Você está na página 1de 39

a O nascimento

•in
íi '

das fábricas
de Decca
Edgar hub ê hist
ória

Dentre as utopias criadas a partir cio século XVI* a


glorificação tiu soer ec/cuie do trabalho foi a cjui? se realizou
Truitt desgraçãdnmente... Ultrapmssando a imagem
cri ífailit íiiia í jue o pensamento do século .M/ X produí
' iu

-
sobre a f ábrica t reduzmdo a a um acan íedmeniú
tecnológicot o autor reencontra a fábrica cm todos OJ lugares
£ momentos onde esteve presente uma í nten çcJo de
orgítru ?ar
e disciplinar o rrã fcdbo a tract's de uma sujei çã o camp /eta
da figura do próprio rrabainador -

-
ISBN 8 5 1 1 - 0 2 0 5 1 - 9
I
19
0
iA
C
0
A
i

CG
0 19 1
78455 ii" 020519 s

r p* i
- ^,--\ r=*
CT .- - .
jFfltf ík b

I
í ori de Deccs . 1962
Copyright & by Edgar Salvat

Nenhuma part* dasf á publicação pode ser gravada,


armazenada em $r$/smas eletrónicos , fotocopiada,
reproduzida por meios mec ânicos ou OJI^OS pwarsquer
.
i:&r rj autorizaçã o prévia do editor.

ISBN . BEM 1- G2051-9


Pi meira edlçâo, 1982
10a edição, 19D5
4 ^ rcimpiesã o, £ 00 1
-

Revisão - Newton T. L . Sadr ó e Júlio D. Gaspar


Capa: 123 (antigo 27) Artistas Gráficos
Í NDICE
DJKJPS Internacionais de Calalojíçio na Publicaçã o (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dacca, Et
ílgar Salvador dc
O nascirnení u daí làbrlcag / Edgar SaWadori de Dacca. -
São Fauln : Brasiknse , 2nni* . introdução • 7
Nunca temos tempo para sonhar 11
-
S 3 reimpr d i tO. ed. da 199b
Uma máquina ef ábrica incrí vel 41
Bibliografia
ISBN 85 ^ 11 02D 51-9 A f á brica vitoriosa 67
1 Fábucas - Historie i Titulo indicaçõ es para leitura . . . . . . 72

CDCKH&. 76709
J4 -2022 *
Índices gora calálogo sistemá tico:
t. f ábricas : Histórias : Economia 330.476703

eriiiíir:i íirasiliesise s .a ,
I tua Ain, 22 - TEIJOPP CP P 03310- 01 - 2áo PAJ :I 6P
Fontr/ F *: ;n^ai } siaB- Mfiâ
-
*
£ mail; Ltfesilienseec .
liiiíiucl .mrn br
wiv .edltorabraEi!i5*ise,cmi br
* i

livraria brasiliense s.a ,


rtua Emilia Marengo . 216 Taluapé - CEP 03336- 000 &&Q Paulo - SF
Fane/Fax jowl 1 } 6675-01®

- fu - VrT I I| | --
rI jrjajjT \Tn&tTXW - . -
"i"ui?V i — r

l
INTRODU ÇÃO

Dentre todas as utopias criadas a partir do sé -


culo XVI , nenhuma se realizou t ã o desgraçadamente
como a da sociedade do trabalho. Fá bricas pr ísões , -
Hvery morning just at five fabric as -conventos , f á bricas sem sal á rio , que aos
Gotta get up . dead or alive nossos ojhos adquirem um aspecto caricatural , fo-
It £ hard times in the mill , my love ram sonhos realizados pelos patr ões e que tornaram
Hard times in the mill possível esse espetáculo atual da glorificação do tra -
balho , Para se ter uma id éia da forç a dessas utopias
/ í vn morning just at six
realizadas impregnando todos os momentos da vida
Don i that old bell make you sick ? social a partir do século XVIII , basta considerarmos a
It s HIJRD times in the mill , my love
-
'

Hard dmes in the mill transforma ção positiva do significado verbal da pró
pria palavra trabalho , que at é a é poca Moderna sem -
.Am t it enough to break your heart ? pre foi sin ó nimo de penaliza çã o e de cansaços insu -
Have work all day and at night it s dark
ro port á veis , de dor e tie esforço extremo, de tal modo
It T hard times in the mill my love que a sua origem só poderia estar ligada a uni estado
extremo de misé ria e pobreza . Seja a palavra latina e
,

Hard rimes in the mill


inglesa labor , ou a francesa travail , ou grega portos
( Cauçao de rendeiros — Carolina do Sul — 1890 ) ou a ale má Arbeit . todas elas , sem exceção , asst -

l
an •
- •
— : ::“ HV
'T
--
IftSffiSWIHIÇBTFT .
' ZV , . --
V it - -
mi t WT r I ‘j i - '
1
>v v* i
—— —
. i r
O Nascimento das Fá bricas 9
A Edgar Sahadori de Decca

nalam a dor e o esforço inerentes à condi ção do sociedade , Assim , a f á brica ao mesmo tempo que
- COEI firmava a potencialidade criadora do trabalho
homem , e algumas como ponos t Arbeit t ê m a ines
ma raiz etmològica que pobreza { penia e Armut em anunciava a dimensão ilimitada da produtividade
grego e a íeru ã o , respectivamente ) . humana através da maquinaria .
Essa transformação moderna do significado da Para esse pensamento movido pela cren ç a do
poder criador do Lrabaiho organizado, a presen ça da
pró pria palavra trabalho, em sua nova positividade ,
representou tamb ém o momento em que, a partir do máquina definiu de uma vez por todas a f á brica
século XVI , o pr ó prio trabalho ascendeu da " tnais corno o lugar da supera çã o das barreiras da pr ó pria
humilde e desprezada posição ao nível mais elevado e condição humana . LlA inven çã o da m á quina a vapor
e da m á quina para trabalhar o algod ão , escrevia
"
à mais valorizada das atividades humanas, quando
Engels em 1844, “ deu lugar como é sobejamente
Locke descobriu que o trabalho era a fonte de toda a
propriedade . Seguiu seu curso quando Adam Smith conhecido a uma Revolu çã o Industrial , que trans-
afirmou que o trabalho era a fonte de toda a riqueza , formou toda a sociedade civil ." Essa imagem crista -
e alcan çou seu ponto culminante no "sistema de lizada j á no pensamento dos homens do século XIX
trabalho" de Man. onde o trabalho passou a ser a apagou todo o percurso sinuoso da organizaçã o do
fonte de toda a produtividade e expressão da pr ó pria trabalho da é poca Moderna, ao reduzir definitiva -
humanidade do homem " ( Hannah Arcndt. La Can - mente a f ábrica a um acontecimento tecnológico.
íiiciòn Humana , p. 139) ,
Contudo , os ecos das resistê ncias dos homens
pobres a se submeterem aos r ígidos padr ões do tra -
A dimensão crucial dessa glorificação do tra -
balho encontrou suporte definitivo no surgimento da balho organizado são aud í veis desde o século XVII ç
f á brica mecanizada, que se tomou a expressão su - assinalam a presen ça da fabrica a partir de um mar -
prema dessa utopia realizada, alimentando , inclu - co distinto daquele definido pelos pensadores do sé -
sive, as novas ilusões de que a partir dela n ã
o hã culo XIX .
Aqueles primeiros homens , que se viram cons -
limites para a produtividade human a .
Essa descoberta delirante da f á brica como lu - trangidos pela prega ção moral do tempo ú til c do
trabalho edificante, sentiram em todos os momentos
gar , por excelê ncia, no qual o trabalho pode se apre-
sentar em toda a sua positividade n ão só alimentou de sua vida co Li dia na o poder destrutivo desse novo
as projeçóes dos apologistas da sociedade burguesa , princípio normativo da sociedade. Sentiram na pró -
como també m a de seus próprios crí ticos , na medida pria pele a transforma çã o radical do conceito de
em que ela foi entendida como u momento de uma trabalho , uma vez que essa nova positividade exigiu
liberação sem precedentes das forças produtivas da do homem pobre a sua submiss ã o completa ao maxi -

l " - .r-Çg n q p E n R f f*;


:i
~ .-A
«
- .-
U • ^7
'
--
r " r* r
-
nt :, r . - . - -:
M ‘i * 1
IIIXI I UltifWP
.
p

10 Edgar Satvodori de Decca

do do palr ão .
lntrojetar um relógio moral no coração de cada
trabalhador Foi a primeira vit ó ria da sociedade bur -
guesa, e a f á brica apareceu desde logo como unia
realidade estarrecedora onde esse tempo util encon -
trou o seu ambiente natural , sem que qualquer modi-
fica çã o tecnol ógica livessc sido necess á ria . Foi alravés
da poria da f á brica que o homem pobre , a partir do
século XVI 11 , foi introduzido ao mundo burguês , NUNCA TEMOS
A reflexão que agora propomos visa ultrapassar
a imagem cristalizada que o pensamento do século TEMPO PARA SONHAR
XIX produziu sobre a f á brica, reduzindo a a um -
acOíitecimen Lo tecnológico.
Nosso intuito è desfazer o manto da mem ória da "Todas as pessoas que se encontram traba -
sociedade burguesa e reencontrar a f á brica cm todos lhando nos teares mecâ nicos est ão ali de modo
os lugares e momentos onde esteve presente uma forçado , porque não podem existir de nenhum
,

outro modo ; via de regro são pessoas cujas


intenção de organizar e disciplinar o trabalho atravé s fiimiiiú s foram destru í das e seus interesses ar -
de uma sujeiçã o completa da figura do proprio tra - minudos - . t ê m a tendência de ir como peque -
balhador, Por isso, os leitores não devem se sur - r

nos coló nias colonizar esses moinhos . " l


preender quando no decorrer do texto encontrarem
no engenho de a çú car da colónia o esboço da f á brica Inspetor govern amenta] inglês. ( 1834)
que iria produzir o futuro operá rio europeu .
Quando nos defrontamos hoje com a impossibi-
lidade de criar situaçftes de conhecimento que inter -
rompam ou invertam a lógica de um processo , desig -
nado real , podemos nos pergunlar sobre os disposi -
tivos que regem a ordem de domí nio da sociedade.
Sejamos expl ícitos desde o princí pio. Estamos fa -
lando , no caso , de uma incapacidade imposta ao
social , por ordem de um determinado domínio que

= “ J» . v*-. . • . .rar
K AKr ! : » I - JTTWÍ - .-
T 11 -
^ 71 - i^ -r - =T T
-. —VíCT t •
0 Nascimento daí Fábricas 13
12 Edgar Salvador ! de Dec ca

dos homens a pró pria dimensã o do pensar . bricar balas, por exemplo , n ão significa imediata -
mente que n ã o tenhamos condições de impor t ée-
j'eitra

como algo alé m do já dado . nicas de produção eficazes para a concorr ê ncia
no
Dentro daquilo que nos interessa , determinadas
mercado. Um outro mecanismo antecede essa ilusã o .
respostas j á s ã o bastante conhecidas. Por exemplo ,
quando falamos da produ çã o de conhecimentos t.éc - O que nos é vetado, antes de mais nada , é justa -
mente a possibilidade de pensarmos o ato mesmo de
nicos que n ão conseguem se impor socialmente * bus
-
pr
ó prio poder fabricar balas. Alguma coisa já se hipostasiou ,
camos a resposta, via de regra , no n í vel do
ganhou apar ê ncia de “ condi ções objetivas": o fa -
mercado. Assim , lima tecnologia é ineficaz porque
bricar balas já encontrou sodalmente um determi -
n ão consegue romper a barreira da concorrê ncia im - nado estatuto e. a n ão ser para alguns espí ritos recal-
posta por uma ordem implac á vel . Nesse sentido , a
citrantes que insistem em fazer festas , balas devem
conclusão é imediata . N ã o existem outras tecnologias
- ser reconhecidas como produto da eficiê ncia de in -
alé m daquelas conhecidas, porque o próprio mer
cado se responsabiliza em eliminar as "menos efi -
d ústrias alta mente conceituadas , segundo seus pa -
dr ões de qualidade.
cazes". Contudo* dever íamos ser menos ingé nuos em Somos induzidos , ent ã o , a pensar dentro de
quest ões que colocam explicita men te em jogo as re - uma lógica definida , que n ão é ditada por leis de
la ções de domina çã o social . Hm outras palavras , as
mercado , mas sim regida por mecanismos sutis de
relações de mercado vã o bem ruais alé m do que as
puras determina ções económicas. O estabelecimento controle social . Portanto , vejamos bem o que é esse
do mercado é també m o estabelecimento de um dado
pensar , pois há nisso tudo um modo de pensar , pró -
prio da esfera desse controle. At é agora nos referimos
registro do real. no qual os homens pensam e agem -
à possibilidade de emergê ncia de saberes que inter
conforme determinadas regras do jogo. Assim , o rompiam uma lógica de identificação social . Isto é ,
mercado n ã o só imp õe aos homens determinadas
tecnologias “ eficazes" , como também impede que um nãvsaber , porque se situava na esfera daquilo
que n ão poderia ser pensado. Pensar, portanto , é
lhes seja possí vel pensar outras tecnologias. pensar segundo regras já definidas , e o seu contra -
Da í falarmos em impot ência social . N ã o é isto ponto , no nivel da sociedade , é justamente a impos -
mn mecanismo regulado por leis econ ô micas do mer - sibilidade de pensar al é m das regras .
ca do , mas uma esfera de dom í nio social na qual os Portanto, ao falarmos em mercado ou em dm
homens se v éem impossibilitados de pensar alé m de são social do trabalho n ã o estamos nos referindo â
registros que se imp õem à vista de todos como uma
quest ã o de maior ou menor produtividade do tra -
ordem natural.
Portanto , quando nos sentimos incapazes dc fa - balho, mas sim à apropriação mesma dos saberes .

_
r.
.. -
ir .
r i7
-
T - -
. n tur . ' 'J
_-
/ - » Jti “*
I

— p . MHPIVM
'
r* !' =Tçí % *-*!.. * Ã3lc *
,
i
" tw .Zr
;.P> rHL
15
1* Edgar Saí vadori de Decca 0 Nascimento das Fá bricas

Deve , assim , existir um mecanismo social no qual reconhecimento supõem a imposi çã o de normas e
aquele que deté m um saber se torna imprescind ível valores pr óprios de determinados setores da socie-
para a imposiçã o do pr ó prio processo de trabalho , j á dade e que v ã o aparecer dotados de universalidade .
que aos outros homens está vetada a possibilidade Por exemplo, quando pensamos o desenvolvimento
desse saber, da ordem burguesa no seio da sociedade feudal , logo
Evidenlemeitie. a solu ção para este impasse n ã o imaginamos a instituiçã o do mercado como esfera
é reivindicar um direito para todos produzirem ba - universal]zante e universal!/ adora de uma nova or-
las , j á que isto seria uma saí da cdulcorada para o dem que se impõe .
problema . Contudo , até nisso h á uma dose de refle - Essa imposição de normas e valores por um
x ã o . Como restituir aos homens saberes que lhes determinado setor da sociedade pode ser percebida
foram retirados e que hoje servem para reger uma decisiva men te quando tomamos a noçã o de tempo
ordem de dom í nio polí tico , técnico , cultural etc. que ú til , produzida pela ampliação da esfera do mercado
e que n ã o só disciplina a classe burguesa como lam -
T

lhes é estranha e an tagô nica?


bem procura se imrojetar no âmbito da genie traba -
Mas n ão estamos aqui para oferecer respostas
- lhadora . Essa introjeçã o de um relógio moral no
acabadas. Preocupemo- nos mais em levantar algu -
corpo de cada homem demarca decisivamente os dis
mas questões que permitam pensar a problem á tica
- positivos criados por uma nova classe em ascensão ,
da tecnologia para alé m dos estreitos limites impos
À utodisciplina, controle de si mesmo , critica à ocio
-
tos pela lógica da eficá cia , da produtividade e da
sidade , s ão exigências imperiosas para o comerciante
neutralidade. Pensamos , isto sim , na apreens ão do que se envolve na esfera do mercado , " L Lilize cada
problema como uma estratégia de controle da socie - um dos minutos como a coisa mais preciosa . H cm -
dade imposta por uma determinada classe no mo- pregue os todos no seu dever . ” Pregações desse tipo
mento mesmo do .seu engendramento e afirma çã o no -
mundo. ou aquelas em que o tempo se relaciona com o di-
Assim , conceber uma classe de capitalistas e
nheiro nos mostram todo o artefa ío moral de uma
uma sociedade capaz de se engendrar e sei' engen - classe de mercadores que se imp õe a si mesma os cri-
drada por ela supõe, de in ício, registros determi - t é rios de sua identificação:
nados pelos quais se torne possí vel a criaçã o de um
mundo. Isto é , a síxdedade, para se tornar reconhe
cida por ela mesma , passa pelo imperativo de insti-
- “ Recordai qu ão recompensadora é a Reden çã o
do Tempo.. . no mercado , ou no comerciar; na
lavoura ou em qualquer ocupaçã o remunera -
tuiçã o de mecanismos capazes tie identifieá-la .
dora; só nos resta cli /.cr que o homem se torna
Contudo , tais mecanismos que permitem esse

-aar. - .
: í•
T- " :: TTTH Tntnr

= r =¥ ' -
+
Edgar Salvador: de Decca O Nascim en to das Fá b riccis 17
16

rico quando faz bom uso do seu tempo ( E, P . dominantes de toda a sociedade através de um persis-
Thompson , hempo , Disciplina de Trabajo y tente e minucioso trabalho de í ntrojeçã o de novas
Capitalismo , p , 280). normas e valores , islo é , pela introjeçao definitiva da
imagem do tempo como moeda n ó mercado de t r a -
balho.
ou ent ã o ;
atendei aos “ Posto que nosso tempo est á redu /.ido a um
"Observai as horas de intercâ mbio ,
Padr ã o , e os Metais preciosos do dia acunhados
mercados: h á é pocas especiais que ser ão favo - em horas , os industriosos sabem empregar cada
rá veis para despachar vossos negócios com faci - parcela de tempt ) em verdadeiro benef ício de
lidade e fartura ; as é pocas de fazer ou receber
1 1

Suas diferentes profissões ; e aquele que é pr ó’


bens não duram sempre " ( E. V . Thompson , digo com suas horas é , na realidade , um perdu -
p . 281).
lá rio, Eu me recordo de uma mulher not á vel,
que era muito sensível ao vaior intr ínseco do
Contudo , essa autodisciplina de uma classe de tempo. Seu marido fazia sapatos e era nm exce -
mercadores que afirma o seu lugar no mundo através lente artesã o , mas n ã o se preocupava com a pas -
da instituiçã o do mercado aos poucos transforma se - sagem dos minutos. Em v ão ela inculcava - lhe
ein um arlefato moral que procura
prescrever uma
que Tempo é dinheiro . Ele linha muita destreza
nova disciplina para a gente trabalhadora . Nessa ( habilidade! para compreende-!a, e isto foi sua
medida , o destinat ário do discurso moralizante do .
ru í na Quando estava na taverna coin seus ocio-
tempo ú dl deixa de ser exclusivamente o mercador e sos companheiros, se algu é m observava que o re-
a crí tica à ociosidade procura atingir todas as esferas lógio havia tocado ( dado) onze horas , ele dizia , o
da sociedade , que é isso para n ó s , companheiros ? Se ela lhe
mandava um aviso por seu filho de que já pas -
silenciosa assassina , n ã o mais
" Preguiç a,
tenha minha mente aprisionada
sava das doze horas do dia , ele respondia , diz
lhe que fique tranquila , que as horas n ã o podem
-
N ã o me deixes nenhuma hora mais ser rna Ès. Sc havia dado uma hora , etc ainda
contigo , sonoIraidor ' ( E. P. T hompsonr p . 282 ) ,
-
1

-
respondia , peça lhe que se console , que n ã o po
- de ser menos" ( E, P. Thompson , p . 283) ,
Hssa mudanç a de destinatá rio do discurso mora
li / ante do tempo ú til nos d á a medida de como as Entretanto , a instituição do mercado també m
-
ideias de uma classe dominante torn aram se as id éias

.
TV VHM.V i r. ~ ' .
/pjfV” , - I M-. J T &: ' --
V -a. . M “ • » M J = v - r i r
lfl í de Decca
Edgar Salvador O Nascimento das Fá bricas 19

supõe desde o princípio a divisão social do trabalho , torne - se també m o lugar ( imagin á rio e real ) onde
e portanto a afirma ção da ciasse burguesa . O mer - se opera efetivamente a divisão do social . Em nutras
cado transforma -se. assim , em uma entidade uni - palavras, a produ çã o histó rica de uma classe de pro-
versal através da qual os homens se reconhecem a si priet á rios dos meios de produ çã o , ao mesmo tempo
próprios c se opõem a qualquer dispositivo imagi- que uma nutra classe se constiuri como assalariada e
n á rio que coloque a ordem social fora do â mbiLo despossu í da . decorre de um confronto que , no final,
desse novo universo. faz. aparecer para os sujeitos sociais a imagem de que
Mas tenhamos cuidado com essas reflexões. Se existe a imper íosidade da figura do capitalista , como
esse mercado designa o registro do real , pelo qual a elemento indispensá vel para o pró prio processo de
sociedade reconhece a si mesma, isto é , torna -se a trabalho.
dimensã o normativa a partir da qual os homens pen - V á rios autores estudaram esse processo de en -
sam e agem , liã o devemos perder de vista que essa gendramento das relações sociais da ordem burgue -
universalizaçã o que ocorre no interior do social re - sa. Contudo, nem todos pensaram esse processo,
presenta . fundamental mente, o modo pelo qual as justamente , na dimensã o de uma luta .
ideias de uma classe dominante se tomam ideias Stephen Marglin , preocupado com a an á lise da
dominantes para toda a sociedade. Por isso podemos constituição do sistema de f ábrica , como sistema,
falar de um imagin á rio do mundo burguês e, desde por excelência , da divis ão e do parcelamento do tra -
já , descartar a ideia de que , por exemplo , os setores balho , isto á, como locus privilegiado do controle
dominados desla mesma sociedade estejam subme social no â mbito da sociedade burguesa , procura
tidos a uma enorme mentira ou a um engano uni - pensar, em seu livro Para que Servem OJ Patrões ,
versal , isto porque a presença histórica das classes quais os caminhos desenvolvidos por um confronto
nessa sociedade se d á justamente a partir da univer - que produz as classes sociais.
saliza çã o desse imagin á rio burgu ê s , e . nessa medida , .Seu ponto de partida é , jus íamente, o movi -
a produ çã o mesma das classes est á intimamente li - mento de constituição do mercado no interior da
gada ao modo pelo qual essa sociedade impõe os ordem feudal e a progressiva constituiçã o da figura
registros do imagin á rio para o seu próprio reconhe- do negociante como elemento indispensá vel para o
cimenlo . funcionamento do pr ó prio processo de produção ar -
Portanto, há uma luta ali mesmo onde as classes tcsanal . Em outras palavras , Marglin est á preocu -
sc produzem . Isto quer dizer que, se pensarmos na pado em acompanhar o desenvolvimento clássico do
gestação da sociedade burguesa, a ordem do mer - “ putting -out system '' r primei ta configuraçã o da pro -
cado, dimensão na qual os homens pensam e agem . du çã o capitalista . Os passos de Marglin s ã o extre-

r
~ p
- vnLHnfvF -
K v yi ' - ..
JF Vi* Tfqr - : ‘’ T r :, ~- *
T T
— *: --
\ UT *TY -
jTT ^VrF«,*'OT ví -
i
Edgar Salvadori de Decca O Nascimento das Fábricas 21
20

da
mamente importantes, posto que a interposição
produ çã o
figura do negociante entre o mercado e a
artesanal , segundo ele , representou o momento
pelo
qual se imp ôs a essa produ ção a figura indispensável
do capitalista , criando uma hierarquia social sem
a
qual , desde ent ão, o próprio processo dc trabalh
o
í ica impossibilitado de existir . Isso ocorreu porque os
produtores diretos , embora dominassem o proces
so
de trabalho , se viram obrigados a depender da í
igura
do negociante para que sua produ ção se efetivasse
,

uma vez que a cies estava vetado o acesso ao mer


-
cado , tanto para a obten ção das mat é rias- primas
indispensá veis para a produ çã o como para a comer -
cializa çã o de seus produtos.
Este autor , enfatizamos mais uma vczr está
preocupado com o estudo das origens do sistema de
fábricai posto que a í encontram - se substantivados os
v á rios mecanismos de poder que tornam possível ao
.
capitalista o controle sobre o operá rio Por isso mes '1
-
mo , seu ponto de partida é o “ putting-out system
,
já que , ai , o pape! imprescind í vel do capitalista é
evidente, embora o trabalhador ainda detenha o do -
mí nio das técnicas de produ ção e do processo de
trabalho. Problema bastante importante para a nos
-
sa discuss ão , pois estamos diante de uma situação
hist órica na qual o dom ínio da sociedade, embora
esteja deiimiLado pelo dispositivo do mercado, n ão se
transformou ainda em dom í nio técnico. Em outras
palavras , no interior da sociedade do in ício do século Ferreiro forjando mend . ( In : Historia General del Tra -
XVI , embora seja imprescindível a figura do capita - ta ajo. )
list , seu domí nio se realizou numa direção que n ão

-
n *p ‘ i .-
v ‘!
——
- .To ~ PC|
"
* : „• i* ;
— ,,
i » = ra Lj r.r -. w .
2TJT .
O Nascimento das Fábricas 23
Edgar Salvador : de Decca
22

do processo pro- Orar Ira ns Ferir esse controle da prod ti ção quo
se resume no controle tecnológico PSLAVA nas n ã os dos trabalhadores para as m ã os do
lista tem o
dutivo . No “ putting - out system , o capita
"
s capitalista n ão significou , absolutamente . segundo
acesso ao mercado e veta aos trabalhadores diretoo Marglin , maior eficácia tecnológica nem tampouco
ditam
esse contato , mas , ainda assim esses últimos im - uma maior produtividade , O que se verificou , isto
processo de produ ção. Essa divisão social torna sim , foi uma maior hierarquização e disciplina no
processo
periosa a figura cio capitalista no interior do trabalho e a supressão de um controle determinado:
produtivo, e o trabalhador , distante do merca -
do ,
ma o controle técnico do processo de trabalho e da pro -
tanto para a obtenção de maté ria - prima como seus dutividade ditado pelos próprios trabalhadores. En-
téria - prima como para a comercializa
çã o de
ole fatizamos , mais uma vez , que essa transferencia ,
produtos, detém , única e exclusivamente , o contr ainda conforme esse autor , não significou progresso
que a
do processo de trabalho. Claro est á . nesse caso parti -
,
t écnico ( coisa que muitos afirmam ) , resumido nos
razã o técnica , estando sob o domí nio de quem enta termos de um desenvolvimento tecnol ógico que teria
repres
cipa do processo de trabalho , ainda n ão posto por 1 erra o 'putting - out system ante o sistema
' "

um instrumento através do qual se possa exerc


er o
de fábrica . Muito pelo contrário , Marglin nos mostra
controle social . que nenhuma tecnologia muito avançada determinou
a
Entretanto, seguindo as pistas do autor, vale a reuni ão dos trabalhadores no sistema de f á brica , e
pena indagar por que esses trabalhadores foram
reu -
num aponta na direçã o de como esse sistema possibilitou a
nidos a partir de um determinado momento que disciplina e a hierarquia na produçã o , já que o put -

aquilo
mesmo local de trabalho , constituindo ting- out system" , baseatido-se na dispersão dos tra -
Ficou conhecido como sistema de fábrica . - balhadores domésticos, criava algo muito problem á -
Mais uma vez , Marglin sugere algo muito itn tico para o capitalista , isto é, o desvio de parle da
porianle , Para ele , a reuni ã o dos trabalhado
res na
t cnicas produção, a falsificação dos produtos , a utilização de
íá brica n ão se deveu a nenhum avanço das é mat érias- prim as de qualidade inferior àquelas forne-
jogo
de produção . Pelo contrá rio , o que estava em e do cidas pelo capitalista etc . etc , ; enfim , vários tipos de
era justa men te um alarga memo do controle “ sabotagem ” .
poder por parle do capitalista sobre o
conjunto de
tos Contudo, quando Marglin íala de sabotagem ,

trabalhadores que ainda detinham os conhecimen produ - refere - se à perspectiva dos capitalistas , já que do
técnicos e impunham a din âmica do
processo
ponto de vista dos trabalhadores domésticos do put-

lado
tivo. E isso é muito importante , uma vez que do da ting - out system ” cia representava uma resist ência à
ma
dus trabalhadores estava a resposta ao proble perda do próprio controle do processo de trabalho .
eficácia técnica c da produtividade .

... .- .
Trrr * -rr • • -tr - - -':
T i

^ -xva»* - ^r-a-
-
JttTETt
« - mi
-
K T rrp
0 Nascimento das Fá bricas 25
24 Edgar Salvador! de Dec ca

o sistema de f á brica repre - no nosso marco organizador desses desejos empre -


Er nesse sentido,
sentou , justa men te , a perda desse cu ul role pelos tra - sariais. Por isso mesmo, embora pudessem ser en -
. contradas máquinas nas primeiras f á bricas , muito
balhadores dom ésticos Na f á brica , a hierarquia , a rara mente essas má quinas chegaram a sc constituir
disciplina , a vigilâ ncia e outras formas de controle
na razão do surgimento das f á bricas , Enfim , o sur -
tornaram se tang í veis a tal ponto que os trabalha -
- gimento do sistema de fá brica parece ter sido ditado
dores acabaram por se submeter a um regime de
- por uma necessidade muito tnais organizativa do que
trabalho ditado pelas normas dos mestres e contra t écnica , e essa nova organizaçã o teve como resultado ,
mestres, o que representou , em ú ltima instancia , o para o trabalhador , toda uma nova ordem de disci -
dom í nio do capitalista sobre o processo de trabalho.
plina durante todo o transcorrer do processo de tra -
Um outro autor , David Dickson , em seu livro
Tecnologia Alternativa , resume muito bem as razões
balho.
que tornaram imperativa a constituição do sistema
Contucio, esse aulor n ã o p á ra ai . Mostra - nos ,
de f á brica . Segundo ele, seria possível enumerar pelo
inclusive, como a partir da constituição do sistema de
f ábrica vai se impondo, progressiva mente, um deter -
menos quatro razões importantes para o estabele- minado padr ão tecnológico , isto c , um padr ã o que,
ci mento do regime de f á brica , Em primeiro lugar , os
acima de Ludo , garantia ordem , disciplina e controle
comerciantes precisavam controlar e comercializar
Ioda a produ çã o dos artesã os , com o intuito de redu -
de produção por parte do capitalista . Assim , existem
dois pontos fundamentais na constituição do sistema
zir ao m í nimo as pr á ticas de desvio dessa produ ção.
de f á brica : em primeiro lugar , ele n ã o decorreu de
Alé m disso , era do interesse desses comerciantes a
urn grande avan ço tecnológico; em segundo, as tec-
maximização da produ çã o atravé s do aumento do
tiumero de horas de trabalho e do aumento da velo - nologias empregadas constilu í ram -se em elementos
de controle e de hierarquia na produçã o.
cidade e do ritmo de trabalho. Um terceiro ponto
Retomemos David Dickson nos seus argumentos
muito importante era o controle da inovaçã o tecno-
sobre o surgimento das f á bricas t ê xteis durante o
l ógica para que cia só pudesse ser aplicada ito sentido período de Revolu ção Industrial . Segundo ele , “ a
de acumulação capitalista; e. por ú ltimo , a f á brica -
orgatiiza ç ao da industria t ê xLil baseada no cstabele
criava uma organiza ção da produção que tornava
cimento dc f á bricas n ã o foi , como deixam supor
imprescindí vel a figura do empresário capitalista .
alguns historiadores, um desenvolvimento direto a
Ê indiscutível que só a concentração do traba- -
partir de uma base t écnica mais eficaz , pelo contr á
lhador num mesmo local de trabalho poderia pro - rio , muitas das m áquinas só foram desenvolvidas e
porcionar todas essas vantagens para o empresá rio
capitalista. Nesse sentido, a f á brica transformou - se introduzidas depois que os tecelões já haviam sido

yFt"H rw
f* .=
"V !l
_ - - -'
fi* ~

1 - -.
• qtT f ' rruzzm i -
- JSIKTCTHDT *^
y j 1
fc' * - J *4
,
^^ 'IW •"* 1 “ ^*
J
27
Edgar Salvador: df > Decca 0 Nascimento das 1' âbricas
26

conceittrados nas f á bricas i Dickson , p . 58 ) .


"

Ora, se considerarmos o surgimento da f ábrica a


partir de uma necessidade mais organizariva do que
t écnica e levarmos em conta ainda as press ões sofri -
das peio trabalhador inglês para seguir inexoravel -
mente esse caminho, podemos inclusive compreender
algumas diferenç as entre a industrialização na Ingla
-

terra e na Fran ça , No caso francês, as Fortes lem -


bran ças da Revolu ção Francesa influ í ram decisiva -
mente para que se retardasse o surgimento das f á -
bricas , unia vez que a mera concentração de traba -
lhadores recriava as imagens do perigo que essa
massa de homens reunidos podia representar para as
instituições de poder da sociedade burguesa.
Entretanto, n ão foi apenas a ind ústria têxtil in -
glesa que adotou o regime de f á brica muito mais
como novo marco de organiza ção do trabalho do que
por impé rios idade t écnica . Para Dickson , Lambem
no ramo da cerâ mica podemos encontrar exemplos
semelhantes de adoção do regime de f á brica . J á na
segunda metade do século XVIII , Josiah Wedgwood
esi abc leda uma , grande f á brica no M id landes
, con
vencido de que o ú nico modo possível pelo qual se
4

podia obrer os modelos e as quantidades de bens


necessá rios, dev í do ao r á pido crescimento do roer -
-
ca do , era através de uma divisã o do trabalho cuida
dos a mente calculada , implicando a separaçã o de ro -
dos os diferentes processos nos quais sc baseava a
produção tie cerâmica . E isto, sem duvida , só podia
1 '

ser conseguido através da imposiçã ode uma f é rrea


disciplina fabril . Nas f á bricas de Wedgwood foi de -

í NTpjtfl ,1
-
" r cijnçfçv PKET V iJ -
I
f
- f*

l*
28 Edgar Salvadori de Decca Nascimento das Fá bricas 29

senvolvido um sistema de fichas, al é m da cria çã o de las que tomaram inevit á vel a concentração das ativi-
umaamplac detalhada sé rie de instru ções relativas á dades produtivas sob a forma de f á bricas. Dickson
disciplina do trabalhador dentro da f á brica , estabe - afirma , por exemplo, que “ ura tear holandês que
podia tecer de modo simult â neo vinte e quatro tiras
lecendo inclusive a categoria especial dos capatazes
responsá veis pela vigil â ncia do processo de trabalho. estreitas , e uma complexa estrutura manual para a
Assim como os tecelões , os ceramistas n ã o esta- elaboração do ponto para o tecido de malha para a
confccç lo de calç as e meias , ambos instrumentos
vam acostumados com esse novo tipo de disciplina.
Segundo um historiador inglês , “ os ceramistas ha - perfeílamente adaptados à ind ú stria doméstica, fo-
viam gozado dc uma independ ê ncia durante muito ram abandonados rapidamente dando lugar a má -
tempo para aceitar amavelmente as regras Wedg - quinas rti í is amplas , cuja superioridade mecâ nica
wood procurava implantar, a pontualidade , a pre - eliminou paulatinamente as formas tradicionais dc
sen ça constante , as horas prefixadas, as escrupulosas produ ção manual ” ( Dickson , p , 60) , E acrescenta ,
regras de cuidado c de limpeza , a diminuição do “ os exemplos mats importantes destas inova ções me-
desperd ício, a proibi çã o de bebidas alcoólicas” . Mas câ nicas foram a estrutura hidrá ulica de Arkwright
apesar de todas as resistê ncias desse trabalhador an - ( 1768b desenhada a fim de utilizar a energia hidr á u -
te o regime fabril , Wedgwood , aferrado em seus lica para a fiaçã o de algod ão, o Lear mecâ nico de
princí pios , afirmava , após 10 anos de exist ê ncia de Cartwright ( 17S4 ) , que podia funcionar por meio dc
sua f á brica , que havia transformado esses " traba - rodas hidr á ulicas , ou de m á quinas a vapor , e as
lhadores lentos e bê bados e in ú teis ” em um " magn í- m á quinas intermitentes de fiar, de Crompton , desen -
fico conjunto de m ã os", volvidas em J 779 e capazes de produzir fios fortes e
Mas pró prias palavras de Wedgwood, a f á brica finos apropriados para numerosos up os dc elabo-
se materializa como uma nova organiza çã o do tra - rações t ê xteis. A comparativamente ampla produçã o
balho , sem a necessidade de ocorr ê ncia de qualquer dessas m á quinas representou uma rá pida superaçã o
transformaçã o profunda do aparato tecnol ó gico . En - da capacidade das pequenas correntes dc á gua que
faziam funcionar os moinhos. Em 1875 se realizou o
tretanto, ainda podemos avan ç ttr alguns esclareci-
mentos a respeito do uso das m á quinas durante a ú ltimo passo lógico ao se adaptar a m á quina de
Revolução Industrial. Tanto Dickson como Marglin vapor de Watt à s fun ções de proporcionar energia
nos fazem supor que as m á quinas criadas e usadas para aquelas outras m á quinas. Cada um desses de-
durante os anos cruciais da revolu çã o industrial n ã o senvolvimentos foi crucial no que se refere ao esta -
foram apenas e tio- somente aquelas que substitu í- belecimento do sistema fahrii , e contribuiu para a
ram o trabalho manual , mas , principal men te , aque- efetiva çã o de uma disciplinarizaçâ o geral na for ça de

_
-.- ^ íTinF7
l i ar HiV v
Edgar Salvador: de Decca 0 Nascimento das Fá bricas 31
30

as motivações que levaram os trabalhadores a des-


trabalho . De acordo com Ashton , "foi somente sob o
impacto de poderosas for ças , atrativas ou repulsivas , truir o maquin ário das instalações fabris , -Se . de um
que o trabalhador ou artesã o inglês se Lransformou
lado, esse movimento de resist ê ncia visava invesLir
contra as novas rela ções hier árquicas c autorit á rias
cm mau - de- obra fabril" ( Dickson , p. 60). Por isso
introduzidas no interior do processo de trabalho fa -
mesmo a Revolu çã o Industrial foi vitoriosa , uma vez bril . e nessa medida a destruiçã o das m á quinas fun -
que representou unia mudan ça crucial n ã o apenas no
aparato t écnico produtivo, mas , principal mente , nas
cionava como mecanismo de pressão contra a nova
direção organi /ativa das empresas de outro lado,
estratégias de administraçã o das empresas í abris
,
,

hm outras palavras , o ê xito da revolu çã o estava inti - in ú meras atividades de destruição carregaram impli -
citamente uma profunda hostilidade contra as novas
ma mente ligado à afirma çã o de novas rela ções dc m á quinas e contra o novo marco organizador da
poder hier á rquicas e autorit á rias.
produçã o que essa tecnologia impunha . Nesse caso ,
Alguns historiadores ingleses afirmam mesmo "as m á quinas n ã o s ó supunham uma amea ça com
que o exito alcan ç ado por alguns empresá rios capi-
respeito aos postos de trabalho , mas contra todo um
1alistas , em meio a tantos fracassos que rodearam as
primeiras tentativas de instalaçã o das f á bricas, de - modo dc vida que compreendia a liberdade, a digni-
dade- e o sentido de parentesco do artesã o" ( Dickson ,
veu - se muito mais à qualidade de direçã o dessas p . 61) , Os destruidores de m á quinas da regi ã o do
empresas do que a uma substancial mudan ça dc
Lancashire nos anos de J 778 a 1780 ilustram , inclu -
qualidade do trabalho ou das m á quinas.
Nesse sentido, a despeito de a historiografia tra - sive , a maneira criteriosa de como essa luta era de -
sencadeada n ã o contra a mecaniza çã o em geral , mas
dicional sobre a revolu çã o industrial negligenciar as
cm direçã o a determinadas m á quinas em particular.
dimensões tio fracasso das primeiras experiê ncias fa- "Estes destruidores de m á quinas distinguiram enlre
bris , ai ] ida assim podemos afirmar que a resist ê ncia aqudes tornos de fiar que tinham vinte e quatro ou
do trabalhador ante os avan ços do sistema de f á brica
foi decisiva durante esse período. Afinal , nem todos
menos lusos , apropriados para a produ çã o domés-
tica , e que n ã o destru íam , e entre aqueles outros
os homens se renderam diante das forças irresist í veis mais amplos , apropriados exclusiva men te pum a sua
do novo mundo fabril , e a experiência do movimento utilização em f ábricas , que destru í am " ( Dickson .
dos quebradores de m á quina demonstra uma inequ í - p. 62).
voea capacidade dos trabalhadores para desencadear Apesar de toda a resist ê ncia c das vit ó rias al -
uma luta aberta contra o sislema de f á brica. Essa can çadas pelos quebradores de m á quinas já por volta
luta ganhou contornos dram áticos mas , acima dc de 1820, "os avan ços tecnológicas adicionais muda -
tildo, muito difusos , se procurarmos levar em conLa

-
. Z’ V . J.f .Jn «r.>E

r ^ -^
? w
9 : 1 : '’ = “ ip

- -.
J
~
^ .- f V
~ TT :
fcr? v., , «ap. . I * **
\ I K íi7 r
SIfá b •
0 Ncjscimenfv das- Fá bricas 33
32 Edgar Salvador* de Decca

ram de novo it composiçã o da for ç a de trabalho , e .id


havia crescido uma nova geraçã o de operários, acos -
tumada à disciplina e à precis ã o de f á brica ( David
1
'

La ri des , L rn bound From etheus „ p. 317) .


Dever íamos considerar, agora, algumas ques-
í&es. Em primeiro lugar , tudo leva a crer que a
f á brica surgiu muito mais por imperativos organiza -
cionais capitalistas de trabalho do que por pressões
tecnológicas. Segundo , a tecnologia teve pape! deci-
sivo onde e quando a sua utilização facilitava e obri -
gava a concentra ção de trabalhadores e portanto a
afirmaçã o do sistema de f á brica . Mas ainda valeria
introduzir , aqui, uma outra quest ão , a saber: a ino-
va çã o tecnológica como resposta contundente do em -
presá rio capitalism ante as pressões de trabalhadores
que j á estavam acostumados com o regime fabril .
Essa nova utilização da maquinaria n ão só vi-
-
sava conseguir a doeiliza çà o L a submiss ã o do traba -
lhador fabril e , nesse sentido, assegurar a regula -
ridade e a continuidade da produ çã o , mas repre-
sentou també m um forte obst á culo aos movimentos
de resist ê ncia do trabalhador fabril , já no s éculo
X Í X . " As máquinas começ aram a ser introduzidas
n ão somente para ajudar a criar um marco dentro do
qual se podia impor nina disciplina , mas també m ,
muito frequentemente , sua introdução se deveu a
uma a ção consciente por parte dos patr ões para con -
trolar as greves e as oulras formas de militâ ncia
industrial. Inclusive , a amea ç a da mecaniza çã o , com
o desemprego implícito que levava consigo, era fre-
quentemente utilizada pelos patr òes para manler os

I -ÇTqraci -
.-ra - -- -
/ r VA JÕK T - ^KÍ? * V ;« .
V» ‘V'l"rr. r f
,P Tr,
- .- - -í-
T i "; " " nT >í
|i
- -
KWfK fXp
34 Edgar Salvador! de Decca O Nascimento das Fá bricas 35

haixos salá rios ' { Dickson , p , 63) ,


1
dições de se livrar dos fiandeiros indiferentes ou in -
E . P. Thompson , em The Making of ihe English -
quietos , e de converter se de novo no dono de sua
Working -class , relata- nos a dificuldade dos patrões f ábrica, o que n ão é uma pequena vantagem " , mes-
eto conseguir uma paz industrial até a d écada de mo que isso tenha acarretado tanto um aumento
1830, em virtude da crescente organizaçã o do traba - consider á vel nos custos de produ ção cotno uma am -
lhador fabril, e indica inclusive que a ú nica possi - pla organiza ção espacial do processo de trabalho. E o
bilidade encontrada pela ind ústria algodoeira para mesmo autor iria , ainda , concluir, + Jque csre invento
garantir uma força de trabalho est ável e um plantei confirma a grande doutrina já exposta , isto é. quart -
de trabalhadores h á beis e experimentados foi a ado- do o capital consegue que a ciência sc coloque a seu
çã o de novas técnicas de organizaçã o de trabalho que serviço, a mã o- de - obra refrat á ria aprende a ser sem -
superaram as antigas e brutais concepções de disci - pre d ócil ” ,
plina fabril . Nessa medida , a tecnologia transfor- O próprio Marx em O Capital , embora saudasse
mava -se tanto num elemento t á tico cotidiano das o advento do universo fabril como o limiar de uma
lutas entre o capitai e o trabalho como fazia parte da nova era , n ã o deixa de ficar profunda men te apreen -
estratégia global de amplia çã o do controle social por sivo com relação ã introdu çã o da m á quina autom á -
parte desse mesmo capital , introjcíando no pró prio tica no processo de tabalho. Escrevia ele , “ a m á -
corpo do trabalhador as marcas da nova disciplina . quina possui , como capitai e através da instrumen -
Em 1835 , Andrew Lhe . um apologista do sistema de lalidade dos capitalistas , tante consciê ncia como de -
f á brica , descrevia em sua obra The Philosophy of sejo , por conseguinte esr á animada pelo desejo de
Manufactures a maneira pela qual os patrões en í ren - reduzir ã o m í nimo a resist ê ncia oferecida pelas natu -
laram as pressões dos sindicatos militantes , contro - rais mas el ásticas limita ções dn material humano por
lando os trabalhadores n ão através da redu ção de meio do qua! funciona’ ". Embora Marx coloque essa
salá rios, mas sim pela introdução de inovações tecno - resist ê ncia no n ível do pró prio corpo do trabalhador,
lógicas nas f á bricas. As inovações introduzidas na sabemos muito bem que essas resist ê ncias tiveram
ind ústria t êxtil durante a d écada de 1830 atingiram registros bastante diversos , e diziam respeito muito
profundamente a organização operária atrav és da mais a uma negaçã o deliberada desse trabalhador a
diminui çã o do n ú mero iota! das m á quinas de fiar , introjetar uma nova disciplina , a regularidade crono-
reduzindo drasticamente a autoridade do trabalha - metrada , e o automatismo do processo de Irabalbn.
dor especializado adulto no interior do processo de Nessa medida , seda um paradoxo pensarmos a intro-
produ ção. Como afirmou Ure , “ ao dobrar o tama - du çã o de m á quinas no universo fabril capazes de
nho de sua m á quina de fiar , o propriet á rio teve con - aumentar o rendimento da produ çã o sem se conse-

. =scõt- - :ET'Taps "r -. ~-| - **.Vr. i - JHL'1 «4* Ary# .' U1


'! i .J -
*
^v. > T . 3TCT4 T 1 r r “ i
' õ
íoTCT "H i V
' O '
rjuij A T
Edgar Salvador? cU Decca 0 Nascimento das Fábricas 37

guir ao mesmo tempo um controle intermitente do â mbito da técnica produtiva e, lugo em seguida ,
trabalhador, com o intuito de assegurar a utiliza ção transformasse todo o registro dos saberes t écnicos.
dessas mesmas m á quinas com o má ximo de capaci - Isto significou , por fim , a criaçã o de um imagin á rio

Philip Kay , "a m á quina animal



dade , Por isso , em 1832 , já vaticinava o inglês James

dos casos , sujeita a mil fontes de sofrimento


encontra firmemente encadeada à m á quina de ferro, —
frágil no melhor
se
social voltado para o reconhecimento de uma esfera
determinada de produ çã o de saberes t écnicos total
mente subtraída e alheia ao controle dos trabalha -
dores fabris.
-
que n ào conhece nem o sofrimento nem o cansaço A f á brica produziu , ao mesmo tempo em que
( Asa Briggs, 7'he Age of improvement , p . 61). proliferou , um conjunto complexo de instituições ca -
Desde as origens do sistema de f ábrica , esti- pazes de garantir a sua perman ê ncia e , o que é mais
veram em jogo , portanto, relações de poder que , importante , capazes de garantir a continuidade da
passo a passo, determinaram o próprio limite . da acumulaçã o capitalista , representada agora pelo am
pio dom í nio, controle e apropria çã o de saberes téc-
-
produ çã o de saberes técnicos . Em outras palavras , a
luta transcorrida desde a instalaçã o do “ putting- out nicos , Aqui, o momento em que , para o social , a
system” até a consolida ção do sistema de f ábrica não f á brica , ou a ind ú stria mecanizada , transforma - se .
foi outra coisa a nlo ser a instituição do próprio como num passe de mágica, na ú nica medida capaz
social e do dom í nio desse social como apropriação de de aferir os avan ços da sociedade. Assim , esse con -
saberes. Se . do lado do “ putting- out system ” , o dis - junto de instituições que se desdobrou desde a f á
brica at é os organismos cient í ficos , pouco a pouco ,
-
positivo do mercado fazia com que o saber técnico ,
detido pelos trabalhadores domésticos , representasse foi transformando a produ ção dc saberes t écnicos
um momento de sua autonomia quanto ao domí nio numa esfera especializada dc controle social , e, pro-
do processo de trabalho , na f á brica , a divisão social , gressivamente , as quest ões de eficácia e produtivi -
-
-
retirava lhes saberes

impondo uma disciplina f érrea aos trabalhadores ,
dentre eles o técnico
transferia -os para o mando do capitalista . A
desse momento , o empresá rio pode desenvolver toda
—e
partir
dade torn aram - se regras do jogo da acumula ção ca
pitalista . Isto é. eficá cia e produtividade foram redu
zidas aos problemas de melhor e mais racional utili -
zação da tecnologia pelos trabalhadores fabris.
-
uma estratégia para que o processo tecnológico não Nesse sentido, enfatizamos que um determinado
fugisse mais de seu controle. Por isso mesmo , na saber técnico se tomou possível a partir da consti-
ordem social, um conjunto de instituições iria apa - tuição do sistema de f á brica , cujo fundamento esteve
recer para que, principalmente , pudesse ser garan - ligado ao maior controle e disciplina do processo de
tida a permanência e o controle do capitalista no trabalho. Por isso mesmo , o sistema de f á brica , como

t ETV - . :“ 7T 'ãHSWETrTZT
YÇlTTV 1 - rt -' .
T S 1 i 11
-—
•"•I > J’ ~r F •*
- -
> 1 TS“ - - t il
1.1 " T* " .
* W r|fr#:
39
Edgar Salvador! de Dec ca 0 Nascimento das Fábricas
*
3

ção de de milhares e de dezenas de milhares de pessoas .
o lugar privilegiado para a produ çã o e efetiva urdem Aqui , poderemos nos deter no que está sendo
saberes t é cnicos , n ã o tent os seus limites na ão denominado sistema de fábrica e chamar a aten ção
capitalista. Pensemos , por exemplo, o caso da Uni para o faLo de que, comumeiUe , as an á lises soltadas
Sovié tica , reconhecida por muitos como alternativa de para essa quesl ã o reduzem a f á brica à quilo que ela
hist ó rica do capitalismo. Lá lamb é m o sistema Leni tie mu is imediato , isto é. d sua mate ri alidade
.
f ábrica ao se implantar , trouxe consigo todas con
as se - Esse reducionismo iraz como consequ ência um vi és
quelas relacionadas â disciplina,
hierarquia e -
é apli - analítico em que as vari á veis em jogo sã o apenas
trole do processo de trabalho , e o saber cnico prios
t
pró aquelas capazes de medir o desenvolvimento das for -
cado esteve muito longe de ser detido pelos ças produtivas ou os progressos é tcnicos. Qualifi -
trabalhadores. i- caçà o que . na maioria das vezes escamoteia o que é
,
Enfim , o sistema de f ábrica introduz determ
,

ndo que fundamenta ) : o sistema de f ábrica como um universo


names que Ihe s ã o inerentes , nã o importa capitali sta ( imaginá rio e real ) onde sá o produzidas as relações
esse- sistema se desenvolva num ambiente] sociais e unde se d á uma particular e decisiva apro-
bojo iodas
ou em outro qualquer , pois ele traz. em set pria çã o do saber . Assim , n ã o est ã o em jogo na f á -
ia , disciplina
as implica ções relacionadas à hierarqu brica apenas as quest ões relativas à acumulação do
e controle do processo de trabalho , ao mesmo ção de
tempo
produ capital , mas também os mecanismos responsá veis
cm que se d á uma separação crucial : ? que parti peta concentração do saber e , consequente mente, de
,

saberes técnicos total mente alheia à quele -


cipa do processo de trabalho. A esse
respeito lembra - domina çã o social .
Claro est á que , na perspective do trabalhador
rí amos as palavras dc Lênin anunci ando as “ tarefas
1918: “ Em fabril , essa subtração de saberes ( aqui não est á em
imediatas do poder dos sovietes , em proletar

iado jogo apenas o saber técnico) alcan ça o limite no
qualquer revoluçã o socialista quando o momento em que seu pr ó prio trabalho só ganha
poder ( ... )
Iiveí' resolvido o problema da tomada do subst ância quando uma nova ordem sc imp õe sobre
há uma tarefa essencial que passa ine í utavelm
ente
social ele através da presen ça absoluta da tecnologia . Nesse
para primeiro plano: realizar uma estrutura pro- momento, a neutralidade da tecnologia vai aparecer
SLiperior à do capitalismo, ou seja , aumentar
a
dutividade do trabalho e ( ...) organizar esse trabalho
.
como natural posto que eia mesma e a sua presença
â nica , escamoteiam , justamente , o fato de qne ela repre-
de modo superior ( . ..) A grande ind úslria mec do senta n ã o apenas trabalho acumulado ou morto , mas
que justamente constitui a fonte e a base material a enf á tica distância que separa o trabalho manual do
rigorosa ,
socialismo , exige uma unidade de vontade as , trabalho intelectual.
absoluta , qne regula o trabalho comum de centen

- v' 1 : - -.
l ju -.
r v vi p '

. u.r - UCAfrw - ^ -
JTr:
,JT< ? í: U £3|fei r ‘r

I
4fl jEdgar Salvadori de Decca

por
Agora , temos condições de avaliar o que está
, progresso
trás noções do tipo eficácia , produtividade
para
etc., quando elas est ão reduzidas a parâ metros
avaliar e diagnosticar a realidade social. Todas essas
ideias reforçam uma estratégia que perpa
ssa o con-
junto do social , produzindo uma permanente apro-
pria ção do saber que se impõe a todos como ó
l gica
inquestioná vel , dissimulando o fato de que n existe
ão
so de
aumento das capacidades técnicas no proces apn UMA MAQUINA
trabalho sem que haja concomitantemente um >
E FÁ BRICA INCR ÍVEL
sobre
fundamento das relações de poder e de controle
o trabalhador. partir
Enfim , as relações sociais , produzidas a
——
da expansão do mercado capitalista e o sistem
a de "CíWíO trato e negócio principal do Brasil e de
fábrica é seu ' ' est á gio superior ” -
, tornaram pos a çúcar , cm nenhuma outra coisa se ocupam
engenhos e habilidades dos homens tonto como
s í vel o desenvolvimento de uma determinada tecno
-
expro- inventar artif í cios com que o façam ,' e por
logia, isto é , aquela que supõe a priori a ventura por isso lhe chamam engenhos .
pro-
priaçã o dos saberes daqueles que participam do
sistema de
cesso de trabalho , Nesse seu lido , foi no impor Fftd Vicante Salvador { 1627)
, n ão
f ábrica que uma dada tecnologia pode se
apenas como instrumento para incrementar a produ - Àté agora , discutimos aquilo que classicamente
nte,
tividade do trabalho, mas , muito princí palme - se tornou conhecido como sistema de f á brica . Nessa
para controlar , disciplinar c hie
como instrumento medida , foi possí vel acompanhar alguns momentos
rarquizar esse processo de trabalho. significativos que permitiram o surgimento desse sis -
tema , a partir da instituição das próprias rela ções
do
mercado. Tal procedimento lev a - nos a induzir que o
sistema de f á brica , como produçã o hist ó rica do mer -
Europa ,
cado capitalista , deu - se primeiramente na
para somente depois se transferir para as á reas da
periferia desse mesmo mercado. Isto sup õe , necessa -
k -
Tf - - -
&yrr i ~r\
43
Edgar Salvador t de Decai O Nascimento das Fábricas
42

para o faro de que esse sistema , como universo ima-


ri ame n te, uma rela ção de exterioridade entre o cen -
tro do sistema e sua periferia , a tal ponto que, so- gin á rio e real . e como instituição das próprias rela -
ções sociais no momento de consolida ção do mercado
mente depois quo determ í nadas /ormas de produção
capii alistas amadureceram no centro , se tornou pos- capitalista , n ã o pode se reduzir ao seu aspecto mate-
sí vel a sua transferê ncia para a periferia. Assim o
, rial , isto é, à f á brica como uma realidade tangível .
r
sistema de fábrica , forma de organização superio do Mn: outras palavras , os v á rios momentos aqui discu -
processo de produção capitalista , precisou antes tidos até agora atestam , apenas , uma forma parti -
( cronologicamente) encontrar o seu ambiente naLural cular asstsmid a pelo sistema de f ábrica no desenvol -
no centro do sistema e somente depois pode sc esten - vimento hist ó rico do capitalismo.
der para o resto do mundo . O que gostarí amos de chamar a atenção é que
Por isso mesmo, na an á lise da historiografia , essa forma que se desenvolveu a partir do putting
' L

-
nada mais corriqueiro do que determinar * génese da out system ” n ão foi a ú nica pela qual sc tornou
ind ústria e do capitalismo , no Brasil , no final do possí vel aparecer o sisterna de f ábrica como produ
t -
século X Í X , no momento em que o pa í s se reposi- çã o e engendramento das relações sociais e da divisã o
eionou na órbita do mercado mundial , incorporando do trabalho no capitalismo .
o processo de trabalho tí pico do capitalismo hege - No momento histórico do desenvolvimento do
‘putting-out system ' na Europa , a partir do século'
1

mónico e central. Entretanto, isto nos induz a en -


J

ganos irrepar á veis, posto que a exist ê ncia de relações XVI , nas á reas coloniais a concentração de trabalha
capitalistas deixa de ser percebida em determinadas dores destitu ídos de meios de produção e expropria -
formas de organiza çã o da produ çã o e do trabalho dos de qualquer saber técnico apareceu como a orga -
que se produzem uas lais zonas perif é ricas do sis - nização do trabalho mais eficiente para se levar a
tema . Nessa medida , nada mais corriqueiro do que cabo os interesses do lucro capitalista , e ah també m a
figura do empresá rio se tornou imprescindível para o
encontrarmos an á lises nas quais o capitalismo bra -
44

sileiro ” aparece dotado de qualificativos do tipo atra - processo de produ çã o. Disciplina , ordem , hierar -
-
sado , lardio , dependente. - quia , foram elementos sempre presentes durante Lo
o
do o período em que se desenvolveu a produ
çã
b

Gostar íamos , aqui . de desviar dessas an á lises,


colonial , e o capitalista , na busca de maiores lucros-
,
porque , sem levar cm consideraçã o problemas j á dis-
cutidos por n ós , elas tomam o sistema de f ábrica se transformou em elemento central para a organi
como invariante , isto é , como puro desdobramento zação do trabalho. N ão apenas na esfera da circu -
daquilo que é conhecido como o modelo clássico lação . onde se produzia a acumulação primitiva do
.
uiatichesieriano Ora , chamamos a aten ção at é agora capital , a figura do empresá rio era indispensá vel ; ali

VSTTB -iVT
- -- . - *•
J
-.
1
int pap ; «w Í1
*
44 Edgar Salvadori de Deccu O Nascimento das Fá brica* 45

també m onde se instaurava todo um processo de


trabalho baseado na escravid ão , tal como estava or -
ganizado nos engenhos de açú car , a sua figura aus-
tera foi imperiosa .
Maria Sylvia de Carvalho Francor discutindo o
cará ter da escravidão na é poca moderna , nos d á
elementos para entendermos a consolidaçã o de uma
outra forma assumida pelo sisrema de fábrica , alé m
dos limites das metrópoles europeias , isto é , alé m do
“ putting-out system ” ;
“ A chave para explicar o ressurgimento da es-
cravid ã o nas empresas a ç ucareiras , est á na or-
ganiza ção destas ultimas, determinada pela es -
trutura dos mercados capitalists, que já envol
viam a interferência nos centros produtores. C
-
a isso que se deve a configura ção do latif ú ndio,
dai grandes unidades de produ çã o , montadas
para a obten çã o regular e quantitativamente
grande do produto, mediante trabalhadores nu -
merosos , conjugados e controlados por sujeitos
que detinham a propriedade privada dos meios
de produ ção e a quem pertencia , dc direito , o
-
produto do trabalho. Trata se de uma situaçã o
em que se opera a dissocia çã o radical entre o
produtor direto , os meios de produ çã o e o pro
duto do trabalho. Significava isto que sc deter -
- id processo de produção de um engenho; u eu?!a é colhida
minava historicamente a constituição dc uma { ao fundo ã direita ); é triturada em um moinho ( ao fundo
a esquerda ) ; e o caído vai à s caldeiras onde se tornara mat s
'

categoria de homens expropriados dos meios de


produ ção e postos a serviço de outros” ( Maria espesso ( primeiro piano à direita ), ( In ; Historia General
Sylvia de C . Franco , OrgúnizaçâQ Social da T ra -
del Trabajo. )

- «aw rm --
t >
r
=, .
ij li£Tprp 7 -- -
r r iíl ar
— WT

-
It "» o .
&L " L í A
——
4 J

Edgar Salvador! de Dec ca 0 Nascimento das Fá bricas 47


46

bulho no Período Colonial , p , 31 > , setor a çucareiro” ( Maria Sylvia dc C , Franco, pp .


26- 27) ,
Se a autora em seu texto nos d á elementos para O que importa enfatizar , agora , é que, seja a
entendermos a formação do sistema dc f ábrica nas forma assumida na Europa pelo sistema de fábrica ,
seja esta que apareceu com antecedê ncia nas á reas
áreas coloniais, fica ainda sem resposta a questã o da
utiliza ção do trabalho escravo nesse novo universo dc coloniais, essas duas expressões da organização so-
organiza çã o de produçã o , Na historiografia em geral cial do trabalho n ã o se desenvolveram , segundo a
opini ã o dos autores aqui citados , a partir de uma
a t ónica explicativa do escravo recai num argumento
exigência tecnológica. Em outras palavras, tanto na
de oposições. A viabilidade do escravo é explicada
Inglaterra como nas coló nias , a concentração de tra -
pela total impossibilidade da utilização do homem
livre expropriado europeu , dada a abundâ ncia de balhadores despossu ídos mim mesmo local dc tra -
balho sob o mando do capitalista , que n à o só orga -
terras disponíveis na colónia . Lembremos enlretanto.
corno afirma Maria Sylvia , Mque o entrosamento en
tre produ ção colonial e com é rcio capitalista , que le
-- nizava a produçã o como tamb é m a disciplinava , se
deveu a imperativos bastante diversos e muito pouco
vou â organização das grandes propriedades fundiá - se pode adiantar no que diz respeito às imposições
tecnológicas. A f á brica , na Europa , e o engenho de !
rias . ocorreu numa é poca em que jamais poderiam
ter sido utilizados homens livres , pela muito simples
açúcar, nas colónias, n ão foram resultados imediatos
e muito forte razã o de que o sujeito expropriado dos de um desenvolvimento crucial das bases t écnicas de
produ çã o , mas , ao contrário, representaram formas
meios de produ çã o e obrigado a vender sua for ça de
peculiares de organiza ção social do trabalho para a
trabalho n ã o existia como categoria social , capaz de
-
preencher as necessidades de m ão- de obra reque - obtenção , sob garantia absoluta , do lucro capitalista
e ambas se configuraram pela concentraçã o em um
,

ridas pela produção colonial. Esta n ã o prescindia ,


como j á se viu . de homens expropriados cm grande mesmo lugar de trabalho , e em larga escala , de tra -
balhadores despossu í dos de meios dc produ çã o e de
nú mero , e isto já no século XV , O lento processo que
através de alguns séculos , mediante contí nuas pres- saber t écnico.
sões econ ó micas , socializou a ciasse operária, apenas Outra autora. Alice P. Canabrava , comentando
o trabalho de Antonil , Cultura e Opulência do Bra -
se esboçava no ponto da história ocidental em que se zil , em in ú meros momentos registra de forma perti -
deu a expansão portuguesa . Ent ã o, só a forma vio - nente questões relacionadas á disciplina e à divisã o
lentamente aberta e juridicamente garantida de apro -
do trabalho, mencionando , inclusive , alguma coisa
pria ção da força de trabalho alheia , que é a escra -
parecida com um código de trabalho ( As Ordenaçõ es
vidão, poderia prover o contingente requerido pelo

VI ' T T .
r j
— r f
-
. r- -ifx
i x
"" c r -
i'f VTIW^ 34 H..1, .
i » npi ft ui
' -
ffPTT?
Edgar Salvador! de Decca 0 Nascimento das Fábricas 49

Filipinas ) . Dá destaque particular, ainda , à s t écnicas aos borbot ões de cada unia pelas duas bocas uu
produtivas que eram capazes de organizar o processo ventas , por onde respiram o incê ndio; os et ío-
de produ çã o , alé m de sugerir a import â ncia c o papel pes , ou ciclopes banhados em simr t ã o negros
imprescind ível cio mando capitalista para organiza - como robustos que sub minis tram a grossa e
ção do trabalho nos engenhos de açúcar . dura mat é ria ao fogo, e os for ç ados com que o
Essas quest ões , dentre outras
 monil é uma fonte documental inestim ável

e o livro de
, po-
— revolvem e atiçam ; as caldeiras em lagos fer
ventes. com os canhões sempre batidos e reba -
-
dem oferecer uma id éia bem mats clara daquilo que tidos , j á vomitando espumas , exalando nuvens
procuramos definir como o sistema de f ábrica , desde de vapores , mais de calor que de fumo , e tor -
que sc entenda aí, contudo , a maneira pela qual o nando-se a chever para outra vez os exalar; o
engenho de a çú car nas coló nias representou , inequi- ru í do das rodas , das cadeias , da gente toda de
vocamente , uma das expressões ma is contundentes cor da mesma noite , trabalhando vivamente , e
dessa peculiar organização do trabalho do mundo gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento
capitalista, sem que a mesma possa ser confundida de tréguas , nem tie descanso; quem vir enfim
com a cl ássica forma manchcsteriana . toda a máquina e aparato confuso e estrondoso
Ao nos aproximarmos dos textos de viajantes e daquela Babil ó nia , n ã o poderá duvidar , ainda
de habitantes de coló nia que descreveram em porme- que tenha visto Ethnas e Vesú vios , que é uma i

nores o universo do engenho, o nosso espanto pode semelhanç a do inferno . ”


ser grande, j á que í nadvertidamenle podemos con -
fundi- los com qualquer descrição das f á bricas do Essa "machina c fabrica mcrivei" nas palavras
per í odo de Revolu çã o Industrial . Todo o universo de Padre Vieira impressionava a todos aqueles que o
infernal das "satâ nicas f á bricas escuras" descritas conheciam e era capaz de concentrar sob um ritmo
por Engels, em I 844 r etn sua obra A situação da do trabalho rigoroso unia grande quantidade de tra -
classe trabalhadora na Inglaterra , pode encontrar balhadores. in ú meros autores já descreveram as eta -
correspondê ncia num extraordin á rio serm ã o do Pa - pas do processo de trabalho no engenho de açú car , c
dre Vieira, datado de 1633, que anuncia assusta - mats recente mente Antonio de Barros Castro em Es
-
do ramenie a sua vis ão do etigenho de açú car: cravos e Senhores nos Engenhos do Brasil ( tese de
doutorado, mimeo.) procurou enumerar as suas prin-
"E verdadeiramente quem via na escuridade da cipais carac íer
ísticas:
noite aquelas fornalhas tremendas perpeLua -
mente ardentes ; as labaredas que est ão saindo — a jornada de trabalho é t ã o extensa quanto

1
x J u E i|i u r , 1
-
VTH*. *:
, TAJIKSqÇffafVv -; - i.iVV
‘ Í -
J3ÇT S E7F' i .’
»s ’ ’
. .
rj ij1 . EIHET i JCgTPO J
Edgar Salvador! de Dacca O Nascimento das Fá bricas 51
50

fisicamente possí vel ;


— a elaboração do açú car é um processo m úl -
tiplo e conplexO , mas a divis ão rio trabalho
encontra - se suficientemente avan çada , para
que a tarefa de cada um seja simples e repeti - i

tiva , Contrastando com o trabalho artes anal ,


o serviço do escravo não tem ‘poros’ — mo- i

mentos de folga em que o trabalho ê inter -


rompido para mudanç as de locai ou de fer -
i
ramenta;
— a matéria - prim a percorre diferentes estágios t

e os escravos em equipes ;
— revezadamente ocupam os seus postos de
trabalho . Os escravos num certo sentido n ã o
I

‘produzem’ , sendo o açúcar produto do en -


genho , uma colossal estrutura técnica que
incessantemente traga cana . lenha - e çscra -
!' !
i

vos” ( Antonio de Burros Castro , Escravos e 1


I

Senhores nos Engenhos do Brasil , P - 7) ,

Alguns momentos da exposição de Alice P - Câ -


n a brava , que tiveram como suporte a valiosa obra do Ii

Padre Àntonil , são também bastante sugestivas .


I
i

Sobre a disciplina no trabalho , o có digo disci - l


t
I
plinar e as resistê ncias do trabalhador à organização
do trabalho nos engenhos de açú car das colon ias , a
autora n ã o poderia ser mais enf á tica e direta :

* '0ritmo e a natureza do trabalho nas tarefas do


engenho em especial ã s que diziam respeito
,

à elaboração da matéria - prima , requeriam es-


I

funrr
. - -
SLí&vr Knr tíWi
O Nascimento das Fá bricas
53
57 Edgar Salvadors de Deccú

a
Contudo , a disciplina requerida e legitimad
trita disciplina. A manuten ção desta e a efi - por um có digo n ão poderia resolver totalmente o
ci ê ncia . de modo geral , do regime escravo tor - problema da integração do escravo na economia do
nava m - se possí veis com a adoçã o da violência e engenho, uma vest que a coerção só poderia sc dar
coação como padrões aceitos no trato do es- para a execução de tarefas reconhecidamente possí-
cravo. Aliás, as condi ções norm ítis do trabalho veis de serem realizadas por escravos considerados
escravo exclu í am , de modo geral , outras mo- boç ais ou ladinos. Era preciso , portanto , que atrav és
tivações , exceto o castigo e a possibilidade re -
de uma rela çã o de extrema autoridade ( as penali-
mota de folga , apôs o cumprimento das tarefas. dades previstas no código) o escravo introjetasse
uma
As Ordenações Filipinas sancionavam legal - disciplina de rotina de trabalho na execu çã o de ta -
menLe a morte e a mutilação , em caso de ofensa à refas de produ çã o c outras complementares à vida do
pessoa do senhor, c o tormento por a çoite para engenho. Em outros termos, era preciso submeter
o
obter a declaração do domicílio dos escravos escravo ao cumprimento dc tarefas consideradas roti , -
fugidos , 0 regimento elaborado por João Fer-
neiras no engenho e mensuráveis quantitativamente
nandes Vieira em 1663, com respeito ao castigo E, por isso mesmo, a produtividade do trabalho es -
do escravo , estipulava que ' depois de bem a çoi- cravo era decorrente da eficaz aplicaçã o do controle
tado. o mandará pisar com navalha ou faea que disciplinar , este sim o elemento capaz de garantir
corte bem , e dar-lhe -á com sal , sumo de lim ão, e que o sistema n ão desmoronasse.
urina e o meter á alguns dias na corrente , e sen - Sugere- nos a autora , inclusive, algo bastante
do fêmea, ser á açoitada à guisa de baiona den - interessante a esse respeito , ao afirmar que a distri -
tro de casa com o mesmo açoiLe , com a proi - buição das tarefas de competência de escravos num
1

biçã o de lhes bater com pau , pedra ou tijolo. engenho obedecia a uma certa especialização : num
É claro que as penalidades devem ser vistas no n ível , as
nível, a divisão de tarefas por sexo; noutro
enquadramento pr ó prio da é poca , quanto à sen - fases fundamentais do processo de integraçã
o e de
sibilidade e o conceito de escravo , como també m adapta ção do escravo ao trabalho no engenho
mar -
em seus condicionamentos quanto á personali- cam o momento cm que se discriminavam dentre
os
dade do senhor . Teria havido senhores mais escravos aqueles considerados apLos para o trabalho
brandos ou mais cru éis , e que se traduzia nas no engenho e aqueles capacitados somente
para as
condi ções morais e materiais da exist ê ncia do tarefas complementares. H é muito importante frisar
escravo ' ( Alice P . Canabrava , ' João Antonio
1

isso pois neste ponto estabelece- se


a peculiaridade
 ndreoni " in Cultura e Opulência do Brasil , desse sistema . Claro est á que essa discrimina
çã o en -
André Jo ão Antonil , p. 57) .

-
• n^ rr r- V CT.r.“TL •.MJT
^ -
v Wffw
tf ^ -
ÍH .
• *,r - - -A r-r “ ** Tf
*
' ’
SA Edgar Salvadcri de Decca 0 Nascimento das Fábricas 55

ire os escravos estabelecia um certo tipo de escala de avaliado nos seguintes relatos de Antoni] , reorde-
valorização capaz de aparecer como mecanismo efi- nadas por Alice Canabrava:
caz para garantir a disciplina no engenho.
Como afirma Antonio B , Castro , os escravos " No topo da hierarquia do trabalho qualificado
adquiridos pelos senhores
teriam por
— — 65 a 70 % dos cativos
destino os engenhos ser ã o introduzidos
se situava o mestre de a çú car : pelos seus conhe-
cimentos sobre o preparo do produto íazia jus à
na engrenagem do engenho através das tarefas mais mais alta remuneração , 120S000 por safra , o
simples. Seu aprendizado que o levar á de " boçal a 1
que expressa o julgamento social de sua habili -
" ladino , é també m um processo de valorização, co - ta çã o especí fica . De tal modo se impunha a sua
1

mo atesta Antonil , para quem um escravo adaptado capacidade t écnica que os sal á rios vigentes para
e treinado ' vale por quatro boç ais’. Somente entre os os outros postos de chefia n ão traduzem uma
' ladinos ' ser ã o escolhidos os caldeireiros , tacheiros , hierarquia gradual dc remuneraçã o , caindo seus
carapinas, calafates , barqueiros e marinheiros” I An - ní veis imediatamente a 50% para o Feitor- mor
tonio B . Castro, p , 17) , e o carapina da moenda , e mais baixo ainda
A tarefa disciplinadora , como se sabe, cabia aos para os outros. Assim acontecia porque , no es-
feitores e mestres de a çú car, e só a eles , na medida t á gio de desenvolvimento da técnica de produ -
cm que era de sua inteira responsabilidade extrair o ção do açú car, o mestre , sendo um empí rico,
maior rendimento possí vel cio trabalho tio escravo: deveria possuir altas qualidades de inteligência ,
“ Deveria se descobrir seus limites dc resist ê ncia , es - observaçã o , dedica ção e experiência , esta adap -
tabelecer normas para o reforço de alimenta çã o nas tada às circunstâncias locais , como acentua An -
tarefas que o exigiam , e bem assim , no trato dos dreoni. Cabia ao feitor uma á rea ampla de ati -
enfermos" ( Antonio B . Castro , p , 17). vidade . qual seja , ‘governar a gente c reparti- la
A hierarquia do trabalho começava ai , entre os a seu tempo , como é bem , para o serviço' . Seria
mestres de açú car e feitores, isto é. começava e ter - o que poder íamos chamar , em linguagem de
minava no trabalho qualificado, remunerado e téc- hoje , o administrador do pessoal . Sua autori-
nico do engenho. A í , a especializa ção das tarefas dade c clara mente definida , devendo ele con-
alé m de se colocar como imprescindí vel era condi çã o formar -se estritamente com os padrões prescri-
para se garantir a disciplina no trabalho , como Lam - tos de a çã o , ou seja , contentar - se em ser ' os bra -
bem , do ponto de vista estritamente técnico , fazer ços de que se vale o senhor de engenho' , e n ã o
frente ao crescimento da produ çã o e do n ú mero de arvorar - se em cabeç a. O cotejo do texto de Àn-
trabalhadores nela envolvidos. Isto pode ser bem dreoni com o regimento dadu por Jo ã o Fcrnan -

-- ---
-. — / • --
*c ' var7r---JrT-çr:
^ -
»iÇ a H V;-iíP r. W t aVAtJTT?-'
' '
i -^rrp^nr. - rr~irr - -- : ^ ‘i
56 Edgar Salvador! de Decca O Nascimento das Fábricas 57

des Vieira em 1663 mostra com nitidez, um de- pois trabalhava por tarefa , isto é, por quanlidade
senvolvimento no sentido da especialização das estipulada . Se ultrapassasse esse limite , pelo desen -
chefias , ou pelo menos , de que modo se resolvia volvimento de uma nova técnica , esse novo limite
o problema em engenhos menores . Em Cultura passava a ser incorporado a seu trabalho, sem que
e Opulência , as fun ções do feitor- mor se pren - houvesse algum 1 ipo de compensação. No mínimo ,
dem de modo especial ã distribuição dos escra - ficava disponível para a execu çã o de outras tarefas
vos pelas tarefas do engenho e às que mant é m n ão qualificadas no engenho de açú car. Pelo lado do
com o senhor , como preposto de seus interesses , senhor de engenho, a solução para os necessá rios
donde derivavam , naturalmente , encargos im - aumentos da produção de açú car era encontrada de -
pl ícitos quanto à conservaçã o do patrim ónio. No forma explicita , jLá que se tratava de trabalhadores
regimento do século XVII , encontram - se afetas
ao feitor - mor tarefas mass amplas , que inclu íam
-
escravos n ão qualificados . Isto é , antes que houvesse
o bloqueio ao trá fico negreiro , a partir de meados
supervisã o t écnica , atribu í das ao purgador e ao do século XIX , imposto pela Inglaterra , os aumentos
caxeiro , como chefes de serviço , no texto de An - de produção se davam pelo aumento das horas dedi -
dreoni . A especialização e a multiplicidade de cadas ao trabalho, quase sempre até o limite da
chefias mostra o aperfeiçoamento das tarefas de exaustão f ísica , bem como pela introdução de mais
supervisão , imposto pelo desenvolvimento quan - escravos no processo de trabalho. Quanto a isso , a
titativo da produ ção e o maior numero de tra - autora Alice Canabrava n ão poderia ser mais expl í-
balhadores nela engajados " ( Alice P . Canabra -
-
va, pp . 62 63) ,
cita— para ela , também * a quest ão central passava
pelas técnicas de minar as resist ências ao trabalho:

Nesse sentido , diante de uma estrutura cie par - “ N ão se tratava apenas da elaboração de uma
celamento do trabalho extremamente rí gida e de es
cassa mobilidade social , já que ao escravo estava
- t écnica de controle da rentabilidade do trabalho
escravo, adaptada à sua mentalidade rudirnen -
deslinada a realiza ção de trabalho nâo qualificado ,* tar , mas visava também vencer sua resistê ncia
c diante de sua utiliza ção de forma extensiva ( era passiva com respeito às tarefas impostas’ " ( Alice
propriedade do senhor ) , n ão se colocava de maneira P. Canabrava , p. 58).
decisiva para o processo de Lrabalho no engenho a
necessidade de se desenvolver t écnicas capazes de Essas resistências ( o assassinio do senhor , as
elevar a produtividade do trabalho escravo. Pelo lado fugas para os mocambos ou matos , o suicí dio , a
do escravo , nenhuma destreza poderia lhe ser ú til, , embriaguez-, o aborto , as práticas fetichistas. bem


i
- -
. r * : :
IS+T+ HV sTvyAHj
= r . * nn ii
á i » i . vri jTjjyryyrfllffV i , T ^ - - ..
n r < 1TTHr 5WZ
"
T
58 59
Eclgur Saivadori de Decca O Nascimento das Fábricas

como as enfermidades de natureza psí quica des- — ções fosse bastante eficaz para proceder à hierar -
consolo c melancolia — etc. ) , contr á rias ao processo
de ajustamento ao trabalho servil no engenho , econ -
quiza çã o ( espiritual) de papéis do trabalho es-
cravo nos engenhos de açúcar , ele foi insuficiente
travam , como afirma esta autora, mecanismos de para fazer frente ãs resistências, já que a existência
compensação e amparo aos desagravos sofridos no de um código disciplinar não deixa margem à d ú -
interior da economia do engenho na libertação espi
ritual . Libertação esta que, utilizando-se de todo um
- vida .
Quanto às técnicas , como resposLa a mais ade-
conjunto de instituições ( saeralizadas ou n ão), criava quada possí vel para os objetivos da organiza çã o capi -
ao mesmo tempo a hierarquizaçã o de papéis que a talista do trabalho nos engenhos, estas aparecem
execu çã o do trabalho não-qualificado n ão poderia descritas de maneira minuciosa no decorrer dc toda a
proporcionar no processo produtivo, O seguinte re- obra de Aníonil. Sen a ociosa uma descri ção porme-
lato. nesse particular, é bastante esclarecedor: norizada das t écnicas e dos maquinados utilizados
para a produção de açúcar nos engenhos. Gosta -
“ Hntre os aspectos positivos , como ações volun íamos , apenas, de chamar a atençã o para o fato de
r
tá rias do escravo, estava a sua integração nas que essas técnicas n ã o eram incompatí veis com a
irmandades. Corresponderia , segundo Ren é Ri - organização do trabalho no sistema de f á brica repre-
beiro , ao seu desejo natural de encontrar u m sentado pelo engenho, e aí talvez fique patente a
lugar na estrutura social , independente dos la - maneira pela qual a tecnologia atendeu de forma
ç os de escravidão, mas sob o amparo da Igreja, exemplar aos imperativos da organiza çã o disciplinar
e assegurar para si , ao morrer, uma sepultura e hierá rquica do trabalho.
condigna. Do mesmo modo , os reinados do É preciso , porém , que se esclareça nesse ponto
Congo mencionados por Andreoni, entrosados que se o trabalho servil , aqui identificado como tra-
com as'irmandades dos pretos, com seu sistema balho n ão- qualificado , rotineiro, era pouco propenso
pr ó prio de papé is hierarquizados , conferiam a absorver novas técnicas capazes de elevar a sua
status com a organizaçã o de suas cortes e reis . A produtividade , n ã o se pode concluir que entre este e
alusão do jesu í ta aos ‘feitiços’ e às ‘artes diabó- o progresso técnico houvesse uma terr ível incompa -
licas’ mostra a continuidade da prática dos ritos tibilidade , baseada exclusivamente na incapacidade
feíichistas das suas religi ões cm suas p á trias de Intelectual do escravo para acompanhar os avanços
origem ” ( Alice P , Canabrava , pp. 59-60) , tecnológicos requeridos pelo sistenta de fá brica . Con -
vém lembrar , recorrendo mais uma vez a Maria Syl -
Contudo, ainda que esse conjunto de institui- via de C . Franco , que os vínculos entre Metrópole e

-- iT"
1J I M'I m ,
ir -- - -^ '
Tv rnT fc
ntV r . .‘iL.- k :

Edgar Salvador ! de ZftCCQ 0 Nascimento das Fábrica 61


60

Col ó nia ( produ çã o colonial c com é rcio capita!isla ) ,


levando à organiza çã o das grandes propriedades fun -
diá rias , SET deram pci a .utiliza çã o do trabalho escravo ,
j á que n ã o existia como categoria social o traba - i

\ : T 0«
-

i r

lhador despossu í do e assalariado em quantidade su


ficiente para atender às necessidades requeridas pela
I
||
e,
i

x
- 'i-
. , >

-
mi

V
1
MM
11 I

l
-
w
*
Sp

produ çã o colonial * e n ã o pelas poucas exigê ncias -


!
1
PX

iecimló gicas rios engenhos .


O qne vale notar, isto sim , é que o ç ugç nbo dc
L
*:
a çú car apresentava uma forma peculiar de organi - . ~

-
:.
.t 3 ; — Xb À
M
za çã o social do trabalho O Lrabalho assalariado ,
i

* I f
I A.
*

considerado Lrabalho qualificado , é tcnico e hierar - "

quizado; o trabalho escravo , n ã o- qualifica do roti -


*
i
neiro , meramente quanlitaiivo c nã o- hierarquizado *

No primeiro , a disciplina se imp ô s muito mais em I

função dos quadros dc especializa ção no trabalho , a I

partir da tecnologia; no segundo , a disciplina sd pôde > .


r
-> ii

ser garantida peia aplica ção de um m é todo de ira -


balHo bastante severo e autorit á rio , capaz de reduzir
as vá rias formas de resist ê ncia ao trabalho servil .
Feitas essas considera ções , citemos aqui apenas
I
três momentos do trabalho de Alice P . Canabrava ,
onde o progresso t écnico aparece como resposta aos i
imperar ]vos da organizaçã o disciplinar e hierárquica i

do trabalho ao mesmo tempo em que promove a


*

ae u m uJ a ção de cap i t al.


-
O primeiro refere se í L casa da moenda . E-Ista *
segundo a autora, embora de constru çã o rudimen -
tar onde predominava a madeira como material de
* Dois moinhos antilhtinú s para iriturar cana ( s é c . XVní l
constru çã o das m á quinas simples , representou um Acitna . por iraçàti animai ; abaixo , hidr áulico . ( In ; ff isto
importante est á gio da hist ó ria do desenvolvimento ria General del Trabajo. )

TJí n P . -
- 7 T T 1 iWTT
^U
j .

62 Edgar Salvation de Deccti 0 .Víucjf íí ef í Jirt das Fábricas 63

das t écnicas . Quanto à metalurgia, esta encontrava qualquer forma , é bom frisar que os avan ços tecno-
a í pouca utiliza çã o, e limitava-se a algumas peças e lógicos obedeciam , ao lado dos imperativos da disci-
superf ícies submetidas a grande desgaste. Assim , a plina e da hierarquia no trabalho , às necessidades da
roda dc dentes, que era conhecida há muito tempo , acumulação de capital , eF por isso mesmo , os aper-
e o engatamento das rodas de dentes , em uso h á fei çoamentos adotados nas Antilhas , por exemplo,
v á rios séculos , eram de madeira , o que teria valo - n ão deveriam encontrar, necessariamente, grande
rizado sobremaneira o trabalho de carpintaria , mais correspond ê ncia 1105 engenhos dc açú car no Brasil;
conhecido como carapina da moenda.
“ Nas duas grandes á reas de produçã o aç uca -
“ Na casa da moenda, participamos de um inun - reira da Am é rica , nas Antilhas e no Brasil, a
do da t écnica, ainda em seu esplendor , mas moenda dc três tambores conserva os mesmos
fadado a desaparecer com o desenvolvimento da elementos Fundamentais. Todavia , nas ilhas ,
metalurgia que começ ava a avan çar no século desde o fim dc século XVII , a redução dos três
XVII. Por esse motivo , o carpinteiro , ou melhor , tambores a um tipo ú nico com as mesmas di-
o carapina da moenda , indispensá vel durante mensões, indica a linha dos aperfeiçoamentos
toda a sa í ra, deveria ser um assalariado alta - n ã o adotados no Brasil , ma is condizentes com
mente qualificado. Ali ás , sua remuneraçã o ele- o menor custn dc feitura e facilidade de subs -
vada , de S500 por dia dc trabalho ( cerca de tituição do que , propriamente , de melhoria dc
ÓQÍOOO por safra ) , equivalente à de um feitor * rendimento na produ çã o ’ ( Alice P , Canabrava ,
1

mor de engenho, é expressiva da import â ncia P - 70).


que as condições sociais da é poca lhe confe-
riam ” ( Alice P. Canabrava , p , 68h Contudo, das técnicas empregadas nos enge-
nhos , talvez a mais importante tenha sido a utili -
Outro momento importante no desenvolvimento za çã o da á gua como forço motriz , n ã o só porque
das t écuicas nos engenhos de a çú car foi a introdução exigia aparelhamento dc custo elevado e restrito aos
no Brasil , entre l óOS a 1612, da moenda de três investimentos de maior vulto e com maiores possi-
tambores , pelos espanhóis vindos do Peru . Ao que bilidades de acumular capital , como també m pelas
parece, pela sua maior eficiê ncia , esta moenda aca - alterações no processo de trabalho proporcionadas
bou substituindo as moendas de dois tambores hori -
zontais , descritas como sendo as t í picas do sistema, e
pela sua introdu çã o —
maior necessidade de mã o de-
obra especializada, maiores dimensões do engenho
-
difundidas na Amé rica a partir das Antilhas. De para uma utiliza ção mais raciona! da energia pmdu -

Vi ísyiwwpí Í- éí -
At i *.
C?

— 0^, - =-
0
— - - . -.-.
fcx Tr “ l j PI
— -.
ungrr T
0 Nascimento das 1'âkricua 65
64 Edgar Salvador! de Becca

zida , aumento do n ú mero de escravos em virtude das apenas em razã o de ter moenda com roda
necessidades de ampliar a produçã o, o que. prova - d ’água , mas ' por terem todas as partes de
velmente . deve ter provocado tamb é m o parcela - que se compõem e todas as oficinas , perfei -
mento tlas tarefas consideradas qualificadas e das tas , cheias de grande n ú mero de escravos ,
nã o- qualificadas etc . Sem d ú vida , o seu emprego , coin muitos canaviais próprios e outros obri -
onde quer que tenha se dado, representou um mo - gados à moenda: e principalmente por terem a
mento importante para a acumulação capitalista. Às realeza de moerem com á gua, à diferença de
considerações da autora a esse respeito são bastante outros , que moem com cavalos e bois e sã o
interessantes: menos providos e aparelhados: ou , pelo menos,
com menor perfeição e largueza , das oficinas
"O fato de ter penetrado no Brasil com as capi - necessá rias e com pouco n ú mero de escravos ,
tanias . indica o í ndice elevado dos investimen - para fazerem , como dizer , o engenho moente e
tos que a economia a ç ucareira podia capear. Por corrente ( Alice P. Canabrava, pp . óíí- 69}.
IS

esse motivo, o engenho d ' á gua se tornou um


sí mbolo da import â ncia social e ecónoinica do Quanto ao papel do senhor de engenho e a impe-
senhor de engenho , consagrada na designa çã o riosidade do mando capitalista para a organização
dc engenho real. Sua difusã o teria sido limitada, do trabalho na colónia , vamos nos limitar a registrar
por certo , pelo vulto dos capitais requeridos. apenas dois momentos importantes colhidos neste
Mas n ã o seria este o ú nico fator que explicaria o mesmo trabalho , a partir dos relatos dc Padre Anto-
uso mais amplo de moendas acionadas pela for - nil , mesmo porque dispensam maiores coment á rios:
ç a animal. Esta devia -se ajustar també m a con -
dições econ ómicas e sociais predominantes na O senhor de engenho é vislumbrado, antes de
I l v

época colonial , tais como a dificuldade para tudo , em sua opulê ncia , em seu prest ígio e em sua
dignidade. É um homem de cabedal e governo ’ ,
1

angariar , formar ou manter a m ã o-de obra es


pecializada na feitoria do aparelha mento e de
- - ou seja , criatura provida de fartos recursos
sua manuten çã o. Ào engenho d’ agua se condi - técnicos e financeiros e com capacidade para
cionava a grande produ çã o , estimada em dobro , administrar. S ã o unanimes todos os autores co -
em cotejo com as de moenda a força animal , loniais na afirma çã o de que somente com gran -
implicando , portanto , em quaniidade corres- des capitais se podia montar e tocar um engenho
pondente do apareihamcnto destinado ao trata - de açú car. Alé m da pecú nia , o senhor de enge-
'

mento do caldo. Deste modo, s ão reais n ã o nho deveria ostentar aquelas qualidades que ex -


WP
-
lAMrl g -. Tuy T,!ír rjj;c: .
* 1 pijSjpaJF ..; P I -
, ...V M v r s c j.; ~
— - -»iil . --H. .1
I 1

-
i
*

— . UUT'fti

66 Edgar Salvador! de Decca

pres &am ‘capacidade, modo e agenda ( ., . ) na


boa disposição e governo de tudo', ou seja , a
capacidade para administrar, Todavia , possuir
cabedal subentende ainda singulares dotes inte-
lectuais e morais, potencialidades que també m
a experiê ncia , a educa çã o e o estudo poderiam
. -
conferir Deste modo , compreendia se o homem
:

de empresa sob outras dimensões , como ex-


poente de uma fidalguia de inteligê ncia e de é ti - A FÁ BRICA VITORIOSA
ca, que completava o homem dc a çã o ( Alice P .
11

Caitabrava , p. 43) ,

Ou ainda , "
A nova indú stria fez a poder crescer a um
grau notável . "
” No conjunto da organiza çã o do trabalho , o de- J . L. e Barbara Hammond ( 191 ó
sempenho do senhor de engenho est á exclusi-
va men te ligado à quelas a ções que d à o cunho
pessoal às rela ções com os lavradores o que ten -
urns pergunta
Agora temos condições de fazer
dem a afirmar o seu prestigio em face deles
ou à defesa do patrim ó nio, o que també m ex - I: crucial: por que uma determinada torr a de expres -
pressava prest í gio e autoridade , pelas articu - ! são do sistema de f á brica —
aquela que se deu a
partir da concentração de trabalhadores despossu í
i


f
lações com os organismos de c ú pula que se fa-
ziam necessá rias. Dc qualquer forma , em seu s dos e assalariados se tornou vitoriosa ante a quais -
\ quer outras ?
desempenho, o senhor de engenho agia como
N ã o há como deixar de reconhecer que a res -
posta estaria , justamente , no desenvolvimento acele -
representante do poder e do prest í gio de todo
o sistema de produçã o” ( Alice P, Canabrava , processo
p , 63) . rado das bases t écnicas que organizaram o
cie trabalho. Contudo , mais uma vez, enfatizamos
que tais bases técnicas se tornaram importantes mui-
_
to mais em funçã o das necessidades dc disciplina e
controle do trabalho do que pela sua eficácia . Isto
é .

.
m IMI a . - p T FI&V
^ra
irp^ iEjgugep
-,
J'V' raKJ'
^ -
-. = r=r>-
íin
Edgar Sahadori de Decca O Nascimento das Fá bricas 69
6A

dentro da própria realidade; do confronto entre o


capiLai e o trabalho , a tecnologia , embora apareça
como í ndice de aumento de produtividade e como
base material da acumula çã o capitalista , ela res -
ponde também aos imperativos dc disciplinar , con -
trolar hierarquicamente e n ão permitir ao trabalha -
dor o controle do pr ó prio processo de trabalho .
Nesse sentido , o desenvolvimento das bases téc -
nicas , do ponto de vista do empresá rio capitalista ,
representou uma estral égia no interior de um con -
fronto com os trabalhadores livres , despossu í dos e 1
assalariados , que resistiram permanenteniente à acei -
ta çã o da natureza pró pria do sistema de f ábrica . Por
isso mesmo essa estratégia , na qual a tecnologia re -
presentou um dos instrumentos mais eficazes de con -
trole social , n ã o se reduziu evidentemente aos li-
mites da f á brica . O sistema de f ábrica t como um
-
universo de rela ções sociais, estendeu se pelas in ú -
meras instituições ( p ú blicas e privadas) que n ã o só
permitiram e legitimaram o controle e a disciplina
fabril , como també m abriram caminho para que se
produzisse uma esfera de conhecimentos tecnol ógi-
cos onde se opera a radical apropria çã o do saber.
Nessa expressão manchesteriana do sistema de
f á bricat o capital encontrou definitivamente as bases
para a sua expans ã o e dom í nio. No â mbito das
rela ções sociais do capitalismo , a tecnologia , a partir
da vit ó ria do sistema de f á brica , al é m de ter repre -
sentado unia estratégia de controle do capitalismo
-
sobre a produ çã o, tornou se , pelas pr ó prias determi-
na ções do mercado , o veículo peio qual o capital

1H I 1
f l| . . . :
-. =^.r- -uT?^TV:- nb> 5&ZF -
í
'
r» »- " -- =r
» . j.. i,r¥TLj7HrT i > v r q n .f . ó1gSElflBTTHBfrft F -V ~T ~ „ »
Edgar Salvador! de Decca O Nascimento das Fábricas 71
71) .

encontrou possibilidades para a sua produ ção. As- reza dessa transformar ã o , já tji-ic boa parle da biblio -
grafia acaba reduzindo o problema à discussões do
sim , no interior do pr ó prio mercado capitalista , a
tecnologia iria aparecer como elemento determinan - lipo: formas arcaicas e pré-capitalistas de produção
te. uma vez que , constitu ído esse mercado, a sua versus produção capitalista. Muito pelo contrá rio o ,

expans ão passou a se dar a partir da produ çã o e do que esteve em jogo nessa transformaçã o n ão foi a
passagem de Lima organiza çã o social do trabalho
consumo crescente de bens de produ ção ( bens de
consumo produtivo). Esse é o momento no qual as -
pré capitalist a para uma organização capitalista do
próprias categorias e instâ ncias do capital aparecem trabalho , mas sim o modo pelo qual no interior da
autonomizadas , e a t écnica, agora apropriada c de- organização social capitalista do trabalho , j á no sé -
senvolvida pelo capital , passa a determinar de potita culo XIX . determinadas formas sc impuseram sobre
a ponla a lógica do pró prio mercado, impondo uma nutras a usina de açú car superou o engenho .
progressiva e crescente divisão social do trabalho. Nessa medida , vale ressaltar que em plena se -
gunda metade do século X Í X , o aparecimento tam -
Por isso mesmo, ao falarmos de tecnologia , tor -
ita -se dif ícil isolá -la num ponto em que torne possí vel
bé m da ind ú stria t ê xtil no Brasil respondeu a exigê n -
avaliá - la sob as noções de eficá cia e produtividade , cias muito precisas de organização social do trabalho
uma vez que, na ló gica mesmo do mercado capitalis- no mundo capitalista, E!a representou , aqui no Bra -
ta , ela cumpre o seu papel determinante naquilo que sil , uma transformação radical na pró pria estrat é gia
se refere à acumulação de capital. Assim , o sistema de de organizaçã o do trabalho levada a cabo pelo man -
fábrica manchesterianot a nosso ver, tornou - se vito- do capitalista, e superou , a panir de suas bases t écni-
cas. todas as outras formas de organização do traba -
rioso porque nele desenvolveram - se as condições
para que a tecnologia pudesse se transformar num lhocuiaobten ç ao do lucro estivesse garantida por me-
canismos menos eficientes de controle c disciplina.
elemento prioritá rio da acumulação capitalista. Mo
â mbito desse mesmo mercado capitalista , portanto, O cortejo tecnológico que acompanhou mun -
uma determinada express ã o do sistema de f á brica , dial men te o sei or manufatureiro , no século X E X ,
inevitavelmente , acabou se impondo sobre outras
exclu ía do mercado capitalista n ã o apenas as peque -
formas de organização social do trabalho , posto que nas iniciativas individuais , como també m , tornando

essa expressão manchestoriana respondia de maneira
estrat égica às próprias necessidades da acumula çã o
do capital. Nessa medida , o engenho deu lugar às
imprescind í vel a figura do capitalista
— c a í estava
em jogo o papel do grande capital , organizava o
processo dc trabalho sob a égide de uma disciplina
imposta pelo pr ó prio funcionamento do aparato tec -
usinas de a çú car , para usarmos uma expressão cor -
rente que nem sempre consegue apreender a nalu - nol ógico .
Jt
r — vt --
i' i
' »
- «RTCPPm Ef

73
0 Nascimento das Fá bricas

in Fast and Present , n ? 38 ( dezembro , 1967) , que


tem desde 1975 , uma. tradução em espanhol no livro ,

do mesmo autor Tradición. Revuelta y Consciê ncia


dc Close , Barcelona . Gr í jalbo, 1967. Começando
por
analisar o aparecimento histórico dos relógios , o au -
tor nos remete para o problema da origem da noçã o
de tempo ú til , pró prio da sociedade burguesa , pro-
pondo nos , que o surgimento das f á bricas esteve li-
-
gado a um aprofundamento maior do controle do
INDICA ÇÕ ES PARA LEITURA ( empo de trabalho por parle dos patróes. e à intro -
duçã o de uma rígida disciplina no processo de ira
bailio . Conclui , enfim , que tais estrat égias visaram
essencial men te ida p Lar o homem pobre às novas
necessidades do mundo burguês, Para Thompson , a
f á brica antes de ser um acontecimento tecnológico
é
Para finalizar esse trabalho gostarí amos de dei - a expressã o vitoriosa das estrat égias patronais na
xar indicadas as suas principais refer ê ncias. Embora luta contra os trabalhadores pelo controle dn tempo
exista uma vasta bibliografia sobre o surgimento das do processo de trabalho na sociedade burguesa
.
fá bricas, chamamos a atenção do leitor para as obras Nessa perspective , Thompson discute tamb é m a
que dirt la ou indiretamente serviram de suporte para questão técnica, como um momento entre outros de
esse estudo. uma luta dc classes transcorrida no interior da socie -
Levando-se em conta os objetivos da coleção dade , e a mat] uma autom ática , aparece em seu ar -
' TuJo é Hist ó ria " , procuraremos indicar os autores
tigo , como a materialização completa do controle do
que tinham desenvolvido estudos de maior densidade tempo pelo empres á rio capitalista . Enfim , o lexto em
teórica , no que se refere à problem á tica por n ós quest ã o nos alerta para o equ í voco de se tentar
abordada , isto e , a organização do processo de tra - pensar o acontecimento tecnológico do mundo mo-
balho no capitalismo . Começ ar í amos , portanto , indi- demo, dissociado da noçã o de tempo ú til , elaborado
cando dois trabaihos de grande alcance historiogra - na instituiçã o da sociedade burguesa .
f íco, que por sinal , n ã o ganharam ainda a devida Uma outra referê ncia decisiva para o aprofun -
repercussã o .
Prime? ramen te , o artigo de E . P . 1 hompson "
"Time , Work discipline and Industrial Capitalism
— damento das quest óes sugeridas nesse livro é o artigo
de Maria Sylvia de Carvalho Franco —
“ Organi-

i jjrtjj jTC37Fnra< m —
1^ 1
= 53»n T * “ i rp. ‘ -= -
c K3S3K
-
r V «K EB- . a É WM 1SE3 ——

Edgar Salvador! de Decca O Nascimento das Fá bricas 75


74

zaçã o social do trabalho no per íodo colonial '', in Ingla terra . Chamamos a aten ção. particularmente,
para a segunda parte do livro onde Thompson critica
Discurso n ? 8 ( maio de 1978) , Preocupada com o
problema da instituição do trabalho na sociedade minuciosa mente os autores que definiram a classe
burguesa , a autora critica as an á lises h is toriogr á ficas oper á ria, a partir de um marco tecnológico , isto é , a
que estabelecem uma rela çã o de exterioridade entre partir do momento da Revolu çã o Industria ] Inglesa .
a colónia e as metró poles europeias, na suposição dc i Procurando superar uma dada concepção marxista
que sc contrapõem ou se complementam duas tem - que reduzo conceito de classe a Lima mera relaçã o de
poralidades diferentes. Através de uma an á lise teó- produ çã o , o amor nos desvenda o imensamente rico
rica minuciosa das categorias centrais do pensa- universo de cultura da Inglaterra do século XVIII e
mento burgu ês
—a propriedade c o trabalho , a
autora no® remete a uma reflex ã o decisiva, ou seja , a
definição da figura do trabalho e do trabalhador na
nos aponta os in ú meros caminhos percorridos pelo
trabalhador pobre em sua consLituiçã o como classe
social ,
organiza çã o social , econ ó mica e polí tica do mundo A presen ç a da classe trabalhadora na vida coti-
burgu ês . Em seu artigo o trabalho escravo da coló nia diana das grandes cidades europeias do século XTX .
foi recente mente estudada no livro de Maria Stella
ao invés de receber qualificativos que o distanciam
da noção de trabalho produzida pelo pensamento
burguês , aparece como uma das expressões histó-
M . Bresciani
— Londres e Paris no século XIX —
espetáculo dapohreza , Sã o Paulo , Brasiliense , 1982.
A autora nos oferece subsidies para entender a pro
O

-
ricas da efetivaçã o das relações sociais no capita -
jeçã o da figura do trabalhador para alé m dos muros
lismo. As indica ções teó ricas da autora sobre a orga -
niza ção s ú cia! do trabalho na coló nia sã o funda - da f á brica. Esse personagem que circula nas ruas das
grandes cidades coberto com os sinais da misé ria ,
mentais para o estudo do processo de trabalho dos
engenhos de açúcar , que tê m como fundamento a questiona a utopia liberal que acreditava >er o sis-
escraviza çã o do negro africano. tema de f ábrica o ambiente ideal para a solu çã o do
Ainda como referê ncias importantes situamos o problema da pobreza e da moraliza ção do " homem
pobre ” .
livro de E , P, Thompson The Making of ike English
Ao lado do artigo de Maria Sylvia , a primeira
-
working class , Londres , Penguin Books , 1968 e a
parte da rese de A . B , Castro nos dá in ú meras pistas
tese de doutoramento de Antonio Barros de Castro
Escravos e senhores nos engenhos do Brasil , UNi - para o esludo do processo de trabalho no engenho.
CAMP , 1976 [ mimeo.). A obra de E - P. Thompson Analisando em pormenores os relatos de viajantes
j ã tem uma tradu çã o em espanhol e é indispensável dos séculos XVI e XVII , dentre eles Fernando Car-
para o estudo do surgimento do sistema de f ábrica na dim . Magalh ã es Gandavo, André Joã o Antonil , o

'i -
nr. >JJ i,ijs;y -.
i ia cterrirt ~ r- J" i
-r-.
i
-
V»U^****” r
- = -r
JT jir A H N R a
r I?1
_
A I r
Lá M » ** -

76 Erfjçar Sfl/virtfori iff TTecrtr 0 MíSC/ HM /IÍó J +íJ JRúí ^ LLí J . 77

autor nos apresenta também o engenho como uma 1978 e J . L. C Barbara Hammond — The village
labourer, Londres. Longman , 1978. Os dois ú ltimos
organizaçã o social do trabalho pr ó prio do mundo
burgu ês . livros sã o reedições , já que apareceram em p ú blico
Alé m dessas refer ê ncias , sã o igual men te rele - peia primeira vez., em i 917 e 1911 , respeclivamente,
Chamamos , por fim . a aten çã o para uma ques -
vantes para o estudo da forma çã o do sistema de
f á brica inglês, os artigos de Siepbin Magiin " Para
que servem 05 Palr óes ? ( origens e fun ções das ta -
rifas}" de colet â nea organizada por Andr é Gnrz.
— —
1
t ã o bibliogr á fica muito importante. Os trabalhos ci-
tados dc L , P. Thompson . Stepbin Ma&Jin, David
Dickson c Paul M â ntoux , s ã o referencias obriga -
Divisão Social do Trabalho e Modo de Produ ção t ó rias para aqueles que pretendem aprofundar os
- —
Capitalista , Lisboa , F scorpiã o , 1976; e 0 32 capí tulo
do livro de David Dickson Tecnologia Alternativa .
estudos sobre as resistê ncias e .as kit as dos iraba -
1

Jhadores pobres diante da imposiçã o do sistema de


ltlumes Edtciones, 1978 . Embora partindo de refe- f á brica. Organ i /.ar os trabalhadores nos marcos do
rendas teóricas diferentes , ambos os autores criticam processo de produ çã o fabril do mundo burguês, snb
as an á lises que definem o sistema de f á brica como a tutela e o mando do empres á rio capitalista , signi-
um aconteci men to tecnol ógico c estudam as estra - ficou uma.fula , quo nern sempre foi avaliada nas suas
t égias de controle e de disciplina desenvolvidas pelos reais prOpor ç bes pela historiografia inglesa de cunho
palr óes para quebrar as resist ê ncias dos trabatda - marxista.
dores independentes ao trabalho coletivo das of í -
ci nas.
Na linha de obras consideradas cl ássicas , igual -
mente importantes : K . Marx —
EI Capital , Mé -
xico, Fondn de Cultura , 1978 , principalmeiue os
cap í tulos: " A Jornada de Trabalho “ Divis ã o de
trabalho e Manufature ” . “ Maquinaria e Grande In -
d ú itria " e llA Acumula çã o Primitiva ” : Friedrich
Engels — A Situa ção da Clause Trabalhadora na
Inglaterra . Lisboa , Ed . Presen ça . 19 5; Paul Mau -

( OUY La Revalueiôn industrial é n ed sigh XVJJ. L


Madrid , Aguilar , 1962 ; e dois es Indus pouco conhe-
cidos do p ú blico brasileiro , J L. e Barbara Jiam-
moud
— The town labourer , Londres , I -ongman ,

r .-
T T
_
»7l 3”
_
:"x T. “
_ 13033 SfTVp Tn
^: 77.'- r
> íj
i r
I

1 Sobre o Autor
l
8’

Formado cm H Ls t í« r Í A desde 1970, defendeu í I SU í L lese de dou to -


ra memo "Dlmei&Bes Hlslóricâs do Insucesso Polí tico" na Faculdade de
.
Filosofia. Letras c Ci â ncias Humanas da USP Â tuidmcnEr ê chcíe da
Departamento de Hisi&rla da UNICAMP e estii integrado no programa
.
de mestrado que desenvolve o projetai " \ formar ão do ítrabalhadoF
J

assalariado urísano no Rrasd “ , Parridpou como coordenador da pes -


* quisa Ind ú stria e Tecnologia no Brasil", patrocinada pelo í nstitulo
i -
Roberta SLmo nsen c Ê hoje consultor da pesquisa "História da Ind ú stria
no Brasil ( í 990 / 19455" é m cOflveniò do Dcpaitamento de Hist ú ria cam $
FfNEP, Eícrevco in ú meros artigos e publicou,, recente mente, o livro

1930 OSif êndã dV>.v Vr.nçidí Li i Brastliç rtse, J 981 ) ,

i.
i

.-
|

i í
.

RflÇKBE
— BKVV
í

Você também pode gostar