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Meditando a Vida

Padma Samten
Prefácio
Introdução
I. Breve apresentação do budismo
II. Prática na vida cotidiana
III. Propósito da educação no budismo
IV. Meditação
V. Superação de crises
VI. Paz no dia-a-dia
Glossário
Conclusão

Prefácio
Do Caos ao Lama

Um ponto de partida surpreendente e uma frase ressoante – eis o desejo imediato de


todo o escritor (ou pelo menos daqueles que fingem não saber que o desejo é a raiz
do apego e que seus frutos mais genuínos são a infelicidade).
De todo o modo, deixando momentaneamente de lado a busca por uma abertura
sentenciosa (nem que seja para diminuir o apego, o desejo e a infelicidade),
concentremo-nos na procura pelo ponto de vista imprevisto. Ei-lo: um couro cabeludo,
no topo da respectiva cabeça, que descansa recostada a um tronco, logo abaixo de
um galho, no qual está dependurada uma ... maçã. A maçã desprende-se e cai. Está
caindo, caindo e... boing – bem no alvo.
Mas então, trezentos anos e três mil quilômetros depois de Isaac Newton, a nova
maçã e a velha gravidade não mais arrancam o fisico do mundo natural, nem o fazem
vislumbrar, num insight e num instante, as regras que regem o mundo mecânico. O
que acontece agora é a trajetória inversa – quer dizer, não a da maçã que caiu, nem a
da gravidade, que continua a atraí-la a 9,8 quilômetros por segundo. A direção oposta
se dá é na mente do “cientista”, que, num súbito despertar, abandona o mundo
mecânico, cartesiano e lógico, para mergulhar de volta no mundo natural, no caminho
natural, na “religião” natural, onde tudo se dissolve e se torna como realmente é.
Vazio.
Não se trata de uma metáfora gratuita. A “parábola” acima faz algum sentido. Afinal,
quando estava preso no século (nos dois sentidos da palavra) e ainda se chamava
Alfredo, o lama Padma Santem gostava de árvores (ainda gosta), gostava de maçãs
(ainda gosta; até deve ter plantado algumas macieiras na Serra gaúcha), gostava de
descansar, meditabundo, com a cabeca recostada a um tronco e, acima de tudo,
...era físico. Vivia no mundo do cálculo infinitesimal, conhecia a mecânica das águas e

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a mecânica dos sólidos, e isso no tempo em que eles aparentemente ainda não se
desmanchavam no ar. Era um fiel discípulo de Aristóteles. Um “filósofo da natureza”,
por assim dizer (que, aliás, é o que “físico” significa...).
Então, Alfredo viu a uva e provou a maçã. E, no entanto, talvez tenha sido justamente
ela, a maçã de Newton, a responsável pela nossa expulsão do “paraíso” budista.
Conforme o inglês Richard Gard, autor de um belo texto introdutório ao budismo, se a
mentalidade européia e a asiática se distanciaram tanto uma da outra, deve-se
incriminar muito mais o espírito científico da Renascença do que o dualismo cristão
homem-Deus. Afinal, como é que os ocidentais podiam tratar como ilusão e
inexistência o mundo da experiência sensível se as chaves fornecidas por Bacon,
Bruno, da Vinci, Kepler e Galileu – coroadas pela chave-mestra de Newton – abriram
tantas portas e permitiram sucessos tão retumbantes e tão, digamos, palpáveis?
Você ainda não sabia em quem jogar a culpa? Pois aí está: jogue-a nos físicos.
Mas Alfredo Aveline, por esses azares da sorte, deu de nascer noutra época – “a
melhor das épocas e a pior das épocas”, segundo Dickens. Assim sendo, a busca
inicial por um ponto de partida inesperado talvez tenha nos conduzido a uma
paisagem (ou paisagens: tanto a “física” quanto a mental) inapropriada. Suponhamos,
por exemplo, que, ao invés de visualizá-lo como um Newton de bombachas sendo
desperto pela queda de uma maçã sem agrotóxicos plantada em uma comunidade
meio hippie da Serra gaúcha, tivéssemos imaginado nosso físico-que-vai-virar-lama na
pele de Fritjof Capra, sentado – estático, quase extático – em frente às águas
translúcidas de uma baía recôndita, numa praia de areias faiscantes, vendo uma
chuva de estrelas cadentes e, com uma pequena ajuda de generosas doses de
substâncias obtidas a partir de “plantas de poder”, conseguindo vislumbrar, naquele
espetáculo cósmico, o desvendamento de todos os mistérios da Dança de Shiva. A
Verdade em cada folha tremeluzente e em cada grão de areia. Bilhões de universos
sumindo e ressurgindo em cada onda que se esvanece. O monte Meru vestindo um
chapéu de nuvens. O casamento do céu e do inferno, da religião com a ciência – tese,
antítese e síntese reluzindo num átimo, num átomo. Que ótimo: a mente mais cheia
que nunca de Vazio.
Bem, é provável que estivéssemos então nos aproximando mais da trilha biográfica
que devemos seguir desde o caos até o lama. Aveline, afinal, mais do que um “sir”,
como Newton, era um físico quântico, como Capra. Dessa forma, seus paradigmas
científicos já não possuíam aquela solidez tão rígida quanto vulnerável:
assemelhavam-se mais aos alicerces de prédios japoneses erguidos em zonas de
terremoto – preparados para o abalo. O imaginário lisérgico – sólidos céus de
marmelada hospedando improváveis sóis azuis – tão pouco era um elemento estranho
à sua paisagem mental. Incenso, I Ching, hinduísmo, plantas de poder, praias secretas
de Santa Catarina, chapéus de nuvens e chapéus de cobra – o futuro lama estava
preparando seu próprio salto quântico. Conhecia os tais Capra e Castañeda e a tal da
Física. Sua vida, como a de todos nós daquele bando disperso, era meio Ying, Yang,
Jung, etc e Tao.
Nesse sentido, Padma Samten estava – como talvez sempre tenha estado – afinado
com o seu tempo. Ele ia reproduzindo, no privado, a trajetória que tornara o budismo
um fenômeno “público” no Ocidente. Sim, porque, antes da figueira bodhi, dos
templos e pagodes às margens do Ganges ou à sombra do Fuji, antes dos jardins zen
e das encostas nevadas do Himalaia, antes da estátua luminescente de
Padmasambhava ou das fotos do Potala radioso como um pote ao final do arco-íris, as
primeiras imagens que os ocidentais viram do budismo surgiram na Califórnia beat e
proto-hippie. O doutor D.T. Suzuki desembarcando em San Francisco com a roupa do
corpo e o poder da mente. Pôsteres de monges ardendo em chamas no Vietnã.
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Mestres tibetanos cruzando o Pacífico para lançar as bases de um império atlântico.
De repente, tudo Zen: Timothy Leary lendo o Bardo Thodol sob efeito de LSD, Allen
Ginsberg recitando sutras e tentando levitar o Pentágono, Allan Watts revelando a um
mundo multicolorido o poder da flor e O Significado da Felicidade, Gary Snyder
descobrindo, “numa bela tarde”, que ele “e o excelso ganso” eram “apenas Um”.
Todo mundo comendo arroz integral. Ok, as misses liam O Pequeno Príncipe –, mas os
hippies liam Sidharta, de Herman Hesse.
Estranho pensar como, de certa forma, a triha sonora mais apropriada (no sentido
histórico) para esse movimento talvez seja o som das botas militares chinesas
marchando sobre Lhasa. O mundo é que nem aquela marca de cerveja: desce
redondo. O budismo nasce na Índia, cruza os Himalaias, chega ao Tibete, se espraia
até o Japão. Japoneses cruzam o Pacífico trazendo o Zen para a Califórnia, o limite
mais ocidental do Ocidente. A China invade o Tibete, e os monges tibetanos seguem a
trilha dos monges japoneses auto-exilados. A Califórnia os acolhe.
Mas, como aprendizes de meditação, estamos perdendo o foco em meio ao turbilhão
de imagens. Tratemos de reencontrar Alfredo Aveline. Sim, lá está ele, fundando,
junto com um bando de gente que, olhando assim de longe parecem hippies, uma
cooperativa para a produção e distribuição de alimentos ecológicos, estabelecida, não
por acaso, ao lado de uma sociedade de proteção ao meio-ambiente, a qual ele
também esteve sempre ligado. Agora podemos vê-lo comprando uma terra na Serra
gaúcha, outra vez em grupo. Se um destino glorioso não estivesse reservado para
aquele lugar, seus primeiros habitantes europeus não o teriam batizado de Rodeio
Bonito, não é mesmo?
Aveline vai virando um desobediente civil. Um Thoreau sem lago, mas menos ranzinza
também. É evidente que em breve o veremos em zazen, comendo só arroz,
meditando em salas nuas, sorvendo chá que não leva cogumelos – leva mais longe. A
maçã começou a despregar-se do galho. Já está em queda livre, pronta para arrastar
consigo o mundo da Física. Então, o Vazio se instala onde antes havia uma biblioteca
de Babel. Como Newton, quando viu a luz branca dispersar-se em fachos luminosos
de todas as cores após passar pelo prisma, Aveline viu – outra vez na direção inversa
– toda uma sabedoria e uma vivência multicoloridas tornarem-se, subitamente,
brancas. É isso: deu-lhe um branco. O branco total radiante.
O Zen levou-o assim tão longe. Mas não era o bastante. Afinal, ele nunca foi um
sujeito assim tão zen, sabe? Nos anos 60, ele não ia ficar só naquele de “se senta, se
senta”. Certo, a piadinha é infame, mas foi contada com um propósito nobre: para
revelar que Aveline percebeu que a solidão e o recolhimento típicos do Zen não eram
– pelo menos não para ele – o veículo mais apropriado para levar benefícios para
todos os seres. O Zen adquiria, talvez, um aspecto excessivamente individualista. O
budismo tibetano reluzia, por outro lado, como um portal de Internet
instantaneamente acessível, um Napster espiritual, por assim dizer: o download é
gratuito. Você jamais arrancaria essas afirmações do lama – nem desse sobre o qual
estamos falando, nem de nenhum outro. Afinal, se nada existe e nada importa, como
alguma coisa pode ser melhor do que a outra?
De todo modo, com certeza foi melhor para nós – aqueles que o ouvem – que o lama
Padma Samten tenha feito a transição do Zen para o budismo tibetano. Porque agora
ele está lá em Viamão, nos arredores de Porto Alegre, entre figueiras solenes e seres
silentes (e sencientes), dando ensinamentos, gerando benefícios, acumulando
méritos. O lugar, como o Rodeio Bonito – que agora abriga Chagdud Tulku Rinpoche,
que se materializou em Três Coroas por influência das Três Jóias, do cosmos e do
lama Samten –, também tem um nome aproriadamente transcendente: Caminho do
Meio. As ressonâncias são múltiplas: não apenas uma das vias do budismo é o
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Caminho do Meio, como, em seus ensinamentos, transcritos nesse livro, o lama
Padma Samtem obtém a preciosa alquimia do meio-termo. Ele consegue estabelecer
uma ponte entre incompreensibilidade e mediocridade, no sentido mais luminoso
dessa palavra em geral tão mal empregada.
É isso: o lama nos revela um budismo tibetano pret-à-porter. Um budismo para a vida
cotidiana, para uso diário, sem contra-indicações. Não um budismo alta-costura para
momentos especiais, mas um budismo que nos dá o pão espiritual nosso da cada dia,
o trivial variado. Um budismo plenamente medíocre, para seres medíocres como nós.
Tudo bem se os Engenheiros do Hawaii já disseram que o Papa é pop – o lama Padma
Samten com certeza também é. Seus exemplos prosaicos, luminosos, sua “devoção”
ao “mestre” Charles Bronson, suas tiradas, suas piadas, seus “potes defeituosos” –
tudo é muito claro, muito palpável.
Se Stephen Hawkins conseguiu elucidar para os não-iniciados os mistérios do tempo,
se Fritjof Capra desvendou para nós a física quântica, se Stephen Jay Gould
compartilhou conosco as complexidades da evolução biológica –, e todos o fizeram
com clareza irreparável –, acabou-se o tempo dos livros impenetráveis. Quando você
ler alguma coisa e não entender, não duvide mais: a culpa não é sua – é do autor.
Leia Meditando a Vida e perceba como o lama Padma Samten se junta àqueles que
vieram ao mundo sabendo que quem não se comunica, se trumbica.
Estava pensando em terminar esta apresentação, já longa demais, com alguma
imagem futebolística – já que o lama, tão moderno e tão bacana, adora o velho
esporte bretão. Cheguei a imaginar algo que me desse o gancho para descrever a
torcida gritando: “Ucho, ucho, ucho, o lama é gaúcho.” Mas concluí que estava
incumbido de uma missão superior: a de revelar ao mundo, a plenos pulmões que:
“Ista, ista, ista, o lama (além de tudo) é gremista!” Provavelmente, o único lama do
mundo que consegue explicar o sentido da vida descrevendo um gol do Grêmio – num
Gre-Nal, é claro.

Eduardo Bueno

Introdução

As práticas espirituais só adquirem sentido na vida cotidiana. A relação com nossos


pais, esposa, marido, filhos, colegas de trabalho e demais seres em todos os planos
da existência, material e sutil, é o verdadeiro termômetro da prática. Um sinal de que
há algo errado é nos considerarmos espiritualizados, praticantes disciplinados e
zelosos e, ainda assim, sermos tomados por desinteresse e falta de compaixão em
relação aos seres que nos rodeiam.
No sentido último, o isolamento e a prática formal são artificialidades – só se
justificam por eventualmente proporcionarem a remoção de obstáculos. São
remédios, têm princípios ativos e, por isto, têm também efeitos colaterais. Quanto
antes nos livrarmos dos remédios e atingirmos nossa condição natural de saúde,
tanto melhor. Todas as construções espirituais, ainda que meritórias, são esponja,
água e sabão; ou seja, dispensáveis ao final da limpeza.
Na primeira das seis partes de "Meditando a Vida", vamos examinar as várias formas
de introdução aos ensinamentos do Buda. Trata-se de uma abordagem geral,
apontando os aspectos sutis contidos nas diferentes maneiras de apresentar o
pensamento budista.
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Em algumas introduções ao budismo a ênfase é colocada em duka, ou seja, no
sofrimento, e também no que dispomos de positivo para superar duka – as
capacidades latentes de nossa vida humana preciosa. Outras vezes, o foco está no
exemplo do Buda. Pode-se também compreender o budismo examinando diretamente
o que o Buda ensinou, ou seja, as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho
Óctuplo. Outros mestres introduzem os ensinamentos através de instruções sobre
meditação e prática formal; há os que fazem a abordagem através da natureza de
bondade, amor e compaixão naturalmente presentes em nosso coração, explicando a
transcendência e como isso espelha a essência de Buda.
Há ainda o método Vajraiana, no qual o foco da meditação é dirigido às deidades que
manifestam as qualidades da natureza de Buda, inseparáveis de nossa natureza – os
Yidams. Outros grandes mestres desenvolveram a habilidade de apresentar o
budismo como o reconhecimento direto da natureza ilimitada presente em todas as
manifestações.
Na segunda parte aprofundamos a experiência de nosso cotidiano. "Todos os seres
desejam ser felizes e evitar os sofrimentos", diz Sua Santidade, o XIV Dalai Lama; se
tomarmos esta motivação como referencial, teremos um instrumento seguro para
avaliar nossas ações cotidianas. Reconhecendo com profundidade e sabedoria o que
de fato estamos fazendo e a forma de ação que estamos usando, poderemos nos
direcionar para agir como geradores de equilíbrio e felicidade. O tema desta segunda
parte é a maneira como os ensinamentos budistas proporcionam aprendizado
incessante a partir da vida cotidiana.
A terceira parte de “Meditando a Vida” é dedicada ao processo de educação à luz do
Darma. O processo da educação em nossa cultura apresenta um paradoxo. Quando a
educação tradicional se estabelece em nossa mente, surgem estruturas cognitivas
que nos permitem raciocinar e reconhecer de forma correta a realidade circundante.
Estas estruturas, entretanto, não são totalmente abrangentes; ao se estabelecerem,
criam um processo automático de construção da experiência de realidade, deixando-
nos aprisionados em suas opções.
A estreiteza das opções só é percebida quando as estruturas cognitivas não mais
proporcionam resultados satisfatórios, ou seja, quando a impermanência desaba
sobre o conhecimento que antes parecia seguro e permanente – como acontece
quando teorias científicas e paradigmas envelhecem. Vemos aqui que o problema não
está num determinado tipo de estrutura, mas no fato de que o conhecimento baseado
em quaisquer estruturas separativas é naturalmente frágil e precisa manter claro o
reconhecimento do limite de suas verdades.
O processo automático, involuntário e, em geral, completamente oculto de atribuição
de sentido estabelece uma sutil forma de prisão. No budismo, educar é libertar.
Libertar das estruturas que conduzem nossa forma de manifestar a experiência de
realidade e que criam nossos impulsos de ação sem nos consultar e sem nos avisar.
A quarta parte de "Meditando a Vida" apresenta de forma breve e direta as várias
etapas do caminho da meditação. A meditação não consiste de um único tipo de
prática, existem diferentes formas de meditar. O conjunto de práticas constitui um
caminho com várias etapas. Cada estágio leva a um processo mais sutil que o
anterior. O objetivo é o refúgio final e perfeito na natureza de Buda.
A quinta parte de “Meditando a Vida” explica como lidar com as crises e conflitos.
Todos os ensinamentos budistas tratam da superação de obstáculos e crises através
da percepção da liberdade da mente. As crises fazem parte do mundo dual, elas se
manifestam nas identidades separativas criadas por nós mesmos. Criamos
identidades e estabelecemos pontos que não queremos que se alterem nunca. A crise
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acontece quando a impermanência atinge um destes aspectos rígidos.
O budismo considera as crises benéficas por permitirem que nos flexibilizemos, que
aumentemos nossa percepção de liberdade. Quanto maior a liberdade, menor a
quantidade e intensidade das crises. Quando se atinge a liberação, as crises cessam,
porque a natureza absoluta não entra em crise.
Na sexta parte analisa-se a paz no cotidiano. A paz faz parte de nossa essência, é o
nosso estado natural. Perdemos a paz quando criamos identidades, quando nos
fixamos em referenciais, estabelecendo coisas que não queremos que mudem. Cada
vez que a impermanência se manifesta nestas fixações, nossa paz transitória é
abalada. A verdadeira paz só é obtida com a iluminação; mas, antes disso, é possível
experimentar momentos de paz. Para isso, é necessário cultivar a flexibilidade,
trabalhar contra as fixações.
“Meditando a Vida” é uma compilação de palestras. O trabalho de organização,
gravação, transcrição, revisão e edição do texto foi realizado generosamente por
muitas pessoas de diferentes cidades, todas com o coração compassivo dos
bodisatvas e brilho no olhar. Gostaria de agradecer especialmente a Nelson Padma
Yeshe, Angelita Padma Palmo, Eduardo Padma Dorje, Eliane Padma Prajna, Bruno
D’Avanzo e Sueli, Gustavo Guerra, Fabiane Padma Iatsen, Maria Bernadete Brandão e
Mara Rejane Russel. A edição final do livro é de Lúcia Brito, com sugestões de
Eduardo “Peninha” Bueno.
A motivação para a transformação destas palestras em textos foi a percepção de que
o cotidiano traz incessantes e maravilhosas oportunidades para praticarmos lucidez e
profundidade. Entretanto, para que isto aconteça, é necessário observarmos alguns
pontos através dos quais nossa visão e ação passam a incorporar a sabedoria budista
de trazer benefícios a todos os seres. Apresentamos o caminho que consiste em
parar, serenar o corpo, a fala e a mente e desenvolver lucidez progressiva sobre
nossa natureza e sobre a natureza de todas nossas experiências. No início nossas
experiências são vistas como internas ou externas, no fim do caminho elas são
reconhecidas de modo incessante como manifestações do brilho e silêncio da unidade
primordial.
Prostro-me diante dos mestres que, inseparáveis da natureza do silêncio, refugiados
no reconhecimento do brilho e liberdade primordial, vivem a inseparatividade
compassiva, manifestando a inesgotável energia de ação que brota da motivação de
trazer beneficio a todos os seres. Sua natureza é tão ampla que nenhum ser deixa de
ser alcançado. Esta natureza ampla é a natureza ilimitada de Buda, além de espaço e
tempo, além de vida e morte, além de forma, reconhecimento e nome. Prostro-me
diante de todos os mestres vivos que, em carne e ossos, manifestam milagrosamente
a natureza incessante de todos os Budas.
Lembrando a experiência cíclica de sofrimento pela qual os seres passam quando
perdem o reconhecimento de sua natureza original, volto a mente e o coração a todos
os Budas que trabalharam incessantemente e seguem produzindo benefícios
incomensuráveis, ilimitados e incessantes, e refaço o voto de trabalhar para que o
caminho do nobre sentar silencioso possa seguir produzindo o fruto direto da lucidez
ilimitada, mesmo em tempos de degenerescência. Que os seres possam, da forma
mais rápida, reconhecer-se na experiência original que nunca perderam – pois esta
não tem início, nem tempo, nem fim – e, assim, libertar-se da experiência onírica de
existir em uma roda da vida, imersos na impermanência.

Padma Samten

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Caminho do Meio, Viamão, fevereiro de 2001

I. Breve apresentação do budismo

O Buda da Compaixão é algumas vezes apresentado com mil braços. Estes braços
representam suas qualidades ilimitadas para socorrer os seres. Sua motivação de
trazer benefícios é tamanha que ele desenvolveu a capacidade de utilizar os múltiplos
aspectos da experiência convencional limitada como portas para a experiência final
do reconhecimento da natureza ilimitada.
Segundo a cosmologia budista, estamos vivendo uma era afortunada, na qual mil
budas surgirão em seqüência. Em contraste aos tempos afortunados, há longas eras
de escuridão, nas quais nenhum ser consegue ultrapassar a névoa da ilusão e do
sofrimento.
Dentro de nossa era afortunada, estamos vivendo os tempos do Buda Sakiamuni.
Estes tempos estão caracterizados pelo fato de que os ensinamentos de como
ultrapassar o véu de ilusão que se apresenta diante de nossos olhos estão presentes
e preservados desde o período histórico da manifestação do Buda na Índia.
Numa era anterior à nossa, havia um praticante chamado Sumeda. Certa vez, correu
a notícia de que o Buda daquela época, chamado Dipancara, em breve passaria pela
aldeia de Sumeda. Todos se colocaram em atividade para arrumar as estradas e
embelezar os locais por onde o Buda passaria. Mas não houve tempo. Enquanto eles
trabalhavam, o Buda chegou a pé, com sua comitiva. Sumeda percebeu que o Buda
teria que cruzar por um trecho enlameado da estrada e colocou seu manto sobre a
lama.
Quando o Buda passou diante de Sumeda, parou e olhou para ele. Neste momento,
Sumeda percebeu a bondade e a capacidade ilimitadas de produzir benefícios aos
seres que Dipancara emanava. Silenciosamente, Sumeda fez para si mesmo o voto de
praticar incessantemente a bondade, de modo a manifestar as qualidades do Buda no
futuro. Dipancara, percebendo o voto de Sumeda, reconheceu-o como bodisatva e
disse que, numa vida futura, ele atingiria a condição de Buda com o nome de
Sakiamuni.
Sumeda manifestou-se vida após vida como um bodisatva, praticando compaixão,
bondade, generosidade e humildade. Muitas vezes ofereceu sua vida e seu corpo para
benefício e alimento de outros seres. Na última vida como bodisatva, manifestou-se
no mundo dos deuses da felicidade. Com sua visão abrangente, estes deuses
perceberam o sofrimento dos seres humanos, presos à impermanência,
insatisfatoriedade, doença, decrepitude e morte. Então cantaram ao bodisatva,
pedindo que fosse ao mundo dos humanos para socorrê-los em suas aflições.
O bodisatva concordou e disse que completaria a profecia de Dipancara, tornando-se
o Buda Sakiamuni. Nesta ocasião, voltou-se para o bodisatva Maitrea e disse-lhe que,
quando os ensinamentos que ele desse no reino humano desaparecessem, seria a vez
de Maitrea manifestar-se como Buda. A seguir, o bodisatva desceu do céu dos deuses
mundanos por uma escada luminosa, acompanhado de uma comitiva.
Neste momento, no reino dos Sakias, na Índia, a rainha Maya teve um sonho, no qual
um elefante branco penetrava em seu ventre pelo lado direito. Ela acordou o marido,
o rei Sudodana, e lhe disse: “Estou grávida.” O príncipe Sidarta nasceu apresentando
sinais extraordinários. Viveu nos palácios reais em grande felicidade, até o momento
em que, defrontando-se com as evidências de doença, decrepitude e morte, o voto
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feito perante Dipancara amadureceu, produzindo no príncipe o impulso de se dedicar
à vida espiritual. Assim, foi viver na floresta.
Após um período de vida ascética, Sidarta libertou-se completamente de todos os
padrões automáticos que produzem as experiências convencionais de realidade,
extinguindo o sofrimento e atingindo a onisciência – a condição idêntica de todos os
Budas do passado e do futuro. Enquanto meditava sob a figueira sagrada, desafiando
Mara, o senhor da ilusão, Sidarta enfrentou e superou muitos desafios. No último
encontro com Mara, este disse a Sidarta que a condição de liberdade que ele havia
atingido só ele poderia conquistar, que ele guardasse aquele conhecimento para si,
pois ninguém mais entenderia. Compreendendo que todos os seres têm a natureza
ilimitada, Sidarta colocou-se de pé para levar sua experiência de liberação a todos os
seres. Tornou-se então o Gautama (o Abençoado), o Buda Sakiamuni (o sábio
silencioso da família dos Sakias).
A partir dali, o Buda Sakiamuni dedicou-se a socorrer os seres incessantemente. Até o
fim da vida, aos 80 anos, proferiu 84 mil ensinamentos. Ao longo dos 25 séculos que
nos separam daquela época, a transmissão de sua experiência foi preservada,
praticada e ensinada de forma ininterrupta, geração após geração. Adaptando-se às
diferentes mentalidades dos seres, os ensinamentos do Buda foram apresentados de
forma variada. A seguir, alguns destes enfoques.

Remédio para duka


O budismo pode ser apresentado como um remédio para tratar a perda do
reconhecimento de nossa natureza ilimitada. Seu efeito é nos curar da experiência de
existência limitada, com etapas de nascimento, crescimento, envelhecimento, doença
e morte.
Quando o Buda era um príncipe, percebeu que todos os seres sofriam de uma mesma
doença. No Oriente esta doença tem um nome específico – duka –, mas não existe
termo correspondente nas línguas do Ocidente. Embora todos tenhamos a doença,
podemos não perceber. Trata-se de algo como alegria e sofrimento inseparáveis. Na
visão budista existe uma única palavra para estes dois conceitos, eles não podem ser
separados. Em nossas línguas acontece o contrário, os conceitos estão separados e
não podem ser unificados em um único termo.
Duka pode ser explicado de forma simples a partir do fato de que, quando temos
alegrias, elas constituem-se sementes de sofrimento. Esta é uma experiência cíclica –
é como uma roda girando entre as polaridades de estar bem e estar mal. Gostaríamos
de encontrar o freio quando estamos na região de felicidade, e gostaríamos de
acelerar quando estamos infelizes. Às vezes achamos que encontramos um regulador
de velocidade, mas logo surgem problemas nessa tentativa de controle.
Um exemplo é o da mulher que deseja ter um filho. Quando o bebê nasce, ela pensa:
"Que maravilha!" Depois ela percebe que tudo que acontece ao filho a perturba
intensamente. O sofrimento surge na exata medida daquela alegria. É assim em todas
as relações humanas.
Outro exemplo: uma pessoa vê um ser maravilhoso, fantástico, inacreditável. Ela
pede aos deuses: "Por favor, deixem-me chegar perto daquele ser maravilhoso." Se os
deuses estão de bom humor, podem até conceder alguma interação… E logo a pessoa
se descobre vigiando aquele ser, absolutamente insegura em relação à sua tênue
conexão com ele. O mais curioso é que a intensidade da vigilância, a intensidade do
sofrimento causado pela vigilância e a intensidade da insegurança quanto aos rumos
da relação correspondem exatamente à atração exercida por aquele ser. Ou seja,
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quanto maior a atração, maior a vigilância, o sofrimento e a insegurança.
Chamamos isto de duka. Não há como evitar esta inquietação. Para cada
característica favorável que percebemos no mundo, existe um problema
correspondente, exatamente no mesmo grau.
Outro exemplo: olhamos para uma caixa de doces deliciosos e pensamos: "Que
delícia!" Podemos contemplar os doces e examinar cuidadosamente nossos apegos,
ver como surgem as reações condicionadas. Tiramos a tampa da caixa, e surgem
energias nítidas dentro do nosso corpo; tapamos, e as energias se vão. É um exercício
interessante.
Cada pequeno objeto, cada pedrinha na paisagem, tem uma correspondência interna
em nós na forma de energias que percorrem nosso corpo e nervos. A isto chamamos
ventos internos. Nosso apego não é às coisas, mas aos ventos internos que elas
provocam. Os ventos internos são a experiência íntima dos objetos e também dos
seres. Esta dependência e apego são a base de duka.
Os problemas ecológicos são exemplos de duka. Não desejamos destruir a natureza.
Queremos apenas meios de transporte, adubos, plásticos, papel, refrigeradores... Mas
isso gera problemas. Cada uma das ações humanas tem um objetivo, mas cada uma
delas tem um resultado também. Isso é resumido por duka.
No sentido geral, cada um dos seres sente duka em seu corpo. Cada um nasce,
envelhece, adoece e morre. No sentido budista, quando a morte vem, não é o fim.
Dentro do círculo representado pela palavra duka, há uma semente de intenção que
perdura, o que morre é um personagem. É como um filme que acaba no cinema;
outras imagens vão surgir na tela após a projeção do filme. Se há um cinema, outro
filme sempre entra em cartaz.
Temos um processo infindável de vida, nascimento, decrepitude, morte, vida. Não
precisamos acreditar no renascimento. Pode-se ficar em uma morte apenas, mas
ainda assim não conseguimos frear a doença de duka.
Todos os aspectos do budismo são propostos como remédios para esta doença. É por
causa dela que surgiu o budismo. Observando de forma ampla o sentido de duka,
percebemos que o Buda estudou a doença detalhadamente e descobriu uma natureza
que está além de toda esta complicação.
Podemos ter uma noção disto da seguinte forma: reconhecemos que fomos bebês,
criancinhas, crianças maiores, adolescentes, adultos – e em cada etapa é como se
houvesse toda uma visão de mundo correspondente. Temos uma identidade, olhamos
com estranheza as vidas que os outros levam. Do nosso ponto de vista, nunca
entendemos completamente o que os outros fazem.
Lembro de minha adolescência; eu olhava para as outras pessoas e achava suas vidas
muito estranhas, não conseguia entender por que as pessoas se portavam daquela
forma. Via crianças sendo maltratadas e tinha uma sensação de grande vantagem por
ter minha própria mãe. Quando estamos imersos em nossa forma de ver as coisas, só
podemos ver de forma estranha o modo de vida dos outros.
Então percebemos que nossas visões anteriores eram visões particulares. Ao
examinarmos as várias fases de nossa vida, percebemos que as várias visões são
perfeitas enquanto acontecem, mas não são de forma alguma estáveis, permanentes.
Quando elas mudam, pode surgir uma pergunta: "O que permaneceu ao deixarmos de
ser crianças e nos tornarmos adultos?" O que permanece é um misterioso brilho
interno. O Buda usou o exemplo da criança, do adolescente e do adulto. Ele apontou
esta essência que vai transitando de um para outro, esta capacidade de discriminar,
como a qualidade que está mais próxima do permanente.
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Se quisermos ver o que é budismo de fato, a partir deste processo, não devemos
pensar em épocas, pois a experiência de duka não está limitada pelo tempo. O Buda
histórico, Buda Sakiamuni, não foi o primeiro Buda. Conforme seu relato, ele serviu a
incontáveis Budas no passado e deles ouviu instruções.
Ao aprofundarmos o significado da palavra Buda, percebemos que os primeiros Budas
surgiram quando as complicações surgiram. O budismo não é messiânico, o Buda não
veio anunciar coisa alguma, ele veio manifestar uma liberdade que a maior parte dos
seres não vê. O budismo surge à medida que os Budas periodicamente aparecem e
dão ensinamentos.
Algumas vezes as pessoas questionam os ensinamentos espirituais da seguinte
forma: "Quem foi o fundador do budismo? Quando e onde surgiu o budismo? O
budismo acredita em reencarnação? Que tipo de preceitos morais são praticados pelo
budista? Qual a diferença entre tal e tal escolas budistas?" Esta análise do budismo
em forma de questionário talvez não ajude muito.
Para o cristianismo existe o Antigo Testamento e a tábua de Moisés, que ele recebeu
de Deus no topo do Monte Sinai. Os ensinamentos cristãos surgem quando Deus se
apresenta a Moisés e revela a verdade. Esta verdade é vista como eterna, imutável e
exprimível em palavras. O cristianismo depende da Bíblia, ela expressas a verdade
para o cristão.
No budismo não existe uma bíblia. Os ensinamentos visam a remover o sofrimento
originado por duka; quando isso acontece, quando o sofrimento gerado por duka
realmente cessa, atinge-se uma situação além de espaço e de tempo, de escrituras e
profetas. Atinge-se a liberação da existência cíclica. E o que fazemos quando estamos
liberados? A primeira coisa é abandonar o remédio que nos curou – os ensinamentos.
O budismo se extingue com seu efeito. Quando a liberação acontece, o budismo some
completamente.
Existem várias imagens para descrever este processo. A imagem do barco, por
exemplo. Existe o rio do sofrimento, a margem do sofrimento e o barco da liberação,
que leva à margem da liberação. Tudo o que fazemos é atravessar o rio e abandonar
o barco. Não teria sentido ficar no barco. Quando chegamos ao destino, saímos do
barco. O que fazemos numa viagem de ônibus? Será que pensamos em ser fiéis ao
ônibus? Não. Ao final da viagem abandonamos o ônibus.
Quando a pessoa se vincula aos ensinamentos budistas, não está se filiando a uma
experiência sectária. Está apenas em busca da liberação da existência cíclica – o Buda
é somente um guia. Sua função é ajudar as pessoas a percorrer o caminho até a
liberação do sofrimento de duka. O Buda completou o trajeto. Depois, durante mais
de quarenta anos, ensinou como cruzar para a outra margem.
Durante a vida do Buda, as pessoas guardavam de memória o que ele falava. Quando
Buda desapareceu, elas registraram em papel. E surgiu uma vasta obra escrita
baseada nos ensinamentos orais do Buda. Muitos seguidores escreveram muitos
livros, sempre lembrando que "a sabedoria não está nos livros". Estudamos os textos
minuciosamente e sabemos de cor que "a sabedoria não está nas palavras".
Agora os ensinamentos chegaram à língua portuguesa. Traduzimos do tibetano,
chinês, japonês, sânscrito ou páli, para o português. Parece contraditório traduzir
textos sabendo que a sabedoria não está lá. É que, ainda que não esteja, os textos
podem umedecer as sementes de sabedoria que temos naturalmente. Esta é a sua
função.

Buda
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Outra apresentação do budismo pode ser de forma positiva. Em vez de começar com
o sofrimento de duka, explicamos o budismo através da palavra buda. O que é buda?
A natureza completamente liberta dos hábitos, dos condicionamentos grosseiros e
sutis. Como sabemos que somos presas de tais comportamentos? Basta olharmos
para uma caixa de doces. Pensamos: "Muita gordura, muito açúcar, isso não faz bem."
Mas, ainda assim, percebemos que os doces seguem nos atraindo,
independentemente de nossas convicções e tratados médicos a respeito, ou de
sabermos por experiência própria que doces nos deixam enjoados após comermos
alguns a mais.
Cada vez que decidimos não mais fazer alguma coisa, dizer não a algo, existe uma
região – onde surgem os impulsos – que parece não ser afetada pelas decisões.
Podemos dizer não ao cigarro, ao álcool, ao videogame, mas estas coisas seguem nos
atraindo. Podemos dizer não à inveja, ao desejo/apego, ao cansaço, à ganância, à
raiva ou ao orgulho. Mas parece que tudo continua funcionando da mesma forma,
apesar de nossa decisão.
Algumas vezes brinco que Charles Bronson é meu mestre. Faço o teste, lembrando:
"Lamas não podem matar"; daí ponho a fita no vídeo, coloco uma estatuazinha do
Buda sobre a TV e fico rezando durante o filme, mas dez minutos depois surge o
impulso: "Mata, mata logo, vai!" Por isto Charles Bronson é um mestre, ele aponta a
violência oculta, mas presente. Aponta a fragilidade latente.
Isso quer dizer que temos emoções perturbadoras. E então descobrimos o sentido de
uma palavra muito importante – carma. Porque, se estudamos a liberação, temos que
estudar o processo oposto, o aprisionamento, que chamamos de carma.
Ao observar as grandes poesias e músicas, vemos que são sempre sobre nossos
impulsos: "Eu não deveria fazer tais coisas, mas elas são mais fortes." São sempre
sobre duka, e há duas correntes opostas: "Aqueles cinco minutos valeram a pena", e
"não, aquilo nunca mais, o custo é demasiado". Por que esses poemas, músicas e
ficções nos atraem? Por que vivenciamos aquilo? Por que aquela energia percorre
nossas veias? Isso acontece porque estamos presos no mesmo tipo de situação
mental. Então, quando falamos do Buda, inevitavelmente temos que falar de carma.
Estamos inevitavelmente presos no mesmo tipo de situação descrita na música ou no
romance.
Quando olhamos nossa experiência e reconhecemos tudo isso, vemos que nossa vida
tem sido sempre composta de muitos ciclos desse tipo. E de novo voltamos àquele
mesmo lugar: "Por que fui atropelado?", "por que ela me deixou?", "por que sempre
faço tudo errado?". E então começa tudo de novo, e dizemos: "Ah, agora já sei como
é." E as coisas vão assim.
Um mestre já falecido dizia: "Se você culpa seu marido por seus problemas, você tem
uma condenação perpétua – os próximos vão ter a mesma cara, os mesmos
problemas do primeiro." Com namoradas é assim também. Podemos resumir este
processo em uma palavra – carma. É um processo muito sutil, não é uma lei que nos
condena. Se fosse assim, não existiria a palavra Buda. Buda não é o ser, não é uma
pessoa. Buda é uma condição de libertação de todos esses impulsos.
O Buda Sakiamuni disse: "Não acreditem no que eu digo, testem por si próprios." Os
ensinamentos não devem ser vistos como uma verdade a ser aceita. Devemos
escutar e testar à nossa maneira.

Ensinamentos
A fala do Buda, seus ensinamentos e explicações sobre o remédio para duka seriam
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uma terceira forma de apresentação do budismo. É uma apresentação através das
Quatro Nobres Verdades e do Nobre Caminho Óctuplo.
As Quatro Nobres Verdades são: a experiência de existência cíclica; o reconhecimento
de que a experiência cíclica é criada artificialmente; a afirmação da possibilidade de
dissolução da experiência da existência cíclica; o Caminho Óctuplo, que leva à
dissolução da fixação na experiência de existência cíclica. Podemos apresentar o
budismo através destas quatro verdades, e o caminho para descobrir a liberdade é o
Nobre Caminho Óctuplo.
O primeiro passo do Nobre Caminho é a decisão de abandonar a existência cíclica e a
impermanência. É muito difícil chegar a este ponto. A maior parte do tempo estamos
preocupados em ganhar jogos. Significaria dizer a um gremista que, se abandonasse
o time, não sofreria mais. Mas a pessoa diria: "Se eu abandonar o Grêmio, não sou
mais eu. E aí? Vou desaparecer!" A primeira etapa é muito difícil, é como saltar de um
abismo. Parece haver um grande sofrimento. Se temos coragem para ultrapassar este
obstáculo aparente, nossa vida muda por completo. Curiosamente, é o oposto do que
costumamos pensar.
Apenas se liberarmos nossa conexão com a roda da vida é que estaremos livres de
fato. Presos à roda, podemos querer reconhecimento, dinheiro, uma dúzia de CDs –
buscamos essas coisas. É como falar com alguém que está torcendo por seu time
num campeonato de futebol. A pessoa quer ser campeã da Libertadores, campeã do
mundo, ou, como naquele decalque muito engraçado que vi um dia: "Grêmio,
Campeão do Planeta". Se tiramos isso da pessoa, parece que a vida perde
completamente o sentido. O amadurecimento desta etapa tem certa conexão com
outras tradições religiosas.
Se a pessoa realiza o segundo passo do Nobre Caminho, vê-se liberada dos três
impulsos que produzem as ações negativas da mente: pensamentos heréticos,
carência e aversão.
Quando atinge a liberdade correspondente ao terceiro passo, o praticante está livre
dos quatro defeitos da fala e das emoções: falar inútil, mentira, maledicência e
agressão verbal.
Quando atinge a realização do quarto passo, a pessoa liberta-se das três formas de
manipulação de corpo e das identidades, que causa mal para si e para os outros:
matar, roubar e manter conduta sexual imprópria.
No quinto passo o praticante se vê amparado pelo que poderíamos chamar de sorte. É
como se o universo inteiro começasse a conspirar a seu favor. Isto se dá pela prática
das quatro qualidades incomensuráveis e das seis perfeições. As quatro qualidades
são: compaixão, amor, alegria e equanimidade. As seis perfeições são: generosidade,
moralidade, paciência, energia constante, concentração e sabedoria. Ao vivenciar a
amplidão natural da mente, as qualidades e perfeições se tornam naturais e não
exigem esforço. As ações realizadas dentro desta experiência de inseparatividade
produzem a natural retribuição positiva do universo.
A maturidade do sexto passo – a meditação – dá à pessoa grande estabilidade,
saúde, vigor físico e energia. Esta energia estável significa também grande destemor.
Quando a pessoa atinge a maturidade relacionada ao sétimo passo do Nobre
Caminho, consegue conceber a natureza divina de todas as coisas. Ela atingiu a
perfeição da atenção e vê com nitidez o aspecto convencional e o aspecto ilimitado
como inseparáveis no mesmo fenômeno. Percebe o aspecto ilimitado dos grãos de
poeira, das estrelas, da mente, da aparência física dos seres, dos carrapatos, de tudo.
Também percebe o aspecto ilimitado presente nas manifestações abstratas.
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O oitavo passo significa a liberação completa de todos os sentidos convencionais.
Alcança-se a percepção estável do aspecto ilimitado e da inseparatividade de todas as
coisas, sem as limitações da visão convencional.
No sétimo passo ainda existe uma dupla verdade, pois há um aspecto convencional
em contraponto a um aspecto absoluto. Esses dois últimos passos são a iluminação.
No oitavo apenas não há mais a percepção dual.
Por curioso que possa parecer, existe um passo adicional ao Nobre Caminho Óctuplo.
Após percorrer as oito etapas sentado sob a árvore bodhi, a figueira sagrada, o Buda
levantou-se para ir ao encontro dos seres e ajudá-los. Foi a manifestação da
compaixão. O Buda levantou-se para o benefício de todos. Não é uma etapa de
liberação – a liberação está concluída no oitavo passo –, é o momento da ação
iluminada. Sidarta venceu os oito passos em seis anos de vida na floresta; como
Buda, exerceu a ação iluminada pelas aldeias e estradas por mais de quarenta anos.
Existe uma divisão comum de três modos de praticar o budismo. Começamos ouvindo
ensinamentos, depois meditamos sobre eles e a seguir agimos de acordo.
Se quisermos explicar de outra forma, ainda dentro desta perspectiva descritiva, o
budismo pode ser resumido em três palavras. A primeira é Buda, já explicada. A
segunda é Darma, os ensinamentos que surgem na mente de um Buda para
beneficiar os seres – como as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo.
Como um Buda tem liberdade perante o que para nós é dificuldade, examina o duka
dos outros seres e resolve os problemas, manifestando soluções. A terceira palavra é
Sanga, e está relacionada ao Buda.
A Sanga surgiu há 25 séculos, junto com o Buda. Se isto não tivesse ocorrido, não
estaríamos estudando estes ensinamentos hoje. A Sanga é como uma fogueira; a
chama não pertence a um ou dois dos paus queimando. É algo que surge a partir do
conjunto: se separamos um dos paus da fogueira, o fogo termina naquele pedaço.
Temos dificuldade em seguir o caminho da liberação sozinhos, mas quando estamos
juntos é mais fácil. Chamamos isso de Sanga. Ela é capaz de queimar nossos
problemas. No Zen a Sanga é comparada a um recipiente e um pilão. Um centro de
Darma, um grupo de praticantes, é o recipiente, e a vida cotidiana é o sucessivo bater
do pilão. Cada pessoa do grupo é um grão de arroz com casca. Dentro do recipiente
(o grupo de praticantes), o pilão (a vida) vai batendo, e as cascas do arroz (nossas
dificuldades) caem. Este é o efeito da Sanga.

Meditação
Uma das formas tradicionais de introduzir os ensinamentos, apresentada pelo Buda, é
o caminho da meditação tranqüilizadora. Simplesmente sentamos e praticamos o
primeiro dos oito passos, e os outros seguem-se sucessivamente. Com a mesma
aparência externa, sentados na posição de lótus, seguimos etapa por etapa.
Neste caminho a pessoa entra, senta e vai colhendo as experiências profundas
sentada. É o caminho que o Buda ensinou. Podemos chamar de diana, shine,
shamata, vipassana ou samadhi; podemos chamar de samassati, mahasandi,
mahamudra. De acordo com o conteúdo, com o que acontece por dentro. O Buda
descreve minuciosamente estes passos e diz: "Não acreditem!", ou: "Nos textos não
está a verdade! Testem!” Mas ainda assim o Buda descreve. O Buda diz que a
verdade não está nos textos, mas, dependendo da realização da pessoa, o texto pode
impulsionar essa realização, e aí pode ser útil de alguma forma.
Temos então o aspecto discursivo, que pode ser misturado com a prática formal e
com a prática no cotidiano. Cada um deles precisa dos outros. Se a pessoa só fica
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sentada, pode ficar apenas em confusão, é preciso algum tipo de instrução. O
obstáculo da meditação nunca é resolvido apenas na meditação. A pessoa precisa
ouvir os ensinamentos e meditar; mas só ouvir também não adianta, ela precisa
aplicar o que ouviu na vida cotidiana; aí a meditação funciona.

Bondade
Existe uma abordagem do budismo que consiste simplesmente em praticar bondade.
A bondade é uma capacidade de ir além da própria identidade e olhar os outros seres
a partir da perspectiva deles mesmos. É uma prática de transcendência ativa.
Usualmente, quando olhamos os outros seres, o fazemos desde a perspectiva do
agrado ou desagrado que nos causam. Isso é olhar os outros a partir de nós mesmos.
A prática da bondade é um exercício de transcendência ativa, vamos além de nós
mesmos, surge um esquecimento das nossas tendências usuais, e aí nos tornamos
capazes de efetivamente auxiliar os outros. É o que faz um psiquiatra, por exemplo.
Se ele se perguntar se gosta ou não gosta da companhia de pessoas perturbadas,
responderá que prefere estar no meio de pessoas estáveis. No entanto, ele tem a
capacidade de transcender sua preferência pessoal e olhar os seres no contexto
mental e emocional onde estão imersos. E é por isso que pode ajudá-los.
Os chineses estão destruindo a cultura tibetana tradicional, mas Sua Santidade, o
Dalai Lama, olha para eles como um médico e é capaz de entender o que se passa em
suas mentes, dedicando-lhes a bondade que manifesta com todos os demais seres.
Como um professor espiritual poderia rejeitar algum ser? Este acolhimento
incondicional é o que possibilita os professores serem professores e auxiliarem
verdadeiramente. Isso é bondade.
O Buda diz: “A impossibilidade de ajudar surge das obscuridades mentais.” E as
obscuridades devem ser entendidas como emoções que brotam do autocentrismo.

Yidams
Outra forma aparentemente diferente de se aproximar do budismo é olhar as
deidades e suas qualidades e procurar de imediato estas qualidades em si mesmo e
vivenciá-las. Em vez de estudar a roda da vida, praticar a estabilização meditativa ou
focar a atenção diretamente na bondade, praticamos sadanas (preces e visualizações)
referentes a Yidams, as deidades de sabedoria, e as qualidades naturalmente se
manifestam.
A partir da conexão com as deidades, a compreensão da roda da vida, a bondade e a
estabilidade surgem como formas de praticar a compaixão para com todos os seres e
a sabedoria transcendente. É um outro caminho, pode ser praticado sozinho, e
caracteriza uma abordagem completa em si mesma.

Natureza ilimitada
Existe ainda outra forma, na qual resumidamente se compreende o primeiro passo do
Nobre Caminho Óctuplo e se utiliza a vontade de superação da experiência da
existência cíclica como combustível poderoso para penetrar nas práticas de
meditação na perfeição de todas as coisas. Não vamos usar conceitos de amor e
compaixão, não vamos praticar virtudes nem a supressão das não-virtudes; focamos
diretamente a natureza ilimitada. O reconhecimento da natureza ilimitada produz a
superação de todas as prisões e carmas, nada mais é necessário.

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Esta prática pode ser realizada na meditação formal ou na vida cotidiana. Não se trata
de uma prática construída, é a prática natural e fácil de todos os Budas. É a
manifestação não-elaborada e sem esforço de nossa natureza ilimitada. Seria como
entrar diretamente na oitava etapa do Nobre Caminho.
Todos os métodos têm superposições uns com os outros, e cada um apresenta
características e dificuldades específicas. Neste último método, por exemplo, o foco
não está na prática, no trabalho, na família ou nos centros de atendimento. A ênfase
está especialmente nos retiros.

Compreensão
Existem muitas formas de praticar os ensinamentos, mas muitas lições podem ser
necessárias antes mesmo de se conseguir entrar no Nobre Caminho Óctuplo. Talvez
90% a 95% dos seres não possam praticar imediatamente as Quatro Nobres Verdades
e o Nobre Caminho Óctuplo porque estes pareceriam demasiado sofisticados ou fora
de propósito.
As pessoas estão presas a ideologias, formas de compreensão, hábitos mentais,
soluções aparentes e prioridades invasivas que impedem a compreensão. Ajudar
estes seres é o foco da maior parte dos ensinamentos dos mestres. Se os alunos
apenas praticarem a bondade, o amor e a compaixão, será maravilhoso.
É como o Buda disse: “Pratiquem a bondade, não criem sofrimento, dirijam a própria
mente.” Esta é a essência do budismo.

(Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Bodisatvas, em Viamão, Rio Grande do Sul, em
outubro de 1999)

II. Prática na vida cotidiana

Sua Santidade, o XIV Dalai Lama, diz que todos os seres se movem buscando a
felicidade e tentando evitar o sofrimento. Ele lembra que as religiões preenchem sua
função ao auxiliarem as pessoas nesta aspiração.
Quando desejamos uma casa na praia, estamos buscando felicidade. Ainda que nos
falte clareza quanto a isto, esta é a motivação verdadeira, o elemento mental que cria
o desejo pela casa. Na busca da felicidade, a casa de praia é uma boa opção?
Não há dúvida de que passar o fim de semana na praia é ótimo, mas quando chega o
domingo, a felicidade acaba. A casa da praia nos traz um tipo de felicidade que
necessita de um certo esforço e trabalho para se concretizar, e o benefício é curto –
longo, só o engarrafamento na viagem de volta...
No budismo, sentimos que trabalhos longos e felicidades curtas não são muito
interessantes, buscamos felicidade de longo alcance. Um exemplo é superar o orgulho
internamente: a pessoa que o fizer imediatamente melhorará sua relação com a
família e com os amigos; todos ao redor serão beneficiados.
Existem vários tipos de felicidade. Um emprego, por exemplo. Neste caso, nossa
felicidade implica na frustração de outros (aqueles que não conseguiram a vaga);
além do mais, tão logo começamos a trabalhar, surge a insatisfação, e então
pensamos nos feriados ou no tempo que falta para a aposentadoria.
O benefício de conseguir um bom emprego é muito diferente do que se alcança ao
superar um dos cinco venenos – orgulho, inveja, obtusidade mental, carência e raiva.
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No instante em que superamos a carência, nos tornamos ricos. Descobrimos uma
fonte de satisfação permanente, e tudo que brota desta fonte e que podemos
oferecer aos outros é motivo de alegria para nós. Quem dá alguma coisa nunca perde
essa alegria; quem recebe, pode vir a esquecer.

Motivação correta
A prática budista requer um cuidadoso foco na motivação. Realizar práticas formais,
recitar mantras ou entrar num templo sem motivação correta envelhece aos poucos a
tradição. A falha é nossa, e não dos ensinamentos. Olhando as práticas sem o olhar
correto, não há benefícios, e ficamos progressivamente insensíveis às palavras de
sabedoria.
A motivação correta – trazer benefícios aos outros seres – tem o poder de transformar
ações aparentemente comuns em prática espiritual. Muitas vezes mães e pais não
têm tempo para praticar formalmente, mas a motivação de ajudar seus filhos e
sustentar a casa transforma tudo que fazem em prática espiritual. O autocentrismo foi
substituído pela natural amplitude do coração. Dependendo da motivação, a pessoa
pode se sentir aprisionada a condições hostis no seu cotidiano, ou se sentir como um
sol, irradiando benefícios para seres em sofrimento.
Certa vez visitei um hospital psiquiátrico e percorri as alas onde muitos seres
debatiam-se presos a mundos de sofrimento. Suas aparências mostravam bem os
mundos internos em conflito. Após a visita, a diretora do hospital disse: "Este é um
local maravilhoso, se fico um dia sem vir aqui, surge um vazio no meu coração." Logo
pensei: “Eis um Bodisatva. Sua conexão a este lugar se dá exclusivamente pelo
benefício que traz continuamente a estes seres. Ela descobriu a natureza ilimitada de
manifestação amorosa e compassiva.”
As situações externas são um espelho do que temos internamente. Sempre podemos
optar. Um dia morreremos, e esse não será propriamente um momento feliz, mas
mesmo nessa hora poderemos irradiar amor, compaixão por todos os seres e
atravessar o colapso do corpo com equanimidade na mente.
Nosso carma geralmente nos leva a ver tudo através dos cinco venenos, mas temos a
possibilidade de praticar o olhar dos bodisatvas, que tudo vêem com compaixão,
amor, alegria e equanimidade. Utilizar esta capacidade de opção define a prática
espiritual budista.
Mesmo em meio a uma enorme desgraça, como a morte de um filho, é possível e
desejável praticar o olhar de bodisatva. Há um grande sofrimento, é um momento
muito difícil, mas só existe uma forma de produzir benefícios aos que nos circundam e
ao ser que morreu: manter a percepção na natureza luminosa, divina e estável que é
nossa identidade e a essência de todos os seres, que está além de qualquer
transformação, além de nome e forma, de vida e morte, de esperança e medo, de
espaço e tempo. Somente esta experiência ilimitada permite o surgimento do amor,
da compaixão, da alegria e da equanimidade verdadeiros.
Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche diz que não adianta meditar formalmente
uma hora por dia e ter 23 horas de más ações e maus pensamentos. É necessário
praticar 24 horas por dia. A prática do cotidiano é a base, a prática formal é um
complemento que intensifica nossa qualidade de atenção nas outras horas do dia.
Se depositamos nossa segurança em objetos e circunstâncias, as motivações que nos
conectam à busca da felicidade e ao afastamento do sofrimento são mundanas.
Nossas motivações religiosas também são limitadas se, mesmo fazendo práticas,
continuamos buscando segurança em elementos e circunstâncias impermanentes. As
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motivações só serão efetivamente religiosas, no sentido ilimitado do termo, se nossa
segurança estiver baseada em fatores situados além da roda da vida, além do alcance
da impermanência.
Em qualquer caso, sem exceção, os seres buscam a felicidade e tentam evitar o
sofrimento. Esta é a chave unificadora. Todos os seres, dos elefantes às pulgas, se
movem nesta direção. Em nossa relação com as pessoas também é assim; mesmo
quem nos agride quer felicidade e não quer sofrimento. Se nos aproximamos com
intenção de prestar benefício, todos nos acolhem; mas, se nos aproximamos
querendo sugar o que o outro tem, somos repelidos, não há dúvida. Mesmo numa
relação afetiva ou com amigos é a disposição de dar, e não a de receber, que
produzirá resultados. Todos os mestres budistas dizem isto. A origem do sofrimento
está em colocar a experiência de felicidade na dependência de algo externo. Não
haverá escapatória: nossa felicidade flutuará junto com o objeto ao qual está
vinculada.

Refúgio nas Três Jóias


O budismo pode ser resumido pelas expressões Buda, Darma e Sanga – os Três
Refúgios, ou as Três Jóias. Cada um de nós é um buda, nossa natureza é perfeita.
Nossa mente é um diamante, mas, por operarmos a partir de certos referenciais, ela
parece contaminada. É como se o diamante estivesse coberto de barro.
Darma são os ensinamentos do Buda, os métodos para remover o barro que recobre o
diamante. Num sentido interno, Darma é a compreensão que brota da mente
iluminada. Quando repousamos na natureza liberta, além do espaço e tempo,
podemos olhar as atividades da mente sem flutuar.
Sanga é a comunidade daqueles que praticam, é onde praticamos a moralidade, que
consiste em se mover sem causar malefícios e buscando o benefício dos outros. Com
o tempo reconheceremos todos os seres como parte da Sanga.
Moralidade e meditação vêm juntas. Se a pessoa pratica uma hora de meditação e 23
horas de iniqüidades, não adianta. A meditação é inseparável de nosso cotidiano e da
motivação de nossas ações. É ela que trará profundidade à visão, permitindo a
transformação de qualquer ação em prática espiritual.
Usualmente nos portamos como mendigos, colocando a felicidade como dependente
de algo externo. No momento em que olhamos para fora em busca de felicidade,
esquecemos que nossa natureza é uma jóia que realiza todos os desejos, e nos
tornamos mendigos, dependentes de situações externas. É como se fôssemos muito
ricos, mas não tivéssemos consciência de nossa riqueza. Quando adotamos uma
atitude de mendigo, nos relacionamos com os outros como quem espera ganhar uma
esmola de vez em quando.
Quando uma pessoa entra nesta situação, os horizontes da mente se fecham, e ela
não sabe mais como sair desta armadilha; ela esquece a experiência de liberdade de
sua natureza luminosa básica. O budismo tem por função unicamente revelar esta
natureza básica. A experiência de liberdade não é uma teoria, é algo completamente
prático. É como um carro atolado: basta tirá-lo da lama para ele andar; o carro não
está danificado, só está preso. O ponto básico para a liberação é a motivação, pois é
ela que comanda o aspecto sutil da energia da ação. A motivação mais sutil é tomar
refúgio no Buda, no Darma e na Sanga para benefício de todos os seres.

Felicidade permanente

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Já vimos que a motivação básica de todos os seres é buscar felicidade e se afastar do
sofrimento. Há então uma harmonia, todos buscam a mesma coisa. Mas existem
diferenças. Existe a felicidade permanente e as felicidades passageiras.
Dentre as passageiras, podemos ter felicidades curtas com longos pagamentos, ou
felicidades de média duração e longo sofrimento. Podemos ter felicidades mais ou
menos intensas. A felicidade de um casamento termina com o fim do casamento, por
exemplo. Também podemos ter felicidade à custa de outros seres, como no caso de
um churrasco.
Mas há um tipo de felicidade que, quando obtida, traz benefícios para a pessoa que a
alcançou e para todos os demais, instantaneamente. Mais que isso: essa felicidade é
permanente, não tem fim. Um exemplo é libertar-se do orgulho: isso é bom para a
pessoa que se liberta e para todos à sua volta, permanentemente. Ou então se
libertar da raiva, é uma grande felicidade! A pessoa pode olhar com carinho para os
outros, vê-los como pais, como irmãos. Trata-se de uma liberação, é algo que não
termina.
As qualidades que brotam na liberação não são passíveis de perda. Esta é a felicidade
de liberar as seis emoções perturbadoras – orgulho, inveja, desejo/apego, obtusidade
mental, carência e raiva/medo. Quando se consegue isto, o mundo muda, passa a ser
uma fonte de felicidade radiante, que não depende de fatores externos, nem de
objetos. É a felicidade permanente.
As outras felicidades existem, não há dúvida. Algumas dependem de objetos, são as
felicidades mundanas. Outras podem ser obtidas à custa de terceiros, que perdem ou
são prejudicados.
Existem tradições religiosas que usam a palavra Deus para seres que produzem
benefícios para uns e malefícios para outros. No passado havia sociedades cujas
religiões ensinavam como destruir outros povos para benefício próprio. Temos que
olhar para isso com cuidado. A natureza do absoluto não pode ser descrita por
conceitos relativos. Os seres capazes de produzir benefícios para uns em detrimento
de outros podem ser muito poderosos, mas não têm a experiência de sabedoria
transcendente. Estes seres pertencem aos reinos de existência condicionada. Como
nós, eles têm uma natureza intrínseca perfeita, mas operando sob condições
limitadas.
Não há benefício dual permanente, mas, como nossos olhos estão perturbados,
quando nos voltamos para estes seres poderosos só pedimos coisas impermanentes.
Isto parece religião, mas não é – embora possa lidar com coisas sutis. Estas ações
estão dentro da roda da vida, dominadas pela impermanência e instabilidade.

Generosidade
Parece que nossa felicidade material só ocorre com esforço e luta, mas essa visão é
equivocada. A generosidade cria méritos que impedem a pessoa de viver uma
situação de miséria.
Se a pessoa se acha miserável e acredita que não tem nada para oferecer, assim é. A
situação melhora imediatamente quando ela oferece algo, nem que seja um sorriso,
um olhar de carinho. No entanto, se a atitude mental é de avidez, há um poço sem
fundo, a pessoa sempre se sentirá miserável. Com esse sentimento de carência, ela
só vê o que falta. A avidez independe do quanto temos; é uma atitude mental. Quem
vive na pobreza mas é generoso não se sente pobre, sempre tem algo a oferecer.
Um dos remédios do Buda para a transformação da experiência dos seres é a tigela

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que segura na mão esquerda. Ele e os monges ofereciam-na para ricos e pobres,
dando a eles a oportunidade de gerarem méritos. Mérito traz resultados imediatos:
alimentar um cachorro traz satisfação imediata. Sustentar a Sanga produz grande
mérito e felicidade.
Uma mente miserável não oferece nada, pensa que, se der algo, aquilo fará falta mais
adiante. Estamos em meio a seres que buscam a felicidade sugando os outros. A
maneira de lidar com eles é desejar que se liberem dessa condição de miséria; se
usarmos apenas noções de justiça e injustiça, será impossível. Estes seres miseráveis
não podem ser acusados ou condenados por se manifestarem desta forma. Além das
circunstâncias externas, há uma atitude interna a ser transmutada. Neste caso, o
meio mais poderoso é proporcionar condições para que pratiquem a generosidade,
livrando-se da experiência de dependência, incapacidade e miséria.

Estados mentais transitórios


As felicidades mundanas, que são finitas, podem ter curta, média ou longa duração,
mas existe um aspecto comum: a felicidade mundana traz consigo uma infelicidade
potencial. Por exemplo: a pessoa bebe e depois fica de ressaca. Ter um filho é uma
maravilha, mas ele também é impermanente, se morre é uma tragédia. A pessoa se
alegra porque comprou um carro, depois se preocupa com que não seja arranhado,
roubado etc. São alegrias na dependência de outros fatores; sujeitas, portanto, à
impermanência. Há situações nas quais entramos e depois, por pior que seja, não
conseguimos sair. Primeiro rezamos para conseguir, depois para nos livrarmos.
Existe uma grande alteração de qualidade em nossa vida quando percebemos que,
independentemente da situação objetiva externa, podemos dirigir nossos estados
mentais na direção que desejarmos. Focando a mente num estado mental específico
a infelicidade cessa, e a felicidade surge. Podemos ouvir música ou acender incenso,
por exemplo. Ainda que haja aí uma certa liberdade, não é completa, pois, tão logo a
música e o incenso terminam, o estado de felicidade perde seu substrato. No entanto,
enquanto permanecemos naquele estado mental, estivemos tranqüilos.
Se temos um pouco mais de habilidade, podemos fazer relaxamento ou meditação de
tranqüilização. Mas estas experiências também têm início, meio e fim. Não podemos
ficar relaxando o tempo inteiro, e por isso voltamos aos velhos conflitos de sempre.
Vendo essa situação, queremos isolamento, desejamos morar num ashram em meio à
natureza, nos Himalaias. Olhamos ao redor e achamos tudo terrível. A felicidade
através de estados mentais particulares também é finita.
Em geral, nossa motivação está oculta. Ela tem o poder de transformar qualquer
atividade em atividade de mérito – e também o poder de estragar tudo. Se fazemos
prática espiritual, mas com a motivação de ser melhor do que alguém, ou porque
estamos numa disputa, nossa mente está imperfeita, mal colocada; mais adiante
colheremos os frutos dessas ações e diremos que aquela prática não funciona. Por
outro lado, se a motivação é correta, podemos transformar toda nossa atividade
cotidiana em prática espiritual. A motivação definirá se nossa vida funcionará, se
nossa prática frutificará.
Já vimos que nossa motivação básica é buscar felicidade. Todos os seres se movem
nesta direção, então podemos entendê-los. Não há atividades erradas. Todos
buscamos, de forma mais ou menos hábil, nos aproximar do que consideramos bom.
Todas as religiões brotam disso. Como isto se dá de forma prática no budismo?

Buda no país dos kalamas


19
Certa vez, o Buda Sakiamuni chegou ao país dos kalamas. As pessoas se
aproximaram e lhe pediram que desse ensinamentos. Naquele momento alguém se
levantou e disse: "Senhor, muitos mestres têm passado por nosso país, oferecendo-
nos seus sábios ensinamentos. Porém, eles sempre dizem: “Esqueçam o que vocês já
ouviram antes, agora vou ensinar a verdade definitiva.” Como devemos ouvir suas
palavras?" O Buda disse: "É muito simples. Ouçam com cuidado e testem.
Experimentem em suas vidas. Se o ensinamento trouxer benefício, sigam-no
diligentemente. Se não trouxer nenhum benefício, abandonem-o."
O Buda continuou: "Todos os seres buscam felicidade e querem se afastar do
sofrimento. Se usamos como método de buscar felicidade matar outros seres, por
exemplo, isto é interessante?" Todos disseram: "Não, não!" O Buda perguntou: "E
roubar é um método para encontrar a felicidade?" Todos repetiram: "Não, não!" O
Abençoado seguiu enumerando: conduta sexual inadequada, mentir, criar discórdia,
agredir com palavras, falar inutilmente, ter aversão por outros seres, dar conselhos
que resultem em sofrimento aos outros, ser avarento. E todos repetiram: "Não, não!"
Assim, todos concordaram que estas dez ações são fontes de sofrimento e não de
felicidade e entenderam por que são chamadas de ações não-virtuosas.
O Buda então indagou: "Uma pessoa dominada pela ignorância pode ser levada a
matar?" Todos concordaram: "Sim, sim, Abençoado!" O Buda questionou: “Uma
pessoa dominada pela ignorância pode ser levada a roubar?" Todos concordaram
novamente e responderam: "Sim, sim, Abençoado!" O Buda enumerou as dez ações
não-virtuosas e todos concordaram que a ignorância poderia causar cada uma delas.
Depois o Abençoado citou a avareza e o ódio, perguntando se poderiam causar, uma
a uma, as dez ações não-virtuosas. A cada pergunta os kalamas responderam: "Sim,
sim, Abençoado!"
Ao final, o Buda explicou: "Esta é a razão pela qual a ignorância, a avareza e o ódio
são chamados de os três venenos – são a raiz de todos os sofrimentos."

Emoções perturbadoras
Causar mal aos outros talvez tenha um resultado vantajoso de curta duração, mas as
conseqüências danosas são de quatro níveis: imediatas, de curta, média e longa
duração. Não é que algum ser superior sinta-se afetado, nós é que nos sentimos
imediatamente afetados. Quando praticadas, as dez ações não-virtuosas podem
produzir vantagens aparentes, mas geram infelicidades imediatas e de curta, média e
longa duração para quem as pratica e para as pessoas ao redor.
Quando alguém pensa: "Seria bom que tal ser morresse", isso é sofrimento imediato.
No momento em que pensa isso, ela dá ao outro ser o poder de perturbá-la, ela se
fixa na forma de percebê-lo como um ser perturbador que deve morrer. A curto prazo,
a pessoa se torna sensível à toda menção, lembrança, sonho ou encontro com aquele
ser. Em cada um destes eventos ela se sente atingida e reage com amargor interno. A
médio prazo, a pessoa pode desenvolver uma doença física. Pode manifestar também
uma atitude herética que leve à violência, que a faça descrer da paz. A longo prazo,
isto pode se manifestar como uma atitude não-consciente de aversão a tudo que é
religioso, ético e moral ou que parece elevado e digno. Na linguagem budista, isto
pode levar a pessoa ao renascimento nos reinos inferiores.
Observe: estas são conseqüências de apenas desejar a morte de alguém. Os efeitos
negativos são muito mais intensos se, depois de desejar a morte, a pessoa passa a
planejar a forma de realizar isto. Mais ainda, se ela executar a ação planejada. O pior
de tudo – o que completará o carma negativo – é se a outra pessoa morrer. Neste
caso, o executante não terá mais sossego, com medo de alguma punição. O mesmo
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processo é válido para as outras nove ações não-virtuosas.
Curiosamente, todos os seres que estão em situações de sofrimento têm todos os
argumentos para justificar suas ações equivocadas e não mudar. Quando a pessoa faz
uma ação equivocada, não se dá conta e pensa que é bom, que aquilo trará benefício
para ela. É o veneno da ignorância atuando. A pessoa não percebe que está
construindo um longo carma de sofrimento para si mesma. A ignorância é a base de
todas as emoções perturbadoras: orgulho, inveja, desejo/ apego, obtusidade mental,
carência e raiva/medo. Estas seis emoções perturbadoras são assim chamadas
porque cada uma nos leva a cometer as dez ações não-virtuosas, construindo longas
infelicidades, longos carmas.
O que define nossa prática espiritual é a motivação: superarmos nossas dificuldades e
sermos capazes de beneficiar os outros seres. Uma etapa deste processo é liberar as
seis emoções perturbadoras. Se nos aproximamos de qualquer prática espiritual com
emoções perturbadoras, contaminamos tudo. Mas, se buscamos a melhor forma de
trazer benefícios relativos e absolutos, isto é prática espiritual verdadeira e
transforma nossa vida. É o que fazem os bodisatvas, seres que se movem
impulsionados unicamente pelo desejo de beneficiar os outros. Eles não estão presos
em jogos mentais, têm sabedoria. Nós construímos coisas duais e buscamos
felicidade deste modo, mas eles sabem que tudo que é construído em uma semana,
um mês, um ano, uma vida, se desmanchar. Por isto, os bodisatvas manifestam
desapego em relação às circunstâncias dos seis reinos da existência cíclica.
Como vimos, existem motivações que levam a experiências de felicidade – ainda que
impermanentes e dependentes de objetos –, e o grande segredo é a generosidade.
Existem motivações que trazem felicidades para uns e malefícios para outros, como
certas posturas espirituais ou filosóficas limitadas. Existem também felicidades sutis,
associadas à música, ao relaxamento, à meditação de tranqüilização. Todas estas
motivações são pré-budistas, porque a felicidade termina quando a impermanência se
manifesta.
O caminho budista começa quando percebemos que estamos aprisionados pelas seis
emoções perturbadoras, que produzem impulsos que não conseguimos controlar, o
que nos leva a praticar as dez ações não-virtuosas, gerando sofrimentos imediatos e
futuros, num ciclo incessante. Se conseguimos liberar o orgulho, todos os seres ao
nosso redor se beneficiam, nossa relação com eles melhora. O mesmo acontece com
a raiva, a inveja, o desejo/apego, a obtusidade mental e a carência.
No momento em que liberamos as seis emoções perturbadoras, surge uma felicidade
que automaticamente beneficia a todos. Não é um benefício arrancado de alguém, ou
algo que em seguida temos que devolver; tampouco é impermanente como o que
podemos comprar ou fazer com nosso trabalho. É um benefício que está além de vida
e morte, espaço e tempo, esperança e medo. Ao reconhecer isso com o coração,
surge a decisão forte e estável de nos libertarmos, motivação indispensável para
começar a receber os ensinamentos budistas.

Níveis de motivação
Existem três níveis de motivação budista. No primeiro, buscamos gerar méritos e
obter uma felicidade estável. Nos empenhamos em eliminar as seis emoções
perturbadoras e desenvolver emoções positivas. Nesta etapa a pessoa tem a atenção
sobre si. Ela quer felicidade e não quer sofrimento. Como conseqüência, há um limite
no que é possível avançar. Depois de praticar longamente nessa perspectiva, a
pessoa se dá conta de que todos os outros seres estão em situação idêntica e que o
universo inteiro está submetido à impermanência, aos ciclos incessantes de felicidade
21
e sofrimento. Ela desperta sua sensibilidade em relação aos outros, percebe que sua
felicidade está ligada à sorte dos outros seres. Assim, a maturidade deste primeiro
nível conduz ao reconhecimento dos ensinamentos que falam da inseparatividade de
todos os seres e de todas as coisas.
O segundo nível da motivação budista começa neste ponto e se baseia na compaixão.
Ampliamos o foco que estava apenas sobre nós mesmos e passamos a incluir os
outros progressivamente. A compaixão já é prática da onisciência e liberdade da
mente ilimitada. É muito extraordinário que alguém se ocupe com os outros.
Mesmo em nossa condição limitada, a mente ilimitada opera o tempo todo, não
existem duas mentes. A mente ilimitada é a base das mentes limitadas. Quando a
compaixão se manifesta, é como se o esplendor luminoso desta mente ilimitada
surgisse no horizonte como a claridade que antecede o sol.
A compaixão é a primeira das quatro qualidades de valor incomensurável descritas
pelo Buda, é o desejo de que o outro se libere de suas dificuldades. No segundo nível,
a prática de todas as quatro qualidades incomensuráveis é fundamental. As demais
qualidades são: amor, alegria e equanimidade.
O terceiro nível de motivação é a percepção de que o local onde estamos, nossa
natureza e tudo que nos rodeia é perfeito. É a prática da visão pura, o
reconhecimento da natureza perfeita e verdadeira inerente a todas as aparências.

Inseparatividade
É importante entender que o budismo visa à superação das raízes do sofrimento e o
estabelecimento de bases para a felicidade temporária e definitiva. Quando não
temos sabedoria, as coisas ruins existem como experiências concretas, têm nome e
forma. No caminho da liberação do sofrimento, o primeiro passo é descaracterizar a
solidez da experiência de sofrimento.
A raiva é uma das emoções que produz grande desconforto e ansiedade. Quando
estamos sob o efeito desta perturbação, ela parece surgir de forma natural e justa de
dentro de nós, quase que de forma independente. Entretanto, se examinamos sua
manifestação, vemos que está sempre ligada a uma realidade circundante específica.
Sempre justificamos nossa raiva ou perturbação, seja de que tipo for, pela descrição
do que vemos ao nosso redor. A perturbação sempre parece justa e explicável.
Conter-se não é uma solução definitiva, não adianta criar uma tampa interna, isto não
elimina a perturbação, apenas a represa. A raiva fica lá dentro e pode vir a explodir
como uma panela de pressão em algum momento. Para retirar o princípio energético
das perturbações é necessário utilizar a sabedoria da inseparatividade.
Tudo aquilo que focamos é inseparável de nossos olhos. Este é o ponto central do
budismo. Quando estamos envolvidos em nossos sofrimentos e complicações, temos
todo um contexto que valida a perturbação. Há um panorama, uma experiência
mental de reconhecimento do mundo e de nós mesmos de um certo modo, e é
somente na dependência deste panorama que a perturbação ocorre.
No sentido budista, a felicidade sob condições também é uma forma sutil de
perturbação para a qual temos ainda menos vigilância e defesa. Como as condições
são sempre impermanentes, a felicidade condicionada é, portanto, impermanente, e
dela brotará o sofrimento posterior.
A compreensão da inseparatividade começa quando percebemos que a realidade, a
paisagem virtual na qual nos sentimos imersos, surge inseparável do conteúdo de
nosso coração. Esta compreensão é muito profunda e nos permite uma liberdade
22
antes desconhecida. No momento em que viajamos para "dentro" e transformamos o
conteúdo cármico de nosso coração, todo o universo "externo" muda. Quando somos
filhos, vemos nossos pais de um jeito; quando somos pais, eles adquirem uma face
inteiramente nova. É surpreendente olhar ao redor com o reconhecimento desta
liberdade.
Os seres que nos cercam são inseparáveis de nós e, inseparáveis de nossos olhos e
corações, manifestam-se na forma de amigos ou inimigos. Costumamos pensar: "A
realidade da vida é assim; logo, minhas ações devem ser deste e não daquele modo."
Parece haver liberdade nisto, mas na verdade o reconhecimento da realidade externa
de um modo específico condiciona as opções e determina impulsos. O que parece
liberdade é apenas um movimento preso às condições virtuais automáticas
aparentemente sólidas, imutáveis, irremovíveis.

Paisagens mentais
No budismo, as práticas de meditação têm o propósito de desarticular a prisão
automática e quase invisível que nos conduz à experiência das emoções
perturbadoras e dos seis reinos da roda da vida. Somente recuperando a estabilidade,
como os mestres que se movem com sabedoria e liberdade em qualquer
circunstância, podemos prestar benefícios aos outros seres.
É neste ponto que reside toda a magia do budismo. O que experimentamos como
uma realidade externa na verdade surge inseparável de nossa estrutura cármica
interna. Quando mudamos esta estrutura complexa – nossa paisagem sutil interna –,
a experiência de universo muda. Ao reconhecer isto, nos descobrimos com liberdades
de que nem suspeitávamos; liberdades aparentemente mágicas, incompreensíveis,
surpreendentes, poderosas.
Vemos que, ao optar por uma estrutura interna, surge uma experiência
correspondente na forma de algo externo, e toda a complexa realidade circundante
toma vida diante de nossos sentidos físicos. Olhamos um quadro retratando um lago
com um barco ao longe, sob o céu de fim de tarde, cheio de tons suaves... Brota uma
emoção na mente, apreciamos a paisagem do quadro. Mas onde realmente estão o
barco e o pôr-do-sol que nos comovem? Ali temos apenas tela e tinta!...
Aspectos que hoje parecem bons, amanhã não parecerão favoráveis, ainda que
externamente sejam os mesmos. É a manifestação da impermanência no
reconhecimento das coisas e do mundo. Surpreendentemente, ela atua também em
relação ao passado. No passado tínhamos um futuro, hoje temos outro, e no futuro
teremos uma outra visão de futuro. A impermanência toca passado, presente e futuro.
As relações humanas – inclusive nossas relações afetivas – estão na dependência
dessas paisagens que atuam sem avisar e mudam por uma dinâmica própria. São elas
que produzem todas as experiências de atração, separação e indiferença como
felicidades e tragédias emocionais. Em nossa vida há dias em que tudo parece torto.
Quando você tiver essa experiência, experimente sentar um pouco e respirar devagar
e profundamente uma vez, uma única vez. Tudo muda.
Nem mesmo os cientistas escapam disso. Eles olham tudo a partir da paisagem
mental de suas teorias; quando as teorias mudam, o universo inteiro muda. Mesmo
seus universos são dependentes de crenças e suposições. Quando as teorias e visões
mudam, certezas desaparecem, e novas liberdades se oferecem. Mesmo na ciência,
as emoções, sofrimentos e alegrias surgem como ventos incontroláveis. Até o início
do século XX, a visão clássica da física parecia definitiva.
O colapso da física clássica originou a física quântica, com sua visão surpreendente.
23
Até hoje este tema provoca emoções e a sensação de perda nos cientistas que se
mantêm apegados à noção de uma realidade externa pré-existente e independente
do observador. A visão da inseparatividade entre objeto, observador, teoria e
equipamento experimental é a grande contribuição da física quântica para a
compreensão da realidade – e é o que excita a imaginação dos cientistas,
aproximando-os da intuição espiritual (e budista em particular).

Libertação
É possível, pela lucidez, criar uma maneira sempre positiva de nos manifestarmos?
Existe esta liberdade? A resposta, mesmo para situações extremas, é sim!
Motivado pela compaixão por todos os seres, o príncipe Sidarta Gautama um dia
sentou-se em meditação debaixo de uma grande figueira e invocou Mara (o senhor
das ilusões), dizendo: “Vou derrotá-lo e destituí-lo de seu poder de confundir e
perturbar as pessoas.” Mara produziu muitas ações perturbadoras, atacando Sidarta
de várias maneiras. No entanto, ao se aproximarem, as flechas de Mara
transformavam-se em flores, perfume e na luminosa aura dourada do Buda.
Sidarta Gautama desenvolveu a habilidade de olhar para as coisas com liberdade,
além das marcas mentais, e por isto foi reconhecido como Buda, que significa
“liberto”. Por repousar sobre o que não é construído, tornou-se imune à experiência
de impermanência e ao carma que a origina. O que surge produzindo impulsos e nos
faz ver as coisas de um jeito e não de outro chama-se carma. O carma produz o
impulso de ação.
Pensamos que temos liberdades, mas é o carma que decide. Podemos decidir fazer
ginástica às seis da manhã, mas quando a hora chega não conseguimos sair da cama.
Decidimos uma coisa, mas um impulso surge por si mesmo, de um lugar oculto que
nem suspeitamos qual seja, e nos leva em outra direção. Não adianta lutar contra
isso, pois o impulso surge de novo e de novo, e termina por nos dobrar. Não temos
liberdade frente ao carma, decidimos uma coisa, mas a decisão em si não tem força.
Quando Sidarta libertou-se de Mara, disse: "Libertei-me daqueles que foram meus
senhores por incontáveis vidas – as disposições mentais e os agregados." Até atingir a
iluminação, ele havia feito como nós fazemos: olhara suas disposições mentais e
agregados e os seguira, pensando: "Isto sou eu." Ao final, livre, tornou-se Buda.
Quando repousamos no que é estável não precisamos lutar, podemos até dançar em
meio às flutuações. Não é que a vida mude propriamente, mas nossos olhos
determinam a experiência das coisas. Esta experiência de liberdade é o refúgio na
condição de Buda. Há liberdade em meio às coisas do mundo, em meio às confusões.
Sem isto, sempre buscamos segurança na lembrança de um colo de mãe ou de pai.
Onde encontrar? Nunca conseguimos segurança, todos os colos são inseguros e
impermanentes. A proteção que podemos oferecer aos outros também é frágil,
incerta.
A natureza de Buda é estável, é a verdadeira fonte de segurança e refúgio. A
compreensão que brota desta experiência é o Darma. Nossa compreensão não é
estável porque nossos referenciais não são estáveis. Mas o Darma é a sabedoria
estável que brota dentro de nós sempre que tomamos refúgio na estabilidade da
natureza de Buda, a natureza não-construída.
Quando enfrentamos de modo repressivo os impulsos que nos conduzem a ações
equivocadas, dizemos: "Quero vencê-los e me livrar disso.” Mas o impulso é mais
forte que nossa decisão e nos desgastamos.

24
Existe uma história da mitologia grega que ilustra bem este fato. Anteu, um gigante
sanguinário, queria construir um grande templo com ossos humanos para
homenagear sua mãe, Gea (a terra). Um dos trabalhos de Hércules, o herói em luta
pela transcendência, era derrotar Anteu. Os dois se enfrentaram, e suas forças eram
equivalentes. Mas, após um tempo, Hércules começou a cansar, enquanto Anteu
continuava com vigor pleno. Palas Athena, protetora de Hércules, sussurrou-lhe que
suspendesse Anteu do solo. A força de Anteu vinha da terra, sua mãe, a
materialidade. No momento em que Anteu perdeu o contato com sua fonte de força,
Hércules dominou-o facilmente.
Anteu personifica as seis emoções perturbadoras; elas se encaixam com perfeição em
nosso contexto, surgem naturalmente e são bem aceitas, ou seja, há um suprimento
energético aparentemente ilimitado que as sustentam. Por exemplo: fazemos esforço
para obter uma certa coisa; ao obtê-la, ficamos orgulhosos; parece natural. Quando
disputamos uma vaga com alguém, pensamos em pular na frente. Sempre desejamos
algo e pensamos que isso é ótimo. Se alguém tenta invadir nosso território, sentimos
que nada é mais normal que uma boa raiva. Esse aspecto "terra" é o que nós faz
sentir vivos. Estamos completamente inseridos nisto. Ir de encontro a esta situação
não adianta, vamos cansar como Hércules cansou. Temos que suspender Anteu. Sem
desenvolver esta habilidade, seremos derrotados e, mais dia, menos dia, nossos ossos
irão engrossar as paredes do templo onde se cultuam as fixações e carmas.

Pensamentos transformadores
Como suspender Anteu? Como produzir o enfraquecimento das seis emoções
perturbadoras?
Os ensinamentos do Buda são como remédios, após a cura não são mais necessários.
É como um dedo que aponta a lua: o dedo é para ser esquecido, basta a lua. É como
pegar um ônibus: quando você chega ao destino, deixa o ônibus, não vai levá-lo para
casa. Os ensinamentos são como um hospital: você sai tão logo esteja curado. É como
esponja, água e sabão: quando terminamos de lavar um prato, não deixamos resíduos
deles.
Existe um conjunto de ensinamentos tradicionais budistas chamado “os quatro
pensamentos que transformam a mente”, cujo objetivo é suspender Anteu; ou seja,
quebrar a magia poderosa que sustenta a paisagem onde as prisões, o carma e os
venenos da mente são desejáveis, justificáveis, intensos e naturais. Quebra-se o
encanto ao se revelar nossa verdadeira situação. Estes ensinamentos começam com
uma homenagem ao Lama e a seguir abordam os quatro pensamentos: a vida
humana preciosa, a impermanência, o carma e o sofrimento. O voto de refúgio
encerra os ensinamentos.

Lama
Preliminarmente vem a motivação. Fixamos concentradamente o objetivo de
superarmos nossas dificuldades e sermos capazes de trazer benefícios permanentes
aos outros seres.
Segue-se a homenagem ao Lama. A cada geração, seres estudam, ouvem, realizam e
transmitem ensinamentos que trazem em si uma bênção própria, pois são capazes de
revelar nossa natureza luminosa e maravilhosa. Lembramos dessa linhagem
ininterrupta de seres que, por compaixão, dedicam suas vidas – uma após a outra – a
transmitir os ensinamentos que permitem liberar o sofrimento. Então prestamos
homenagem ao Lama.
25
Vida humana preciosa
O primeiro pensamento é sobre a preciosidade da vida humana. Existem seis reinos
nos quais podemos renascer – um deles é o reino humano. Cada reino tem um âmbito
de experiência específico. Podemos vivenciar as experiências dos seis reinos com o
corpo humano – embora com muito menos intensidade.
O reino dos infernos é vivido por nós através da experiência de que todas as pessoas
que nos cercam são ruins – o filho, o marido, o chefe... Para todo lado que olhamos as
coisas são difíceis e só há sofrimento. Nos conectamos com esse reino através da
raiva e da aversão.
No reino dos seres famintos há uma experiência de carência incessante. Os fantasmas
famintos têm sempre muito pouco diante do que sentem que necessitam. Nos
conectamos a essa experiência através da avareza e ganância.
No reino dos infernos e no reino dos seres famintos não se pratica o Darma. Os seres
nos infernos dizem: "Estou sofrendo, tudo é horrível, como vou praticar?" Os seres
famintos dizem: "Preciso disso e daquilo, como posso praticar?"
Existe o reino dos animais, e eles não praticam porque tão logo estejam com suas
necessidades satisfeitas, de barriga cheia, dormem. Assim, também não ouvem o
Darma. Nos conectamos ao reino dos animais quando cedemos à preguiça, ao
cansaço, à depressão e à gula, o que resulta na obtusidade mental.
Entre os reinos superiores, há o dos deuses. Não é o reino de Deus, mas dos deuses.
No reino humano isso corresponderia à vida daqueles que têm muitas facilidades, não
têm problemas de saúde ou financeiros, desfrutam de todas felicidades do mundo
material e também são amados e livres. Os deuses têm corpos sutis, deslocam-se no
espaço e produzem benefícios para seres humanos em dificuldades. O problema é
que são benefícios condicionados, não produzem liberação. Os humanos sonham em
chegar ao reino dos deuses, e esta é sua perdição. Vivem almejando chegar lá,
trabalhando para isso, ou sonhando com isso. Conectam-se com este reino através do
orgulho.
Outro reino superior é o dos semideuses. Eles têm poder, mas são competitivos e
invejosos; passam o tempo todo combatendo. A conexão humana com o reino dos
semideuses dá-se através da inveja.
Os deuses não praticam porque estão imersos em facilidades e felicidades; então por
que praticar? Os semideuses não têm tempo para praticar porque estão sempre em
guerra.
O reino dos seres humanos tem uma vantagem. Nossas felicidades e sofrimentos não
são tão duradouros. E, quando cruzamos da felicidade para a infelicidade, buscamos
os ensinamentos. Isso é a vida humana comum. E ela é muito rara. Os outros seres
são muito mais numerosos. O corpo humano é raro e improvável. Como somos
geridos pelo carma, nosso renascimento é determinado por nossa condição cármica.
Não conseguimos dirigir esse processo.
Os mestres do passado diziam que o renascimento em um corpo humano é tão
improvável quanto uma tartaruga cega que viesse à tona a cada cem anos num mar
revolto conseguisse colocar a cabeça dentro de um aro que flutuasse na água. Nossa
condição humana atual é favorável. Os humanos têm a possibilidade de praticar.
Temos liberdade de olhar nossos impulsos e perceber aspectos mais sutis. Temos
tempo livre. Isso significa méritos. Esta é a vida humana comum. A vida humana
preciosa tem características que transcendem em muito à vida humana típica.

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Quando vivemos em épocas nas quais os seres de luz não se manifestam, nos
sentimos perdidos, e a vida parece sem sentido. Na época atual os seres de sabedoria
vieram e deram ensinamentos que foram guardados e transmitidos. Os ensinamentos
chegaram a nós, e estamos numa região onde esses ensinamentos existem. Além
disso, temos sensibilidade para ouvi-los.
A vida humana é preciosa quando, somando-se a estes fatores, estamos engajados
em transformar nossa vida a partir dos ensinamentos dos seres de sabedoria. Se
estivéssemos sob domínio de seres negativos, ou se tivéssemos um modo de ação
incorreta, não conseguiríamos ouvir os ensinamentos. Se não estamos nessas
condições, temos as características de vida humana preciosa.
Os mestres do passado disseram que, se a vida humana é numerosa como as estrelas
no céu noturno, a vida humana preciosa é tão rara quanto estrelas à luz do sol. É rara
e preciosa. Tem o poder de produzir benefícios que ultrapassam o limite de vida e
morte.

Impermanência
O segundo pensamento é sobre a impermanência. Tudo é impermanente. Estamos
sempre buscando o que é estável, mas nos enganamos. Onde estão aqueles amigos
inseparáveis dos tempos de escola? Onde está a casa de nossa infância? Nossa mãe,
pai, irmãos? O primeiro namorado, que foi maravilhoso, mas sumiu? Nossa
experiência é de instabilidade e transformação constantes. De acordo com os
ensinamentos budistas, o planeta Terra irá desaparecer. O que dizer então de nossa
pequenez, de nossos apegos?
Estamos aqui por um curto período. Com o ensinamento, aprendemos a olhar com o
olho correto a cada momento, aprendemos a olhar a impermanência. O olho incorreto
vê tudo como se fosse estável. Quando entendemos a preciosidade de nossa vida e a
usamos para produzir benefícios para outros seres, é sinal de que os ensinamentos
produziram as transformações que buscávamos.

Carma
O terceiro pensamento é sobre o carma. Estamos sujeitos a impulsos internos com os
quais não podemos lidar. Estes impulsos produzem as dez ações não-virtuosas,
originando sofrimentos específicos. O carma se manifesta em quatro níveis: imediato,
a curto, médio e longo prazo.
Vamos usar como exemplo o desejo de que alguém morra. No momento em que a
pessoa deseja tal coisa, está esquecida de sua condição búdica, luminosa, perfeita, e
isto é sofrimento imediato. O sofrimento de curto prazo é ver de modo recorrente a
morte de alguém como solução para problemas, e manter a fragilidade que faz ver o
outro como perturbador. A médio prazo, a pessoa sofrerá por desenvolver uma
aversão consciente e ativa aos valores elevados, como as tradições filosóficas e
religiosas. O sofrimento de longo prazo vai se prolongar por esta vida e por outras,
manifestando-se de forma não-consciente, como uma insensibilidade aos valores
positivos. O renascimento em reinos inferiores ocorrerá por um impulso natural da
mente deste ser, produzido pela sensação de que os valores de agressão,
competição, inércia, carência e medo são a realidade natural do mundo. Esta
percepção, sem que a pessoa saiba, já é a experiência dos reinos inferiores.
Pior do que desejar a morte de alguém é planejá-la. Aí a perturbação se intensifica, e
a pessoa poderá ter pesadelos. Se executar seu plano, a intranqüilidade aumentará

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mais. Se o outro morrer, pior ainda. A pessoa irá se sentir perseguida. Sofrerá por um
tempo que ultrapassa seu período de vida. O mesmo ocorre ao se praticar as outras
nove ações não-virtuosas. Assim, todos os seres estão vulneráveis aos resultados de
suas ações, completamente suscetíveis ao próprio carma.

Sofrimento e refúgio
Por causa do carma surge a etapa seguinte, o quarto pensamento, que é sobre o
sofrimento. Sempre que operamos com referenciais duais, estamos submetidos ao
carma, e o sofrimento é inevitável. Reconhecendo isto, o voto de refúgio surge
naturalmente: “Eu gostaria de me liberar disso, revelar minha natureza luminosa, usar
as relações que estou vivendo de forma positiva, beneficiar os seres.”
Em meio às confusões do mundo e tendências cármicas, toda vitória que podemos ter
é como vitória no futebol – frágil, impermanente. Mas então resolvemos mudar:
fazemos o voto de refúgio para ir em busca de nossa natureza completa. Esta nossa
vontade de mudar é testada várias vezes nas circunstâncias do mundo, isto é prática
espiritual. Enfim, como resultado do refúgio e da prática, a paisagem ao nosso redor
transforma-se de samsara, lugar de sofrimento e enganos, em terra pura, que é onde
praticamos, recebemos ensinamentos e nos sentimos protegidos pelos seres de
sabedoria.
Os Budas olham o que chamamos de samsara e vêem a perfeição que ali existe.
Somos como formigas num enorme palácio humano, não conseguimos reconhecê-lo
com nossos olhos de formiga. Devemos percorrer uma longa etapa de transformação
de nossos olhos, até que possamos reconhecer o palácio.

Quatro qualidades incomensuráveis


Paralelamente ao processo de transformação das tendências cármicas, o Buda
ensinou a prática ininterrupta das quatro qualidades incomensuráveis. É o método
positivo de manifestação no cotidiano, solucionando confusões e conflitos.
A primeira qualidade é a compaixão, o desejo de que os seres realizem sua natureza
interna e se livrem de suas complicações. Essencialmente é o desejo de que o outro
supere suas dificuldades e possa melhorar. Atenção: compaixão é diferente de pena.
Quando temos pena, validamos a imagem que a pessoa faz de si mesma, e que é a
razão de ela estar mal. Compaixão é reconhecer no outro sua natureza estável,
perfeita, luminosa, sua condição verdadeira, quebrando o encanto dos jogos mentais
que estão produzindo as complicações.
A segunda qualidade é o amor, o desejo de que o outro seja completamente feliz. Esta
qualidade deve abranger ex-maridos, ex-esposas, ex-sócios...
A alegria é a terceira qualidade. É a capacidade de se alegrar com as alegrias e
vitórias dos outros, pequenas ou grandes. É um poderoso antídoto contra a inveja.
A quarta qualidade incomensurável é a equanimidade. Trata-se de perceber a
flutuação de alegria e tristeza da vida: num momento se tem uma grande alegria, em
outro aquela mesma coisa transforma-se numa grande tristeza. A equanimidade faz
surgir uma serenidade estável frente às flutuações e uma fé permanente e inabalável
na natureza de todos os Budas, que é nossa própria natureza.
Estes métodos são positivos também nas relações humanas – casamento, namoro,
criação de filhos, trabalho, estudo. Em primeiro lugar, em vez de perguntar: "O que
vou obter do outro?", indagar: "O que posso oferecer?" Alegrar-se em oferecer! Se

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dependemos do comportamento do outro para obter felicidade, podemos ficar bem
por um tempo, mas entraremos em crise quando surgir a impermanência e o outro
flutuar. Sua Santidade, o XIV Dalai Lama, sempre brinca: "Que tipo de amor é o de
vocês? Aquele que só existe se o outro sorrir?" Este amor baseia-se no que
recebemos e, por isso, é frágil.
Praticando as quatro qualidades incomensuráveis, podemos usar a vida cotidiana
como caminho espiritual, superando os conflitos internos, manifestando bondade e a
natural moralidade, e trazendo benefícios a todos os seres.

(Ensinamento proferido no Campus Semente da Fundação Peirópolis, em Uberaba, Minas Gerais, em


1998)

III. Propósito da educação no budismo

A palavra aprendizado usualmente diz respeito a cognição, implica em acerto e erro.


Ainda que tenhamos uma abordagem geral a respeito disso no budismo, quando o
Buda diz: "Testem o que eu digo", não se refere apenas às coisas práticas, sejam elas
racionais ou emocionais; refere-se à fé também. Fé diz respeito à vida como um todo,
não pode ser facilmente testada. Ainda assim podemos considerar que exista o
critério de acerto e erro, mas muito além do sentido ordinário que se dá para isso.
Usualmente a questão da aprendizagem nas diferentes tradições, inclusive no
budismo, se coloca num sentido muito amplo, de transformação interior.
Como a educação costuma limitar-se à perspectiva cognitiva, é muito raro chegarmos
ao nível emocional; acaba tratando-se apenas de uma questão de mudança de
opinião. Muito mais raro ainda seria ir além dos padrões habituais da percepção
sensorial em si, chegando ao nível cármico e sua transcendência.
A abordagem cognitiva não toca sequer no segundo nível, o emocional. Pensemos nos
torcedores de um time que perde a final de um campeonato. Ainda que encontrem
justificativas discursivas para a derrota, o sentimento de dor segue. Outro exemplo:
para uma pessoa que é demitida do trabalho, eventuais justificativas não consolam o
lado emocional. Podemos ter uma namorada e perdê-la, e em nosso sofrimento não
somos capazes de ver toda uma diversidade de outros seres maravilhosos ao nosso
redor. Por outro lado, podemos saber que estamos com a mulher da nossa vida, mas,
curiosamente, outros seres seguem tocando o nosso coração. No nível emocional a
pessoa sabe que deve pedir um aumento ao chefe. Os amigos dizem: "Vá lá e peça o
aumento." Mas quando chega o momento, ela não consegue bater na porta ou perde
a voz, ou age de maneira brusca e irrita o chefe.
Além do aspecto emocional invasivo que limita nossa vida e determina nossa
experiência e forma de viver, existe um aspecto mais sutil, os carmas que nem
percebemos que estão presentes, como os que definem nossa experiência sensorial –
nossa visão, por exemplo. Uma pessoa pode operar com seus sentidos
completamente atrelados a uma percepção cármica. O exemplo clássico: ver uma
cobra onde há uma corda enrolada.
A operação mental legitima aquilo que percebemos cognitiva, emocional ou
carmicamente. Estamos presos ao automatismo, e, através disto, os sentidos físicos
nos introduzem em realidades virtuais. Se não fosse assim, os filmes no cinema não
funcionariam. Acontece que a emoção passa através dos sentidos físicos e viajamos
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mentalmente devido aos automatismos cármicos de resposta. Cada vez que vemos o
filme, secretamente desejamos que o Titanic não afunde e conduzimos nossas
emoções de acordo com os eventos na tela, mesmo que já saibamos o final do filme.
Toda a educação no budismo está baseada em recuperar a liberdade. O objetivo não
é adaptar a pessoa à experiência convencional de um mundo circundante, pré-
existente e independente. Nossa experiência convencional é de que, se
desaparecemos, o mundo continua. Convencionalmente vemos um mundo que nos
acolhe, mas que é separado de nós. Esta é a experiência condicionada e limitante de
samsara. No sentido budista, quando olhamos esta situação, não seguimos esta
perspectiva. Os Budas olham esta situação de outra maneira, eles foram além dos
diversos processos ilusórios da mente.
Quando superamos os três automatismos – cognitivo, emocional e cármico (sutil) –, o
mundo se transforma completamente. A forma de reconhecer nossa situação se
transforma completamente. Uma vez que isto se altera, surge o ideal de liberação
daquilo que nos produz uma experiência limitada. Em vez de tentar nos adaptar a
este mundo, tentamos nos liberar dos automatismos que produzem as experiências
limitadas. Esta é a perspectiva mais profunda de educação no budismo. De fato, este
é também o sentido de liberação.
Isto não pode ser percebido pela maioria das pessoas; portanto, existem
ensinamentos extensos nos quais focamos os elementos de condicionamento etapa
por etapa e utilizamos as ferramentas para liberá-los.

Defeitos do pote
No sistema de educação budista é muito difícil acreditar que alguém possa avançar
sem um guia. Não é má vontade, é que as ilusões são muito profundas, e além do
mais temos intranqüilidades próprias, internas. Ainda que estejamos escutando
instruções, nossa mente divaga. Outras vezes começamos a refletir sobre o que
ouvimos e perdemos o ensinamento seguinte.
Por isto na educação budista começamos ouvindo sobre como ouvir. Tentamos
desenraizar os obstáculos mais evidentes. O ouvir tem obstáculos imediatos.
Precisamos desenraizar o que chamamos de três defeitos do pote. É fácil ver que
diferentes seres têm diferentes tendências, e é muito raro o pote ser realmente
perfeito, ou seja, receptivo. A raiz dos defeitos do pote está na ação das seis emoções
perturbadoras.
O primeiro defeito é o pote emborcado, no qual não se pode depositar nada. A pessoa
chega para ouvir, mas não apreende nada. A origem deste defeito está no orgulho ou
na inveja. Se pudermos substituir estas emoções pela humildade e pelo apreço ao
professor, poderemos superar este defeito.
O segundo obstáculo é o pote rachado. O ensinamento entra no pote, mas não se
mantém lá. O progresso é muito lento. A pessoa acredita que aprendeu, mas logo em
seguida tudo se foi, e ela não sabe o que aconteceu. Este defeito surge quando a
pessoa está fixada a referenciais da roda da vida, e, portanto, não tem a motivação
correta para buscar a liberação. Isto pode ser provocado por qualquer uma das seis
emoções perturbadoras, ou por combinações entre elas.
Há o pote envenenado, o caso mais grave. Nesta situação os ensinamentos não
produzem benefício, pois o pote está contaminado, corrompendo tudo o que nele é
depositado. É quando a pessoa tenta converter os ensinamentos a exemplos de suas
visões distorcidas. Isto também pode ocorrer por influência de qualquer das emoções
perturbadoras.
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É importante que os ouvintes sejam bons potes. Pode acontecer de ouvirem e
gerarem amargor, oposição ou misturarem os ensinamentos com suas próprias
teorias e continuarem a operar dentro de contextos limitados. Isto significa utilizar os
ensinamentos para gerar habilidades capazes de produzir vitórias transitórias, ou
seja, vitórias com todos os obstáculos inerentes à roda da vida.

Amplidão
A primeira coisa de que precisamos é sabedoria para ouvir. Surge então a segunda
parte dos ensinamentos: motivação e resultado. Isto é muito importante para
organizações não-religiosas, pois a maioria de seus objetivos são impermanentes.
Vivemos num tempo em que os objetivos estáveis são praticamente desconhecidos.
Se tivéssemos a lâmpada de Aladim e fizéssemos como ele, pediríamos comida, uma
esposa e um palácio. Poderia não ser uma boa forma de utilizar o poder extraordinário
da lâmpada. Se o gênio dissesse: "Vou lhes dar uma quarta coisa, uma coisa que a
impermanência não destrua”, então talvez disséssemos: "Quero riqueza ilimitada."
Mas mesmo as coisas muito grandes dentro da visão separativa são limitadas, entre
elas a riqueza, seja do tamanho que for. Para nós é muito difícil imaginar uma coisa
que não seja impermanente.
Por isso existem ensinamentos sobre o que é permanente e impermanente. Não
importa o que obtenhamos no mundo da existência cíclica, estaremos sempre
operando como equilibristas, às voltas com urgências, prioridades e ansiedades.
Todos os seres dentro da roda da vida estão presos a uma atitude contínua e urgente.
Nesta primeira categoria de ensinamentos somos levados a gerar uma motivação
para ir além da impermanência, somos levados a desenvolver uma motivação para o
que está além do espaço e do tempo, além do que chamamos de roda da vida.
Em seguida recebemos ensinamentos sobre a amplidão de nossa natureza e a
inseparatividade. Não se trata de fugir da roda da vida, o que buscamos é um
interesse muito maior pelos seres. É algo completamente diferente da experiência-
raiz da roda da vida. A experiência da roda da vida está ligada a prazer e dor, desejo
e aversão. Esta segunda experiência está baseada na capacidade de compreender e
atuar de forma muito mais ampla que a própria identidade. A comprovação desta
amplidão é a capacidade de se alegrar com experiências cada vez mais altruístas.
A primeira visão de transcendência é percebermos que nossa experiência de ser
transcende nossa identidade. Ou seja, do ponto de vista de nossa experiência, nos
alegramos ao fazer certas ações em detrimento daquilo que consideramos lucros
individuais.
Quando os Budas, os grandes seres, observam esta natureza, a percepção que têm é
de algo ilimitado. O aspecto ilimitado da natureza é o que de fato chamamos de Buda,
que significa “liberto das limitações”. Todo processo de treinamento ou educação
segundo os valores budistas está centrado no treinamento dessa natureza, de modo
que, em vez de focarmos nossa identidade estreita, reconhecemos nosso ser dentro
dessa experiência ilimitada.

Remoção de obstáculos
Os grandes mestres dizem que nossa natureza parece estreita devido a uma
construção, e chamam o processo de aprendizagem – a desconstrução – de remoção
de obstáculos. Esta é uma abordagem geral. No treinamento budista, quando este
aspecto é compreendido, quando é vivenciado, mesmo que parcialmente, há uma

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decorrência, um resultado. É a confiança, não propriamente cognitiva. A confiança na
natureza que então se percebe está além de todas as histórias particulares que
possam surgir para a identidade estreita construída. Não se trata de teoria, é um
aspecto vivenciado sensorial, cognitiva e emocionalmente.
Como isto pode manifestar-se na prática? Se isso tem valor, algum resultado prático
deve ocorrer. Qual o resultado prático desta abordagem?
Há uma vastidão de resultados práticos. Em relação às comunidades humanas e ao
benefício que os seres podem receber individualmente, surgem a liberdade e a
conseqüente amplitude de visão. A liberdade manifesta-se através da amplitude de
visão. Coisas que os seres em geral vêem como obstáculos são vistas pelos grandes
seres como situações com grande potencial de benefício.
É uma visão múltipla, como se houvesse mais dimensões. Dito assim parece
esotérico, místico. Estes aspectos podem estar incluídos, mas não necessariamente.
De acordo com os ensinamentos, tudo que surge externamente é inseparável do que
parece ser o mundo interno. Se percebemos apenas o exterior, estamos presos dentro
de paredes concretas e constantes. Por outro lado, se percebemos a conexão entre os
dois níveis, ganhamos liberdades inesperadas pelas mudanças externas ou internas.
Se nos defrontamos diretamente com um adversário ou inimigo no local de trabalho,
as alternativas não são boas para nenhum dos dois; mas, se atingimos a amplitude de
visão, podemos transformar os inimigos unilateralmente.
Existem ensinamentos sobre como transformar obstáculos em vantagens. Não se
trata de usar uma visão idealista, mas de ter o poder de transformar unilateralmente
as coisas que são obstáculos para nós e para os outros seres. Existe uma vastidão de
conseqüências relacionadas com essa percepção da inseparatividade dos mundos
externo e interno. Perdemos muito quando olhamos o mundo externo como fixo,
como um lugar onde temos pouca margem de manobra.
Todas as situações cármicas são impermanentes, são uma questão de perspectiva.
Um exemplo é a diferença entre o reino dos deuses e o reino dos infernos. Há um
exemplo clássico, em que os seres dos infernos e os deuses estão em uma mesa
cheia de comida, mas seus braços são grandes demais e não possam ser dobrados.
Os seres dos infernos passam fome, mas os deuses têm o discernimento de se
alimentarem uns aos outros. Eis um exemplo típico de mudança de perspectiva. No
inferno a comida está ali, a mesa está ali, a fome está ali, e o braço realmente não
alcança a boca. Se aqueles seres pudessem apenas ampliar suas percepções, pensar
nos outros e usufruir de sua liberdade, estariam saciados. Quando usufruímos dessa
liberdade, aparecem seres por todos os lados querendo ajudar. O deus se vangloria:
"Que lugar maravilhoso, estou oferecendo comida a um, e 99 me oferecem comida!"
No inferno o ser também está objetivamente certo: "Somos cem seres miseráveis."
Todos os problemas estão nesta categoria. Ou seja, temos graus de liberdade
adicionais, mas será necessário nos transferirmos para outras paisagens mentais,
ampliar nossas perspectivas, antes de que possamos usufruir de nossas liberdades.
O objetivo da educação no budismo é oferecer liberdades que não percebemos
usualmente. Liberdades em relação àquilo que chamamos de roda da vida. Estas
liberdades só podem ser acessadas removendo-se os obstáculos construídos.

Professor
O professor representa os ensinamentos do Buda. Curiosamente, os ensinamentos do
Buda não são budistas, apenas proporcionam a liberação dos condicionamentos
automáticos. Os ensinamentos são importantes para todos os seres, não importando
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quais sejam suas convicções religiosas. No budismo não há qualquer ênfase em
converter as pessoas, o que importa é ajudá-las a perceber mais profundamente as
realidades e liberdades em cada situação que vivam e em cada papel com que se
identifiquem. O ensinamento busca a transcendência, ou seja, a liberdade de criar e
estabelecer universos mentais, e também liberdade frente ao que foi criado.
Para ser professor, a pessoa deve ter ouvido os ensinamentos e desenvolvido certa
clareza vivencial sobre os temas. Sem isto, não pode ensinar. Por outro lado, quando
a experiência estiver clara, e ela puder falar sobre a liberdade e visão de que já
usufrui, reconhecerá que não é uma sabedoria pessoal sua, mas uma característica
do Buda. Neste sentido, a pessoa sente-se completamente inseparável do Buda.
Surge a compreensão profunda de que a mente do Buda é igual à de todos os seres, e
há seres que usufruem disto de forma consciente e outros não.
Surge uma imagem cósmica do Buda como um impulso universal em direção à
liberdade e à felicidade, e todos que usufruem disso e dedicam-se a facilitar o acesso
dos outros a esta liberdade e felicidade são completamente inseparáveis do Buda.
Não é uma característica ou posse pessoal, mas uma condição de liberdade e
felicidade. Desta experiência surge a noção de bodisatva – sua visão é ampla, e ele
utiliza suas características pessoais particulares como meio de espelhar a natureza de
liberdade que é inerente a todos. É como um lago que, justamente por ser um lago
particular no espaço e tempo, reflete a natureza ilimitada da lua em sua superfície.

(Ensinamento proferido em Florianópolis, em 1999)

IV. Meditação

Tendo compreendido a impermanência e abandonado os objetivos correspondentes à


roda da vida, entendemos que sem serenidade a sabedoria não é possível; por isto
buscamos repousar naquilo que é estável. Buscamos estabilidade de corpo, fala e
mente, para nosso benefício e benefício de todos os seres. Por isto meditamos.
A meditação sempre implica na observação e disciplina de três aspectos – corpo, fala
e mente. A primeira âncora é o corpo. Apenas sentando imóveis já estamos
removendo obstáculos que se interpõem à ação de imobilidade. Nesta etapa, a
imobilidade em si é prática espiritual. A imobilidade nos tira parcialmente de samsara;
se nos movemos é sinal de que nossa mente tem um grau de agitação tal que a
meditação pode não ter utilidade em um primeiro momento. Ao ficarmos imóveis
estamos disciplinando a mente através do corpo.
Em nossas atividades, é comum respondermos automaticamente a tudo que aparece.
De acordo com diferentes circunstâncias, fazemos diferentes gestos. Nesse momento
vamos usar um processo indireto de pacificar a mente. Contendo o corpo, em um
certo sentido contemos a mente, esta se torna mais pacífica. Com o corpo parado, os
objetos sobre os quais a mente pode focar sua atenção se restringem, há menos
opções. Este é o primeiro foco prático da meditação sentada, a imobilidade do corpo.
A segunda âncora é a fala, que inclui a respiração e também as energias internas do
corpo. Nesta etapa, fala significa respiração serena, inspirar e expirar serena e
silenciosamente.
O terceiro aspecto é a mente, que foca a respiração e a experiência de serenidade.
Esta experiência de serenidade não é iluminação, nem liberação – é um método de
treinamento. É a prática do repousar tranqüilo.

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Podemos escolher um objeto para nos fixarmos. Sem isto, a mente em geral vagueia
aleatoriamente, operando carmicamente. Um objeto produz outro, que produz outro,
e saímos vagueando. Esse vaguear da mente produz o vaguear das energias, dos
vários impulsos, do que decorrem as várias ações.
Estamos no caminho de reencontrar um rumo seguro, um eixo. Como disse o Buda,
vivemos sob o domínio do carma, é como se estivéssemos sob o domínio de seres
sutis que direcionam nossas energias internas e definem nossas fixações sutis. Para
chegarmos ao ponto no qual o Buda constatou: "Livrei-me daqueles que foram meus
senhores durante vidas incontáveis – as disposições mentais e os agregados", há
ainda um longo trabalho, que começa quando olhamos face a face os impulsos
cármicos e optamos pela liberdade. O processo mais direto de atingir isso através da
meditação começa com a prática da imobilidade do corpo, mas o carma vai se opor,
vai tentar desestabilizá-lo, desencorajá-lo, deprimi-lo.

Respiração
Na primeira etapa do treinamento em meditação, a mente busca a serenidade e
mantém o foco na respiração. Tudo o que se passa em volta – vozes, ruídos,
acontecimentos – é descartado como movimento externo. Também se descartam os
movimentos internos da mente – pensamentos, sensações, emoções. Não focamos
nada disto, mantemos a mente ancorada na respiração e na imobilidade do corpo.
A posição do corpo é coluna ereta, mãos juntas, com os polegares mal se tocando. Se
os pensamentos brotam com intensidade, surge uma energia correspondente, e a
pessoa aperta os polegares involuntariamente. Teste você mesmo e veja que é assim.
Quando se fica sonolento, os polegares se afastam. A posição mais adequada para as
pernas é a de lótus, ou seja, pés sobre as coxas, com as palmas para cima. O queixo
fica recolhido.
O corpo não fica totalmente relaxado, é necessária a decisão de sustentá-lo na
posição, isto faz parte do processo. Sustentamos os dedos, os braços. Os olhos fitam à
frente, ou focam o chão em um ângulo de 45 graus, as pálpebras podem ficar
completamente abertas ou semicerradas. A respiração é abdominal, através do nariz
e dos lábios, que ficam entreabertos.
Toda a distração mental ou movimento do corpo é visto como perturbação da
meditação. Ainda que ocorra, evitamos ficar irritados. Não criamos tensão, não
forçamos; no momento em que percebemos a distração, retornamos ao foco.
Seguimos assim até o ponto em que nossa mente naturalmente se estabiliza. Quando
a concentração aumenta, podem surgir outros obstáculos, como perturbações visuais
– luzes, cores, imagens etc. Retomamos o foco e a motivação e seguimos sem
impaciência.
A posição de fala é o silêncio, a respiração serena. Neste momento surgem os olhos
que vêem além das imagens, além da forma. Vemos ventos internos, energias, vemos
se o amor ou a compaixão estão presentes, mas isso não se dá com os olhos físicos.
Não se vê isto como imagens. Através dos ventos, o amor, a compaixão e as energias
podem ser vistos de modo objetivo, concreto. A meditação mudou, a segunda etapa já
está surgindo.

Ventos internos
Na segunda etapa da meditação, buscamos um pouco mais de consciência sobre o
processo dos ventos internos que comandam os pensamentos, liberam as energias,

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regem os impulsos e a sustentação do carma. Nossa reação rápida às coisas se dá
através dos ventos, todas as coisas se manifestam através de ventos específicos,
comandados ou surgidos automaticamente.
É bom que, através da meditação, consigamos lavar as impressões residuais que
manifestam os automatismos do corpo. Quando as energias estão perturbadas,
transferem as perturbações às gotas que comandam, e isto gera desequilíbrios e
doenças. A meditação, por sua vez, atua sobre a energia e os ventos, estabilizando-
os, harmonizando-os, o que produz a recuperação da saúde. Como fazer isto?
Com a mente focamos a respiração; inspiramos quatro dedos abaixo do umbigo e
expiramos irradiando por todos os poros do corpo. Podemos expirar direcionando os
ventos para partes específicas do corpo onde existam desequilíbrios. Primeiro uma
perna, depois a outra, progressivamente todo o corpo. Se temos alguma doença, o
local lateja. Seguimos o processo de reequilíbrio até dissolver esta sensibilidade. Esta
prática promove a recuperação da saúde e da equanimidade. Tomando a
equanimidade por referência, desenvolvemos consciência do corpo sutil que comanda
as ações e das energias que surgem inseparavelmente dele.

Prostração
Antes da meditação é muito auspicioso fazer prostrações diante dos símbolos da
natureza do absoluto. O que se prostra – nosso corpo, fala e mente duais – é
impermanente, vai desaparecer. É importante reconhecer este aspecto finito. O finito
se prostra diante do ilimitado. Vamos ao chão e fazemos a prostração de corpo, fala e
mente. Desta forma nossa mente coloca-se em uma condição receptiva, propícia à
prática.
Quando vamos ao chão, mentalmente tomamos refúgio nas Três Jóias, os três
aspectos da iluminação que se manifestam como compaixão: o Buda, a natureza
ilimitada que é também nossa própria natureza e é inseparável da natureza ilimitada
de todos os seres iluminados; o Darma, a compreensão que brota da natureza
ilimitada; e a Sanga, o conjunto dos que praticam a busca da liberdade. Quem faz a
prostração é nosso "eu", nossa identidade finita – nosso corpo, fala, mente. Isto
produz liberação, pois estamos apegados a estes aspectos. Olhando o corpo, a fala e
a mente como nossa essência, nos movemos o tempo todo protegendo os impulsos
que daí brotam. A obediência aos impulsos é a essência da experiência de uma
identidade pessoal. No momento da prostração, através da prática, desenvolvemos a
consciência deste processo e podemos liberar estas fixações.
Se acolhemos qualquer tipo de fixação, o sofrimento é inevitável. Todo sofrimento se
origina desta forma, e as dificuldades também. Quando vamos ao chão com a
intenção de tomar refúgio em nossa natureza ilimitada e tocamos o solo com os cinco
pontos de nosso corpo – mãos, joelhos e testa –, é nossa natureza limitada que está
indo ao chão, curvando-se diante da natureza ilimitada. Isso produz liberação. Quando
levantamos, é com a natureza ilimitada que o fazemos. Os cinco pontos que tocam o
chão nos liberam dos cinco venenos e das seis emoções perturbadoras, geradoras das
dez ações não-virtuosas e sustentadoras da roda da vida.
Quando vamos ao chão, deixamos as seis emoções perturbadoras – orgulho, inveja,
desejo/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo. E, enquanto levantamos,
fazemos o voto de bodicita: "Até que o samsara seja esvaziado, buscarei
incessantemente trazer benefício e felicidade para todos os seres, reconhecendo que
foram todos minhas mães e pais." As prostrações são feitas com este propósito, estas
palavras descrevem a experiência interna que acompanha as prostrações.

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Em tudo isto existe um aspecto sutil a ser considerado: a diferença entre
compreender a prática e exercer a prática. Externamente parece tudo igual, mas
dentro há uma diferença. Quando olhamos mentalmente para o que é fazer a prática,
nos vemos prostrando e levantando enquanto recitamos; mas isto não é tudo, não é a
experiência real de se prostrar, liberar-se das emoções perturbadoras, levantar-se e
recitar. Acontece o mesmo com os votos. Ainda que possamos compreendê-los,
entender como operam e verbalizá-los, há uma diferença entre isto e a real decisão
de trazer benefício a todos os seres.
No momento em que você está aqui lendo, não está propriamente praticando ou
experimentando o que está sendo dito. Há uma expressão importantíssima:
transferência de consciência. Quando efetivamente fazemos a prática, nossa mente
passa por uma transferência de consciência, e surgimos em uma paisagem de pureza.
Não é necessário que haja uma compreensão do processo, basta que ele ocorra.
Essencialmente, praticar compaixão é fazer prática; pensar sobre compaixão é
apenas pensar. Um traz transformações instantâneas para a mente, que passa a
imaginar e a ter impulsos correspondentes à compaixão. O pensar sobre compaixão
não produz energia de ação correspondente à compaixão, por isto é distinto da real
prática de compaixão.
Pode-se fazer prostrações diante de uma foto do Buda, tigelas, altar, pedras, flores,
vela. Depois recitamos a homenagem ao Buda e os votos de refúgio. Quando fazemos
esta homenagem, também homenageamos nossa própria natureza ilimitada. Se
temos a experiência de fazer a homenagem de fato, significa que estamos
reconhecendo que a natureza liberta é de grande valor. Em respeito, novamente
fazemos prostrações, uma a cada vez que recitamos cada voto de refúgio.

Etapas
Se estamos começando a praticar meditação, podemos sentar e ficar dez minutos em
silêncio; é a meditação da serenidade e tranqüilidade. Se fizermos as prostrações
antes, será muito mais fácil atingir a felicidade, alegria e serenidade, porque haverá
uma paisagem previamente purificada do ponto de vista cármico. Isto limpa as
conexões cármicas, e quando sentamos em silêncio surge uma grande emoção de
gratidão aos Budas, a todos os seres iluminados. Depois pode-se fazer mais dez a
quinze minutos de meditação com o foco na respiração e energia. Ao final, dedicamos
nossa prática ao benefício de todos os seres.
Por que essas etapas são importantes? Porque vão abrir experiências reais. A
serenidade rompe nossa ligação com o samsara. Quando atingimos a realização da
prática surge uma experiência de felicidade tão intensa que não há nenhum paralelo
no samsara. Daí em diante o samsara não tem mais o poder que tinha antes. A
pessoa descobre um foco de mente que produz méritos maravilhosos, felicidade
intensa, ofuscando todo o samsara. Ao final desta primeira etapa do treinamento em
meditação já há este poder. Por que ainda não é a liberação? Porque esta experiência
está na dependência da própria meditação – tem início, meio e fim. É impermanente,
é construída, não é ainda o estado natural de liberdade lúcida da mente, sem início,
nem meio, nem fim.
A segunda etapa do treinamento em meditação nos leva à equanimidade. Com isto há
o rompimento dos carmas sutis que se manifestam no comando dos ventos e ações.
Os carmas que não podemos localizar de forma cognitiva estão ligados a todos os
processos obsessivos de pensamentos e dependências – como raiva, inveja, fumo,
açúcar –, elementos e emoções perturbadores. Todas estas experiências são não-
cognitivas, são medos, formas de defesa das escolhas carmicamente eleitas. A
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equanimidade purifica estas marcas, mas a iluminação ainda está longe.
Em cada etapa olhamos os aspectos vantajosos, as qualidades que surgem.
Igualmente importante é olhar os obstáculos ainda presentes. Nas etapas da
meditação descritas até agora, seguimos com a experiência clara da consciência de
um "eu". Uma identidade pessoal manobra, produz todas as transformações, ou seja,
dirige a prática de meditação. Logo, estamos apenas afiando os instrumentos...
Depois aceleramos o processo e conscientemente vamos chegar aos obstáculos e
trabalhar sobre eles, aumentando a decisão de penetrar na região cármica. Mais
adiante vamos aumentar a capacidade de foco da mente, vai surgir a experiência de
concentração, quando sentamos e apagamos toda ligação a objetos internos ou a
conexões externas e repousamos completamente serenos e unifocados. Neste ponto
podemos pensar: "Estou iluminado". Seria outro engano. A liberação ainda está longe.
Está longe porque ainda existe a experiência de uma identidade pessoal como agente
de toda a ação. Ainda é meditação impura. Mais adiante surgirá a meditação pura
sem sabedoria, um processo no qual a meditação não bloqueia a ação sensorial; a
mente se mantém completamente concentrada e atenta, mas imperturbável, focando
tudo o que ocorre nas dez direções – norte, sul, leste, oeste, zonas intermediárias,
zênite e nadir.
Esta experiência é um grande divisor. Agora há méritos de estabilidade e
concentração que permitem a prática da sabedoria. É o momento para receber
ensinamentos sobre a natureza da realidade. É o acesso à experiência de que a
realidade externa e o observador surgem conjuntamente, de modo inseparável, no
mesmo fenômeno. Agora é possível a meditação com sabedoria. Fora e dentro são o
mesmo, o que não era compreendido até então. Começa, assim, uma outra etapa de
meditação, que culmina na experiência da perfeição de todas as manifestações. A
beleza e a perfeição surgem como atributos naturais de todos os aspectos do que
antes se chamava samsara. A ação no mundo não limita mais a liberdade.

(Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Bodisatva, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
em abril de 1998)

V. Superação de crises

A resolução de conflitos é um tema tradicional no budismo. Todos os ensinamentos


tratam basicamente disso, da superação de obstáculos através da percepção da
liberdade da mente. Os oitos passos do Nobre Caminho ensinado pelo Buda são o
processo padrão para se resolver conflitos. Temos conflitos de várias ordens, e a
única forma de realmente resolvê-los são os oito passos do Nobre Caminho.
A percepção da liberdade da mente pode se manifestar como resolução de conflitos, o
que está ligado à mudança de paradigma. Na verdade o termo paradigma não é
abrangente o bastante para dar conta do que acontece, mas tem sido usado neste
sentido.
Em seu primeiro ensinamento – as Quatro Nobres Verdades –, o Buda menciona a
roda da vida. A primeira nobre verdade é: “Estamos presos a uma experiência
cíclica”, ou seja, estamos presos na roda da vida.
O Buda fala sobre duka, a experiência cíclica na qual alegria e sofrimento são
inseparáveis. Seu objetivo não é nos fazer pensar que não existe saída. Pelo
contrário! Se abordarmos a roda da vida de forma elevada, perceberemos que toda
experiência é criada pela liberdade da mente. Se usarmos a liberdade da mente,
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poderemos cruzar naturalmente por dentro da roda da vida. Ao falar da experiência
cíclica, o Buda fala de um jogo mental que montamos e de nossa capacidade de criar
jogos, circunstâncias, mundos.
No ensinamento básico sobre a roda da vida, vamos tratar apenas de coisas
depressivas, difíceis. O objetivo é que acordemos para uma situação grave. Dentro da
atual perspectiva que temos de nós mesmos, a experiência da roda da vida é
catastrófica. Não importa em que ponto estejamos hoje, inevitavelmente tudo o que
tentarmos sustentar irá desabar. O Buda nos alerta para isso. É como se tivéssemos
entrado em um túnel inacabado, bloqueado. O Buda nos avisa que o túnel não tem
saída.
Não foi o Buda quem criou a obstrução, ele é nosso aliado. Se nossa ação mental e
nossa ação no mundo forem estreitas, inevitavelmente colheremos a impermanência.
Este é o ensinamento do Buda, que diz: “Observe, veja se alguma coisa que você
está fazendo tem alguma chance de não ser impermanente.” Se olharmos com
atenção, perceberemos que tudo que vivenciamos é marcado pela impermanência.
Apesar disso, a primeira nobre verdade tem um sentido libertador. Ela remove nossa
culpa. É bom lembrarmos que todos os seres estão submetidos à impermanência.
Quando a desgraça desaba sobre nós, sofremos dois impactos. No primeiro
constatamos: “Isso realmente aconteceu.” No segundo concluímos: “Sou um
fracasso.” No entanto, compreendendo a primeira nobre verdade, lembrando que
todos os seres estão submetidos a estas circunstâncias e não têm como conter a
impermanência e as dificuldades, nos damos conta de que não há por que
desenvolver uma culpa pessoal; esta é uma situação que afeta todos os seres.

Desabamento
A cada dez anos, mais ou menos, nos defrontamos com determinadas perguntas:
“Quem sou? Onde estou? Para onde devo ir?” De tempos em tempos nosso mundo
desaba, e não sabemos o que fazer. Temos a sensação de que morremos, o universo
desabou; ainda assim, após um tempo, ressurgimos naturalmente. Saímos do buraco
e dizemos: “Certo, agora sou mais experiente, mais esperto. Aprendi.”
Depois de cada crise a pessoa se julga mais esperta, experiente e capaz de definir a
direção correta, mas o processo de desabamento e recomeço segue se repetindo. Lá
pelo quinto grau de esperteza, depois de 50 anos tentando acertar, a pessoa
pergunta: “Quanto tempo ainda me resta?” Talvez nesta hora finalmente peça ajuda
ao Buda.
Quanto antes pedirmos ajuda ao Buda, melhor. Cada vez que tentamos estabilizar
algo não estabilizável, encontramos uma descontinuidade um pouco adiante. Quando
a descontinuidade surge, nós a chamamos de crise.
No budismo, todas as crises são bem-vindas. São circunstâncias que a pessoa deve
aproveitar. O budismo ensina como lidar com isso, como se comportar em meio às
crises para que estas não sejam vistas como tal. Além disso, os ensinamentos indicam
como agir para para diminuir as possibilidades de que as crises ocorram e a vida
humana preciosa possa ser preservada.

Absoluto e relativo
As crises podem ser vistas de modo absoluto e relativo.
Na abordagem absoluta, reconhecemos que, se repousarmos na natureza ilimitada,

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nenhuma crise será possível. Nossa natureza encontra a liberdade frente às
circunstâncias, a liberdade natural que não manifesta rigidez nem no próprio ideal de
liberdade. Se reconhecermos isto, estaremos livres de crises.
Nossa natureza essencial simplesmente não entra em crise. As crises só se dão no
âmbito das identidades, no âmbito das percepções relativas. Nossa natureza essencial
nunca entra em crise, isto acontece com as identidades impermanentes que
montamos. São identidades separativas, vivendo em meio a paisagens mentais ou
materiais também impermanentes. Não temos como conter o processo de mobilidade
que leva inevitavelmente ao desabamento.
Se nossa natureza reconhece que estamos além das circunstâncias, se ela se
reconhece livre das circunstâncias – como a natureza divina, luminosa, a natureza de
espacialidade, de Buda –, estamos livres de qualquer crise. Este é o aspecto absoluto
que nos impede de entrar em crise.
Existem métodos relativos, duais, para reduzir as crises. São métodos que usamos
com nossas identidades separativas. Como a dualidade permanece, não é possível
erradicar as crises, mas elas podem ser reduzidas. Tanto na abordagem absoluta
como na relativa, temos de entender como as crises são montadas e evitar os fatores
que as desencadeiam, seja pela visão transcendente, absoluta, ou pela visão dual,
relativa.

Complicações
Os problemas começam quando fixamos identidades, aspectos que não queremos de
modo algum que se movam. Podemos criar fixações através de seis motivações
básicas: orgulho, inveja, desejo/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo. São
as seis motivações mentais através das quais estruturamos identidades.
Usamos estas motivações em diversas combinações, e isto produz impulsos. Logo
depois surgem as complicações, porque os impulsos geram as dez ações não-
virtuosas. Temos impulsos para matar, roubar, manter conduta sexual imprópria,
mentir, agredir os outros verbalmente, criar intrigas, falar inutilmente, ensinar coisas
indevidas, sentir aversão a outros seres e manifestar avareza. Se praticamos estas
dez ações, nossa vida se complica, ficamos cercados de inimigos e circunstâncias
difíceis.
Se temos a percepção última, absoluta, naturalmente não vamos praticar as dez
ações não-virtuosas, nem manifestar as emoções perturbadoras. Estamos liberados.
Não haverá mais crises. Se não temos a percepção absoluta, se não atingimos a
liberação, inevitavelmente vamos trabalhar com as emoções perturbadoras e cometer
ações não-virtuosas.
Neste caso, devemos utillizar um método relativo para evitar as crises. Este método
consiste em evitar ao máximo a prática das dez ações não-virtuosas. Não se trata de
uma regra externa imposta sobre nós. Trata-se de um compromisso conosco mesmo,
de evitar as dez ações por saber que trazem sofrimento e complicam nossa vida e a
dos demais. Assim, mesmo que nossa mente opere apenas de forma limitada e as
circunstâncias do mundo desabem sobre nós, lidamos com as crises direcionando
positivamente nossas emoções e ações.

Mestre irado
Na roda da vida, existe um ser terrível, cheio de dentes, unhas enormes, enrolado
numa pele de tigre, de aparência horrível, chamado Senhor da Roda da Vida, Yama,
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ou Maharaja, ou ainda Mara. Ele personifica todas as nossas complicações. De tempos
em tempos, Maharaja aparece como o vizinho do andar de cima, o chefe, o guarda de
trânsito, o ex-marido. Nós o personificamos, nós criamos esta noção.
O que significa a personificação das dificuldades? Vemos as dificuldades na pessoa
que está à nossa frente, não lembramos que aquela mesma pessoa era um amigo
inseparável há um tempo.
No budismo é essencial que nos demos conta do papel de Maharaja. Ele tem uma
especialidade: pôr o dedo em cima de nossas fixações. Se temos uma fixação, temos
um dedo de Maharaja; duas fixações, dois dedos; três fixações, três dedos; e assim
por diante. Maharaja é melhor que computador, tudo está gravado em sua memória,
e não acontece pane, o sistema sempre funciona. Ele nos dá um tempo, mas, cedo ou
tarde, vai em cima de cada uma das fixações.
Podemos dizer que Maharaja é um grande mestre, um mestre benigno. Ele apaga
todas as nossas complicações. Mas também dizemos que é um mestre irado.
Maharaja nunca perdoa, põe o dedo em cima de qualquer imperfeição, aponta e
cobra. Não adianta camuflar os defeitos, Maharaja sempre os descobre.
De modo geral, camuflamos as ações ruins no meio das boas, misturamos coisas boas
com ruins. Fazemos com que as coisas boas sejam um pouquinho maiores, e as ruins
– aquelas que não queremos mexer – vão junto. Envolvemos tudo num pacotão
dourado e vamos puxando. Maharaja sempre dá um jeito e põe o dedo só naquilo que
não serve, salvando as coisas boas. Ele é perfeitamente justo.
O que significa ação equivocada, o que significa erro? Fixação. O problema surge
onde perdemos a liberdade. Se temos fixações, iremos nos defrontar com elas quando
a impermanência se manifestar. Aquilo que não queremos que mude vai mudar, e a
dor correspondente vai surgir. O que é flexível não produz dor, pois permitimos que
se altere. Onde temos compreensão e lucidez, não existe dor. Onde temos fixação, o
movimento produz dor. Este é o processo.
No meio disso temos a sensação de que Maharaja está presente, as desgraças estão
presentes. Se percebermos que Maharaja está apontando as regiões de fixação e se
formos capazes de olhar esse ensinamento, poderemos aprender. Ele precisa nos
ensinar de alguma forma. Como ele vai parar nossa ação? Como vai frear nosso
processo de loucura?
É como uma criança que não sabe o que fazer e a mãe diz: “Vá lá brincar com seu
joguinho.” Quinze minutos depois a mãe diz: “Venha almoçar, depois escove os
dentes e vá para o colégio.” Para a criança, a mãe é Maharaja quando acaba com a
diversão. Se isto acontece com uma coisa completamente virtual, o que ocorre
quando Maharaja chega e diz à mãe: “Este mês você não vai receber seu
pagamento.” A mãe ouve aquilo, e a situação parece muito concreta. Como ela vai
pagar as contas no final do mês?
As coisas para nós parecem todas muito concretas, da mesma forma que para as
crianças. Os mundos são todos muito concretos. Essencialmente, Maharaja vai
apontar o dedo sobre aquilo que não queremos nem pensar que, eventualmente,
possa se modificar.

Saída
Você seria capaz de fazer uma lista do que não gostaria de pensar que eventualmente
possa mudar? Todos nós temos pelo menos uma dúzia de coisas que não queremos
que aconteçam de jeito algum. Estamos na mão de Maharaja. É provável que cada

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uma das coisas que não queremos que se mova venha a se alterar um dia. É uma
situação muito difícil. Chegamos a ficar um pouco tontos quando repassamos os itens
de nossa lista de fixações. Procuramos uma saída, e ela aparentemente não existe.
No mundo condicionado não temos como evitar a dissolução das coisas construídas.
Esta é a primeira nobre verdade.
Mas nossa natureza está além dessas circunstâncias. O príncipe Sidarta percebeu
isso. Na quarta vez que saiu de seu palácio, ele encontrou um monge. Então deu-se
conta de que a liberação era possível, de que havia uma linhagem de seres que
ensinava como alcançá-la. Sidarta percebeu que aquele era o único caminho a seguir.
Existe o caminho monástico, mas existe também o caminho da prática na vida
cotidiana. Em meio à nossa vida, podemos atuar de forma livre, reconhecendo a ação
de Maharaja, mas reconhecendo que nossa natureza é maior do que as circunstâncias
que ele possa produzir. O ensinamento do Buda afirma que existe uma saída e que
nem sempre esta saída está no lugar onde esperamos. Como achamos que ela estará
em uma determinada direção, não vemos as possibilidades das outras direções.
O Buda não trouxe uma mensagem pessimista, de tristeza, de incapacidade. Ele veio
nos livrar disso. Não foi o Buda quem inventou a depressão. Ele apresentou a forma
pela qual vamos superá-la.
Se formos capazes de olhar para nossas dificuldades e reconhecer a ação de Maharaja
como a manifestação da impermanência naquilo que não queremos que se modifique,
poderemos localizar nossa rigidez, nossas construções. Esta é a primeira forma de
utilizar a adversidade – existem outras mais sutis.
Devemos seguir a sugestão de Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche: aprender a
nadar antes de cair no rio. Se cairmos no rio antes de saber nadar, será mais difícil
aprender. Devemos aprender a reconhecer a natureza de liberdade mesmo em meio
à adversidade. Quando tudo aparentemente desaba, o que fazemos? Como
reconhecer no meio do desabamento a natureza que não desaba? Este é o ponto.
Se não percebemos a natureza da liberdade quando estamos numa situação mais ou
menos confortável, é mais difícil ainda quando tudo desaba. Por isto é necessário
reconhecer e treinar esta liberdade de tal maneira que, quando as circunstâncias
mais difíceis acontecerem, haja lucidez para operar no meio delas. Este ensinamento
se relaciona às quatro etapas finais do Nobre Caminho Óctuplo.

Delusão
Na quinta etapa do Nobre Caminho Óctuplo vamos perceber que nossa mente é mais
ampla do que nossa identidade, e isso oferece outra perspectiva frente às ansiedades,
circunstâncias negativas e crises. A crise pode simplesmente desaparecer quando se
dá um “salto quântico”. Como isso acontece?
Vamos supor que exista uma locadora onde os filmes estão classificados de acordo
com os seis reinos – deuses, semideuses, humanos, fantasmas famintos, infernos e
animais. Tiramos uma fita do reino dos infernos. É sucesso garantido! Ao assistirmos o
filme, teremos os impulsos correspondentes ao reino dos infernos – medo, aversão,
raiva. Terminado o filme, retornamos às circunstâncias comuns de nossa vida.
O que aconteceu no filme que nos fez sentir aquela angústia? Sentimos angústia e
raiva porque ficamos dentro de um tipo de operação mental. Não dá para culpar a
televisão, as cores, riscos, imagens e sons que apareceram ali, porque a raiva não
estava ali, o medo não estava ali. Não estávamos ligados a um cabo que nos trazia o
medo através de uma polaridade elétrica. O filme apenas fez surgir o que já estava

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dentro de nós. Aquelas emoções estavam latentes, tínhamos tudo preparado. Se
examinarmos a tela depois do filme, veremos que ela continua igual, não tem nada lá.
No filme havia fogo, mas a tela não está chamuscada. Havia tiros, mas a tela não está
furada. Onde tudo aquilo ocorreu? Onde todas aquelas emoções ocorreram?
Aquilo tudo ocorreu dentro de uma paisagem, de um universo mental que validou
aquelas circunstâncias. Achamos que isso só acontece num filme, mas não é verdade.
Quando começamos a estudar, vemos que o universo onde nos movimentamos é um
universo de delusão. Temos uma natureza cármica que escolhe as opções de marcas
mentais de que dispomos e nos oferece uma experiência emocional e uma
experiência cognitiva junto com a aparência que as coisas então adquirem. Isso não é
um fenômeno que só acontece no cinema, é algo que acontece em nossa vida.
A arte talvez seja uma linguagem a ser explorada no Darma, porque proporciona
experiência. A experiência não está dentro do objeto de arte; o objeto apenas permite
que vejamos diretamente o que está dentro de nós, o nosso conteúdo. Toda forma de
arte é um espelho que revela direta e palpavelmente o que temos de marcas e
carmas.

Natureza liberta
Começamos a avançar sobre a sexta e a sétima etapa do Nobre Caminho quando
reconhecemos que o mundo que estamos vendo é exatamente isso – o mundo como
nós o vemos! O mundo surge inseparável da experiência de “eu”. Quando digo: “Eu
surjo”, o mundo surge junto. Se a cada dez anos mudamos nossa identidade, a cada
dez anos o mundo também muda. Se olharmos fotografias, elas serão diferentes
agora. Se olharmos livros, eles serão diferentes. Lembramos das pessoas, e elas
também são diferentes. Temos impulsos diferentes, compreensões diferentes, e tudo
se torna efetivamente diferente.
Por que as coisas ficam diferentes? Porque são inseparáveis de nós; quando
mudamos, as coisas mudam. Essa percepção é essencial no budismo, sem ela não há
liberação.
Para haver uma crise, é necessário acreditarmos que as circunstâncias nas quais elas
acontecem são completamente rígidas, fixas. É preciso acreditarmos que aquilo é
como é. Não percebemos que as coisas são inseparáveis da forma como nós mesmos
surgimos. Se surgimos dentro de nossa natureza ilimitada, a crise cessa
instantaneamente, seja ela qual for. Mesmo a morte cessa, a experiência de morte
cessa, ainda que o corpo morra.
Este é o ponto essencial. O Buda aponta para o reconhecimento desta liberdade.
Então, quando voltamos para nossa crise, ela parece estreita. Parece a crise de uma
criança cujo doce caiu no chão.
O exemplo do Buda foi receber a ação de Mara e compreender a liberdade que havia
dentro da circunstância que ele estava vivendo. O Buda sentou sob a árvore bodhi e
disse a Mara, o Senhor da Roda da Vida: “Vou derrotá-lo!” Então surgiram exércitos e
coisas completamente inauspiciosas, que se dirigiram ao Buda para atacá-lo. Isto
corresponde a todas as possibilidades, incertezas e aflições que ele pôde localizar
dentro de si. É como se olhássemos para nossa lista de coisas que nem queremos
pensar que possam eventualmente desabar e ameaçássemos Mara, dizendo: “Vou
derrotá-lo!” O que vai acontecer? É certo que ele vai atacar nossa listinha.
Quando Mara atacou a lista do Buda, ele já estava livre dela. O Buda transformou o
ataque de Mara em flores e perfumes. Ele olhou aquelas coisas e pensou: “Estou livre
disso! Minha natureza é mais ampla, minha identidade se dissolveu, as fixações se
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dissolveram. A natureza ilimitada não pode ser alcançada por isso!” Não foram
apenas pensamentos, foi a experiência da natureza ilimitada.
E assim, um por um dos ataques de Mara transformou-se no ornamento da
experiência da natureza liberta. Este é o ensinamento do Buda – um ensinamento
sobre como viver as crises. Ele atingiu a iluminação não por ter encontrado um
mestre que dissesse: “Vou lhe ensinar um jeito de nunca ter problemas”, mas por ter
evocado o mestre dos problemas, o terrível Mara.
Maharaja foi mal entendido. Ele é inseparável da natureza ilimitada de Buda. Como
poderíamos nos livrar de nossas fixações se não passando pela prova final de nos
libertarmos delas? Mas nem queremos pensar nisso porque estamos efetivamente
presos a nossas fixações. Estamos presos a universos mentais. Nossa condição não é
a oitava etapa do Nobre Caminho, que foi quando o Buda experimentou a libertação.
Na sétima ele estava em treinamento, foi quando passou seis anos na floresta
contemplando a natureza da realidade de uma forma profunda. Quando atingiu a
maturidade desta compreensão, sentiu-se capaz de desafiar Mara.

Moralidade
Para reduzir as crises, praticamos a quinta etapa do Nobre Caminho, exercendo a
amplidão de nossa natureza, que é maior do que nossa identidade. Nesse caso já
estamos manifestando a liberdade natural da condição de Buda, estamos operando
além de nossa identidade. Quando fazemos isso, surgem a felicidade e a alegria.
Quando examinamos as melhores coisas que fizemos, as coisas que mais nos deram
satisfação, geralmente estão ligadas a algo generoso que fizemos para alguém, um
momento no qual transcendemos nossa limitação e fizemos algo realmente bom para
alguém. Este tipo de ação se torna permanente, a lembrança disso sempre produz
energia e estabilidade para nós.
O que fizemos de bom para nós às custas dos outros torna-se cada vez mais amargo
com o passar do tempo. O que fizemos de bom para nós já se foi. No entanto, o fato
de termos causado mal a alguém para fazer bem a nós mesmos fica cada vez mais
doloroso.
A base do budismo está em reduzirmos o sofrimento para nós e para os outros.
Quando causamos sofrimento aos outros, com o tempo isto traz sofrimento também
para nós. Por isso evitamos fazê-lo.
A moralidade não é uma regra externa a ser obedecida. Toda ação moral no budismo
está ligada a lembrar que, quando nos movemos, podemos estar trazendo sofrimento
para os outros ainda que sem querer. A conseqüência será sofrimento para nós
mesmos mais adiante. Não é isto que queremos, queremos felicidade. Então,
devemos cuidar nossas ações e agir de forma que a felicidade seja possível.
Praticando as dez ações não-virtuosas, criaremos sofrimento para nós.
Temos três etapas para evitar o sofrimento. Na primeira, a mais simples e direta,
evitamos causar mal e tentamos produzir benefícios para os outros, tentamos conter
nossa mente de alguma forma. Na etapa intermediária, olhamos para os obstáculos e
reconhecemos que eles apontam nossas fixações. Tentamos então trabalhar essas
fixações. Tentamos reconhecer que nossa natureza está além disso. Na etapa final,
reconhecemos a natureza ilimitada, a natureza de inseparatividade que nos liga a
todas as circunstâncias. Reconhecemos também o brilho da natureza última
produzindo a aparência da realidade, a aparência de nós mesmos. Reconhecemos
aquilo que não nasce e não morre.

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É como se tivéssemos duas etapas de preparação e uma etapa culminante. Na etapa
culminante, que também é a oitava etapa do Nobre Caminho, reconhecemos toda
manifestação, seja de sofrimento ou de alegria, como inseparável, como a mente
luminosa – curiosamente, a mesma mente que olha para uma tela no cinema e tem
emoções, compreensões e escolhas, mas não morre quando os personagens morrem.
Nossa natureza é assim, não nasce e não morre, mesmo que tenhamos a impressão
de que ela nasce e morre.

Mudança de paradigma
Às vezes os ensinamentos podem parecer pouco práticos. Você pode dizer: “Tudo
bem, lama, entendi tudo, mas tenho um pequeno problema: hoje é dia dezoito, e no
dia vinte tenho de saldar uma conta. O que vou fazer? Explicar ao gerente do banco o
Nobre Caminho Óctuplo? Ele pode até compreender, mas não vai poder me ajudar...”
Como achamos que não é prático, temos de resolver caso a caso. Quando quatro
montanhas desabam sobre nós, temos de ver quais são nossos méritos para escapar.
Se estamos em crise é porque temos a compreensão disto e de vários outros aspectos
como sólidos. Então é necessário olhar da forma mais ampla possível, temos que ver
o que queremos e podemos flexibilizar. Não é possível flexibilizar tudo, não temos
essa disponibilidade, pois ainda não alcançamos a liberação.
Neste caso, é necessário alguém que nos ajude, que perceba quais liberdades que
permitimos e quais são possíveis trabalhar. A lucidez dessa pessoa está na percepção
de liberdade que pode ver em nós. Se a pessoa que pretende auxiliar não vê
liberdades e posições de flexibilidade em nós, não tem como ajudar.
Quando queremos ajudar alguém, temos de ter habilidade para oferecer opções de
flexibilidade e também de reconstruções positivas mais estáveis em alguma direção.
Para ajudar, precisamos ver liberdades que o outro não está conseguindo ver. O
processo é sempre esse. Temos de nos ampliar, reconhecer nossa natureza mais e
mais ampla. Às vezes parece completamente impossível, mas, com uma troca de
paisagem, as coisas se tornam viáveis.
Vou usar como exemplo um caso verídico, ocorrido na Editora Peirópolis, de São
Paulo. Um assaltante entrou na empresa com um revólver na mão, gritando: “É um
assalto! Todos para o banheiro!” Naturalmente, todos obedeceram. Alguém teve a
idéia de jogar um vaso na cabeça do assaltante, mas os outros não concordaram, pois
contrariava os ideais pacifistas do grupo. Um outro então perguntou ao assaltante
sobre sua vida, se ele não ficava nervoso durante o assalto, como havia sido sua
infância... O assaltante começou a contar sua história. Um pouco mais tarde, todos
estavam conversando animadamente. O assaltante então percebeu que estava cheio
de carteiras na mão e começou a devolvê-las. Continuaram a conversa, tomaram um
chá, e o assaltante foi embora.
O que aconteceu? Uma mudança de perspectiva, uma mudança de paradigma.
Alguém olhou o assaltante de outra forma, e o assaltante também mudou de visão.
De repente, ele não era mais assaltante.
Qualquer pessoa pode objetar: “Isso não dá! Ladrão é ladrão, vítima é vítima.” Mas
esta rigidez não existe. O que aconteceu com o assaltante pode acontecer conosco.
Estamos nos sentindo vítimas e, de repente, não nos sentimos mais. Ou estamos nos
sentindo agressores e, de repente, este papel desaparece. Temos esta liberdade. É
muito bom que nos lembremos disso. É isso que o Buda veio ensinar.
Não somos rígidos como parecemos ser. Quando estamos em sofrimento, estamos
enrijecidos em alguma coisa. Temos mecanismos de fixação e, quando o sofrimento
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começa, parece que enrijecemos mais e mais. Aí só pensamos conforme os
panoramas nos quais o sofrimento é sólido, visível.
Já vimos o resumo dos três aspectos de como o budismo trabalha as crises e de como
podemos agir em termos práticos. Agora, se não temos a visão clara e estável disto, é
bom que peçamos ajuda. É importante pedir ajuda em situações nas quais não temos
competência isoladamente.
O aspecto mais profundo da forma de lidar com as crises está magnificamente
representado pela história de Cristo e tornou-se um legado do cristianismo aos seres
humanos. Cristo foi pregado na cruz. É uma derrota completa, não é? Ele teve que
subir a montanha onde seria crucificado carregando sua cruz. Arrastou-se com a cruz,
passou pela vergonha de caminhar em meio às pessoas que antes pensavam que ele
fosse um ser completamente poderoso, capaz de resolver qualquer problema. Cristo
foi pregado na cruz, agonizou e morreu. Mas, três dias depois, ressuscitou. Superou as
piores circunstâncias para mostrar que, depois de tudo, sua natureza seguia intacta.
O sofrimento de Cristo não é comum. Não existe derrota maior que a dele. Até um de
seus discípulos o negou, como ele havia antecipado. Nenhum mestre gostaria de ter
um discípulo assim. Cristo sabia de tudo, mas sua derrota é seu ensinamento. A glória
de Cristo é a superação da pior circunstância que pode ocorrer a alguém. Só a
lembrança deste fato, de saber que Cristo morreu e ressuscitou, já nos ajuda. Perto
dos sofrimentos de Cristo, os nossos empalidecem.
Podemos manobrar coisas, dar jeitinhos, mas existe um limite. Quando manobramos,
o ensinamento budista diz: isso não é liberação, isso é o modo de agir na roda da
vida, mas a efetividade desta ação não passa de um certo ponto. Em um determinado
momento, vamos ter mesmo que cruzar pelas piores circunstâncias. Quando isto
acontece, surge a possibilidade de liberação, como ocorreu com o Buda, a revelação
da natureza ilimitada que está além da roda da vida.
O ensinamento budista não diz que você vai se livrar das dificuldades. O budismo
ensina que, no meio das dificuldades, sua natureza última não entra em sofrimento,
não pode ser afetada. Este é o ensinamento mais sutil sobre crise. No budismo
dizemos que sofrimento e alegria têm a mesma face quando contemplados a partir da
natureza última. A natureza última não é corrompida na alegria, e não entra em crise
no sofrimento.

(Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Paramitta, em Curitiba, Paraná, em 18 de


agosto de 2000)

VI. Paz no dia-a-dia

A paz na vida cotidiana pode ser examinada em vários níveis. Num sentido absoluto,
paz é iluminação, liberação completa. Enquanto não se obtem essa condição, a paz
não é possível. Podemos trabalhar pela paz, avançar em sua direção, mas, enquanto
não atingimos a liberação, estamos presos à experiência cíclica – e, por definição,
perdemos a paz. Entretanto, mesmo dentro da experiência cíclica podemos ter
momentos de paz. Existem ensinamentos que nos auxiliam a aumentar a paz e
reduzir a ansiedade.
A primeira coisa que podemos analisar em relação à paz é que se trata de nossa
experiência natural, é uma condição não-construída. Não podemos conquistar a paz,
pois ela é nossa experiência básica. Podemos perdê-la se surgirem perturbações, mas
ganhá-la não faz sentido. Se pensarmos que a paz surgirá por uma boa razão ou sob
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condições externas, nunca a encontraremos. Uma vez perdida, a paz só retornará se
removermos as perturbações que surgiram.
A paz não surge de um processo lógico sob condições; se nossa paz estiver baseada
em argumentos lógicos, não será verdadeira, será uma condição construída e frágil.
Por outro lado, todas as experiências de aflição são construídas e surgem sob
condições específicas que podemos localizar analiticamente. A análise de nossa
situação permitirá descobrir as condições sob as quais perdemos a paz, mas o
processo para recuperá-la consiste apenas da remoção de obstáculos – não iremos
agregar coisas, mas remover as artificialidades que impedem a experiência original.

Estabilidade condicionada
Quando praticamos meditação silenciosa, podemos entrar em estados de grande
serenidade, tranqüilidade e paz. Diz-se que, quando os praticantes chegam a um
certo nível, a experiência cíclica, a experiência do mundo, perde o apelo. Porque,
quando as pessoas meditam, sentem tamanha paz, serenidade e estabilidade que
têm vontade de não retornar a suas atividades. Esta experiência de grande felicidade
não é definitiva porque, quando o praticante interrompe a meditação e retorna ao
mundo das relações, a sensação acaba.
Pode surgir na mente a idéia de que o mundo está todo errado e de que o melhor
seria ficar em meditação incessantemente, separado do mundo, das relações. Esta
atitude é um obstáculo, uma interpretação equivocada. Na verdade, o objetivo da
meditação é chegar a um equilíbrio que não cesse quando retornamos às atividades.
O problema é que não meditamos de forma perfeita. A meditação imperfeita gera
estabilidade a partir de estados mentais artificialmente produzidos, mas não há a
verdadeira estabilidade, natural e livre de qualquer construção. Deste modo, vê-se
que os estados meditativos, por serem construídos, não são a solução para se ter paz.
Conseguir manter a meditação estável é muito raro e precioso. E, apesar de frágeis e
transitórias, a felicidade e estabilidade condicionadas surgidas da meditação têm
efeitos positivos, curativos. Apesar de artificiais, oferecem certa autonomia: até então
a pessoa imaginava que a felicidade surgia na dependência de situações externas
ligadas ao ganhar e perder, mas agora a vê surgir de uma condição interna,
administrável por ela mesma.
Ainda que tenha apenas a experiência condicionada, limitada e impermanente da paz
surgida de fatores internos durante a meditação, a pessoa reconhece que, no mundo
das experiências cíclicas, no mundo das relações, no mundo em que se ganha e
perde, ela nunca teve uma experiência de paz e felicidade com tal brilho e
intensidade. Esta experiência, ainda que impura e imperfeita, produz um impulso
importante para que o praticante aprofunde a compreensão de seu mundo interno.
Seguindo este rumo, mais adiante ele reconhecerá que seu mundo interno é tão
grande quanto o universo ilimitado. Não terá mais a experiência de que meditar é
delimitar seu interesse ao mundo interno, mas reconhecerá que o mundo interno e o
mundo externo são efetivamente inseparáveis e que a compreensão de um leva à
direta compreensão do outro. Isto permitirá a ele reconhecer melhor sua condição
natural de paz e o ajudará a remover os obstáculos aparentemente externos que
justificam a perda da experiência natural de paz.

Três venenos
Entre os ensinamentos do Buda sobre o caminho da iluminação, encontramos o Sutra
do Diamante, que aborda os vários paramitas, ou seja, formas de prática espiritual
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que podem conduzir à liberação final. O terceiro paramita trata especificamente da
paz, tranqüilidade e paciência e dos obstáculos que se interpõem e nos fazem perder
esta condição. O texto começa examinando nossas identidades e localiza nelas a
origem dos obstáculos.
Quando nos entrincheiramos em nossas identidades, a paz começa a ser perdida.
Seria a identidade realmente o problema? É necessário ter consciência de uma
identidade para que o problema surja? A resposta talvez seja não. Mesmo seres que
não pensam em si mesmos como identidade, ou que não têm consciência clara de
seus propósitos, podem perder a paz. Ao examinar esta questão, veremos que existe
um nível mais fundamental, onde atuam três componentes que são como venenos
que sustentam nossa manifestação.
O primeiro destes venenos é a ignorância. É um veneno básico que toca todos os
seres. Ignorância não é propriamente o desconhecer de algo. É uma experiência
muito sutil, na qual desenvolvemos as mais variadas fixações sem perceber. Quando
operamos numa fixação, todo o universo toma sentido a partir disto. Aplicamos este
referencial para definir o que é vantajoso e o que não é.
O segundo veneno é a aversão, a raiva, a explosão, uma espécie de recurso que
usamos quando nossa fixação é ameaçada. Quando sentimos a ameaça, entendemos
que precisamos de uma energia extra. Esta energia extra gera uma violência, uma
ação agressiva. Mas a agressão não acontece se não houver algo a ser defendido.
Então deve haver uma definição prévia do aspecto a ser defendido, mesmo que não
seja consciente.
O terceiro veneno é a atividade incessante, ligada à sensação de carência, urgência,
desejo, apego. A partir de nossa fixação, consideramos que existem elementos que
vão nos favorecer e tornar as condições ao nosso redor mais estáveis, de modo que
aquilo a que nos fixamos possa ser sustentado mais facilmente e com mais
segurança. Assim, estamos incessantemente preparando condições mais favoráveis e
tentando remover o que nos traz perigo. A sensação de perigo ou de vantagem surge
das próprias fixações.
Veremos exemplos destas manifestações em todas as direções que olharmos. Estes
três aspectos são a microestrutura de nossa identidade, que só surge se houver
fixações. Junto com as fixações temos a possibilidade de explosão e a atividade
incessante que busca produzir estabilidade sem explosão. Com base nisto cada um de
nós pode avaliar melhor o que anda fazendo em sua vida e quais as causas de suas
dificuldades e instabilidades.

Fixações
As fixações podem ser mentais, emocionais e físicas. Curiosamente, nem sempre elas
estão de acordo. Por exemplo: estamos numa palestra, e a mente está atenta. Mas
para o corpo há um incômodo, um desconforto, uma impaciência crescente. O nível
emocional não está definido. De repente a emoção pergunta ao corpo: “Você está
interessado, ou está desistindo?" O corpo diz: “Isto não lá é muito interessante”, mas
a mente retruca: “É interessante sim, vamos aguardar um pouco mais.” Aí o corpo
reclama: “Mas sou eu que estou sofrendo, você está só ouvindo.” Temos diferentes
fixações neste diálogo, é como se fossem diferentes identidades. Todos os seres
passam por este processo incessantemente.
Quando analisamos nosso cotidiano, vemos que de modo geral estamos muito
ocupados. E nossa ocupação está sempre ligada a alguma fixação. Podemos ter
optado pela fixação ou não. Simplesmente vamos em frente, e a vida segue. Não
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temos propriamente a decisão de andar numa determinada direção. Também pode
acontecer o contrário: fizemos o vestibular e estamos cursando a faculdade; houve
uma decisão em certo momento. Quando a decisão torna-se ação, sentimo-nos vivos,
tudo faz sentido, temos a experiência de viver.
Ao olharmos para o passado, vemos que já tomamos várias decisões, seguimos
objetivos quase que cegamente, mas em certo momento tudo se desfez. Quando isto
aconteceu, tivemos uma experiência próxima da perda de identidade, um colapso,
parecia que a vida não era mais possível. Então elegemos novos referenciais e
recomeçamos a nos movimentar. Aí respiramos – parecia estarmos vivos de novo. E
seguimos novamente. Lá pelas tantas, os novos objetivos também se dissolvem,
nossa identidade entra em outra crise, passamos por um bardo, ou seja, um estado
intermediário, não sabemos bem o que queremos, nem para onde vamos. Na
seqüência, tudo se reestrutura, ganha novo sentido, e vamos andando.
Quando em movimento, estamos sob domínio das emoções perturbadoras – orgulho,
inveja, desejo/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo. Sem isto, não parece
que estejamos vivos. Quando estamos em marcha, aparecem obstáculos. O próprio
andar impede a paz. Quando interrompemos o andar por um obstáculo, ocorre a
defesa explosiva e, com ela, a sensação de amargor, sofrimento, ansiedade, luta. Aí
dizemos que há sofrimento ou que a paz desapareceu. Estas situações ocorrem
ciclicamente.
Quando saímos de uma situação, quando os referenciais e os mundos deles surgidos
se dissolvem, entramos num estado intermediário e depois renascemos em outra
condição. Não temos a experiência de que o renascer seja uma perda de paz, de que
a fixação em novos referenciais seja uma perda de estabilidade. Ao contrário,
imaginamos que é isto que nos trará nova estabilidade. Usualmente só achamos que
a paz se foi quando ocorre a explosão. Mas, quando fixamos novos referenciais e nos
colocamos em marcha, a paz já está comprometida. Isto significa que estamos presos
ao que chamamos de experiência cíclica, onde as coisas surgem, caminham por um
certo tempo, se estabelecem e depois se dissolvem. Como não temos esta noção,
pensamos que a fixação nos referenciais e na atividade incessante é algo favorável,
perfeito. Não suspeitamos da impermanência.

Sob domínio da impermanência


Precisamos entender que, quando fixamos referenciais e nos colocamos em marcha,
ficamos sob domínio da impermanência. Mais dia, menos dia, aquilo que construímos,
aquilo em que nos fixamos, vai se mover. É o que o Buda chama de experiência
cíclica. Ou seja, iniciamos num ponto, fazemos tudo crescer e num certo momento
aquilo volta a se dissolver e a produzir uma experiência de sofrimento, ansiedade,
dor.
Olhamos os seres ao nosso redor e as circunstâncias concretas em que estamos
imersos a partir de nossas fixações. Quando surgem as dores, sentimos como se
viessem de fora. Se estamos num jogo de futebol, não pensamos que a dor vem de
estarmos fixados no campeonato. Pensamos que a dor vem porque o adversário fez
um gol. Então temos alguém para culpar, temos um adversário. O fato de estarmos
num campeonato pressupõe vitória e derrota. E é assim em tudo.
Se temos fixação por resultados e nos movemos incessantemente para produzir o que
consideramos favorável, não entendemos que isto seja um problema. Achamos que as
circunstâncias externas não foram suficientemente favoráveis para que tivéssemos
êxito. Desejamos que as circunstâncias externas se transformem e fazemos um
esforço incessante para que isto aconteça.
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Os seres humanos estão sempre mudando alguma coisa em suas vidas. Tentamos
mudar as coisas concretas ao nosso redor. Erguemos cidades, destruímos florestas,
construímos estradas e unidades fabris, e acreditamos que precisamos de mais e
mais circunstâncias favoráveis.
Também tentamos transformar a nós mesmos o tempo todo, buscamos outras
aptidões e novas qualidades. Tentamos transformar os filhos, a esposa, o marido,
todos que convivem conosco. Todas as coisas são vistas como favoráveis ou
desfavoráveis. Sentimo-nos bem, sentimo-nos mal, sempre na dependência destes
fatores.
Temos uma espécie de impermanência interna. É como se trocássemos de time de
quando em quando. A pessoa torce pelo Atlético, de repente muda para o Coritiba. E
aí tudo fica ao contrário: antes ela queria que todos torcessem pelo Atlético, agora
pode até tornar-se inimiga dos antigos companheiros. Vivemos num incessante
processo interno de transformação de referenciais. Na medida em que eles se
transformam, olhamos ao redor com olhos diferentes, e isto produz sofrimentos
correspondentes.

Referenciais
A perda da paz está intimamente relacionada aos referenciais que elegemos ou ao
fato de elegermos referenciais. Quando os elegemos, surgimos como identidades. É
um processo mental. Mas podemos também operar diretamente no nível da emoção.
Podemos gerar apegos emocionais a circunstâncias, locais, atividades e pessoas.
Quando estamos fixados, parece que aquilo é cósmico, que sempre foi assim. Se é em
relação a uma pessoa, dizemos: “Certamente eu a encontrei em outra vida, ou em
muitas vidas anteriores." Pode ser verdade, mas nem sempre esta conexão tão forte é
favorável. Quando isto se estabelece, podemos passar a viver em função do outro.
Podemos nem nos dar conta claramente do processo, mas, quando o outro se
aproxima, nossos nervos detectam. Respiramos mais fácil, ficamos mais alegres.
Quando o outro vai embora, respiramos pior, ficamos meio deprimidos.
Se o outro nos abandona, é uma grande tragédia, porque nossa experiência de
energia interna está na dependência daquela presença. É como se não soubéssemos
viver, experimentamos uma dor incessante por dentro, pode até surgir uma dor física.
Ficamos tão deprimidos que nem conseguimos respirar. Isto porque a energia tomou
como referencial um aspecto condicionado, então passa a funcionar desta maneira.
De modo geral os namorados passam por esta síndrome. É uma situação grave. Não é
um referencial lógico, é um referencial energético. Não é em nível de pele, mas em
nível de energias, é interno. Quando aquele ser maravilhoso está próximo, temos uma
condição de energia em que tudo parece fácil. Quando o ser se afasta, tudo parece
difícil e penoso, e ficamos deprimidos. Não é uma depressão lógica, do tipo: estou
com problemas; portanto, estou deprimido.
Os namorados vivem um dentro do outro. Exercem seu efeito num nível sutil. É outro
tipo de referencial, outro tipo de fixação. Esta fixação dá origem a outras. Transcende
o aspecto mental, lógico, e se manifesta como uma energia. Mas, quando não
olhamos para isto de forma exata, podemos cair em algumas armadilhas. Entre estas
está o fato de pensarmos que estamos namorando a outra pessoa. Na verdade
estamos namorando nosso estado energético. Ficamos fixados a uma energia interna.
Se a energia está presente, achamos ótimo. Se a energia não está presente, ficamos
mal. Descobrimos que a energia está presente se o outro está próximo.
No início do namoro dizemos: “Sempre que o outro está próximo, aquilo está presente
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dentro de mim.” Na metade do namoro constatamos: “Às vezes aquilo está presente
quando o outro está comigo, às vezes não.” No final do namoro, é o contrário:
“Quando o outro está presente, a energia não está.” Como temos uma fixação pela
energia, dizemos: “O outro passou.” Aí nossos radares vasculham em volta. De
repente, localizamos algo, e a energia surge: “Agora sim!” Aquilo funciona por um
tempo, depois tem um período médio e por fim há uma fase de sofrimento, e fica tudo
ao contrário. O ser que antes tinha aquele poder hoje passa perto e nada acontece.
Mas ele continua com uma aparência muito semelhante. E aquelas fotos que
produziam efeito agora não produzem mais. Isto diz respeito à ingenuidade em
relação aos referenciais internos.
Quando temos uma relação de proximidade, é bom que o referencial interno seja
apenas um adorno. Porque, se for a base da proximidade, talvez esta não dure muito.
Porque, do mesmo modo que não sabemos como isto começou, não sabemos por que
irá terminar. Quando surge o magnetismo, a eletricidade, dizemos: “Por que eu
quereria paz, se tenho esta eletricidade maravilhosa?” Quando ela se inverte,
dizemos: “Eu gostaria de ter paz, mas é impossível.” O fato é que todo este processo
começa quando geramos fixação por certo tipo de referencial – neste caso, um
referencial ligado a uma eletricidade interna, a um estado de energia interna.

Referenciais de corpo
Além das fixações mentais e emocionais, existe um terceiro tipo, que se manifesta
perto do meio-dia. A pessoa passa a mão pelo estômago e se pergunta: “O que
teremos para o almoço hoje?” Aí pensa: “Batatas fritas!” E imediatamente ela saliva.
Ela também pode lembrar: “No sábado vai ter churrasco. Vamos comer e beber do
meio-dia à meia-noite.” Só de pensar naquilo surge um condicionamento no corpo:
brota saliva, todas as glândulas cooperam automaticamente. A pessoa diz para o
estômago: “Sim! Sim!” É ele que comanda. E aí surgem várias sensações. Podemos
ser comandados pelo estômago ou por qualquer parte do corpo, sejam elas dignas ou
não. Todas produzem fixações, referenciais que produzirão resultados.
Tomemos como exemplo o que poderia acontecer se um inseto pousasse em nossa
pele enquanto meditamos. Estamos sentados em meditação, pensando: “O Buda tem
razão, estou iluminado, que serenidade!” Aí o Buda se transforma num mosquito que
voa ao redor, e a serenidade se evapora. O mosquito pousa bem perto do olho, e não
podemos permitir tamanha invasão. No entanto, fizemos voto de não nos mexermos.
Para o corpo, aquela microagulha que penetra a pele é intolerável. Sentimos o peso
do mosquito, e depois o vôo pesado dele. Esta fixação surge no nível do corpo, não é
um processo intelectual. A emoção pode vir, mas essencialmente é o corpo invadido
que vai produzir a fixação.
Eventualmente podemos ter competição entre os vários referenciais. O corpo deseja
uma coisa; a emoção, outra; e a mente, uma terceira coisa. Estes níveis operam
quase que independentemente, às vezes em conjunto, às vezes em oposição. Quando
as fixações são definidas, não temos a sensação de que estejamos entrando numa
área de perigo. Achamos completamente normal. Pensamos: isto é viver, é assim
mesmo.
Elegemos fixações de forma consciente ou não, e elas parecem o exercício de uma
liberdade completamente natural. Mas são elas que geram condições que fazem
nossa paz desaparecer. A partir daquele momento, a paz só será possível se as
fixações não forem perturbadas, se permanecerem satisfeitas – e às vezes elas são
contraditórias. A mente pode determinar: “Não coma açúcar”, mas o corpo pede:
“Quero chocolate.” Aí a emoção diz: “Você não vai me deprimir, não é mesmo? Olha
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que eu fico deprimido... Dê-me um pouco de açúcar.”
É muito difícil encontrarmos equilíbrio a partir dos referenciais, mesmo que sejam
apenas internos. Por isso o Buda enunciou a primeira nobre verdade: todos os seres
têm a experiência de duka. Ou seja, quando estão alegres, é uma preparação para o
sofrimento; quando sofrem, é a condição de vida. É como se a harmonia não fosse
realmente possível. Como a harmonia não é possível, existe um segundo tipo de
sofrimento, que vive do próprio sofrimento. Sofremos por razões objetivas e também
porque não queremos sofrer. Sofremos porque gostaríamos que a harmonia fosse
possível. Elegemos a harmonia como fixação. E a perseguimos a vida inteira.

Oscilações
Quando perseguimos a harmonia, podemos viver seis experiências distintas. Na
primeira, a harmonia parece possível. Na segunda, descobrimos que existem seres
que têm mais harmonia que nós, e isto nos perturba. Na terceira, olhamos para os
seres mais harmônicos e constatamos: “Certo, você tem mais do que eu, tem uma
vida maravilhosa. Para ter isto eu precisaria de...” Aí vem uma lista de requisitos, de
coisas que precisamos transformar ou adquirir. No quarto tipo de experiência, a
pessoa desiste de ter harmonia. Ela afirma: “Vou esquecer esta situação, vou
esquecer todos os problemas. Vou me defender esquecendo.” Então esquece tudo e
gera uma mente obtusa, desconectada. No quinto tipo, a pessoa fica desesperada
porque falta alguma coisa. No sexto tipo, ela desiste de vez e diz: “Ok, todos são
terríveis comigo. Também serei terrível com eles.” Neste estágio a harmonia não é
mais o objetivo; ao contrário, a pessoa quer provar que ela não é possível e, quando
vê alguma coisa funcionando, vai lá e a sacode.
Oscilamos por estas seis formas de emoção. Inicialmente, gostaríamos que a
harmonia fosse possível. Esta é a grande dificuldade. Fazemos esforço a vida inteira,
por vidas incontáveis, tentando encontrar a felicidade estável. Mas, como o que
chamamos de felicidade depende de fatores específicos, a felicidade é fugidia. Às
vezes conseguimos, às vezes sofremos profunda decepção. Isto porque os fatores são
impermanentes, flutuantes. E assim nossa felicidade nunca é possível. Logo, a paz
não se torna possível. E vida após vida perseguimos isto.
Todas estas circunstâncias decorrem de elegermos referenciais específicos, a partir
dos quais consideramos: “Só posso ser feliz se...” Temos referenciais de mente,
emoção, corpo e de energias internas.
A noção de refúgio pode brotar quando entendemos esta situação cíclica, de
impermanência interna e externa. Dizemos: “Eu gostaria de tomar por referencial
alguma coisa que estivesse fora disto.” Mas, como não temos o olhar de sabedoria,
nunca conseguimos encontrar o que é estável. Faz parte de nossa situação só vermos
o que é impermanente. É como se não tivéssemos olhos para reconhecer o que está
além de nossa experiência cíclica, de nossos referenciais.
Os seres libertos, que habitam as regiões sutis, rezam por nós sem cessar, soprando:
“Acordem!” Mas não escutamos. Ou pior: escutamos errado. Aparece um ser na nossa
frente, ouvimos aquele sopro e concluímos: “Deve ser minha alma gêmea!” Mas o ser
estava soprando: “Cuidado!” Não conseguimos entender a linguagem do silêncio.
O silêncio está ao nosso redor, a natureza de liberdade pré-existe a nós, nos sucede e
existe simultaneamente conosco. Não entendemos. Sofremos de uma identidade para
outra, de um pensamento para outro, e não conseguimos ver algo que nos dê idéia de
permanência.
Quando saímos da condição de feto na barriga da mãe para a condição de bebê, e
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depois nos tornamos crianças, adolescentes e adultos, temos a sensação de que é
uma continuidade. Mas somos completamente diferentes em cada fase. Temos
amigos, objetivos e fixações diferentes. E não entendemos o que se mantém estável.
No corpo tudo muda. Passamos por várias vidas e não entendemos o que se mantém
enquanto as vidas se sucedem. Olhamos para o céu, para as estrelas, vemos
movimentos incessantes – nunca descobrimos o que não muda quando tudo muda.
Então os seres de sabedoria dizem: “Não tem jeito, terei que ir lá embaixo.” E
escolhem métodos variados. Alguns gostam de envergonhar jovens donzelas.
Aparecem na barriga delas, sem que nada tenha acontecido. As histórias se repetem,
tanto no oriente quanto no ocidente. Uma monja virtuosíssima nota que alguma coisa
estranha está acontecendo. E por mais que ela proteste: “Não fiz nada!”, todos a
olham de um jeito horrível. A monja está grávida.
Estas histórias também existem no Zen e no budismo tibetano, não é só a Virgem
Maria. Aí podemos ter certeza de que um ser extraordinário vai aparecer. Estes seres
se manifestam e trazem a sabedoria ilimitada quando não conseguimos encontrá-la,
traduzem-na em palavras para que nossa natureza ilimitada – que nos sustenta e nos
mantém em paz – também se manifeste em nossa existência, se possível.

Natureza de Buda
Nossa dificuldade está no olhar. É como se olhássemos para o mar e só víssemos as
ondas. Quando vemos as ondas, pode ser que não vejamos o mar. É como se
víssemos as ondas separadas do leito do oceano. Assim surgimos nós: separados.
Então vêm os seres de sabedoria, como ondas também – porque somente vemos as
ondas –, para nos explicar o que é estável, o que está além da impermanência, para
nos ensinar o que são os refúgios. Eles vêm e dizem: “Observem a natureza da
liberdade além das fixações.” E, sempre que os seres de sabedoria dizem isto, nós
acordamos; eventualmente os vemos. E eles dizem: “Esta é a sua face.”
O Zen questiona: “Que face você tinha antes de seu pai e sua mãe nascerem?” É o
tipo de pergunta sem resposta. Antes do pai e da mãe nascerem, ou seja, antes das
condições surgirem, que face nós tínhamos? Nossos pais e mães não são pais e mães
biológicos. Nós surgimos das condições. Antes das condições surgirem, qual era a
nossa face? Esta é uma boa pergunta. Nossa face era a face de Buda.
Essencialmente, nossa face é a face não-construída, a face natural, a face antes do
espaço e do tempo. Ou a face que está além de espaço e tempo, nome e forma, vida
e morte. Devemos tomar refúgio nesta natureza, elegê-la como referencial, como
fonte de segurança. Se buscamos segurança no que nasce e morre, não temos
segurança verdadeira, porque estas coisas desaparecem. Mas a natureza que existe
antes de nossos pais e mães surgirem não nasce e não morre. Isto é a natureza de
Buda.
Se tivermos a felicidade de tomar por referência a natureza que não nasce e não
morre, poderemos entrar alegremente no mundo dos referenciais, no mundo das
coisas que nascem e morrem, porque saberemos onde estamos e o que somos.
Estaremos livres desse movimento. E assim poderemos fazer como os bodisatvas:
estar no mundo para ajudar os seres a reconhecerem esta natureza.
Podemos dizer: “Tomo refúgio na natureza incessante de Buda”, a natureza do
silêncio, a natureza não-construída. Este Buda sempre presente, que existe antes de
qualquer construção e é o final de todas as construções, é como o mar para onde
todas as águas vão e de onde todas as águas voltam. Tomamos refúgio neste Buda. É
o refúgio inabalável. O refúgio em qualquer outra experiência será transitório.
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Depois dizemos: “Tomo refúgio em Buda enquanto aparência de todas as coisas.”
Este é um aspecto sutil maravilhoso. Descobrimos que dentro do silêncio existe uma
natureza de brilho. Uma natureza que tem o poder de construção, de criar dualidades,
mundos, aparências, idéias e projetos. Quando estamos em silêncio, esta natureza
brilha de forma estável. Podemos modular o brilho e criar projetos, significados,
ações.
Todas as aparências ao nosso redor são produto desta energia criativa. Não
costumamos ver isto. Vemos apenas se as coisas são favoráveis ou desfavoráveis a
nós. Mas podemos olhar a aparência de todas as coisas e reconhecer nelas este poder
criativo. Podemos exercer este poder criativo alterando o significado das coisas
incessantemente. Podemos perceber a alteração de significados que somos capazes
de realizar, perceber a criatividade brotando e reconhecer nisto a natureza luminosa
de Buda. Reconhecer este brilho e nele tomar refúgio. Este é o segundo refúgio.
Tomamos refúgio na natureza do silêncio antes de qualquer construção, em Buda
como silêncio antes de qualquer impulso. E tomamos refúgio em Buda como brilho
que produz criatividade, formas e significados. Reconhecemos o silêncio e a
criatividade como incessantemente vivos. Eles brilham incessantemente e são
inseparáveis. Usualmente, quando olhamos ao redor, vemos apenas se as coisas são
boas ou ruins para nós. Não temos o olhar de sabedoria. Mas houve um Buda que veio
e ensinou o olhar de sabedoria. Ele recitou o Prajna Paramita, recitou: “Gate Gate
Paragate Parasamgate Bodhi Soha”. E o olho de sabedoria dos seres pode se abrir.

Despertar da compaixão
Existe ainda o refúgio de terceiro nível. É um nível muito sutil. Percebemos que, se
não ouvíssemos instruções, não teríamos como reconhecer o silêncio e a criatividade
na experiência comum das coisas. Nem o silêncio cósmico das idéias, o silêncio
cognitivo dos significados, nem o brilho que produz as aparências de alguns
significados e sua transformação, o brilho da inteligência. Não veríamos isto como
Buda. Aí nos damos conta de que o Buda também surge como aquele que produz
ensinamentos, fala o Darma e faz com que reconheçamos nossa natureza como a
natureza de silêncio e criatividade. O Buda exerce isto. E descobrimos que também
somos assim.
Descobrimos que, quando nossa mente chega aos outros seres e reconhece as
dificuldades deles, brota naturalmente em nosso coração o desejo de ajudá-los. E
descobrimos que foi isto que aconteceu com o Buda quando ele se manifestou aqui e
deu ensinamentos. Podemos ter a experiência de estarmos vivos da mesma forma
que o Buda a experimentou. O Buda deu ensinamentos por mais de quarenta anos.
Ele encontrou na natureza do silêncio e do brilho a força para se manifestar em
benefício de todos.
A compaixão que temos pelas outras pessoas já é a manifestação da natureza de
Buda. Somos esta manifestação, não precisamos construí-la, a compaixão é uma
condição natural. Descobrimos que o silêncio cognitivo e o brilho da criatividade
sempre existiram dentro de nós, e a compaixão também. Quando estes referenciais
se instalam em nosso coração, dizemos: “Tomei refúgio na natureza de Buda.”
Quando tomamos refúgio na natureza de Buda, todos os referenciais que produzem a
experiência cíclica empalidecem. Nossa condição de homem ou mulher, criança,
adolescente, adulto ou velho não importa. Não faz a menor diferença se somos
crianças ou se estamos perto da morte. Esta natureza tem o mesmo frescor em
qualquer circunstância. Não importa em qual parte do planeta vivemos. Não importa
se vivemos agora, duzentos anos para frente ou mil anos para trás. Não há diferença
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nenhuma. Esta natureza estável está além de vida e morte, além de espaço e tempo,
além da história.
Encontramos um referencial que, uma vez assumido, produz estabilidade e paz sob
qualquer circunstância. Se encontrarmos isto, será maravilhoso. Se não
conseguirmos, pegaremos o que estiver mais próximo disto – a compaixão ou amor
que for possível, por exemplo. Consideramos este um bom referencial, ainda que as
pessoas ao nosso redor digam: “Você é bobo.” Se dizem isto, é porque estão jogando
algum tipo de jogo mental e acham que somos bobos porque não jogamos. Quem
joga algum jogo mental não vai além disto. Pode no máximo ganhar. E nem vale a
pena ganhar a maior parte dos jogos que se ganha.
Se um torcedor vê seu time ganhar um campeonato, por exemplo, é complicado.
Porque, tendo ganho, fica muito mais difícil abandonar os campeonatos. Ele diz:
“Agora sou campeão.” E estar preso a um campeonato é um problema. É mais fácil
sermos aprisionados pelo sucesso do que pela dor. É quando ganhamos os jogos que
temos problemas. Quando tudo vai bem, nos fixamos naquelas condições. Parece que
encontramos algo.

Caminho espiritual
Existem três refúgios que nos levam além da experiência cíclica. Este é nosso
objetivo. Para podermos reconhecer estes refúgios ouvimos ensinamentos. E aí surge
o budismo. Precisamos do caminho espiritual para superar a experiência cíclica.
Quando encontramos refúgio, o caminho espiritual cessa. Enquanto a experiência
cíclica não cessar, o caminho espiritual será necessário. Portanto, fazemos prática não
só para interromper a experiência cíclica, como também para nos vermos livres do
caminho espiritual.
Existem dois tipos de corrupção – da experiência cíclica e do caminho espiritual. Os
mestres sempre alertam para o que chamam de materialismo espiritual, que se
manifesta quando abandonamos a experiência cíclica usual e entramos no caminho
espiritual com fixações específicas. Por isso Sua Santidade, o Dalai Lama, diz: “Eu não
sou budista, minha religião é bondade, amor e compaixão.” Às vezes alguém me diz:
“Quero ser budista”, mas eu nunca acho essa motivação muito apropriada, é preciso
entender que existem referenciais construídos ligados a este tipo de identidade que
também produzirão problemas. A motivação correta não é tornar-se budista
propriamente, mas buscar a superação de suas dificuldades e se capacitar para
beneficiar os outros seres. Por isso Sua Santidade, o Dalai Lama, fala em bondade,
amor e compaixão. Recentemente ele afirmou: “Se as pessoas praticarem os valores
pregados pelas tradições religiosas, talvez as próprias tradições sejam
desnecessárias.”
Como a experiência cíclica existe, o caminho espiritual é necessário. E ele é a
expressão da compaixão. Por isso é muito importante trilhar o caminho espiritual,
ouvir os ensinamentos, dar valor a eles e, ao mesmo tempo, nunca perder de vista
que o objetivo é transcender o caminho espiritual e chegar ao fim dele; ou seja, ao
reconhecimento da natureza não-construída e ao refúgio verdadeiro na natureza do
silêncio, na natureza da luminosidade e na natureza da compaixão, de onde se é
capaz de reconhecer todos os seres como originalmente ilimitados. Quando surge
esta experiência, o caminho espiritual se extingue, pois já cumpriu sua função.
É interessante ver que os grandes mestres de cada tradição conhecem as outras
tradições. Às vezes conhecem sem nunca terem ouvido nada sobre elas. Como eles
acessaram a região de sabedoria, são capazes de dar ensinamentos e responder
sobre outra tradição sem nunca ter estudado seus textos. Os grandes mestres dão
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ensinamentos em todas as tradições.
Isto é importante para que não pensemos que nosso método específico é único ou
que deva ser algo em que iremos nos fixar teimosamente para sempre. Nosso
objetivo é usar o método e chegar ao final. Não que devamos rejeitá-lo depois. É um
legado precioso que chegou a nós através de gerações para que possamos ter mais
lucidez e transmiti-la a outros, para que estes seres também se beneficiem e não se
fixem, para que aprendam sem gerar fixação. O caminho espiritual é um caminho de
paz. Se gerar fixação, será um caminho de sofrimento.
Se não aprendermos que o caminho espiritual é um caminho de paz, estaremos
perdendo tempo. É importante que aprendamos e possamos utilizar isto com outros
seres, mas livres de fixação. Se a fixação se estabelecer, teremos a experiência cíclica
novamente. E diremos: “Este professor do Darma é o melhor que tive. Este eu ouço,
aquele eu não ouço. Este ensinamento é bom, aquele outro tem problema. Os seres
que ouvem aqueles ensinamentos estão todos perdidos. Ah, eu não, eu estou no
único caminho certo.” E seguiremos assim. É uma experiência cíclica infindável. Este
é o poder de corrupção da experiência cíclica. Ela pode nos corromper mesmo
enquanto praticamos.

(Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Paramitta, em Curitiba, Paraná, a 17 de março


de 2000.)

Glossário

As definições apresentadas foram formuladas com base em aspectos particulares dos


ensinamentos budistas e não seria adequado vê-las como definitivas ou completas.
De fato o uso das palavras no budismo surge como um remédio para aliviar o
sofrimento dos seres, não como uma explicação de como as coisas são ou deveriam
ser; portanto, é nesse sentido que as definições são apresentadas.

Buda – título que se dá a um ser que despertou completamente para o potencial


absoluto da realidade, em especial o exemplo histórico do Buda Sakiamuni – príncipe
Sidarta, o Gautama, que alcançou este reconhecimento cerca de 2600 anos atrás.

cinco venenos – raiva/medo, obtusidade mental, desejo/apego, inveja e orgulho. São


chamados de venenos porque potencializam os impulsos para as dez ações não-
virtuosas, e assim criam todo os sofrimentos da roda da vida.

Dakini – fonte da atividade iluminada do Lama, correspondente ao aspecto Sanga das


Três Jóias. O princípio feminino da sabedoria.

Darma – o ensinamento que surge na mente do Buda de acordo com as necessidades


dos seres, de forma a produzir alívio com relação a duka e apontar o reconhecimento
da liberdade não-causal.

Darmakaya – o "corpo de vacuidade" do Buda, sem inclinações, mas ainda assim


prenhe de todos os fenômenos e possibilidades.

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dez ações não-virtuosas – ações que produzem sofrimento. A moralidade no budismo
não surge de uma fonte externa, mas da experiência. A lista de dez não-virtudes é um
croqui através do qual nos guiamos para verificar se os ensinamentos do Buda
realmente trazem alívio e contentamento. Assim, nos abstemos destas ações não
porque o Buda pediu, mas porque verificamos por nós mesmos que não produzem
felicidade estável. São três as ações de corpo que devemos evitar: tirar a vida, roubar
e praticar conduta sexual indevida (adultério, estupro etc). São quatro ações de fala:
falar rudemente, difamar (ou comentar atitudes que realmente parecem
condenáveis), mentir e falar inutilmente (ou indulgir em distrações e emoções vãs).
São três ações de mente: avareza, aversão ou má vontade para com os outros e visão
herética (no sentido de aceitar e defender teorias de mundo e doutrinas que
produzem sofrimento). Mais amplamente, a heresia suprema é a fixação do javali, que
congela a separatividade e atribui significados automaticamente, ocultando a
liberdade inata. A ação não-virtuosa de mente correspondente ao galo é avareza, e a
correspondente à cobra é a má vontade.

duka – (em páli, dukkha) termo geralmente traduzido como "sofrimento", mas que
mais amplamente é a própria complicação inerente à experiência cíclica da roda da
vida. Não é apenas algo desagradável, é também o sofrimento muitas vezes não
percebido, mas implícito na felicidade baseada em condições.

fixação – um evento separativo qualquer. Ela corresponde ao javali e é sustentada e


defendida pelos outros dois animais, o galo e a cobra.

identidade – fixação em que há um processo de auto-referência embasado em outras


fixações. Desta fixação surge um observador e um mundo que é observado.

Lama – numa primeira abordagem, o professor em carne e osso que manifesta no


espaço e no tempo a intenção iluminada atemporal e não-local do Buda. "Lama"
significa "insuperável" ou "compaixão materna". Corresponde ao aspecto Buda das
Três Jóias.

Nirmanakaya – o "corpo de compaixão" do Buda, que incessantemente surge para


beneficiar os seres. Os mestres reconhecidos como emanações da intenção iluminada
do Buda.

Nobre Caminho Óctuplo – o caminho gradual que o Buda ensinou para irmos da
experiência de aprisionamento até a obtenção do reconhecimento incessante da
liberdade. O primeiro passo é abandonar o refúgio nos três venenos e refugiar-se nas
Três Jóias – ou seja, abandonar a motivação usual de perseguir objetivos que não são
capazes de produzir felicidade duradoura e colocar-se na direção daquilo que
realmente pode produzir uma experiência estável de liberdade. Com esta motivação
firmemente estabelecida, os três passos seguintes são alcançados naturalmente, já
que uma pessoa com tal refúgio não pratica as dez não-virtudes em mente (segundo
passo), fala (terceiro passo) e corpo (quarto passo). No quinto passo há uma
ampliação desta motivação, que passa a incluir os outros seres. Neste passo o

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desenvolvimento das quatro qualidades incomensuráveis e seis perfeições
proporcionam destemor e uma inserção adequada no mundo, o que elimina a crise
existencial. Os três últimos passos referem-se à prática de meditação: o sexto passo é
o desenvolvimento de estabilidade; o sétimo passo é a prática da sabedoria
transcendental que aponta em cada evento separativo uma natureza de liberdade; e
o oitavo passo é a prática do reconhecimento incessante desta pureza inerente não-
separativa, a liberdade não-causal que sempre esteve presente, mas que até então
não havia sido reconhecida. O Nobre Caminho constitui a roda do darma. O praticante
gira esta roda da melhor maneira que consegue, indo do primeiro ao oitavo passo
várias vezes, a cada vez melhorando algum ponto até realizar completamente cada
um deles.

Quatro Nobres Verdades – primeiro ensinamento dado pelo Buda, e que caracteriza o
budismo como tal. A primeira verdade proclama que experimentamos complicação de
tempos em tempos, e que em geral não temos controle sobre seu surgimento. A
segunda verdade nos apresenta a origem causal destas complicações, ou seja, que
elas são construídas, artificiais. Por serem construídas, e portanto não absolutas,
podem ser dissolvidas, e esta é a terceira verdade. A quarta verdade é o Nobre
Caminho Óctuplo, ou seja, os meios de obter a dissolução da complicação.

quatro qualidades incomensuráveis – alegria, amor, compaixão e equanimidade. Elas


surgem de uma ampliação da mente que passa a abarcar as necessidades dos outros
seres. Alegria é reconhecer o mérito de outros e se regozijar com isto. Amor é fazer
de tudo para ampliar estas boas qualidades. Compaixão é entender os obstáculos dos
outros seres a partir do ponto de vista deles mesmos, gerando soluções adequadas e
permitindo que sua natureza livre aflore naturalmente. Equanimidade é não sucumbir
a flutuações, atendendo todos os seres em suas necessidades, independentemente
de recompensas ou condições.

refúgio nas Três Jóias – tomar como ponto de referência ou eixo a experiência de
liberdade manifestada como o exemplo histórico do Buda; o produto desta
experiência na forma de ensinamentos que surgem de acordo com as necessidades
dos seres a fim de produzir alívio de todas as formas possíveis, e a comunidade dos
seres que se movem na mesma direção.

Rinpoche – "Precioso", título concedido a grandes mestres reconhecidos como


Nirmanakayas.

roda da vida – samsara. A experiência cíclica construída pelos três venenos. Esta roda
é caracterizada pelas três marcas: duka, impermanência e a falta de um eixo (ou
sentido) para esta experiência de existência. Os seres separativos dominados pelos
três venenos vagam indefinidamente por estas experiências de acordo com as seis
emoções perturbadoras, e estas classificam as experiências da roda em seis reinos
correspondentes.

sadana – numa primeira abordagem, um texto que conduz uma prática de meditação
específica. Amplamente, o processo pelo qual o praticante alcança o resultado,
incluindo indistintamente meditação formal e vida cotidiana.
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Sambogakaya – o "corpo de deleite" do Buda, a emanação contínua de formas puras
que manifesta a liberdade do darmakaya.

samsara – ver roda da vida.

Sanga – a comunidade de praticantes que se aplicam na prática dos ensinamentos do


Buda.

seis emoções perturbadoras – raiva ou medo; aflição por carência; obtusidade mental
e cansaço; desejo e apego; inveja e competitividade; e orgulho e falso
contentamento. Elas correspondem aos seis reinos da roda da vida.

seis perfeições (em sânscrito paramita) – generosidade (dana), moralidade ou


disciplina (sila), paciência ou paz (kshanti), perseverança ou esforço jubiloso (virya),
concentração (dhyana), sabedoria (prajna). O Sutra do Diamante é um controle de
qualidade para estas "perfeições", estabelecendo o critério que as define como
transcendentes de fato. Por exemplo, o esforço jubiloso transcendente é o que se
propõe a beneficiar os seres da forma mais ampla, o que seria divulgar e aplicar os
ensinamentos que revelam a liberdade. Um esforço jubiloso pertencente à roda da
vida, e que apenas ajude algum grupo de indivíduos de uma forma relativa, por
exemplo, não seria considerado perfeição.

seis reinos da roda da vida – ambientes mentais correspondentes às seis emoções


perturbadoras. Eles são o reino dos infernos, reino dos pretas (seres famintos), reino
dos animais, reino humano, reino dos asuras (semideuses) e reino dos devas
(deuses). Todas as emoções perturbadoras se manifestam no reino humano, mas a
predominante seria desejo/apego, e isso caracteriza o reino humano como tal.
Nenhum dos reinos tem existência sólida; porém, os seres que lá se encontram
acreditam na solidez de seu reino da mesma forma que usualmente acreditamos
neste reino humano.

Três Corpos do Buda – Darmakaya, Sambogakaya e Nirmanakaya.

Três Jóias – Buda, Darma e Sanga, o Buda histórico como o professor ou médico
insuperável, seus ensinamentos como um remédio que alivia o sofrimento dos seres,
e a comunidade que coloca em prática estes ensinamentos.

Três Refúgios – refúgio nas três jóias.

três venenos – javali, cobra e galo. O javali é usualmente traduzido como "ignorância",
mas de fato indica uma fixação que é defendida e sustentada pela cobra e pelo galo.
A cobra é muitas vezes traduzida como "aversão", mas de forma mais ampla indica
uma defesa enérgica desta fixação. O galo é traduzido como "desejo", mas é um
equilibrismo constante, uma atividade incessante de sustentação da fixação na
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separatividade. A natureza pura dos três venenos são os Três Corpos do Buda: o
darmakaya é a ausência de fixações e ainda a vacuidade que é fonte de todas elas; o
sambogakaya é a natureza de sabedoria correspondente aos cinco venenos, e
portanto a energia vibrante que emana continuamente do darmakaya; o nirmanakaya
é o corpo de compaixão que surge incessantemente para beneficiar os seres que
agem sem liberdade perante os três venenos e que portanto não reconhecem sua
pureza inerente na forma dos Corpos do Buda.

Yidam – As qualidades do Lama, que naturalmente beneficiam os seres, como


inseparáveis das mentes dos praticantes e apresentadas na forma de uma "deidade
meditativa". Corresponde ao aspecto Darma das Três Jóias.

Conclusão

Quando os ensinamentos parecem complicados, é importante relembrar o referencial


e foco de nossa prática: a compaixão por todos os seres. Praticar compaixão é
praticar a mente transcendente, a mente que vai além de nossa prisão do auto-
interesse.
O problema da roda da vida não está na identidade virtual que os seres manifestam,
mas na limitação da mente no autocentrismo, na prisão do auto-interesse. A
compaixão é o antídoto e o exercício de liberdade frente a isto.
Se esquecermos a amplidão natural de nossa mente, nem a compaixão, nem o amor
serão possíveis. São qualidades que não se pode praticar isoladamente, são
qualidades de amplidão, impossíveis na estreiteza do auto-interesse. Sua Santidade, o
XIV Dalai Lama, diz: "Não importa quanto poder ou recursos nos for possível reunir;
nossa vida, na ausência do amor, parecerá miserável."
A origem do sofrimento está na estreiteza do foco da mente. A origem da felicidade
está na amplidão que a mente possa praticar. Se você praticar apenas um bom
coração, sua mente se ampliará rapidamente, e você e todos que o rodeiam sentirão
o brilho e frescor da natureza de Buda. Você pode praticar isto a todo momento. Não
perder este foco, eis o desafio maravilhoso, a incessante lucidez!
Use a meditação serena, o calmo e nobre sentar, para aprofundar a prática e remover
os obstáculos que estiver encontrando. Alegre-se com todos os seres a sua volta,
reconheça suas qualidades de liberdade transcendente e relacione-se com estas
qualidades. Assim sua vida será prática incessante, e seus olhos se encherão do brilho
de gratidão por todos os Budas.
Sempre que você ficar na dúvida frente a tradições, práticas, linhagens, formalidades,
exigências, cores e roupas, pense que nenhum ensinamento pode oferecer mais do
que reconectá-lo ao reconhecimento de sua própria natureza, da natureza ilimitada
de todos os Budas. Reconheça que todas as linhagens budistas surgem do
ensinamento do Buda e não vão além dele. E esta natureza ilimitada você já tem!
Se estiver muito aflito e tudo parecer impossível, lembre que a própria experiência da
roda da vida é construída e, portanto, não é imutável, está sujeita à impermanência.
A liberação é possível. A cada momento e a cada brilho do giro da roda podemos,

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meditando a vida, reconhecer o ilimitado. Além do mais, quando tudo está perdido,
quando nenhum controle funciona mais, nada está perdido. Lembre-se: nossa
natureza segue intacta.

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