Você está na página 1de 34

SABEDORIA DO ORIENTE

AS CONFISSÕES DE AL-GHAZZALI
(publicado por KITAB BHAVAN, Nova Deli, India, 1992)

TRADUZIDO PARA O INGLÊS PELA PRIMEIRA VEZ

POR

CLAUD FIELD, M.A.

TRADUZIDO PARA O PORTUGUÊS

POR

BERNARDO C CAMARGO

I
CONTEÚDO PAG.

INTRODUÇÃO V

A BUSCA DE GHAZZALI PELA VERDADE VII

OS SUBTERFÚGIOS DOS SOFISTAS X

AS DIFERENTES FORMAS DE SE PROCURAR A VERDADE XIII

O OBJETIVO DA TEOLOGIA ESCOLÁSTICA E OS SEUS RESULTADOS XIV

SOBRE AS SEITAS FILOSÓFICAS E O ESTIGMA DA INFELIDADE QUE AS UNE XVI

DIVISÃO DAS CIÊNCIAS FILOSÓFICAS XVIII

SUFISMO XXV

A REALIDADE DA INSPIRAÇÃO: SUA IMPORTÂNCIA PARA A RAÇA HUMANA XXX

II
NOTA DO EDITOR

O objeto dos editores destas séries é bem definido. Eles desejam, acima de todas as coisas
que, humildemente, esses livros se tornem embaixadores da boa-vontade e da
compreensão mútua entre o Oriente e o Ocidente – o antigo mundo do Pensamento e o
novo da Ação. Nesta empreitada, e na sua esfera respectiva, eles nada mais são do que
seguidores do mais alto exemplo na terra. Eles estão certos de que um conhecimento
profundo dos grandes e nobres ideais da filosofia do pensamento Oriental pode ajudar a
revigorar aquele verdadeiro espírito de Caridade que não despreza ou teme as noções de
outros credos ou cores.

Finalmente, agradecendo à imprensa e ao público pela recepção cordial dada a série


“Sabedoria do Oriente”, eles desejam afirmar que qualquer dor foi poupada para assegurar
que os melhores especialistas dessem o seu tratamento aos vários temas abordados.

L. CRANMER-BYNG

S.A. KAPADIA

NORTHBROOK SOCIETY

185 PICADILLY,W

III
NOTA DO TRADUTOR

Procurei realizar a tradução deste grande teólogo do Islã, com o intuito de fomentar as
discussões e os trabalhos realizados no Seminário de Filosofia, ministrado pelo prof. Olavo
de Carvalho, e não, como alguns podem vir a crer, para fazer alguma apologia da religião
Islãmica.

Ao final da leitura desse livreto, poderão perceber que apliquei à risca, um dos conselhos
do autor, que é o de procurar a Verdade esteja ela onde estiver e julgá-la de acordo com o
seu conteúdo e não por sua fonte originária.

Quase todo o texto pode ser aplicado ao preceitos cristãos, desde que se faça a substituição
mental oportuna de alguns vocábulos. Tal fato chega até a nos surpreender de início, pois
formamos em nosso imáginário uma idéia de separação total entre o Islã e o Cristianismo,
devido principalmente à radicalização de alguns discursos visando tão somente a fins
políticos.

Verão que o autor antecipa uma série de problemas que afligem o espírito dos homens
dedicados à busca pela Verdade e nos conduz, com clareza e segurança, por caminhos pelos
quais poderemos evitá-los.

Perdoem-me por minha inabilidade ao empreender essa tarefa, afinal, esta é a minha
primeira tradução e a fiz exclusivamente com o intuito de auxiliar meus estudos e contribuir
com os de meus colegas de Seminário.

B. C. C.

IV
INTRODUÇÃO

O NASCIMENTO DE GHAZZALI

Abou Hamid Muhammad Ibn Muhammed Al Ghazzali nasceu na cidade de Tus em


Khorassan, no ano de 1058 A.C., um ano após a morte do grande livre-pensador e poeta
Abu’l Ala. Ele nasceu filho de um negociante de fios de algodão (Ghazzal), daí seu nome.
Perdendo o pai ainda cedo, foi entregue aos cuidados de um Sufi, cuja influência se
estendeu à sua carreira subseqüente.

Após terminados seus estudos, foi nomeado professor de teologia em Bagdá. Ali atingiu um
sucesso tão extraordinário que todos os Imanes se tornaram zelosos partidários seus. Tão
grande era sua fama, tão ardente a admiração que inspirava, que os Maometanos às vezes
diziam: “Caso todos os livros do Islã fossem destruídos, seria apenas uma leve perda, desde
que os trabalhos de Al Ghazzali sobre o Ressurgimento das Ciências da Religião estivessem
preservados.” O subseqüente tratado curto, trata da história da mente deste homem
notável em sua busca pela Verdade. Poderia muito bem ter o título de “Confissões de um
Espírito Inquiridor.” Em sua sutileza intelectual se assemelha à Gramática do Assentimento,
de Newman; em seu quase que puritano senso dos terrores para um mundo que se
avizinha, nos lembra “ A Graça Abundante” de Bunyan. É bastante interessante também
que seja um dos raros documentos de uma genuína autobiografia oriental.

Após descrever as dificuldades pelas quais ele escapou de um quase cepticismo pirrônico,
“Não por um arrazoado sistemático e acumulação de provas, mas por uma centelha de luz
que Deus enviou à minha alma,” ele revê as várias seitas que encontrou em sua busca pela
verdade”

I. Os teólogos escolásticos, que professavam seguir a razão e a especulação;


II. Os filósofos, que se denominavam mestres da Lógica e da Demonstração;
III. Os Sufis, que proclamavam a intuição imediata e que percebiam a real
manifestação da Verdade, assim como os homens comuns percebiam os
fenômenos materiais.

Após especializar-se nos dois primeiros sistemas e o problema continuar sem solução, ele
se viu forçado a proclamar a filosofia incompetente e procurar em uma faculdade mais
excelsa que a razão, a resposta às suas dúvidas. A Intuição ou êxtase (“wajd”) dos Sufis

V
eram para ele, como que uma revelação. Sua busca pela Verdade tomou-lhe inúmeros
anos, no curso dos quais, renunciou às práticas professorais de teologia em Bagdá e se
recolheu a um retiro devocional em Jerusalém e Damasco, além de uma peregrinação à
Mecca.

Retornou mais tarde, por um curto período, a Nishapu, local de nascimento de Omar
Khayyam, seu contemporâneo mais velho, que como disse o Professor Browne em sua
“História da Literatura Persa”, ele conheceu e desgostou. Finalmente voltou a Tus, sua
cidade natal, onde faleceu no ano de 1111 d.C. O Professor D B Macdonald, em seu artigo
sobre Gazzali no Journal of the American Oriental Society, relata a seguinte passagem sobre
sua morte, como contada por seu irmão Ahmad, “Na segunda-feira pela manhã, meu irmão
realizou as abluções e rezou. Então disse, ‘Tragam-me as minhas mortalhas’, ele então as
tomou, beijou-as e ao deitar-lhe os olhos disse, ‘Eu ouço e obedeço ao comando de ir-me
ao Rei’. Então estendeu os pés e foi-Lhe ao encontro, sendo recebido nas boas graças do
mais alto Deus.”

O grande serviço prestado por Al-Gazzali aos Sufis, foi, como o Sr. Whinfield bem notou no
prefácio de sua tradução do Masnavi, dotá-los de uma terminologia metafísica, que ele
recolheu dos escritos de Plotino e dos Neo-Platonistas. Ele também lhes deu uma posição
segura dentro da Igreja do Islã.

Em seu “Desenvolvimento da Teologia Mussulmana, o prof. Macdonald chama Ghazzali de


“o maior, e certamente o mais solidário nome da história do Islã, e o único professor das
gerações posteriores jamais colocado por um mussulmano em um nível equivalente aos
quatro grandes Imanes” Mais a frente em sua obra, disse também dele: “O Islã jamais o
excedeu e jamais o entendeu por completo. “Na renascença do Islã, que hoje desponta aos
olhos, sua época há de chegar, e a nova vida se seguirá a um renovado estudo de suas
obras”

C.F.

VI
AS CONFISSÕES DE AL GHAZZALI

A BUSCA DE GAZZALI PELA VERDADE

“Em nome de Deus todo misericordioso”

Disse o Imane Ghazzali:

Glória a Deus, Cuja exaltação deve preceder a tudo o que se escreve e diz! Que as bênçãos
de Deus descansem em Maomé Seu Profeta e Seu Apostolado, em sua família e amigos,
que do erro escaparam por Sua orientação!

Vós me pedistes, ó irmão na fé, para expor os objetivos e os mistérios das ciências
religiosas, os limites e as profundezas das doutrinas teológicas. Vós desejais saber as
minhas experiências ao desenredar a Verdade perdida na confusão das seitas e
divergências do pensamento, e como ousei em subir das pradarias do conhecimento
tradicional para o mais alto cume da certeza.

Vós desejais aprender o que tomei emprestado, primeiro, da teologia escolástica; em


segundo do método dos Ta’limites, que, ao buscar a Verdade, assentaram-se sobre a
autoridade de seu líder; e o porquê, em terceiro lugar, fui levado a rejeitar os sistemas
filosóficos; e por último, o que aceitei da doutrina dos Sufis, a soma total de Verdade que
juntei ao estudar toda a variedade das opiniões. Vós me perguntais por que, após resignar-
me a um posto de professor em Bagdá que atraia um grande número de ouvintes, eu
aceitei, muito mais tarde, um posto similar em Nishampur. Convencido que estou da
sinceridade que motiva vossas indagações, tentarei respondê-las, invocando a ajuda e a
proteção de Deus.

Sabei, meu irmão (possa Deus dirigi-lo ao caminho correto), que a diversidade nas crenças e
nas religiões, e a variedade de doutrinas e seitas que dividem os homens, são como um
oceano profundo, repleto de naufrágios, dos quais poucos escapam sãos e incólumes. Toda
seita, é verdade, acredita-se possuidora da Verdade e da Salvação, “todo partido”, como
disse o Corão, “regozija-se em seu próprio credo”; mas como o Chefe dos apóstolos, cuja
Palavra é sempre verdadeira, nos disse, “Meu povo será dividido em mais de setenta seitas,
das quais apenas uma será salva.” Essa predição, como todas do Profeta, deve se realizar.

Desde minha época como adolescente, melhor dizendo, antes de completar vinte anos de
minha idade que hoje chega aos cinqüenta, aventurei-me neste vasto oceano;
corajosamente enfrentei suas profundezas, e como um mergulhador decidido, penetrei em

VII
sua escuridão e ousei adentrar-me nos perigos de seus abismos. Interroguei as crenças de
cada seita e examinei cuidadosamente os mistérios de cada doutrina, com o objetivo de
desenredar a Verdade do erro e a ortodoxia da heresia. Jamais encontrei alguém que
mantivesse o significado oculto do Corão sem investigar a natureza de sua crença, ou um
partidário de seu sentido exterior sem inquirir acerca dos resultados de sua doutrina. Não
houve um filósofo sequer cujo sistema eu não tenha compreendido, ou teólogo cuja
complexidade de sua doutrina eu não tenha esgotado.

O Sufismo não possui segredos nos quais eu não tenha penetrado; o devoto adorador da
Divindade revelou-me o objetivo de Suas austeridades; o ateísta não foi capaz de ocultar-
me a real motivação de sua descrença. A sede pelo conhecimento me é inata desde a idade
mais tenra; é-me como uma segunda natureza implantada por Deus, sem qualquer vontade
de minha parte. Não antes de ter emergido de minha infância, já tinha eu destruído os
grilhões da tradição e me libertado das crenças hereditárias.

Tendo percebido quão facilmente as crianças cristãs se tornam cristãos, e os filhos dos
mussulmanos abraçam o Islã, e lembrando-me também o dito tradicional atribuído ao
Profeta, “Toda criança tem em si a semente do Islã, mas seus pais os tornam judeus,
cristãos ou zoroastras,” fui movido por um contundente desejo de aprender o que era essa
disposição inata na criança, a natureza da crença acidental imposta a ela pela autoridade de
seus pais e mestres, e finalmente as convicções irracionais que derivam dessas orientações.

Comovido pelas contradições que encontrei no empenho para desenredar a verdade da


falsidade dessas opiniões, fui levado à seguinte reflexão: “A busca pela Verdade, sendo o
objetivo ao qual me proponho, devo em primeiro lugar me assegurar sobre quais seriam as
bases para essas certezas.” Em seguida reconheci que a certeza seria um claro e completo
conhecimento das coisas, tal conhecimento, não pode deixar espaço para a dúvida ou para
a possibilidade do erro ou da conjectura, para que não haja uma brecha na mente para que
o erro venha se instalar. Nesse caso é necessário que a mente, fortalecida contra a
possibilidade de se desencaminhar, deva abraçar uma convicção tão forte que, se por
exemplo, alguém detiver o poder de transformar uma pedra em ouro, ou um galho em uma
serpente, essa convicção, depois de abalada nas bases de sua certeza, permaneceria firme
e imóvel. Suponhamos, por exemplo, que um homem chegasse a mim, convicto que sou
que dez é mais do que três, e dissesse, ‘Não, pelo contrário, três é mais do que dez, e, para
prová-lo, eu transformo esse galho em uma serpente, ’ e supondo que ele realmente o
fizesse, isso não diminuiria em nada a minha crença na falsidade de sua afirmativa, mesmo
que o seu milagre cause em mim algum espanto, não introduziria a dúvida em minha
convicção.

VIII
Entendi então que todas as formas de conhecimento que não reúnam em si essas
condições (impenetrabilidade à dúvida, etc.) não merecem qualquer confiança, pois não se
encontram além do alcance da dúvida, e o que não é inexpugnável à dúvida não pode se
constituir como uma certeza.

IX
OS SUBTERFÚGIOS DOS SOFISTAS

Examinei então que tipo de conhecimento possuía e descobri que em nada, com exceção
das percepções sensuais e princípios necessários, eu desfrutava daquele grau de certeza
que acabo de descrever. Refleti então, tristemente: ‘Não podemos esperar encontrar a
Verdade exceto em questões que contenham em si suas próprias evidências – o que é o
mesmo que dizer, nas percepções sensuais e nos princípios necessários; devemos portanto
estabelecer os mesmos em bases sólidas. É a minha absoluta confiança nas percepções
sensuais e na infalibilidade nos princípios necessários análoga à confiança que
anteriormente possuía em questões que acreditava pela autoridade de terceiros?; É
somente análoga à confiança que a maioria das pessoas tem em seus órgãos de visão, ou é
rigorosamente Verdade, sem qualquer fração de ilusão ou dúvida?’

Entreguei-me então, com uma disposição sincera, a examinar tais noções que derivamos
das evidências dos sentidos e da visão para perceber se poderiam ser questionadas. Um
exame cuidadoso deixou minha confiança abalada. Nossa visão, por exemplo, talvez o mais
habitual de nossos sentidos, percebe uma sombra, e vendo-a fixa, pronuncia a sua
imobilidade. A observação e a experiência, contudo, nos revelam que uma sombra não se
move bruscamente, é verdade, mas gradualmente e imperceptivelmente, ou seja, ela
nunca se encontra totalmente imóvel.

Novamente, os olhos vêem uma estrela e acreditam que seja um grande naco de ouro, mas
cálculos matemáticos provam, que pelo contrário, elas são maiores que a Terra. Tais
noções, e todas as outras que os sentidos proclamam verdadeiras, são posteriormente
contraditas e condenadas como falsidades em uma maneira irrefutável pelo veredicto da
razão.

Refleti então comigo mesmo, ‘Já que não posso confiar na evidência dos meus sentidos,
devo basear-me somente nas noções intelectuais baseadas em princípios fundamentais,
como os seguintes axiomas: ‘Dez é mais do que três. Afirmação e negação não podem
coexistir. Algo não pode ser criado e ao mesmo tempo existir desde a eternidade vivendo e
aniquilada simultaneamente, necessária e impossível’. Para responder a essas questões
opus as seguintes: ‘Alguém poderá me garantir que posso confiar nas evidências da razão
mais do que nas evidências dos sentidos? Vós acreditastes em nosso testemunho até ele
ser contradito pelo veredicto da razão, caso contrário continuaríeis a acreditar neles até os
dias de hoje. Bem, talvez haja acima da razão outro juiz que, caso aparecesse, condenaria a

X
razão pela sua falsidade, da mesma forma como a razão nos condenou. Como este terceiro
árbitro ainda não nos é aparente, daí não se conclui que ele não exista’.

A este argumento permaneci muito tempo sem resposta; uma reflexão retirada do
fenômeno dos sonhos aumentou ainda mais a minha dúvida. ‘Vós não vedes’, refleti, ‘ que
enquanto dormis, vós assumistes seus sonhos como inquestionavelmente reais? Uma vez
acordado, os reconheceis pelo que são em verdade – quimeras sem fundamento. Quem
então vos poderíeis garantir, da confiabilidade de tais noções que, uma vez acordado,
derivais dos sentidos e da razão? Em relação ao vosso estado atual elas podem ser reais;
mas é possível também que possais entrar em um novo estado do ser que compartilhará a
mesma relação com o vosso estado presente, assim como esse se assemelha ao vosso
estado enquanto dormis. Nessa nova esfera reconhecereis que também as conclusões da
razão são quimeras.

Essa condição possível, é talvez, aquela a que os Sufis chamam de ‘êxtase’ (“hāl”), o que é o
mesmo que dizer, de acordo com suas crenças, um estado no qual, absorvidos em vós
mesmos e na suspensão das percepções sensuais, vós tendes visões além do alcance do
intelecto. “Talvez a morte seja também um estado como este, de acordo com uma
passagem do Príncipe dos profetas: ‘Os homens dormem; quando morrem, despertam.”
Vossa vida presente em relação à futura talvez seja um sonho, e o homem, uma vez morto,
verá coisas em oposição direta as que vê atualmente; e entenderá então a palavra do
Corão, “Hoje removestes o véu de vossos olhos e vossa visão é aguçada.”

Tais pensamentos ameaçaram abalar minha razão, e procurei escarpar-lhes. Mas como?
Para desatar o nó desta dificuldade, uma prova se fazia necessária. Mas uma prova deve se
basear em suposições primárias, e eram justamente essas que me levavam à dúvida. Este
estado infeliz tomou-me dois meses, durante os quais me tornei, não profissionalmente,
mas essencial e moralmente um cético.

Deus finalmente dignou-se a curar-me dessa enfermidade mental; minha mente recobrou
sua sanidade e seu equilíbrio, as premissas básicas da razão recobraram em mim toda a sua
gravidade e força. Devo o meu resgate não a uma concatenação de provas e argumentos,
mas à luz que Deus possibilitou que entrasse em meu coração – a luz que ilumina o limiar
de todo o conhecimento. Supor que a certeza pode somente ser baseada em argumentos
formais é limitar a infinita misericórdia de Deus. Alguns perguntaram ao Profeta a
explicação desta seguinte passagem no Livro Divino: ‘Deus abre ao Islã, o coração daquele
que Ele deseja dirigir’ Isto é dito, respondeu o Profeta, ‘da luz que Deus verte em nossos
corações’. ‘E como pode um homem reconhecer essa luz?’, foi-lhe perguntado, ‘Pelo
distanciamento deste mundo de ilusões e por um secreto inclinar-se em direção à
eternidade’ o Profeta respondeu.

XI
Em outra ocasião ele disse: ‘Deus criou as criaturas na escuridão, para então verter sobre
elas Sua luz’ É pela ajuda dessa luz que a busca pela verdade deve ser conduzida. É por sua
misericórdia que essa luz desce, de tempos em tempos sobre os homens, e devemos estar
atentos constantemente para podermos identificá-la. Isso é também corroborado por outra
passagem do Apóstolo: ‘Deus manda sobre vós, em determinadas épocas, hálitos de Sua
graça; estejam preparados para eles. ’

O objetivo desta minha anotação é fazer com que outras pessoas entendam com qual
gravidade devemos buscar a verdade, já que ela leva a resultados a que nunca
sonharíamos. A adoção de premissas básicas não deve ser buscada exteriormente, já que
estão sempre presentes em nossas mentes; caso nos engajemos nessa busca,
perceberemos que elas sempre fugirão ao nosso domínio. Mas aqueles que forçarem a sua
investigação para além dos limites do ordinário estarão seguros da suspeição de serem
negligentes em perseguir o que está ao seu alcance.

XII
AS DIFERENTES FORMAS DE SE PROCURAR A VERDADE

Quando Deus, na abundância de Sua misericórdia, me curou desta enfermidade, tive


certeza que aqueles que estão engajados na busca pela Verdade, podem ser divididos em
três grupos.

I. Os teólogos escolásticos, que professam seguir a teoria e a especulação.


II. Os filósofos, que confiam na lógica formal.
III. Os Sufis, que se auto-intitulam os eleitos de Deus e, portanto possuidores da
intuição e do conhecimento da Verdade por meio do êxtase.

‘A Verdade’, disse a mim mesmo, ‘deve ser encontrada entre essas três classes de homens
que se dedicam a procurá-la. Caso escape a eles, então devemos perder todas as
esperanças em encontrá-las. Uma vez vos tendo rendido à crença cega, é impossível
voltardes atrás, pois a essência mesma desta crença é estarmos inconscientes dela. Assim
que a inconsciência cessa, é partida como um vidro cujos fragmentos não poderíeis jamais
reunir, exceto jogando-os novamente em um forno e refazendo-os. ’ Determinado a trilhar
esse caminho e investigar esses sistema a fundo, procedi com minhas investigações na
seguinte ordem: Teologia escolástica; sistemas filosóficos; e finalmente o Sufismo.

XIII
OS OBJETIVOS DA TEOLOGIA ESCOLÁSTICA E SEUS RESULTADOS

Começando pela ciência teológica, examinei e meditei cuidadosamente sobre ela. Li os


escritos das autoridades nessa questão compus uma série de tratados. Reconheci que essa
ciência, embora suficiente em seus propósitos, não poderia assistir-me em chegar a minha
meta. Resumidamente, seu objetivo é preservar a pureza das crenças ortodoxas de todas as
inovações heréticas. Deus, por meio de seu Apostolado, revelou às criaturas, uma crença
que é verdadeira com relação aos seus interesses temporais e eternos; seus artigos
fundamentais estão escritos no Corão e na tradição. Subseqüentemente, Satã sugeriu aos
inovadores, princípios contrários aqueles delineados pela ortodoxia; eles ouviram
sequiosamente suas sugestões, e a pureza de sua fé foi ameaçada fazendo com que Deus
erguesse uma escola de teólogos os inspirando com o desejo de defender a ortodoxia por
meio de um sistema de provas adaptadas a desvelar os mecanismos heréticos e para
rechaçar os ataques que fizeram às doutrinas estabelecidas pela tradição.

Tal é a origem da teologia escolástica. Muitos de seus adeptos, merecedores de sua altiva
valentia, defenderam a fé ortodoxa provando a realidade das profecias e a falsidade das
inovações heréticas. Mas, para tanto, tiveram de apoiar-se em certo numero de premissas
que tinham em comum com seus adversários, ou que a autoridade e o consenso universal
ou simplesmente o Corão os obrigava a aceitar. Seus principais esforços foram voltados
para expor as contradições de seus oponentes e confrontá-las por meio de premissas que
haviam professado aceitar. Um método de argumentação como esse tem pouco valor para
alguém que somente admite verdades auto-evidentes. A Teologia escolástica não poderia
satisfazer-me ou curar-me da enfermidade que sofria.

É verdade que em seu desenvolvimento posterior, a teologia não se satisfez somente em


defender dogmas; dirigiu-se também ao estudo dos princípios primeiros das substâncias,
acidentes e leis que as governam; mas por meio de uma base científica não poderia avançar
muito em suas investigações ou ser bem sucedida em dissipar inteiramente as projeções
obscuras que emanaram das divisões em sua crença.

Não nego, entretanto, que acabou por ter um resultado mais satisfatório em outros
campos; pelo contrário, admito que teve; mas o teve devido à introdução dos princípios de
autoridade em questões que não eram auto-evidentes. Além disso, meu objetivo é explicar
minha própria atitude intelectual e não disputar com aqueles que obtiveram a cura por si
mesmos. Os medicamentos variam de acordo com a natureza da doença; aqueles que
beneficiam alguns podem causar mal a outros.

XIV
FILOSOFIA – Quanto de si está sujeito à censura ou não – Em quais pontos seus seguidores,
sejam eles considerados crentes ou descrentes, ortodoxos ou heréticos – O que tomaram
de empréstimo da verdadeira doutrina para fazer com que suas doutrinas quiméricas
fossem aceitas – Por que motivo a mente de homens se desvia da verdade – Quais critérios
estavam disponíveis para separar o ouro puro da liga composta de seus sistemas.

Procedi então do estudo da teologia escolástica para a filosofia. Estava claro para mim que,
para descobrir em que ponto os professores de quaisquer correntes do conhecimento
haviam errado, devia-se proceder a um estudo pormenorizado desta ciência; devia-se
equiparar e depois superar aqueles que mais sabem dela, para assim penetrar em segredos
que eles próprios desconheciam. Somente por este método poderiam ser completamente
respondidos, e de seguidores desse método não encontrei rastro de alguém que fosse,
entre os teólogos do Islã. Em escritos teológicos dedicados à refutação da filosofia
encontrei somente uma massa desordenada de frases repletas de contradições e erros,
incapazes de enganar alguém. Não diria apenas de uma mente crítica, mas também de uma
mente primária. Convencido de que o sonho de refutar uma doutrina antes de tê-la
compreendido por completo era como atirar em um objeto no escuro, dediquei-me
zelosamente ao estudo da filosofia; mas somente nos livros, sem a ajuda de um professor.
Devotei a este trabalho todo o meu tempo livre que havia sobrado de minhas funções
acadêmicas e autorais em estudos sobre a lei. Havia nessa época trezentos alunos
assistindo às minhas aulas em Bagdá. Com a ajuda de Deus, tais estudos, levados a cabo em
segredo por assim dizer, puseram-me em uma posição para compreender exaustivamente
os sistemas filosóficos em um período de dois anos. Gastei então mais um ano meditando
sobre esses sistemas após tê-los compreendido por completo. Revirei-os inúmeras vezes
em minha mente até que estivessem livres de qualquer obscuridade. Desta forma adquiri
um total conhecimento de seus subterfúgios e sutilezas e o que era Verdade ou ilusão em
seus conteúdos.

Relatarei a seguir um resumo destas doutrinas. Afirmei que estavam divididas em diversas
categorias, e que seus adeptos poderiam ser compostos por diferentes tipos intelectuais.
Todos, apesar de sua diversidade, estavam marcados com o selo da infidelidade e da
irreligiosidade, mesmo que haja uma diferença considerável entre os antigos e os
modernos, entre os primeiros e os últimos destes filósofos, de acordo com a aproximação
que obtiveram da Verdade em um grau menor ou maior.

XV
SOBRE AS SEITAS FILOSÓFICAS E O ESTIGMA DE INFIDELIDADE QUE AS UNE

Os sistemas filosóficos, apesar de suas extensões e variedades, podem ser reduzidos a três:
(1) Os Materialistas; (2) Os Naturalistas; (3) Os Teístas.

(1) Os Materialistas. Eles rejeitam a existência de um Criador inteligente e onipotente,


Diretor do universo. Em sua visão o mundo existe desde a eternidade e não possui
autor. O animal advém do sêmen e o sêmen do animal; assim foi e assim sempre
será; aqueles que professam essa doutrina são ateístas.

(2) Os Naturalistas. Dedicam-se ao estudo da natureza e dos maravilhosos fenômenos


animais e vegetais. Tendo cuidadosamente analisado os órgãos dos animais, com a
ajuda da anatomia, e comovidos pelas maravilhas do trabalho de Deus e com a
sabedoria por ele revelada, são forçados a admitir a existência de um sábio Criador
que sabe o fim e o propósito de tudo. Certamente ninguém pode estudar a anatomia
e os complexos mecanismos das criaturas viventes sem estar obrigado a confessar a
profunda sapiência D’aquele que concebeu os corpos dos animais, especialmente o
do homem. Mas, fascinados por suas próprias descobertas, eles acreditam que a
existência de um ser depende exclusivamente do justo equilíbrio de seu organismo.
De acordo com o que dizem, quando o último sucumbe, também com ele cessa de
existir a faculdade pensante que está a ele unida; e como para eles a restauração de
algo, uma vez destruído, é impensável, negam a imortalidade da alma.
Conseqüentemente negam o paraíso, inferno, ressurreição ou o julgamento final.
Deduz-se, portanto que não há recompensa para as boas ações ou uma punição para
as más, eles excluem a possibilidade de qualquer autoridade e mergulham na busca
por prazeres sensuais com uma avidez comum aos brutos. Devem, portanto também
ser chamados de ateístas, pois a verdadeira fé depende não somente no
reconhecimento de Deus, mas em seu Apostolado e na existência do Juízo Final.
Muito embora admitam a existência de Deus e de seus atributos, negam o
julgamento que está por vir.

(3) A seguir seguem-se os Teístas. Entre eles podemos encontrar Sócrates que foi
professor de Platão e este de Aristóteles. Este último recolheu para os seus discípulos
as leis da lógica, organizou as ciências, elucidou o que se encontrava de alguma
forma obscuro, e esclareceu o que ainda não havia sido entendido. Esta escola
refutou os sistemas de outras duas, a saber, os Materialistas e os Naturalistas; mas

XVI
ao expor seus erros e suas crenças perversas, fez uso de argumentos inapropriados.
‘Deus dota de proteção os piedosos em guerra’ (Corão, xxxiii, 25).

Aristóteles obteve sucesso também ao disputar contra as teorias de Platão, Sócrates e


contra os teístas que o precederam, separando-se inteiramente deles; mas não pôde
eliminar de sua doutrina as manchas da infidelidade e da heresia que desfiguraram os
ensinamentos de seus predecessores. Devemos agora considerar todos eles como
descrentes, incluídos nestes os chamados filósofos mussulmanos como Ibn Sina (Avicenna)
e Farabi, que adotaram seus sistemas.

Devemos também, entretanto, confessar que entre os filósofos mussulmanos, nenhum


interpretou melhor a doutrina de Aristóteles quanto o último. O que outros apresentaram
como seus ensinamentos estão repletos de erros, confusão e obscuridade, adotados para
confundir o leitor. O ininteligível não pode ser aceito ou rejeitado. A filosofia de Aristóteles,
todo o conhecimento sério que devemos às traduções desses dois homens letrados, pode
ser dividido em três porções; a primeira contém matéria justamente acusável como
impiedosa, a segunda é machada pela heresia e quanto a terceira, somos obrigados a
rejeitar completamente. Procederemos aos detalhes.

XVII
DIVISÃO DAS CIÊNCIAS FILOSÓFICAS

Tais ciências, em relação ao objetivo que temos a nossa frente, podem ser divididas em seis
seções: (1) Matemática; (2) Lógica; (3) Física; (4) Metafísica; (5) Política; (6) Filosofia Moral.

A Matemática compreende o conhecimento dos cálculos, geometria e cosmografia; não


tem qualquer relação com as ciências religiosas e não prova nada contra ou a favor da
religião; se sustenta na fundamentação de provas que, uma vez conhecidas e entendidas,
não podem ser refutadas. Matemáticos, tendem, entretanto, a produzir dois resultados
maléficos.

O primeiro é este: Alguém que estude essa ciência admira a sutileza e a clareza de suas
provas. Sua confiança na filosofia cresce, e ele pensa que todas as suas divisões são capazes
da mesma clareza e solidez de provas que a matemática. Quando ouve falar da infidelidade
e da impiedade dos matemáticos, de seu descaso pela Lei Divina, que é notório, é bem
verdade também que, pelo respeito às autoridades, eles ecoam essas acusações, mas ao
mesmo tempo dizem a si próprios que se houvesse qualquer verdade nas religiões, não
teria escapado aqueles que demonstraram tamanha agudeza de intelecto no estudo da
matemática.

A seguir, quando se tornam cientes da descrença e da rejeição da religião por parte desses
homens letrados, eles concluem que rejeitar a religião talvez seja razoável. Quantos desses
homens transviados conheci que cujo único argumento era o que acabo de mencionar. E,
supondo que alguém lhes oponha a seguinte objeção: ‘Não se sucede que um homem que
obtém excelência sem igual em um ramo qualquer do conhecimento, possa também ser
igualmente versado em jurisprudência, teologia e medicina. É bem possível que seja
totalmente ignorante sobre a metafísica e mesmo assim ser um excelente gramático. Há
mestres antigos em todas as ciências que foram totalmente ignorantes em outros campos
do conhecimento. Os argumentos dos antigos filósofos são rigidamente demonstrativos na
matemática e somente conjecturais em questões religiosas. Para fazer essa afirmação,
deve-se realizar um exaustivo exame da questão. Supondo-se que alguém faça a objeção
acima a estes “símios da descrença” eles a considerariam de mau gosto. Tornando-se
reféns de suas paixões, em uma embriagada vaidade e tentando-se passar por homens
cultos, eles persistem em manter a proeminência da matemática sobre todos os outros
campos do conhecimento. Este é um mal grave, e por essa razão aqueles que estudam a
matemática devem ser observados caso estejam indo muito longe em seus estudos. Apesar
de tão removidos que esteja dos assuntos religiosos, esse estudo, servindo como o faz aos

XVIII
estudos filosóficos, lança sobre a religião sua influência maligna. Raramente um homem se
dedica a este estudo sem furtar-se de sua própria fé ou libertando-se das restrições da
religião.

O segundo mal advém do sincero, porém ignorante mussulmano que pensa que a melhor
maneira de se defender a religião é por meio da rejeição das ciências exatas. Acusando seus
professores de transviados, ele rejeita suas teorias do eclipse solar e lunar e as condena em
nome da religião. Suas acusações têm grande ressonância, chegam aos ouvidos do filósofo
que sabe que essas teorias se baseiam em provas infalíveis; muito longe de perder sua
confiança nelas, ele acredita, contrariamente, que o Islã é ignorante e que nega
fundamentalmente as provas científicas, então sua devoção à filosofia cresce na mesma
proporção de seu ódio à religião.

É, portanto um grande mal à religião, supor que a defesa do Islã envolva a condenação das
ciências exatas. A lei religiosa não contém nada que as aprove ou condene, e por sua vez
elas não realizam qualquer ataque à religião. As palavras do Profeta, ‘O sol e a lua são dois
sinais do poder de Deus; não são eclipsados de forma alguma pelo nascimento ou morte de
algum deles; quando virdes esses sinais procure refúgio na oração e clame o nome do
Senhor’ – tais palavras, digo eu, de nenhuma forma condenam os cálculos astronômicos
que definem as órbitas desses dois corpos, sua conjunção ou oposição de acordo com leis
específicas. Em relação à chamada tradição, ‘Quando Deus revela Sua pessoa em algo, Ele
rebaixa-se àquilo’ é inverídica, e não é encontrada em qualquer coleção confiável das
tradições.

Estes são os limites e os prováveis perigos da matemática.

(2) Lógica. Esta ciência, da mesma forma, não contém nada a favor ou contra a religião. Seu
objeto de estudo são as diferentes formas de provas e silogismos, as condições pelas quais
se sustentam as premissas de uma proposição, as formas de combiná-las, as regras para
uma boa definição e arte de formulá-las. Pois o conhecimento consiste em conceitos que se
originam de provas. Não há, portanto nada censurável nesta ciência e ela foi construída
com a ajuda tanto de teólogos quanto de filósofos. A única diferença é que os últimos se
utilizam de um arcabouço específico de fórmulas e forçam suas divisões e subdivisões mais
profundamente.

Pode ser perguntado então, o que então tem tudo isto a ver com as graves questões
religiosas, e que terreno comum de oposição pode ser imputado aos métodos lógicos? O
opositor, será dito, pode apenas inspirar o lógico com uma opinião desfavorável de sua
inteligência ou fé, já que a fé do último parece estar baseada em tais objeções. Mas deve-se
admitir, que a lógica é vulnerável ao abuso. Os lógicos requerem da razão certas condições
que os levam a certezas absolutas, mas quando tocam em questões religiosas, não podem

XIX
mais postular tais condições, devendo, portanto relaxar o seu rigor habitual. Mas acontece,
conseqüentemente, que um aluno, enamorado pelos métodos de evidência lógica, ouvindo
seus professores serem acusados de irreligião, acredita que esse ateísmo se vale de provas
tão sólidas quanto às da lógica, e imediatamente, sem dedicar-se ao estudo da metafísica,
compartilha de seus erros. Esta é uma série desvantagem que advém do estudo da lógica.

(3) Física. O objeto desta ciência é o estudo dos corpos que compõem o universo; o céu e as
estrelas, e abaixo, os elementos simples como o ar, água, fogo e corpos compostos –
animais, plantas e minerais; as justificativas para suas variações, desenvolvimento e
mistura. Pela natureza de seus estudos, ela está intimamente relacionada com a medicina,
que tem como objeto o corpo humano, seus órgãos principais e secundários e as leis que
governam suas alterações. A religião nada tendo em comum com a ciência médica, também
não pode ter com a física, exceto em alguns pontos que mencionei no trabalho intitulado A
destruição dos filósofos. Ao lado destas questões primordiais, há algumas subordinadas a
elas, para as quais a ciência física está aberta à objeção. Mas toda ciência física se assenta
no seguinte princípio: A natureza está completamente subordinada a Deus; incapaz de agir
por si mesma, é um instrumento nas mãos do Criador; o sol, a lua, as estrelas e os
elementos estão sujeitos a Deus e não podem produzir nada por si mesmos. Em uma
palavra, nada na natureza pode agir espontaneamente apartado de Deus.

(4) Metafísica. Este é terreno mais frutífero para a proliferação dos erros dos filósofos. Aqui
já não podem mais satisfazer as leis rigorosas da argumentação requerida pela lógica, e isto
explica as disputas que nascem entre elas e o estudo da metafísica. O sistema que mais se
assemelha ao sistema Maometano de doutrinas é o de Aristóteles, explicado para nós por
Farabi e Avicenna. A soma total de seus erros pode ser reduzida a vinte proposições: três
delas ateístas e as outras dezessete heréticas. Com o propósito de combater seus sistemas,
escrevemos o tratado Destruição dos Filósofos. As três proposições nas quais eles se opõem
a todas as doutrinas do Islã são as seguintes:

(1) Os corpos não podem ressurgir; somente os espíritos serão gratificados ou


punidos; a punição futura será, portanto espiritual e não física. Eles estão certos em admitir
punições espirituais, pois existirão; mas estão errados em rejeitar as punições físicas,
contradizendo desta forma o que foi dito pela Lei Divina.

(2) ‘Deus tem conhecimento dos universais e não dos particulares’. Isto é
manifestamente ateísta. O Corão declara veementemente, ‘Nem o peso de um átomo
qualquer no céu ou na terra pode escapar de Seu conhecimento’. (x, 62).

(3) Eles afirmam que o universo existe desde a eternidade e nunca terminará.

XX
Nenhuma dessas proposições foi jamais admitida por um mussulmano. Além disso,
negam que Deus tenha atributos e sustentam que Ele sabe somente por Sua essência e não
por meio de qualquer atributo acessório à Sua essência. Neste ponto eles se aproximam da
doutrina dos Mutazilites, doutrinas que não somos obrigados a condenar como irreligiosas.
Pelo contrário, em nosso trabalho intitulado Critério das diferenças que dividem o Islã do
Ateísmo, provamos o erro dos que acusam de ateístas todos os que se opõem ao seu modo
de ver as coisas.

(5) Ciência Política. Os professores desta ciência confinam-se a ditar regras que
regulam as questões temporais e o poder real. Eles tomaram emprestados para as suas
teorias os pontos dos livros onde Deus fez revelações aos Seus profetas e dos ditos de
antigas sagas, colhidas pela tradição.

(6) Filosofia Moral. Os professores desta se ocupam em definir os atributos e


qualidades da alma, agrupando-os de acordo com os gêneros e espécies, apontando o
caminho para moderá-las e controlá-las. Tomaram emprestado este sistema dos Sufis. Estes
homens devotos que estão sempre engajados na invocação do nome de Deus, em
combater a concupiscência e em seguir o caminho de Deus por meio da renúncia aos
prazeres mundanos, receberam, enquanto em estado de êxtase, revelações concernentes
às qualidades da alma, seus defeitos e suas más inclinações. Tais revelações foram por eles
publicadas e os filósofos, fazendo uso delas, introduziram-nas em seus próprios sistemas
com o propósito de adorná-los e tornar moeda corrente as suas falsidades. Nos tempos dos
filósofos, como em qualquer outra época, esses místicos fervorosos existiram. Deus não
priva o mundo desses místicos, dado que eles que o sustém e oferecem ao mundo as
bênçãos dos céus; de acordo com a tradição: ‘É por meio deles que vêem as chuvas, é por
meio deles que obténs vossa substância. ’ Tais eram os “Amigos da Caverna” que viveram
em tempos remotos, como relatado no Corão (xviii). Essa mistura de doutrinas morais e
filosóficas com as palavras dos profetas e Sufis dão ensejo a dois perigos, um para o
detentor destas doutrinas e outro para seu opositor.

O perigo para o opositor é bastante grave. Um homem de mente estreita,


descobrindo em seus escritos a filosofia moral misturada à infundadas teorias, acredita que
deva rejeitá-las totalmente e condenar aqueles que a professam. Tendo ouvido-os apenas
oralmente, ele não hesita, em sua ignorância, em declarará-los falsos, pois aqueles que as
ensinam estão imersos no erro. É como se alguém rejeitasse a profissão de fé dos cristãos:
‘Há somente um Deus e Cristo é seu profeta’, simplesmente porque provém de cristãos e
sem examinar se é a profissão dessa fé ou a negação da missão profética de Maomé que os
torna infiéis. Agora, se há somente infiéis devido a sua rejeição de nosso Profeta, nós não
estamos autorizados a rejeitar aqueles de sua doutrina que não carregam o estigma da
infidelidade. Em outras palavras, a Verdade não cessa de ser verdadeira porque foi

XXI
encontrada em seu meio. Tal, entretanto é a tendência das mentes fracas: eles julgam a
verdade de acordo com os seus professores ao invés de julgar seus professores de acordo
com o padrão da Verdade. Mas um espírito livre tornará seu guia este axioma do Príncipe
dos crentes, Ali, filho de Abu Talib: ‘Não procureis a Verdade em meio aos homens;
encontre primeiro a Verdade e então reconhecerais aqueles que a seguem. ’ Este é o
procedimento seguido por um homem sábio. Uma vez em posse da Verdade, ele examina
as bases de doutrinas várias que lhe são apresentadas, e quando achá-las verdadeiras, eles
as aceita sem perturbar-se se a pessoa que a professa é sincera ou um enganadora. Deve,
portanto, lembrando-se de como o ouro encontra-se entranhado na terra, portar-se como
os diligentes na busca por desembaraçar a Verdade da massa dos erros nos quais se acha
tragada. O experiente ensaiador de moedas mergulha sem hesitação, suas mãos na bolsa
de um cunhador de falsas moedas, e, valendo-se de sua experiência, separa as boas das
más moedas. Somente o tosco ignorante, e não o ensaiador experiente, que perguntará por
que devemos nos meter com um falso cunhador. O nadador inexperiente deve ser mantido
longe da costa, não o nadador habilidoso. A criança, não o encantador, deve ser proibida de
manejar serpentes.

Em verdade, os homens têm tão boa opinião sobre si mesmos, de sua superioridade
mental e profundidade de intelecto, acreditam ser tão habilidosos em discernir a Verdade
da falsidade, o caminho da segurança daquele do erro que devem ser terminantemente
proibidos de ler escritos filosóficos, pois por muitas vezes isso os possibilitaria escapar do
perigo mencionado acima; mas eles não podem evitar aquilo que indicaremos a seguir.

Algumas das máximas encontradas em meus trabalhos concernentes aos mistérios da


religião encontraram opositores em um ramo inferior das ciências, pessoas cuja penetração
intelectual é insuficiente para esgotar tais profundezas. Eles asseguram que essas máximas
foram tomadas de empréstimo de filósofos antigos, ao passo que elas foram produtos de
minha meditação pessoal, mas como diz o provérbio, ‘Sandálias se seguem às pegadas. ’
(I.e. Não há nada de novo sob o sol). Algumas delas são realmente encontradas em nossos
livros sobre a lei religiosa, mas a maior parte provém dos escritos dos Sufis.

Mas mesmo se elas fossem tomadas de empréstimo exclusivamente das doutrinas


dos filósofos, seria correto rejeitar uma opinião quando ela é razoável por si mesma,
suportada por sólidas provas, sem contradizer o Corão ou as tradições? Se adotarmos este
método e rejeitarmos toda Verdade que pode ter sido proclamada por um impostor,
quantas verdades teríamos de rejeitar! A quantos versos do Corão, da tradição dos
discursos e das máximas das sagas deveríamos cerrar nossos ouvidos pelo fato do autor do
Tratado dos irmãos da Pureza inserí-los em seus escritos com a finalidade de promover sua
causa e guiar as mentes gradualmente no descaminho das trilhas do erro! A conseqüência
deste procedimento seria a de que os impostores nos roubariam as verdades com o

XXII
propósito de adornar seus próprios tratados. O homem sábio, ao menos, não tornaria sua
essa causa, comum aos fanáticos cegos pela ignorância.

O mel não se faz impuro pelo fato de ter sido armazenado em um jarro utilizado por
médicos para finalidade de realizar a sangria. A impureza do sangue é devida, não pelo seu
contato com o jarro, mas a uma peculiaridade inerente a sua própria natureza; essa
peculiaridade, não existindo no mel, não pode a ele ser comunicada por ter sido colocado
no mesmo vaso; é, portanto errado condená-lo como impuro. Tal é, entretanto, a maneira
extravagante de ver as coisas, comum a quase todos os homens. Toda a palavra proferida
por uma autoridade que eles aprovam, é aceita por eles, mesmo sendo falsa; toda a palavra
proferida por alguém suspeito é rejeitada, mesmo sendo verdadeira. Em todos os casos
eles julgam a Verdade de acordo com o seu detentor e não os homens de acordo com suas
verdades, tal é um neplus ultra do erro. Este é o perigo no qual os filósofos envolvem seus
oponentes.

O segundo perigo ameaça aqueles que aceitam as opiniões dos filósofos. Quando,
por exemplo, lemos os tratados dos ‘Irmãos da Pureza’ e outros trabalhos da mesma
natureza, e encontramos em frases ditas pelo Profeta ou citações dos Sufis. Nós aprovamos
estes trabalhos; damos a eles nossa confiança; e terminamos por aceitar os erros que
contém devido à boa opinião que temos deles, os quais nos serviram de inspiração no
início. Entretanto, em graus imperceptíveis, somos desviados do bom caminho. Sabedores
do perigo inerente as leituras filosóficas, tão cheias de vãs e enganadoras utopias, tais
deveriam ser proibidas, da mesma maneira que as margens escorregadias de um rio são
proibidas aqueles que não sabem nadar. A leitura desses falsos ensinamentos deve ser
evitada da mesma forma que se proíbem as crianças de tocar em serpentes. O próprio
encantador de serpentes evita tocar em serpentes na presença de uma criança, pois sabe
que a criança, acreditando-se tão hábil quanto seu pai, não hesitará em imitá-lo; e de modo
a enfatizar essa proibição o encantador não ousa tocar em serpentes sob as vistas de seus
filhos.

Tal deveria ser a conduta de um homem culto que seja também sábio. Mas o
encantador, depois de ter retirado da cobra o veneno e o antídoto, guardando o último e
destruindo o primeiro, não se furtará a conceder o antídoto aqueles que dele necessitam.
Da mesma forma que o hábil cunhador, após ter bulido na bolsa do falsário, tirado as boas
moedas e jogado fora as más, também não hesitará em utilizar-se das moedas para aqueles
que as pedirem. Esta deveria ser a conduta de um homem de conhecimento. Caso o
paciente sinta um certo desconforto por estar se servindo de um antídoto retirado do
mesmo animal que é o receptáculo do veneno que o afetou, ele deve então ser desiludido
de sua falácia. Caso um mendigo hesitar em aceitar uma moeda que veio da bolsa de um
falsário, deve ser lembrado de que tal hesitação é um erro que o privaria da vantagem que

XXIII
procura. Deve-se provar a ele que o contato das más moedas com as boas não prejudica as
últimas ou melhora as primeiras, da mesma forma que o contato da mentira com a verdade
não a transforma em verdade e vice-versa.

Isto é o que tenho a dizer sobre a inconveniência e o perigo que derivam do estudo
da filosofia.

XXIV
SUFISMO

Depois de encerrado meu exame destas doutrinas, apliquei-me ao estudo do Sufismo.


Percebi que para entendê-lo por inteiro, deveria combinar a teoria com a prática. O
objetivo que os Sufis têm à sua frente é o seguinte: Libertar a alma do jugo tirânico das
paixões, desviá-la de suas más inclinações e instintos de forma a que, em seu coração puro,
reste espaço somente a Deus e para a invocação de Seu santo nome.

Como é mais fácil aprender esta doutrina do que praticá-la, estudei primeiramente todos os
livros que a continham: A Nutrição dos Corações, de Abu Talib de Mecca, os trabalhos de
Harethel Muhasibi e os fragmentos que ainda restavam de Janaid, Shibli, Abu Yezid Bustami
e outros líderes (que suas almas possa Deus santificar). Adquiri um conhecimento pleno de
suas pesquisas e aprendi tudo o quanto era possível de seus métodos através do estudo e
do ensinamento oral. Tornou-se claro para mim que o último nível não poderia ser
alcançado por mera instrução, mas somente pelo transporte, pelo êxtase e pela
transformação do meu ser moral.

Definir saúde e saciedade, penetrar em suas causas e condições é algo bastante diverso de
estar saudável ou saciado. Para definir a bebedeira, saber que é causada pelos humores
que sobem do estômago e turvam o trono da inteligência, é bem diferente de se estar
bêbado. O bêbado não tem a menor idéia do que é a natureza da bebedeira, devido a sua
condição fragilizada de embriaguez, enquanto que o médico, não estando sob a influência
da bebida, sabe suas propriedade e leis. Da mesma forma, caso o médico fique doente, ele
terá um conhecimento teórico da saúde da qual se encontra privado.

Citando outro exemplo, há uma diferença considerável entre saber o que é a renúncia,
compreender suas condições e causas e a prática da renúncia com o conseqüente
desligamento das coisas mundanas. Compreendi que o Sufismo constituía-se de
experiências em vez de definições, e aquilo que me faltava pertencia ao domínio, não da
instrução, mas do êxtase e da intuição.

As pesquisas para as quais havia me dedicado tanto, o caminho que havia trilhado no
estudo das religiões e nos ramos especulativos do conhecimento havia me dado uma fé
firme em três coisas: Deus, Inspiração e no Juízo Final. Esses três fundamentos de crença
foram confirmados em mim, não somente por sólidos argumentos, mas por uma cadeia
causal de circunstâncias e um incontável número de provas. Tive certeza que alguém
somente pode ter esperanças na salvação através da devoção e da conquista das paixões,

XXV
um procedimento que pressupõe a renúncia e o desligamento deste mundo de mentiras de
modo a voltar-se em direção à eternidade e à meditação em Deus. Finalmente vi que a
única condição para o sucesso era através do sacrifício das honrarias e riquezas e por meio
do corte dos grilhões que nos prendiam à vida neste mundo.

Considerando seriamente meu estado, encontrei-me preso por todos os lados por essa
trama. Examinando minhas ações, por mais aparentemente justas que fossem a minha
classe e minha ocupação professoral, descobri, para minha surpresa, que estava absorto
em vários estudos de pouco valor e de nenhum proveito para a minha salvação. Procurei os
motivos pelos quais lecionava e descobri que, ao invés de estar sinceramente consagrado a
Deus, estava agindo por um vão desejo de honra ou reputação. Percebi que estava à beira
de um abismo e que sem uma conversão imediata eu estaria condenado ao fogo eterno.
Nestas reflexões permaneci um longo tempo. Ainda uma presa fácil para a incerteza, decidi
um dia abandonar Bagdá e tudo o mais; mas no dia seguinte desisti de minha resolução.
Avançava um passo e no instante seguinte retrocedia. Às manhãs estava sinceramente
resolvido a ocupar-me somente de minha próxima vida, mas às noites um turbilhão de
pensamentos carnais me assolava e dispersava-me de minha resolução. Por um lado o
mundo me mantinha preso ao meu posto por elos de avareza e por outro lado a voz da
religião gritava-me, ‘Levanta-te! ; Levanta-te! ; Levanta-te! ; vossa vida está chegando ao
fim e vós ainda tentes uma longa jornada pela frente!. Todo o pretenso conhecimento não é
nada além de erro e fantasia. Se acaso não pensardes em vossa salvação agora, quando
pensareis? Se acaso não quebrardes as correntes hoje, quando as quebrareis?’ Deste modo
minha vontade era fortalecida, e desejava deixar tudo e fugir; mas o Tentador, voltando à
carga dizia, ‘Sofre de um sentimento passageiro; não ceda a ele, pois logo passará. Caso o
obedeça e deixe seu tão bom cargo, este posto tão honrável, protegido de todos os
problemas e rivalidades, este assento de autoridade seguro dos ataques, vai se arrepender
mais tarde e então não mais será possível recobrá-lo.’

Assim permaneci, dilacerado por forças opostas das paixões mundanas e aspirações
religiosas por cerca de seis meses a começar do mês de Rajab do ano de 1096 d.C. Ao final
deste período a minha vontade capitulou e entreguei-me ao destino. Deus me concedeu
um impedimento que acorrentou minha fala e me impediu de lecionar. Em vão desejei,
pensando em meus alunos, voltar a ensinar, mas minha boca permanecia muda. O silêncio
ao qual estava condenado lançou-me em um profundo desespero; meu estômago se fez
frágil; perdi o apetite; não conseguia engolir um naco de pão ou beber uma gota d’água.

A debilitação de minha força física foi tamanha, que os médicos, desistindo já de curar-me
diziam, ‘O problema está em seu coração e agora já se espalha por todo o organismo; não
há esperança de cura senão por meio da repressão da tristeza que o aflige’.

XXVI
Finalmente, consciente de minha fraqueza e da prostração de minha alma, procurei refúgio
em Deus, como faz um homem a quem faltam todos os recursos. ’Aquele que ouve os
miseráveis quando choram’ (Corão, xxvii, 63) dignou-Se a ouvir-me; Tornou-me fácil
sacrificar as minhas honrarias, riqueza e família. Tornei pública minha intenção de realizar a
peregrinação à Mecca enquanto que secretamente pretendia ir à Síria, sem desejar que o
Califa (que Deus o santifique) ou meus amigos soubessem de minha intenção de
permanecer naquele país. Preparei as mais engenhosas desculpas para sair de Bagdá com a
intenção de para lá não mais retornar. Os Imanes do Iraque me criticaram por minha
decisão. Nenhum deles podia admitir que este sacrifício tivesse uma razão religiosa, pois
consideravam o meu cargo como o mais alto a ser atingido em uma comunidade religiosa.
‘Vejais por quão longe se estendem os seus conhecimentos!’ (Corão, liii, 31). Todo o tipo de
explicação para a minha conduta apresentava-se. Para aqueles que se encontravam fora do
Iraque, atribuíam-na ao medo que o Governo me inspirava. Para aqueles que estavam por
perto e viam como as autoridades forçavam-me a ficar, seu descontentamento ante a
minha resolução e a minha negativa aos apelos, diziam a si mesmos, ‘É uma calamidade que
alguém somente pode imputar a um destino que recaiu aos Fiéis e aos Estudiosos!’.

Finalmente abandonei Bagdá, deixando toda a minha fortuna. Obtive somente, já que as
terras e propriedades no Iraque podiam ser reservadas de uma dotação a ser distribuída
por motivos religiosos, uma autorização legal para preservar o necessário para o sustento
meu e de meus filhos; pois não há nada mais legítimo no mundo do que a possibilidade de
um homem dedicado ao estudo, ter o necessário para prover à sua família. Fui-me então
para a Síria, onde permaneci por dois anos, dedicando-me inteiramente ao retiro, à
meditação e a exercícios de devoção. Pensava somente em minha ascese e disciplina
pessoal além da purificação do coração por meio de orações e das lições de devoção que os
Sufis me haviam ensinado. Costumava viver uma vida solitária na Mesquita de Damasco, e
tinha como hábito passar meus dias no minarete, após cerrar a porta por detrás de mim.

De lá fui-me a Jerusalém, e todos os dias me isolava no Santuário da Rocha (Na Mesquita de


Omar). Depois deste período senti vontade de realizar a Peregrinação, da qual recebi uma
efusão de graça por ocasião de minha visita a Mecca, Medina e ao Mausoléu do Profeta.
Após visitar o santuário do Amigo de Deus (Abraão), fui-me a Hedjaz. Por fim os desejos de
meu coração e as orações de meus filhos me trouxeram de volta ao meu país, apesar de
estar firmemente resolvido a não mais voltar de início para lá. Caso voltasse, viveria uma
vida solitária em meditação religiosa; mas eventos, cuidados da família e vicissitudes
menores mudaram minha resolução e perturbaram minha calma meditativa. Entretanto,
por mais erráticos que fossem os intervalos que dispunha para devotar ao êxtase
contemplativo, ainda assim minha confiança não diminuía; e quanto mais era distraído
pelos obstáculos, mais faminto retornava.

XXVII
Dez anos se passaram desta maneira. Durante os meus sucessivos períodos de meditação
foram-me reveladas coisas impossíveis de narrar. Tudo o que posso dizer para edificar
meus leitores é isto: Aprendi por uma fonte certa que os Sufis são os verdadeiros guias na
trilha que conduz a Deus: que não há nada mais belo que suas vidas, nada mais prazeroso
que a obediência às suas condutas, nada mais puro do que a sua moralidade. A inteligência
dos pensadores, a sabedoria dos filósofos, a sapiência dos maiores doutores da lei seriam
em vão combinadas para modificar ou melhorar as suas doutrinas e a sua moral; seria
impossível. Com os Sufis, repouso e movimento, exterior e interior, são iluminados por uma
luz que provém de uma Radiância Central de Inspiração. E que outra luz poderia melhor
iluminar a face da Terra? Em outras palavras, em que poderia se fazer uma crítica a eles?
Expurgar do coração tudo o que não pertence a Deus é o primeiro passo desse método
catártico. O ordenamento do coração por meio de orações é a pedra fundamental deste
processo, como a exclamação ‘Allahu Akbar’ (Deus é grande) é a pedra fundamental da
oração, onde o último estágio é perder-se em Deus. Digo o último estágio, com referência
ao que pode ser alcançado por esforço ou vontade; mas, para dizer a verdade, ele é
somente o primeiro estágio de uma vida contemplativa, o vestíbulo no qual entra o neófito.

A partir do momento em que se adentram por esse caminho, as revelações iniciam. Eles
passam a enxergar com o estado desperto dos anjos e das almas dos profetas; ouvem vozes
e sábios conselhos. Por meio dessa contemplação das formas e imagens celestiais eles
ascendem gradualmente à alturas que a linguagem humana não pode alcançar, que não se
pode ao menos indicar sem cair em graves e inevitáveis erros. O grau de aproximação com
a Divindade que atingem é considerado por alguns como uma mistura do “ser” (haloud),
por outros como uma “identificação” (ittihad) e por outros como uma “união íntima”
(wasl). Mas todas essas expressões estão erradas, como explicamos em nosso trabalho
intitulado, O Propósito Superior. Para aqueles que chegaram a esse estágio, sugiro que se
limitem a repetir esse verso –

O que experimentei não ouso dizer:

Digam que sou feliz, e nada mais,

Em resumo, aquele que não chegar à intuição dessas verdades por meio do êxtase, conhece
apenas o nome da inspiração. Os minerais (sic?) formados pelos santos são, se fato, as
primeiras formas de manifestação profética. Tal era o estado do Apóstolo de Deus quando,
antes de receber seu encargo, se retirou ao monte Hira para entregar-se com tamanho
fervor e intensidade às orações que os Árabes disseram: ‘Maomé está enamorado de Deus’.

XXVIII
Este estado, então, pode ser revelado ao iniciado no êxtase, e também para aquele que
incapaz de êxtase, por obediência e atenção, em condições encontradas nas comunidades
Sufis, até que chegue a uma iniciação imitativa. Tal é a fé que se pode esperar em seu
convívio, de maneira que a relação com eles nunca é dolorosa.

Mas mesmo quando estamos privados da vida em sua comunidade, podemos compreender
a possibilidade deste estado (revelação por meio do êxtase) por uma cadeia de provas
manifestas. Explicamos isso no tratado intitulado Maravilhas do Coração, que é parte de
nossa obra, A Renascença da Ciência Religiosa. A certeza derivada das provas é chamada de
“conhecimento”; a passagem para o estado que mencionamos é chamado de “transporte”;
acreditar na experiência alheia e na tradição oral é chamado de “fé”. Tais são os três
degraus do conhecimento, como foi escrito, ‘O Senhor elevará a diferentes hierarquias
aqueles dentre vós que acreditastes e aqueles de vós que receberdes o conhecimento
d’Ele. ’ (Corão, lviii, 12).

Atrás daqueles que acreditam, segue uma multidão de ignorantes que negam a realidade
do Sufismo, ouvem discursos sobre ele com uma incrédula ironia e os tratam como
charlatães. À essa massa de ignorantes os versos se aplicam: ‘Há alguns dentre vós que
vireis ouvir-vos, e quando vos deixardes, perguntardes daqueles que receberam o
conhecimento – O que foi que ele acabou de dizer? – Esses são os que Deus selou o coração
com a cegueira e que seguirão suas paixões’.

Dentre as inúmeras convicções que eu devo à prática da regra Sufi, uma é o conhecimento
da verdadeira natureza da inspiração. Tal conhecimento é de tamanha importância que o
explicarei em detalhe.

XXIX
A REALIDADE DA INSPIRAÇÃO: SUA IMPORTÂNCIA PARA A RAÇA HUMANA

A substância do homem no momento de sua criação é a de uma simples mônada,


destituída do conhecimento dos mundos subordinados ao Criador, mundos cujo número
infinito é só do conhecimento d’Ele, como diz o Corão: ‘Somente vosso Senhor sabe o
número de Seus exércitos. ’ O homem alcança o conhecimento com a ajuda de suas
percepções; cada um de seus sentidos é dado a ele para que possa compreender o mundo
das coisas criadas, e pelo termo “mundo” entendemos as diferentes espécies de criaturas.
O primeiro sentido revelado ao homem é o tato, por meio do qual ele percebe um certo
grupo de qualidades – quente, frio, úmido, seco. O sentido do tato não percebe cores e
formas, que são para ele como se não existissem. Em seguida vem o sentido da visão, que o
torna conhecedor das cores e formas, e pode-se dizer que ocupa a mais alta hierarquia no
mundo das sensações. O sentido da audição se segue e logo após os sentidos do olfato e do
paladar.

Quando o ser humano consegue se elevar acima do mundo dos sentidos, por volta dos sete
anos de idade, ele recebe a faculdade da discriminação: ele adentra então em uma nova
fase da existência e pode experimentar, graças a esta faculdade, impressões superiores
àquelas dos sentidos, que não ocorrem na esfera das sensações.

Daí ele passa a uma nova fase e recebe a razão, pela qual ele discerne as coisas necessárias,
possíveis e impossíveis; ou seja, todas as noções que ele não poderia combinar nos estágios
precedentes de sua existência. Mas, além da razão, num nível superior, uma nova
faculdade da visão lhe é conferida, pela qual ele percebe as coisas invisíveis, os segredos do
futuro e outros conceitos tão inacessíveis à razão quanto os conceitos da razão são
inacessíveis à mera discriminação e o que é percebido pela discriminação, aos sentidos.
Assim como o homem possuidor somente da faculdade discriminativa rejeita e negas as
noções adquiridas pela razão, alguns racionalistas rejeitam e negam as noções da
inspiração. Esta é uma prova de sua profunda ignorância; pois, ao invés de argumentar, eles
meramente negam a inspiração como sendo uma esfera desconhecida e possuidora de
alguma existência real. Da mesma forma, um cego de nascença, que não sabe nem pela
experiência ou pela informação o que são as cores e as formas, não sabe ou entende
também quando alguém lhe fala delas pela primeira vez.

Deus, desejando render inteligível ao homem, a idéia de inspiração, deu-lhe um tipo de


vislumbre durante o sono. De fato, o homem percebe ao dormir as coisas do mundo
invisível, sejam elas claramente manifestadas ou ocultadas sob o véu das alegorias para ser

XXX
mais tarde levantado pelo presságio. Se, entretanto, alguém deva dizer a uma pessoa que
nunca tenha experimentado esse tipo de sonho que, em um estado de letargia que se
assemelha a morte no qual o sentido da visão, da audição e das demais faculdades
sensoriais ficam suspensos, um homem pode enxergar as coisas do mundo invisível, essa
pessoa se surpreenderia e procuraria provar a impossibilidade dessas visões por meio de
um argumento como esse: ‘As faculdade sensitivas são as causas da percepção. Agora, se
alguém pode perceber um certo número de coisas quando em plena posse dessas
faculdades, quão impossível seria a sua percepção caso essas faculdades estivessem
suspensas. ’

A falsidade de tal argumento é mostrada pelas evidências e pela experiência. Pois, assim
como a razão constitui uma fase particular na existência na qual os conceitos intelectuais
são percebidos, mesmo que escondidos dos sentidos, similarmente, a inspiração é um
estado equivalente no qual o olho interior descobre, revelados por uma luz celestial,
mistérios além do alcance da razão. As dúvidas levantadas em relação à inspiração se
relacionam (1) com a sua possibilidade, (2) com a sua real e atual existência, (3) com a sua
manifestação nesta ou naquela pessoa.

Provar a impossibilidade da inspiração é provar que ela pertence a uma categoria de um


ramo do conhecimento que não pode ser conseguido pela razão. É o mesmo que se sucede
com a ciência médica e a astronomia. Aquele que as estuda é obrigado a reconhecer que
elas derivam somente pela revelação e por meio de uma graça especial de Deus. Alguns
fenômenos astronômicos somente ocorrem uma vez a cada mil anos; como podemos então
sabê-los por experiência?

Podemos dizer o mesmo da inspiração que é um nos ramos do conhecimento intuitivo.


Mais a frente, a percepção das coisas que estão além do alcance da razão é apenas uma das
características peculiares à inspiração, que possui muitas outras. A característica que
mencionamos é somente, como uma gota de água no oceano, a mencionamos porque as
pessoas experimentam o que é análogo a ela nos sonhos e nas ciências da medicina e da
astronomia. Esses ramos do conhecimento pertencem ao domínio dos milagres proféticos,
e a razão não pode tocá-los.

Quanto às outras características da inspiração, elas são somente reveladas aos adeptos do
Sufismo e em um estado de transporte extático. O pouco que sabemos da natureza da
inspiração devemos à similaridade que encontramos nos sonhos; sem os quais não
poderíamos compreendê-la, e conseqüentemente acreditar nela, pois a convicção advém
da compreensão. O processo de iniciação no Sufismo exibe essa similaridade com o
primeiro. Há nele um tipo de êxtase proporcional à condição da pessoa iniciada, e um grau

XXXI
de certeza e convicção que não pode ser obtida pela razão. Esse fato por si só é suficiente
para nos fazer acreditar na inspiração.

Devemos agora lidar com as dúvidas relativas a inspiração de um profeta em particular. Não
chegaremos a uma certeza nesse ponto, exceto afirmando, seja por evidência oracular ou
pela tradição confiável, os fatos relativos a um profeta específico. Quando afirmamos a real
natureza da inspiração e empreendemos um sério estudo do Corão e das tradições,
devemos então saber com certeza que Maomé é o maior dos profetas. Em seguida
devemos fortalecer nossa convicção verificando a verdade nas pregações e o efeito salutar
que é produzido na alma. Verificaremos por experiência, a verdade em sentenças como:
‘Aquele que ordena sua conduta de acordo com Seu conhecimento, recebe de Deus mais
conhecimento’ ou ‘Deus entrega ao opressor aquele que favorece a injustiça; ou então,
‘Quem quer que acorde pela manhã tendo apenas a ansiedade de satisfazer a Deus, Deus o
preservará de toda a ansiedade deste mundo e do próximo. ’

Quando verificamos esses ditos na experiência, milhares de vezes, estamos na posse de


uma certeza que a dúvida não pode perturbar. Tal é o caminho que devemos trilhar para
realizarmos a verdade da inspiração. Não é uma questão de se descobrir se um cajado foi
ou não transformado em uma serpente, ou se a lua foi dividida em duas. Se olharmos os
milagres isoladamente, sem suas incontáveis circunstâncias subordinadas, estaremos
sujeitos a confundi-los com a magia ou com o charlatanismo, ou então como uma forma de
transviamento dos homens, como foi escrito, ‘Deus desencaminha e dirige conforme Sua
escolha’ (Corão, xxxv, 9); Acharemo-nos envolvidos em todo tipo de dificuldades que são
levantadas pela questão dos milagres. Se, por exemplo, acreditamos que a eloqüência de
estilo é uma prova de inspiração, é possível que um estilo eloqüente composto com esse
objetivo possa nos inspirar com uma falsa crença na inspiração daquele que o detem. O
sobrenatural deve ser apenas um dos constituintes que derivam de nossas crenças, sem
que coloquemos muita ênfase neste ou naquele detalhe. Devemos nos assemelhar a uma
pessoa que, aprendendo um fato de um grupo de pessoas, não possa apontar este ou
aquele como o seu informante, e que, sem distinguir entre eles, não saiba exatamente
explicar como que sua convicção com respeito aquele fato foi formada.

Essas são as características da certeza científica. Quanto ao transporte que permite aos
homens verem a verdade e, por assim dizer, manejá-la, esta cabe somente aos Sufis. O que
acabo de dizer sobre a verdadeira natureza da inspiração é suficiente para o objetivo ao
qual me propus. Posso retornar ao tema, caso se faça necessário.

Passarei agora às causas da corrupção da fé e mostrarei os meios de trazer de volta aqueles


que erraram, preservando-os dos perigos que os ameaçam. Para aqueles que duvidam por

XXXII
estarem manchados pela doutrina dos Ta’limites, meu tratado intitulado O Equilíbrio Justo
é guia suficiente; portanto é-me desnecessário voltar ao tema aqui.

Quanto às vãs teorias dos Ibadat, eu as dividi em sete classes, e as expliquei no trabalho
intitulado Alquimia da Felicidade. Para aqueles cuja fé foi minada pela filosofia, enquanto
negam a realidade da inspiração, nós provamos a sua verdade e necessidade, procurando
nossas provas nas propriedades ocultas da medicina e nos corpos celestes. É para eles que
escrevi esse tratado, e a razão para a nossa busca de provas nas ciências da medicina e na
astronomia é porque tais ciências pertencem ao domínio da filosofia. Todos estes ramos do
conhecimento que nossos oponentes ostentam – astronomia, medicina, física e
adivinhações – nos proporcionaram argumentos em favor do Profeta.

Para aqueles que, professando oralmente uma crença nos Profeta, adulteram a religião
com a filosofia, eles realmente negam a inspiração, já que sua opinião do Profeta é a de
uma saga na qual um destino superior o apontou para guiar os homens, e esse ponto de
vista acaba por afirmar a verdadeira natureza da inspiração. Acreditar no profeta é admitir
que haja, por cima da inteligência, uma esfera na qual são reveladas à visão interior,
verdades além do domínio da inteligência, assim como as coisas vistas não são apreendidas
pela audição, ou entendidas por aquelas por aquelas do tato. Se nosso opositor negar a
existência de tal região excelsa, podemos provar a ele, não apenas a sua possibilidade, mas
sua atualidade. Se, pelo contrário, ele admitir sua existência, ele reconhece que ao mesmo
tempo em que há nesta esfera coisas que a razão não abarca; não somente isso, mas até,
coisas que a razão rejeita como falsas e absurdas. Suponhamos por exemplo, que se o fato
dos sonhos ocorrerem durante o sono, não fosse tão comum ou notório como o é, nossos
homens sábios não se furtariam em repudiar a asserção que os segredos do mundo invisível
podem ser revelados enquanto os sentidos estiverem, por assim dizer, suspensos.

Novamente, se acaso se dissesse a algum deles, ‘É possível que haja no mundo algo tão
diminuto quanto um grão de areia, que, sendo carregado a uma cidade poderia destruí-la e
mais tarde destruir a si mesmo a ponto de não deixar vestígios seus na cidade ou si
próprio?’ ‘Certamente’ diriam, ‘Tal coisa é impossível e ridícula’. Tal coisa é, entretanto o
efeito do fogo, que com certeza seria contestado por alguém que nunca o houvesse visto
com seus próprios olhos. Agora, a recusa em crer nos mistério da outra vida é da mesma
categoria.

Quanto à quarta causa da difusão da descrença – a corrupção da fé devida ao mau exemplo


estabelecido pelos homens letrados – há três maneiras de identificá-la.

(1) Alguém pode responder o seguinte: ‘Os homens letrados que acusa de desobedecer a lei
divina, sabem que desobedecem, como você também sabe quando bebe vinho ou quando
cobra juros ou quando maldiz, mentindo ou caluniando. Sabe o seu pecado e se inclina a

XXXIII
ele, não pela ignorância, mas porque é mestre na concupiscência. Assim se dá com os
homens letrados. Quantos acreditam em médicos que não se abstém de frutas e água fria
quando são esses mesmos médicos que as proíbem! Isso não prova que essas coisas não
sejam perigosas, ou que sua crença no médico não esteja fortemente fundada. Erros
similares por parte dos homens letrados devem ser imputados somente às suas fraquezas’

(2) Ou então se pode dizer a um homem simplório e ignorante: ‘O homem letrado supõe
que seu conhecimento seja um viático para sua próxima vida. Ele acredita que tal
conhecimento o salvará e contará a seu favor, e que sua superioridade intelectual o
garantirá indulgências; por último, se seu conhecimento aumenta a sua responsabilidade,
deve também autorizá-lo a dispor de um grau maior de consideração. Tudo isso é possível;
e mesmo que o homem letrado tenha negligenciado sua prática, ele pode a qualquer
momento dispor de provas de seu conhecimento. Mas você, pobre néscio, se, como ele,
negligenciar-se a agir, destituído que é de conhecimento, morrerá sem nada a pleitear em
seu favor. ’

(3) Pode-se pelo contrário, responder verdadeiramente: ‘O verdadeiro homem letrado


somente peca pelo descuido, e não permanece em um estado de impenitência. Pois o
verdadeiro conhecimento revela que o pecado é um veneno mortal, e o outro mundo como
superior a este. Convencido dessa verdade, o homem não deveria trocar o que é precioso
pelo vil. Mas o conhecimento do qual falamos não é derivado de fontes acessíveis à
diligência humana, e é por essa razão que o progresso no mero conhecimento mundano
torna o pecador mais enrijecido em sua revolta contra Deus.

O verdadeiro conhecimento, pelo contrário, inspira naquele que o segue, mais temor e
mais reverência, além de erguer uma barreira de defesa entre ele e o pecado. Ele poderá
deslizar e tropeçar, é verdade, como é inevitável para alguém limitado pela fragilidade
humana, mas esses deslizes e tropeços não enfraquecerão sua fé. O verdadeiro
mussulmano sucumbe ocasionalmente à tentação, mas se arrepende e não perseverará
obstinadamente na trilha do erro.

Rogo a Deus Onipotente que nos elenque nas fileiras dos Seus escolhidos, entre os
inumeráveis homens que Ele dirige por trilhas seguras, nos quais ele inspira fervor, a fim de
que não O esqueçam; entre aqueles que Ele purifica de todo a corrupção, até que nada
reste neles exceto a Sua pessoa; sim, entre aqueles nos quais Ele habita inteiramente, e que
adorem a ninguém mais exceto Ele.

XXXIV

Você também pode gostar