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A ARTE DE RESISTIR: UMA REFLEXÃO SOBRE A RESISTÊNCIA

PRESENTE NO QUILOMBO DE PALMARES

Resumo:

Este artigo se debruçará sobre o conceito de Vontade Livre através do quilombismo descrito
por Abdias do Nascimento, como oposição a Servidão Voluntária e a colonização do negro
presente na resistência quilombola do Quilombo de Palmares. Para tal, examinará o filme
Ganga Zumba do cineasta brasileiro Cacá Diegues de 1964, enquanto o florescer desta
aspiração à liberdade que é manifestada por meio da resistência quilombola. Terá como plano
de reflexão teórica as obras: O Discurso da Servidão Voluntária1do filósofo francês Étienne
de La Boétie, Os Condenados da Terra2do filósofo francês Frantz Fanon e o Quilombismo3,
do artista brasileiro Abdias do Nascimento. Em suma, o artigo se lançará mais sobre as
questões levantadas por La Boétie na sua obra sobre o “como” da servidão, e a partir disso
mostrar como a resistência quilombola é uma forma, das mais elevadas, de se resistir a
Servidão Voluntária.

1. Introdução

No seu abecedário, Deleuze, sobre a letra “R” de resistência diz: “Criar é resistir”, ou
parafraseando-o, resistir é criar. É justamente isso que vemos do começo ao fim no filme
Ganga Zumba. Observamos como são feitas várias formas de resistências através da criação; a
dança, a música, a cultura. E dentre uma dessas formas de criação temos as tribos
quilombolas, surgidas a partir de escravos que fugiam da plantação, ou melhor, compostas por
seres que ensejaram pela Liberdade acima de qualquer coisa.
O quilombo de Palmares, cujo presente artigo se delimitará, é um dos quilombos mais
conhecidos, e serviu de referencial para outras tribos quilombolas do Brasil, simplesmente,
pelo seu poder de guerrilha e por seu poder de resistência. No filme Ganga Zumba Cacá
Diegues, explora muito bem isso mostrando como o Quilombo de Palmares – localizado na
Serra da Barriga, Capitania hereditária de Pernambuco, hoje Alagoas - era bem organizado e

1
LA BOETIE, Etienne de; CLASTRES, Pierre; LEFORT, Claude; CHAUÍ, Marilena de Sousa. Discurso da
servidão voluntária. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Elogio da filosofia).
2
FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
3
NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africana. 2ª ed. (Brasília/ Rio:
Fundação Cultural Palmares/ OR Editora, 2002).
estratégico, pois ao escolher lugares, como uma Serra, dificultava a caça dos capitães do mato
em busca dos negros escravizados que fugiam. No filme encontramos várias expressões de
resistência, como a capoeira sendo executada no escuro – assim tomando características do
“invisível” e perigoso, e principalmente a música. No entanto, uma das coisas que fica mais
nítida no filme é a Vontade de Liberdade dos negros escravizados em se libertarem da
escravidão, mesmo não sendo Voluntária, mas que por sua violência simbólica e física,
acabava por torná-los black of house.4.
Os Quilombos representam uma das maiores expressões de luta no Brasil, em
resistência ao sistema colonial-escravista, atuando sobre questões estruturais, em diferentes
momentos histórico-culturais do país, sob a inspiração, liderança e orientação político-
ideológica de africanos escravizados e de seus descendentes de africanos nascidos no Brasil.
O processo de colonização e escravidão no Brasil durou mais de 300 anos. O Brasil foi o
último país do mundo a abolir a escravidão, através de uma lei que atirou os ex-escravizados
numa sociedade na qual estes não tinham condições mínimas de sobrevivência.
Ganga Zumba cujo nome é Antão, um jovem escravizado concebido nos porões do
navio negreiro que trouxe sua mãe cativa para a colônia portuguesa do Brasil, tenta, por uma
espécie de amor-fati - por histórias que contavam que sua mãe, já falecida, era rainha e que
ele estava destinado a ser Ganga Zumba, rei africano - realizar sua sina fugindo para o tão
almejado quilombo de palmares. Mas tal ensejo só lhe é inflamado por causa de um escravo
veterano e sábio Sororoba que lhe contava sobre Palmares, um reino livre escondido na serra
e protegido pelo orixá Oxossi, formado por escravos fugitivos. O rei daquele lugar, Zambi,
que está em guerra constante contra os brancos, acabara de perder o filho e agora quer que
Ganga Zumba venha para ocupar o lugar de novo líder. A partir disso todo o trama começa. O
interessante de se ressaltar são os deslocamentos, ou expressões, como de arte e amor que se
tramam nesse jogo de resistência. No próprio filme vemos Antão correndo atrás de Ciprina,
no meio da plantação, fazendo digressões dançantes com o corpo, simulando quase uma
ginga, um corpo-música, para depois caírem no riso e nos entrelaçamentos dos corpos.
Através disso presenciamos até mesmo o amor como livre, esse amor que se corre e se revela
em passos cortantes da servidão.

4
Isto é, preto da casa. Black of house é um termo cunhado por Malcon X na sua Mensagem a Grass Roots em 10
de novembro de 1963 no decorrer do Northern Negro Grass Roots LeadershipConference, na Igreja Batista Rei
Salomão de Detroit, Michigan, para falar sobre os negros que preferem se submeter a escravidão do que
experimentarem a liberdade. Neste caso cito, como se o Black of house fosse uma consequência da servidão em
transição para a servidão voluntária.
Cacá Diegues traz uma gama de possibilidades para se pensar essa Vontade de
Liberdade, ou até mesmo Vontade de pode5, por meio dessas expressões, tanto da arte como
do livre gozo e livre exame, que os negros escravizados traziam consigo como natural. Em
uma cena do filme enxergamos, quase que por meio de sombras, a copeira se manifestando.
Expressando-se como silenciosa algo quase “invisível” e inaudível. Aparecem-nos ali as
primeiras impressões da arte, nesse caso dança-luta, que se observa no filme Besouro do
cineasta Daniel Tikhomiroff de 2009, como resistência e afirmação de uma vida, de um povo,
que conserva sua cultura e faz dela uma luta contra a servidão.
“Lutar, tem é que lutar, pois se não fosse difícil não estaríamos lutando. Tem muito
homem que nem a gente que não quer ser bicho”, essa é a frase que é proferida no final do
filme e que sintetiza a Vontade de liberdade, ou em outras palavras, a resistência como
esmagadora da servidão voluntária. Assim, esse artigo começara por descrever a servidão
voluntária como força e ilusão que subjuga, e por meio disso pensará a relação entre Vontade
de liberdade como conscientização e por fim o Quilombismo: vontade livre como resistência.

2. A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Onde houve escravidão, houve resistência. Étienne La Boétie (1982) diz: “Todas as
coisas que tem sentimento, assim que os têm, sentem o mal da sujeição e procuram por
liberdade”, isto é, de outro modo, àquilo que foi descrito acima. Os negros que fugiam e que,
por conseguinte, formaram os quilombos, eram seres, em sua maioria, que nunca haviam
esquecido o sabor da liberdade, que nunca deixaram de escutar os animais que, assim como
eles, clamam pelo que é livre. No Discurso da servidão voluntária, La Boétie, quer entender o
“como” desse vício tão monstruoso que subjugou povos inteiros, milhares, apenas a um -
pode-se compreender esse “um” como o sistema escravocrata praticado pelos brancos-,
discorre Étienne;
“Por hora gostaria de apenas entender como pode ser que tantos homens, tantos
burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem
apenas o poderio que lhes dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto
têm vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum senão quanto
preferem tolerá-lo a contradizê-lo.” ( LA BOÉTIE, Étienne. 1982, p.12).

5
Penso a vontade de poder nietzschiana como afirmação da vida enquanto tal, e por isso esta relação com a
vontade de liberdade. Como descreve Nietzsche pelo Zaratustra: ‘Vontade – eis o nome do libertador e
mensageiro da alegria: assim vos ensinei eu, meus amigos’ (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra (2008),Da
Redenção.).
Deste modo pode-se pensar a preocupação do filósofo francês com a Liberdade e como os
homens abdicaram dela em prol de uma servidão que não é nem obrigatória, nem a força, nem
por violência, mas voluntária. O interessante dessa reflexão de La Boétie é a ligação que tem
com a escravidão, pois quando os colonizadores chegaram ao Brasil, homens de vontade de
servidão, deparam-se com seres livres, “sem fé, sem lei, sem rei.” Seres que viviam a natureza
e eram livres por natureza.“ Os bichos, se os homens não se fizerem de surdos, gritam lhes:
Viva a Liberdade”6 , e foi isso que os colonizadores não fizerem, já que se “fizeram” de
surdos para não ouvir o grito da liberdade.
Tais seres que foram subjugados, ou melhor, docilizados, como percebemos
perfeitamente no filme O Descobrimento do Brasil de Humberto Mauro, na cena em que os
indígenas estão no barco dos portugueses e que nesse encontro os portugueses tratam-nos com
regalias, até mesmo cobrindo-os com um manto para não sentirem frio, isto é, todo o cenário
da construção dos mitos fundadores do Brasil, como discorre Marilena Chauí (2001);

“No período da conquista e colonização da América e do Brasil surgem os principais


elementos para a construção de um mito fundador. O primeiro constituinte é, para
usarmos a clássica expressão de Sérgio Buarque de Holanda, a ‘visão do paraíso’, e
o que chamaremos aqui de elaboração mítica do símbolo “Oriente”. O segundo é
oferecido, de um lado, pela história teológica providencial, elaborada pela ortodoxia
teológica cristã, e, de outro, pela história profética e herética cristã, ou seja, o
milenarismo de Joaquim de Fiori. O terceiro é proveniente da elaboração jurídico-
teocêntrica da figura do governante como rei pela graça de Deus,a partir da teoria
medieval do direito natural objetivo e do direito natural subjetivo e de sua
interpretação pelos teólogos e juristas de Coimbra para os fundamentos das
monarquias absolutas ibéricas.”.

De outra forma, esses três elementos são nomeados, após esse parágrafo, como sendo o
primeiro; sagração da natureza, o segundo; sagração da história e o terceiro; sagração do
governante. A filósofa expõe elementos que serão base para pensar o “como” da manutenção
do racismo, ou o “como” do mito da democracia racial, e da continuação da servidão
voluntária brasileira, que tanto caracterizam tais mitos não como vícios, a qual La Boétie

6
LA BOETIE, Etienne de; CLASTRES, Pierre; LEFORT, Claude; CHAUÍ, Marilena de Sousa. Discurso da
servidão voluntária. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.p. 18.

descreve, mas sim como a identidade da nação. Por isso o título da obra; Brasil: mito
fundador e sociedade autoritária.
Mesmo diante dessa violência como jugo, ou dessa construção mitológica do Brasil
por cima dos indígenas e de suas terras, de seus próprios corpos e tribos, como bem se sabe,
os indígenas resistiram fortemente à servidão, que claro, não foi voluntária, pois os
colonizadores utilizaram-se da força, da violência, para subjugar os nativos, já que eles
tinham dentro de si o anseio potente pela liberdade - algo incontrolável. Utilizaram-se dos
meio simbólicos e coisificadores, como Aimé Césaire descreve;

“Entre o colonizador e o colonizado, só há lugar para o trabalho forçado, a


intimidação, a pressão, a política, o imposto, o roubo, a violação, as culturas
obrigatórias, o desprezo, a desconfiança, a arrogância, a suficiência, a grosseria, as
elites descerebradas, as massas aviltadas. Nenhum contato humano, mas relação de
dominação e de submissão que transformam o homem colonizado em criado,
ajudante, comitre, chicote e o homem indígena em instrumento de produção. É a
minha vez de enunciar uma equação: colonização = coisificação.” (CÉSAIRE,
Aimé. Discurso sobre o colonialismo, 1978. p. 26).

Essa descrição feita pelo poeta sobre o processo de colonização ou mesmo o título da obra,
Discurso sobre o colonialismo, que tanto em nome quanto em reflexão se assemelha com o
Discurso sobre a servidão voluntária de Étienne- os dois também franceses -, é de total
relevância para entender um problema que La Boétie já colocara em questão no século XVI;
esse “como” da servidão voluntária – do colonialismo. No entanto, à luz da obra de La Boétie,
podemos discorrer que essa Servidão Voluntária que se dá nos colonizadores e que se põe aos
colonizados, é fortemente resistida por todos aqueles que sofreram seus grilhões. A Vontade
da Liberdade ou os anseios por voltar ao estado em que se eram livres e em que a liberdade
era a virtude a qual todos se deleitavam, é o ponto nevrálgico para compreender a resistência.
E constamos que isso é o que acontece com os africanos que foram escravizados, subjugados
a Vontade de Servir, a esse vício que desgraça toda vontade de liberdade, ou como enuncia La
Boétie: “Em todos os lugares e em todos os ares, amargo é a sujeição e aprazível a
liberdade”7. O filósofo já prediz algo que a todos é hediondo e vil, a Servidão.
Contudo, fica-nos uma indagação; como se daria esse “como” da servidão? La Boétie
nos apresenta duas formas em que a servidão se realizaria, estas são; pela força e pela ilusão.
Estes seriam os poderes pelos quais a servidão se efetivaria neste como, ou em suas palavras:

7
Ibidem.
“Mas certamente para que todos os homens, enquanto homens deixem-se sujeitar, é preciso
um dos dois: que sejam forçados ou iludidos”. 8 Um povo quando se sujeita cai de repente no
esquecimento e acaba por chegar a dizer que não perderam a sua liberdade, mas sim,
ganharam sua servidão.
No processo de colonização das Américas, os indígenas foram subjugados pela força
e, simultaneamente, pela ilusão em forma de escambo, para, por conseguinte, se instaurar o
hábito da servidão - está já sendo a segunda natureza do homem ocidental. Mesmo com este
hábito, e a ilusão contínua dos povos autóctones, os indígenas se rebelaram. Elaboraram
várias formas de negar e deixar esse monstruoso vício não os corromper. Diante de tal
problemática que os colonizadores acabam por enfrentar, surge, em meio dessa decadência
mercantil, o sistema de escravatura. Que da mesma maneira se instaura, mas dessa vez quase
inexistente o poder da ilusão, apenas com o poder da força. Frantz Fanon, no seu livro Os
Condenados da Terra (1979), expõe: “O colonialismo não é uma máquina de pensar, não é
um corpo dotado de razão. É a violência em estado bruto e só pode sucumbir diante de uma
violência maior”, isto é, através da resistência como expressão da vontade de poder de um
povo que foi subjugado por meio da violência do colonizador.
Os negros escravizados, com seu corpo (cultura) sendo dilacerado (a) ensejavam
vingança, vingança esta que só se efetivaria na própria organização quilombola como
quilombo de guerrilha. É de uma necessidade de assegurar sua existência biocultural, que o
quilombo de palmares se ergue. Os quilombos resultaram dessa exigência vital dos africanos
escravizados, no esforço de resgatar sua liberdade e dignidade através da fuga ao cativeiro da
organização de uma sociedade livre. Uma boca que rasgou a máscara que silenciava sua voz e
o impedia de se alimentar de sua cultura e de fortalecê-la. A máscara das plantações era isso, a
repressão em cima do corpo negro para colonizá-lo, prendê-lo, docilizá-lo. Uma disciplina
que por meio da força submetia uma verdade, um saber-poder, simplesmente para “produzir a
verdade para poder produzir riquezas”9 . Os corpos negros (as) eram a mercadoria do
sistema escravista que produzia mais mercadoria. E a verdade? Ora, a verdade se delimitava
por discursos que dissertavam sobre os negros (as) serem seres inferiores, sem alma e sem
logos. Eram inúmeros os saberes que corroboravam isso. Da ciência à arte, da arte à religião -
principalmente. Houve locais e casos que mesmo após a escravidão tais atrocidades

8
LA BOETIE, Etienne de; CLASTRES, Pierre; LEFORT, Claude; CHAUÍ, Marilena de Sousa. Discurso da
servidão voluntária. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 20.
9
FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. p. 102..
continuavam a se propagar, como por exemplo, a Vênus Hotentote. 10 Uma mulher negra que
era exposta em circos como atração exótica.
Em suma, a opressão sobre os negros se estabeleceu sobre várias formas e em todo o
ocidente, todavia, em todo lugar que houve esta opressão houve resistência, e esta acontecia a
partir da consciência da liberdade, ou como modernamente se chama; por meio da negritude -
termo cunhado por Aimé Césaire - e, concomitantemente, pela resposta a violência pela
violência do oprimido.

2.1. A VONTADE DE LIBERDADE COMO CONSCIENTIZAÇÃO

Quando nos deparamos diante de filmes como este, Ganga Zumba, uma multiplicidade
de experimentações artísticas e filosóficas nos vêm à mente. A trilha sonora de Moacir
Santos, com seu álbum Ouro Negro, nos passa a sensação que Nietzsche discorre como sendo
o espírito dionisíaco presente na música, isto é, nos deslocando do mundo apolíneo e fazendo-
nos emergir num mundo dionisíaco em que “o véu de Maia é aniquilado e há uma
despreocupação com o indivíduo” 11, nos colocando assim numa aniquilação do indivíduo e
na sua dissolução libertadora por um sentimento de identificação mística. Sentimos essas
latências em vários instantes do filme, mas, todavia, no começo do filme ela ocorre de forma
embevecida, pois somos colocados diante de uma cena em que o sentimento trágico através
do coro; ‘chora mamãe, chora papai’, nos faz romper com o véu de maia. Este canto nos eleva
a um patamar que promove uma ruptura com o indivíduo e o sentimento de fraternidade, ou
comunidade, se torna o único sentimento que ocupa todos os espaços dos nossos ouvidos
anímicos.
No preâmbulo do filme já nos é dada, sutilmente, a vontade de liberdade que
perpassará todo o filme e a apetece do personagem Antão durante a trama. Na plantação
testemunhamos a cena em que um negro escravizado, com ajuda dos outros com quem
compartilha a labuta, foge. Correndo desesperadamente e a olhar ansiosamente para trás,
tentando enxergar, com esperança que não haja algum tiranete que poderia estar a lhe seguir.
Nesse instante, tão instantâneo, se denota que a fuga - aspiração pela liberdade - era algo
planejado, combinado, e almejado continuamente através de estratagemas que os próprios
negros faziam entre si. Vejo estes estratagemas como um modo de expressão daquilo que La

10
Qureshi, Sadiah (2004), 'Displaying Sara Baartman, the 'Hottentot Venus', History of Science 42:233-257.
11
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia, ou, Helenismo e pessimismo. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 1992.  p. 35.
Boétie expressa no final do discurso e que a filósofa Marilena Chauí sintetiza com maestria; a
amizade como recusa da servidão. Os africanos (as) escravizados (as) viam a liberdade como
algo natural, algo já de sua essência, pois eram livres em sua terra, no entanto, com a
colonização e seu sistema escravocrata isso lhes foi retirado. Mesmo com essa privação e essa
servidão por meio da força ainda acreditavam numa coisa que Étiene (1982) também
compartilha:

“Mas, por certo se há algo claro e notório na natureza ao qual não se pode ser cego é
que a natureza, ministra de deus e governante dos homens, fez-nos todos da mesma
forma e, ao que parece, na mesma fôrma, para que nos entreconhecêssemos todos
como companheiros, ou melhor, como irmãos.”

Aí está, em La Boétie, o que na resistência quilombola se assentia totalmente como


verdadeiro. Tanto em sua religião quanto em sua filosofia, os negros (as) escravizados (as)
reconheciam a liberdade como sendo o próprio princípio da natureza. Todos somos irmãos,
pois viemos do mesmo leito, da mesma camada de terra, ou como no mito ioruba; tínhamos
sido cozidos e concebidos através do mesmo forno, uns mais escuros e outros mais claros,
contudo, da mesma forma - como descreve José Beniste no seu livro Mitos Yorubás: o outro
lado do conhecimento (2006).
O que se pode ver nesse processo de resistência quilombola é que ela acontece por
meio de um fenômeno tão enaltecido no iluminismo e que posteriormente Marx irá conceber
como uma das formas de se obter a emancipação, isto é, a conscientização. Em algumas cenas
do filme podemos observar nos momentos em que Sororoba fala constantemente sobre o
quilombo de palmares - mesmo sem nunca ter ido lá - a palavra liberdade, e esta palavra nos
momentos de sua fala são sempre ditas com um tom de voz quase que “iluminado”, um êxtase
ao falar sobre esse lugar onde todos são livres e convivem como irmãos na luta contra o
homem branco. Sororoba é quem desperta em Antão o desejo por ir até palmares, pois o
mesmo fora conjugado a ser rei de palmares, já que Zambi estava prestes a morrer. Enxergo
essa fala de Sororoba sobre palmares como uma manifestação de conscientização do homem
negro diante da sua condição de escravo – black with12. 

12
Preto do campo, isto é, livre (conscientizado). Que não se reconhece enquanto escravo, mas sim como homem
livre e se for possível queimará tudo o que for do colonizador. Termo concebido por Malcon X na Mensagem a
Grass Roots em 10 de novembro de 1963 no decorrer do Northern Negro Grass Roots LeadershipConference, na
Igreja Batista Rei Salomão de Detroit, Michigan.
Em contribuição com o que foi discorrido penso com Frantz Fanon sobre a
conscientização, que tal ocorre quando o colonizado descobre “que sua vida, sua respiração,
as pulsações de seu coração são as mesma do colono”13, ou seja, quando ele se vê no mesmo
parâmetro que o colonizador ele não se intimida mais, não abaixa mais a cabeça, não se retrai
mais, pois; se sua vida tem o mesmo peso que a do colono, ele já está pronto para lhe preparar
emboscadas que dentro de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga. Observamos
algo semelhante na cena em que Ganga Zumba mata um capitão do mato, ele o enfrenta como
nunca o havia feitos antes, pois o capitão do mato é, para ele, naquele instante apenas um
homem frágil e no momento desarmado, em outras palavras, a consciência da liberdade a
partir do outro.
Essa cena em que presenciamos a violência não mais cometida pelo colonizador, mas
sim pelo colonizado, está presente aquilo que Frantz Fanon chama de “tensão muscular do
colonizado”; “a tensão muscular do colonizado libera-se periodicamente em explosões
sanguíneas, lutas tribais, lutas de sobas, lutas entre indivíduos” 14, de outro modo, ela surge a
partir do ambiente de opressão, de repressão. O colono aumenta a cólera do colonizado, o
repreende de formas tão abusivas - assim como testemunhamos no prelúdio do filme com um
escravo, praticamente morto, no tronco -, que brota dentro do colonizado uma libido familiar
de grupo ainda mais forte, isto é, quanto maior for a repressão maior será a resistência contra
ela. Na estrutura escravista o recalque é tão grande que Fanon (1979) exprimi: “No mundo
colonial a afetividade do colonizado se mantém a flor da pele como uma chaga viva que evita
o agente cáustico. E o psiquismo retraí-se, oblitera-se, despeja-se demonstrações musculares
que levam os eruditos a dizer que o colonizado é histérico”, isto é, o colono, além de oprimir
ao extremo, ainda, por meio das manifestações de repúdio dos colonizados diante da violência
sofrida, estigmatiza o colonizado como um animal irracional. Reduzindo-o cada vez mais a
essa condição selvagem.
No entanto, intuo, junto com Montaigne, que os colonizadores sobrepassam em
barbárie os colonos; “Podemos, pois, achá-los bárbaros em relação às regras da razão, mas
não a nós, que os sobrepassamos em toda a espécie de barbárie.”15 Sua violência viola todas
as leis da natureza, pois já nascem com o jugo no pescoço. Já florescem no costume da
servidão, condicionados ad aeternum a se maldizerem sem fazerem nada para mudar a
situação, a não ser, senão, subjugar outros povos ao seu vício tão monstruoso que nem de

13
FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 33
14
FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 40.
15
https://fabiomesquita.files.wordpress.com/2015/04/montaigne-michel-de-dos-canibais-ensaios.pdf. p. 4.
covardia pode-se nomear - em contraste com La Boétie. Para os negros (as) escravizados (as)
não há outra possibilidade para se livrar deste jugo se não for pela violência contra esse vício,
e que só é possível por causa da conscientização, que só é despertada por meio da
resistência/cultura enquanto autoafirmação de si e de sua ancestralidade.
Ainda com Fanon, podemos nos questionar então o que seria essa violência, como ele
mesmo se faz; ‘Que é então, na realidade, esta violência?’16, e que, por conseguinte
responde; “Como vimos, é a intuição que têm as massas de que sua libertação deve efetuar-
se, só pode efetivar-se, pela força”17. Contra a servidão voluntária, contra o colono, só se
pode lutar pelos poderes da união (amizade) e da força (resistência). A violência seria então
esse despertar que flui dentro do colonizado, ou no caso, do negro (a) escravizado (a). A fuga
feita pelos (as) negros (as) para palmares, não é uma fuga em sentido literal, a fuga; é a
libertação das mãos do colonizador para, posteriormente, o destruir. Assim como o regime
colonial se legitima pela força, o do quilombola se legitima pela força entendida como
resistência, na proporção da violência sofrida, isto é, “o desdobramento da violência no seio
do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo regime colonial
contestado”18. 
Mas, todavia, o colonizador não se renderá facilmente a essa resistência, seu trabalho
de tornar impossíveis os sonhos de libertação do colonizado, se realizará por diversas formas
de dispositivos de poder, isto é, os passatempos, as forças de ilusões que Étienne descreve
como sendo um dos poderes pelos quais a servidão se esgueira. Se a violência está fazendo-os
fugir, resistir, se rebelar, utilizam-se outros dispositivos, os divertimentos - panem et
circenses. Que cena cinematográfica demonstraria isso melhor do que na cena, do filme
Ganga Zumba, em que o senhor, percebendo, que os escravos estão fugindo, dá um dia de
“folga” para os negros (as) escravizados (as), tentando, por meio dessa demonstração
docilizá-los por intermédio de uma imagem de “bom senhor”. Contudo, mesmo diante de tais
“divertimentos” ainda estão lá; Sororoba e Antão, combinando como se dará a fuga, isto é,
mesmo com suas formas de docilização, o tirano (colonizador), ainda não consegue tirar esse
anseio de liberdade dentro desses seres. “Mas por quê? Por que não consegue? Ele não dá
tudo o que eles queriam; dançar, cantar, beber? O senhor pede até para trazer mais escravas. E
mesmo assim esses indivíduos não cedem não se submetem. Que seria isso tão latente dentro
deles, que diante de tanta opressão, de forças de todos os tipos, não se submetem?” Estas eram

16
FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 56.
17
Ibidem.
18
FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 69.
as minhas indagações diante dessa cena que foi descrita. Ora, a única resposta é; a vontade de
liberdade. A vontade de liberdade é tão veemente quanto qualquer vontade de servidão,
prová-la é nunca mais desejar algo que não seja tal. Uma vontade que pode ser entendida até
mesmo como vontade de poder, uma vontade que cria, que transvalora valores. O quilombo é
um transvalorador de valores. Nega todo jugo branco na resistência de sua cultura como
afirmação de liberdade de seu querer, eis aí ele - o querer, “Querer libertar: eis a verdadeira
doutrina da vontade e da liberdade”19, esse é o querer que se torna em poder dentro dos
quilombolas.
A partir das objeções levantas acima sobre a violência, pode-se concluir junto com
Fanon (1979), que: “a práxis da violência é positiva, formadora, totalizante, para o
colonizado, visto que cada um se transforma em elo violento da grande cadeia, de um
organismo surgido como reação à violência primordial do colonialista”, ou seja, que não
todos unidos, mas todos uns, por meio da violência como resistência e criadora de novos
valores, que se pode combater o tirano e seu vício. A conscientização do negro (a)
escravizado (a) só ocorre em consonância com a vontade de liberdade, pois é ela que abre os
seus olhos para sua condição, para sua capacidade de emancipação das rédeas da servidão e o
coloca em movimento, e esta só se realiza pelo choque de percepções, isto é, do encontro com
outro, seja ele o outro que compartilha seu sofrer ou o outro que o escraviza. O outro que
compartilha seu sofrer irá lhe fortalecer, estimulá-lo cada vez mais no combate - como
Sororoba fez com Ganga Zumba, que mesmo no momento em que Sororoba achava que ia
morrer, ele não abandonou - e outro que o escraviza, por meio de sua violência, aumentará
mais ainda seu “armamento” de resistência. Nessa simbiose, vemos nascer o quilombismo;
necessidade efetiva que surge como alternativa de seres que visavam à liberdade, não como
um ideal, mas como uma práxis contínua da vivência em fraternidade e comunhão.

3. O QUILOMBISMO: A VONTADE LIVRE COMO RESISTÊNCIA

Quilombismo é um termo cunhado pelo artista brasileiro Abdias do Nascimento.


Encontramos esse termo como título de um dos seus livros mais conhecidos, O quilombismo:
documentos de uma militância pan-africanista, livro este publicado em pleno decorrer da
Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), simultaneamente, temos também dois filmes do
cineasta Cacá Diegues lançados na ditadura, um é o que estamos analisando, lançado em 1964

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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008. p. 150.
e o outro é o Quilombo em 1984. Duas formas de expressões artísticas manifestando a mesma
coisa, por meios diferentes; a resistência. Irônico pensar que tal é realizada em um momento
histórico em que a repressão está no seu ápice, assim como também no período escravocrata.
Logo, podemos entender a resistência quilombola como um fenômeno que se desdobrou em
vários momentos de nossa história, desde o século XVI ao XIX, por isso Abdias do
Nascimento concebe em vez, de resistência quilombola, o quilombismo: “movimento político
dos negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista,
inspirado no modelo da República de Palmares, no século XVI, e em outros quilombos que
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existiram e existem no país”. . A pertinência desse pensamento está em sua principal
referência: o Quilombo de Palmares. Foram-se feito livros, filmes, peças, sobre o quilombo de
palmares durante a ditadura militar, mas por que essa espécie de tara pelo quilombo de
palmares? A resposta para essa indagação pode ser redigida por vários exemplos, todavia, o
cerne da singularidade de palmares era: o seu poder de guerrilha, isto é, sua resistência. 
Quando Abdias do Nascimento lança seu livro O quilombismo, ele tem em mente a
perpetuação e manutenção da cultura negra, ou em suas palavras, “a necessidade urgente do
negro de defender sua sobrevivência e de assegurar sua existência de ser.”21 Os quilombos
resultaram dessa exigência vital dos africanos (as) escravizados (as), no esforço de resgatar
sua liberdade e dignidade através da fuga ao cativeiro e da criação de uma
organização/comunidade livre. É isso que a práxis do quilombismo é, uma necessidade
política de autoafirmação e um desejo latente de liberdade. Em tempos de grande repressão,
como no período escravocrata e na ditadura militar, a única forma de os (as) negros (as) se
libertarem, de conquistarem sua liberdade, é por meio do quilombismo. A estrutura em que
estavam fundamentadas as comunidades quilombolas era a liberdade, ou, nas palavras de
Abdias (1980):
“O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto podiam estar
localizados no sei de florestas de difícil acesso que facilitava sua defesa e sua
organização econômico-social própria, como também assumiram modelos de
organizações permitidas e toleradas, frequentemente com ostensivas finalidades
religiosas (católicas), recreativa, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio
mútuo.”
É o que podemos nomear de fátria. Não de pátria, nem de mátria, mas sim de fátria. Uma
comunidade onde todos são considerados “irmãos” e “irmãs”, participantes e agenciadores da

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NASCIMENTO, Abdias Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da população
afro-brasileira. 2° Congresso de cultura Negra das Américas, Panamá, 1980. p. 10.
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NASCIMENTO, Abdias Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da população
afro-brasileira. 2° Congresso de cultura Negra das Américas, Panamá, 1980. p. 4.
vida orgânica e do potencial da comunidade. Por isso, dentro da tribo de palmares era
permitida a presença de índios, de mestiços e negros africanos de outras tribos, contudo,
palmares era constituída mais por negros (as) da etnia banta. No entanto, mesmo Palmares
sendo composta predominante de negros (as) bantos (as), não havia uma espécie de
hierarquia, como nós ocidentais concebemos, existia, sim, pelo contrário, um agenciamento
de funções. A partir disso pode-se pensar junto com La Boétie quando discorre sobre a
amizade:
“É certamente por isso que o tirano nunca é amado, nem ama: a amizade é um nome
sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se
deixa apanhar por mútua estima; se mantém não tanto através de benefícios como
através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento
que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a
constância.”
No seio de palmares o que unia a todos era seu desejo predominante pela liberdade e
seu repúdio contra a servidão. O quilombismo é esta manifestação de resistência contra
qualquer tipo de opressão, seja ela racista, étnica ou xenofóbica. O quilombismo é uma
intentona contra o modelo de vida ocidental hegemônico. O tirano - colonizador, nunca
conhecerá essa fortaleza que une todos em um único objetivo comum: a liberdade.
Simplesmente porque, como colocado por Etienne; “Não pode haver amizade onde está a
crueldade, onde está a deslealdade, onde está a injustiça (...).”22 E o quilombo de palmares é
almejado justamente por isso. Contudo, sua recusa à servidão e sua entrega a liberdade como
comunidade não é estática, ela se movimenta e se movimenta pelo movimento da resistência.
Da luta contra essa escravização da liberdade.
Se quiséssemos fazer uma relação com o que foi dito acima com o filme que está nos
servindo como análise do surgimento dessa resistência, veríamos/ vemos está relação de
comunidade, na cena em que Ganga Zumba, Sororoba, Dandara e um quilombo de palmares,
foram encurralados pelos capitães do mato, e que mesmo em total desvantagem ainda lutam
pela sua liberdade. Nessa cena final sentimos que todos serão mortos e que o quilombo de
palmares era apenas um ideal de escravos delirantes pela liberdade, contudo, repentinamente,
como de um súbito instante quase imperceptível, os guerreiros de palmares se erguem do
mato e defendem os seus. Sentimo-nos como Ganga Zumba, aturdido e com o coração
inflamado por, de fato, os guerreiros de palmares tratarem aqueles que lutam contra a servidão
como seus companheiros, e que palmares é a terra da liberdade, da igualdade e da resistência.

22 LA BOETIE, Etienne de; CLASTRES, Pierre; LEFORT, Claude; CHAUÍ, Marilena de Sousa. Discurso da
servidão voluntária. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. pp. 35-36.
Em suma, na voz de Abdias do Nascimento no 2° Congresso de cultura Negra das
Américas, Panamá, 1980, se diz: “Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer
dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”. Quilombo
ou quilombismo, não é nada mais que a práxis contra a servidão voluntária, seja ela qual for.

4. CONCLUSÃO

O filme Ganga Zumba nos leva a refletir sobre a resistência em seu nascimento, um
nascimento da resistência no espírito negro. Um espírito-corpo que, ao decorrer de todo o
filme, nos apresenta com desejo de liberdade tão intenso que faz-nos matutar sobre nossas
servidões voluntárias e no que vivemos presos. Mesmo diante de tanta resistência sabemos
que o Quilombo de Palmares foi destruído, no entanto, seu espírito ainda permanece em todos
aqueles que lutam sem cessar contra a servidão. Anos e anos de resistência nos atravessam,
mais de 400 anos, e quando temos guerreiros e guerreiras como Ganga Zumba, Dandara,
Zumbi de Palmares, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Angela Davis e Abdias do Nascimento, que
mesmo em lugares diferentes do mundo, lutam contra essa servidão, presenciamos esse
espírito se encarnando, que nem o espírito de Manuel Henrique - O Besouro, protagonista do
filme Besouro do cineasta brasileiro Daniel Tikhomiroff de 2009, se encarnando nos seus
como uma forma de combate a opressão que vivenciam. Que nem o mestre Alípio anuncia o
ciclo da resistência que existirá enquanto existir servidão.
A resistência é cortar a cabeça de todos aqueles que subjugam e reprimem a liberdade,
que nasceram sob o jugo e não sentiram nunca o sabor dela, que chegam, depois de terem
cometidos todos os atos atrozes contra aqueles que deveriam se somar, a dizerem que fazem
parte deles, “que é negro, que é escravo também e que quer ir pra palmares conhecer Zambi”,
como se testemunha no final do filme, quando Ganga Zumba corta a cabeça de um tiranete
que não parava de proferir as palavras que agora a pouco foram descritas, gritando-lhe para
calar a boca. O opressor foi silenciado diante da foice (força) da vontade de liberdade que
sabe reconhecer os seus quando estes também compartilham desse delicioso deleite.
Enfim, não entreguemos nas mãos de deus, assim como La Boétie o faz, mas
resistamos com a força da cultura quilombola, isto é, do quilombismo, a toda forma de
sujeição. Cacá Diegues nos mostra como o quilombo de palmares se institui na resistência e
na união - a arte é resistência - e o mesmo se utilizou desta no cinema, e Abdias do
Nascimento na poesia e na dramaturgia. Isso nos mostra como a única força contra a sujeição,
a servidão, é arte enquanto resistência. Resistir é criar e criar é resistir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. 1.ed. Lisboa; livraria sá da costa editora, 1978.

CHAUÍ, Marilena de Sousa. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária . São Paulo: Fundacao Perseu
Abramo, 2001.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

LA BOETIE, Etienne de; CLASTRES, Pierre; LEFORT, Claude; CHAUÍ, Marilena de Sousa. Discurso da
servidão voluntária. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.

MONTAIGNE, Michel. https://fabiomesquita.files.wordpress.com/2015/04/montaigne-michel-de-dos-


canibais-ensaios.pdf.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia, ou, Helenismo e pessimismo. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 1992.

__________ Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 17. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008.

NASCIMENTO, Abdias. Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da população


afro-brasileira. 2° Congresso de cultura Negra das Américas, Panamá, 1980 .

Qureshi, Sadiah (2004), 'Displaying Sara Baartman, the 'Hottentot Venus', History of Science 42:233-257.

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