pela Forense Universitária, entre 2002 e
2004.
definitivamente no livros, o vocabulário se forja e e modela no
laboratório da obra: o enorme corpus de textos esparsos reunidos
sob o título de Ditos e escritos' fornece, desse ponto de vista, um
resumo formidável do trabalho de produção de conceitos que
implica o exercício do pensamento; essa é a razão pela qual, na
maior parte dos casos, se encontrará aqui neste livro referências
aos textos de Ditos e escritos. É preciso igualmente sublinhar que
esse laboratório do pensamento não é somente o lugar onde se
criam conceitos, mas, freqüentemente, também o lugar onde,
num movimento de reviravolta que está sempre presente em
Foucault, eles passaram num segundo tempo pelo crivo de uma
crítica interna: os termos são, portanto, produzidos, fixados,
depois reexaminados e abandonados, modificados ou ampliados
num movimento contínuo de retomada e de deslocamento.
Este livro, no qual proponho a definição de conceitos
essenciais de Foucault sob a forma de um vocabulário em ordem
alfabética, precisou considerar tudo is o ao mesmo tempo. Tarefa
árdua, certamente, já que procurei não estancar esse movimento
e, ao mesmo tempo, pretendi tornar compreensível a coerência
fundamental da reflexão foucaultiana. Foi necessário, portanto,
operar escolhas - freqüentemente difíceis - a fim de tornar
visíveis as passagens essenciais des a problematização contínua;
e, na medida do possível, tentei tecer sistematicamente, por
meio de um jogo de remissões, a trama a partir da qual o percurso
filosófico de Foucault podia ser visualizado na complexidade
de suas ramificações e de suas reviravoltas. o final de sua vida,
Foucault gostava de falar de "problematização" e não entendia,
nessa idéia, a representação de um objeto pré-existente nem a
criação, por meio do discurso, de um objeto que não existe, mas
"o conjunto de práticas di cursivas ou não-discursivas que faz
entrar alguma coi a no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui
como objeto para o pensamento (quer isso seja sob a forma da
reflexão moral, do conhecimento cientifico, da análise política
etc.)". Ele assim definia, portanto, um exercício crítico do
pensamento que se opõe à idéia de uma pesquisa metódica da
"solução", porque a tarefa da filosofia não é resolver - aí
compreendida a ação de substituir uma solução por outra - mas
"problematizar", não reformar, mas instaurar uma distância
crítica, fazer jogar o "desprendimento".
A maior homenagem que podemos prestar, hoje, a
Foucault é preci amente restituir ao seu pensamento sua
dimensão problemática. Este livro, ao organizar um vocabulário
com os conceitos essenciais de Foucault (muito mais do que um
simples conjunto de termos enumerados segundo a ordem
alfabética) é uma tentativa de reconstituir a diversidade dessas
problematizações - sucessivas ou superpo tas - que fazem a
extraordinária riqueza das análi es foucaultiana .
Judith Revel
Organização do livro
* definição de base
Acontecimento
* Por acontecimento, Foucault entende, antes de tudo de maneira
negativa, um fato para o qual algumas análises históricas se contentam
em fornecer a descrição. O método arqueológico foucaultiano busca,
ao contrário, reconstituir atrás do foto toda uma rede de discursos, de
poderes, de estratégias e de práticas. É, por exemplo, o caso do trabalho
realizado sobre o dossiê Pierre Rioiêre: "reconstituindo es e crime do
exterior [...], como e fosse um acontecimento, e nada além de um
acontecimento criminal, eu creio que nos falta o essencial'". Entretanto,
num segundo momento, o termo "acontecimento" começa a aparecer
em Foucault de maneira positiva, como uma cristalização de
determinações históricas complexas gue ele opõe à idéia de estrutura:
"Admite-se que o e truturali mo tenha sido o esforço mais sistemático
para eliminar, não apenas da etnologia mas de uma série de outras
ciências e até mesmo da história, o conceito de acontecimento. Eu
não vejo guem pode ser mais anti-estrururalista do que eu'". O
programa de Foucault torna-se, portanto, a análise de diferentes redes
e níveis aos quais alguns acontecimentos pertencem. E sa nova
concepção aparece, por exemplo, quando ele define o discurso como
uma érie de acontecimentos, colocando-se o problema da relação
entre os "acontecimentos discursivos" e os acontecimentos de uma
outra natureza (econômicos, sociais, políticos, institucionais).
4 Dialogue sur le pouvoir. In: Wade, S. Che; Foucault . Los Angeles: Circabook,
1978. [Tradução brasi leira: Diálogo sobre o poder. In: Ditos e Escritos, vol. IV, p.
258].
5 La poussiêre et le nuage. In: M. Perrot (ed.) L'impossible prison. Paris: Seuil,
1980. [Tradução brasileira: A poeira e a nuvem. In: Ditos e Escritos, vol. IV, p. 323-
334).
Michel Foucault: conceitos essenciais /5
Arqueologia
*0 termo "argueologia" aparece três vezes nos título da obra de
Foucault - ascimento da clínica. Uma arqueologia do olhar médico (1963),As
palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas (1966) e Arqueologia
do saber (1969) - e caracteriza até o final dos anos 70 o método de
pesguisa do fJ.iósofo.Uma argueologia não é uma "história" na medida
em que, como se trata de construir um campo histórico, Foucault opera
com diferentes dimensões (filosófica, econômica, científica, politica
etc.) a fim de obter as condiçõe de emergência dos discursos de saber
de uma dada época. Ao invés de estudar a história das idéias em sua
evolução, ele e concentra sobre recortes históricos precisos - em
particular, a idade clássica e o início do século XIX -, a fim de descrever
não somente a maneira pela gual os diferentes saberes locais se
determinam a partir da constituição de novos objetos gue emergiram
num certo momento, mas como eles se relacionam entre si e desenham
de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente.
1 Les mOIS etles choses. Une archéologie des sciences humaines. Pari: GaJlimard,
1966. [Tradução bra ileira: As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências
humanas. São Paulo: Martins Fonte, 2000, p. 536].
8 Dialogue ur le pouvoir, op. cit. nota 4.
/8 Judith Revel
Arquivo
*"Chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram
conservados por uma civilização, nem o conjunto de traços que
puderam ser salvos de seu desastre, mas o jogo das regras que, numa
cultura, determinam o aparecimento e o desaparecimento de
enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência
paradoxal de acontecimentos e de coisas. Analisar o fatos de di curso no
elemento geral do arquivo é considerá-Ios não ab olutamente como
documentos (de uma significação escondida ou de uma regra de
construção), mas como monumentos: é - fora de qualquer metáfora
geológica, em nenhum assinalamento de origem, sem o menor gesto
na direção do começo de uma arcbê - fazer o que poderíamo chamar,
conforme os direitos lúdicos da etimologia, de alguma coisa como
uma arq/ICologia''9.
*** A partir do inicio dos anos 70, parece que o arquivo muda de
estatuto em Foucault: em favor de um trabalho direto com os
historiadores (em Pierre Riviere, de 1973; em L'i1JtfJossib/e prison, sob a
direção de Michelle Perrot, de 1978; ou com Arlette Farge, em Le
désordre des fa!JIi/Ies, de 1982), ele reivindica cada vez mais a dimensão
subjetiva de seu trabalho ("E te não é um livro de história. A escolha
que nele se encontrará não seguiu outra regra mais importante do que
meu gosto, meu prazer, uma emoção'?") e se entrega a uma leitura
frequentemente muito literária do que ele chama, às vezes, de "estranhos
poemas". O arquivo funciona, a partir de então, mais como traço de
existência do que como produção discursiva: sem dúvida, porque, na
realidade, Foucault reintroduz nesse momento a noção de subjetividade
em sua reflexão. O paradoxo de uma utilização não histórica das fontes
históricas lhe foi muitas vezes abertamente censurado.
10 La vie des hommes infâmcs. In: Les cahiers du chemim, n? 29,1977. [Tradução
brasileira: A vida dos homens infames. ln: Ditos e Escritos, vol. IV, p.203].
20 Judith Revel
Atualidade
*A noção de atualidade aparece de dua maneiras diferentes em
Foucault. A primeira consiste em destacar como um acontecimento-
por exemplo, a cisão entre loucura e não-loucura - não omente
engendra uma série de discursos, de prática , de comportamentos e
de instituições, mas se estende até nós. "Todo es es acontecimento,
parece-me que os repetimos. ós os repetimos em nossa atualidade e
eu tento compreender qual é o acontecimento que pre idiu nosso
nascimento e qual é o acontecimento que continua, ainda, a nos
atravessar"!'. A passagem da arqueologia à genealogia será, para
Foucault, a ocasião de acentuar ainda mais essa dimensão de
prolongamento da história no presente. A segunda concepção de
atua/idade está estritamente ligada a um comentário que Foucault faz
do texto de Kant, O que é o J/u1JIinis1Jlo?, em 198412• A análise insi te,
então, sobre o fato de que colocar filosoficamente a questão de sua
própria atualidade - o que faz Kant pela primeira vez - marca, na
realidade, a passagem para a modernidade.
Aufklãrung
*0 tema do Alijkltinl11g aparece na obra de Foucault de maneira cada
vez mais insistente a partir de 1978: ele remete sempre ao texto de
Kant, Was ist AuJklàmng?(1784) 15.
17 Introdução a Canguilhem, G. 011 lhe Normal nnd lhe Pathological, op.cit. nota 16.
IR What is Enlightenrnent? op. cit. nota 6.
19 What's enlightenment?, op. cit. nota 6.
24 Judith Revel
Autor
*Em 1969, Foucault faz uma conferência sobre a noção de autor que
se abre com essas palavras: " 'Que importa quem fala?' essa
indiferença se afirma o principio ético, talvez o mais fundamental, da
escrita contemporânea'F". Essa critica radical da idéia de autor - e
mai geralmente do par autor/obra - vale ao mesmo tempo como
diagnóstico sobre a literatura (em particular, na tripla esteira de
Blanchot, do novo romance e da nova crítica), e como método
foucaultiano de leitura arqueológica: com efeito, e reencontramos
frequentemente a teorização desse "lugar vazio" em alguns escritores
gue Foucault comenta na época, é igualmente verdadeiro que a análise
a que se dedica o filósofo em As Palavras e as Coisas procura, por sua
vez, aplicar ao arquivo, isto é, à historia, o princípio de uma leitura das
"massas de enunciados" ou "planos discursivos", que não estavam
"bem acentuados pelas unidades habituais do livro, da obra e do
autor"?'. Desse ponto de vista, o início de A Ordem do Discurso dá
continuidade à reflexão sobre um fluxo de fala que seria ao mesmo
tempo historicamente determinado e não-individualizado, e que ditaria
as condições de fala do próprio Foucault na sua aula inaugural no
Col/egede France: "Gostaria de perceber que no momento de falar uma
voz sem nome me precedia há muito tempo"22.
Biopolítica
*0 termo "biopolítica" designa a maneira pela qual o poder tende a
se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do século
XlX, a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um
certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos
viventes constituidos em população: a biopolítica - por meio dos
biopoderes locais - se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da
higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida
em que elas se tornaram preocupações políticas.
Controle
*0 termo "controle" aparece no vocabulário de Foucault de maneira
cada vez mais fregüente a partir de 1971-72. Designa, num primeiro
momento, uma série de mecanismos de vigilância gue aparecem entre
os séculos XVIII e XIX e gue têm como função não tanto punir o
desvio, mas corrigi-lo, e, sobretudo, preveni-lo: "Toda a penalidade
do século XIX transforma-se em controle, não apenas sobre aquilo
gue fazem os indivíduos - está ou não em conformidade com a lei? -
mas sobre aquilo gue eles podem fazer, gue eles são capazes de fazer,
daquilo gue eles estão sujeitos a fazer, daquilo gue eles estão na irninência
de fazer"28. Essa extensão do controle social corresponde a uma "nova
distribuição espacial e social da rigueza industrial e agrícola"29: é a
formação da sociedade capitalista, isto é, a necessidade de controlar
os fluxos e a repartição espacial da mão de obra, levando em
consideração necessidades da produção e do mercado de trabalho,
gue torna nece sária uma verdadeira ortopedia social, para a gual o
desenvolvimento da policia e da vigilância das populações são os
instrumentos essenciais.
**0 controle social passa não somente pela justiça, mas por uma
série de outros poderes laterais (as instituições psicológicas, psiguiátricas,
criminológicas, médicas, pedagógicas; a gestão dos corpos e a
instituição de uma politica da saúde; os mecanismos de assistência, as
associações filantrópicas e os patrocinadores etc.) gue se articulam em
dois tempos: trata-se, de um lado, de constituir populações nas quais os
* ~~Toda
.. a ambigüidade do termo "controle" deve-se ao fato de
que, a partir dos anos 80, Foucault deixa subentender que ele o entende
como um mecanismo de aplicação do poder diferente da disciplina.
É em parte sobre esse ponto que se efetua a reviravolta programática
da Histôria da Sexualidade, entre a publicação do primeiro volume (1976)
e aquele dos dois últimos (1984): "o controle do comportamento
sexual tem uma forma completamente diferente da forma disciplinar
que se encontra, por exemplo, nas escolas. ão se trata de modo
algum do mesmo assunto"?", A interiorização da norma, patente na
gestão da sexualidade, corresponde ao mesmo tempo a uma
penetração extremamente fina do poder nas malhas da vida e à sua
subjetivação. A noção de controle, uma vez tomada independentemente
das análises disciplinares, conduz então Foucault ao mesmo tempo
em direção a uma "ontologia critica da atualidade" e a uma análise
dos modos de subjetivação que estarão no centro de seu trabalho nos
anos 80.
Cuidado de si / Técnicas de si
* o início
vocabulário
dos anos 80, o tema do cuidado
de Foucault no prolongamento
de S1
da
aparece
idéia
no
de
governamentalidade. À análise do governo dos outros segue, com
efeito, aquela do governo de si, isto é, a maneira pela qual os sujeito
se relacionam consigo mesmos e tornam possível a relação com o
outro. A expressão "cuidado de si", que é uma retomada do epimeleia
heauto« que se encontra, em particular, no Primeiro A/cebíades, de Pia tão,
indica, na verdade, o conjunto das experiências e das técnicas que o
sujeito elabora e que o ajuda a transformar-se a si mesmo. o período
helenístico e romano sobre o qual se concentra rapidamente o interesse
de Foucault, o cuidado de si inclui a máxima délfica gf1âtbi seautou, mas
a ela não se reduz: o epime/eia beauto« corresponde antes a um ideal
ético (fazer de sua vida um objeto de tekhnê, uma obra de arte) que a
um projeto de conhecimento em sentido estrito.
Disciplina
* Iodalidade de aplicação do poder que aparece entre o final do
século XVIII e o início do éculo XIX. O "regime disciplinar"
caracteriza-se por um certo número de técnicas de coerção que exercem
um esquadrinhamento sistemático do tempo, do espaço e do
movimento do indivíduos e que atingem particularmente as atitudes,
os gestos, os corpos: "Técnicas de individualização do poder. Como
vigiar alguém, como controlar sua conduta, seu comportamento, suas
atitudes, como intensificar sua performance, multiplicar suas
capacidades, como colocá-Io no lugar onde ele será mais útil"38. O
discurso da disciplina é estranho à lei ou à regra jurídica derivada da
soberania: ela produz um discurso sobre a regra natural, isto é, . obre
a norma.
Discurso
*0 discurso designa, em geral, para Foucault, um conjunto de
enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que
obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns. Essas
regras não são omente lingüísticas ou formais, mas reproduzem um
certo número de cisões historicamente determinada (por exemplo, a
grande separação entre razão/ desrazão): a "ordem do discur o"
própria a um período particular possui, portanto, uma função
normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de
organização do real por meio da pr dução de saberes, de estratégias
e de práticas.
Dispositivo
*0 termo "dispositivos" aparece em Foucault nos anos 70 e designa
inicialmente os operadores materiais do poder, isto é, as técnicas, as
estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder. A partir
do momento em que a análise foucaultiana se concentra na questão
do poder, o filósofo insiste sobre a importância de se ocupar não
"do edifício jurídico da soberan.ia, dos aparelhos do Estado, das
ideologias que o acornpanham'r", mas dos mecanismos de dominação:
é essa escolha metodológica que engendra a utilização da noção de
"dispositivos". Eles são, por definição, de natureza heterogênea: trata-
se tanto de discursos quanto de práticas, de instituições quanto de
táticas moventes: é assim que Foucault chega a falar, segundo o caso,
de "dispositivos de poder", de "dispositivos de saber", de
"dispositivos disciplinares", de "dispositivos de sexualidade" etc.
Episteme
*0 termo "episterne" está no centro das análises de As Palavras e as
Coisas (1966) e deu lugar a numerosos debates na medida em que a
noção é, ao mesmo tempo, diferente da de "sistema" - que Foucault
praticamente nunca utiliza antes que sua cadeira no Collêge de France
fosse, a seu pedido, rebatizada, em 1971, como "cadeira de história
dos sistemas de pensamento" - e da de "estrutura". Por episteme,
Foucault designa, na realidade, um conjunto de relações que liga tipos
de discursos e que corresponde a uma dada época histórica: "são
todos esses fenômenos de relações entre as ciências ou entre os
diferentes discursos científicos que constituem aquilo que eu denomino
a episteme de uma época":"
4H Réponse à une questiono ln: Esprit, na 371, maio 1968. Retomado em Dits
et Écrits, vol. I, texto N° 58.
49 Réponse à une question, op. cit. nota 48.
,
Etica
* os últimos volume da História da sexualidade, Foucault distingue
claramente entre o que é preciso entender por "moral" e o que significa
"ética' . A moral é, em sentido amplo, um conjunto de valores e de
regras de ação que são propostas ao indivíduos e aos grupos por
meio de diferentes aparelhos prescritivos (a família, as instituições
educativas, as Igrejas etc.); essa moral engendra uma "moralidade dos
comportamentos", isto é, uma variação individual mais ou menos
consciente em relação ao sistema de prescrições do código moral.
Por outro lado, a ética concerne à maneira pela qual cada um constitui
a si mesmo como sujeito moral do código: "Dado um código de
condutas [...], há diferentes maneiras de o indivíduo 'conduzir-se'
moralmente, diferentes maneiras para o indivíduo, ao agir, não operar
simplesmente como agente, mas im como sujeito moral dessa ação"?'.
54Usage des plaisirs et techniques de sai. ln: Le Débat, n? 27, novembro 1983.
[Tradução brasileira: O Uso dos Prazere e a Técnicas de Si. In : Ditos e Escritos,
vol, V. p. 211-212).
46 Judith Revel
Expêriencia
*A noção de experiência e tá presente ao longo de todo o percurso
filosófico de Foucault, mas ela passa por importantes modificações
no decorrer dos anos. e é verdade que, de maneira geral, "a
experiência é alguma coisa da qual saímos transforrnados't", Foucault
refere-se, inicialmente, a uma experiência que deve muito, ao mesmo
tempo, a Bataille e a Blanchot: no cruzamento de uma experiência do
limite e de uma experiência da linguagem considerada como
"experiência do exterior", ele procura, com efeito, definir - em
particular no domínio da literatura - uma experiência do ilimitado, do
intransponível, do impossivel, isto é, daquilo que afronta, na realidade,
a loucura, a morte, a noite ou a sexualidade, ao aprofundar, na espessura
da linguagem, seu próprio espaço de fala. um segundo momento,
muito diferentemente, a experiência se torna para Foucault a única
maneira de distinguir a genealogia ao mesmo tempo de uma
abordagem empírica ou positivista e de uma análise teórica: se algumas
problematizacõe nascem de uma experiência (por exemplo, a e critura
de Vigiar e Punir depois da experiência do Grupo de Informação
sobre as Prisões e, mais amplamente, depois de 1968), é no sentido de .
que o pensamento filosófico de Foucault é verdadeiramente uma
experimentação: ele dá, com efeito, a ver o movimento da constituição
histórica dos discursos, das práticas, das relações de poder e das
subjetividades, e é devido a essa relação com a genealogia que a
5NEntretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori, Paris, 1978). In: 1/
Contributo, 4 année, n. I. Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, 1994, texte n. 281.
48 Judith Revel
59 Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori), op. cit. nota 58.
60 Entretien avec Michel Foucault (avec Ducio Trombadori), op. cit. nota 58.
Michel Foucault: conceitos essenciaj; 49
Exterior
*Em 1966, num texto consagrado a Maurice Blanchot'" Foucault
define a "experiência do exterior" corno a dissociação do "eu penso"
e do "eu falo": a linguagem deve enfrentar o desaparecimento do
sujeito que fala e inscrever seu lugar vazio corno fonte de sua própria
expansão indefinida. A linguagem escapa, então, "ao modo de ser do
discurso - ou seja, à dinastia da representação - e o discurso literário
se desenvolve a partir dele mesmo, formando urna rede em que cada
ponto, distinto dos outros, à distância mesmo dos mais próximos,
está situado em relação a todos num espaço que ao mesmo tempo os
abriga e os separa'r".
Genealogia
*Desde a publicação deAs Palavrase as Coisas (1966), Foucault qualifica
seu projeto de arqueologia das ciências humanas mais como uma
"genealogia nietzschiana" do que como uma obra estruturalista. Esse
conceit é retomado e precisado, em 1971, em um texto sobre
ietzsche: a genealogia é uma pesquisa histórica que se opõe ao
"desdobramento meta-histórico das significações ideais e das
indefinidas teologias'", que se opõe à unicidade da narrativa histórica e
à busca da origem, e que procura, ao contrário, a "singularidade dos
acontecimentos fora de qualquer finalidade monótona'?". A genealogia
trabalha, portanto, a partir da diversidade e da dispersão, do acaso
dos começos e dos acidentes: ela não pretende voltar ao tempo para
restabelecer a continuidade da história, mas procura, ao contrário,
restituir os acontecimentos na sua singularidade.
65 Nietzche, Ia généalogie, l'histoire, In: Dits et Écrits, vol. 2, texto n? 84. [Tradução
brasileira: Nietzsche, a Genealogia, a História. In: Ditos e Escritos, vol. lI, p. 261].
66 Nietzche, Ia généalogie, l'histoire, op. cit. nota 65.
Michel Foucault: conceitos essenciais 53
67 Cour du 7 janvier 1976. In: Microfisica dei potere. Torino : Enaudi, 1977.
[Tradução brasileira; Genealogia e Poder. 111: Microfisica do Poder. Rio de Janeiro :
Graal,1999,p.17I].
68 What's enlightenment?, op. cit. nota 6.
69 À propos de Ia génealogie de I'éthique: un aperçu du travail em cours, op. cit.
nota 37.
54 Judith Revel
Governamentalidade
* A partir de 1978, em seu curso no Co//ege de France, Foucault analisa
a ruptura que se produziu entre o final do século XVI e o início do
século À'VII e que marca a passagem de uma arte de governar herdada
da Idade Iédia, cujos princípios retomam a virtudes morais
tradicionais (sabedoria, justiça, respeito a Deus) e o ideal de medida
(prudência, reflexão), para uma arte de governar cuja racionalidade
tem por princípio e campo de aplicação o funcionamento do Estado:
a "governamentalidade" racional do Estado. Essa "razão do Estado"
não é entendida como a suspensão imperativa das regras pré-existentes,
mas como uma nova matriz de racionalidade que não tem a ver nem
com o soberano de justiça, nem com o modelo maquiavélico do
Príncipe.
Guerra
*Foucault se interessa pela guerra durante um período relativamente
breve, entre 1975 e 1977, e de maneira extremamente intensa, pois ele
lhe consagra um ano de curso no Collêge de France". A primeira
referência à guerra limita-se a inverter a fórmula clausewitziana?' a fim
de descrever a situação da crise international criada pelos choques
petrolíferos: "a política é a continuação da guerra por outros meios"75.
Dessa forma, Foucault retoma teoricamente o tema da guerra na
medida em que, sendo o poder essencialmente uma relação de forças,
os esquemas de análise do poder "não devem ser emprestados da
psicologia ou da sociologia, mas da estratégia. E da arte da guerra"76.
Essa afirmação, reformulada de maneira interrogativa, torna-se o
coração do curso "Em defesa da sociedade": se a noção de
"estratégia" é essencial para fazer a análise dos dispositivos de saber e
de poder, e se ela permite, em particular, analisar as relações de poder
por meio das técnicas de dominação, pode-se, então, dizer que a
dominação não é outra coisa senão uma forma continuada da guerra?
História
*Ainda que o termo "história" apareça em numerosas retomadas
nos títulos das obras de Foucault, ele recobre, na verdade, três eixos
de discursos distintos. O primeiro consiste numa retomada explícita
de ietzsche, isto é, absolutamente ao me mo tempo, da crítica da
história concebida como contínua, linear, provida de uma origem e
de um te/os, e da crítica do discurso dos historiadores como "história
monumental" e supra-histórica, É, portanto, essa leitura nietzschiana
que impulsiona Foucault a adotar, desde o começo dos anos 70, o
termo "genealogia": trata-se de reencontrar a descontinuidade e o
acontecimento, a singularidade e os acasos, e de formular um tipo de
enfoque que não pretende reduzir a diversidade histórica, mas que
dela seja o eco. O segundo eixo corresponde à formulação de um
verdadeiro "pensamento do acontecimento" - de maneira muito
próxima do que faz Deleuze na mesma época -, isto é, à idéia de uma
história menor feita de uma infinidade de traços silenciosos, de narrativas
de vidas minúsculas, de fragmentos de existências - donde o interesse
de Foucault pelos arquivos. O terceiro eixo se desenvolve precisamente
a partir dos arquivos e induz Foucault a colaborar com um certo
número de historiadore , isto é, ao mesmo tempo, a problematizar o
que deveria ser a relação entre a filo ofia e a história (ou, mais
exatamente, entre a prática filosófica e a prática histórica) uma vez
aídos da tradicional divergência filo ofia da história/história da
filosofia, e a interrogar, de maneira crítica, a evolução da historiografia
francesa desde os anos 60.
Michel Foucaull: conceitos essenciais 59
82Verité, pouvoir e soi. In: Tecnhologies of the Self. A Seminar with M. Foucault.
Massachusetts, U.P., 1988. [Tradução brasileira: Verdade, Poder e si mesmo. In:
Ditos e Escritos, vol. V, p. 295].
Michel Foucaull: conceilos essenciais 61
uma historicização de nosso próprio olhar a partir do que nós não somos
mais; a história deve nos proteger de um "historicismo que invoca o
passado para resolver os problemas do presente't'". É esse duplo
problema que se reencontra nos textos que Foucault consagra, no fim
de sua vida, à análise do texto "O que são as Luzes?", de Kant: trata-
se de se defender, ao mesmo tempo, da acusação de apologia do
passado e de relativismo histórico, o que Foucault faz em particular
no debate - interrompido pela morte - com Haberrnas'".
83 Espace, savoir, pouvoir. Entretien avec P. Rabinow. In: Sky/ine, março de 1982.
Retomado em Dits et Écrits, vol. 4, texto n° 310.
84 NT: As críticas formuladas por Habermas a Foucault estão expres as,
principalmente em La modernité: un project inachevé (Critique 1981, p. 950-967)
e em Une f1éche dans le coeur du temps présent (Critique, 1986, p. 794-9).
62 Judith Revel
Loucura
*0 tema da loucura está, certamente, no centro da Histôria da Loacura
que Foucault publica em 1961: trata-se, com efeito, de analisar a maneira
pela qual, no século ÀrvII, a cultura clássica rompeu com a representação
medieval de uma loucura, ao mesmo tempo, circulante (a figura da
"nau dos loucos'') e considerada como o lugar imaginário da passagem
(do mundo ao trás-mundo, da vida à morte, do tangível ao segredo
etc.). Ao contrário, a idade clássica define a loucura a partir de uma
separação vertical entre a razão e a desrazão: ela a constirui, portanto,
não mais como aquela zona indeterminada que daria acesso às forças
do desconhecido (a loucura como um para além do saber, isto é, ao
mesmo tempo, como ameaça e como fascinação), mas como o Outro
da razão segundo o discurso da própria razão. A loucura como
desrazão é a definição paradoxal de um espaço gerido pela razão no
interior de seu próprio campo que ela reconhece como outro.
87Les rapports de pouvoir passent à I'interieur des corps, op. cit. nota 35.
88La folie et Ia societé. In: Foucault, M. e Watanabe, M. Telsugaku no butai. Tokio,
1978. [Tradução brasileira: A loucura e a sociedade. ln: Ditos e Escritos, vol.l, p. 2631.
Michel Foucaulr conceitos essenciais 65
Norma
* o vocabulário de Foucault, a noção de norma está ligada àquela
de "disciplina". Com efeito, as disciplinas são e tranhas ao discurso
jurídico da lei, da regra entendida como efeito da vontade soberana.
A regra disciplinar é, ao contrário, uma regra natural: a norma. As
disciplinas, entre o fim do éculo XVIII e o inicio do século XIX,
"definirão um código que não será o da lei mas o da normalização;
referir-se-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira
alguma o edifício do direito mas o domínio das ciências humanas; a
sua jurisprudência será a de um saber clínico'P".
isto é, que separa o que é normal daquilo que é anormal, o que não
coincide exatamente com a repartição entre o licito e o ilícito; o
pensamento jurídico distingue o lícito do ilícito, o pensamento
medicalizado distingue o normal e o anormal; ele se atribui os meios
de correção que não são exatamente os meios de punição, mas meios
de transformação dos indivíduos, toda uma tecnologia do
comportamento do ser humano que está ligada a eles"?". As disciplinas,
a normalização por meio da medicalização social, a emergência de
uma série de bio-poderes que se aplicam ao mesmo tempo aos
indivíduos em sua existência singular e às populações segundo o
princípio da economia e da gestão política, e a aparição de tecnologias
do comportamento formam, portanto, uma configuração do poder
que, segundo Foucault, é ainda a nossa no fim do século XX.
90 Le pouvoir, une bête magnifique. ln: Quadernos para el dialogo, n" 238, novembro
de 1977. Retomado em Dits et Écrits, vol. 3, texto n° 212.
91 Curso de 14 de janeiro de 1976, op. cir. nota 89.
Michel Foucault: conceitos essenciais 67
Poder
*Foucault nunca trata do poder como uma entidade coerente, unitária
e estável, ma de "relações de poder" que supõem condições históricas
de emergência complexas e que implicam efeitos múltiplos,
compreendidos fora do que a análise filosófica identifica
tradicionalmente como o campo do poder. Ainda que Foucault pareça
por vezes ter questionado a importância do tema do poder em seu
trabalho (" ão é, portanto, o poder, mas o sujeito que constitui o
tema geral de minha pesquisa":"), suas análises efetuam dois
deslocamentos notáveis: se é verdade que não há poder que não seja
exercido por uns sobre os outros - "os uns" e "os outros" não estando
nunca fixados num papel, mas sucessiva, e até simultaneamente,
inseridos em cada um dos pólos da relação -, então uma genealogia
do poder é indissociável de uma história da subjetividade; se o poder
não existe senão em ato, então é à questão do "como" que ele retoma
para anali ar suas modalidades de exercício, isto é, tanto à emergência
histórica de seus modos de aplicação quanto aos instrumentos que ele
se dá, os campos onde ele intervém, a rede que ele desenha e os
efeitos que ele implica numa época dada. Em nenhum caso, trata-se,
por conseqüência, de descrever um princípio de poder primeiro e
fundamental, ma um agenciamento no qual se cruzam as práticas, os
saberes e as instituições, e no qual o tipo de objetivo perseguido não
se reduz somente à dominação, pois não pertence a ninguém e varia
ele me mo na história.
9' Questions à Michel Foucault sur Ia Géographie. In: Hérodote, nO I, 1976. [Tradução
bra ileira: Perguntas a Michel Foucault sobre Geografia. In: Ditos e Escritos, vol.lV.
p.183-184].
70 Judirh Revel
Problematização
* os últimos dois anos de sua vida, Foucault utiliza cada vez mais
freqüentemente o termo "problematização" para definir sua pesquisa.
Por "problematização", ele não entende a re-apresentação de um objeto
pré-existente, nem a criação por meio do discurso de um objeto que
não existe, mas "o conjunto das práticas discursivas ou não-discursivas
que faz qualquer coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e a
constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão
moral, do conhecimento científico, da análise política etc.)"?", A história
do pensamento se interessa, portanto, por objetos, regras de ação ou
modos de relação de si, na medida em que ela os problematiza: ela se
interroga sobre sua forma historicamente singular e sobre a maneira
pela qual eles apresentaram numa dada época um certo tipo de
resposta a um certo tipo de problema.
96Le souci de Ia vérité. In: Magazine Littéraire, n? 207, mai 1984. Retomado em
Dits et Écrits, vol 4, texte n" 350. [Tradução brasileira: O cuidado com a verdade.
ln: Ditos e Escritos, vol. V, p. 241 J.
do tempo, diversas respostas são efetivamente propostas. Ora, o que
é preciso compreender é aquilo que a torna simultaneamente possíveis;
é o ponto no qual se origina sua simultaneidade; é o solo que pode
nutrir umas e outras, em sua diversidade e, talvez, a despeito de suas
contradições't'" O trabalho de Foucault é, assim, reformulado nos
termos de uma pesquisa sobre a forma geral da problematização que
corresponde a uma época dada: "o estudo dos modos de
problematização - ou seja, do que não é constante antropológica nem
variação cronológica - é, portanto, a maneira de analisar, em sua forma
hi toricamente singular, as questões de alcance geral"9K.
Razão / Racionalidade
* termo razão aparece inicialmente em Foucault como um dos
dois elementos da repartição razão/desrazão que está no centro da
cultura ocidental: enquanto o Logos grego não tem contrário, a razão
não existe sem sua negação, isto é, sem a existência do que, por
diferença, a faz ser. ão é, portanto, a razão que é originária, mas
antes a cesura que lhe permite existir: e é a partir dessa divisão entre a
razão e a não-razão que Foucault bu ca fazer a história de um momento
muito preciso de nossa cultura - quando a razão busca apoderar-se
da não-razão para lhe arrancar sua verdade, isto é, para desdobrar, o
que ela parece, entretanto, excluir, as malhas de seu poder sob a tripla
forma de discursos de saber, de instituições e de práticas. Existe,
portanto, um momento em que a repartição fundadora entre a razão
e a não-razão toma a forma da racionalidade, e Foucault consagra sua
pesquisa à compreensão da aplicação dessa racionalidade em diferentes
campos - a loucura, a doença, a delinqüência, a economia politica - e
ao tipo de poder aí implicado.
IOOIntroduçãoa Canguilhem,G On lhe Normal and lhe Pathological, op.cit, nota 16.
101 Prefácio à segunda edição do livro de J. Vergês, De Ia stratégie judiciaire. Paris:
Resistência I Transgressão
*0 termo "resistência" é precedido, nos trabalhos de Foucault, por
um certo número de outras noções encarregadas de exprimir uma
certa exterioridade - sempre provisória - no sistema de saber/poder
descrito em outros autores: é o caso da "transgressão" (que Foucault
empresta de Bataille) e do "exterior" (que Foucault empresta de
Blanchot) nos anos 60. Tanto num caso como no outro, trata-se de
descrever a maneira pela qual o individuo singular, por meio de um
procedimento gue é, em geral, de escritura (origem do interesse de
Foucault por Raymond Roussel, por Jean-Pierre Brisset ou por Pierre
Riviêre), conseguiu, de maneira voluntária ou fortuita, "escapar" dos
dispositivos de identificação, de classificação e de normalização do
discurso. a medida em gue não há saber possível sobre objetos
impossíveis, esses casos literários "esotéricos", por meio da mobilização
de um certo número de procedimentos lingüisticos, representam, num
primeiro momento, para Foucault, a impossiblidade da objetivação
normativa. O abandono, ao mesmo tempo, da literatura como campo
privilegiado e da noção mesma de transgressão corresponde, no
entanto, à exigência de colocar o problema de maneira geral (isto é,
igualmente para as práticas não-discur ivas) e não somente no nível da
ação individual, mas em função da ação coletiva. O termo resistência
aparece, então, a partir dos anos 70 com um sentido bastante diferente
daquele gue tinha a "transgressão": a resistência se dá, necessariamente,
onde há poder, porgue ela é inseparável das relações de poder; assim,
tanto a resistência funda as relações de poder, guanto ela é, às vezes, o
resultado dessas relações; na medida em gue as relações de poder
estão em todo lugar, a resistência é a possibilidade de criar espaços de
lutas e de agenciar possibilidades de transformação em toda parte. A
Michel Eoucaul!' conceitos essenciais 75
104 Ver a respeito desse assunto o texto Préface à Ia transgression. In: Critique n"
195-196: Hommage à Georges Bataille, 1963. [Tradução brasileira: Prefácio à
transgressão. In: Ditos e Escritos, vol.IJI, p. 28-46J.
IOS Non au sexe roi. In: Le Nouvel Observateur, n" 644, março 1977. Retomado em
Dits et Écrits, vol3, texte n? 200. [Tradução brasileira: Não ao sexo rei.ln: Microfisica
do Poder, Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 241].
106 Non au scxe roi, op. cit. nota 105.
76 Judith Revel
Saber / Saberes
Sexualidade
*0 tema da sexualidade aparece em Foucault não como um discurso
sobre a organização fisiológica do corpo, nem como um estudo do
comportamento sexual, mas como o prolongamento de uma analítica
do poder: trata-se, com efeito, de descrever a maneira pela qual, a
partir do final do século XVIII, este prolongamento da analítica do
poder investe, por meio dos discursos e das práticas de "medicina
social", sobre um certo número de aspectos fundamentais da vida
dos indivíduos: a saúde, a alimentação, a sexualidade etc. A sexualidade
é somente, portanto, num primeiro momento, um dos campos de
aplicação do que Foucault chama na época de bio-poderes. um
segundo momento, no entanto, Foucault transforma a sexualidade
num objeto de pesquisa específico já que, insistindo no fato de que o
poder se articula sempre sobre discursos de "veridicção", isto é, dos
"jogos de verdade", as relações com o dizer verdadeiro em nenhum
outro campo é tão evidente quanto no da sexualidade: pertencemos a
uma civilização na qual se exige aos homens dizerem a verdade a
respeito de sua sexualidade para poder dizer a verdade sobre eles
mesmos. ''A sexualidade, muito mais do que um elemento do indivíduo
que seria excluido dele, é constitutiva dessa ligação que obriga as pessoas
a se associar com sua identidade na forma da subjetividade't'F. O
projeto de uma história da sexualidade torna-se, então, uma interrogação
sobre as maneiras pelas quais as práticas e os discursos da religião, da
ciência, da moral, da política ou da economia contribuíram para fazer
da sexualidade, ao mesmo tempo, um instrumento de subjetivação e
uma ferramenta do poder.
II~ L'écriture de sai. ln: Corps Écrit, nOS: L'Auto portrait, 1983. Retomado em
Dits et Écrits, vol4, texte n" 329. [Tradução brasileira: A escrita de si. In: Ditos e
Escritos, vol. V, p. 162].
84 Judith Revel
Sujeito / Subjetividade
*0 pensamento de Foucault apresenta-se, desde o início, como uma
crítica radical do sujeito tal como ele é entendido pela filosofia "de
Descartes a Sartre", isto é, como consciência solipsista e a-histórica,
auto-constituída e absolutamente livre. O desafio é, portanto, ao
contrário das filosofias do sujeito, chegar a "uma análise que possa
dar conta da constituição do sujeito na trama histórica. É isto que eu
chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que considera a
constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objetos etc.,
sem ter de se referir a um sujeito, quer ele seja transcendente em relação
ao campo de acontecimentos, quer ele perseguindo sua identidade
vazia ao longo da história"!". Trata-se, portanto, de pensar o sujeito
como um objeto historicamente constituído sobre a base de
determinações que lhe são exteriores: esta é a questão que coloca, por
exemplo, As palavras e as coisas ao interrogar essa constituição segundo
a modalidade específica do conhecimento científico, visto que se trata
de compreender como o sujeito pôde, numa certa época, tornar-se
um objeto de conhecimento e, inversamente, como esse estatuto de
objeto de conhecimento teve efeitos sobre as teorias do sujeito como
ser vivo, falante e trabalhador.
116 Entrevista com Michel Foucault (Verdade e Poder), op. cit. nota 3.
Miche! Foucau!t: conceitos essenciais 85
117 Foucault. In: Huisman, D. Dictionnaire des philosophes. Paris: PUF, 1984.
[Tradução brasileira: Foucault. In: Ditos e Escritos, vol. V, p. 236].
118 Entretien avec Michel Foucauli (avec Ducio Trombadori), op. cit. nota 58.
86 Judith Revel