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A CRIMINALIZAÇÃO NO ÂMBITO DO COMBATE À VIOLÊNCIA NO

DESPORTO. A ÚLTIMA SOLUÇÃO?

JOSÉ MANUEL MEIRIM1

NÚBIA ALVES2

I – INTRODUÇÃO

1. O trabalho do jurista, sob pena de viver permanentemente num mundo virtual, não se
pode quedar pela análise fria e desligada da realidade das normas de que se aproxima.
Seria pura e perigosa ilusão julgar uma ordem jurídica pela beleza, formal e técnica, das
normas que integra.

Se há domínio, agora no universo jusdesportivo, onde se impõe especial cautela na


formulação de juízos finais sobre a normação em apreço, esse é, diz-nos a experiência, o
da violência que convive com o desporto, muito em particular com uma das suas
modalidades mais populares, o futebol3.

Iniciemos, pois, este texto, com um exemplo da realidade portuguesa.

2. A 21 de Março de 2010 disputou-se, no Estádio do Algarve, a final da Taça da Liga,


opondo o SPORT LISBOA E BENFICA e o FUTEBOL CLUBE DO PORTO.

Nesse dia registaram-se bem significativas cenas de violência4.


1
Professor de Direito do Desporto da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, da
Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa e da Faculdade de Direito (Escola
de Lisboa) da Universidade Católica Portuguesa. Director da Desporto&Direito. Revista Jurídica do
Desporto.
2
Advogada. Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutoranda na Faculdade de
Direito da Universidade Nova de Lisboa.
3
Referimo-nos aqui à chamada violência exógena, ou seja, aquela que tem lugar fora do recinto de jogo
(violência endógena).
4
Eis alguns dados retirados da imprensa, onde o tema ocupou largo espaço: “Os autocarros que
transportaram os adeptos FC Porto chegaram na pior altura às imediações do Estádio do Algarve, com
alguns veículos a chegarem já sem vidros, o que contribuiu para acender o rastilho das cenas violentas
que se seguiram, apesar da escolta da polícia. Mal pararam na zona descampada de parqueamento, quase

1
No dia seguinte, o então presidente da Federação Portuguesa de Futebol vinha afirmar
que era necessário aprovar medidas mais duras para erradicar a violência associada aos
jogos de futebol, mostrando-se "chocado" com recentes incidentes.

Em declarações à Agência Lusa, o líder federativo considerou que "há que parar para
pensar e, de forma concertada, encontrar soluções para pôr cobro à violência que mina e
descredibiliza a imagem do futebol português e do próprio país". Afirmou:

"Este é, então, o momento de todos assumirmos as nossas responsabilidades e


tomarmos medidas enérgicas, que podem e devem passar pelo endurecimento das
medidas sancionatórias a tomar contra quem faz dos jogos de Futebol um palco de
violência".

Rematou:

"Fiquei chocado, triste e preocupado com os graves incidentes que antecederam o


jogo da final da Taça da Liga, entre o Benfica e o FC Porto, que teve lugar no
Estádio Algarve. As imagens que correram o país, este domingo, envergonham e
empobrecem o futebol português e não podem deixar de merecer o meu mais
profundo repúdio e veemente condenação".

2.1. A Guarda Nacional Republicana e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional


(LPFP) refutaram culpas nos acidentes, perante os prejuízos registados no Estádio do
Algarve.

três horas antes do início do encontro, algumas dezenas de adeptos saíram dos autocarros investindo à
pedrada”; "A polícia ainda vinha a caminho", justificou o major Vítor Calado, responsável pela operação.
Apesar de terem sido disponibilizados cerca de 1.110 efectivos da Guarda Nacional Republicana (GNR),
naquele que foi um esquema de segurança sem precedentes para garantir a segurança da final da Taça da
Liga, avaliada como um jogo de alto risco, os agentes presentes naquele local acabaram apanhados de
surpresa com a reacção rápida dos adeptos do FC Porto e não conseguiram conter as cenas que se
seguiram”; "Os autocarros deviam ter estacionado mais acima e não naquele local, para evitar a
aproximação dos adeptos das duas equipas". Em número visivelmente insuficiente, portanto, para evitar o
tumulto que se gerou, os guardas da GNR viram-se obrigados a carregar com bastões e a disparar balas de
borracha, inclusivamente, conforme confirmado mais tarde pelo major Vítor Calado, para evitar que a
situação se descontrolasse por completo. Os ânimos só começaram a sossegar, com a chegada de reforços
a cavalo e cães, que permitiram então aí sim a formação do cordão de segurança. Na refrega da investida
dos portistas houve a registar três feridos ligeiros com cortes devido a quedas, um deles, elemento da
GNR. As notícias que apontavam para a detenção de dois indivíduos acabaram por ser desmentidas
entretanto: "Apenas impedimos o acesso de alguns adeptos com sinais de embriaguês".

2
A LPFP afirmou ter despendido cem mil euros para garantir o policiamento 5. Por outro
lado, a força de segurança rejeitou ter cometido falhas no policiamento6.

O presidente da Câmara Municipal de Faro estimou entre 500 e 600 cadeiras partidas.

3. O sucedido neste jogo é apenas um exemplo, entre muitos, que se podiam oferecer.

E, não obstante esse repetir, certo é que, desde há muito, Portugal conta com normação
específica.

Só que, como muitas vezes já o afirmámos, tais normas não são efectivas 7, vigorando,
isso sim, uma omissão grave dos poderes públicos e privados responsáveis pelo
desporto, «aliados» perfeitos dos clubes e sociedades desportivas que, directa ou
indirectamente, apoiam os grupos organizados de adeptos.

Vigora, pois, assim nos parece, uma cultura de impunidade, cumplicidade e laxismo.

II – O TRILHO LEGISLATIVO EM PORTUGAL

4. Portugal, não obstante já contar com legislação própria no domínio agora em apreço
desde o início dos anos 80 do século passado8, vem também a ser tributário das
precipitações normativas que, na Europa, encontraram ponto de partida determinante na
Convenção Europeia Sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das
Manifestações Desportivas e Nomeadamente de Jogos de Futebol9.

5
O dobro do custo do policiamento do ano anterior.
6
Participaram na operação de segurança deste jogo 1.100 agentes das forças de segurança.
7
Curiosamente, o então membro do Governo responsável pela área do desporto, numa entrevista
concedida em Dezembro de 2007 – quando se iniciava o processo legislativo tendo em vista alcançar um
novo patamar normativo nesta matéria (e vigente lei de 2009) –, também afirmava que, em Portugal, “há
leis, mas ninguém as cumpre”. O principal objectivo para a nova legislação era, como sempre é adiantado
nestas ocasiões, “erradicar do desporto a violência, de forma a valorizar a ética e convivência nos
espectáculos desportivos”.
8
Coube ao Decreto-Lei nº 339/80, de 30 de Agosto, concretizar as primeiras medidas tendentes a conter,
a curto prazo (no seu dizer), a violência nos recintos desportivos. Este diploma veio a sofrer alterações
por força da Lei nº 16/81, de 31 de Julho e, mais tarde, o Decreto-Lei nº 61/85, de 12 de Março, revogou
estes dois diplomas.
Sobre as soluções e a evolução registada nestes diplomas pode consultar-se JOSÉ MANUEL MEIRIM, «A
violência associada ao desporto (aproximação à legislação portuguesa)», Boletim do Ministério da
Justiça, nº 389, em especial, p. 27 e ss. [5-40].

3
Na sequência deste acordo europeu, Portugal assume situação quase sem paralelo no
contexto internacional10 ao consagrar no texto constitucional norma que coloca a
violência no desporto no ponto mais alto da pirâmide normativa interna11.

Com efeito, com a revisão constitucional de 1989, o artigo 79º, nº 2, em sede de direitos
fundamentais culturais, ao consagrar o direito ao desporto e à cultura física (nº 1),
endereçando, do mesmo passo, um conjunto de incumbências ao Estado para a sua
efectivação, vem afirmar, no segmento final da norma, “bem como prevenir a violência
no desporto”.

9
Convenção nº 120 do Conselho da Europa, feita em Estrasburgo, a 19 de Agosto de 1985. O texto foi
aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n° 11/87, publicada no DR, 1ª
série, nº 57, de 10 de Março de 1987.
Conforme aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, publicado no DR, 1ª série, nº 204, de 5 de
Setembro de 1987, Portugal depositou, em 26 de Junho de 1987, o respectivo instrumento de ratificação.
A Convenção entrou em vigor, para o nosso país, em 14 de Agosto de 1987.
Para uma apreensão do conteúdo da convenção, consulte-se ANTONIO MILLÁN GARRIDO, «La violencia
deportiva en el âmbito supranacional: el Convenio Europeo de 1985», na obra colectiva por si coordenada
Régimen jurídico de la violencia en el deporte, Barcelona, Bosch, 2006, pp. 63-113.
10
Cabo Verde recolheu semelhante mensagem normativa no artigo 79º, nº 2, alínea d), do seu texto
constitucional.
11
Portugal conta, desde 1990, com uma lei de bases enformadora do desporto.
E, nesse plano, nunca a questão da violência esteve ausente.
Na primeira, a Lei de Bases do Sistema Desportivo – Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro, rectificada no DR, nº
64, de 17 de Março e alterada pela Lei nº 19 /96, de 25 de Junho –, é o artigo 5º, em particular o seu nº 3,
que se centra nesse domínio (“Na prossecução da defesa da ética desportiva, é função do Estado adoptar
as medidas tendentes a prevenir e a punir as manifestações antidesportivas, designadamente a violência, a
corrupção, a dopagem e qualquer forma de discriminação social”). Por sua vez, na Lei de Bases do
Desporto – Lei nº 30/2004, de 21 de Julho –, para além do artigo 16º, o qual previa a criação de um
Conselho de Ética Desportiva, o artigo 40º seguia os mesmos passos da lei anterior. Todavia, o artigo 43º
actualizava o discurso, conferindo espaço à luta contra a violência e a intolerância racial e étnica (“O
Estado e os corpos sociais intermédios públicos e privados que compõem o sistema desportivo colaboram
para assegurar a manutenção da ordem nas infra-estruturas desportivas e para evitar actos de violência,
racismo, xenofobia e todas as demais formas de discriminação ou intolerância racial e étnica”). Por fim, a
vigente Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto – Lei nº 5/2007, de 16 de Janeiro –, no seu artigo
3º (Princípio da ética desportiva), expressa-se da seguinte forma:
21. A actividade desportiva é desenvolvida em observância dos princípios da ética, da defesa do
espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes.
2. Incumbe ao Estado adoptar as medidas tendentes a prevenir e a punir as manifestações
antidesportivas, designadamente a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo, a xenofobia e
qualquer forma de discriminação.
3. São especialmente apoiados as iniciativas e os projectos, em favor do espírito desportivo e da
tolerância”.

4
No plano da legislação ordinária, coube ao Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de Agosto 12,
plasmar as apostas e soluções da Convenção do Conselho da Europa. Este diploma, que
revoga o regime anterior, apresenta dados significativamente inovadores, vindo tornar
efectivas as medidas preconizadas pela Convenção Europeia. Não se tratou somente de
rectificar alguns aspectos merecedores de melhor atenção, mas sim de dotar o
ordenamento jurídico de um novo conjunto de regras.

5. Ao diploma de 1989 segue-se a Lei nº 38/98, de 4 de Agosto 13, a qual, em bom rigor,
inaugura a regulação específica dos grupos organizados de adeptos.

Por outro lado, é este diploma que incorpora, pela primeira vez, novas modalidades de
manifestações antidesportivas – como o racismo e a xenofobia –, procurando dar
resposta a novas situações (e preocupações públicas) que tomam o desporto por veículo.

No que nos interessa agora destacar é que este marco legislativo mantém o registo duplo
ao nível sancionatório que já vinha do passado.

Assim, para além dos ilícitos disciplinares 14, contamos com a previsão de contra-
ordenações (artigos 21º a 27º).

12
Cujo texto foi rectificado no DR, nº 251, 1ª série, 2º suplemento, de 31 de Outubro de 1989.
Para uma leitura das normas deste diploma, ver JOSÉ MANUEL MEIRIM, A violência associada ao
desporto. Colectânea de textos, Lisboa, Ministério da Educação, 1994. Registe-se ainda que algumas das
normas do Decreto-Lei nº 270/89, estiveram sujeitas ao crivo do Tribunal Constitucional. Com efeito, o
Provedor de Justiça veio requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade material, com força
obrigatória geral, de normas legais e regulamentares federativas, tendo por objecto a aplicação de sanções
aos clubes desportivos em virtude de actos, reconduzíveis a situações de violência associada ao desporto,
praticados por seus adeptos. Disso se ocupou o importante – a diversos títulos – Acórdão nº 730/95, de 14
de Dezembro, publicado no DR, 2ª Série, nº 31, de 6 de Fevereiro, pp. 1854-1864, nos AcTC, 32º vol., pp.
255-291 e no Boletim do Ministério da Justiça, nº 452, pp. 148-180. Uma anotação deste importante
acórdão foi elaborada por JOSÉ MANUEL MEIRIM («A fiscalização da constitucionalidade dos
regulamentos das federações desportivas») na Revista do Ministério Público, Ano 17º, Abril-Junho 1996,
nº 66, pp. 117-130.
13
Que veio estabelecer medidas preventivas e punitivas a adoptar em caso de manifestações de violência
associadas ao desporto. Este diploma revogou, no seu artigo 38º, o Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de
Agosto e, por sua vez, veio a ser revogado pela Lei nº 16/2004, de 11 de Maio (artigo 43º). Ver análise
deste diploma levada a cabo por JOSÉ MANUEL MEIRIM em «A prevenção e punição das manifestações de
violência associada ao desporto no ordenamento jurídico português», Revista do Ministério Público, Ano
21, Julho-Setembro 2000, nº 83, pp.121-156.
14
Sobre esta matéria dispõe o artigo 4º, determinando deveres de regulamentação disciplinar às
federações desportivas e às ligas profissionais de clubes.

5
Significa este estado de coisas, que o legislador português, desde 1980 até ao termo da
vigência da Lei nº 38/98 – de que cuidaremos já de seguida –, não sentiu a necessidade
de jogar mão da resposta sancionatória pública mais gravosa.

III – A RESPOSTA PENAL NA LEI Nº 16/2004, DE 11 DE MAIO

6. É com a Lei nº 16/2004, de 11 de Maio 15, que aprovou medidas preventivas e


punitivas a adoptar em caso de manifestação de violência associadas ao desporto que se
opera o turning point relativamente ao sistema sancionatório até então vigente e que
assentava num registo disciplinar e contra-ordenacional.

A partir deste marco legislativo, a estas duas respostas punitivas (clássicas) adita-se a
criminalização de algumas condutas16.

Assim, o Capítulo III, respeitante ao regime sancionatório, recolhe crimes (Secção I,


artigos 21º a 30º), contra-ordenações (Secção II, artigos 31º a 36º) e ilícitos disciplinares
(Secção III, artigos 37º a 40º).

O nosso interesse radica, no essencial, na vertente criminal e, por isso, passemos a dar
conta dos tipos de crimes presentes na lei de 200417.

15
Revogada pelo artigo 52º da Lei nº 39/2009, de 30 de Julho.
Registe-se ainda a Lei Orgânica nº 2/2004, de 12 de Maio, que veio estabelecer o regime temporário da
organização da ordem pública e da justiça no contexto extraordinário da fase final do Campeonato
Europeu de Futebol – Euro 2004.
16
Seguindo via diversa da portuguesa, o legislador espanhol optou por criminalizar algumas condutas
neste específico domínio, através da Ley Orgánica 15/2003, de 25 de Novembro, tendo sido alterados os
artigos 557º e 558º (De los desordenes públicos) e 633º (Faltas contra el orden público) do Código Penal.
Ver, a este respeito, ROSA VENTAS SASTRE, «La tutela penal», Comentarios a Ley contra la Violencia, el
Racismo, la Xenofobia y la Intolerancia en el Deporte, coordenação de ALBERTO PALOMAR OLMEDA e
EDUARDO GAMERO CASADO, Navarra, Thomson/Aranzadi, 2008, pp. 568-575 [565-586] e «La violencia
en espectáculos deportivos: eventual responsabilidad penal», Revista Española de Derecho Deportivo,
Ano 2007-2, nº 20, pp. 59-71, e LORENZO MORILLAS CUEVA e JOSÉ MARIA SUÁREZ LÓPEZ, «Régimen
penal de la violencia en el deporte», Régimen jurídico de la violencia en el deporte, coordenação de
ANTONIO MILLÁN GARRIDO, Barcelona, Bosch, 2006, pp. 305-326, [312-324].
17
Sobre esta vertente, consulte-se JORGE BAPTISTA GONÇALVES, «Os crimes na lei sobre a prevenção e
punição da violência associada ao desporto (Algumas considerações)», I Congresso de Direito do
Desporto, Estoril – Outubro de 2004, Memórias, Coordenação de RICARDO COSTA e NUNO BARBOSA,
Coimbra, Almedina, 2005, pp. 98-121 e TERESA ALMEIDA, «Violência associada ao desporto – As normas
tipificadoras de ilícitos penais da Lei nº 16/2004», Desporto & Direito. Revista Jurídica do Desporto,
Ano II, nº 4, Setembro-Dezembro 2004, pp. 37-45.

6
7. O artigo 21º, refere-se à distribuição irregular de títulos de ingresso:

“1. Quem distribuir para venda ou vender títulos de ingresso para um espectáculo
desportivo, em violação do sistema de emissão de títulos de ingresso previsto no
artigo 15º, seja sem ter recebido autorização expressa e prévia do organizador da
competição desportiva, seja com intenção de causar distúrbios ou de obter para si
ou para outrem valor patrimonial com fins lucrativos, é punido com pena de prisão
até 3 anos ou com pena de multa até 500 dias.
2. A tentativa é punível”.

8. Segue-se, no artigo 22º, o crime de dano qualificado por deslocação para ou de


espectáculo desportivo:

“Quem, deslocando-se em grupo para ou de espectáculo desportivo, destruir, no


todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável transporte público
ou instalação e equipamento utilizado pelo público ou de utilidade colectiva ou
outros elementos patrimoniais de relevo é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos,
ou com pena de multa até 600 dias”.

9. O artigo 23º cria o crime de participação em rixa na deslocação para ou de


espectáculo desportivo:

“Quem, quando da deslocação para ou de espectáculo desportivo, intervier ou


tomar parte em rixa entre duas ou mais pessoas de que resulte:
a) Morte ou ofensa à integridade física dos contendores;
b) Risco de ofensa à integridade física ou perigo para terceiros; ou
c) Alarme ou inquietação entre a população;
é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa”.

10. Por sua vez, o artigo 24º prevê o arremesso de objectos:

“Quem, quando da ocorrência de um espectáculo desportivo, no interior do recinto


desportivo, desde a abertura até ao encerramento do mesmo, criando perigo para a
integridade física dos intervenientes nesse espectáculo, arremessar objectos
contundentes ou que actuem como tal, ou ainda produtos líquidos, é punido com
pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa”.

7
11. O crime de invasão da área do espectáculo desportivo encontra-se previsto no artigo
25º:

“1. Quem, quando da ocorrência de um espectáculo desportivo, no interior do


recinto desportivo, desde a abertura até ao encerramento do mesmo, invadir a área
desse espectáculo ou aceder a zonas do recinto desportivo inacessíveis ao agente é
punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.
2. Se das condutas referidas no número anterior resultar perturbação do normal
curso do espectáculo desportivo, traduzida na suspensão, interrupção ou
cancelamento do mesmo, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com
pena de multa até 500 dias”.

12. Por último, no artigo 26º, deparamo-nos com os tumultos:

“Quem, quando da ocorrência de um espectáculo desportivo, no interior do recinto


desportivo, em qualquer momento, desde a abertura até ao encerramento do
mesmo, actuar em grupo atentando contra a integridade física de terceiros, desse
modo provocando reacções dos restantes espectadores e colocando em perigo a
segurança no interior do recinto desportivo, é punido com pena de prisão de 6
meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 500 dias”. 18

IV – A RESPOSTA PENAL NA LEI Nº 39/2009, DE 30 DE JULHO

13. Como já referimos, o quadro normativo vigente é o constante da Lei nº 39/2009 19,
que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à
intolerância nos espectáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos
mesmos com segurança.

Também aqui, sem surpresas, se adopta um regime sancionatório tripartido, inserido no


seu Capítulo III.

18
Complementando os artigos mencionados, o artigo 27º ocupa-se da medida de coacção de interdição de
acesso a recintos desportivos, o artigo 28º da pena acessória de privação de direito de entrar em recintos
desportivos, o artigo 29º da criação de uma base de dados nacional contendo os registos das pessoas
sujeitas à medida de interdição de acesso ao recinto desportivo e o artigo 30º sobre a prestação de
trabalho a favor da comunidade.
19
O artigo 52º revoga expressamente a Lei nº 16/2004, de 11 de Maio e, por sua vez, o artigo 53º
determina que a lei entra em vigor 30 dias após a data da sua publicação.

8
Os crimes (Secção I, artigos 27º a 38º), os ilícitos de mera ordenação social (Secção II,
artigos 39º a 45º) e os ilícitos disciplinares (Secção III, artigos 46º a 49º).

14. Numa aproximação na generalidade dos tipos de crime agora estabelecidos, em


confronto com os da lei anterior, dir-se-á que não houve alterações significativas,
mantendo-se a mesma base de previsão dos crimes, à excepção do aditamento do artigo
34º da Lei nº 39/2009.

De um modo geral, arrisca-se a afirmar que o legislador, com a nova lei, teve em vista
tornar a redacção legal mais clara e precisa, de modo a dissipar dúvidas e responder às
críticas levantadas pelos intérpretes. Ademais, pontualmente introduziu alguma
modificação no que respeita ao limite da pena de prisão ou multa das molduras penais
abstractamente consideradas.

15. Iniciemos a nossa análise na especialidade pelo crime previsto no artigo 27º,
distribuição e venda de títulos de ingresso falsos ou irregulares, tecendo algumas
breves considerações:

“1. Quem distribuir para venda ou vender títulos de ingresso para um espectáculo
desportivo em violação do sistema de emissão e venda de títulos de ingresso
previsto no artigo anterior ou sem ter recebido autorização expressa e prévia do
organizador da competição desportiva, é punido com pena de prisão até 3 anos ou
com pena de multa.
2. A tentativa é punível”.

Confrontado com o artigo 21º da Lei nº 16/2004, nota-se que o legislador manteve a
previsão de dois tipos penais: distribuir para venda ou vender títulos de ingresso em
violação do sistema de emissão e venda previsto no artigo 26º20; distribuir para venda ou
vender títulos de ingresso sem que o agente tenha recebido autorização expressa e
prévia do organizador da competição desportiva.
20
JORGE BAPTISTA GONÇALVES, na seara de TERESA ALMEIDA aquando dos comentários ao artigo 21º da
Lei nº 16/2004, ressalta que o artigo 27º da Lei nº 39/2009 peca por não definir precisamente todo o
sistema de emissão de títulos, não sendo claro, portanto, o sentido da remissão geral para o sistema
prescrito no artigo antecedente (Comentários das Leis Penais Extravagantes, org. PAULO PINTO DE
ALBUQUERQUE; JOSÉ BRANCO, vol. 2, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 742).

9
Mas a lei de 2009 deixou de exigir o dolo específico para a configuração da norma21.

Com efeito, tornou-se irrelevante auferir a intenção especial do agente no cometimento


do crime, se para “causar distúrbios” ou para “obter para si ou para outrem valor
patrimonial com fins lucrativos”.

Esta alteração veio, em termos práticos, facilitar o trabalho dos juristas no que respeita à
determinação probatória, bem como dissipar dúvidas de interpretação que de certa
forma dividia a doutrina, passando a ser suficiente para a condenação do sujeito activo a
exigência de dolo genérico22.

A Lei nº 39/2009 manteve a pena privativa de liberdade até 3 anos, em alternativa à


pena de multa.

16. Sobre a distribuição e venda irregulares de títulos de ingresso, versa o artigo 28º:

“1. Quem distribuir para venda ou vender títulos de ingresso para um espectáculo
desportivo de modo a provocar sobrelotação do recinto desportivo, em parte ou no
seu todo, ou com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem
patrimonial sem que para tal esteja autorizado, é punido com pena de prisão até 3
anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível”.

Esta moldura penal também tem antecedentes no artigo 21º da Lei nº 16/2004.

Efectivamente, nota-se que o legislador desdobrou o artigo 21º da Lei nº 16/2004 nos
artigos 27º e 28º da Lei nº 39/2009.

Assim, a intenção de provocar distúrbios, que antes era requisito para a configuração do
artigo 21º da Lei nº 16/2004, passou a integrar a descrição da conduta tipificada no
artigo 28º da Lei nº 39/2009. Esta concretiza-se sob a forma de distribuição ou venda de

21
Esclarece, ainda, JORGE BAPTISTA GONÇALVES, como na nota 17, p. 103 e na nota 20, pp. 741-742, que
a subordinação da emissão e venda de títulos de ingresso a regras específicas “não é estranha às questões
de segurança e prevenção da violência, pois só através do controlo do circuito de distribuição dos
ingressos é possível, por exemplo, assegurar que a lotação dos recintos desportivos não será ultrapassada,
que será respeitado o princípio da separação física dos espectadores, por clubes ou associações, que o
controlo informático do sistema será eficaz, etc.”.
22
Desenvolvidamente, TERESA ALMEIDA, como na nota 17, pp. 38-41.

10
títulos de ingresso de modo a provocar sobrelotação do recinto desportivo ou, ainda,
com intenção de obter, para si ou para outrem, vantagem patrimonial ilícita.

Do que se pode inferir que a redacção da lei em vigor denota o cuidado do legislador em
tornar mais compreensível o texto legal, mas sem representar substancial alteração em
termos de densidade ou de danosidade social relativamente à previsão do ilícito de
distribuição e venda irregulares de títulos de ingresso.

Tanto mais que repetiu a previsão de aplicação de pena privativa de liberdade até 3 anos
em alternativa à pena de multa.

Em todo o caso, o bem jurídico que a norma protege é a segurança no espetáculo


desportivo, posta em causa tanto em face da sobrelotação do recinto, ainda que restrita a
uma área específica, como através da venda irregular de bilhetes de ingresso.

17. Segue-se o artigo 29º respeitante ao crime de dano qualificado no âmbito de


espectáculo desportivo:

“Quem, quando inserido num grupo de adeptos, organizado ou não, destruir, no todo ou
em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável transporte público, instalação ou
equipamento utilizado pelo público ou de utilidade colectiva ou outros bens de relevo, é
punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, ou com pena de multa até 600 dias”.

Este artigo tem como fonte o artigo 22º da Lei nº 16/2004, tipificado como dano
qualificado por deslocação para ou de espectáculo desportivo.

Ademais, pouco difere do crime de dano qualificado descrito no artigo 213º, nº 1, al. c),
do Código Penal português, isto é, do dano provocado em coisa destinada ao uso e
utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos. Nota-se, em ambos os casos,
identidade relativamente ao máximo da pena de prisão e à moldura da multa alternativa
cominada – prisão até 5 anos ou multa até 600 dias – muito embora o mínimo da pena
de prisão prevista para o delito em abstracto seja bastante inferior no Direito Penal
comum – 1 mês23.

23
Ao comentar sobre o artigo 22º da Lei nº 16/2004, JORGE BAPTISTA GONÇALVES, como na nota 17, pp.
106 e 107, traça como um elemento distintivo a “circunstância de o artigo 21º, nº 1, al. c), na
interpretação que lhe é dada, por exemplo, pelo Prof. Costa Andrade, exigir o carácter imediato da

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Com efeito, tendo a propriedade como bem jurídico a ser protegido, há quem se insurja
contra a criação de um tipo penal especial, quando já haveria previsão similar no
ordenamento jurídico português.

Mas, na lei extraordinária o legislador visou tutelar, especificamente, a paz social ou a


paz pública que se pretende resguardar nos espectáculos desportivos, respondendo desta
forma à crescente onda de violência relacionada com esses eventos.

Diz-se que esta norma demonstra claramente a preocupação do legislador em ampliar o


campo de actuação da lei, na medida em que é conhecido o “efeito de contágio de um
grupo”. Não se ignora, pois, que a violência no desporto muitas vezes se traduz numa
violência colectiva, exercida por pessoas que se reúnem motivadas pelo mesmo
objectivo e paixão, sugestionadas para atentar sem mais contra a segurança pública24.

De modo que este delito pretende englobar a actuação violenta ou lesiva dos adeptos
contra bens de interesse público, não somente adstrita ao recinto desportivo, mas desde
que se reúnam e se desloquem imbuídos num espírito de vandalismo desencadeado ou
relacionado com o espectáculo.

Atente-se que não se trata necessariamente de um tipo de crime plurissubjectivo. A


norma prevê apenas que a conduta criminosa seja realizada por quem esteja inserido
num grupo de adeptos e não que seja praticada em grupo, no âmbito da criminalidade
coletiva. O que de facto releva é o nexo de causalidade que se estabelece entre a
conduta típica e o espectáculo desportivo que se quer proteger.

18. A participação em rixa na deslocação para ou de espectáculo desportivo encontra-


se estabelecida no artigo 30º:

utilidade pública da coisa – coisas de utilidade pública serão, neste critério, aquelas de que o público se
pode utilizar ou tirar um imediato proveito, sem necessidade de mediação –, o que levaria a excluir casos
como danos praticados num carro-patrulha da polícia ou no auto-tanque dos bombeiros, por se tratar de
coisas que apenas facilitam ou possibilitam a actividade de pessoas no adimplemento das suas tarefas de
utilidade pública… Ora, o artigo 22º, ao distinguir entre ‘instalação e equipamento utilizado pelo público’
e ‘instalação e equipamento de utilidade colectiva’, poderá inculcar um alargamento do objecto da acção
a coisas que tenham essa utilidade, ainda que sem a exigência de imediação na utilização pelo público”.
24
Ver, ALEXANDRE MIGUEL MESTRE, «Lei nº 39/2009, de 30 de Julho (estabelece o regime jurídico do
combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos, de forma a
possibilitar a realização dos mesmos com segurança», A Nova Legislação do Desporto Comentada,
Coimbra, Coimbra Editora, Colecção PLMJ, 2010, p. 330.

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“1. Quem, quando da deslocação para ou de espectáculo desportivo, intervier ou
tomar parte em rixa entre duas ou mais pessoas de que resulte:
a) Morte ou ofensa à integridade física dos contendores;
b) Risco de ofensa à integridade física ou perigo para terceiros; ou
c) Alarme ou inquietação entre a população;
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A participação em rixa não é punível quando for determinada por motivo não
censurável, nomeadamente quando visar reagir contra um ataque, defender outra
pessoa ou separar os contendores”.

O artigo 30º da Lei nº 39/2009 corresponde ao artigo 23º da Lei nº 16/2004, como
também encontra similitudes no crime de participação em rixa descrito no artigo 151º
do Código Penal.

Como já reportado, a intenção do legislador em dar especificidade a determinados


crimes na Lei do Desporto – a exemplo do de participação em rixa – foi de facto cobrir
situações de violência relacionadas com o espectáculo desportivo, de forma abrangente,
isto é, não restringindo-se ao local da competição.

Portanto, desde que relacionado com um determinado espectáculo desportivo,


independentemente do espaço temporal, é possível a realização prática da presente
norma, que dada a sua especialidade afasta a aplicação do Direito Penal comum25.

Curiosamente, a moldura da pena de prisão em alternativa à multa é mais grave na Lei


nº 39/2009 – até 3 anos – do que no artigo 151º do Código Penal – até 2 anos.

Para além disso, causa espécime que a moldura penal in casu também seja mais grave,
posto que o crime de participação em rixa do Código Penal só se verifica quando a
conduta resultar em morte ou ofensa à integridade física grave, não sendo suficiente as
simples vias de facto conatural à rixa, o perigo para terceiros ou a inquietação entre a
população.

Efectivamente, o tipo penal da lei especial é excessivo relativamente ao do Código


Penal, indo de encontro às determinações de política criminal que se sufraga.
25
JORGE BAPTISTA GONÇALVES, como na nota 20, p. 749, insurge-se contra o que considera um excessivo
alargamento da norma, pugnando pela existência de “algum nexo objectivo, directo, de alguma
continuidade temporal entre o acto de deslocação e o espectáculo desportivo que se vai realizar ou o
espectáculo desportivo que já se realizou, pois a rixa terá de ocorrer, de algum modo, por causa e no
âmbito do facto desportivo”. Esta interpretação, muito embora a sua coerência, não parece que seja a que
mais se coadune com a intenção do legislador.

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Para além disso, é de difícil percepção, tendo em conta que utiliza conceitos jurídicos
vagos e indeterminados, tais como “perigo para terceiros” e “inquietação”.

Na mesma linha, deixa pouco esclarecido qual o sentido que o legislador quis imprimir
a “risco de ofensa à integridade física ou perigo para terceiros”, na medida em que os
difere. Supõe-se que seja tutelado, igualmente, tanto o risco de ofensa quanto o perigo
para a vida e a integridade física de terceiros, mas de forma que não se percebe o rigor
de tamanha amplitude conceitual, acabando por tonar ambivalente o sentido da norma26.

O facto é que desde a Lei nº 16/2004 a doutrina insurge-se contra a redacção dúbia desta
norma. Não obstante, não se verifica nenhuma melhoria significativa acrescida pela Lei
nº 39/2009, a não ser a previsão da cláusula de exclusão de punibilidade descrita no nº 2
do artigo 30º, à semelhança do que já ocorria no nº 2 do artigo 151º do Código Penal.

19. No artigo 31º encontra-se previsto o crime de arremesso de objectos ou de produtos


líquidos:

“Quem, encontrando-se no interior do recinto desportivo durante a ocorrência de


um espectáculo desportivo, arremessar objectos ou produto líquido e criar deste
modo perigo para a vida ou a integridade física de outra pessoa, é punido com pena
de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Desde a Lei nº 38/98, de 4 de Agosto, o legislador ordinário preocupou-se com o


arremesso de objectos nos recintos desportivos, embora constituísse apenas uma contra-
ordenação, passível de coima.

Passou, no entanto, à categoria de crime com a Lei nº 16/2004, consoante exposto no


seu artigo 24º.

Mas de forma mais precisa o artigo 31º da Lei nº 39/2009 veio descrever o tipo penal,
afastando desta forma dificuldades interpretativas outrora levantadas pela doutrina.

26
Acrescenta JORGE BAPTISTA GONÇALVES, como na nota 20, p. 750, que a al. b) do nº 1 do artigo 30º da
Lei nº 39/2009 veio acabar por colmatar a brecha deixada pela sua al. a), alargando a punibilidade da
acção quando da rixa resultar a morte ou ofensa a integridade física de um terceiro. Por outro lado, critica
o facto do legislador não exigir, em relação aos contentores, a ofensa a integridade física grave, como já o
faz no Código Penal, acabando por misturar no mesmo tipo “a punibilidade em função da ‘morte’
(máximo) e a punibilidade das simples vias de facto (mínimo)”.

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Com efeito, a presente Lei incide sobre a conduta típica de lançar (e não apenas portar)
objectos materiais ou líquidos no local onde se realiza o evento desportivo, de forma a
pôr em risco a vida ou a integridade física de outras pessoais, sejam intervenientes ou
meros espectadores.

Via de regra, os produtos líquidos vêm armazenados em recipientes, mas podem ser
lançados de forma isolada ou dentro dos mesmos, passando neste último caso a serem
considerados como uma espécie de objecto contundente.

A este propósito, fixou-se jurisprudência no sentido de que, se o objecto ou produto


líquido arremessado se tratar de um artefacto pirotécnico ou explosivo civil –
comumente utilizado pelas claques de futebol, apesar de ilegal a sua introdução nos
estádios –, se justificará a incriminação pelo artigo 86º, nº 1, da Lei nº 5/2006, de 23 de
Fevereiro, que trata do regime das armas e munições27.

Ressalte-se que o crime consuma-se com o simples arremesso ou criação de perigo para
o bem jurídico em causa.

A Lei nº 39/2009 veio também majorar a sanção cominada ao delito, que passou de pena
de prisão de até 1 ano para até 3 anos, em alternativa à pena de multa.

20. Sobre a invasão da área do espectáculo desportivo, ocupa-se o artigo 32º:

“1. Quem, encontrando-se no interior do recinto desportivo durante a ocorrência de


um espectáculo desportivo, invadir a área desse espectáculo ou aceder a zonas do
recinto desportivo inacessíveis ao público em geral, é punido com pena de prisão
até 1 ano ou com pena de multa.
2. Se das condutas referidas no número anterior resultar perturbação do normal
curso do espectáculo desportivo que implique a suspensão, interrupção ou
cancelamento do mesmo, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com
pena de multa”.

Com poucas alterações, este tipo penal foi descrito no artigo 25º da Lei nº 16/2004.
Essencialmente, a Lei nº 39/2009 veio modificar o limite da pena de prisão cominada ao

27
Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo nº 341/10.9SMPRT.P1, de 12 de
Outubro de 2011, Rel. RICARDO COSTA E SILVA, disponível para consulta no sítio:
<http://www.trp.pt/jurisprudenciacrime/crime_341/10.9smprt.p1.html>, acesso em 26-03-2012.

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delito agravado, previsto no nº 2 do artigo 31º, minorando-a de até 3 anos para até 2
anos, em alternativa à multa.

O bem jurídico que a norma protege é a segurança no espectáculo desportivo, a vida e a


integridade física das pessoas presentes.

O artigo 3º, al. b), da Lei nº 39/2009 define área do espectáculo desportivo como sendo
“a superfície onde se desenrola o espectáculo desportivo, incluindo as zonas de
protecção definidas de acordo com os regulamentos da respectiva modalidade”.

Para a configuração do delito, o sujeito ativo deve se encontrar no interior do recinto


desportivo e a conduta típica deve ser desencadeada durante a ocorrência de um
espectáculo desportivo.

Quer isto dizer que o agente deve se encontrar no local onde o evento desportivo tenha
lugar, “confinado ou delimitado por muros, paredes ou vedações, em regra com acesso
controlado e condicionado” (artigo 3º, al. m), da Lei nº 39/2009).

Mais, que a ação seja levado a cabo no espaço temporal que permeia “desde a abertura
até ao encerramento do recinto desportivo” (artigo 3º, al. f), da Lei nº 39/2009), ainda
que findo o jogo28.

O tipo não requer execução violenta, sendo suficiente que o invasor estorve o normal
desenrolar do espectáculo, seja com intenção de agredir outrem ou mesmo de apenas
chamar a atenção.

21. No artigo 33º cria-se o crime de ofensas à integridade física actuando em grupo:

“Quem, encontrando-se no interior do recinto desportivo, durante a ocorrência de


um espectáculo desportivo, actuando em grupo, ofender integridade física de
terceiros, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa não
inferior a 500 dias”.

28
Esta é a posição firmada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo nº
76/08.2GACBT.G1, de 10 de Maio de 2010, Rel. ANA TEIXEIRA, onde, para efeito de condenação pelo
crime de invasão da área do espectáculo desportivo, se entendeu que até o encerramento do recinto
desportivo não se considera findo o espectáculo, ainda que volvidos 30 minutos do decurso do jogo.
Acórdão disponível para consulta no sítio: <http://www.trg.pt/jurisprudencia/acordaostrg.html >, acesso em:
26-03-2012.

16
O artigo 33º da Lei nº 39/2009 tem precedente no artigo 26º da Lei nº 16/2004, com a
epígrafe tumultos.

Para além da integridade física, o legislador visou resguardar a segurança pública no


interior dos recintos desportivos, cujo perigo é potencializado pela condição propícia à
formação de “massa” ou multidão enfurecida. Este é, seguramente, um crime de
natureza plurissubjectiva, ou seja, que exige a necessária intervenção de uma
pluralidade de sujeitos.

Com efeito, exige-se que a conduta típica tenha lugar no interior do recinto desportivo e
durante a ocorrência de um espectáculo desportivo.

Importa notar que a lei de 2009 manteve a mesma pena de prisão até 3 anos ou multa,
consoante já era previsto na Lei nº 16/2004. Também no Código Penal o crime de
ofensa à integridade física simples é punido com pena de prisão até 3 anos, nos termos
do artigo 143º, nº 1, mas a multa não pode ultrapassar os 360 dias previstos no seu
artigo 47º.

Outro dado que se destaca é a natureza pública da ação penal, como, aliás, é comum a
todos os crimes previstos na Lei nº 39/2009, diferindo neste aspecto do crime de ofensa
à integridade física simples de que trata o Código Penal.

22. Por fim, o artigo 34º refere-se aos crimes contra agentes desportivos específicos:

“1.Se os actos descritos nos artigos 29.º a 31.º forem praticados de modo a colocar
em perigo a vida, a saúde, a integridade física ou a segurança dos praticantes,
treinadores, árbitros e demais agentes desportivos que estiverem na área do
espectáculo desportivo, bem como aos membros dos órgãos de comunicação social
em serviço na mesma, as penas naqueles previstas são agravadas, nos seus limites
mínimo e máximo, até um terço.
2. A tentativa é punível”. 29
Neste aspecto, a Lei nº 39/2009 veio inovar, acrescentando um artigo sem parâmetro na
revogada Lei nº 16/2004.

29
O “espaço penal” da Lei nº 39/2009 compreende ainda o artigo 35º, que respeita à pena acessória de
privação do direito de entrar em recintos desportivos, o artigo 36º, sobre a medida de coacção de
interdição de acesso a recintos desportivos e o artigo 37º, relativo à prestação de trabalho a favor da
comunidade.

17
Trata-se da previsão de um agravamento das penas cominadas aos delitos em comento,
quando perpetrados contra pessoas directamente envolvidas no evento desportivo ou
pertencente aos órgãos de comunicação em serviço.

Com isto, o legislador entendeu por bem dispensar maior tutela penal a determinadas
pessoas, em razão da sua natureza ou condição, seguindo assim as orientações propostas
pelos Pareceres do Conselho Nacional do Desporto e do Governo Regional da Madeira
de 31 de Março de 200930.

V – ESPAÇO CONCLUSIVO

É cediço que, no âmbito da violência associada ao desporto, muitas das condutas


criminalizadas são comuns às que já eram previstas no Código Penal. Ganham, por
assim dizer, um plus relativamente a estas, em razão do contexto de grupo em que
normalmente são praticadas e que se qualifica de “delinquência colectiva”.

Mas, nestes casos de violência colectiva, nem sempre é pacífico entre os estudiosos do
Direito Penal a aceitação de um sistema penal que pode suplantar o princípio da
responsabilidade individual e da culpa, na medida das dificuldades em se identificar os
autores materiais, de se individualizar os fatos ou mesmo de se provar a existência de
um acordo de vontades comum.

Admitindo, no entanto, a necessidade de se criar normas penais específicas em


manifestações colectivas de violência antidesportiva, em cumprimento às
recomendações do Conselho da Europa que Portugal sufragou e ao artigo 79º da Lei
Maior, o legislador português procedeu à criminalização de algumas condutas
relacionadas com o fenómeno desportivo.

A Lei nº 38/98, de 4 de Agosto, constitui o marco de regulamentação específica dos


grupos organizados de adeptos31, representando também a incorporação no ordenamento

30
Desenvolvidamente, ALEXANDRE MIGUEL MESTRE, como na nota 23, p. 335.

31
Pode consultar-se, a este respeito, JOSÉ MANUEL MEIRIM, «Os grupos organizados de adeptos:
comparação entre as ordens jurídicas portuguesa e espanhola», Estudos em Homenagem ao PROFESSOR
DOUTOR CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, vol. I, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 185-227.

18
jurídico português de novas modalidades de condutas antidesportivas, quais sejam, o
racismo e a xenofobia.

Mas somente com a Lei nº 16/2004, de 11 de Maio, foram aprovadas medidas


preventivas e punitivas a adoptar em caso de manifestação de violência associada ao
desporto. Com efeito, procedeu-se a criminalização de algumas condutas ao regime
sancionatório até então vigente e que assentava num registo disciplinar e contra-
ordenacional.

À Lei nº 16/2004 seguiu-se a Lei nº 39/2009, de 30 de Julho, que actualmente


representa o quadro normativo vigente e que estabelece o regime jurídico do combate à
violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos, de
forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança.

Também aqui, tal como na Lei nº 16/2004, se adopta um regime sancionatório


tripartido, assentado na previsão de crimes (artigos 27º a 38º), ilícitos de mera
ordenação social (artigos 39º a 45º) e ilícitos disciplinares (artigos 46º a 49º).

Naturalmente, a existência de uma legislação penal extravagante da qual consta a


tipificação de condutas consideradas atentatórias aos interesses do desporto afasta a
aplicação do Direito Penal comum, ainda que algumas dessas condutas já fossem
puníveis à luz do Código Penal.

Todavia, o ponto de chegada remete-nos, ainda aqui, para o local da partida, isto é, para
a questão nuclear da efectividade da norma, agora também penal, neste específico
domínio social.

A vivência destas normas penais ditará se a solução de ultima ratio se revelou dotada de
melhores resultados dos que as respostas preventivas e sancionatórias até então
vigentes.

19

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