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As dicotomias saussurianas
A doutrina de Saussure baseia-se numa série de pares de distinções,
atribuídas por Georges Mounin (1973: 54) à sua "mania dicotômica".
Citando o próprio Saussure ("A linguagem é redutível a cinco ou seis
dualidades ou pares de coisas."), Mounin nos revela que o mestre de
Genebra estava bem consciente de sua perspectiva dicotômica, o que,
aliás, é confirmado logo nas primeiras páginas do Curso de linguistica
geral. Afirma Saussure (CLG, 15): "[ ...] o fenômeno linguístico apre-
senta perpetuamente duas faces que se correspondem e das quais uma
não vale senão pela outra".
Comecemos pela oposição fundamental: língua/fala.
LÍNGUA/FALA
A língua, como acervo linguístico, é "o conjunto dos hábitos lin- A fala, ao contrário da língua, Saussure a apresenta multifacetada e
guísticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se compre- heterogênea. Diz o mestre que "a fala é um ato individual de vontade e in-
ender" (p. 92) e "as associações ratificadas pelo consentimento coletivo teligência, no qual convém distinguir: 1°) as combinações pelas quais o
e cujo conjunto constitui a língua são realidades que têm sua sede no cé- falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensa-
rebro" (p. 23). mento pessoal; 2°) o mecanismo psicofisico que lhe permite exteriorizar
essas combinações" (p. 22). Saussure classifica a fala como o "lado exe-
A língua, enquanto acervo, guarda consigo toda a experiência histó- cutivo" da linguagem, cuja "execução jamais é feita pela massa; é sempre
rica acumulada por um povo durante a sua existência. Disso nos dá tes- individual e dela o indivíduo é sempre senhor; nós a chamaremos fala"
temunho o latim, símbolo permanente da cultura e das instituições do (p. 21). E complementaríamos: fala em oposição a língua. A fala é a pró-
povo romano. Também o português, nos seus oito séculos de existên- pria língua em ação, enérgeia (atividade) e não érgon (produto).
cia, acumulou um rico e notável acervo linguístico e literário. Impor-
tante língua de cultura, constitui tesouro comum dos povos irmanados Aprofundando a base teórica dessa dicotomia fundamental para a
pela lusofonia. compreensão da obra de Saussure, somos levados a reconhecer a influên-
cia incontestável e decisiva que o debate entre os dois expoentes da So-
ciologia de então, Durkheim e Tarde, exerceu sobre ele. Sua dicotomia
A língua como instituição social
parece ter sido uma tentativa de conciliação entre as duas posições socio-
Saussure considera (da mesma forma que Whitney) que a língua lógicas vigentes. Da ideia defail sacia! (fato social), de Durkheim, pro-
"não está completa em nenhum [indivíduo], e só na massa ela existe de cede a postulação da língua, segundo Lepschy (1971: 30):
modo completo" (p. 21), por isso, ela é, simultaneamente, realidade psí- Porque ambas [tanto a ideia de língua, como a de
quica e instituição social. Para Saussure, a língua "é, ao mesmo tempo, fato social] se referem a fatos psicossociais, externos
um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de conven- ao indivíduo, sobre o qual exercem uma contraint,
ções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício (coerção), e cx istcntcs na consciência coletiva do
dessa faculdade nos indivíduos" (p, 17); é "a parte social dn IIIIglIllgl'lll, 'I"IIPOsocial.
Por outro lado, o reconhecimento do elemento individual, a fala, es- mento criado e fornecido pela coletividade; não é,
taria em consonância com as ideias de Gabriel Tarde. É oportuno lem- então, ilusório dizer que é a língua que faz a unidade
brar também a concepção durkheimiana, segundo a qual a sociedade da linguagem.
prima sobre o indivíduo, pois, como afirma Giani (s/d: 57), "o controle
social existe em função da manutenção da organização social". O ho- E, sustentando a autonomia dos estudos da língua, afirma à p. 22:
mem não passa de uma parcela do pensamento coletivo, ainda segundo "a língua é uma coisa de tal modo distinta que um homem privado do
Giani (p. 44): "o indivíduo é, em grande parte, aquilo que a sociedade uso da fala conserva a língua, contanto que compreenda os signos vo-
espera que ele seja. Cada grupo social incute em seus membros um con- cais que ouve". É o que acontece, por exemplo, em certos tipos de aci-
junto de maneiras de pensar, sentir e agir". Diante disso, compreen- dente cerebral, em que o indivíduo pode ter a fala afetada, mas conser-
de-se por que razão Saussure atribuiu papel destacado ao estudo da lín- var a língua.
gua e minimizou a fala. Não obstante, Saussure (p. 27) insiste sempre na interdependên-
Para Saussure (CLG, 25), sendo a língua uma instituição social, so- cia dos dois constituintes da linguagem:
cialmente é que devem ser estudados os seus signos, uma vez que "o [...] esses dois objetos estão estreitamente ligados e
signo é social por natureza". Considera ele que a língua, como represen- se implicam mutuamente: a lingua é necessária para
tação coletiva, se impõe ao indivíduo inapelavelmente. Nenhum indiví- que a fala seja inteligível e produza todos os seus
duo tem a faculdade de criar a língua, nem de modificá-Ia consciente- efeitos; mas esta é necessária para que a língua se es-
mente. Ela é como uma armadura dentro da qual nos movimentamos no tabeleça.
dia a dia da interação humana. Como qualquer outra instituição social, a
língua se impõe ao indivíduo coercitivamente. Por isso, ela constitui um E adverte (p. 27): "historicamente o fato da fala vem sempre antes".
elemento de coesão e organização social. É importante, a propósito, registrar a concessão feita por Saussure (p. 27)
ao elemento individual, com toda a certeza inspirada em Gabriel Tar-
A fala de: "é a fala que faz evoluir a língua: são impressões recebidas ao ou-
vir os outros que modificam nossos hábitos linguísticos".
A fala, ao contrário da língua, por se constituir de atos individuais,
É tal a interdependência entre a língua e a fala que Saussure consi-
torna-se múltipla, imprevisível, irredutivel a uma pauta sistemática.
dera a Língua, ao mesmo tempo, instrumento e produto da fala. O pró-
Os atos linguísticos individuais são ilimitados, não formam um siste-
prio mecanismo de funcionamento da linguagem repousa nessa interde-
ma. Os fatos linguísticos sociais, bem diferentemente, formam um sis-
pendência, como ressalta Saussure (p. 27):
tema, pela sua própria natureza homogênea. Ora, a Linguística como
ciência só pode estudar aquilo que é recorrente, constante, sistemáti- Como se imaginaria associar uma ideia a uma ima-
co. Os elementos da Língua podem ser, quando muito, variáveis, mas gem verbal, se não se surpreendesse de início esta
jamais apresentam a inconstância, a irreverência, a heterogeneidade associação num ato de fala? Por outro lado, é ouvin-
características da fala, a qual, por isso mesmo, não se presta a um estu- do os outros que aprendemos a língua materna; ela se
do sistemático. deposita em nosso cérebro somente após inúmeras
experiências.
Diz-nos o mestre suíço à p. 18 do CLG:
Para atribuir à língua o primeiro lugar no estudo da Depreende-se do arrazoado saussuriano que tanto o funcionamento
linguagem, pode-se, enfim, fazer valer o argumento quanto a exploração da faculdade da linguagem estão intimamente liga-
de que a faculdade - natural ou não - [e, para Saussu- dos às implicações mútuas existentes entre os elementos língua (virtua-
re, o ser natural ou não é irrelevante: preocupa-se lidade) e fala (realidade). A respeito da interdependência língua-fala ad-
unicamente com a língua em si mesma I de- articular verte R. Barthes (1972: 19): "Não há língua sem fala e não há fala fora
palavras não se exerce senão com a ajlld.t dl' rustru da língua".
A feliz dicotomia língua/fala é o ponto de partida para Saussure Forma, para Saussure, é usada no sentido filosófico, isto é, como
postular uma Linguística da língua e uma Linguística da fala (embora essência, e não no sentido estético, como aparência. A teia de relações
Mounin (1973: 69) levante dúvida a respeito da autenticidade dessa entre os elementos linguísticos é que constitui a forma. Os elementos da
postulação por parte do mestre. Mounin prefere atribuí-Ia a Bally e Se- rede constituem a substância. Voltando ao exemplo do jogo de xadrez,
chehaye), mas, na verdade, para o mestre genebrino, a Linguística pro- diríamos que as regras do jogo (a teia de relações entre as peças) estão
priamente dita é aquela cujo único objeto é a língua: "Unicamente desta para forma, assim como as peças do jogo estão para substância. Uma
última é que cuidaremos" (CLG, 28), ressalva Saussure. frase como "V comprá dois pão" apresenta alteração apenas na subs-
ô
Desse modo, vemos que Saussure realmente tinha plena consciên- tância. Sua estrutura, apesar do fator extralinguístico "erro" (desvio em
cia da natureza opositiva dos fenômenos linguísticos. Eis suas próprias relação à norma culta), continua a ser a de uma frase da língua portu-
palavras (p. 28): "Essa é a primeira bifurcação que se encontra quando guesa. Ela conserva toda a gramatical idade sintática do sistema linguís-
se procura estabelecer a teoria da linguagem". tico português e toda a coerência interna inerente aos elementos desse
sistema: (sujeito) + verbo auxiliar + verbo principal + objeto (determi-
nante + determinado). Portanto, sua forma, o que é de fato relevante
Sistema/não sistema
para o funcionamento do sistema, não sofreu em nada com a mudan-
A razão de Saussure ter preferido tomar o caminho da língua quando ça acidental das propriedades fisicas de sua substância. Dito de outro
se viu diante de sua famosa bifurcação encontra-se em outra oposição con- modo: forma : língua :: substância : fala.
sequente: sistema/não sistema, isto é, sistema: língua:: não-sistema: fala.
Mesmo tendo dado tanta ênfase ao estudo da língua, Saussure não
Sendo o sistema superior ao indivíduo (supraindividual), todo ele- deixou de tratar também da substância (fala), reconhecendo que a sua
mento linguístico deve ser estudado a partir de suas relações com os ou- função é fazer a ligação com a forma, que é, em última análise, para ele,
tros elementos do sistema e segundo sua função ("a língua é um sistema a verdade total. Reportando-nos ao pensamento linguístico da Grécia
do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solida- Antiga, diríamos que Saussure admitiu tacitamente que a língua não é
riedade sincrônica". CLG, 102), e não por suas características extralin- só analogia, ela tem também as suas sólidas e saudáveis anomalias.
guísticas: fisicas, psicológicas, etc. O conhecido exemplo do jogo de xa-
drez esclarece cabalmente o pensamento saussuriano nesse particular. Cabe-nos, entretanto, chamar a atenção para o fato de que, a nosso
ver, o conceito de forma (estrutura) não exclui o componente semânti-
As peças de um jogo de xadrez são definidas unicamente segundo
co. Ao contrário, o componente semântico é que dá sentido à noção de
suas funções e de acordo com as regras do jogo. A forma, a dimensão e
forma, sem o quê, forma corre o risco de tomar-se letra morta, concep-
a matéria de cada peça constituem propriedades puramente fisicas e aci-
ção sem serventia para a ciência linguística, principalmente para a Lin-
dentais, que podem variar extremamente sem comprometer a identida-
guística dita estrutural. Como adverte o Prof. Sílvio Elia (1978: 120),
de da peça. Essas características fisicas são irrelevantes para o funcio-
namento do sistema (= o jogo de xadrez). Uma peça até pode ser substi- "linguagem é significação".
tuída por outra, desde que a substituta venha a ser utilizada conforme as Desse modo, concebemos forma como coerência sintática + coe-
regras do jogo. Levando para o sistema linguístico o exemplo de Saus- rência semântica. Coerência sintática (espécie de sintaxe mental ou es-
sure, temos que todo elemento linguístico - uma vogal, uma consoante, truturação do pensamento) existe, por exemplo, tanto em "O menino
um acento, um fonema, um morfema, etc. - deve ser definido linguisti- chutou a bola" como em "A bola chutou o menino". Em ambas as ora-
camente apenas de acordo com suas relações (sintagmáticas e paradig- ções, é inegável a realização sintaticamente coerente de um dos padrões
máticas) com os outros elementos ou por sua função no sistema, e não frasais básicos da língua portuguesa, isto é, sujeito + verbo + objeto di-
levando-se em conta suas acidentais propriedades: modo de formação,
reto. Só a primeira frase, entretanto, encontra correspondência concei-
estrutura acústica, variantes morfofonêmicas, etc. Aqui toma-se perti-
tual (feedback) ou repercussão linguística no espírito do falante,justa-
nente introduzir outra postulação saussuriana, segundo a qual
mente por ser a única que contém lima verdade semântica confiável,
lima coerência significativa, que constitui, juntamente com a coerência
A lingua é uma forma e não uma substância (eLG, 14/).
sintática da frase, um todo individualizador e pertinente do ponto de Francisco da Silva Borba (1998: 49) define a norma como
vista da intercomunicação linguística.
um conjunto de real izações constantes e repetidas,
É oportuno reiterar a importância dessa concepção da língua como de caráter sociocultural e dependente de vários fato-
sistema funcional, cujos elementos e relações devem ser estudados res operantes na comunidade idiomática.
sincronicamente. Essa visão é a base da Linguística estruturalista
pós-saussuriana, embora o próprio Saussure jamais tenha usado o ter- Em outras palavras, há realizações consagradas pelo uso e que,
mo estrutura, e sim sistema (consta que o termo sistema aparece 138 portanto, são normais em determinadas circunstâncias linguísticas,
vezes no eLG). circunstâncias estas previstas pelo sistema funcional. É à norma que
nos prendemos de forma imediata, conforme o grupo social de que fa-
zemos parte e a região onde vivemos. A norma seria assim um primei-
A norma: uma crítica à língua/fala
ro grau de abstração da fala. Considerando-se a língua (o sistema) um
Não se pense que a dicotomia saussuriana tenha ficado ao abrigo de conjunto de possibilidades abstratas, a norma seria então um conjunto
críticas nesse seu mais de meio século de existência. A principal delas de realizações concretas e de caráter coletivo da língua. Segundo Co-
partiu do linguista romeno Eugenio Coseriu (1973: 70), que propôs seriu (1973: 90), a norma é o "como se diz", e não o "como se deve di-
uma divisão tripartida segundo o modelo abaixo, por achar insuficiente zer", por isso, "los conceptos que, con respecto a ella, se oponen son
a bipartição saussuriana: normal y anormal, y no correcto e incorrecto". Em resumo, em termos
coserianos, a fala é o real individual, a norma é o real coletivo, e a lín-
gua é o virtual coletivo, nem sempre usual, embora possível e disponí-
fala nonna língua vel. Vejamos alguns exemplos da oposição norma/sistema no portu-
guês do Brasil.
(uso individual (uso coletivo (sistema
O conhecido [s], chiante pós-vocálica, variante de [s], é norma no
da norma) da língua) funcional)
Rio de Janeiro em todas as classes sociais: gás [gas], mês [rnes], basta
[basta]. Já no Sul, a pronúncia sancionada pelo uso (ou norma) é mar-
cadamente alveolar: [basta], [mês], [gás]. No campo da Morfologia, o
sistema dispõe dos sufixos -ada e -edo, ambos com o sentido de cole-
A divisão de Coseriu (1973: 97) vai do mais concreto (fala) ao mais ção. Enquanto, para designar grande quantidade de bichos, a norma
abstrato (língua), passando por um grau intermediário: a norma. Segun- culta prefere o primeiro (bicharada), a norma geral no falar gaúcho
do ele, o sistema funcional (língua) consagrou o segundo: bicharedo, O mesmo acontece com os sufixos
es un conjunto de oposiciones funcionales; Ia norma diminutivos -inho e -ito, ambos disponíveis no sistema funcional: a
es Ia realización "colectiva" del sistema, que contie- norma fora do Rio Grande do Sul é dizer-se salaminho; já em terras
ne el sistema mismo y, además, los elementos fun- gaúchas o uso sancionou salamito, No plano sintático, a língua (siste-
cionalmente "no-pertinentes", pero normales en el ma) portuguesa dispõe dos advérbios já e mais que, quando usados
hablar de una comunidad. numa frase negativa, indicam a cessação de um fato ou de uma ação. A
norma brasileira preferiu o segundo: "Eu não vou mais"; "Não chove
A fala, por sua vez, na concepção coseriana (1973: 98),
mais". A portuguesa optou pelo primeiro: "Eujá não vou"; "Já não
es Ia realización individual-concreta de Ia norma, chove". O português do Brasil prefere descrever um fato em progres-
que contiene Ia norma misma y además, Ia originali- são dizendo: "Estou estudando" (aux. + gerúndio); já em Portugal, a
dad expresiva de los individuos hablantes. norma é usar-se aux. + infinitivo: "Estou a estudar". Ainda com re-
lação à norma brasileira, não podemos deixar de mencionar o uso já
64 65
consagradíssimo do verbo ter no lugar de haver, com o sentido de AI ,8
social individual
homogênea heterogênea
sistemática assistemática diatópicas ~ falares regionais
abstrata concreta
constante variável
duradoura momentânea culta padrão
conservadora inovadora
I
Normas ou tensa
virtual real
variantes diastráticas coloquial
permanente ocasional
supraindividual individual distensa
essencial acidental popular
psíquica psicofisica
diafásicas ~ modalidades expressivas
instituição práxis (ação)
essência existência
potencial idade realidade
fato social ato individual
unidade diversidade
forma substância LINGUÍSTICAS
produto produção
indivíduo subordinado indivíduo "senhor"
instrumento e produto da fala língua em ação a) da língua ~ funcional
sistema não sistema b) da fala ~ textual
adotada pela comunidade surge no indivíduo
potencialidade ativa de produzir a fala faz funcionar a língua
necessária para a inteligibilidade necessária para que a lín-
e execução da fala gua se estabeleçae evolua
1+1'+1" ... =1 1+1'+1"+ .
competência desempenho
FORMA / SUBSTÂNCIA
essência aparência
psíquica psicofisica
estrutura conjuntura
constante circunstancial
língua fala