Você está na página 1de 14

GUITA GRIN DEBERT

Velhice e o curso
da vida PÓS
pós-moderno

A
expressão “curso da vida pós-moder- GUITA GRIN DEBERT
é professora do
no” foi cunhada por Harry R. Moody Departamento de
Antropologia do Instituto
para dar conta das mudanças que, a partir de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp e
dos anos 70, deram novas configura- autora de Ideologia e
Populismo e Quando a
ções às etapas em que a vida se desdo- Vítima é Mulher.
Atualmente é
bra, embaçando as fronteiras estabelecidas entre os com- coordenadora do Projeto
Integrado Experiência de
portamentos tidos até então como adequados aos dife- Envelhecimento e as
Mudanças no Curso da
rentes grupos etários. Vida, financiado pelo CNPq.

Para tratar dos significados da velhice no curso da

vida pós-moderno, o autor utiliza dois filmes com repre-


sentações radicalmente opostas da experiência de enve-

lhecimento. O primeiro, Make Way for Tomorrow, produzi-


do em 1937, apresenta o drama de um casal de velhos que,

forçado a vender a sua casa e impedido de morar com os


filhos, tem como alternativa aguardar a morte num asilo.

70 REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999


MOD
Nesse filme, mais uma vez, a violência da lógica que organiza
as práticas de desenvolvimento urbano é combinada com
a tragédia dos velhos para expressar a brutalidade envolvi-

S
da na concretização dos ideais da modernidade.
Cocoon, produzido nos anos 80, apresenta uma
comunidade de aposentados que descobrem acidental-
mente técnicas extraterrestres de rejuvenescimento e,
com muito entusiasmo, passam a desafiar a decadência
física e o desprezo com que seu grupo é tratado. Evocan-
do símbolos de longevidade e imortalidade, esse filme
substitui o pessimismo do primeiro, abrindo espaço para
o que Moody chamará de ethos pós-moderno, que se
empenha na negação dos determinismos biológicos, físi-
cos, psicológicos e sociais.
Quase meio século separa um filme do outro,
mas, de acordo com o autor, a diferença entre eles não é
a diferença entre a tragédia e a ficção científica, entre a
crítica social e a comédia. O tratamento dado à velhice
nos dois filmes reflete uma mudança mais ampla no curso
ERNI

da vida humana, descrita por Bernice Neugarten como a


passagem para uma sociedade em que as idades são
irrelevantes. O próprio da cultura pós-moderna é a pro-
messa de que é possível escapar dos constrangimentos,
dos estereótipos, das normas e dos padrões de compor-
tamento baseados nas idades. Moody considera, ainda,
que é preciso tempo para que possamos avaliar o caráter
dessas mudanças. Seria essa promessa uma ilusão ou uma
esperança realista a indicar mudanças libertárias?

DADE Olhar para as representações sobre a velhice no


Brasil da década de 90 é atestar a presença dos dramas
que se expressam sobretudo nas imagens de idosos aban-
donados nos asilos ou em filas monumentais à espera do
dinheiro minguado da aposentadoria. Entretanto, essas
imagens convivem com as representações da velhice grati-

REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999 71


ficante, vibrante e produtiva, que ganha pado em dar conta dos tipos de organização
expressão quando estão em jogo os progra- social, das formas de controle de recursos
mas para a terceira idade, como suas uni- políticos e das representações sociais.
versidades e grupos de convivência e de A periodização da vida tem sido, no
lazer. Esses espaços possibilitam que uma entanto, um tema pouco estudado quando o
experiência inovadora possa ser vivida co- foco é a nossa própria sociedade, e por isso
letivamente. Neles é encorajada a busca da a idéia de curso da vida pós-moderno faz
auto-expressão e a exploração de identida- um convite irrecusável para olharmos com
des de um modo que era exclusivo da ju- mais atenção em direção às mudanças re-
ventude. Esses programas emergem num centes nos grupos e nas categorias etárias.
contexto em que um conjunto de discursos O interesse deste artigo é, contudo, proble-
amplamente divulgados pela mídia se em- matizar a caracterização feita dessas mu-
penha em desestabilizar expectativas e danças em duas direções. Por um lado,
imagens tradicionalmente associadas ao sugerindo que o embaçamento das diferen-
avanço da idade, enfatizando que esta não ças de idade é concomitante a outro movi-
é um marcador pertinente de comportamen- mento, aparentemente inverso, que torna
tos e estilos de vida e divulgando uma série as idades aspectos privilegiados na criação
de receitas como técnicas de manutenção de atores políticos e na definição de merca-
corporal, comidas saudáveis, ginásticas, dos de consumo. Por outro lado, conside-
medicamentos, bailes, e outras formas de rando que é preciso atentar para o modo
lazer que procuram mostrar como os que como se opera uma dissociação entre a ju-
não se sentem velhos devem se comportar, ventude e uma faixa etária específica e a
apesar da idade. transformação da juventude em um bem,
O objetivo deste artigo é mostrar que a um valor que pode ser conquistado em
maneira pela qual essas imagens aparente- qualquer etapa da vida, através da adoção
mente antagônicas são mescladas leva ao de formas de consumo e estilos de vida
que venho chamando de “reprivatização da adequados.
velhice”, processo em que seus dramas se Abordar a velhice na experiência con-
transformam em responsabilidades dos in- temporânea é descrever um contexto em
divíduos que negligenciaram seus corpos e que as imagens e os espaços abertos para
foram incapazes de se envolver em ativida- uma velhice bem-sucedida não levam ne-
des motivadoras. cessariamente a uma atitude mais tolerante
Entendendo que as idades são formas com os velhos, mas sim, e antes de tudo, a
de classificação e separação dos seres hu- um compromisso com um tipo determina-
manos, o argumento central é que a avalia- do de envelhecimento positivo
ção do caráter das transformações no cur-
so da vida – do caráter ilusório ou realista
das promessas libertárias sugeridas – só
ganha sentido se a atenção se voltar para PRÉ-MODERNIDADE, MODERNIDADE
o modo como a partir delas a solidarieda-
de entre gerações é redefinida e para as E PÓS-MODERNIDADE
hierarquias sociais que essas transforma-
ções põem em ação. Se a expressão “curso da vida pós-mo-
Sabemos que o modo pelo qual a vida é derno” convida a um olhar atento para os
periodizada e o tipo de sensibilidade períodos em que a vida se desdobra, este
investida na relação entre as diferentes fai- não é um convite original. Anthony Seeger,
xas etárias são uma dimensão central para em Os Índios e Nós, publicado em 1980,
a compreensão das formas de produção e conclui o capítulo sobre “Os Velhos nas
reprodução da vida social. A análise das Sociedades Tribais” considerando que, com
categorias e dos grupos de idade é parte “melhores análises e melhores informações,
importante do fazer antropológico preocu- poderemos realizar análises novas, melho-

72 REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999


res e mais sensíveis de áreas do estudo das trabalho sobre o processo civilizatório, su-
sociedades humanas que têm sido negli- gere que o comportamento dos adultos na
genciadas” (p. 79). Na mesma direção, Idade Média era muito mais solto e espon-
Anne-Marie Peatrik, na introdução que faz tâneo. Os controles sobre as emoções eram
à revista L’Homme de 1995, dedicada às menos acentuados e sua expressão, como
Idades e Gerações, afirma:“Dans l’éventail ocorre com as crianças, não carregava culpa
des modes de sociation mis en oeuvre par ou vergonha. A modernidade teria aumen-
le genre humain, les critères d’âge et de tado a distância entre adultos e crianças, não
génération n’ont pas encore reçu toute apenas por considerar a infância como uma
l’atention qu’ils méritent” (p. 11). fase de dependência, mas também pela cons-
Pensar nas mudanças no curso da vida trução do adulto como um ser independente,
nas sociedades ocidentais contemporâneas com maturidade psicológica e com direitos
tem levado autores a considerarem que a e deveres de cidadania.
história desta civilização estaria marcada Tratar das transformações históricas
por três etapas sucessivas, em que a sensi- ocorridas com a modernização é também
bilidade investida na idade cronológica é chamar a atenção para o fato de que o pro-
radicalmente distinta: a pré-modernidade, cesso de individualização, próprio da mo-
em que a idade cronológica seria menos dernidade, teve na institucionalização do
relevante do que o status da família na de- curso de vida uma de suas dimensões fun-
terminação do grau de maturidade e do damentais. Estágios foram claramente de-
controle de recursos de poder; a moderni- finidos e separados e a fronteira entre eles
dade, que teria correspondido a uma crono- passou a ser dada pela idade cronológica. É
logização da vida; e a pós-modernidade, nesse sentido que a expressão “cronolo-
que operaria uma desconstrução do curso gização da vida” é usada por Kohli e Meyer
da vida em nome de um estilo unietário. (1986) para caracterizar as transformações
Quando se discutem as idades na pré- na forma como a vida é periodizada, no
modernidade, geralmente a referência é a tempo de transição de uma etapa para ou-
obra de Ariès (1991) e a de Elias (1990). tra, na sensibilidade investida em cada um
Em seu estudo sobre a infância, Ariès mos- dos estágios, mas também para definir o
trou como esta categoria foi sendo caráter do curso da vida como instituição
construída a partir do século XIII, ampli- social. Essa institucionalização crescente
ando a distância que separava as crianças teria envolvido praticamente todas as di-
dos adultos. Na França medieval, as crian- mensões do mundo familiar e do trabalho e
ças não eram separadas do mundo adulto; está presente na organização do sistema
a partir do momento em que sua capacida- produtivo, nas instituições educativas, no
de física permitisse e em idade relativa- mercado de consumo e nas políticas públi-
mente prematura, participavam integral- cas que, cada vez mais, têm como alvo gru-
mente do mundo do trabalho e da vida so- pos etários específicos.
cial. A noção de infância desenvolveu-se Na explicitação das razões que levaram
lentamente ao longo dos séculos e só gra- à cronologização da vida, pesos distintos
dualmente esta fase passou a ser tratada de podem ser atribuídos a dimensões diver-
uma forma específica. Roupas e maneiras sas. A padronização da infância, adoles-
adequadas, jogos, brincadeiras e outras ati- cência, idade adulta e velhice pode ser pen-
vidades passaram a distinguir a criança do sada como resposta às mudanças econômi-
adulto. Instituições específicas, como as cas, devidas sobretudo à transição de uma
escolas, foram criadas e encarregadas de economia que tinha como base a unidade
atender e preparar a população infantil para doméstica para outra baseada no mercado
a idade adulta. de trabalho. Inversamente, ênfase pode ser
Contra a visão que considera que as cri- dada ao Estado moderno que – na transfor-
anças no passado comportavam-se como mação de questões que diziam respeito à
adultos responsáveis, Elias (1990), em seu esfera privada e familiar em problemas de

REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999 73


ordem pública – seria, por excelência, a
instituição orientadora do curso da vida,
regulamentando todas as suas etapas, des-
de o momento do nascimento até a morte,
passando pelo sistema complexo de fases
de escolarização, entrada no mercado de
trabalho e aposentadoria (1).
É, entretanto, para o processo de des-
cronologização que se voltam as pesquisas
interessadas na identificação das rupturas
com a modernidade que caracterizam a
experiência contemporânea. Trata-se de
perguntar se a idéia de papéis seqüenciados,
extremamente divididos por idades, capta-
ria a realidade social de uma sociedade que
atinge o nível de desenvolvimento tecno-
lógico da sociedade contemporânea. É essa
questão que leva Held (1986) a propor que
uma das características marcantes da expe-
riência pós-moderna seria a “desinsti-
tucionalização” ou a “descronologização
da vida”. Sua argumentação terá como base
as mudanças ocorridas no processo produ-
tivo, no domínio da família e na configura-
ção das unidades domésticas.
As mudanças ocorridas na produção –
principalmente aquelas relacionadas com
a informatização, a velocidade na imple-
mentação de novas tecnologias e a rapidez
na obsolescência das técnicas produtivas e
administrativas – fazem com que a relação
entre as grades de idade e a carreira sejam
obliteradas, à medida que conhecimentos
anteriormente adquiridos freqüentemente
tornam-se obstáculos para a abertura e adap-
tação às inovações.
No domínio da família, desenvolvimen-
tos recentes na distribuição de eventos
demográficos como casamentos, materni-
dade, divórcios e tipos de unidade domés-
tica apontariam uma sociedade em que a
idade cronológica é irrelevante: mais do
1 Obviamente, quando se procu-
ra estabelecer uma relação que mudanças de uma forma para outra,
entre modernidade e cronolo-
gização da vida, é preciso le- teríamos uma variedade nas idades do ca-
var em conta as variações nas samento, do nascimento dos filhos e nas
etapas e na extensão em que o
seu curso é periodizado em diferenças de idades de pais e filhos. As
sociedades modernas distintas,
bem como o tipo de seqüência
obrigações familiares tenderiam a se desli-
cronológica que caracteriza a gar da idade cronológica. A mesma gera-
experiência de diferentes gru-
pos sociais em uma mesma so- ção, em termos de parentesco, apresenta
ciedade; é, sobretudo, impor- uma variedade cada vez maior em relação à
tante refletir na especificidade
do curso da vida das mulheres. idade cronológica (mães pela primeira vez

74 REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999


aos 16 e aos 45 anos), e gerações sucessivas, frutos de uma economia baseada mais no
do ponto de vista da família, pertencem ao consumo do que na produtividade.
mesmo grupo de idade como, por exemplo, Dessa perspectiva, tratar do curso da
mães e avós na mesma faixa etária. vida pós-moderno exige a revisão da ma-
O estabelecimento de uma unidade do- neira pela qual um fato universal é explica-
méstica independente pode ocorrer em do: a presença das diferenças de idade em
qualquer idade sem marcar, necessariamen- todas as sociedades foi compreendida como
te, o início de uma nova família, de forma fruto de uma necessidade da vida social,
que pessoas de idades cronológicas muito expressa em termos do processo de socia-
distintas podem ter uma experiência simi- lização. Assim como as várias capacidades
lar em termos de situação de moradia. físicas necessárias para o desempenho de
O trabalho de Meyrowitz (1985) sobre determinadas atividades estão relacionadas
o impacto da mídia eletrônica no compor- a diferentes estágios de desenvolvimento
tamento social vai na mesma direção. Esse biológico, pressupõe-se o aspecto cumula-
autor sugere que a mídia tende a integrar tivo dos vários conhecimentos necessários
mundos informacionais que antes eram ao preenchimento dos papéis sociais, cuja
estanques, impondo novas formas de com- aquisição consome tempo e implica uma
portamento que apagam o que previamen- progressão etária (2).
te era considerado o comportamento ade- Em outras palavras, a experiência con-
quado a uma determinada faixa etária. As temporânea impõe a revisão das concep-
crianças ganham, cada vez mais, acesso ao ções da psicologia do desenvolvimento, em
que antes era visto como aspectos da vida que o curso da vida é periodizado como
adulta, posto que a mídia dissolve os con- uma seqüência evolutiva unilinear, em que
troles que os adultos tinham sobre o tipo cada etapa, apesar das particularidades so-
desejável de informação às faixas mais jo- ciais e culturais, tem um caráter universal.
vens. As informações disponíveis, os te- É certamente possível acionar um con-
mas que são objeto de preocupação, a lin- junto de exemplos para relativizar a radi-
guagem, as roupas, as formas de lazer ten- calidade dessas transformações. As idades
deriam cada vez mais a perder uma marca ainda são uma dimensão fundamental na
etária específica. organização social: a incorporação de mu-
O curso da vida moderno é reflexo da danças dificilmente se faria sem uma nova
lógica fordista, ancorada na primazia da cronologização da vida; seria um exagero
produtividade econômica e na subordina- supor que a idade deixou de ser um ele-
ção do indivíduo aos requisitos raciona- mento fundamental na definição do status
lizadores da ordem social. Tem como de uma pessoa.
corolário a burocratização dos ciclos da Essa flexibilização e revolução dos
vida, através da massificação da escola parâmetros anteriores do que seriam os
pública e da aposentadoria. Três segmen- comportamentos adequados e direitos e
tos foram claramente demarcados: a ju- deveres próprios a cada faixa etária são,
ventude e a vida escolar; o mundo adulto contudo, acompanhadas da transformação
e o trabalho; e a velhice e a aposentadoria. das idades num laço simbólico privilegia-
O apagamento das fronteiras que separa- do para a constituição de atores políticos e
vam juventude, vida adulta e velhice e das redefinição de mercados de consumo. O
normas que indicavam o comportamento embaçamento das fronteiras entre as ida-
apropriado aos grupos de idade é, segun- des é um tema que ganhou recentemente
do Moody (1993), o reflexo de uma soci- destaque nas novelas de televisão, em que
edade pós-fordista, marcada pela infor- boa parte do enredo se organiza em torno
matização da economia, pela desmas- dos conflitos envolvidos nas situações em
sificação dos mercados de consumo, da que mães e filhas compartilham, simulta-
política, da mídia e da cultura, e pela flui- neamente, de eventos como o namoro, o
2 Ver sobre o tema Eisenstadt
dez e multiplicidade de estilos de vida, casamento, a gravidez. Contudo, os dra- (1976).

REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999 75


mas narrados só adquirem sentido porque ções entre as noções que servem como
as diferenças de idade e de geração são ain- valores culturais e como princípios de or-
da elementos fundamentais na definição dos ganização social: ordem de nascimento,
comportamentos esperados. estágios de maturidade, idade geracional e
Os aposentados foram manchetes polí- idade cronológica. Confundir estas formas
ticas em todos os jornais nos últimos meses distintas de classificação é perder a oportu-
e, apesar das diferenças em níveis de apo- nidade de observar como as diferentes so-
sentadoria, o sentimento generalizado era ciedades se organizam em função delas e
o de que esta questão não poderia mais ser institucionalizam mecanismos capazes de
desconhecida pelo Estado como um tema resolver os conflitos que emergem da con-
específico. Jovens, crianças, adultos e ido- vivência entre esses valores e princípios
sos são categorias privilegiadas na produ- diversos de hierarquização. As idades cro-
ção da moda no vestuário, na criação de nológicas se baseiam em um sistema de
áreas específicas de saber e práticas profis- datação que está ausente da maioria das
sionais e na definição de formas de lazer. sociedades não-ocidentais e que só ganha
O estatuto do menor é um tema em deba- relevância quando é crucial para o estabe-
te. Ao discurso que demanda a incorporação lecimento de direitos e deveres políticos;
às crianças de direitos tidos como próprios isto é, quando o status de cidadão ganha
dos adultos é, com a mesma força, contra- precedência sobre as relações familiares e
posto um outro que enfatiza sua situação de de parentesco (esferas em que a ordem
dependência. Da mesma forma, nas consi- geracional é uma dimensão central) e, tam-
derações de que a velhice é uma nova juven- bém, sobre outras características, como a
tude, uma etapa produtiva da vida, é sempre estrutura física e os níveis de maturidade
reiterado o direito à aposentadoria, a partir dos indivíduos. Os critérios e normas da
de uma determinada idade cronológica. A idade cronológica são eficientes quando o
idéia de que o idoso é vítima da paupe- ideário da igualdade e liberdade é posto em
rização, um ser abandonado pela família e ação, não porque esse ideário esteja em
alimentado pelo Estado, foi fundamental sintonia com o aparato cultural que domina
na sua transformação em ator político. nossa reflexão sobre os estágios de maturi-
A afirmação da irracionalidade da ra- dade, como a psicologia do desenvolvimen-
zão, a crítica às pretensões universalistas e to se empenha em nos fazer acreditar quan-
a valorização do pluralismo e do conheci- do testemunhamos mudanças na legislação
mento local, próprios da pós-modernida- relativa às idades. A proibição do trabalho
de, certamente explicam a quebra da auto- infantil está ancorada na legislação, as cri-
ridade dos adultos. Contudo, poder-se-ia anças devem estar na escola até uma idade
argumentar que esse é um fenômeno restri- determinada porque essa é uma imposição
to, próprio de certos setores da classe mé- do Estado e seus pais estarão desrespeitan-
dia e não uma nova sensibilidade que se do a lei se não fizerem com que seus filhos,
teria difundido na sociedade como um todo. independentemente de sua capacidade físi-
A dificuldade central na avaliação das ca e mental, a ela compareçam (3).
formas como se processa o remapeamento As idades são um mecanismo poderoso
do curso da vida parece estar na tendência e eficiente na criação de mercados de consu-
de confundirmos níveis de maturidade e mo, na definição de direitos e deveres e na
idade cronológica. O que parece caracteri- constituição de atores políticos, sobretudo
zar a experiência contemporânea é a porque têm independência e neutralidade na
radicalização da tendência, identificada por relação com os estágios de maturidade físi-
Meyer Fortes (1984) como própria à mo- ca e mental. Tratar das idades cronológicas
3 Para uma análise detida da im- dernidade, de disjunção entre estágios de é reconhecer que elas são um elemento fun-
portância das colocações des-
se autor para o estudo do curso maturidade e idade cronológica. De uma damental na tarefa do Estado moderno, tão
da vida e dos grupos e das ca- perspectiva transcultural, este autor mos- bem caracterizada por Michel Foucault, de
tegorias de idade ver G. G.
Debert, 1998. tra a importância de estabelecermos distin- estabelecer a ordem generalizando, classi-

76 REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999


ficando e separando categorias.
A própria idéia de ciclo de vida, consi- A APOSENTADORIA E AS NOVAS
dera Anthony Giddens (1992), perde senti-
do na modernidade, uma vez que as cone- CONCEPÇÕES SOBRE O CORPO
xões entre vida pessoal e troca entre gera-
ções se quebram. Nas sociedades pré-mo- Se a modernidade – como mostrou Ariès
dernas, a tradição e a continuidade esta- (1981) em seu estudo sobre a história soci-
vam estreitamente vinculadas com as gera- al da família e da criança – assistiu à emer-
ções. O ciclo de vida tinha forte conotação gência de etapas intermediárias entre a in-
de renovação, pois cada geração redescobre fância e a idade adulta, assistimos, atual-
e revive modos de vida das gerações mente, a uma proliferação de etapas inter-
predecessoras. Nos contextos modernos, o mediárias de envelhecimento. “Meia-ida-
conceito de geração só faz sentido em opo- de”, “terceira idade”, “aposentadoria ati-
sição ao tempo padronizado. As práticas va” são categorias empenhadas na produ-
de uma geração só são repetidas se forem ção de novos estilos de vida e na criação de
reflexivamente justificadas. O curso da vida mercados de consumo específicos. Rom-
se transforma em um espaço de experiên- pendo com as expectativas tradicionalmen-
cias abertas, e não de passagens ritualizadas te associadas aos estágios mais avançados
de uma etapa para outra. Cada fase de tran- da vida, cada uma destas etapas passa a
sição tende a ser interpretada pelo indiví- indicar, a sua maneira, fases propícias para
duo como uma crise de identidade, e o cur- o prazer e para a realização de sonhos adi-
so da vida é construído em termos da ne- ados em momentos anteriores.
cessidade antecipada de confrontar e resol- A expressão “idade da loba” – que Regi-
ver essas fases de crise. na Lemos (1995) consagrou no Brasil para
Seria, no entanto, ilusório pensar que a descrever a mulher de quarenta anos – não
radicalização das configurações próprias deixa dúvidas de que essa pode ser a melhor
da modernidade corresponde necessaria- metade da vida. Trazendo relatos de 96
mente a atitudes mais tolerantes em rela- mulheres, essa faixa etária é apresentada
ção às idades. Sua característica marcante como um momento privilegiado para a des-
é sobretudo a valorização da juventude, que coberta de novas potencialidades, para o
é associada a valores e a estilos de vida e exercício da sedução, para a estréia no papel
não propriamente a um grupo etário espe- de mãe ou de profissional, para a inaugura-
cífico. A promessa da eterna juventude é ção de novos projetos e concretização de
um mecanismo fundamental de constitui- outros que tiveram de ser adiados (4).
ção de mercados de consumo. As oposi- A invenção da terceira idade revela uma
ções entre o “jovem velho” e o “jovem jo- experiência inusitada de envelhecimento,
vem” e entre o “velho jovem” e o “velho cuja compreensão, como mostra Laslett
velho” parecem ter se constituído em for- (1987), não pode ser reduzida aos indica-
mas privilegiadas de estabelecer laços sim- dores de prolongamento da vida nas socie-
bólicos entre indivíduos, em um mundo em dades contemporâneas. De acordo com esse
que a obliteração das fronteiras entre os autor, essa invenção requer a existência de
grupos é acompanhada de uma afirmação, uma “comunidade de aposentados” com
cada vez mais intensa, da heterogeneidade peso suficiente na sociedade, demonstran-
e das particularidades locais. do dispor de saúde, independência finan-
É para o modo pelo qual, nesse contex- ceira e outros meios apropriados para tor-
to, a velhice é transformada em uma res- nar reais as expectativas de que esse perí-
ponsabilidade individual e, por isso, pode odo é propício à realização e satisfação 4 Sobre as imagens da velhice e
do envelhecimento nas revis-
ser excluída do nosso campo de preocupa- pessoal (5). tas Cláudia e Playboy ver: A.
Pires, 1998.
ções sociais, que interessa atentar, discu- As mudanças na estrutura de emprego
tindo o caráter das novas etapas em que a levaram a uma ampliação das camadas 5 Discuto as representações so-
bre a terceira idade em: G. G.
vida adulta se desdobra. médias assalariadas e a novas expectativas Debert, 1997.

REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999 77


em relação à aposentadoria, que – englo- mas de criação de uma sociabilidade mais
bando um contingente cada vez mais jo- gratificante entre os mais velhos (9).
vem da população – deixou de ser um mar- Essas novas formas de alocação do tem-
co na passagem para a velhice, uma forma po dos aposentados emergem num contex-
de garantir a subsistência daqueles que, por to marcado pelas concepções autopreser-
causa da idade, não estão mais em condi- vacionistas do corpo e pela ênfase no cará-
ções de realizar um trabalho produtivo (6). ter auto-infligido das doenças. Como mos-
Lenoir (1979) mostra que, na França, a tra Giddens (1992, 1992a), é próprio da ex-
partir dos anos 70, um novo mercado da periência contemporânea que a definição
previdência é criado, transformando os do eu, de quem sou e a adoção de estilos de
fundos de pensão em agências financeira- vida se façam em meio a uma profusão de
mente poderosas que, na condição de esta- recursos: vários tipos de terapias, manuais
rem entre os maiores investidores insti- de auto-ajuda, programas de televisão e
tucionais, têm o poder de ditar as regras e artigos em revistas. A boa aparência, o bom
os ritmos dos mercados financeiros (7). A relacionamento sexual e afetivo deixam de
concorrência entre esses grupos financei- depender de qualidades fixas que as pesso-
ros leva-os não apenas a assegurar um ren- as podem possuir ou não, e se transformam
dimento mensal aos aposentados, mas tam- em algo que deve ser conquistado a partir
6 Sobre a aposentadoria ver: G. bém a oferecer uma série de outras vanta- de um esforço pessoal. Expressão de mu-
G. Debert e J. A. Simões, 1994. gens e serviços, tais como férias, clubes e danças culturais que redefinem a intimida-
7 No Brasil, com um patrimônio diferentes tipos de alojamento. Empregan- de e a construção das identidades, o corpo
calculado em US$ 18 bilhões,
existem 250 fundos de pensão do profissionais em diferentes áreas de tende a ser percebido como pura plasti-
com 2 milhões de associados
que, somados aos seus depen- formação, na pesquisa das condições de cidade. Suas imperfeições não são naturais
dentes, totalizam 8 milhões. Até vida e das necessidades dos velhos, essas nem imutáveis, mas com esforço discipli-
o final da década, a Associa-
ção Brasileira da Previdência instituições contribuíram ativamente para nado e o uso das tecnologias pode-se con-
Privada estima que esse núme-
ro chegue a 40 milhões, com a
a invenção da terceira idade e inspiraram o quistar a aparência desejada; as rugas ou a
criação de mais 750 funda- trabalho com essa categoria em outros con- flacidez se transformam em indícios de
ções; no total seriam mil entida-
des patrocinadas por cerca de textos, como no caso brasileiro (8). lassitude moral e devem ser tratadas com a
8.100 empresas (cf. Folha de Acompanha o crescimento desse mer- ajuda dos cosméticos, da ginástica, das
S. Paulo, 22/9/91).
cado a criação de uma nova linguagem em vitaminas, da indústria do lazer. Convenci-
8 Stucchi (1998), na análise que
faz dos programas de prepara- oposição às antigas formas de tratamento dos a assumir a responsabilidade pela sua
ção para a aposentadoria,
mostra como os fundos de pen-
dos velhos e aposentados: a terceira idade própria aparência e bem-estar, os indiví-
são das empresas estatais no substitui a velhice; a aposentadoria ativa se duos são monitorados para exercer uma vi-
Brasil tiveram esse papel ativo
na promoção desses novos opõe à aposentadoria; o asilo passa a ser gilância constante do corpo e são responsa-
padrões de aposentadoria. chamado de centro residencial, o assistente bilizados pela sua própria saúde, através da
9 Sobre as Universidades da Ter- social de animador social e a ajuda social idéia de doenças auto-infligidas, resultan-
ceira Idade ver: P. Guerreiro,
1993; M. A. Lima, 1998; M. ganha o nome de gerontologia. Os signos tes de abusos corporais como a bebida, o
Cachioni, 1998.
do envelhecimento são invertidos e assu- fumo, a falta de exercícios.
10 Cf. Feathestone, 1994. B.
Turner, 1992, nessa mesma di-
mem novas designações: “nova juventu- A suposição de que a boa aparência é
reção, opõe as novas concep- de”, “idade do lazer”. Da mesma forma, igual ao bem-estar, de que aqueles que con-
ções do corpo àquelas presen-
tes no ideário místico e religio- invertem-se os signos da aposentadoria, que servam seus corpos através de dietas, exer-
so mostrando que a recompen- deixa de ser um momento de descanso e cícios e outros cuidados viverão mais, sem
sa pelo corpo ascético não é a
salvação espiritual, mas a apa- recolhimento para tornar-se um período de dúvida, demanda de cada indivíduo uma boa
rência embelezada, um eu mais
disputado. Se, no ideário mís- atividade e lazer. Não se trata mais apenas quantidade de “hedonismo calculado” (10).
tico e religioso, as concepções de resolver os problemas econômicos dos Ao relacionar essas novas concepções
sobre a vida sóbria e tempera-
da tinham como referência uma idosos, mas também proporcionar cuida- do corpo e da saúde ao “projeto reflexivo
defesa contra as tentações da
carne, a subjugação do corpo
dos culturais e psicológicos, de forma a do eu”, Giddens (1992a) argumenta, de
através das rotinas de manu- integrar socialmente uma população tida maneira convincente, que elas não repre-
tenção corporal é a pré-condi-
ção para a conquista de uma como marginalizada. É nesse momento que sentam, necessariamente, um fechamento
aparência mais aceitável, para surgem os grupos de convivência e as uni- em relação ao mundo, como supõe a idéia
a liberação da capacidade
expressiva do corpo. versidades para a terceira idade como for- de cultura narcisista. Essas mudanças esta-

78 REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999


riam abrindo possibilidades para experiên- forma em uma questão pública. Um con-
cias mais gratificantes, para relacionamen- junto de orientações e intervenções, muitas
tos mais satisfatórios e igualitários com os vezes contraditório, é definido e imple-
outros, em sintonia com uma sociedade mentado pelo aparelho de Estado e outras
democrática ou, pelo menos, como um organizações privadas. Um campo de sa-
componente de mais igualdade e maior ber específico – a gerontologia – é criado
democracia. Olhar para os eventos associa- com profissionais e instituições encarrega-
dos à emergência de etapas intermediárias dos da formação de especialistas no enve-
entre a vida adulta e a velhice é, sem dúvi- lhecimento. Como conseqüência, tentati-
da, aplaudir o lado gratificante da experi- vas de homogeneização das representações
ência contemporânea que encoraja a diver- da velhice são acionadas e uma nova cate-
sidade. No caso da velhice, contudo, difi- goria cultural é produzida: as pessoas ido-
cilmente poderíamos supor que há uma sas, como um conjunto autônomo e coe-
democratização das relações e uma tole- rente que impõe outro recorte à geografia
rância maior com o corpo envelhecido. social, autorizando a colocação em prática
Quando o rejuvenescimento se transforma de modos específicos de gestão.
em um novo mercado de consumo, não há Nesse movimento que marca as socie-
lugar para a velhice, que tende a ser vista dades modernas, a partir da segunda meta-
como conseqüência do descuido pessoal, de do século XIX, a etapa mais avançada
da falta de envolvimento em atividades da vida é caracterizada pela decadência fí-
motivadoras, da adoção de formas de con- sica e ausência de papéis sociais. O avanço
sumo e estilos de vida inadequados. A oferta da idade como um processo contínuo de
constante de oportunidades para a renova- perdas e de dependência – em que os indi-
ção do corpo, das identidades e auto-ima- víduos ficariam relegados a uma situação
gens encobre os problemas próprios da ida- de abandono e de desprezo, como o casal
de mais avançada. O declínio inevitável do de velhos que serviu para o tema do filme
corpo, o corpo ingovernável que não res- Make Way for Tomorrow – é parte
ponde às demandas da vontade individual constitutiva da socialização da gestão des-
é antes percebido como fruto de transgres- ta questão. Colocando em jogo múltiplas
sões e por isso não merece piedade. dimensões – que vão desde as iniciativas
As hierarquias sociais envolvidas no uso voltadas para propostas de formas de bem-
das tecnologias de rejuvenescimento e o estar que deveriam acompanhar o avanço
modo pelo qual o envelhecimento popula- das idades, até empreendimentos voltados
cional se transforma num risco para a per- para o cálculo dos custos financeiros que o
petuação da vida social colocam no centro envelhecimento da população trará para a
do debate a questão da solidariedade entre contabilidade nacional –, essa representa-
gerações. ção é responsável por uma série de estere-
ótipos negativos em relação aos velhos, mas
é, também, um elemento fundamental para
a legitimação de um conjunto de direitos
A REPRIVATIZAÇÃO DA VELHICE E A sociais que levaram, por exemplo, à
universalização da aposentadoria.
SOLIDARIEDADE ENTRE GERAÇÕES Como foi mostrado, a tendência con-
temporânea é a de se contrapor à represen-
Tratar da solidariedade pública entre tação do envelhecimento como um proces-
gerações é descrever a maneira pela qual a so de perdas, promovendo a sua dissolução
gestão da velhice é progressivamente socia- em vários estágios que passam a ser trata-
lizada. Durante muito tempo considerada dos como novos começos, como oportuni-
como própria da esfera privada e familiar, dades a serem aproveitadas na exploração
uma questão de previdência individual ou das identidades. As experiências vividas e
de associações filantrópicas, ela se trans- os saberes acumulados são ganhos que pro-

REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999 79


piciariam aos mais velhos a oportunidade Como mostram Douglas e Wildavsky
de adquirir mais conhecimentos e apostar (1983), cada sociedade tem seu portfólio de
em outros tipos de relacionamentos. Essas riscos e estabelece uma combinação especí-
novas imagens transformam essa fase numa fica de confiança e medo. Na seleção dos
experiência de entusiasmo inédita que ga- perigos que merecem ser temidos, está en-
nhou certamente a expressão mais volvida uma estratégia de proteção e exclu-
caricatural no filme Cocoon. são de valores e estilos de vida particulares.
Esse entusiasmo é proporcional à pre- Cabe, portanto, perguntar se a velhice
cariedade dos mecanismos de que dispo- permanecerá sendo um segredo desagra-
mos para lidar com os problemas da idade dável que, como Elias (1987) mostrou, não
avançada. A imagem gratificante das eta- queremos conhecer e para a qual encontra-
pas do envelhecimento não oferece instru- mos formas cada vez mais sofisticadas de
mentos capazes de enfrentar os problemas negar a existência. É possível, também,
envolvidos na perda de habilidades conforme Featherstone (1994), sugerir ca-
cognitivas e de controles físicos e emocio- minhos alternativos para enfrentá-la. O
nais que estigmatizam o velho e que são sonho que os avanços na pesquisa científi-
fundamentais, na nossa sociedade, para que ca ofereçam soluções para o envelhecimen-
um indivíduo seja reconhecido como um to das células humanas ou que a tecnologia
ser autônomo, capaz de um exercício pleno encontre formas capazes de minimizar os
dos direitos de cidadania. problemas da dependência na velhice ga-
Ativas na reprivatização do envelheci- nha cada vez mais concretude.
mento, essas imagens emergem num mo- O crescimento do número de aposenta-
mento em que o prolongamento da vida dos foi seguido do aumento do seu poder
humana é, sem dúvida, um ganho coletivo, político, de sua capacidade de exigir mais
mas também tem se traduzido em uma e implementar demandas políticas. Mas
ameaça à reprodução da vida social, num trabalhar, ter trabalhado ao longo da vida –
risco para o futuro da sociedade. As proje- no momento em que desenvolvimento eco-
ções sobre os custos da aposentadoria e da nômico não significa aumento da demanda
cobertura médica e assistencial do idoso por mão-de-obra, em que a engenharia
são apresentadas como um problema na- empresarial impõe que racionalizar é redu-
cional, indicador da inviabilidade de um zir empregos – pode se transformar num
sistema que em futuro próximo não pode- privilégio e não ser mais um desgaste que
rá arcar com os gastos de atendimento, mereça compensação.
mesmo com serviços precários como no Serão os velhos vistos como seres se-
caso brasileiro. dentários e inativos que consomem de ma-
Nas situações em que o desemprego e o neira avassaladora tanto as heranças que
subemprego atingem contingentes cada vez poderiam ser alocadas para grupos mais
maiores da população mais jovem, os cus- jovens na família quanto os recursos públi-
tos implicados na velhice, especialmente cos que deveriam ser distribuídos para ou-
aqueles envolvidos nas fases mais avança- tros setores da sociedade?
das da vida, crescem na mesma proporção Por enquanto, o que se pode dizer com
dos avanços tecnológicos postos em ação certeza é que, na busca de acessos privile-
para prolongar a vida humana. A imagina- giados para a compreensão da experiência
ção dos experts em contabilidade pública contemporânea, vale a pena olhar com mais
não vai além da sugestão de que três tipos atenção para as formas específicas em que
de medidas devem ser tomadas simultanea- se dá o remapeamento do curso da vida.
mente para garantir a viabilidade do siste- O convite que a idéia de pós-moderni-
ma: diminuição dos gastos públicos, au- dade faz nesta direção é especialmente
mento dos impostos, diminuição dos ven- importante quando compartilhamos de duas
cimentos dos aposentados e aumento da outras certezas. Por um lado, sabemos que
idade da aposentadoria. as previsões sobre o nosso futuro, princi-

80 REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999


palmente aquelas elaboradas pelos cientis-
tas e que são amplamente divulgadas para
o público leigo, tornam-se um elemento
fundamental no modo como esse público
programa suas vidas. Aprendemos, a duras
penas, o senso comum entre os economis-
tas, que prever inflação é influenciar o com-
portamento econômico dos agentes.
Estamos habituados a pensar nos pre-
conceitos, estereótipos e discriminações
através da idéia de profecias que se auto-
realizam – as imagens negativas, as atitu-
des discriminatórias acabam produzindo
sua própria confirmação – e, sem dúvida, é
uma tarefa fundamental desconstruí-los.
Contudo, é preciso considerar também que
as previsões proféticas podem tornar as
próprias profecias irrealizáveis. A plausi-
bilidade dos cenários que montamos para o
futuro da velhice dependerá muito do modo
como os indivíduos, em função dessas pre-
visões, forem convencidos de qual pode
ser o seu destino e das práticas por eles
postas em ação.
Transformar os problemas da velhice
em responsabilidade individual e apontar a
inviabilidade do sistema de financiamento
dos custos da idade avançada é recusar a
solidariedade entre gerações, impondo aos
que vão ficar velhos um novo programa de
preparação, capaz de redirecionar as reali-
dades antecipadas.
Por outro lado, certamente o nosso le-
que de escolhas é ampliado quando as iden-
tidades implicam tomadas de decisões bio-
gráficas, quando o corpo pode ser ampla-
mente formatado de modo a produzir a
aparência desejada, quando as fronteiras
entre o saber leigo e o saber dos experts
tendem a se embaçar, pois a mídia nos fa-
miliariza com o mundo da ciência, com suas
descobertas e com os conflitos que elas pro-
duzem entre os próprios especialistas.
É preciso reconhecer, no entanto, que
se a responsabilidade individual pela esco-
lha é igualmente distribuída, os meios para
agir de acordo com essa responsabilidade
não o são. A reprivatização da velhice trans-
forma o direito de escolha num dever de
todos, em uma realidade inescapável a que
estamos todos condenados.

REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999 81


A liberdade de escolha, mostra Bauman dade econômica. A sociedade brasileira é
(1997) com toda a razão, é um atributo hoje muito mais sensível e tem aberto es-
graduado, e acrescentar liberdade de ação paços para que experiências inovadoras
à desigualdade fundamental da condição de envelhecimento possam ser vividas. O
social, impondo o dever da liberdade sem sucesso dessas experiências não pode dis-
os recursos que permitem uma escolha ver- solver os dramas da velhice no descuido
dadeiramente livre é, numa sociedade alta- de alguns que foram impossibilitados de
mente hierarquizada como a brasileira, uma experimentar esses novos espaços, ado-
receita para uma vida sem dignidade, re- tando estilos de vida e formas de consumo
pleta de humilhação e autodepreciação. adequadas. No curso da vida pós-moder-
O multiculturalismo, colocando ênfa- no, especialmente quando está em jogo a
se na crítica aos estereótipos e discrimina- velhice avançada, estão envolvidos pro-
ções, complexificou nossos sentimentos e cessos de acirramento das hierarquias e a
nossa percepção das outras formas de ex- criação de novos padrões de desigualdade
clusão além daquelas dadas pela desigual- e intolerância.

BIBLIOGRAFIA

ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro, Guanabara, 1991.


BAUMAN, Z. O Mal-estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1998.
CANCHIONI, M. Envelhecimento Bem-sucedido e a Participação numa Universidade para a Terceira Idade. Dissertação
de Mestrado, Faculdade de Educação, Unicamp, 1997 (mimeo.).
DEBERT, G. G. “A Invenção da Terceira Idade e a Rearticulação de Formas de Consumo e Demandas Políticas”, in
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 12, no 34, 1997.
_____. “A Antropologia e o Estudo dos Grupos e das Categorias de Idade”, in M. M. Lins de Barros (org.), Velhice
ou Terceira Idade? Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998.
_____ e SIMÕES J. A. “A Aposentadoria e a Invenção da Terceira Idade”, in G. G.Debert (org.), Antropologia e
Velhice, Col. Textos Didáticos, Campinas, IFCH, Unicamp, 1994.
DOUGLAS, M. e WILDAVSKY, A. Risk and Culture: an Essay on the Selection of Technological and Environmental
Dangers. Berkeley, University California Press, 1983.
EISENSTADT, S. N. De Geração a Geração. São Paulo, Perspectiva, 1976.
ELIAS, N. O Processo Civilizador. Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990.
_____. La Soledad de los Moribundos. México, Fondo de Cultura Económica, 1987.
FEATHERSTONE, M. “O Curso da Vida: Corpo, Cultura e Imagens do Processo de Envelhecimento”, in G. G. Debert
(org.), Antropologia e Velhice, Col. Textos Didáticos, Campinas, IFCH, Unicamp, 1994.
FORTES, M. “Age, Generation and Social Structure”, in D. Kertzer e J. Keith (orgs.), Age and Anthropological Theory.
Ithaca, Cornell University Press, 1984.
GIDDENS, A. As Transformações da Intimidade – Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. São Paulo,
Editora da Unesp, 1992.
_____. Modernity and Self Identity. Self and Society in the Late Modern Age. Cambridge, Polity Press, 1992a.
GUERREIRO, P. “A Universidade para a Terceira Idade da PUCCAMP”. Monografia de Graduação, IFCH, Unicamp,
1993 (mimeo.).
HELD, T. “Institutionalization and Deinstitutionalization of the Life Course”, in Human Development, no 29, 1986.
KOHLI, M. e MEYER, J. W. “Social Structure and Social Construction of Life Stages”, in Human Development, no 29, 1996.

82 REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999


LIMA, M. A. A Gestão da Experiência de Envelhecimento em um Programa para a Terceira Idade. Dissertação de
Mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 1999 (mimeo.).
MEYROWITZ, J. No Sense of Place – The Impact of Eletronic Media on Social Behavior. Oxford, Oxford University
Press, 1985.
MOODY, H. R. “Overview: What is Critical Gerontology and Why is it Important?”, in T. R. Cole et al. (orgs.), Voices
and Visions od Aging – Toward a Critical Gerontology. New York, Springer Publishing Company, 1993.
PEATRIK, A. M. “Introduction”, in L’Homme, Revue Française d’Anthropologie, no 134, 1995.
PIRES, A. Velhos em Revista: Envelhecimento e Velhice nas Páginas de Cláudia e Playboy, Anos 80 e 90. Dissertação
de Mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 1998.
SEEGER, A. Os Índios e Nós. Rio de Janeiro, Campus, 1980.
TURNER, B. “Recent Developments in the Theory of the Body”, in M. Featherstone et al. (orgs.), The Body – Social
Process and Cultural Theory. London, Sage Publications, 1992.

REVISTA USP, São Paulo, n.42, p. 70-83, junho/agosto 1999 83

Você também pode gostar