Você está na página 1de 22

REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

INSCRIÇÃO NA ERC 109329 É da responsabilidade de cada autor a adopção

PualotucinADE
ou não da grafia do novo acordo ortográfico.
Nas partes comuns da revista é utilizada a grafia
RE71S’TA DO JUL • SET 2020

Trimestral [janeiro-março; abril-junho;


julho-setembro; outubro-dezembro]
I\L0 163 :Julho/Setembro de 2020
prévia ao último acordo ortográfico.
1V1II1JS JEJ R..IJ
Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
P’BIC O
Rua Tomás Ribeiro, 8g, 3.° andar, 1050-227 Lisboa ANO 4 1
Tel; 21 381 4100 a 8 * Fax: 21 387 0603
http:llwww.smmp.pt * revistamp@smmp.pt
(Reg. n,° 501132767 RNPC; e n.° 209328 SRIP/DGCS)

Dtiwcroa
Rui Cardoso
CoNsELHo EDITORIAL
Ana Cristina Ermida; Ana Massena
André Lamas Leite; Carlos Lobato Ferreira
Dionisio Xavier Mendes; Hélio Rigor Rodrigues
Higina Castelo; Jorge dos Reis Bravo
José Espada Niza;J, E Ribeiro de Albuquerque
Pedro Caetano Nunes

DEstuN
[Atelier B2 Design]
José Brandão Alexandra Viola j Justine de la Cal

IMPREsSÃo
Gráfica Maiadouro
Rua Padre Luís Campos, ç86
4470324 MAIA PORTUGAL
-

Tiragem toso exemplares


ISSN 0870-6107

DEPÓsITo LEGAL N.* 11997/86

PREçÁRIo
[Estes preços já incluem IVA à taxa legal em vigor]
Número avulso; €18,00
Revista do Ministério Público
Assinatura do ano MMXX (n.° s6s a 164) Prop. Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
Portugal €64,00
Ano i, vol.i (Fevereiro), 1980, Lisboa
Europa €75,00
Sindicato dos Magistrados do Ministério Público [1980-
Restantes países €80,00
i a 22cm. Trimestral
Súcios do S.M.M.R Desconto de o% ISSN 0870-6107
Direito Periódicos

O Estatuto Editorial encontra-se disponível CDLI 34(051)


em http://rmp.smmp.pt/carta-editorial/
Revista do Ministério Público 163 :Julho : Setembro 2020 [pp. 133-173]

A protecção de denunciantes em Portugal:


o legado do caso Guja c. Moldávia
no contexto de transposição da Directiva
(UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
Alexandre Guerreiro
Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Anatista de Justiça e Segurança

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 1. Concepmalização da fi


gura do denunciante. II. O DENUNCIANTE NO ORDENA
MENTO JURÍDICO PORTUGUÊS. 1. O denunciante em vá
rios domínios da sociedade, 1.1. O denunciante no sector
financeiro. 1.2. A actividade seguradora. 1.3. 0 branquea
mento de capitais e o financiamento do terrorismo. 1.3.1. A
especificidade dos advogados. 1.4. Corrupção e infracções
tributárias. III. A INFLUÊNCIA DO DIREITO EURoPEU.
1. Os denunciantes no TEDH. 1.1. Caso Bucur e Toma e.
Roménia. 1.2. Caso Gtqa e. Moldávia. 1.3. Caso Heinisct, e.
Alemanha. 1.4. Casos Bargão e Domingos Correia e. Portu
gal. 1,5. Caso Gfrleanu c. Roménia. IV A DIRECTIVA fUE)
2019/1937, de 23 DE OuTuBRo.VC0NCLusõEs.

1. INTRODUÇÃO
A denúncia é uma realidade presente em vários domínios
da vida em sociedade. Desde a sua manifestação no exercício de
direitos políticosch], passando pelo universo laboral]21 e pelo sector

[1]
No contexto político, a denúncia cionalidade ou itegalidsde, bem como com vista à prevenção, à cessação ou à
adquire uma valoração distinta da do fimcionamento anómalo de qual perseguiçãojudicial das infracções pre
prevista no quadro penal quanto aos quer serviço com vista à adopção de vistas no n,° 3 do artigo çs,° da CRP —

efeitos que pode ter nas pessoas envol medidas contra os responsáveis» (n.° em concreto, infracções contra a saúde
vidas. Por exemplo, a Lei nY 43/90, de do artigo 2.’). Por outro lado, a Lei pública, os direitos dos consumidores,
zo de Agosto, que regula o exercício do o.» 83/95, de 21 de Agosto, que regula o a qualidade de vida, a preservação do
direito de petição com vista à defesa direito de pamcipaçáo procedimental e ambiente e do património cultural (alí
dos direitos pelos cidadãos, prevê o a acção popular, veio consagrar, primei nea a) do n.° 3 do artigo 52,’ da CRP).
recurso à queixa enquanto mecanismo rarnente, a titularidade do direito de
[2]
de denúncia de «qualquer inconststu acção popular a cidadãos e associações No contexto laboral, a determinação
[134] Revista do Ministério Público 163 :Julho : Setembro 2020
1 [135 1 A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Gija e. Motdd via
no contexto de transposição da Directiva (US) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GUERREIRO

da saúdet3], a denúncia promovida pelos particulares ocupa hoje 1. C0NcEPTuALIzAçÃ0 DA FIGURA


um espaço importante no sistema de justiça, em geral, com espe DO DENUNCIANTE
cial relevância no contexto criminal e contra-ordenacional, sendo No seguimento do anteriormente dito, a especial censurabilidade
recorrentemente decisiva para a abertura de inquéritos, tanto no dos crimes de corrupção e a crescente transnacionalização e sofisti
âmbito da actividade reguladora, como no quadro do exercício da cação da criminalidade económico-financeira têm acelerado a cons
acção punitiva do Estado perante condutas censuráveis que aten ciencialização da sociedade para os efeitos nocivos destas tipologias
mm contra bens jurídicos constitucionalmente protegidos. de crimes, pressionando o poder político dos Estados ocidentais a
Por isso, o presente estudo autonomiza e trata sobre o “denunciante”, desenvolver mecanismos adequados ao combate a estes flagelos.
enquanto pessoa que comunica factos passíveis de configurarem Exemplo evidente desta realidade nas sociedades contempo
ilícitos ou contra-ordenações e sem que tenha um interesse direc râneast61 foi a adopção do Sarbanes-Oxtey Act pelos EUA, em 2002,
to na denúncia, O denunciante não se insere, portanto, no regime um instrumento legislativo que incidia o seu foco nas infracções
da delação premiada11, embora possa ser simultaneamente fonte cometidas no contexto empresarial mais concretamente nas socie
humana’ e, como veremos, testemunha ou ofendido. Apesar do dades cotadas em bolsa, surgindo na sequência de um conjunto
interesse evidente que apresenta cada uma das realidades em que
se pode percepcionar a presença de um denunciante, o presente
artigo centrar-se-á, primordialmente, no denunciante com impacto
1 de escândalos societários e financeiros, como foi disso exemplo o
que visou a Enron. Entre outros aspectos, o Sarbanes-Oxtey Act
previa um regime de protecção aos trabalhadores destas empre
no processo crime, sas que denunciassem infracções cometidas ou colaborassem com
investigações e impôs a criação de canais internos de denúncia que
permitissem aos trabalhadores encontrarem uma solução interna
do quadro legal da denúncia pode ser 14] Uma vez que a delação premiada
importante para aferir a responsabi
gador, de denunciar situações que
consubstanciem violação, por parte
junto de um organismo próprio capaz de reagir perante actos
corresponde à revelação de um crime
potencialmente delituosos.

1
lidade criminal do trabalhador, mas, deste, de obrigações legais que sobre ou infracção cometidos por terceiros
primordial e imediatamente, para
Esta protecção, constante na secção 8o6 com a epígrafe «pro
ele impendam, uma vez refecruada a com o objecnvo de obter dividendos
efeitos de responsabilidade disciplinar denúncia, cabe ao trabalhador a prova com essa revelação.
deste. Adiante analisaremos juris da veracidade dos factos denunciados, tection for emptoyees of pubticly traded companies who provide evi
prudência do Tribunal Europeu dos [5]

Direitos Humanos (TEDH) sobre as


sob pena de, não a fazendo, violar os
deveres de lealdade, de respeito e de
Fonte humana (HUãTINT) cor dence offrnud», alterou o capítulo 73 do título i8 do United States
responde, na verdade, a uma expressão
implicações da denúncia em contexto defesa do bom nome da sua entidade utilizada na gíria das forças e serviços Code com o aditamento da secção §15;4A, na qual se fez referên
profissional. Todavia, alertamos, no
caso português, para casos como os do
empregadoras. de segurança para designar um i,]fiir cia à expressão «whisttebtower» (denunciante) para fazer alusão à
,nador, alguém que fornece infarmação
Ac. do TRP de o8/io/aoia, proc. n.° 131 Atente-se, na área da saúde, à a titulo anónimo ou confidencial e que protecção de denunciantes. O uso desta expressão, que não foi iné
346/iL2TTVRLP2 (acessível, como
todos os demais citados sem outra
instituição de um sistema de controlo apresenta utilidade para uma investiga dito nesta leil7], pode gerar dúvidas quanto ao escopo do conceito
interno e de comunicação de irregula ção ou para a actividade policial. Sobre
indicação, em http://wwwdgsi.pt). ridades pelo artigo 17°-A do Decreto- a noção de informador, cfr. DENNI5 G.
Neste acórdão, concluíram os desem -Lei n.° 233/2005, de 29 de Dezembro, F1TzGERALD, h]formants and Underco 16] Fazemos, naturalmente, a salva 71 Uma das prïmeiras utilizações fraudes sofridas pelo Govemo dos
bargadores que, embora o trabalhador aditado pelo DecretoLeira0 244/2012, ver Inuestigations: A Practicai Guide ia
guarda para outros instrumentos, por conhecidas do whisttebíowing tem ori EUA por particulares no período
não esteja impedido, nem isso viola o de 9 de Novembro. Law, Poíicy. and Procedure, EUA: CRC exemplo, já no século XIX, como o gem no false Claims Act, de 1863, um da Guerra Civil. Todavia, uma das
dever de lealdade para com o empre Press, 2007,pp. 1-2.
Filie Claims Act, de 1839. instrumento legislativo que visava as referências mais célebres no período
[137] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Gtja c. Motdávia
[136 J Revista do Ministério Público 163 : Julho Setembro 2020
no contexto de transposição da Directiva fUE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExAN0RE GUERREIRo

de denunciante num quadro de crescente consciencialização da Unidas contra a Corrupção, de 31 de Outubro de 2003 (CNUC),
sociedade, na medida em que um whistteblower abrange apenas se refere como «pessoas que dão informações»[], enquanto qual
pessoas que tenham mantido uma relação de âmbito profissional quer particular que «de boa fé e com base em suspeitas razoáveis»
com o denunciado isto é, configura situações de pessoas com

preste «informações sobre quaisquer factos relativos às infracções
algum tipo de relação contratual à entidade denunciada, ora por se estabelecidas em conformidade com a Convenção>).
tratar de uma prestação de serviços, ora por dizer respeito à rela Quanto à forma de formalizar a denúncia, são três as vias pos
ção típica de empregador-empregado, independentemente de estes síveis escolhidas pelo potencial denunciante em função do caso
serem denunciante e denunciado ou de haver relações profissionais concreto. Primeiramente, parece evidente que a denúncia interna,
entre empresas e o funcionário de uma empresa terceira identificar através da qual a comunicação de potencial infracção é feita ao
infracções numa outra entidade que não seja a sua empregadora órgão competente na estrutura da entidade na qual tem lugar a
— e exclui situações em que o particular assume a qualidade de actuação suspeita, está reservada exclusívamente ao whistleblower
cidadão, consumidor, utente ou simplesmente testemunha. por exigir um contacto facilitado pelo acesso ou pela inserção na
Seria redutor acreditar que a noção de denunciante se esgota estrutura profissional resultante da relação que existe entre denun
no escopo de whisttebtower, a qual podemos concluir que refiecte ciante e denunciado, podendo, em determinados casos, facilitar
um conceito de denunciante em sentido estrito. Além desta, há que uma reacção mais eficaz face à infracção denunciada.
considerar a noção de denunciante em sentido amplo, cuja defini A denúncia externa perfila-se como alternativa às duas tipo
ção incorpora qualquer particular que tiver conhecimento de situa logias de denunciante, correspondendo este tipo de denúncia à
ções que configurem ilegalidades ou ilícitos, independentemente comunicação da potencial infracção junto de entidades alheias à
de ter algum tipo de ligação profissional à entidade denunciada ou estrutura organizacional da entidade denunciada, como por exem
a uma terceira parte que a esta tenha prestado serviços. plo autoridades de supervisão, judiciárias ou de outra natureza,
Assim, a noção de denunciante em sentido amplo privilegia desde que com poderes legais para agir sobre a entidade visada.
o conhecimento de factos relevantes e não o tipo de ligação efec Refira-se, contudo, que a denúncia externa pode ter lugar quando
tiva entre denunciante e denunciado ainda que os mecanismos

o denunciante tenha já accionado a denúncia interna e constate
legais de protecção e de formalização de comunicações possam ser a ausência de resposta interna à denúncia ou não tenha feito a
diferentes num e noutro caso. Como se pode constatar, a noção denúncia interna por ter bases sólidas para suspeitar ser imprová
ampla deixa de englobar exclusivamente o denunciante enquanto vel uma reacção, não impossibilitando o recurso a uma via o accio
whistleblower para incluir o universo a que a Convenção das Nações namento da outra.

[1 Esta Eu a expressão oficial esco- Assembleia da República n.° 47/2007,


contemporâneo enquadrando o whis- ção por (antigos ou actuais) membros para agirs. Cfr. MARcIA E Miccu,
lhida por Portugal para traduzir o de ai de Setembro, que aprova a
tkbtower no contexto profissional de uma organização de práticas ilegais, JANST E NEAR e TERRY M0REHEA0
original «rtparting pcrsanso presente CNUC,
surgiu já na última quadra do século imorais ou ilegítimas sob controlo dos DwoaicsN, Whistk-btowing in Orga
no artigo 33.0 da Convenção, figurando
XX, em concreto, em 1985, definindo seus empregadores a pessoas ou orga- rnzations, EUA: Roudedge, 2008, pó.
no texto publicado pela Resolução da
como «whustk-btowrng» (sic) a «revela- nizações que possam ter a capacidade
[13$] Revista do Ministério Público 163 :Julho : Setembro 2020 [139 1 A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Motdd via
no contexto de transposição da Directiva (Uli) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GuERREiRo

Finalmente, uma terceira solução para o denunciante passa pela artigo 386.° do Código Penal (CP)b01. Acresce que, sendo neces
divulgação pública, que consiste numa comunicação da infracção sária a <(aquisição da notícia do crime» para que o Ministério Pú
através de meio ou plataforma que facilite a tomada de conheci blico (MP) possa promover as diligências necessárias com vista à
mento pelo público, tendo como objectivo, neste contexto, promo abertura de inquérito (artigo 241,° do CPP), ainda que se trate de
ver a reacção da sociedade ou pressionar as autoridades públicas denúncia facultativa, esta pode ser realizada sob anonimato (n.° 6
à tomada de posição. Em bom rigor, a divulgação pública não é do artigo 256.° do CPP).
uma denúncia na verdadeira acepção da palavra, por inexistir uma A orientação do processo penal em Portugal, porém, não con
autoridade concreta que acolha a comunicação realizada, uma vez templa a hipótese de um cidadão que denuncie um facto passível
que a identificação de uma autoridade com poderes legais para agir de constituir crime usufruir do direito a monitorizar a gestão que
sobre a visada é um elemento decisivo para o reconhecimento de o MP faz da denúncia apresentada, independentemente de pode
uma comunicação como denúncia. rem estar em causa crimes com natureza pública ou com interesse
No limite, a divulgação pública pode incentivar a reacção de uma público. Todavia, a excepção pode ocorrer nas situações em que a
autoridade pública, mas enquanto reflexo de um acto que conheceu abertura de inquérito seja formalmente comunicada, se tratem de
por via indirecta, não por contacto directo promovido pelo denun crimes que admitam a constituição de assistente e seja permitido a
ciante. Considerando que até o grau de protecção pode ser diferente esse assistente o acompanhamento integral das investigações e das
nas duas formas de denúncia referidas, utilizar o termo aenúncia” diligências promovidas (o que nem sempre sucede).
em situações de divulgação pública é juridicamente incorrecto.
1. O DENUNCIANTE EM VÁRIOS DOMÍNIOS
DA SOCIEDADE
II. O DENUNCIANTE NO ORDENAMENTO
JURÍDICO PORTUGUÊS 1,1. O denunciante no sector financeiro
A figura do denunciante está bastante presente no ordenamento A natureza da denúncia e do denunciante no contexto político
jurídico português, não dispondo de um estatuto consagrado num reflecte características próprias que colocam esta realidade numa
regime único aplicável de igual modo a diversas realidades, antes
stendo o processo udo inicio para inves- aquela alteração da qualificação jurídica estabelece um novo regime de respon
encontrando-se manifestado e fragmentado em função de vários
tigação de um crime de natureza pública não ter qualquer efeito sobre o procedi- sabilidade penal por comportamentos
contextos. No quadro do processo penal, por exemplo, o Código e assim prosseguido até à flise de julga- mmm criminal que fbi iniciado de flirma susceptiveis de afectar a verdade, a leal
mento, qualificação jurídica essa supor- válida e eflcazx. Assim, Ac. do TRG de dade e a correcção da competição e do
de Processo Penal (CPP) prevê, desde logo, a distinção entre de seu resultado na actividade desportiva,
tada pelos elementos então disponíveis o9/ia/aoIg,proc 945/17,9GAEPS.Gi.
núncia facultativat9l, disponível aos cidadãos, e denúncia obrigatória, nos autos, constatando-se, em conse- já prevê a denúncia obrigatória para os
1101
reservada a entidades policiais e funcionários na acepção do quênda da prova produzida em audiên- NO i do artigo 242.’ do CPP A titulares dos óigãos e os hmcionários
eia, que a condutas integra antes um tipo denúncia obrigatória para pessoas que das pessoas colectivas desportivas ao
de crime com natureza semi-pública, exerçam determinadas funções em sec- MP de crimes previstos nesta lei e de
19) Dispõe o artigo 244.° do CPP que Público, a ourta autoridade judiciária de queixa ou de acusação particulara. para condenar o arguido opor este tores rspeciflcos não é, porém, exdu- que tenham conhecimento no exerci-
qualquer opessoa que tiver noticia de um ou aos órgãos de policia criminal, salvo Porém, quanto a esta última realidade, crime não é necessário que o okndido sivo do processo penal. No desporto, a cio das suas funções ou por causa delas
crime pode denunciá-lo ao Ministério se o procedimento respectivo depender não é despidendo ter em atenção que, tenha exercido o direito de queixa, par Lei n.° 50/2007, de 31 de Agosto, que (artigo .°).
(140] Revista do Ministério Público 163 :Julho Setembro 2020 (141] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Cuja e. Moldávia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GUERREIRo

posição manifestamente distinta e incomparável face aos domínios participações recebidas e onde constem as medidas adoptadas ou
civis na medida em que visa democratizar o processo penal do
— —,
a justificação para a não adopção de quaisquer medidas. Está em
mínios estes que acabam praticamente todos por convergir entre si causa, neste último caso, a intenção do legislador de responsabili
quanto aos fins e às dinâmicas previstos pelo legislador português zar a entidade sobre a qual recaia o dever de agir e nada fez’,
quanto ao papel que a denúncia e o denunciante devem ter. Por sua vez, quem participar infracções está imune a procedi
Iniciando pelo sector bancário, o Regime Geral das Institui mentos disciplinares, civis ou criminais, a menos que tais comunica
ções de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), previsto ções se revelem infundadas (n.° 6 do artigo ii6.°-AB do RGICSF).
no Decreto-Lei n.° 298/92, de 31 de Dezembro, passou a desta Visa-se, por um lado, conferir protecção aos denunciantes em ter
car especificidades de relevo a partir da 38,a alteração sofrida por mos semelhantes aos previstos no Sarbanes-Oxley Act, pelo que se
via da Lei n.° 23-A/2o15, de 26 de Março. Em concreto, os então está, portanto, perante uma noção de denunciante enquanto whis
novos artigos ii6,°-AA e ii6.°-AB vieram exigir que as instituições tleblower. Por outro lado, a imunidade conhece limites razoáveis e
de crédito implementassem meios específicos, independentes e que se impõem por exigirem boa fé do denunciante e verosimilhança
autónomos que fossem adequados a receber, tratar e arquivar as dos factos reportados. Ou seja, neste contexto específico, pretende-se
participações de irregularidades graves relacionadas com a sua proteger a reputação e a exposição tanto das instituições como das
administração, organização e fiscalização interna e ainda de indí pessoas visadas por uma denúncia difamatória ou caluniosa.
cios sérios de outras infracções e deveres, Todavia, o regime imposto pela Lei n.° 23-A/2o15, de 26
Assim, através desta alteração legislativa, quis o legislador que de Março, não se resumiu à protecção de whistleblowers no con
recaia um dever de participação sobre determinadas pessoasí que texto das instituições de crédito. Com efeito, o artigo ii6.°-AB
tomem conhecimento de irregularidades, cumprindo-o através do RGICSF foi mais longe e estendeu a protecção à concepção
da comunicação ao órgão de fiscalização da instituição à qual se de denunciante enquanto pessoas que dão informações neste caso —

encontrem contratualmente vinculadastl2l, Podemos concluir que concreto, «qualquer pessoa)> que formalize uma «participação ao
o reconhecimento desse dever refiecte que estas pessoas têm uma Banco de Portugal» (BP). Assim, salienta-se que a lei confere pro
posição de garante não apenas perante a instituição mas perante tecção a todas as pessoas inseridas na instituição de crédito (n.° 4
o sistema como um todo. Consequentemente, recai sobre este do artigo 116,°-AB) e a terceiros que tenham conhecimentos de
órgão o dever de produzir um relatório fundamentado sobre as indícios sérios de infracções a deveres impostos a estas organizações
e a comunicação a uma autoridade não judiciária de supervisão que
1111 Em concreto, fimdonários das áreas
é externa à estrutura organizacional da entidade visada. Falamos,
nico nu LAcERDA DA COSTA PINTO, de imputação de responsabilidades,
de auditoria interna, de gestão de riscos ou vos sistemas de cornpíiance e os pro- nem «substituir-se à delimitação suba
de conmaio do cumprimento das obriga- gramas de auditoria podem ser uma tantiva do âmbito da responsabilidade [1 Por este motivo, os relatórios pro- período, caso o MP ou a autoridade possam não só aceder a possíveis ele
ções legais e regulamentares (comptiance). fbnte relevante de infiarmação para penals. Cfr. FauDERICO DE LACERDA duzidos pelo órgão fiscalizador interno supervisora recebam notícia de infrac- mentos de prova adicionais, como tam
Assim, n.° do artigo ii6,’-AA, compreender e organizar a realidade DA CosTA PINT0,”Tendências e mm- da pessoa colectiva visada devem ser ções sobre esses factos possam aceder bém determinar com maior precisão a
relevante para as formas de comparti- ras na evolução do Direito Penal eco conservados por um período de cinco à documentação interna que relate o responsabilidade criminal individual
[121Assiste-se aqui ao reconheci’ cipação», ainda que estes não possam nómico’ in Catõtica Law Review, vol. 1, anos (n,” do artigo u6,”-AA), per- posicionamento da empresa perante ou contra-ordenacional.
mento de que, como sublinha Famas- «ser em si mesmos fontes de critérios n.° 3, Novembro 2017, p. 107. mitindo, deste modo, que durante este o conhecimento e, consequentemente,
[142] Revista do Ministério Público 163 : Julho : Setembro 2020
[143] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Gtja e. Molddvia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GUERREIRO

por isso, na denúncia externa enquanto solução para qualquer pes Este modelo é replicado com algumas nuances noutros sectores
soa, a qual se opõe à denúncia interna reservada como alternativa do universo financeiro, encontrando semelhanças, entre outros’, nos
aos whistleblowers. intermediários financeiros, cujo Código dos Valores Mobiliários, apro
Repare-se, porém, que, quanto aos whistlebtowers, a Lei exige vado pelo Decreto-Lei n,° 486/99, de 13 de Novembro, passou a exigir,
no n.° 8 do artigo ii6.°-AA que o BP aprove a regulamentação só em 20I76i, que estes operadores adoptem meios e procedimentos
necessária para assegurar a implementação do conjunto de normas específicos, independentes e autónomos para que os seus funcionários
previstas no artigo ii6,°-AA, ou seja, de mecanismos de participa ou colaboradores comuniquem factos, provas ou informações relativas
ção de irregularidades que favoreçam a formalização da denúncia e a infracções ou irregularidades (n.° ; do artigo 3o5,°-F) com base num
a reacção do órgão fiscalizador da instituição de crédito. Contudo, sistema que admita o anonimato das comunicações e contemple factos,
sobre a participação de infracções ao BP o n,° do artigo ;i6,°-AB provas ou informações que respeitem a infracções já consumadas, em
já prevê que o BP ccpode aprovar regulamentação)), deixando, assim, curso ou com probabffidade de virem a ser cometidas (n.° 2 do artigo
total margem de decisão à autoridade sectorial sobre a criação de 3o5.°-F). Também desde 2017, recai sobre os auditores que prestem ser
mecanismos próprios que protejam o sector que supervisionam. viço a intermediário financeiro ou empresa com determinadas carac
Impõe-se perguntar se faz sentido que seja facultativa a apro terísticas o dever de comunicação imediato à CMVM quanto a factos
vação dessa regulamentação pelo BP, A resposta tem de ser indu susceptíveis de constituir crime ou contra-ordenação (artigo 304.°-C).
bitavelmente em sentido negativo. Na verdade, é exigível que uma
autoridade sectorial crie os mecanismos próprios que reforcem e 1.2. A actividade seguradora
consolidem a credibilidade do sistema e das instituições que nele Na actividade seguradora, a realidade não é diferente. Com efeito,
participam, sem que, por um lado, se banalize o recurso à denúncia, a Lei n.° 147/2015, de de Setembro, que estabelece o Regimeju
nem que, por outro lado, se alimente um status quo que dissuada rídico de Acesso e Exercício da Actividade Seguradora e Ressegu
potenciais denunciantes de contribuírem activamente para a repu radora, passou a determinar, após a entrada em vigor das alterações
tação do sistema1’. Assim, a faculdade conferida pelo legislador e introduzidas pela Lei fl.° 35/2018, de 20 de Julho, que qualquer
a inércia da autoridade sectorial na implementação dos referidos pessoa que tenha conhecimento de factos, provas ou informações
mecanismos acaba por ser pemiciosa quando se assiste à falta de relativos a infracções ao regime estabelecido nesta lei pode fazer uma
interesse e iniciativa das instituições para se apetrecharem de solu participação à Autoridade de Supervisão de Seguros (artigo 31.0-A).
ções que reforcem a solidez do sistema, tornando-se difícil a apre Além da mesma garantia de protecção dos dados pessoais do de-
sentação de denúncias e a acção das autoridades devidas.
[15] [16]
Destacamos o Regime Geral dos instinaiu um sistema de comunicação Por força das alterações mero
Organismos de Investimento Colec- interna de factos, provas e mnftrmações duzidas pela Lei n.° 26/2017, de 30
[14]
Afinal, é crescentemente reco denúncias como forma de acautelarem Prol ection af Wl,ist?eblotvers: A Study on lavo, aprovado pela Lei n.° 16/2015, relativas a inflacções ou irregularidades de Maio. que opera a transposição dc
nhecido que os operadores dos mais riscos próprios e demonstrarem o seu thcjeasibilzty aja legal lnstru,ne,it a,i the de 24 de Fevereiro, e que conta, só no aplicável aos flmcionírios e colabora- Directivas e a adaptação da legislação
variados sectores, incluindo na área empenho no combate à corrupção e ao protectioi of ernplayees wha make disclo curto espaço de cinco anos, com sete dores, em geral (artigo $7.’-A). portuguesa ao Regulamento (UE)
económica, admitem ser do seu pró branqueamento de capitais. Cfr. PAUL sures o; thc public interest, Conselho da alterações. A alteração introduzida la.° 596/2014, do Parlamento e do

prio interesse o encorajamento das STEPHEN50N e M;cHAEL LEvI, Thc Europa, 2012. p. .
pela Lei n.° 104/2017, de 30 de Agosto, Conselho, de 16 de Abril de 2014.
[144] Revista do Ministério Público 163 :Julho : Setembro 2020 [145] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Moldá via
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALEXANDRE GUERREIRo

nunciante (n.° 2 do artigo 3i.°-A) e confidencialidade sobre a sua de Agosto, que estabelece medidas de combate ao branqueamento
identidade (n.° 3 do artigo 3i.°-A), há também lugar a protecção de capitais e ao financiamento do terrorismo. Esta lei procedeu à
total do denunciante (n.° do artigo 3i.°-A). transposição de duas Directivas, nomeadamente a %015/849/UE,
A exemplo do que sucede no sector bancário, o legislador designou do Parlamento e do Conselho, de 20 de Maio de 2015 (também de
a Autoridade de Supervisão de Seguros e fundos de Pensões (ASF) signada IV Directiva), relativa à prevenção da utilização do sistema
para aprovar a regulamentação necessária para assegurar a implemen financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financia
tação das garantias do denunciante Também se procede à distinção mento do terrorismo, e a 2o;6/225$/UE, do Conselho, de 6 de De
entre os denunciantes que devam participar irregularidades aos órgãos zembro de 2016, sobre o acesso às informações antibranqueamento
fiscalizadores (wbistleblowers) e os denunciantes que participem infrac de capitais por parte das autoridades fiscais.
ções à ASF (pessoas que dão informações). Em tom de pesal o legisla No que concerne ao dever de comunicação, devem as entida
dor também entendeu que quanto aos últimos não se justificaria que des obrigadas, por sua própria iniciativa, informar de imediato o
a actividade seguradora se distinguisse das instituições de crédito, pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP),
que, também aqui, a ASF tem a liberdade de decidir se aprova ou não a bem como a Unidade de Informação financeira (UIf) sempre que
regulamentação necessária para assegurar a protecção dos denunciantes saibam, suspeitem ou tenham razões suficientes para suspeitar que
enquanto pessoas que dão informações (n.° 5 do artigo 31.0-A). certos fundos ou outros bens, independente do seu valor, provêm
Ora, se se compreende a distinção feita pelo legislador no sen de actividades criminosas ou podem estar relacionados com o
tido de impor a obrigação de regulamentação quanto às pessoas financiamento do terrorismo (artigos 43,0 e 45.°).
que tenham uma posição de garante na actividade como forma de Assinale-se, porém, que a Lei n.° 83/2017, de i8 de Agosto, con
garantir que estas não ficam expostas perante uma ausência de regu templa a obrigação de criação de canais específicos, independentes
lamentação que, numa ponderação de interesses, as dissuadisse de e anónimos que internamente assegurem, de forma adequada, a
exercer o dever que sobre elas recai, por outro lado, a insistência no recepção, o tratamento e o arquivo das comunicações de irregu
vocábulo “pode” relativamente à denúncia de terceiros permite-nos laridades (artigo 20.°). Há, também aqui, um dever de denúncia
perceber a falta de cultura do legislador para impor a protecção por parte das pessoas que, em virtude das funções que exerçam,
de denunciantes e reforçar a credibilidade no sistema. Em suma, tomem conhecimento de qualquer facto grave que configure uma
critica-se o laxismo do legislador que espera que sejam as entidades irregularidade (n.° 3 do artigo 20.0). Esse deverjá não existe quanto
supervisoras a adquirir e desenvolver sensibilidade suficiente para às pessoas, em geral, que tenham conhecimento de violações à Lei
só depois dinamizar mecanismos que protejam denunciantes. n.° 83/2017, de 18 de Agosto, e denunciem essas irregularidadest’i.

1.3. O branqueamento de capitais 117] Compreende-se esta ddarencia- situações anómalas com maior rigor qumncias indesejadas, em concreto,
do que o cidadão comum identificado incentivar denúncias absolutamente
e o financiamento do terrorismo ção, já que, no caso dos whzsttebtowcrs,
infundadas de cidadãos receosos de
o dever resulta do conhecimento espe- no n.° i do artigo 108.0 como «qualquer
Ainda na área económico-financeira, mas concretamente no com cializado e da posiçáo especial que pessoa. Assim, fizer recair um dever que a não participação lhes poderia
bate ao crime, sublinhe-se a importância da Lei n.° 83/2017, de i8 detêm e que lhes permite identificar a qualquer pessoa poderia ter conse- trazer consequências civis ou penais.
1 146] Revista do Ministério Público 163 :Julho : Setembro 2020 [147] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Motddvia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GUERREIRo

Igualmente importante é o facto de os dois tipos de denunciante A Lei n.° 83/2017, de i8 de Agosto, é complementada pelo
não poderem ser alvo de procedimento criminal baseado exclusi Regulamento da Ordem dos Advogados sobre a prevenção e
vamente na apresentação dessa denúncia, a não ser que a mesma combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terro
seja deliberada e manifestamente infundada (n.° 6 do artigo 108.0). rismo tROA), aprovado pela Deliberação n.° 822/2020, publicado
Simultaneamente, sublinhe-se que recai sobre as autoridades no Diário da República n.° 163/2020, Série II de 21 de Agosto de
sectoriais um dever especial de criação de canais específicos, inde 2020, na medida em que este Regulamento estabelece as condições
pendentes e anónimos que assegurem a recepção, o tratamento e o do cumprimento pelos advogados das disposições legais sobre as
arquivamento das denúncias, Todavia, apesar do dever consagrado referidas matérias. Além de simbolizar o compromisso e a adequa
num diploma quejá está em vigor há três anos, a esmagadora maio ção da Ordem dos Advogados (OA) ao conjunto de princípios e
ria das autoridades sectoriais ainda não criou os canais devidos e valores partilhados pelos Estados-Membros da UE com o combate
mais distante ainda está a hipótese de aprovação de regulamenta ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo,
ção própria que assegure as garantias estabelecidas para os denun o ROA veio ajudar a dissolver a nebulosa que pairava no orde
ciantes. Em suma, o sistema incorporado na Lei n.° 83/2017, de 18 namento jurídico português em torno dos actos praticados pelos
de Agosto, é manifestamente frágil e tende a afastar a participação advogados que se encontram cobertos pela lei e aqueles que estão
dos denunciantes. excluídos (artigos 3,0 e 4,0 do ROA).
Assim, entre os vários deveres, recai sobre os advogados, desde
1.3,1.A especificidade dos advogados logo, o de não divulgação (alínea i) do n.° i do artigo ii.° e artigo
No caso concreto dos advogados, importa deten-ninar se estes pro 54,0
da Lei n.° 83/2017, de i8 de Agosto), que estabelece que os
fissionais podem ser denunciantes dadas as singularidades da pro advogados e todos os colaboradores não podem divulgar ao cliente
fissão. Com base na Lei n.° 83/2017, de i8 de Agosto, os advogados que este é suspeito pela prática do crime de branqueamento de
enquadram-se na noção de «entidades obrigadas» para efeitos do n.° capitais e/ou financiamento ao terrorismo. Outros três deveres
2 do artigo 4,0, enquanto entidades não financeiras, quando partici nucleares são os de abstenção, que coloca o advogado na posição de
pem, intervenham ou assistam, por conta de um cliente ou noutras não praticar qualquer operação suspeita, de colaboração e de iden
circunstâncias no conjunto de operações previstas na lei. A entidade tificação, que obriga os advogados a identificarem o cliente antes de
tida como «autoridade sectorial relevante» é o Bastonário da Ordem avançarem para qualquer intervenção em benefício deste,
dos Advogados (BOA) que deve dar andamento à informação rece Quanto ao dever de colaboração com a OA, com o DCIAP
bida de forma imediata e sem filtragem. Como é evidente, a referên e com a UIF, nos termos do artigo 53,0 da Lei n.° 83/2017 e na
cia à figura do Bastonário não se resume à advocacia, estendendo-se alínea e) do n.° i do artigo 6.° e no artigo ii.° do ROA, o ROA
a cada ordem profissional (ponto i da alínea b) do n,° 2 do artigo faz alusão a um «dever de cooperação)> que a lei denomina como
79.°), ainda que importe salientar que os advogados passaram a estar «colaboração». Considerando que a “colaboração” parece expressar
sujeitos ao dever de comunicação desde a entrada em vigor da Lei n.° a verificação de uma relação vertical e hierarquizada, enquanto a
11/2004, de 27 de Março, que transpôs alI Directiva. “cooperação” aponta para a horizontalidade e equiparação de
[148] Revista do Ministério Público 163 :Juffio : Setembro 2020 [149] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso G1ja e. Moldávia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/5937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GUERREIRo

estatutos entre os actores envolvidos, a expressão escolhida pela colaboração e de comunicação, desde que «actuem no decurso da
OA parece ser motivada pelo não reconhecimento de sujeição a apreciação da situação jurídica de cliente ou no âmbito da repre
um conjunto de entidades aos quais os advogados estão obrigados sentação desse cliente em processos judiciais» (n.° i do artigo 79,0).
a prestar colaboração. Porém, não é pacífica a delimitação do âmbito de aplicação
Com efeito, o facto de o ROA não remeter em qualquer parte destas excepções. GERMAN0 MARQuEs DA SILvA, por exemplo,
do seu texto para o n.° i do artigo 53,0 da Lei n.° 83/2017, de r8 de questionou, em 2017, se o segredo profissional dos advogados pro
Agosto, ou atesta um lapso de quem elaborou o Regulamento ou, tege apenas ou especialmente os actos próprios dos advogados ou
alternativamente, um não reconhecimento da hierarquia de facto todos os actos praticados profissionalmente pelos advogadostl8l.
que se encontra estabelecida entre os advogados e o conjunto for Esta dúvida tinha a sua razão de ser na medida em que a Lei n.°
mado por DCIAI UIF, AT, OA e restantes autoridadesjudiciárias 49/2004, de 24 de Agosto, define o sentido e o alcance dos actos

e policiais no quadro da prevenção e combate ao branqueamento próprios dos advogados e dos solicitadores e elenca um conjunto
de capitais e financiamento de terrorismo. Afinal, como dispõe o de muitos outros actos além do mandato forense e da consultajurí
n.° i do artigo 53,0, a prestação da colaboração é feita «de forma dica. Contudo, entre todos os previstos legalmente, parecem ser
pronta e cabal», não estando sujeita aos condicionalismos que a enquadráveis na excepção aos deveres de comunicação e colabo
cooperação faria sugerir. ração para os efeitos do n.° i do artigo g.° da Lei n.° 83/2017, de
Já o dever de identificação assume extrema importância por ter i$ de Agosto, apenas a consulta jurídica e o mandato forense: o

uma multiplicidade de beneficiários: além da sociedade e da credi primeiro porque permite fazer a apreciação da situação jurídica do
bilidade e transparência do sistema, logo, também os particulares, cliente numa fase prévia ao patrocínio e o segundo por se tratar da
este dever beneficia ainda o advogado na medida em que reforça a formalização da representação deste.
sua segurança no exercício da profissão ao dispor de elementos de Num e noutro casos, a justificação para a exclusão assenta no
identificação dos clientes ou dos beneficiários efectivos, sabendo, segredo profissional, que constitui o timbre do exercício da advo
por isso, a pessoa exacta com a qual está a comunicar, cacia e, simultaneamente, assegura o interesse público, na medida
Ora, cumpre mencionar que a maioria dos deveres espelhados em que concorre para a boa administração da justiça e para a con
na Lei n.° 83/2017, de i8 de Agosto, já decorrem do Estatuto da fiança e defesa dos interesses dos clientes, em geral. Por isso, tem
OA. Todavia, o Estatuto já é omisso quanto ao dever de comuni de haver uma solução para o conflito entre o segredo profissional
cação que compreende operações suspeitas e ainda a comunicação e os deveres de prosseguir o interesse público por via da comuni
sistemática de operações e a de actividades imobiliárias, dever este cação de infracções, sempre considerando a desproporção entre o
que pode colidir com os deveres impostos pela deontologia profis interesse público que existe na protecção do segredo profissional e
sional e, desta forma, colocar em risco a posição do advogado como
denunciante, mesmo quando tenha conhecimento privilegiado ‘° Cfr. GERMAN0 MARQUEs DA 2017,disponível em http:Ilhistoriw
SILVA, “Branqueamento e segredo -ordemadvogados.impresa.pt/oa-o4/
que revista manifesto interesse público. Aqui, justifica-se esclare profissional do Advogado’ Bole opiniaqgermano-marques-da-silva
cer que a consulta jurídica já se encontra excluída dos deveres de Sim da Ordem dos Advogados n.° 4, (acedido a 12 de Setembro de 2020).
150] [151] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Gtja c. Motdávia
Revista do Ministério Público 163 Julho Setembro 2020
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALEXANDRE GUERREIRO

o combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terro Parece, assim, primeiramente, que o legislador e a QA afastam
rismo e sem que a advocacia se socorra das excepções previstas por eventuais dúvidas que ainda possam subsistir quanto à inclusão
lei para ali colocar todos os actos próprios da profissão. Se fosse da consulta jurídica no rol de excepções, independentemente da
assim, a advocacia uma actividade crucial para a prossecução da

ligação profissional entre o advogado e o cliente. Porém, esta maior
justiça, mas também com papel fundamental na realização de actos concretização dos actos excepcionados tem como consequência o
passíveis de dar cobertura às actividades que a Lei fl.° 83/2017 visa reforço da convicção de que nem todos os actos próprios da advoca
combater correria o sério risco de ser instrumentalizada como

cia se encontram cobertos pela exclusão do artigo 79,0, afastando-
porto seguro e garante de imunidade ao branqueamento de capi -se, deste modo, as teses de quem possa alegar que todos os actos
tais e ao financiamento de terrorismo, profissionais dos advogados estão “protegidos”.
Consequentemente, o segredo profissional não pode ser incon Uma realidade evidente de actos de advogados que não se
dicional e extensível a todos os actos e circunstâncias, existindo inserem no quadro de excepções são os praticados por advogados
situações que carecem de avaliação casuística com vista à delimi que exercem funções, nessa qualidade, como assalariados de pes
tação da fronteira entre os deveres a que estão sujeitos os advo soas colectivas (advocacia In-House), o que resulta do enquadra
gados na prevenção e no combate ao branqueamento de capitais mento da Lei n.° 83/2017, de i8 de Agosto, e também do ROA.
e ao financiamento do terrorismo e a protecção do segredo pro Nesta realidade, o advogado é equiparado a whistleblower ou a
fissional, Se não for devidamente demarcada a separação entre os pessoa que dá informações, estando, assim, sujeito aos deveres pre
deveres previstos na Lei n.° 83/2017, de x8 de Agosto, e o segredo vistos na lei para estes denunciantes e beneficiando dos mecanis
profissional, facilmente será possível entrar num terreno bastante mos de protecção respectivos.
amplo em que possa haver lugar a «apreciação da situação jurídica
do cliente)) fora de qualquer operação prevista na Lei n.° 83/2017, 1.4.Corrupção e infracções tributárias
de i8 de Agosto, pelo que os deveres de comunicação, de denúncia No que respeita às actividades do Estado, a Lei n.° 19/2008, de 21
e de colaboração simplesmente poderiam, em teoria, nunca exis de Abril, que aprova medidas de combate à corrupção, consagra um
tir. Deste modo, impõe-se a pergunta: afinal, o que se entende por conjunto de garantias dos denunciantes que sejam trabalhadores
“apreciação da situação jurídica de cliente” da Administração Pública e de empresas do sector empresarial do
A recente Lei n.° 58/2020, de 31 de Agosto, prevê a transpo Estado e comuniquem infracções de que tiverem conhecimento no
sição da V Directiva (Directiva 2018/843, de 30 de Maio de 2018) exercício das suas funções ou por causa delas (artigo 4.0). Além do
e autonomiza a «consulta jurídica» face à «apreciação da situação direito ao anonimato e à transferência de serviço a seu pedido (n.° 3
jurídica de cliente» na alteração a introduzir ao n.° i do artigo 79,0, do artigo 4.0), o denunciante não pode ser prejudicado no exercício
O ROA também exclui a consulta jurídica dos actos visados pela de funções. Ressalve-se, contudo, que o facto de se presumir abu
Lei n.° 83/2017, de i8 Agosto, na alínea a) do n.’ i do artigo 4.° siva qualquer sanção disciplinar ao denunciante até um ano após a
ROA, definindo um conjunto de actos que estão sujeitos ao cum denúncia não significa que o trabalhador possa cometer infracções
primento deste instrumento. sem ser penalizado, já que a presunção em causa é ilidível,
[152] Revista do Ministério Público 163 : Julho : Setembro 2020
[153] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Motddvia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GUERREIRO

Finalmente, o denunciante está também protegido contra a


transferência não voluntária, por exemplo, entre serviços ou divi especificidade de, tanto no caso dos funcionários como dos cidadãos
sões de um mesmo organismo. Com efeito, a mobilidade imposta em geral, a participação e a denúncia só terem seguimento depois de
unilateralmente dentro da estrutura organizacional da entidade na lavrado termo de identificação do participante ou denunciante.
qual são exercidas funções poderia constituir uma forma de afastar
o denunciante do acesso a dados sensíveis no futuro. A solução
não poderia ser outra, já que se fosse permitido que o serviço de III. A INFLUÊNCIA DO DIREITo EUROPEU
origem afastasse o denunciante do departamento ou divisão onde Ainda que NuNo BRANDÃ0 alegue que o sistema português de
presta serviço, tal comportamento pode revelar falta de interesse protecção aos denunciantes não privilegia um conjunto de etapas
do Estado em evitar a repetição de novos crimes, assumindo antes que devem ser seguidasJ, a verdade é que, mesmo não se verifican
como prioridade a retaliação por terem sido denunciados actos cri do uma hierarquia preferencial expressa, é notório que a legislação
minosos e dissuadindo futuros denunciantes. portuguesa desenvolve um sistema que privilegia o recurso a me
Também no quadro da actividade do Estado, o Regime Geral canismos internos ou órgãos de supervisão ao impor e recomen
das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.° 15/2001, dar a criação de canais próprios para este efeito. Se se assiste a um
de 5 de Junho, veio prever, no artigo 6o.°, que na eventualidade de incentivo expresso à denúncia interna constituindo mesmo, em —

algum funcionário sem competência para levantar auto de notícia diversos casos, um dever o facto de a denúncia ao Ministério
—,

tomar conhecimento, no exercício ou por causa do exercício das Público e aos órgãos de polícia criminal manter carácter facultativo
suas funções, de qualquer contra-ordenaçáo, comunicá-la-á, por evidencia uma preferência de facto do legislador pelo recurso ime
escrito ou verbalmente, à autoridade competente para o seu proces diato aos canais internos[20].
samento. Atente-se que não se trata de uma faculdade, antes de um Contudo, o quadro legal em Portugal é ainda demasiado redu
dever decorrente da posição especial que os funcionários públicos tor, visando apenas determinadas áreas da economia e deixando as
detêm e apenas equiparável ao dever resultante do regime aplicável restantes num vazio que só cria como alternativa verdadeiramente
aos funcionários com posições-chave no contexto das instituições credível a denúncia externa, um passo que para muitos denuncian
de crédito e das seguradoras sendo ainda equiparável à denún tes é, na realidade, um ónus muito pesado e obriga até a que sejam o

cia obrigatória a que estão sujeitos os funcionários nos termos do Ministério Público e os órgãos de polícia criminal a fazer, em parte,
artigo 242.° do CPf com a diferença que este último caso cobre os o trabalho que a lei fragmentada exige, actualmente, aos órgãos
factos que configurem qualquer tipo de crime enquanto o regime
disposto no artigo 6o.° do RGIT respeita a factos com natureza ]]
C&. NUNO BRANOÃ0,’O whistte- tratamento de denúncias e protecção de no sistema; a segunda. que sirvam essas
blowmg no ordenamento jurídico por- denunciantes assume duas fimções pri- entidades de intermediárias na gestão
contra-ordenacional. tuguês’ in RMP, n.’ 161,Janeiro-Março mordiais: a primeira, garantir a existên- da infirmação comunicada, permitindo
Já relativamente aos particulares é seguida a lógica destas 2020 p. 110. cia de uma entidade independente que uma melhor abordagem à situação que,
dê confiança ao denunciante e tredibi- evenwalmente, o denunciante não con
duas actividades, tornando-se facultativa a denúncia junto dos [20] A criação de condições para que lias os agentes económicos envolvidos, siga fizer e que decida e dê o melhor
serviços tributários competentes (n.° 2 do artigo 6o.°), com a as entidades visadas pela obrigação de ao mesmo tempo que refirça a segu- andamento a informação que possa
adopção de mecanismos intemos de rança da comunidade na instituição e constituir efectivamente uma infracção.
[155] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Motddvia
[154] Revista do Ministério Público 163 : Julho : Setembro 2020
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GUERREIRO

de auditoria interna e gestão de risco e, numa última análise, às



consagra o direito à liberdade de expressáo, direito este que com
entidades supervisoras ou reguladoras por exemplo, quanto à
—,
preende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de trans
determinação de um facto constituir crime. mitir informações ou ideias sem ingerência de poderes públicos.
Esta evidência demonstra que o ordenamento jurídico por Jáo artigo 10,0 da CEDH dispõe de modo muito semelhante, acres
tuguês em matéria de protecção de denunciantes é fortemente centando ainda o facto de o exercício destas liberdades poder estar
acelerado pela pressão imposta pelos processos de harmoniza submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções,
ção desencadeados no contexto da União Europeia e que visam entre outros, com o fim de impedir a divulgação de informações
refiectir uma visão comum sobre um conjunto de valores parti confidenciais ou a protecção da honra e dos direitos de outrem1>’1.
lhados quanto à importância da denúncia e dos denunciantes. As inúmeras disposições identificadas anteriormente no orde
O mais recente exemplo que concretiza esta visão é a Directiva namento jurídico português em matéria de protecçáo de denun
(UE) 2019/1937 do Parlamento e do Conselho, de 23 de Outubro ciantes e que resultam da transposição de directivas permitem
de 2019, relativa à protecção das pessoas que denunciam violações determinar o âmbito de aplicação das «formalidades, condições,
do direito da União e que vem alargar um mecanismo de protec restrições ou sanções». Deste modo, as situações previstas nos
ção de denunciantes a um conjunto de áreas manifestamente mais instrumentos que permitem proteger denunciantes visam prote
amplo do que os já referenciados. ger direitos fundamentais nos termos unanimemente reconhe
Este instrumento é o corolário da visão comunitária de que a cidos pelos Estados-Membros da União, na óptica de reduzir as
comunicação de infracções corresponde, na verdade, ao exercício de situações de ingerência dos Estados na liberdade de expressão
um direito fundamental que não pode ser sacrificado pelas autori dos seus cidadãos; nas restantes situações, o Estado e os visados
dades dos Estados, salvo em determinadas condições que analisa pelas comunicações têm legitimidade para reagir por exercício
remos. De facto, o artigo 53.0 da Carta de Direitos Fundamentais desproporcional de um direito fundamental, O objectivo preten
da União Europeia (CDFUE) já determina que «nenhuma dispo dido com a conjugação de todas estas normas é evidente: dissua
sição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de restrin dir e evitar uma anarquização do tratamento da informação que
gir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais possa, por exemplo, espoletar o surgimento de putativos justiceiros
reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelo direito da nas comunidades dispostos a desencadearem acções violadoras de
União, o direito internacional e as Convenções internacionais em direitos fundamentais de terceiros sem que tenham legitimidade
que são Partes a União ou todos os Estados-Membros)). para o fazer e sejam pouco claras as intenções com que o fazem.
Significa isto que um direito consagrado na CDFUE deve ser Resulta daqui que o grau de tutela pretendido pelo artigo ;o.°
interpretado de forma semelhante ao da Convenção Europeia dos da CEDH abrange todos os particulares profissionalmente ligados
Direitos Humanos (CEDH). O direito à expressão e à informação f2Lj
Acrescente-se que o artigo to.’ clii o direito negativo a não se expressar expression/Liberté daxpression’ in
aclamado no artigo 11.0 da Carta deve, por isso, ser interpretado CEDH garante, não apenas o direito a se assim o enrender, a permanecer lhe Eurvpean Conventton SE Humat
comunicar informação, mas também o em silêncio, portanto. Cfr. WILLIAvI
em modo semelhante à liberdade de expressão prevista no artigo Rtghits: a camlllentary, Oxford: Oxford
direito do público a recebê-la e ainda A. ScHABAS, ‘Arricle lo. Freedom of University Press, ot6, p. 456.
io.° da Convenção. Neste caso específico, o artigo n.° da CDfUE
[156] Revista do Ministério Público 163 : Julho : Setembro 2020
[157 1 A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja e. Male/ri via
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2039/1937, de 23 de Outubro
ALExAN0RE GUERREIRO

a uma terceira pessoa ou organização e ainda os que simplesmente Como veremos, o resultado obtido para a violação é apurado
tiverem conhecimento de infracções cometidas por outras pessoas com base em dois exercícios distintos:
fora deste contexto. Todavia, um dos desafios imediatos que os a) Aos denunciantes whistlebtowers, o TEDH avalía seis parâ
Estados-Membros da UE enfrentam passa pela determinação de metrost261 e no caso Herbai c. Hungria (processo fl.° 11608/15),

critérios que devem ser atendidos para demarcar a fronteira entre o num caso de direito à liberdade de expressão por difusão de
denunciante que legítima e proporcionalmente exerceu a sua liber opiniões pessoais por parte de um funcionário, o TEDH
dade de expressão na transmissão de informação e a pessoa que ponderou, entre outros, a natureza do discurso proferido,
efectivamente abusou da liberdade de expressão e violou direitos confrontando-o com as motivações do autor, com os danos
fundamentais de terceiros. reputacionais para o empregador e com a severidade da san
ção para determinar se o direito à liberdade de expressão de

1. Os DENUNCIANTES NO TEDH um particular sujeito a confidencialidade profissional está a ser


O confronto recorrente entre as autoridades dos Estados e pessoas desproporcionalmente afectado pelo direito dos empregadores
que transmitem informações sobre terceiros passíveis de configu a gerirem os seus recursos humanos como é disso exemplo

rarem infracções tem concorrido para que o TEDH seja chamado a posição do TEDH no caso MedIis Istamske Zajednice Brêko
a pronunciar-se sobre situações que colocam em evidência a reali e Outros c. Bósnia e Herzegovina (processo n.° 17224/11, 8o)
dade das duas classes de denunciantes e outras às quais a protecção em favor da aplicação ao denunciante whistleblower de critérios
não se aplica. A separação entre estas realidades é efectuada em adicionais face aos denunciantes fora do contexto profissional;
função de a interferência dos Estados na liberdade de expressão de b) Aos denunciantes pessoas que dão informações, o TEDH tem
quem transmite a informação ser ou não necessária° para acaute considerado três pressupostos emanados do n.° 2 do artigo io.°
lar direitos fundamentais de terceiros[231, num contexto em que a da CEDH.
ingerência pode constituir uma ameaça à sociedade democrática]24]
ainda que conte com apoio nacional significativo[251. Nos dois casos, basta que um dos critérios seja ponderado em
sentido negativo na óptica dos interesses do pretenso denunciante
[221
Recai sobre os Estados a obrí- foi determinado, por exemplo, ainda no n.° 28955/06, 28957/06, 28959/06 e para que se conclua que o Estado cumpriu as suas obrigações posi
século XX, nos casos Janowski c. Polé- Lingens e. Áustria
gação negativa de não interferirem no 28964/06, 53) e
tivas e negativas previstas da Convenção.
direito à liberdade de expressão dos Ria (processo n.° 25716/94) e Nikula c. (processo n.° 9815/82, 4i).
cidadãos sobre os quais têm jurisdição, fmlêndia (processo n.° 31611/96). Este
[25]
excepto nos casos em que tal se justi- entendimento continua a ser mantido, Cfi JAME5 CRAwFoRo, “Demo
fique. Neste sentido, cfi WILLIAM A. como é disso exemplo o reconheci- cracy and the body of intemational
SCHABA5, op. cit., p. 453. mentO no caso Bargéo e Domingos Cor- law’ in Democratic Governance and
[26]
icia c. Portugal (processos n.° 53579/09 International Law, Gregory H. Fox e Caso o direito à liberdade de do autor, com os danos reputscionais
[23]
oTEDH tem interpretado o e 53582/09). Brad R. Roth (cdi.), Cambridge: Cam expressão por difissão de opiniões para o empregador e com a severidade
vocábulo unecessáriois, cotdarme dis. bridge Umversity Preso, a000,p. 93. pessoais por parte de um fimtioná da sanção. Neste sentido, o recente
posto no n.° 2 do artigo 10.0 da CEDH,
[24] Assim sublinhado pelo TEDH. no, o TEDH pondera, entre outros, caso Hcrboi e Hungria (processo n.°
por exemplo, nos casos Palomo Sdn a natureza do discurso proferido, II6o8/I5).
como implicando sa existência de uma
necessidade social imperiosas. Assim chez e Outros e. Espanha (processos confrontando-o com as motivaçóes
[5] Revista do Ministério Público 163 :Julho : Setembro 2020 E 159] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Motdávia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALEXANDRE GuERREIRo

Li. Caso Bucur e Toma c. Roménia existe o que o Tribunal denomina de «necessidade social pressio
O caso Bucur e Toma c. Roménia (processo n.° 40238/02) um nante» para a restrição da liberdade de expressão de quem divulga
dos primeiros processos que chegou ao TEDH, no século XXI, a informação, resumindo-se a margem de apreciação à percepção
sobre esta matéria, No caso em apreço, Constantin Bucur havia do interesse de uma sociedade democrática em condutas seme
exercido funções numa unidade militar dos serviços de informa lhantes às dos aparentes denunciantes em cada caso concreto.
ções romenos e, durante o período de actividade, tomou conheci Em primeiro lugar, questionou-se se o requerente tinha outros
mento de inúmeras irregularidades cometidas por profissionais do meios de divulgação de informação, concluindo-se que não exis
seu serviço, em concreto, a realização de escutas à margem da lei. tia qualquer procedimento oficial para o efeito e que, no contexto
Bucur alegou ter comunicado as irregularidades aos seus colegas e em apreço, a divulgação da informação directamente ao público
ao director do seu departamento, o qual, alegadamente o repreen foi justificada, entendendo-se que tudo o que estava ao alcance do
deu pela informação transmitida. Após perceber que ninguém se requerente era informar os seus superiores e era improvável que
mostrou interessado em dar seguimento às denúncias feitas, Bucur fosse iniciada uma investigação capaz de pôr termo às irregularida
contactou um Deputado que integrava o órgão parlamentar fisca des, Em seguida, foi imperativo perceber se havia interesse público
lizador dos serviços de informações romenos. na divulgação da informação, entendendo-se que a realização de
O parlamentar sugeriu que a melhor solução passaria pela escutas tomou uma importância especial numa sociedade como a
divulgação pública da informação em conferência de imprensa o — romena por ter estado sujeita até um passado recente, ao longo
que Constantin Bucur viria a fazer, justificando a decisão com o de décadas, a um regime comunista que fomentou a actividade da
desejo de que o seu país cumprisse as leis e a Constituição. Dois polícia política, pelo que existiu um interesse legítimo do público
meses após a divulgação, a justiça romena abriu um inquérito con em tomar conhecimento da informação.
tra Bucur, acusando-o de recolher e divulgar informação classifi Simultaneamente, o tribunal avaliou a verosimilhança da infor
cada enquanto exerceu funções, e, em 1998, condenou-o a dois anos mação, entendendo que o denunciante tinha todas as razões para
de prisão suspensos na sua execução. acreditar que a informação divulgada era verdadeira, Em quarto
O TEDH acabou por entender que esta decisão colocou a lugar, foram apurados os danos reputacionais para os serviços de
liberdade de expressão em conflito com o objectivo de prevenir e informações, compreendendo-se que um dos critérios tidos em
punir crimes contra a segurança nacional. A decisão final de conde consideração fosse o do impacto que a transmissão da informação
nação da Roménia ao pagamento de uma indemnização por danos tinha para a reputação dos lesados, uma vez que a interferência
não patrimoniais foi o corolário das respostas obtidas a seis quesi dos poderes estatais tem como missão a protecção da reputação ou
tos que permitiram concluir que o Estado romeno interferiu des dos direitos de terceiros e só pode prevalecer se o domínio for de
necessariamente com o direito de Bucur à liberdade de expressão. inquestionável interesse público.
Em concreto, como o TEDH decidiu nos casos Goodwin c. Reino Aqui, o interesse geral na divulgação da informação que revele
Unido (processo n.° 17488/90, §40-46) e Worm c. Austria (pro actividades ilegais dos serviços de informações é de tal forma
cesso n.° 22714/93, 47-58), exige-se que os Estados avaliem se importante numa sociedade democrática que deve prevalecer sobre
[160] Revista do Ministério Público 163 :Julho : Setembro 2020 [161] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Motdávia
no contexto de transposição da Directiva (Uli) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRr Gutaar;zo

o interesse em manter a confiança popular nas instituições. Mais revelação ao jornal estaria justificada sendo possível enqua

sucede que é exigível que o denunciante esteja de boa fé. No caso drar entre as obrigações positivas que recaem sobre os Estados
concreto, ficou determinado que não existiam razões para acreditar no sentido se assegurarem os direitos dos cidadãos ao abrigo
que o denunciante foi movido por outras razões além do desejo de do artigo io.° da CEDH, conforme enfatizado no caso fuentes
levar uma instituição pública a cumprir as leis da Roménia sendo — Bobo c. Espanha (processo n.° 39293/98, 38), a obrigação de
importante considerat quanto a este aspecto, que o TEDH reco criar mecanismos que assegurem a protecção do denunciante e
nheceu, no caso Guja c. Moldávia (processo n.° 14277/04), que o evitem como única solução o recurso à divulgação pública;
direito à liberdade de expressão admite que os funcionários públi b) Interesse público: os riscos para a separação de poderes, bem
cos e outros funcionários tenham o direito de denunciar condutas como conduta imprópria de altos funcionários e passividade
ilícitas e irregularidades no local de trabalho, Finalmente, quanto do Governo perante a brutalidade policial nos processos alvo
à gravidade da sanção, o TEDH inferiu que a punição teve reper de ingerência atestam a importância dos assuntos numa socie
cussões negativas na carreira de Bucur e podia ter efeito dissuasor dade democrática;
noutros funcionários dos serviços de informações, desencorajando- c) Autenticidade da informação revelada: era notória a autentici
- os de comunicar irregularidades. dade dos documentos;
d) Danos reputacionais para o empregador: é do interesse público
1.2. Caso Guja c. Moldávia manter confiança na independência e neutralidade política das
Os mesmos seis critérios já tinham sido considerados pelo TEDH, autoridades do pais, como era o caso do Procurador-Geral,
cinco anos antes, no caso Guja c. Motdávia. Neste processo, Iacob sendo estes assuntos de extrema importância numa sociedade
Guja invocou uma violação da sua liberdade de expressão, nomea democrática;
damente da divulgação de informação, após ter sido demitido do e) Boa fé: o Tribunal não encontrou quaisquer razões para acre
gabinete do Procurador-Geral por divulgar dois documentos que ditar que o denunciante foi motivado por um desejo de obter
revelavam interferência por uma alta autoridade política em pro vantagens pessoais, havendo, por isso, boa fé na actuação;
cessos crime pendentes. O Procurador moldavo respondeu, ale f) Gravidade da sanção aplicada: o despedimento foi a solução mais
gando que não houve ingerência, já que não foi Guja a tornar a grave que podia ter sido encontrada para punir o denunciante e
informação pública na peça de um jornal local, antes se limitara a o facto de este desfecho ter sido tornado público podia dissuadir
fornecer a informação. outros trabalhadores e funcionários públicos de, no futuro, de
Como referido, o TEDH procurou encontrar respostas para os nunciarem irregularidades cometidos pelas suas organizações.
seis quesitos usados no caso Bucur e Toma c. Roménia, concluindo que:
a) Existência de canais alternativos de divulgação: inexistia legis 1.3. Caso Heinisch c. Alemanha
lação na Moldávia que permitisse que os funcionários públicos A fórmula dos seis quesitos foi repetida pelo TEDH mais tarde no
relatassem irregularidades e a informação divulgada demons caso Heinisch c. Alemanha (processo n.° 28274/08) para dar razão
trava falta de vontade do Procurador-Geral em agir, pelo que a à requerente deste processo. O mesmo relata a situação de Brigirre
[162] Revista do Ministério Público 163 : Julho : Setembro 2020 [163 A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Motddvia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExAN0RE GueRResno

Heinisch, enfermeira geriátrica num lar alemão e que, ao constatar d) Danos reputacíonais para o empregador: o interesse público
a ausência de recursos logísticos e humanos para o tratamento e no conhecimento de que uma entidade detida pelo Estado no
acompanhamento devido dos utentes, solicitou aos seus superiores cuidado aos idosos é tão importante numa sociedade democrá
que reparassem as deficiências no funcionamento da instituição. tica que prevalece sobre o interesse em proteger a reputação e
Perante o silêncio do seu empregador, além de ter apresentado os interesses da pessoa colectiva visada;
queixa-crime por alegada fraude, Heinisch comunicou formal- e) Boa fé: a verdadeira motivação da requerente para formalizar
mente à administração do lar, através do seu advogado, que devido uma queixa-crime tinha como base a potencial ameaça contra
à ausência de meios os cuidados básicos dos utentes não podiam a saúde de utentes particularmente vulneráveis;
ser garantidos, contrariando, deste modo, o serviço de elevada qua f) Gravidade da sanção aplicada: a sanção foi desproporcional e
lidade que usava como bandeira na promoção junto da sociedade era passível de ter um efeito dissuasor sobre outros trabalha
civil, Na sequência destes eventos, Brigitte Heinisch foi alvo de dores da empresa no que à denúncia de infracções, no futuro,
um despedimento cuja licitude, apesar de ter impugnado judicial diz respeito, num quadro em que a cobertura mediática dada
mente, foi confirmada pela justiça germânica. ao caso, passível de constituir um mau exemplo para outro tipo
Como referido inicialmente, para avaliar este caso, o TEDH de trabalhadores, agravou a desproporção da sanção.
insistiu na obtenção de respostas aos mesmos seis parâmetros uti
lizados no usados no caso Cuja c. Moldávia, chegando às seguintes 1.4. Casos Bargão e Domingos Correia c. Portugal
conclusões: Nestes processos (processos n.° 53579/09 e 53582/09), o TEDH
a) Existência de canais alternativos de divulgação: além de à data foi chamado a tomar posição sobre José Maria Bargão e Jacinto
inexistir na Alemanha um mecanismo especial para investigar Domingos Correia, dois particulares que comunicaram ao Mi
denúncias e exigir a tomada de acção do empregador, a denun nistério da Saúde que um assistente administrativo do Centro de
ciante também comunicou a gravidade da situação por diversas Saúde de Salvaterra do Extremo não cumpria fielmente o horário
vezes aos seus superiores, ao longo de quase dois anos, sem de trabalho e explorava a vulnerabilidade dos utentes para fins pes
que a realidade mudasse, o que fez com que o critério estivesse soais, Uma parte da carta remetida foi publicada num jornal local,
preenchido em favor da denunciante; O visado pela denúncia apresentou queixa-crime contra os
b) Interesse público: uma vez que nas sociedades em que a popula autores da missiva, que acabaram condenados por difamação agra
ção idosa depende significativamente de cuidados institucionais vada pelo Tribunal de Idanha-a-Nova, uma decisão confirmada,
e em que se reconhece a especial vulnerabilidade dos utentes vi posteriormente, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, A decisão
sados, a confiança da sociedade na ministração de cuidados ade foi fundamentada com o facto de, apresar de se concluir que os
quados confere inegável interesse público a esta matéria; subscritores da denúncia tinham actuado cientes de que prote
c) Autenticidade da informação revelada: o TEDH não ficou con giam os interesses da população local, acabaram por não conseguir
vencido com a argumentação do Estado alemão, entendendo demonstrar que os factos relatados correspondiam à verdade e a
que os factos relatados por Heinisch correspondiam à verdade; convicção do tribunal ficou ainda mais comprometida com o facto
[1641 Revista do Ministério Público 163 : Julho : Setembro 2020 [165 1 A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Gtja c. Moldávia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE Gutaasiao

de ser reconhecido que existiam «diferendos políticos)) entre os ora 1.5. Caso Gfrteanu c. Roménia
requerentes e o auxiliar. O caso em apreço (processo n.° 50376/09) assume contornos
Neste quadro, considerando que o direito à liberdade de únicos que o distinguem dos restantes analisados anteriormente.
expressão dos requerentes não foi exercido no âmbito de uma rela Com efeito, Marian Gírleanu era um jornalista que se dedicava à
ção profissional presente ou anterior aos factos, oTEDH analisou investigação das actividades das Forças Armadas e das forças de
o caso numa óptica de ingerência estatal no exercício do direito à segurança. Em 2005, o requerente recebeu de um colega um CD
liberdade de expressão com base em três critérios: a previsão da que continha cópias de documentos classificados, os quais tinham
interferência na lei interna e que seja, simultaneamente, direccio sido extraviados de uma unidade militar da Roménia destacada no
nada à prossecução de um dos fins legítimos previstos no n.° 2 do Afeganistão. Acabou por ser um dos cinco acusados pela justiça
artigo 10.0 da CEDH e necessária numa sociedade democrática. romena de divulgar informação classificada sobre segurança nacio
O último ponto deve ser examinado numa dupla perspectiva: a da nal e pela recolha e partilha de informação classificada.
boa fé de quem transmite a informação e a da proporcionalidade O requerente foi condenado em pena de multa, apesar de os
da ingerência. documentos terem, entretanto, sido desclassificados e o Procura
Os primeiros dois pressupostos consideraram-se verificados, dor reconhecer ser improvável que a divulgação tivesse colocado
ora porque os artigos i8o.° e 184.° do CP previam a sanção, como em causa a segurança nacional. Perante a inflexibilidade da justiça
também porque a ingerência tinha como finalidade a protecção local em dar razão a Gfrleanu, o TEDH considerou a ausência de
da reputação e dos direitos do denunciado de modo a permi ligação profissional entre este e o Estado romeno para se pronun
rir que exercesse as suas funções sem ser perturbado. Todavia, ciar sobre a interferência da Roménia na liberdade de expressão
o tribunal entendeu que o critério da necessidade da ingerência do requerente, socorrendo-se, para este efeito, dos três critérios
já não estava verificado, Em primeiro lugar, porque a boa fé dos já mencionados.
requerentes considerou-se validada em virtude de exporem factos Neste sentido, a interferência estava prevista na lei romena
e não juízos de valor, de se focarem na actuação do denunciado e visava o objectivo legítimo de proteger a segurança nacional.
enquanto funcionário e não como político e ainda de terem diri Quanto à determinação sobre se a interferência era necessária
gido a informação para o Ministério da Saúde, o órgão que tutela numa sociedade democrática, o TEDH concluiu que, apesar de
os centros de saúde pública em Portugal, não recorrendo para os documentos divulgados serem aptos a gerar debate no pais e
órgãos de polícia criminal. poderem colocar em causa o interesse público, as diligências pro
finalmente, porque os factos reportados, o reconhecimento movidas pelo Estado concluíram que a informação não era actual e
de que estes eram passíveis de configurar crimes cometidos pelo a sua divulgação não comprometia a segurança nacional, pelo que a
denunciado e que a reacção do Ministério da Saúde perante a acção do requerente náo causou danos aos interesses do pais.
denúncia reforçaram a convicção de que o assunto revestia mani A tudo isto acresceu que a conduta do requerente foi decisiva
festo interesse público. para concluir em favor da ingerência ilícita da Roménia na sua
liberdade de expressão. Afinal, não só não se demonstrou que o
[166] Revista do Ministério Público 163 :Julho : Setembro 2020 [167 1 A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Motdávia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALLxANDRE GUERREIRo

requerente fosse o responsável pelo extravio dos documentos, natural e espontânea com a infracção com base numa conduta
como se apurou que outros particulares já tinham tido acesso aos legítima, sendo este um cenário que contrasta com aquele em
mesmos anteriormente e afastou-se a hipótese de ter obtido os que alguém acede ilícita e intencionalmente no sistema de um
documentos através de meios ilícitos. terceiro desconhecendo se vai aceder a infracções e procurando
Quanto a este ponto, o TEDH revisitou a tomada de posição tirar proveito do factor sorte para se cruzar com informações
em três casos anteriores de natureza semelhante para confirmar que possam ser utilizadas por si mais tarde;
que «a maneira através da qual a informação considerada confiden b) O percurso realizado para denunciar as infracções ou irre
cial ou secreta é obtida por quem a divulga pode ter relevância para gularidades, dando ou não prioridade a canais internos antes
decidir os interesses que devem prevalecer no contexto do n.’ 2 do de denunciar os factos externa ou publicamente veja-se, a —

artigo 10.0 da CEDHx’ posição tomada deste modo nos casos



este respeito, o caso Soares c. Portugal (processo n° 79972/12),
Stoll c. Suíça (processo n.° 69698/01, §141), Bédat c. Sutça (processo no qual o TEDH referiu também que o requerente não res
n.° 56925/08, §56) e, finalmente, em Girteanu c. Roménia (processo peitou a ordem hierárquica para a denúncia de irregulari
n.° 50376/09, §91), sendo que nos dois primeiros casos o TEDH dades, porquanto não recorreu primeiro a um superior seu,
concluiu que o Estado suíço interferiu com o direito à liberdade suportando-se também nesse facto para concluir que Portu
de expressão dos requerentes mas sem violar o n.° 2 do artigo Io.°. gal não interferiu ilicitamente no seu direito à liberdade de
Consequentemente, o TEDH assumiu nos casos Stott c. Sutça expressão (4I, 48-49);
(I41 e 144) e Bédat c. Suíça (57) que, uma vez confirmado o c) A confirmação da autenticidade da informação antes de recor
acesso à informação por meios ilícitos, esta conduta é penalizadora rer a mecanismos de denúncia nomeadamente, para deter

para quem transmite a informação por comprometer a hipótese de minar se o portador de informação realizou um juízo de valor,
se verificar a boa fé, alimentou um rumor ou transmitiu um facto, a exemplo do
A boa fé na conduta do divulgador de informação resulta, por que foi o entendimento do TEDH nos casos Soares c. Portugal
isso, da combinação de quatro aspectos no comportamento deste: (44-52) e Bargão e Domingos Correia c. Portugal ();

a) A forma como acede à informação, num contexto em que o d) A motivação no acesso à informação e na sua denúncia ou
furto da informação reforça a convicção de inexistência de boa divulgação.
fé ainda mais numa era global na qual Estados e particulares
estão reféns de servidores informáticos para armazenarem Neste contexto, é importante recordar que, embora considere a
informação sensível, pelo que a boa fé depende da motivação relevância que determinadas informações tenham para o interesse
de quem acede ao sistema para se tratar de um denuncian

público, o TEDH não deixou de tomar posição em favor da neces
te whisttebtower, é expectável que o transmissor da informação sidade de os Estados executarem as medidas necessárias e con
cometa um crime de acesso ilegítimo (por náo estar autoriza templadas na lei interna respectiva para «impedir a divulgação de
do para realizar a operação para fins estranhos ao exercício de informações confidenciais», à luz do n.° 2 do artigo io.° da CEDH.
funções) mas que o faça apenas por se ter cruzado de forma A este respeito, é interessante perceber a reflexão do TEDH no
[16$] [169] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Guja c. Motdávia
Revista do Ministério Público 163 tJulho : Setembro 2020
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GuERREIRo

caso Stott c. Suíça (58) em torno da distinção entre as redacções nacionais têm, assim, de aferir se existe uma «necessidade social
francesa (<empêcher la divulgation d’iformations conftdentiellesx’) pressionante» para a restrição do direito, dispondo de uma certa
e inglesa (t<preventing the disclosure of information received in confi margem de apreciação[27].
dence»), sobretudo considerando que a solução portuguesa apro
xima-se da gaulesa.
Em concreto, o TEDH afastou o entendimento segundo o IV. A DIREcTIvA (UE) 2019/1937,

qual a versão inglesa poderia hipoteticamente sugerir que a interfe DE 23 DE OuTuBRo


rência na liberdade de expressão de um particular só poderia ocor Da anterior análise à jurisprudência do TEDH resultou a iden
rer relativamente a quem tivesse um vínculo directo com o autor tificação de diferentes critérios e níveis de protecção para o trans
de um documento secreto, afastando a tutela relativamente a ter missor de informação passível de revelar a comissão de infracções
ceiros fora da relação de confiança. Por considerar que este seria ou irregularidades cometidas por terceiros. É neste contexto que é
um entendimento restritivo, o TEDH declarou nos casos Stolt c. aprovada a Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro de 2019,
Suíça (58-62) e Bladet Tromsø e Stensaas c. Noruega (processo n.° relativa à protecção das pessoas que denunciam violações do
21980/93, §65) que a interferência pode ser feita relativamente a direito da União. Considerando que a primeira data limite de
qualquer pessoa, incluindo jornalistas, sendo estes insistentemente transposição verificar-se-á a 17 de Dezembro de 2021, é impor
reconhecidos pelo tribunal como «fornecedores e vigilantes públi tante reflectir sobre Estados, como Portugal, que não têm cultura
cos», tal como reconheceu no caso Monnat c. Suíça (processo n.° de protecção e articulaçáo dos respectivos sistemas com as de
73604/01, §70). núncias e que em muito terão motivado a necessidade de adoptar
Não obstante, é importante frisar que o TEDH considerou no uma Directiva que conferisse um grau de protecção mínimo co
caso fressoz e Roire c. França (processo n.° 29183/95, §43) que, ape mum a todos, sobretudo sabendo-se que cada um, até ao momen
sar de a protecção de denunciantes dever ser assegurada, os Estados to, tem sistemas próprios ou não os tem de todo e apresentam
não violam os direitos fundamentais de quem divulga informação quase todos realidades fraccionadas.
se impuserem limites à liberdade de expressão enquanto meio Tudo isto num quadro em que o TEDH tem reiterado que os
«necessário numa sociedade democrática», mesmo que a interfe Estados têm pouca margem de manobra para restringir a liberdade
rência seja dirigida a proteger a reputação ou os direitos de tercei de expressão dos seus cidadãos no discurso político e em assuntos
ros e a prevenir a divulgação de informação recebida com base na de interesse público e que o direito a informar o público e o direito
confiança depositada. do público a receber informação colide contra igualmente impor
Os Estados podem, assim, punir acções de particulares que, à tantes interesses públicos e privados que estão protegidos pela pro
margem da lei, conduzam campanhas cometidas por meios ilícitos tecção de divulgar informação[28],
contra os interesses de terceiros quando as autoridades nacionais
já têm os seus meios e regras procedimentais para conjugarem [27]
Assim caso frcssoz e Rore c. [28]
Assim sucedeu no caso Bédat c.

os direitos fundamentais individuais e colectivos. As autoridades França, 45. Sutça (processo o.’ 56925/08, 49, 55).
[170] Revista do Ministério Público 163 :Julho : Setembro 2020 [171] A protecção de denunciantes em Portugal: o legado do caso Cuja e. Motddvia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GUERREIRo

Em traços gerais, a Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outu Outra inovação relevante da Directiva (UE) 2019/1937, de 23
bro, vem alargar significativamente o âmbito de aplicação material de Outubro, prende-se com o facto de o seu âmbito de aplicação
da obrigatoriedade de previsão de mecanismos de protecção para pessoal incidir exclusivamente sobre pessoas que tenham tido
denunciantes e que vai muito além da criminalidade económico- conhecimento da informação em contexto profissional, bem como
-financeira ou cometida por titulares de funções políticas e funcio a terceiros que possam ser alvo de retaliação profissional (artigo .°).
nários do Estado, Agora, à luz do n.° i do artigo 2.° da Directiva falamos, portanto, de aplicação exclusiva ao denunciante whistle
(UE) de 23
2019/1937, de Outubro, os Estados deverão prever btower, sendo que estes denunciantes têm de ter motivos razoá
soluções que abranjam: contratação pública; serviços, produtos e veis para crer que as informações são verdadeiras no momento em
mercados financeiros e prevenção do branqueamento de capitais que as transmitem o que corresponde aos critérios da autentici

e do financiamento do terrorismo; segurança e conformidade dos dade da informação e, parcialmente, da boa fé e tenham realizado

produtos; segurança dos transportes; protecção do ambiente; pro denúncia interna, externa ou divulgação pública parcialmente, —

tecção contra radiações e segurança nuclear; segurança dos géneros critério da boafé.
alimentícios e dos alimentos para animais, saúde e bem-estar ani A existência de canais alternativos e o recurso aos mesmos
mal; saúde pública; defesa do consumidor; protecção da privaci continuará a constituir um factor nuclear nos critérios de deci
dade e dos dados pessoais e segurança da rede e dos sistemas de são, já que, apesar da previsão de protecção às denúncias interna e
informação; violações lesivas dos interesses financeiros da União; externa e à divulgação pública, os Estados-Membros devem incen
e violações relacionadas com o mercado interno. tivar a denúncia através de canais de denúncia interna antes de se
Paralelamente, decorre do extenso preâmbulo da Directiva (UE) proceder a denúncia externa (n.° 2 do artigo 7.°). Para este efeito,
2019/1937, de 23 de Outubro, que a União assume como prioridade é imperativo que as pessoas colectivas do sector público e os muni
que as denúncias e a divulgação pública por denunciantes constituem cípios com mais de io ooo habitantes ou mais de o trabalhado
uma componente a montante da aplicação do direito e das políticas res e, no sector privado, as médias e grandes empresas estabeleçam
da União; as denúncias e a divulgação pública alimentam os sistemas canais e procedimentos para denúncia interna (artigo 8.0).
de aplicação dos direitos nacionais e da União e aumentam a trans É ainda exigível que os canais internos não apenas emitam avi
parência e a responsabffização; em certos domínios, as violações do sos formais de recepção da denúncia como devem ainda dar retorno
direito da União podem lesar o interesse público; e é necessário criar à comunicação no prazo de três meses a contar do envio do aviso de
mecanismos e normas mínimas de protecção que assegurem que as recepção ou três meses a contar do termo do prazo de sete dias após
denúncias só são reduzidas por falta de interesse dos denunciantes e a apresentação da denúncia (alíneas b) e f) do n.° i do artigo 9,0).
não por desconfiança das instituições ou por percepcionarem a ausên Os mesmos prazos e exigências são impostos às autoridades
cia de soluções dos Estados para assegurarem a sua protecção(291. competentes para receber denúncias externas através de canais
29] Quanto ao receio percepcíonado XUH0NG Su e XING Ni e que atesta que têm conhecimento de inliu-mações XUH0NG Su e XJNG Ni, ‘Cinzens 00 tion injournal ofPubtic Admintstration
por potenciais denunciantes, veja-se, a krma como o medo de retaliações sobre infracções ou irregularidades tela- Patrol: Understandmg Pubhc Whisde- Research and Theory, vol. z$, nr 3,
por exemplo, o escudo desenvolvido por influencia directamente o activismo dos cionadas com comes de corrupção. Cfr. blowing againsr Govemment Cormp- July 2018, pp. 406-422.
[172] Revista do Ministério Público 163 Julho Setembro 2020 [173] A protecção de denunciantes em Portugab o legado do caso Guja c. Motdávia
no contexto de transposição da Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Outubro
ALExANDRE GusaRilRo

próprios, podendo, em casos justificados, o prazo de resposta ser soluções em simultâneo, como a protecção de testemunhas ou a
alargado para seis meses (alínea d) do n.° 2 do artigo ãi.°). delação premiada.
Assim, se se considerar que a divulgação pública só beneficia No mais, é muito importante que os Estados criem mecanismos
de protecção caso o denunciante tenha efectuado uma denúncia legais que levem as pessoas colectivas a adoptar códigos de conduta
interna ou externa, sem que tenha obtido resposta nos prazos refe suficientemente rígidos e mecanismos internos igualmente credí
ridos na Directiva, tiver motivos razoáveis para crer que a infracção veis como forma de protegerem os seus interesses empresariais, por
denunciada pode constituir um perigo iminente ou manifesto para exemplo, de escândalos públicos que possam afectar a reputação
o interesse público ou, em caso de denúncia externa, exista um risco das empresas, por vezes, por situações criadas individualmente por
de retaliação ou perspectiva diminuta de resolução (n.° i do artigo quem tem acesso a meios capazes de cometer infracções a menos —

15.°), é possível concluir que a Directiva privilegia o recurso aos que se tratem de infracções cometidas em massa e por quem, mais
canais internos se as infracções puderem ser eficazmente resolvidas do que qualquer outro, pode confundir os seus interesses pessoais
por esta via e os Estados criarem condições para que os denuncian com os das empresas.
tes não sejam alvo de retaliação e favorece supletivamente o recurso
à denúncia externa (n.° 2 do artigo 7.0).

V. CoNcLusõEs
A obrigação de transpor a Directiva (UE) 2019/1937, de 23 de Ou
tubro, surge num momento em que os Estados são pressionados
a ampliar o grau e as condições de protecção (exclusivamente) aos
denunciantes whistleblowers ao mesmo tempo que procuram acul
turar os respectivos poderes legislativo ejudicial para uma realida
de ainda opaca com vista à concretização devida de mecanismos
básicos de protecção do direito à liberdade de expressão dos dois
tipos de denunciantes,
Neste quadro, é inegável que o legislador e os tribunais por
tugueses, quando confrontados com situações de potenciais
denunciantes, não podem desligar-se dos critérios utilizados pelo
TEDH para qualificar e proteger os whistleblowers e as pessoas
que dão informações e separá-los de terceiros que não justificam a
mesma tutela ou que, além de responderem criminalmente pelos
excessos, possam ser simultaneamente enquadráveis noutras

Você também pode gostar