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FRANCESCA FREMANTLE

Vazio Luminoso
Para entender o clássico
Livro tibetano dos mortos

Tradução de
WALDEMAR FALCÃO

NOVA ERA

Rio de Janeiro
2005

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Este livro é dedicado

à memória do

Vidyadhara, Chögyam Trungpa Rinpoche,

incomparável mensageiro do dharma,

ea

Rigdzin Shikpo (Michael Hookham)

que dá continuidade à sua tradição.

Digitalização:
CEBB PELOTAS - RS
2017

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Sumário
Agradecimentos ........................................................................................................................ 8
Prefácio ..................................................................................................................................... 9
PARTE I - FUNDAMENTOS ........................................................................................................... 17
Homenagem ............................................................................................................................ 18
Capítulo Um............................................................................................................................. 19
Um Livro dos Vivos ...................................................................................................................... 19
Capítulo Dois ........................................................................................................................... 34
Liberação: Desenroscando-se no Espaço .................................................................................... 34
A RODA DA VIDA ................................................................................................................. 36
1. Decadência e Morte .................................................................................................... 36
2. Nascimento ................................................................................................................. 37
3. Existência..................................................................................................................... 37
4. Apego .......................................................................................................................... 37
5. Sede ............................................................................................................................. 38
6. Sensação...................................................................................................................... 38
7. Contato ........................................................................................................................ 38
8. Seis Sentidos................................................................................................................ 39
9. Nome e Forma ............................................................................................................. 39
10. Consciência .............................................................................................................. 39
11. Condicionamento .................................................................................................... 40
12. Ignorância ................................................................................................................ 40
AS TRÊS CARACTERÍSTICAS DO SAMSARA ........................................................................... 43
Sofrimento........................................................................................................................... 43
Impermanência ................................................................................................................... 44
Não-ser ................................................................................................................................ 45
Capítulo Três ........................................................................................................................... 53
Audição: o Poder da Transmissão ............................................................................................... 53
Capítulo Quatro ....................................................................................................................... 62
Bardo: a Experiência do Agora .................................................................................................... 62
O BARDO DESTA VIDA ......................................................................................................... 64
O BARDO DA MEDITAÇÃO ................................................................................................... 67

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O BARDO DO SONHO .......................................................................................................... 70
O BARDO DO MORRER ........................................................................................................ 71
O BARDO DO DHARMATA ................................................................................................... 72
O BARDO DA EXISTÊNCIA .................................................................................................... 73
Capítulo Cinco ......................................................................................................................... 77
O Arco-Íris dos Elementos ........................................................................................................... 77
TERRA .................................................................................................................................. 79
ÁGUA ................................................................................................................................... 81
FOGO ................................................................................................................................... 84
AR ........................................................................................................................................ 86
ESPAÇO ................................................................................................................................ 89
OS CINCO DEVAS ................................................................................................................. 90
Capítulo Seis ............................................................................................................................ 95
O Processo de Cinco Etapas do Ego ............................................................................................ 95
FORMA ................................................................................................................................ 99
SENTIMENTO ..................................................................................................................... 101
PERCEPÇÃO ....................................................................................................................... 102
CONDICIONAMENTO ......................................................................................................... 103
CONSCIÊNCIA .................................................................................................................... 107
Capítulo Sete ......................................................................................................................... 111
A Exibição do Estado Desperto ................................................................................................. 111
AKSHOBHYA....................................................................................................................... 116
RATNASAMBHAVA ............................................................................................................ 119
AMITABHA ......................................................................................................................... 123
AMOGHASIDDHI ................................................................................................................ 127
VAIROCHANA..................................................................................................................... 130
Capítulo Oito ......................................................................................................................... 137
Seis Estilos de Aprisionamento ................................................................................................. 137
O REINO DOS SERES INFERNAIS ........................................................................................ 141
O REINO DOS FANTASMAS FAMINTOS ............................................................................. 145
O REINO DOS ANIMAIS ...................................................................................................... 150
O REINO DOS SERES HUMANOS ........................................................................................ 153
O REINO DOS DEUSES CIUMENTOS................................................................................... 157
O REINO DOS DEUSES........................................................................................................ 160

5
Capítulo Nove ........................................................................................................................ 166
O Padrão Tríplice do Caminho................................................................................................... 166
O TRIKAYA ......................................................................................................................... 166
DHARMAKAYA ................................................................................................................... 168
SAMBHOGAKAYA .............................................................................................................. 170
NIRMANAKAYA .................................................................................................................. 171
CORPO, FALA E MENTE...................................................................................................... 172
CORPO ............................................................................................................................... 172
FALA................................................................................................................................... 174
MENTE ............................................................................................................................... 175
OS TRÊS NÍVEIS .................................................................................................................. 176
O Nível Grosseiro............................................................................................................... 177
O Nível Sutil ....................................................................................................................... 177
O Nível Muito Sutil ............................................................................................................ 183
Capítulo Dez .......................................................................................................................... 185
A Grande Perfeição ................................................................................................................... 185
PARTE DOIS - O TEXTO .............................................................................................................. 203
Capítulo Onze ........................................................................................................................ 204
A Luminosidade da Morte ......................................................................................................... 204
Capítulo Doze ........................................................................................................................ 232
Paz Invencível ............................................................................................................................ 232
O PRIMEIRO DIA ................................................................................................................ 244
O SEGUNDO DIA ................................................................................................................ 248
O TERCEIRO DIA................................................................................................................. 252
O QUARTO DIA .................................................................................................................. 255
O QUINTO DIA ................................................................................................................... 258
O SEXTO DIA ...................................................................................................................... 261
Capítulo Treze ....................................................................................................................... 268
Louca Sabedoria ........................................................................................................................ 268
O SÉTIMO DIA .................................................................................................................... 274
Capítulo Quatorze ................................................................................................................. 284
Compaixão Colérica ................................................................................................................... 284
O OITAVO DIA .................................................................................................................... 291
O NONO DIA ...................................................................................................................... 298

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O DÉCIMO DIA ................................................................................................................... 299
O DÉCIMO PRIMEIRO DIA .................................................................................................. 301
O DÉCIMO SEGUNDO DIA.................................................................................................. 302
Capítulo Quinze ..................................................................................................................... 318
Na Porta do Útero ..................................................................................................................... 318
Aspiração ............................................................................................................................... 340
FIGURAS ................................................................................................................................ 341

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Agradecimentos

Primeiro de tudo, meus profundos agradecimentos ao falecido Chögyam Trungpa


e a Rigdzin Shikpo, a quem este livro é dedicado; os papéis que eles desempenharam
na criação da parte inicial e final deste texto estão explicados no prefácio.

Existem muitos outros lamas perfeitos, assim como mestres de outras tradições,
de quem recebi muita ajuda e bondade; em particular, tive o grande privilégio de
conhecer e receber ensinamentos de diversos lamas tibetanos excepcionais da antiga
geração que não estão mais conosco na mesma forma corpórea. A todos eles eu sou
extremamente grata. Lembro-me com profunda gratidão de Sochi Sen, meu guia na
tradição Shakta, cuja vida exemplificou o genuíno espírito do tantra para além de
diferenças sectárias. Agradeço também aos muitos eruditos e tradutores cujos escritos
têm sido uma fonte tanto de informação quanto de inspiração.

Gostaria de expressar minha gratidão a meus amigos que leram os primeiros


rascunhos do manuscrito e fizeram muitas e valiosas sugestões, especialmente
Caroline Cupitt, David Hutchens, Barbara Wanklyn e Kathleen Taylor; também a Larry
Mermelstein, que aperfeiçoou enormemente os originais deste livro com seus
conselhos especializados.

Obrigada também a Gonkar Gyatso por suas lindas pinturas, combinando o


antigo e o contemporâneo em imagens intemporais.

Finalmente, na Shambhala Publications, minha editora norte-americana, sou


muito grata a Samuel Bercholz, presidente e editor-chefe, por seu entusiasmo e
encorajamento; à minha editora, Emily Bower, por sua habilidade, paciência e
compreensão; assim como a todos que trabalharam no livro e contribuíram para fazer
deste sonho uma realidade.

8
Prefácio

Compreendendo pouco dos ensinamentos do meu guru,


Mesmo esse pouco não sendo posto em prática,
Como posso eu escrever como se ele tivesse entrado em meu coração,
Como uma gota de orvalho sonhando que pode conter o sol?
Por favor, conceda sua bênção de tal forma que seres como eu
Possam beber o néctar do Oceano do Dharma.

A VERDADEIRA FONTE DE INSPIRAÇÃO para esta obra é Chögyam Trungpa


Rinpoche. Foi ele quem me introduziu ao Livro tibetano dos mortos e estabeleceu
minha permanente conexão com esse livro, ao me pedir que o traduzisse junto com
ele. O Livro tibetano dos mortos é a fonte de qualquer entendimento que eu possa ter.
Para minha profunda tristeza, fui incapaz de preencher suas expectativas e intenções
para mim enquanto ele estava vivo. Este livro é minha oferenda a ele. Com isto, espero
partilhar algumas das riquezas que recebi dele e levar adiante pelo menos uma
pequena parte de seus desejos.

Trungpa Rinpoche nasceu provavelmente em 1940 e foi reconhecido ainda em


tenra idade como uma reencarnação da linhagem dos Trungpa Tulkus. Ele foi o décimo
primeiro de uma linha de mestres altamente realizados, e o abade do grupo de
monastérios de Surmang, no leste do Tibete. Tulku significa “corpo de emanação”, o
que nós normalmente chamamos de uma encarnação; Trungpa é o nome de sua
linhagem, significando literalmente “aquele que está na presença”; Chögyam é uma
abreviação de um dos muitos nomes que ele recebeu durante seu treinamento,
significando “joia preciosa”, geralmente usado por todos os mestres respeitados.

Depois da invasão do Tibete pela China, Trungpa Rinpoche escapou para a Índia
em 1959 e chegou à Inglaterra em 1963. Enquanto vivia em Oxford, começou a ensinar
a alguns poucos estudantes, e em seguida mudou-se para a Escócia, onde fundou
Samye Ling, o primeiro centro budista do Reino Unido. Em 1970, foi convidado à
América do Norte, onde seus ensinamentos tiveram uma enorme resposta. Os Estados
Unidos e o Canadá permaneceram as bases de suas atividades de ensino até sua
morte, em 1987.

A linhagem dos Trungpa pertence à escola Kagyü do budismo tibetano, mas


muitos dos mestres de Rinpoche eram da escola Ningma. Em sua própria vida e em seu

9
magistério, ele combinou as qualidades características de ambas as tradições.
Entretanto, por razões práticas, existem diferenças significativas entre os métodos das
duas escolas. Com seus primeiros estudantes na Inglaterra, ele ensinou primariamente
a partir da perspectiva Ningma, mas depois de sua mudança para a América, enfatizou
o estilo Kagyü de prática. Nos últimos anos, desenvolveu sua forma particular de
apresentação, conhecida como os ensinamentos Shambhala, cujos princípios básicos
descobriu como “tesouros da mente” (gongter). Os ensinamentos de Shambhala são
extraídos de antigas tradições da sabedoria tibetana e asiática, assim como do
budismo; trazem a visão sagrada dos tantras para a vida diária sem a necessidade de
qualquer filiação religiosa ou o uso de terminologia budista específica. Portanto, três
grandes rios de sua inspiração e bênçãos fluíram para o mundo, vindos do Oceano de
Dharma.

A primeira vez que encontrei Trungpa Rinpoche foi na primavera de 1969.


Naquela época estava engajada em uma pesquisa para minha tese de doutorado sobre
o Guhyasamaja Tantra na Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres.
Sentindo-me desencorajada pelas dificuldades do texto, esperava que ele pudesse ser
capaz de me ajudar. Eu tinha começado a estudar sânscrito no início da década de
1960 por causa do meu amor pela civilização e filosofia indianas, e logo tomei contato
com trabalhos sobre o tantra na biblioteca da universidade. Senti uma imediata
atração pelo tantra, por ser um caminho espiritual que se apoiava na experiência
direta, em vez de na crença, e tinha um respeito genuíno e um tratamento igualitário
com as mulheres. Isso me revelou uma visão transformadora de um mundo sagrado
que não era para ser procurado em nenhum outro lugar, mas para ser descoberto aqui
e agora, abarcando a totalidade da vida. Como eu havia crescido com a poesia de
William Blake, o tantra parecia incorporar a filosofia de meu trabalho favorito do
autor, O matrimônio do céu e do inferno, especialmente suas palavras finais: “Porque
tudo que vive é Sagrado.”

Como parte de meus estudos preliminares, tive sorte o bastante para passar seis
meses na Government Sanskrit College, em Calcutá. Enquanto estava na Índia,
encontrei diversos mestres hindus formidáveis, mas nenhum com quem eu sentisse
uma conexão pessoal muito forte. Após colação de grau, planejei retornar à Índia para
seguir meus interesses no tantra hindu, mas por uma auspiciosa coincidência, como
Trungpa Rinpoche teria dito, o professor David Snellgrove me persuadiu que o
Guhyasamaja Tantra seria um tema apropriado para minha dissertação. Isto me levou
a aprender tibetano em adição ao sânscrito e a imergir no mundo clássico do
vajrayana. Entretanto, eu não havia me dado conta de que não existia acesso algum ao
vajrayana como uma tradição autêntica e viva fora do Tibete, onde ele estava sendo
destruído rapidamente. Não foi antes do meio do caminho na minha pesquisa que
soube da existência de um mestre genuíno em meu próprio país e decidi visitá-lo.

10
Minha primeira visão de Trungpa Rinpoche foi em uma meditação de manhã
cedo em Samye Ling. O sol ainda não havia nascido e, na escuridão, a sala estava
iluminada somente pelas velas do altar, sobre o qual pendia uma reluzente thangka de
Amitabha vermelha e dourada. Então ele entrou na sala e prostrou-se três vezes em
frente ao altar, seus movimentos eram plenos de uma graça, uma dignidade e uma
consciência que eram extremamente impressionantes. Ele irradiava um senso de
profunda imobilidade e presença que eu nunca vira antes em ninguém. Durante minha
visita, ele não só me deu ajuda e inspiração para continuar a pesquisa, mas de alguma
forma, sem na verdade dizer muito, transmitiu-me uma percepção nova em relação ao
verdadeiro significado espiritual do tantra.

Cerca de um ano depois, ele se mudou para a América, e no ano seguinte fui
para lá juntar-me a ele. Em 1971, ele ministrou três seminários sobre temas
relacionados ao Livro tibetano dos mortos. Um desses temas formou a base para seu
comentário sobre nossa tradução e os outros dois foram mais tarde publicados em seu
livro Transcending Madness (Shambhala, 1992). Durante esses períodos intensivos,
seus ensinamentos produziram efeitos extraordinários nos participantes. Enquanto ele
explicava o sentido interior dos bardos e os seis reinos da existência, muitos de nós
experimentávamos um verdadeiro passeio de montanha-russa através desses vários
estados mentais, assim como os vislumbres de abertura que acompanhavam seus
extremos de tensão. As emoções vividas dos seis reinos, as qualidades iluminadas das
cinco famílias de budas, mesmo o processo de dissolução que leva à morte, e a
experiência de vazio e luminosidade tornaram-se naquele curto período de tempo
muito mais do que lindas e profundas metáforas. Eram ao mesmo tempo assustadoras
e maravilhosas — um vislumbre de uma maneira totalmente nova de olhar a vida.

Para o seminário mais diretamente baseado no texto do Livro tibetano dos


mortos, Trungpa Rinpoche usava uma versão tibetana, enquanto o público tentava
segui-lo na única versão em inglês disponível, traduzida por Kazi Dawa-Samdup e
editada por W. Y. Evans-Wentz. Embora ele tivesse grande respeito e apreciação por
seu trabalho pioneiro em publicar esse e outros textos importantes, não estava feliz
com essa tradução. Por isso sugeriu que nós devíamos produzir uma nova versão
juntos, que foi publicada pela primeira vez pela Shambhala Publications em 1975.

Quando o trabalho de tradução terminou, voltei para a Inglaterra para viver em


Londres, plena de intenções de retornar frequentemente aos Estados Unidos. Mas
naquela época não estava suficientemente comprometida para ser capaz de seguir um
único caminho, e muitos outros interesses absorveram minha atenção; em particular,
uma profunda ligação kármica com Bengala e o tantra hindu precisava ser resolvida.
Entretanto, a conexão com Rinpoche nunca se rompeu, portanto finalmente, depois de
uma longa jornada em círculos, voltei à prática do vajrayana, graças à influência e
exemplo do meu irmão de dharma, Rigdzin Shikpo.

11
Como Michael Hookham, Rigdzin Shikpo foi um dos primeiros estudantes
ocidentais de Trungpa Rinpoche. Ele já vinha praticando vários tipos de meditação
budista por dez anos quando eles se encontraram em 1965, portanto estava
excepcionalmente bem preparado. Rinpoche deu a ele os ensinamentos e a
transmissão da linhagem Ningma e mais tarde o autorizou a criar a Fundação
Longchen, que atualmente está sediada em Oxford e no norte do País de Gales. Em
1993, Michael completou um retiro de três anos sob a direção de Khenpo Tsultrim
Gyamtso Rinpoche e recebeu o nome de Rigdzin Shikpo, pelo qual é atualmente
conhecido.

Com um profundo conhecimento do budismo, Rigdzin Shikpo tem um dom


extraordinário para expressá-lo em formas vividas e poéticas, e para estabelecer
ligações com muitos aspectos da cultura ocidental. Acima de tudo, tem uma atitude de
completa devoção, de tal forma que sua mente se tornou uma com a mente do guru.
Ouvindo-o falar sobre dharma, muitas vezes eu sinto como se Trungpa Rinpoche
estivesse falando através de sua voz. Sem ele, eu nunca teria ganho experiência ou a
confiança para escrever sobre estes profundos ensinamentos. No que diz respeito ao
seu livro, ele respondeu inúmeras perguntas com infindável paciência e interesse. Sou
particularmente grata por sua ajuda no entendimento das práticas e na terminologia
do dzogchen, e especialmente por compartilhar as percepções da sua experiência
Yogue.

A ideia de escrever este livro vinha crescendo lentamente havia um longo tempo.
Desde a publicação do Livro tibetano dos mortos, as mesmas perguntas têm sido feitas
a mim muitas e muitas vezes. Essas perguntas dizem respeito principalmente ao
significado das visões das deidades que surgem após a morte e a razão para um
sistema de simbolismo tão elaborado. Existem também muitas perguntas sobre
reencarnação e a significação dos seis reinos da existência nos quais a pessoa pode
renascer. Minha ideia original era produzir um trabalho relativamente curto, centrado
na iconografia e no simbolismo das deidades, mas logo se tornou claro que, de forma a
fazer isso de maneira adequada, elas precisariam estar relacionadas com os conceitos
básicos do budismo.

Um dos aspectos singulares da habilidade comunicativa de Trungpa Rinpoche era


sua capacidade de fazer conexões entre todo o corpo dos ensinamentos, que são
tradicionalmente mantidos em compartimentos separados. Ele não apenas interligava
os vários componentes, mas também explicava como cada um deles se relacionava
com a vida diária de forma muito prática. Tendo isto como minha inspiração básica e
como pauta, tentei incorporar todos os aspectos mais relevantes do ensinamento na
primeira parte de Vazio luminoso de uma forma que tornasse o texto mais claro.

Chegando ao texto propriamente dito, traduzi novamente todos os excertos que


aparecem na segunda parte deste livro. A revisão é mais uma questão de estilo que se

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tornou mais livre e menos literal, embora também tenha descoberto alguns equívocos
que tive a oportunidade de retificar. Como as citações incluídas aqui são muito
extensas, não é realmente necessário se referir a uma tradução completa do Livro
tibetano dos mortos mas se os leitores desejarem fazê-lo, não deverá ser difícil seguir
as explicações com qualquer das traduções existentes.

Trungpa Rinpoche era diferente dos lamas tibetanos, porque falava um inglês
excelente e apreciava grandemente os desafios da tradução. Era muito aberto a
sugestões, mas também tinha pontos de vista firmes em certos assuntos. Por exemplo,
ele queria evitar qualquer alusão de teísmo ou teosofia, e estava determinado a não
usar palavras que sugerissem o sentimento de culpa e censura prevalecente em
grande parte da religião convencional, cujos efeitos ele via em seus alunos. Na
verdade, Trungpa Rinpoche criou muitos termos que mais tarde acabaram sendo
adotados por outros professores budistas e se tornaram parte da linguagem do
dharma, especialmente na América. Entretanto, esses foram momentos muito iniciais
na transmissão do vajrayana para o Ocidente, e, com uma noção tardia, sinto que nem
todas as nossas decisões na tradução de 1975 passaram no teste do tempo.
Especialmente na área dos textos dzogchen, houve algumas excelentes traduções nos
anos subsequentes, por meio das quais diversos de seus termos básicos tornaram-se
amplamente aceitos em inglês. Embora de certa forma todo o ensinamento de
Trungpa Rinpoche estivesse imbuído do sabor do dzogchen, ele não se aprofundou em
muitos dos seus detalhes técnicos àquela época, e eu não possuía conhecimento
suficiente para lhe fazer as perguntas necessárias enquanto estávamos trabalhando
juntos.

Em comum com muitos eruditos tibetanos, Trungpa Rinpoche tinha grande


respeito pela língua sânscrita, e muitas vezes usava palavras sânscritas assim como
tibetanas em suas aulas, quando não conseguia encontrar um equivalente inglês
apropriado. Ele sempre preferia usar os nomes sânscritos das deidades. No Tibete, os
nomes das deidades mais importantes e conhecidas — os cinco budas masculinos e os
cinco femininos, por exemplo — são geralmente traduzidos para o tibetano, embora
em alguns textos sejam simplesmente transliterados para a escrita tibetana. Neste
texto, encontramos uma combinação de ambos os métodos, mas eu mantive a prática
de Trungpa Rinpoche de apresentá-los em sânscrito e fornecer as traduções. Muito
poucos são apresentados em seus nomes em português quando o significado é
particularmente relevante e o sânscrito especialmente difícil.

Rinpoche estava sempre preocupado em como expressar melhor o verdadeiro


espírito do budismo, e seu interesse se estendia a todas as áreas de sua apresentação.
Por exemplo, ele tinha opiniões fortes sobre o que considerava um uso excessivo das

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letras maiúsculas iniciais, que atribuía a uma atitude teísta1. Sentia que isso produzia
uma falsa impressão ao valorizar conceitos que deveriam ser apresentados como
simples, acessíveis e despretensiosos. Queria passar adiante a ideia de que a
iluminação não é nada demais — é nosso estado natural. Os leitores que não estejam
acostumados com seu estilo podem ficar surpresos ao encontrar palavras tais como
dharma e bodhisattva sem maiúsculas. Até mesmo buda é escrito em minúsculas,
exceto quando se refere a um buda específico, como o Buda Shakyamuni. (Nem o
sânscrito nem o tibetano possuem letras maiúsculas, portanto é difícil dizer quando
uma palavra é um nome próprio, um título ou um epíteto.) Palavras tais como Ningma,
Zen e assim por diante são nomes de escolas ou tradições específicas, portanto são
tratadas como nomes próprios autênticos. Mas os três yanas, tantra, mahamudra e
dzogchen são estágios do caminho ou estilos de prática, portanto não são colocados
em maiúsculas. Nisso eu segui as linhas mestras de Trungpa Rinpoche, com algumas
poucas exceções. Decidi usar maiúsculas para as cinco famílias de budas (Buda, Vajra,
Ratna, Padma e Karma), tratando-as simplesmente como se fossem nomes de família
para evitar confusão com os significados alternativos de buda, vajra e karma. Sou
muito grata a Larry Mermelstein, do Comitê de Tradução Nalanda, por esclarecer esses
pontos, trazendo sua longa experiência de trabalho com Trungpa Rinpoche neste
campo.

À parte os nomes próprios, tentei reduzir o uso do sânscrito e do tibetano ao


mínimo neste livro. Entretanto, existem alguns exemplos de nomes bastante
especializados que senti que deveria manter, e expliquei as razões onde esses termos
ocorrem pela primeira vez. Existem também algumas palavras que efetivamente
traduzo, mas somente quando um exame do original sânscrito, e algumas vezes do
tibetano também, ajuda a iluminar seu significado. Eu talvez tenha me excedido um
pouco em minha fascinação com palavras e seus significados nessas passagens, mas
espero que alguns leitores possam achar essas digressões interessantes; aqueles que
não acharem podem pular esses trechos sem muita perda.

Como este não é um trabalho acadêmico, decidi um pouco contrariada não usar
as transliterações aceitas, com diacríticos, de termos sânscritos. Esse sistema é
obviamente preferível para aqueles que já o conhecem e fornece o único guia
confiável para a pronúncia correta; mas pode também ser uma verdadeira barreira
para aqueles que não o compreendem, demandando bastante esforço para seu
entendimento. Existe um problema diferente com o tibetano, porque a transliteração
correta geralmente cria dificuldades ainda maiores na pronúncia. Quando os termos
tibetanos ocorrem neste livro, forneço versões fonéticas aproximadas, com a
pronúncia completa entre parênteses ou nas notas finais. Uma ajuda para a pronúncia

1
Na tradução para a língua portuguesa, optamos por manter os critérios da grafia de certos termos em
minúscula, bem como o uso de palavras em sânscrito e tibetano adotado por Francesca Fremantle. (N.
do E.)

14
do sânscrito é imaginar que se está falando italiano, especialmente no que diz respeito
às vogais, que são fortes e acentuadas. Outro ponto a se notar é que, tanto em
sânscrito quanto em tibetano, th é pronunciado como t seguido de rr. Da mesma
forma, ph não é o equivalente ao f, mas a um p seguido de rr.

Talvez eu devesse explicar um pouco sobre minha própria abordagem para a


tradução. Como a minha introdução ao budismo veio por meio de estudos indianos,
estou sempre consciente de que ele cresceu a partir do pensamento e da cultura
indianas, e que sua expressão está intimamente ligada ao sânscrito. Sinto que é
absolutamente essencial retornar sempre às raízes sânscritas da terminologia budista.
Uma parte do trabalho que foi feita diretamente de fontes tibetanas, aparentemente
sem nenhuma referência ao sânscrito, a mim parece se afastar ocasionalmente do
significado original.

A tradução de textos budistas para o inglês apresenta problemas inteiramente


diferentes do que aqueles enfrentados pelos primeiros tradutores do sânscrito para o
tibetano. Isso se deve ao fato da língua inglesa ter sido formada por tantas influências
diferentes. Como resultado, ela contém um enorme número de sinônimos e muitas
maneiras alternativas de dizer a mesma coisa. Com tanta variedade, a escolha de
palavras e expressões é extremamente subjetiva. Toda tradução é interpretação, e não
existe tradução perfeita, muito menos neste campo. Espero sinceramente que nunca
haja um código padronizado de tradução para a literatura budista. Qualquer tentativa
nesse sentido teria uma influência mortífera. Embora tão grande variedade de
diferentes versões possa parecer confusa para os estudantes de budismo, também
pode ser vista como uma oportunidade. Através da comparação de traduções, aqueles
que não conhecem nada de sânscrito ou de tibetano podem ser capazes de olhar para
esses conceitos de difícil compreensão a partir de diferentes pontos de vista, e com
isso obter uma compreensão maior deles.

Os ocidentais estão em desvantagem, porque todo o nosso passado de


pensamento filosófico e religioso é muito diferente daquele do budismo. Isso significa
que certos termos ingleses, que podem no primeiro momento parecer adequados,
estão excessivamente carregados de implicações inadequadas. Mesmo assim, é às
vezes surpreendente que alguns tradutores não se contentem com a riqueza da língua
de Shakespeare e sintam a necessidade de inventar mais palavras novas ou caçar
algumas particularmente obscuras. Tentando se manter em sintonia com a própria
atitude do Buda em relação ao ensino, a grande maioria dos textos de dharma, sejam
em sânscrito ou em tibetano, usam termos comuns, linguagem do dia-a-dia. No
contexto do dharma, essa linguagem simples é usada para expressar as ideias e
experiências mais profundas, e mesmo assim o Buda e seus sucessores não escolheram
usar palavras complexas ou obscuras para se expressarem, e acredito que deveríamos
tentar seguir seu exemplo. Uma exceção para isso seria no estudo da filosofia e da

15
lógica, onde a terminologia técnica é inteiramente apropriada. Entretanto, isso afeta
apenas uma área muito pequena; não se aplica na maioria dos casos, e especialmente
não à literatura tântrica.

Em qualquer língua, podemos entender essas palavras comuns de uma maneira


especial, de acordo com seu contexto. Se mais explicações forem necessárias, elas
podem ser dadas em comentários ou notas, mas acredito que não deveriam se imiscuir
na tradução. Alguns professores dizem que pelo fato de o significado experimental de
certas palavras tais como vazio ou compaixão mudar em diferentes etapas do
caminho, especialmente em dzogchen, elas deveriam ser traduzidas de forma
diferente. Para mim, o mais importante é que essas palavras não foram mudadas. Os
grandes mestres de muito tempo atrás tiveram muitas escolhas, mas optaram por
manter os mesmos termos. Parte de sua eficácia é que eles podem ser entendidos em
muitos níveis. Cabe ao leitor imbuí-los de significado de acordo com o contexto e à luz
de sua própria experiência.

Acima de tudo, tradução é uma arte. Como tradutores, devemos lembrar sempre
que as mesmas palavras que nos dão tanto trabalho ao tentar encontrar seu
significado não são termos técnicos, mas são usadas em poesia, canções espontâneas
e liturgias, cujo propósito é inspirar e estimular a imaginação. Tristemente, algumas
vezes é impossível encontrar uma solução que seja ao mesmo tempo precisa e
estética, mas deveríamos tentar, tanto quanto possível, reter o espírito do original. Ao
lado da profundidade e da beleza de textos como o Livro tibetano dos mortos, estou
plenamente consciente de que meu próprio trabalho é desajeitado e confuso, e
desculpo-me por seus defeitos. Entretanto, sinto que fui abençoada com tremenda
boa sorte por ser capaz de produzir este livro. Ele me deu muita alegria ao escrevê-lo,
espero que ele possa trazer alegria e benefícios a todos que o lerem.

16
PARTE I - FUNDAMENTOS

17
Homenagem

Curvo-me aos pés de meus gurus:


Possa o poder de suas presenças
Inspirar e habitar dentro destas palavras
De tal forma que suas visões sejam realizadas.

Possam os devatas pacíficos e coléricos


Brilhar dentro de nosso coração e nossa mente
De tal forma que possamos conhecê-los claramente
Como nossa própria natureza desperta.

Possam os dakinis que dançam


No céu ilimitado da sabedoria
Revelar o tesouro secreto
Do dharma profundo e vasto.

Possam os poderosos dharmapalas


Proteger a verdade dos ensinamentos,
Reduzir a poeira todas as visões errôneas,
E guiar-nos sempre no caminho.

18
Capítulo Um

Um Livro dos Vivos

O LIVRO QUE CONHECEMOS NO Ocidente como o Livro tibetano dos mortos é


um texto extraordinário e maravilhoso. Foi um dos primeiros exemplos tanto de
literatura vajrayana quanto de literatura tibetana a ser traduzido para uma língua
europeia, e ainda é provavelmente o mais conhecido entre budistas e não-budistas
igualmente. Embora a escolha possa ter sido acidental, ele é merecedor de sua fama
como representativo do budismo tibetano. Interliga uma vasta gama de interesses,
porque por um lado é um ensinamento muito especializado ligado a técnicas de
meditação avançadas, e por outro é a expressão de uma verdade universal que
interessa a muitas pessoas além da esfera do budismo. O propósito de Vazio luminoso
é servir como um guia para a compreensão desse texto clássico, interpretando em
detalhes os conceitos nos quais se baseia, os termos que utiliza e as imagens que
contém. Este livro é dirigido a todos que se sintam atraídos pelo Livro tibetano dos
mortos, sejam budistas ou não. Espero que os não-budistas não o considerem muito
técnico, e especialmente que sirva de ajuda para iluminar o complexo simbolismo do
vajrayana tanto para eles quanto para budistas de outras tradições que não sejam
familiarizados com ele.

A primeira pergunta que temos de nos fazer é se ele deveria realmente ser
chamado de o Livro tibetano dos mortos. Provavelmente a maior parte das pessoas
que o leram, em qualquer de suas traduções, está ciente de que esse não é o seu título
original, mas um nome dado por W. Y. Evans-Wentz, o compilador e editor de sua
primeira tradução para o inglês.2 Esse título foi escolhido por causa da aparente
similaridade do tema com o Livro egípcio dos mortos, que era extremamente popular
naquela época, e também provou ser extremamente eficaz do ponto de vista da
publicidade. Faz parte da natureza humana sentir uma fascinação pela morte e uma
intensa curiosidade sobre o que acontecerá depois, portanto um nome como esse é
excelente para atrair a atenção dos leitores. É muito provável que se Evans-Wentz o
tivesse apresentado ao mundo ocidental como a Grande libertação através da audição
durante o estado intermediário não teria atraído tanto interesse. Trungpa Rinpoche

2
Traduções para o idioma inglês atualmente disponíveis: W. Y. Evans-Wentz, The Tibetan Book of the
Dead, Londres, Oxford University Press, 1927; Francesca Fremantle e Chögyam Trungpa, The Tibetan
Book of the Dead, Berkeley, Shambhala Publications, 1975; Robert A. F. Thurman, The Tibetan Book of
lhe Dead, Bantam (EUA) e Aquarian Thorsons (Reino Unido), 1994; Stephen Hodge com Martin Boord,
The Illustrated Tibetan Book of the Dead, Londres, Thorsons, 1999.

19
não gostava particularmente do novo título, mas nós continuamos a usá-lo na nossa
tradução porque já era muito conhecido.

Chamá-lo de o Livro tibetano dos mortos no fim das contas não é inteiramente
inadequado, o texto é inegavelmente dirigido àqueles que estão próximos da morte ou
que acabaram de morrer, e é lido em voz alta para guiá-los. Em um outro sentido, nós
que nos consideramos vivos poderíamos na verdade sermos chamados de mortos.
Somos os adormecidos, vivendo nossas vidas em um sonho — um sonho que irá
continuar depois da morte, e em seguida vida após vida, até que despertemos
verdadeiramente.

Neste livro, entretanto, irei me referir a ele pelo seu curto título tibetano:
Liberação através da audição. Isso porque uso alguns dos outros textos associados a
ele, portanto me parece mais consistente e apropriado dar-lhe seu nome verdadeiro
junto com esses textos. Além disso, minha intenção não é tratá-lo como um livro dos
mortos no sentido habitual da palavra. Exceto de forma incidental, sua aplicação no
cuidado com os mortos e preparação para a morte, ou seu uso em rituais para a
morte, não será discutida em nenhum momento.3 Ao contrário, será apresentado
como um livro para os vivos: um livro para o viver, sobre esta vida. As ideias, as visões,
as percepções que contém não podem ter nenhuma significação genuína e efetiva
para nós, se as abordarmos somente como descrições do que acontece depois da
morte, e se não entendermos que elas se aplicam a nós aqui e agora na vida diária.

Trungpa Rinpoche, bem no início de seu comentário à nossa tradução, destaca


que ele poderia muito bem ser chamado de o Livro do nascimento tibetano.4 Ele
explica que é um equívoco tratá-lo como uma parte do conhecimento sobre a morte e
compará-lo ao Livro egípcio dos mortos ou aos tratados sobre a morte de qualquer
outra cultura. “O livro não é baseado na morte como tal, mas em um conceito
completamente diferente da morte.” Sua finalidade última é “o princípio fundamental
do nascer e morrer recorrendo constantemente nesta vida”. Onde quer que exista um
nascimento, existe morte. O livro descreve não só o processo de dissolução, mas
também o processo de vir a ser, e como esses dois processos estão em funcionamento
contínuo a cada momento da vida. De acordo com a visão budista, nada é permanente,
fixo ou sólido. O sentido do ser em cada um de nós, o “eu”, está nascendo e morrendo
a cada momento. A totalidade da existência, o mundo inteiro de nossa experiência,
está aparecendo e desaparecendo a cada momento.

3
Isso foi observado por Trungpa Rinpoche no final de seu comentário à nossa tradução do Livro
tibetano dos mortos, págs. 27-29, e em Chögyam Trungpa, The Heart of the Buddha, Boston, Shambhala,
1991, Capítulo 9 “Acknowleging Death”. Sogyal Rimpoche, The Tibetan Book of Living and Dying,
Londres, Rider and Harper San Francisco, 1992, cobrem todos os aspectos da prática budista da vida e
da morte, com referência particular aos bardos e ao Livro tibetano dos mortos. Ver também Bokar
Rinpoche, Death and the Art of Dying in Tibetan Buddhism, San Francisco, Clear-Point Press, 1993.
4
The Tibetan Book of Dead, pág. 1.

20
O que quer que nos aconteça depois da morte é simplesmente uma continuação
do que está acontecendo agora nesta vida, embora se manifeste de maneiras
inesperadas, como diz o texto: “Samsara se reverte, e tudo aparece como luzes e
imagens.” Não somos catapultados para um mundo completamente diferente, apenas
percebemos o mundo de uma forma diferente. Tudo que o texto descreve pode ser
entendido simbolicamente em termos desta vida. Aprender a perceber o mundo dessa
maneira é parte do processo de transformação do budismo vajrayana, e o praticante
que seguir adiante ao longo do caminho será capaz de experimentar tudo isso
diretamente através da meditação. Mas é somente nesta vida que temos a
oportunidade de nos prepararmos. Depois da morte, sem a influência lastreadora do
corpo físico, os eventos nos surpreenderão em tal velocidade e intensidade que não
haverá chance de parar e meditar. Para que seja útil, a meditação deve se tornar parte
da nossa natureza mais interior. É por isso que este é um livro dos vivos assim como
um livro dos mortos.

Tratá-lo como um livro dos vivos não quer dizer negar que é também
literalmente sobre a morte, nem sugerir que não pode ajudar os mortos e o ato de
morrer. Essa interpretação não diminui de maneira alguma a importância de
contemplar a certeza da morte ou diminui sua enorme significação. Meditar sobre a
morte, sobre a natureza efêmera da vida e sobre as consequências inevitáveis de
nossas ações permanece sendo fundamental ao longo de todo o caminho budista. Não
existe aqui a intenção de atenuar o conceito do renascimento nos seis reinos do
samsara como sendo uma alegoria, ou reduzir a visão das deidades, que são a
presença viva do estado desperto, a arquétipos psicológicos. Ao contrário, ser capaz de
vê-los todos em termos desta vida dá a eles uma relevância imediata e os resgata do
perigo de se tornarem meras fantasias. Lendo Liberação através da audição com essa
atitude pode fornecer tremenda motivação e inspiração para a prática.

Nele, os eventos que acontecem durante o período entre a morte e o


renascimento são descritos de uma forma que é, por todos os padrões, extraordinária
— extraordinária para muitos budistas asiáticos assim como para pessoas que não são
budistas nem de uma cultura asiática. Diz-se que o budismo é uma religião não teísta,
mesmo assim encontramos visões de budas conhecidos como as deidades pacíficas e
coléricas. Essas deidades inspiram reverência e temor, mesmo em suas formas
pacíficas, e são tremendamente assustadoras em suas manifestações coléricas. Elas
podem ter muitas cores, muitas cabeças, muitos braços, parte animal ou parte
pássaro, ou podem aparecer como demônios vingadores que perseguem os mortos
através de paisagens surrealistas em meio a uma bizarra cacofonia de sons. Em
seguida existem os seis reinos da existência nos quais a pessoa morta pode renascer,
talvez como um animal ou até mesmo como um ser de outro mundo, como um
fantasma ou um deus ou uma deusa.

21
Algumas vezes as pessoas perguntam: “Os budistas acreditam realmente nisso
tudo?” A resposta imediata deve ser que apenas uma pequena minoria aceita a
totalidade desse relato tão particular, mas que muitos mais provavelmente aceitam o
princípio por trás disso, se não todos os detalhes. As linhas gerais dos ensinamentos
que dizem respeito à morte a dissolução dos elementos do corpo seguida pelo
renascimento de acordo com as ações prévias da pessoa — são aceitas por todas as
escolas do budismo. Mas a existência de um período de transição entre a morte e o
renascimento não é sustentada por todos, e existem ideias diferentes sobre a sua
natureza. Liberação através da audição nos apresenta descrições elaboradas de todos
estes processos, que não são encontrados de forma tão completa em nenhuma outra
tradição.

Para responder à pergunta de maneira mais satisfatória, devemos olhar a


natureza da crença no budismo e o lugar de Liberação através da audição em sua
história. O Buda não ensinou um dogma; ofereceu um caminho baseado na
compreensão e na experiência pessoal em vez de um credo. Sua própria busca
espiritual foi de um constante questionamento e experimentação. A iluminação que
conquistou, o mais alto estado desperto, não pode ser expressada na linguagem
humana comum. A princípio, ele estava extremamente relutante até mesmo para falar
a respeito. Mesmo depois que foi persuadido a ensinar, nunca pediu a ninguém que
acreditasse no que dizia, mas somente que tentassem por si próprios. As palavras
podem apenas apontar na direção da verdade; o conhecimento genuíno deve ser
experimentado diretamente.

Do ponto de vista do absoluto, falar a respeito da verdade é inevitavelmente


mentir, e ainda assim é da própria natureza da verdade se comunicar. Uma vez que ela
é posta em palavras, ou mesmo em imagens e símbolos, torna-se submetida às
limitações e distorções da linguagem e do pensamento humanos. O Buda estava
plenamente consciente das limitações da expressão humana, e ele sabia que seu
ensinamento seria mal compreendido. Com frequência, permanecia silente quando era
perguntado sobre questões tais como a existência do ser ou o que acontecia com uma
pessoa iluminada após a morte. Em outras ocasiões, permitia ao questionador que
ficasse sugerindo alternativas, e a cada uma ele dizia, não, não é assim. Muitas vezes
seu silêncio era um convite para que a pessoa olhasse mais profundamente para os
preconceitos implícitos na pergunta, que era baseada em falsas suposições. Somente
muito poucos eram capazes de entender seu próprio silêncio como uma resposta e
iam embora satisfeitos.

O Buda certamente possuía aquele dom supremo dos maiores mestres, para
transmitir a verdade simplesmente pela sua presença e para elevar a mente de seus
discípulos a um estado de percepção intuitiva, no qual as dúvidas e perguntas se
tornavam irrelevantes. O calor e a radiância da sua personalidade, que é

22
absolutamente distinta de todas as histórias sobre sua vida, devem ter demonstrado
melhor do que quaisquer palavras sua abordagem totalmente positiva do sentido da
vida e da morte. Infelizmente, seu silêncio deixou-se aberto para ser interpretado de
modo bastante negativo, enquanto suas declarações positivas parecem ter sido
ignoradas ou atenuadas, sendo o budismo algumas vezes falsamente apresentado
como antagônico ao mundo, agnóstico e até mesmo niilista. Em contraste a essa
impressão equivocada do ensinamento original, formas mais recentes de budismo
podem parecer ir em direção ao extremo oposto e não são aceitas como genuínas por
seguidores de algumas tradições budistas.

Acima de tudo, o budismo é uma religião de métodos práticos para a realização


espiritual. Por causa disso, contém muitas visões e formulações diferentes em resposta
às necessidades das pessoas, e uma grande variedade de técnicas para satisfazer suas
inclinações e capacidades. Algumas podem parecer contraditórias, embora não
ensinem verdades diferentes. Elas apresentam diferentes pontos de vista para abordar
a mesma verdade. A fim de distinguir os movimentos principais, o budismo é com
frequência descrito como se consistindo em três yanas: hinayana, mahayana e
vajrayana. Yana é geralmente traduzido como “veículo”, mas pode também significar o
caminho ou a própria jornada. O uso desses três rótulos tornou-se um tema bastante
delicado, mas são largamente encontrados, especialmente, no contexto do budismo
tibetano, portanto vale a pena dar uma pequena olhada neles.

No sentido mais óbvio, eles correspondem a fases no desenvolvimento histórico


do budismo, representados por suas escrituras características. Hinayana, “o caminho
menor”, é um rótulo retrospectivo que se refere ao primeiro período do budismo e é
baseado nas próprias palavras do Buda, conforme reportado por seus discípulos. O
Buda mesmo nunca tentou codificar seus ensinamentos em nenhum tipo de sistema.
Ele ensinava em seu dialeto local em vez de sânscrito, a linguagem da religião
ortodoxa. Seus discípulos viajaram muito e muito longe, de tal forma que diferentes
coleções de seus discursos, instruções e regras para a vida monástica foram
transmitidos de memória nas várias línguas da Índia e das regiões vizinhas. De acordo
com a tradição, 18 ordens monásticas separadas cresceram durante os séculos que se
seguiram à morte do Buda. A maioria delas desapareceu ou se amalgamou, mas quatro
permaneceram como escolas distintas, que floresceram lado a lado com os últimos
desenvolvimentos das grandes universidades monásticas da Índia. Entre estas, a
sarvastivada forneceu a regra monástica e a análise filosófica básica que foi
transmitida ao Tibete. A descendente de apenas uma das quatro escolas, a Theravada,
ainda existe hoje em dia como uma tradição inteiramente independente, graças à sua
sobrevivência no Sudeste da Ásia e no Sri Lanka. Sua coleção de ensinamentos foi
preservada em páli, um dialeto do oeste da Índia, e fornece o registro mais completo
que temos do budismo inicial.

23
Por volta do primeiro século antes de Cristo, um novo movimento estava se
desenvolvendo, que começou a produzir suas próprias escrituras distintas, os sutras.
Tradicionalmente, acredita-se que foram ensinados pelo Buda durante sua vida, mas já
que as pessoas ainda não estavam prontas para ouvi-las, foram confiadas às deidades
serpentes e a outros seres semidivinos até que o tempo fosse propício. Os seguidores
desse movimento se referiam a ele como mahayana, “o grande caminho”. Em
contraste, chamaram a tradição antiga de hinayana, o que, deve-se admitir, significava
inferior. Essa discriminação apoiava-se principalmente em sua atitude diferente em
relação à liberação. Por um lado, certas ordens hinayana parecem ter se concentrado
em um conceito negativo do nirvana como extinção, com a crença de que ele só
poderia ser atingido por uma pessoa e para essa pessoa. Por outro lado, o mahayana
era baseado num senso de inter-relacionamento de toda a existência e a aspiração de
levar cada ser individual à iluminação, vista como um estado positivo. Muitas tradições
diferentes com visões e práticas largamente divergentes, desde a devoção da escola
Terra Pura à meditação característica do Zen, emergiram da expansão do mahayana
através da Ásia.

A terceira fase é o vajrayana, “o caminho indestrutível”. Suas escrituras são os


tantras, revelados pelo Buda não como um ser humano, mas em seu aspecto
transcendente. A data desse movimento ainda é muito especulativa. Parece não haver
evidência registrada dos tantras budistas nos monastérios até a segunda metade do
século VII a.D., mas podem ter sido praticados secretamente em locais isolados muito
antes dessa época. Vajrayana não é considerado separado do mahayana, mas sim uma
seção especial dentro dele. O Guhyasamaja Tantra, por exemplo, diz que aqueles que
o praticarem irão “ser bem-sucedidos na melhor das maneiras, o mais alto mahayana,
esse caminho dos budas, o grande oceano do mahayana”.5 Vajrayana se espalhou para
o Extremo Oriente de uma forma incompleta, e foi somente o Tibete que recebeu e
preservou a herança completa do budismo indiano, incluindo todos os níveis de tantra.

Esse é o significado histórico dos três yanas, que não pode ser totalmente
desconsiderado, mas que pode ser bastante enganoso. Será especialmente enganoso
se tentarmos rotular as escolas budistas existentes, como o Zen, Theravada ou o
próprio budismo tibetano como pertencendo a um ou outro yana, com base em suas
origens históricas. Os praticantes do Theravada contemporâneo compreensivelmente
recusam a ideia de seu caminho ser considerado inferior. Além disso, hinayana contém
todos os ensinamentos fundamentais, e não é possível que os budistas mahayana
pretendessem depreciar as próprias palavras do Buda. Eles estavam reagindo apenas
ao que percebiam como uma interpretação estreita de seus ensinamentos da parte de
certos grupos naquela época. Se olharmos para esses ensinamentos da forma como
estão registrados nas escrituras páli, podemos encontrar muitas passagens que apoiam

5
Guhyasamaja Tantra, Capitulo 5. Adaptado de minha tese de doutorado não publicada, SOAS,
Universidade de Londres, 1971.

24
a evolução que levou ao mahayana e ao vajrayana. Além disso, as mudanças
ocorreram muito gradualmente e em geral incorporavam, em vez de removerem, o
que quer que já existisse. Na verdade, todos os três yanas floresceram juntos na Índia
até a destruição final dos monastérios pelos invasores islâmicos no século XIII,
resultando no fato de que o budismo não seria mais capaz de sobreviver na terra de
sua origem.

Mas existe uma outra maneira de se olhar os três yanas. O budismo do Tibete,
embora seja mencionado como simplesmente budismo tântrico, na verdade contém
todos os três yanas. Trungpa Rinpoche e outros mestres da sua tradição tratam-nos
como estágios no progresso espiritual: diferentes atitudes psicológicas frente ao
caminho, todas igualmente válidas e necessárias.

A jornada começa com hinayana, que não é visto como inferior, mas como a
preparação para e a fundação dos outros yanas. Trungpa Rinpoche o chamava de o
caminho estreito. Ele o descrevia como o caminho onde começamos a nos tornar
amigos de nós mesmos e aprendemos a não ser um aborrecimento para nós mesmos e
para os outros. Aqui, a ênfase está em trabalhar na direção de nosso despertar, em vez
do despertar de todos os seres viventes. Ele é baseado em uma atitude de honestidade
e humildade. Percebemos que precisamos de ajuda e sentimos que devemos fazer algo
a respeito de nossos próprios problemas, antes mesmo que possamos pensar em
ajudar os outros. É um caminho de simplicidade e renúncia. Nesse estágio, as atrações
e tentações da vida mundana são vistas como obstáculos a serem evitados, e existem
muitas regras de conduta para ajudar a guiar nosso comportamento. Sendo a base de
todo o caminho, ele nunca é abandonado, mas constrói-se sobre ele como a fundação
de uma casa. As práticas de meditação desse estágio são aquelas de tranquilidade
(shamatha em sânscrito), que é a prática da obediência para domar e acalmar a
mente, e percepção (vipashyana em sânscrito) da natureza da existência que leva à
descoberta do altruísmo.

Praticado corretamente com a simplicidade do hinayana, de forma muito natural


resulta em uma transformação da nossa relação com o mundo. O caminho estreito
leva ao caminho aberto, mahayana. A visão mahayana do universo é uma rede
ilimitada de interconexões que abarca a totalidade do tempo e do espaço. Com essa
visão mais ampla percebemos que somos cada um parte do todo, e que a iluminação
conquistada em isolamento é incompleta. Com o sentimento de espaço e relaxamento
que vem com o altruísmo, começamos a ver que os outros são mais importantes do
que nós. A compaixão se torna a força motivadora da prática. O treinamento nesse
caminho é dirigido para desenvolver as seis perfeições, ou virtudes transcendentais de
generosidade, moralidade, paciência, energia, meditação e sabedoria.

O mahayana não se concentra tanto no Buda Shakyamuni histórico, mas no


princípio da natureza de buda se manifestando em incontáveis formas divinas. A

25
perfeição do reino espiritual é expressa em termos de tudo que há de melhor neste
mundo, e portanto a linguagem do mahayana é plena de imagens de esplendor real,
riquezas, prazeres sensuais e a beleza da natureza. Ele enfatiza o ideal do bodhisattva,
um ser desperto que escolhe não habitar na paz do nirvana, mas agir em benefício de
todos os seres. Nesse estágio, os praticantes assumem o voto do bodhisattva, um
compromisso de servir a todos os seres e não descansar até que cada um tenha
despertado. Começamos a perceber que a natureza de buda já existe dentro de nós,
portanto se torna possível abandonar a ambição espiritual e a ideia de conquista. Os
prazeres sensuais não são mais vistos como obstáculos em si próprios; eles podem ser
purificados e apreciados por meio de sua oferta aos outros. O caminho se torna uma
celebração, um grande banquete de alegria para o qual convocamos todos os seres
viventes como nossos convidados.

Vajrayana vai ainda mais longe ao longo do caminho aberto. Nenhuma


experiência é rejeitada; tudo é integrado à prática. Vajrayana é um caminho de
alquimia espiritual, um caminho de transmutação. O que é transmutado ou
transformado é nossa própria experiência: a percepção de nosso próprio corpo e
mente é transformada em divindade, o mundo comum é transformado em um mundo
sagrado, e a energia das emoções negativas é transmutada em sabedoria e ação
iluminada. Um verso do Hevajra Tantra expressa esse princípio muito claramente:

Aquelas coisas pelas quais o mundo é amarrado,


Por aquelas mesmas coisas possa seu cativeiro ser liberado,
Mas o mundo é iludido e não conhece essa verdade,
6
E sem essa verdade não irá atingir a perfeição.

Os métodos do vajrayana são baseados em identificar a si próprio e à totalidade


da sua própria experiência com as qualidades da iluminação, que são trazidas à vida
nas formas de todas as deidades pacíficas e coléricas. O estado desperto se manifesta
em toda parte, em cada aspecto da existência. Essa é a chave para a linguagem do
vajrayana e o simbolismo que encontramos em Liberação através da audição. O
próprio caminho tântrico é dividido em quatro ou seis estágios, dependendo de qual
tradição se esteja seguindo. No estágio final, a essência mais interior do vajrayana, o
próprio coração do tantra, se encontra no reconhecimento de que nunca fomos outra
coisa que não despertos. Aqui não existe mais nenhuma necessidade de técnicas, de
simbolismos ou de transformação. O praticante que terminou o caminho vive em uma
condição de completa simplicidade e experiência direta da realidade.

6
Hevajra Tantra 1, ix. 19. Adaptado da tradução por David Snellgrove, The Hevajra Tantra, Londres,
Oxford University Press, 1959.

26
Embora o desenvolvimento dos três yanas pareça perfeitamente natural em
retrospecto (pelo menos do ponto de vista do mahayana), o texto contém histórias
que mostram o quão revolucionárias algumas dessas ideias eram. Nos sutras, relata-se
que muitos discípulos do hinayana abandonaram a assembleia e recusaram-se a ouvir
os ensinamentos mahayana, e quando o vajrayana foi exposto nos tantras, até os
bodhisattvas desfaleceram de medo e tiveram de ser revividos pelos raios de luz
emanados do coração de todos os budas.

Do ponto de vista do vajrayana, estes são aspectos diferentes do mesmo, único


caminho. O Buda não ocultou nada em seus ensinamentos, mas a maneira como esses
ensinamentos foram interpretados e aplicados por seus seguidores mais recentes
podia variar enormemente. Dependia não apenas de seu próprio entendimento, mas
também do espírito do seu tempo. Mudanças nas condições sociais, assim como o
ambiente intelectual e religioso, afetavam a receptividade das pessoas às ideias e a
habilidade delas de colocá-las em prática. A Índia nunca esteve isolada; era aberta a
muitas correntes de influências, especialmente nas distantes regiões do noroeste onde
o vajrayana floresceu. Isso não quer dizer que qualquer coisa essencialmente diferente
da mensagem original do Buda foi introduzida, nem implica que sua iluminação foi
superada. Os sutras do mahayana e os tantras do vajrayana simplesmente revelam nas
suas maneiras especiais uma visão já inerente nas próprias palavras do Buda. Eles
extraíram de uma forma extensa vários aspectos de seu ensinamento que não haviam
sido enfatizados anteriormente, porque não podiam ser compreendidos de maneira
completa, em função das circunstâncias e condições prevalecentes.

Na tradição vajrayana, uma das formas de comunicação é por meio de um


conjunto de imagens extremamente vividas e dramáticas. Essa abordagem, como o
silêncio do Buda, tem seus perigos, mas de um tipo diferente. Existe a possibilidade de
se tornar fascinado com o simbolismo tântrico e ser induzido ao erro por causa de sua
linguagem ambígua. Isso pode levar a uma crença baseada em veleidades e a uma
prática sem compreensão. A tendência humana a acreditar no que alguém diz, em vez
de tentar entender através de sua própria experiência, pode facilmente provocar a
reação oposta, ou seja, rejeição completa: são dois lados da mesma moeda. Podemos
ter uma reação de perplexidade, ou mesmo de medo e desagrado, o que nos impediria
de ir mais fundo. É por isso que é importante olhar cuidadosamente para o significado
e o propósito genuínos dessas imagens durante a vida, de forma a apreciar sua
potencial significação para nós após a morte. Minha intenção com este livro é
relacionar o mundo simbólico do vajrayana tanto aos ensinamentos budistas não
tântricos quanto às experiências da vida diária.

Liberação através da audição pertence ao mais alto estágio do vajrayana,


embora dirija-se a todo um grupo de pessoas de diferentes capacidades e diferentes
níveis de experiência, partindo do pressuposto de que exista uma familiaridade com

27
todo o caminho budista. Inspirador como ele é por si só, sua mensagem é passível de
ser distorcida, se não houver algum conhecimento dos fundamentos sobre os quais o
vajrayana é construído. É impossível entender textos tântricos sem um conhecimento
desses fundamentos, e mais impossível ainda se engajar em práticas tântricas que
possam ser significativas sem uma genuína experiência dos princípios básicos do
budismo, que são essencialmente o desenvolvimento do altruísmo e da compaixão.
Como disse Trungpa Rinpoche: “Tentar praticar vajrayana sem compaixão é como
nadar em chumbo derretido — é mortal.”7

A primeira parte deste livro pretende fornecer uma infraestrutura de


informações básicas. Não é um relato abrangente do budismo, mas somente introduz
os aspectos que são particularmente relevantes como um guia para futura exploração
de Liberação através da audição. Em certos pontos existem diferenças doutrinárias e
divergências, mesmo entre as tradições budistas tibetanas, mas em tais casos eu segui
o ensinamento de Trungpa Rinpoche na melhor forma de minha compreensão. A
segunda parte do livro irá explorar o próprio texto, trazendo esses princípios e
relacionando-os com ele. Antes disso, entretanto, vamos examinar suas origens e
autoria.

________

Liberação através da audição passou a existir na sua presente forma no século


XIV, mas sua história recua no tempo seiscentos anos antes dessa data. O budismo já
havia entrado no Tibete8 sob várias formas vindo da Índia, Ásia Central e China, talvez
esporadicamente mesmo desde o século III. Recebeu patrocínio real do rei Songtsen
Gampo, do século VII, que enviou seus ministros mais eruditos à Índia para aprender
sânscrito e criar um manuscrito para a língua tibetana. Em seguida, na segunda
metade do século VIII, seu descendente, Trisong Detsen, convidou diversos mestres
famosos da Índia e estabeleceu o budismo definitivamente, fundando Samye, o
primeiro monastério no Tibete. Esse fato é conhecido como a primeira difusão do
dharma no Tibete.

Entre esses mestres estava Padmakara, mais conhecido no Ocidente como


Padmasambhava. Ambos os nomes significam “o Nascido do Lótus”: literalmente,
“aquele cuja origem (akara) ou local de nascimento (sambhava) é o lótus (padma)”. Na
tradição que ele fundou, Padmakara é o nome preferido, e Trungpa Rinpoche esperava
que se tornasse mais amplamente conhecido e adotado, por isso decidi usá-lo neste

7
Chögyam Trungpa, Journey Without Goal, Boulder, Prajna Press, 1981, p. 5.
8
Para a história do Tibete, ver David Snellgrove e Hugh Richardson, A Cultural History of Tibet, Londres,
Weidenfeld and Nicholson, 1968. Para o budismo, com referência em particular ao Tibete, ver David
Snellgrove, Indo-Tibetan Buddhism, Londres, Serindia, 1987: e John Powers, Tibetan Buddhism, Ithaca,
Snow Lion, 1995.

28
livro. (Padmakara deve ser pronunciado com a ênfase na segunda sílaba, que tem um
som de “aa” mais longo; as outras são curtas.) De acordo com a lenda de seu
nascimento milagroso, ele foi descoberto já uma criança de oito anos de idade,
expelido do coração de um lótus no centro do lago Dhanakosha em Uddiyana, hoje
identificado com o vale Swat no norte do Paquistão. Tornou-se conhecido por seus
poderes sobrenaturais e foi expressamente convidado para o Tibete para superar
obstáculos na construção de Samye e na difusão do budismo. Muito pouco se sabe
sobre ele historicamente, mas sua influência espiritual foi enorme, e com o passar do
tempo tornou-se reverenciado como a figura mais importante no budismo tibetano.9 É
também conhecido como Guru Rinpoche, “o Precioso Mestre”, e é considerado o
segundo Buda, inseparável do próprio Buda Shakyamuni histórico, tomando forma
humana mais uma vez para ensinar os tantras. Por meio do trabalho do Guru Rinpoche
e de seus companheiros, o Tibete recebeu todas as correntes do budismo que existiam
na Índia: monásticas, leigas, filosóficas, yogues e mágicas.

Durante o século seguinte, a linhagem de reis descendentes de Sogtsen Gampo


desapareceu, e o reino decaiu em um caos político. O budismo foi primeiro suprimido
e em seguida negligenciado pelas famílias regentes que o haviam apoiado
anteriormente. Sobreviveu nas regiões fronteiriças e continuou a se desenvolver lá,
mas quase um século e meio se passou antes que ele retornasse a todo o país naquilo
que ficou conhecido como a difusão posterior do dharma. Gradualmente, tibetanos,
incluindo Marpa, o guru do grande yogue e poeta Milarepa, começaram a viajar para a
Índia mais uma vez para receber ensinamentos e levá-los de volta ao Tibete. Como
resultado dessa revivescência, diversas tradições distintas se desenvolveram, baseadas
no trabalho de certos mestres conhecidos e nas práticas específicas que eles
ensinaram. Durante os séculos seguintes, essas “novas escolas” formaram as três
tradições principais hoje conhecidas como Kagyü, Sakya e Geluk. Em contraste a elas, a
tradição que havia sobrevivido dos dias antigos tornou-se conhecida como Ningma, “a
Anciã”. (O sufixo pa pode ser adicionado aos nomes das escolas para formar um
adjetivo e também indica seus seguidores.)

Padmakara, com sua impressionante presença e poder espiritual, é a figura


central e inspiração da tradição Ningma. Ele percebeu que os tibetanos não estavam
prontos ainda para muitas das profundas percepções do tantra e anteviu que o
budismo iria encarar em breve um período de grande convulsão, e assim ocultou
magicamente um vasto número de ensinamentos para o futuro. Ele fez isso com sua
consorte, Yeshe Tsogyal, que personificava o princípio feminino da inspiração e
comunicação, que é de grande importância no tantra. Esses ensinamentos ocultos são
9
Para traduções de sua biografia tradicional, ver Yeshe Tsogyal, The Life and Liberation of
Padmasambhava, Berkeley, Dharma Publishing, 1978; Yeshe Tsogyal, The Lotus-Born, Boston,
Shambhala, 1993; e W. Y. Evans-Wentz, The Tibetan Book of the Great Liberation, Londres, Oxford
University Press, 1954. Para os ensinamentos de Trungpa Rinpoche sobre a vida de Padmasambhava,
ver Chögyam Trungpa, Crazy Wisdom, Boston, Shambhala, 1991.

29
conhecidos como terma, “tesouro”. Ele profetizou que seriam redescobertos no tempo
certo por praticantes preparados e forneceu muitas predições a respeito dos lugares,
tempos e circunstâncias de sua volta à luz. A pessoa que os encontra é chamada um
tertön, “revelador do tesouro”. Todos os tertöns têm uma ligação especial com
Padmakara, e em muitos casos são a reencarnação de seus discípulos mais próximos. A
tradição dos ensinamentos, que são ocultados até o tempo apropriado para sua
propagação, não está confinada ao Tibete, mas retorna à índia, como já vimos no caso
dos sutras mahayana sendo guardados por deidades serpentes.

Termas são de dois tipos: tesouros da terra e tesouros da mente ou da intenção.


Um ensinamento escondido como um tesouro da intenção aparece diretamente
dentro da mente do tertön sob a forma de sons ou letras para realizar a intenção
iluminada de Padmakara. Tesouros da terra incluem não apenas textos, mas também
imagens sagradas, instrumentos rituais e substâncias medicinais, e são encontrados
em muitos lugares: templos, monumentos, estátuas, montanhas, rochas, árvores,
lagos e até mesmo no céu. No caso de textos, eles não são, como se poderia imaginar,
livros comuns que podem ser lidos imediatamente. De vez em quando, textos
completos são encontrados, mas eles são normalmente fragmentários, algumas vezes
consistindo em apenas uma palavra ou duas, e codificados em escritas simbólicas, que
podem mudar misteriosamente, e muitas vezes desaparecem completamente uma vez
que tenham sido transcritos. São simplesmente o suporte material que age como um
gatilho para ajudar o tertön a atingir o nível sutil da mente onde o ensinamento foi
realmente ocultado. É o tertön que na verdade compõe e escreve o texto resultante, e
portanto pode ser considerado seu autor. Alguns tradutores recentes de terma
preferem atribuir a autoria diretamente a Padmakara, mas Trungpa Rinpoche
enfatizava a importância do papel dos tertöns. Eles não são apenas intermediários,
mas grandes mestres que, através de sua própria experiência e realização, trazem
"para a forma viva” as práticas e ensinamentos que descobrem.

O conceito de terma pode parecer incrível para nós agora; como a reencarnação,
apresenta um problema para muitas pessoas, porque parece contradizer a ciência.
Mas a ciência está apenas começando a investigar os mistérios do tempo e do espaço,
e a considerar a relação entre energia e consciência. Ainda sabemos tão pouco a
respeito das leis da natureza que o melhor mesmo é manter a mente aberta.
Entretanto, a extensão com a qual interpretamos literalmente a ocultação e a
redescoberta desses tesouros não afeta realmente a apreciação que fazemos deles. Se
um texto material é encontrado, sua real função é a de uma chave que destranca o
tesouro que está dentro da mente do tertön. Todas as genuínas expressões da verdade
se originam do estado desperto definitivo, que está sempre presente. Padmakara, em
sua personificação humana, age como um foco por meio do qual seres humanos
podem se relacionar com aquela verdade. O ponto importante é que o tertön faz uma

30
conexão direta com a natureza eternamente presente de Padmakara e dessa maneira
recebe sua inspiração.

A descoberta dos termas Ningma começou no século XI, quando as condições


eram favoráveis mais uma vez, e continua até os dias atuais. É uma parte
extremamente importante da tradição Ningma, possibilitando o surgimento de novas e
autênticas linhagens. Liberação através da audição é parte de uma grande coleção
descoberta pelo tertön Karma Lingpa, que viveu durante a segunda metade do século
XIV. De acordo com sua biografia tradicional, ele era a reencarnação de Lui Gyaltsen de
Chogro, um grande erudito, tradutor e mestre que foi um dos 25 discípulos-chefes de
Padmakara e que traduziu para ele e para muitos dos outros mestres indianos.10 Ao
mesmo tempo, Karma Lingpa é visto como uma das oito emanações bodhisattvas de
Padmakara. Ele era o filho mais velho de Nyinda Sangye, também um tertön, que
descobriu textos relacionados com a transferência de consciência no momento da
morte. Sua morada era em Takpo, na parte sudeste do Tibete central.

Karma Lingpa era um praticante devotado dos tantras, conhecido por seus
poderes sobrenaturais e espirituais, e evidentemente se tornou um mestre bem-
sucedido, com um grande círculo de estudantes. Fez suas descobertas na tenra idade
de 15 anos na montanha Gampodar, que é descrita como se parecendo com uma
deidade dançante. Ele trouxe dois grandes ciclos de ensinamentos, assim como muitos
outros tesouros, da montanha. Ambos os ciclos dizem respeito às deidades pacíficas e
coléricas — as expressões do estado desperto cujas visões residem no coração do
próprio Liberação através da audição. Esse terma em particular foi selado com a
condição de que deveria ser transmitido somente a uma única pessoa durante três
gerações, então ele o deu a seu filho Nyinda Chöje. Curiosamente, diz-se que Karma
Lingpa não se encontrou com a consorte espiritual profetizada para ele, e por isso não
viveu muito.

De acordo com uma tradição relatada por Trungpa Rinpoche, Karma Lingpa
descobriu os ensinamentos após a morte de seu filho, que foi seguida de perto pela
morte de sua mulher11. Isso se encaixaria com o ponto central sobre os ensinamentos
dos termas, que essencialmente eles são extraídos dos corações de seus descobridores
sob a influência de certas condições. O tempo, o local e as circunstâncias devem ser
exatamente corretos, ou a descoberta não pode acontecer. Karma Lingpa era um
meditante consumado, e a dupla tragédia de perder sua mulher e seu filho teria sem
dúvida aberto sua mente para receber percepções profundas sobre a morte, o que o
prepararia perfeitamente para a descoberta desses ensinamentos em particular.

10
Ver Dudjom Rinpoche, The Nyingma School of Tibetan Buddhism, Boston, Wisdom Publications, 1991;
e Eva M. Dargyay, The Rise of Esoteric Buddhism in Tibet, Nova Délhi, Motilai Banarsidass, 1977.
11
Chögyam Trungpa, Transcending Madness, Boston, Shambhala, 1992, p. 10.

31
Um dos requisitos especiais para a descoberta dos termas é a inspiração do
princípio feminino, assim como teria sido necessária para a sua ocultação. A grande
maioria dos tertöns foi de homens, em geral eram acompanhados por suas esposas ou
companheiras femininas (que não precisavam necessariamente ter um relacionamento
sexual com eles). Alternativamente, alguma coisa representando a energia
complementar dos tertöns, seja masculina ou feminina, devia estar presente. Portanto,
parece muito provável que Karma Lingpa fosse casado e que sua mulher estava viva ao
tempo de suas descobertas, mesmo que elas tenham acontecido quando ele era muito
jovem.

Por outro lado, termas não são sempre tornados públicos imediatamente. As
condições podem não ser corretas; as pessoas podem não estar prontas para eles; e
instruções posteriores podem precisar ser reveladas para esclarecer seu significado.
Muitas vezes o próprio tertön tem de praticá-las por muitos anos. Portanto também é
possível que a morte da mulher e do filho de Karma Lingpa tenham ocorrido depois
que ele extraiu os ensinamentos básicos da montanha e tenham fornecido a inspiração
necessária para que ele os interpretasse e os completasse. De acordo com uma outra
tradição ainda, ele teve um filho que morreu por volta da idade de 15 anos12. Infeliz-
mente, temos muito pouca informação para prosseguir, portanto tudo isso deve
permanecer como pura especulação. De qualquer forma, ele teve pelo menos um filho
que sobreviveu, a quem ele finalmente confiou todo o ciclo. Presumivelmente, a
consorte profetizada, se ele a tivesse encontrado, teria atuado como sua parceira
tanto em práticas para prolongar sua vida quanto em outras descobertas.

Nyinda Chöje passou adiante o ensinamento para um de seus discípulos, que por
sua vez o passou para Namkha Chökyi Gyatso, depois do qual a restrição para sua
transmissão não mais se aplicou. Liberação através da audição, com seus outros textos
associados, então se espalhou amplamente, e tem permanecido muito popular a
despeito de sua natureza esotérica. Ao mesmo tempo que é usado e respeitado por
todas as escolas do budismo tibetano, ele é especialmente forte nas tradições Ningma
e Kagyü, ambas as quais foram a herança de Trungpa Rinpoche.

Para voltar à pergunta colocada no início deste capítulo, não existe de fato nem
um único título tibetano que corresponda ao Livro tibetano dos mortos13. O nome
completo dado ao ciclo total do terma é Dharma profundo de auto liberação através
da intenção dos seres pacíficos e dos coléricos, e é popularmente conhecido como os
seres pacíficos e coléricos de Karma Lingpa14.

12
Tenga Rinpoche, Transition and Liberation, Osterby, Khampa Buchverlag, 1996, p. 30.
13
Informação sobre esses textos e outros relacionados à morte pode ser encontrada em Detlef Ingo
Lauf, Secret Doctrines of the Tibetan Books of the Dead, Boulder, Shambhala, 1977.
14
Em tibetano, zab chos zhi khro dgongs pa rang grol e kar gling zhi khro.

32
Ele tem sido transmitido através dos séculos em diversas versões que contêm
números variáveis de seções e subseções, arranjadas em diferentes ordens, que vão
desde dez até 38 títulos. Esses textos individuais cobrem um amplo espectro de
assuntos, incluindo a visão dzogchen (ver Capítulo Dez), instruções de meditação,
visualizações de deidades, liturgias e orações, listas de mantras, descrição dos sinais da
morte e indicações do futuro renascimento, assim como aqueles que estão de fato
relacionados com o estado de pós-morte. O Livro tibetano dos mortos como o
conhecemos em inglês consiste em dois textos comparativamente longos sobre o
bardo do dharmata (incluindo o bardo do morrer) e o bardo da existência. (Ver
Capítulo Quatro para explicações sobre os diferentes bardos.) Eles são chamados
Grande liberação através da audição: A súplica do bardo do dharmata e Grande
liberação através da audição: A súplica salientando o bardo da existência15. Dentro dos
próprios textos, os dois combinados são chamados de Liberação através da audição no
bardo, Grande liberação através da audição, ou apenas Liberação através da
audição16, título que estarei usando ao longo deste livro.

15
Em tibetano, chos nyid bar do’i gsol’ debs thos grol chen mo e srid pa’i bar do ngo sprod gsol ’debs
thos grol chen mo.
16
Em tibetano, bar do thos grol, thos grol chen mo e thos grol.

33
Capítulo Dois

Liberação: Desenroscando-se no Espaço

NESTE E NOS PRÓXIMOS DOIS CAPITULOS, observaremos o significado e as


implicações do título Grande liberação através da audição no bardo. Isso nos dará a
oportunidade primeira de explorar alguns dos princípios mais fundamentais do
budismo, e em seguida observar alguns aspectos relacionados especificamente às
tradições vajrayana e Ningma. A primeira palavra-chave no título é liberação, e ela nos
leva diretamente ao coração do ensinamento do Buda.

O que é liberação? Como ela é realizada? Quem é liberado, e de quê?

O estado de liberação é a meta final. Esse estado tem recebido muitos nomes e
tem sido descrito de muitas formas diferentes, embora seja essencialmente
inexprimível. É a nossa natureza verdadeira, inata, nosso direito de nascimento
inalienável, no entanto não o reconhecemos. Parecemos estar aprisionados em uma
condição de desconhecimento. Esse desconhecimento, ignorância ou ilusão é a causa
de todo o mal e de toda a dor, mas não é intrínseco ao nosso ser; é como nuvens
obscurecendo o céu claro, ou como poeira que se acumulou no espelho. Em vez de
possuir um conceito de pecado original, o budismo fala de uma bondade básica,
porque a natureza de buda reside dentro de nós como nossa essência oculta.
Liberação é sinônima da palavra sânscrita bhodi que significa despertar, compreender
ou iluminação, e com nirvana, que significa explosão ou extinção: a extinção da ilusão.

O Buda disse que toda a sua mensagem estava relacionada com o sofrimento e
com o fim do sofrimento. Sofremos porque não sabemos a verdadeira natureza da
realidade, e assim temos uma falsa ideia do que realmente somos. Liberação é se livrar
dessa condição de sofrimento, e o caminho para ela nos conduz através do processo
de perguntar e descobrir “quem” exatamente deve ser liberado. Descobriremos que
“quem” e “de quê” são na verdade iguais. Todo o desenvolvimento filosófico dentro
do budismo, todos os diferentes métodos de prática e todo o elaborado simbolismo do
vajrayana estão relacionados com esses dois princípios básicos: entender a natureza
do sofrimento e tornar-se livre dele. Essa é a mensagem de Liberação através da
audição, assim como de todas as escrituras budistas, e dessa forma, para viajarmos ao
longo do caminho dos bardos, precisamos começar com os ensinamentos
fundamentais.

34
O fundamento do budismo são as quatro verdades nobres proclamadas por
Shakyamuni, o Buda desta era, depois de sua iluminação: a verdade da existência do
sofrimento, a verdade da origem do sofrimento, a verdade do fim do sofrimento e a
verdade do caminho que leva ao seu fim. Sofrimento nesse caso não é apenas a dor
comum que se opõe ao prazer, mas uma sensação mais profunda e abrangente de
carência e de irrealidade, que é inerente à própria existência mundana. Sofrer está
intimamente ligado à impermanência de tudo nas nossas vidas. O Buda descreveu
todos os fenômenos mundanos como tendo três características: impermanência,
sofrimento e não-ser. Sofremos porque imaginamos aquilo que é não-ser como sendo
o ser, aquilo que é impermanente como sendo permanente, e aquilo que de um ponto
de vista final é dor como sendo prazer.

A existência com essas três características é chamada samsara que significa fluir
continuamente, seguir em frente, de um momento para o próximo momento e de uma
vida para a outra vida. Samsara não é o mundo externo real ou a própria vida, mas a
maneira como os interpretamos. Samsara é a vida como a vivemos sob a influência da
ignorância, o mundo subjetivo que cada um de nós cria para si próprio. Este mundo
contém bem e mal, alegria e dor, mas eles são relativos, não absolutos; podem ser
definidos somente em relação uns aos outros, e estão continuamente mudando para
seus opostos. Embora samsara pareça ser todo-poderosa e toda abrangente, é criada
pelo nosso próprio estado mental como um mundo de sonho, e pode ser dissolvida no
nada, como o despertar de um sonho. Quando alguém desperta para a realidade,
mesmo por um momento, o mundo não desaparece, mas é experimentado em sua
verdadeira natureza: puro, brilhante, sagrado e indestrutível.

A chave para a realização e o ensinamento do Buda é a compreensão da


causalidade, porque somente quando sabemos a causa de algo é que podemos
verdadeiramente dar um fim naquilo e evitar que surja de novo no futuro. Nessa busca
pela origem do sofrimento, ele descobriu que tinha de retornar até o início de tudo,
até o primeiro lampejo de autoconsciência individual. Também em sua prática
espiritual, ele sempre foi mais e mais longe, nunca satisfeito com os estados de
conhecimento, paz e bem-aventurança que atingia sob a orientação de seus mestres.
Sempre quis saber as suas causas e ver o que estava além. Dessa maneira, superou
seus mestres e finalmente atingiu seu grande despertar.

Buda despertou para um estado de iluminação perfeita, que descreveu como


imortal, inato e imutável. Não fora por isso, ele disse, não haveria escape do
nascimento e morte, impermanência e sofrimento. Existe de fato uma condição de paz
final, bem-aventurança e liberdade, mas para atingi-la, precisamos primeiro entender
o ciclo de existência condicionada no qual estamos aprisionados. Samsara é como uma
doença; o Buda, que foi chamado de Grande Médico, oferece uma cura, mas o

35
paciente deve reconhecer a doença, com suas causas, seus sintomas e efeitos, antes
que a cura possa começar.

O Buda descobriu todo o processo causal do samsara, o ciclo completo dos


estágios de causa e efeito. De acordo com a tradição, ele uma vez descreveu esse
processo em uma série de imagens, de tal forma que podiam ser facilmente enviadas
em forma pictórica ao rei de um país vizinho que havia perguntado sobre seu
ensinamento. Um artista desenhou as imagens de acordo com as instruções do Buda,
ilustrando todo o reino da existência samsárica do qual buscamos a liberação. Essa
pintura é conhecida como a roda da vida (Figura 1) e é familiar em todo o mundo
budista. Ela brota da mesma tradição de imagens que floresce tão dramaticamente no
vajrayana, mas remonta às origens do budismo, assim de todas as formas fornece uma
excelente introdução à compreensão de nosso texto.

A RODA DA VIDA

O aro externo da roda da vida é dividido em 12 seções, cada uma contendo uma
pequena ilustração. Elas representam os 12 elos na corrente de causa e efeito,
conhecida como surgimento dependente ou, como Trungpa Rinpoche dizia, a reação
em cadeia samsárica. Os 12 elos podem ser vistos como estágios na evolução do ser
humano individual (ou qualquer outro ser vivente), mas ao mesmo tempo podem ser
aplicados aos estados mentais de uma pessoa, que estão continuamente surgindo, se
desenvolvendo e desaparecendo. O Buda foi inspirado a começar a sua busca quando
viu um homem doente, um velho e um cadáver sendo levado para a zona de
cremação, e percebeu a natureza universal e inescapável do sofrimento. Viu também
um asceta errante, cuja aparência de paz e de alegria interior o impressionou
profundamente: ele captou um relance de liberdade e determinou-se a atingi-la.
Começando do mesmo ponto de partida que o Buda, podemos nos remontar às causas
do sofrimento em sua raiz por meio dos 12 elos na corrente. Todos eles deveriam ser
entendidos como existindo dentro de nós de momento a momento, de tal forma que
enquanto passamos por toda essa série de imagens, estamos também observando o
nascimento, vida e morte dos estados mentais.

1. Decadência e Morte

A iconografia pode variar levemente em diferentes representações, mas em


algum ponto do aro, geralmente no alto à esquerda, encontramos o desenho de um
cadáver sendo levado para a zona de cremação: isso é chamado de decadência e

36
morte. É frequentemente traduzida como velhice e morte, mas já que muitas pessoas
morrem jovens e não atingem a velhice, aqui se refere a todo o processo de
envelhecimento e decadência, que na verdade começa assim que nascemos. Toda a
dor, seja ela física ou mental, surge de algum aspecto de perda, destruição ou
decadência, portanto esta imagem representa todo o sofrimento da existência.

2. Nascimento

A causa real da decadência e da morte não é nossa condição física, nem doença,
nem acidente, mas a própria vida, o simples fato de se ter nascido. Seguindo o sentido
anti-horário ao redor do aro, chegamos ao segundo desenho, uma mulher dando à luz
uma criança. Embora este elo na corrente seja conhecido como nascimento, não
significa apenas o evento de nascer, mas a vida que tomou existência; abrange toda a
vida desta personificação em particular. Pode se referir ao nascimento de um ser
vivente ou à aparência física de alguma coisa no mundo exterior, ou pode ser
interpretado como o surgimento de um pensamento ou um sentimento na mente.

3. Existência

O próximo desenho, ilustrando a causa que leva ao nascimento, é algumas vezes


de uma mulher grávida e algumas vezes de um homem e uma mulher em união sexual.
Ambas as imagens sugerem concepção, o início de uma nova vida. Este elo é chamado
de existência, vida, ou vir a ser — vir a existir. Existência significa estar no estado de
samsara; externamente, sujeito ao nascimento e à morte; internamente, sob a
influência da ignorância e da confusão.

4. Apego

Por que os estados mentais surgem? Por que criamos continuamente nossa
versão do mundo de momento a momento? Por que um ser vivente entra no útero
para nascer? Quando procuramos pela causa da existência, a encontramos no apego. A
palavra para este elo na corrente significa literalmente apropriação ou pegar para si, e
é simbolizado por uma figura pegando uma fruta de uma árvore. Apego é o oposto de
doação e renúncia. Nós nos apegamos firmes a nossas opiniões, nossas visões da vida
e nossas ideias a respeito de nós mesmos; repetidamente nos apegamos ao próximo

37
pensamento, à próxima emoção, à próxima experiência; no momento da morte, nos
apegamos à próxima vida.

5. Sede

Apego é baseado por seu turno no instinto fundamental de necessitar, querer e


ansiar chamado sede. É representada por uma pessoa bebendo ou recebendo a oferta
de uma bebida. Esta é a sede da existência que faz com que nos apeguemos à vida a
qualquer custo, e é também o impulso básico de experimentar prazer e estar livre da
dor. A sede nunca pode ser satisfeita; mesmo que bebamos o máximo que pudermos,
ela irá retornar mais cedo ou mais tarde. É inerente ao nosso sentido de ser. Esta sede,
também traduzida como desejo ou ânsia, é muitas vezes considerada a causa do
sofrimento. Não é a causa final, mas é a mais imediata e mais óbvia.

6. Sensação

A sede por experiência depende da possibilidade de sentir ou sensação,


simbolizada por um homem com um olho perfurado por uma flecha. Esta imagem
brutal nos lembra de maneira cortante que toda a série pretende expressar o
sofrimento inescapável do samsara. É interessante notar que a palavra sânscrita para
sentir pode significar especificamente dor, assim como sensação de uma forma geral.
Isso aponta para a verdade que no samsara, do ponto de vista absoluto, todo
sentimento de qualquer tipo é essencialmente doloroso porque está relacionado à
nossa falsa ideia de ser. Mas no estado desperto, onde não existe apego ou aversão
autocentrada, todo sentimento é experimentado como “grande bem-aventurança”.
Grande bem-aventurança não é apenas prazer aumentado, mas uma experiência
transcendente de sensibilidade que pode ser incitada por meio de qualquer sensação
que seja, não apenas através do prazer, mas também através daquilo que pensamos
comumente ser dor.

7. Contato

Sensação surge do contato ou toque, ilustrado por um homem e uma mulher se


abraçando. Isso representa o contato entre os sentidos e seus objetos. Nos tantras,
essas imagens poderosas são transformadas em um abraço apaixonado de amor, uma
dança mágica da mente desperta com o mundo percebido em sua natureza verdadeira

38
e sagrada. Mas aqui, enquanto ainda estamos preocupados com os princípios mais
básicos, ela simplesmente ilustra o que acontece onde quer que exista a experiência
da dualidade e uma relação entre sujeito e objeto.

8. Seis Sentidos

O abraço só pode acontecer por causa da existência dos seis sentidos,


representados por uma casa com seis janelas. Na tradição indiana, a mente é
considerada um órgão dos sentidos que tem como seus objetos todas as percepções,
pensamentos, sentimentos — e assim por diante — que surgem dentro dela. Portanto,
em adição aos cinco sentidos habituais de visão, audição, tato, paladar e olfato, a
função mental é contada como o sexto sentido.

9. Nome e Forma

Se os seis sentidos existem, deve haver um ser vivente em particular a quem eles
pertençam. A próxima imagem é de um barco cheio de passageiros, que é chamado
nome e forma. Nome e forma juntos constituem a pessoa individual. Forma é o
aspecto material, o barco do corpo, que nos carrega ao longo do rio da vida, enquanto
nome inclui todos os aspectos não físicos de nosso ser (os passageiros podem ser
vistos como as diferentes “personalidades” dentro de nós). Em muitas partes do
mundo, o nome de uma pessoa é considerado possuidor de uma significação mágica.
Quando recebemos um nome, recebemos uma identidade; nosso nome define quem
somos. Se pensamos no nome de alguém, automaticamente nos lembramos de sua
aparência física ou vice-versa. O corpo não pode ser separado da mente; os aspectos
físicos e não-físicos da existência surgem ambos da mesma causa e refletem um ao
outro.

10. Consciência

Para uma pessoa existir, a consciência individual é necessária. A consciência


funciona através dos seis sentidos. É o que nos faz cientes de nós mesmos e divide o
mundo em sujeito e objeto; é o que nos dá a sensação de sermos “eu” em oposição a
todo o resto que não é “eu”. A consciência é apropriadamente retratada como um
macaco agitado e perguntador que pula de objeto para objeto, nunca parando quieto.
Algumas vezes o macaco é mostrado colhendo uma fruta de uma árvore, e algumas

39
vezes esquadrinhando o mundo através das janelas de uma casa — a casa dos seis
sentidos.

11. Condicionamento

A consciência não é percepção pura, direta, mas produzida e condicionada pela


forma como a mente funciona, portanto o próximo elo na corrente é chamado
condicionamento (ou formações). Ele se refere a certas forças mentais ou padrões
característicos que motivam nossos pensamentos, palavras e atos. É aqui que a lei do
karma começa a operar17. A palavra karma literalmente significa “ação”, mas
geralmente quando falamos da lei do karma, ela se refere tanto à ação quanto ao seu
resultado: a lei universal de causa e efeito no nível pessoal. Tudo o que pensamos,
falamos e fazemos tem uma consequência inevitável. O Buda ensinou que o karma
realmente se refere a intenções, não apenas a ações no sentido literal. Nossas vidas
são moldadas por nossos pensamentos mais íntimos e motivações mais profundas,
inclusive aquelas do nível mais sutil e oculto, que só podem ser descobertas por meio
de técnicas profundas de meditação. Este elo na corrente é simbolizado por um oleiro
fazendo potes. Nas religiões teístas, a imagem do oleiro é algumas vezes usada por
Deus criador, enquanto no budismo a força do karma está continuamente criando o
mundo de novo para cada ser vivente a cada momento.

12. Ignorância

Mas por que o condicionamento surge em primeiro lugar? Como todo o processo
efetivamente começou? O Buda rastreou a causa raiz até chegar na ignorância, a
ignorância da mente a respeito de sua própria natureza desperta — o elo final e
original da corrente. Isso é o mais longe que podemos ir dentro do círculo do samsara;
isso é onde tudo começa. De fato, podemos afirmar que todo este ciclo não tem
realmente início nem fim, porque nossa própria noção de passado, presente e futuro
são parte do samsara. A ignorância é simbolizada por uma mulher velha e cega,
cambaleando por aí com a ajuda de um cajado. Trungpa Rinpoche se referia a ela
como uma avó velha. Ela deu à luz gerações de existência samsárica, proliferação e
reprodução infindáveis. Ignorância significa ignorar a verdade da realidade, fechando
os olhos da pessoa para o estado desperto. Embora a luz da realidade esteja sempre
presente, a ignorância prefere permanecer cega. A natureza dessa cegueira é acreditar
na existência de um ser separado, independente. Trungpa Rinpoche também

17
Estou tratando karma como uma palavra naturalizada inglesa por ser ela tão conhecida; palavras em
sânscrito são normalmente citadas em sua forma não flexionada, que neste caso seria karman.

40
costumava dizer que a ignorância é muito inteligente. Ela é na verdade a inteligência
do samsara, que está lutando uma batalha contínua pela sobrevivência e procurando
constantemente por maneiras de manter sua própria ilusão, seu próprio autoengano.

Rastreamos cada elo da corrente de volta à sua causa, do sofrimento da vida


mortal, culminando na morte, em todo o seu percurso até sua origem última, a
ignorância. Toda a série de ilustrações pode também ser lida na ordem reversa, da
ignorância até a morte. Se fizermos isso, poderemos claramente ver o
desenvolvimento inevitável dos 12 estágios: ignorância, condicionamento, consciência,
nome e forma, os seis sentidos, contato, sensação, sede, apego, existência,
nascimento, e decadência e morte. Os 12 elos formam um círculo interminável. Na
morte caímos em um estado de ignorância mais uma vez, e o ciclo começa todo de
novo. Samsara significa seguir sempre em frente, girando e girando, sem início ou fim.

________

Dentro do anel externo, ocupando a maior parte da roda da vida, estão as


ilustrações dos seis reinos da existência no samsara: os mundos dos deuses, deuses
ciumentos, seres humanos, animais, fantasmas famintos e seres infernais. Muitas
vezes somente cinco divisões são mostradas, porque os deuses e os deuses ciumentos
são basicamente os mesmos e podem ser classificados juntos. Os seis reinos serão
descritos em detalhe em um capítulo posterior, portanto serão mencionados apenas
brevemente aqui. No sentido exterior, eles representam todas as possíveis variedades
de vida consciente classificada dentro desses cinco ou seis grupos principais. São todas
condições de vida nas quais poderíamos renascer. Exceto pelos reinos animal e
humano, os outros são invisíveis para nós, mas todos coexistem conosco em um
universo inconcebivelmente vasto e multidimensional.

No sentido interior, todos esses reinos são encontrados dentro de nossas


próprias mentes. Embora tenhamos a forma e a psicologia dos seres humanos,
estamos continuamente passando pelos estados mentais que correspondem aos
outros reinos. Exatamente da mesma forma, deuses, deuses ciumentos, animais,
fantasmas famintos e seres infernais, todos experimentam os estados mentais dos
outros reinos, coloridos por seus próprios estados dominantes. Também, dentro de
cada um dos seis reinos, cada ser vivente passa pelo ciclo inteiro dos 12 elos da reação
em cadeia samsárica. O reino humano é o mais equilibrado e menos extremo dos seis,
portanto é mais fácil para nós abarcar todo o espectro de condições dentro de nossa
experiência, dos infernos até os céus. É claro, o ciclo da vida inteiro é necessariamente
descrito do ponto de vista humano; contudo, toda a vida partilha fundamentalmente a
mesma natureza de buda e é condicionada pelas mesmas forças, originando-se da
ignorância.

41
Em algumas representações da roda da vida, a figura de um buda é mostrada em
cada reino. No reino humano, é o Buda humano Shakyamuni; em cada um dos outros
reinos, ele aparece na forma de um de seus habitantes. Isso indica que a compaixão da
natureza desperta se estende infinitamente sem obstruções e pode se manifestar sob
qualquer forma, de maneira a se comunicar com todos os diferentes tipos de
existência, mesmo no extremo sofrimento do inferno.

Seguindo adiante em direção ao centro da roda, a próxima seção é dividida em


duas partes: uma metade clara na qual figuras humanas estão escalando, e uma
metade escura na qual elas estão caindo. Isso representa o último estágio do período
entre morte e renascimento, durante o qual os resultados de nossas ações prévias nos
atraem em direção a uma condição superior ou inferior. As figuras que se movem para
cima no semicírculo claro estão em seu caminho para renascer como seres humanos,
deuses ou deuses ciumentos; aqueles se movendo para baixo, no semicírculo escuro,
irão renascer entre animais ou fantasmas famintos, ou em um dos infernos.

No centro da roda se encontram as três raízes do sofrimento: paixão, agressão e


ilusão, simbolizadas por um galo, uma serpente e um porco, respectivamente. O Buda
os chamou de os três fogos nos quais o todo do samsara arde. Nirvana é a explosão de
suas chamas, um estado bem-aventurado de frescor e paz depois do sofrimento que
eles causam (a tradução de nirvana para o tibetano significa literalmente “passado
além do sofrimento”). Também são conhecidos como as três aflições, violações ou
venenos. Permeiam e influenciam o mecanismo da existência samsárica desde o início
até o fim; mantêm todo o processo de experiência dualista em andamento. Eles são as
três reações básicas que o “eu” pode ter quando percebe alguma coisa fora de si como
“outro”. Podemos ser atraídos para esse outro, desejar possuí-lo, controlá-lo ou tomá-
lo, e fazê-lo parte de nós: isso é paixão. Podemos rejeitá-lo, empurrá-lo para longe ou
destruí-lo: isso é agressão. Ou podemos ignorá-lo e fingir que ele não existe: isso é
ilusão. No fundo, todas as três reações são tentativas de superar a dualidade, fazendo
do “eu” a única coisa que existe no mundo, mas ao contrário, na verdade, reforçam e
perpetuam a cisão entre o “eu” e o “outro”.

A roda inteira está segura nas garras de uma figura aterrorizante; este é Yama, o
Senhor da Morte. Seu nome significa literalmente “restrição”, já que ele é a restrição
final à liberdade de todos os seres viventes. Ele não apenas representa a morte no
sentido comum, o fim da vida, mas o próprio princípio da mortalidade, que inclui
dentro de si nascimento e morte, renascimento e re-morte. Imortalidade, o estado de
nirvana sem nascimento e sem morte, repousa além do ciclo da roda da vida.

42
AS TRÊS CARACTERÍSTICAS DO SAMSARA

Sofrimento

A roda da vida é o diagrama da totalidade do samsara, que, como disse o Buda,


tem as características de impermanência, sofrimento e não-ser. Destes três, o
sofrimento é aquele que o inspirou a começar sua busca, e que ele proclamou como a
primeira verdade nobre. Ao apontar a realidade do sofrimento, ele não estava sendo
negativo ou pessimista. O Buda se expressou daquela forma por causa de sua
abordagem extremamente prática da espiritualidade. Ele não queria atrair as pessoas
com lindas descrições da iluminação que iriam apenas inflamar sonhos e fantasias ou
fornecer material para discussões filosóficas. Certamente não pretendia que seus
seguidores exagerassem a desgraça em suas vidas, mas sim que olhassem
profundamente sua condição atual. Compreender a verdade sobre o sofrimento é
realmente uma questão de encarar a realidade, não tentando ignorar ou fugir da dor,
mas identificando-a e examinando suas causas de modo a poder dar um fim a ela.
Privação deliberada, ascetismo e estender-se nos aspectos dolorosos da vida não são
atitudes recomendadas no budismo; afinal, a inspiração e as metas do Buda eram a
completa liberação de todo o sofrimento.

Existem três níveis de sofrimento. Primeiro, ele existe no sentido que


normalmente damos a ele — dor física ou infelicidade mental, o tipo de sofrimento
que todo mundo conhece. Esses infortúnios da vida são muitas vezes listados de forma
alongada em textos tradicionais, com a intenção de persuadir as pessoas a se
afastarem do apego à existência mundana. Ao mesmo tempo, a vida humana é
considerada feliz por conter um equilíbrio entre prazer e dor, que é conducente à
aspiração e à prática espiritual. O sofrimento pode algumas vezes ser de ajuda por nos
sacudir de nossa complacência habitual e nos lembrar da certeza da morte. Pode
despertar sentimentos de simpatia e empatia em relação aos outros, e pode ser
dedicado ao bem-estar e à felicidade de todos os seres viventes. Com a atitude certa,
pode se tornar uma ferramenta poderosa para cortar através da ilusão. Na verdade,
existem muitas maneiras diferentes, todas estágios do caminho, de fazer uso dos
problemas inevitáveis que a vida nos traz.

Por trás do significado mais óbvio do sofrimento encontra-se aquele que é


inerente à mudança. Tudo muda: não podemos nos agarrar à felicidade. Nossos entes
queridos podem morrer, nossa saúde pode falhar, nossas posses podem ser
destruídas; no final das contas, não existe nada em que possamos nos apoiar neste
mundo. Existe um sentido subjacente de tristeza na fragilidade e na impermanência da
vida, que algumas vezes se torna esmagadoramente agudo. Mudança é outra palavra
para impermanência, e, como temos visto, a impermanência leva inevitavelmente ao

43
primeiro tipo de sofrimento — à dor mental da perda e à dor física da doença, e
finalmente à morte.

Mas o sofrimento traz uma mensagem mais profunda ainda, ele aponta para algo
mais fundamental e sutil, além do contraste entre prazer e dor, além de tudo o que
experimentamos. Essa é a dor da mente confusa, originando-se da ignorância, a
imensa tristeza de não conhecer a realidade, de viver uma mentira no nível mais
profundo do nosso ser. Alguns budistas preferem usar termos como desconforto,
frustração ou inadequação em vez de sofrimento, mas para mim isso parece diluir seu
impacto (além de não serem termos realmente apropriados para os outros dois níveis).
Quando despertamos por um momento e temos um vislumbre do que Trungpa
Rinpoche chamava de sanidade básica, a comparação com nosso estado mental
ordinário é extremamente dolorosa, e percebemos que nossa condição habitual de
inconsciência e confusão é realmente um estado de sofrimento. Mais ainda,
percebemos que não é apenas o sofrimento de um indivíduo, mas que ele é
compartilhado por outros incontáveis seres conscientes em todos os reinos possíveis
da existência, e essa percepção desperta uma compaixão profunda. Dentro desse
penetrante sofrimento da ignorância, da dor de não estar desperto para a realidade,
repousam todas as nossas alegrias e tristezas, que vêm, e vão, surgem e passam.

Impermanência

Como o sofrimento, a impermanência é familiar a todo mundo; ela tem uma


contrapartida diária e óbvia ao seu significado mais profundo. Mesmo no nível
puramente material, a ciência tem demonstrado que o mundo físico está em um
estado contínuo de fluxo e não tem base sólida, que tudo é absolutamente
impermanente e insubstancial. No campo emocional, sabemos em nossos corações
que nada dura de fato e que tudo tem de chegar a um fim. Ainda assim sentimos e
agimos como se tanto nós quanto o mundo ao nosso redor fôssemos reais, sólidos e
permanentes. Queremos que as experiências sejam duradouras, nos apegamos a elas,
e isso leva inevitavelmente ao sofrimento de todas as formas. Impermanência e
sofrimento são inseparáveis, porque impermanência sempre resulta em mudança,
decadência e perda. A meditação, junto com a prática da consideração na vida diária,
pode nos mostrar muito claramente a transitoriedade de nossas experiências, nossas
emoções, nossos pensamentos e mesmo da própria consciência. Elas aparecem, duram
apenas um instante, e em seguida desaparecem. Não existe nada permanente, nada
substancial, subjacente a elas ou permeando-as. Os fenômenos, sejam internos ou
externos, não têm existência real em absolutamente nenhum sentido.

44
Essa falta de permanência e substancialidade leva à terceira característica de
samsara, a ausência de qualquer entidade independente e permanente que possa ser
vista como o “ser”. Isso resulta muito naturalmente da impermanência. Entretanto,
mesmo quando vemos isto com clareza em nossas próprias experiências e no mundo
ao nosso redor, ainda temos uma profunda convicção de que existe alguma coisa real e
permanente dentro de nós, quase como se existisse alguém dentro de nossas cabeças
que está tendo todos esses pensamentos e experiências. Não é nada fácil para nós
entendermos verdadeiramente as implicações da impermanência e da
insubstancialidade em relação a nós mesmos. A roda da vida mostra que todos os
fenômenos são transientes e interdependentes: tudo surge de uma causa e por seu
turno se torna uma causa para a próxima manifestação surgir. Isso quer dizer que nada
pode existir em isolamento. Nós mesmos somos compostos de combinações
extremamente complexas de aparências condicionadas e momentâneas. Não importa
o quanto procuremos por alguma coisa que dure e não mude, não seremos capazes de
encontrá-la, seja dentro ou fora de nós.

Não-ser

Não-ser é a mais difícil das três características para se compreender. Ao


contrário das outras duas, não é óbvia na vida diária; na verdade, parece contradizer
nossa experiência normal. Mas isso é em parte um problema de definição. Primeiro de
tudo, ela não se aplica ao uso óbvio e diário da palavra “ser”. Afinal de contas, o Buda
continuou a usar a linguagem comum; não parou de dizer “eu” e “você”. Ele
certamente não negou a identidade pessoal e a individualidade, à qual se referia como
a “pessoa”. Existe, na experiência diária, um sentido bastante neutro de ser uma
pessoa, que naturalmente se coaduna com a existência do corpo e da mente, e não é
apegada, possessiva ou divisória. Nesse sentido, o ser é apenas um termo
convencional, um rótulo, como o nome de alguém. É simplesmente a referência a uma
pessoa, sem nenhuma carga emocional especial ou significação filosófica, não mais do
que quando falamos de uma mesa ou uma cadeira.

O problema surge quando subentendemos algo além disso. Sentimos muito


profunda e instintivamente, que existe um núcleo central de nosso ser, alguma coisa
extremamente preciosa e vulnerável. Então a mente racional reforça essa convicção
emocional perguntando: “Quem sou eu?” e concluindo que deve haver uma essência
que os faz únicos e separados de todos os outros. Nem todos concordariam que têm
essa visão; muitas pessoas são materialistas que não acreditam em nenhum núcleo
central. Uma reflexão recente sobre a natureza do ser produziu desdobramentos
muito interessantes que parecem, na superfície pelo menos, muito próximos das
percepções do budismo: eles sugerem que o ser é simplesmente uma narrativa, uma

45
história que contamos a nós mesmos de forma a fazer sentido para a nossa
experiência. Mesmo assim esse tipo de raciocínio não altera o apego emocional das
pessoas ao ser; elas ainda se comportam como se ele fosse real. A vida samsárica é
baseada em auto-centralização, não como um julgamento moral, mas no sentido mais
literal da palavra: relacionar tudo a si próprio como sendo o centro do mundo. Esse é o
ser ou ego do samsara. É o sentimento constante de “eu, mim, meu” — uma tendência
centralizadora, solidificadora.

Assim como o ser ou ego, temos um conceito levemente diferente da alma ou


espírito. Não podemos experimentar diretamente a alma, embora muitas pessoas
acreditem nela como uma essência pessoal que sobrevive à morte. Do ponto de vista
budista, a lógica por trás de ambas as ideias é a mesma. Sentimos que, pelo fato de
continuarmos a existir como a mesma pessoa de momento a momento e dia a dia,
deve haver um ser permanente; e por analogia com a vida diária, também supomos
que, se continuamos a existir após a morte, deve haver uma alma imortal. No
budismo, a ideia de uma alma é considerada meramente uma extensão do ser
mundano e ilusório. Mais uma vez, existem muitas pessoas que não acreditam em uma
alma ou em uma vida após a morte, e mesmo assim isso não faz nenhuma diferença
real ou prática em relação ao seu apego ao ser.

Assim como o Buda não negava a experiência ordinária, não negava a vida após a
morte. Ao contrário, sugeria um modelo diferente do que a vida realmente era; ele
mostrava que a presunção de um ser ou de uma alma é desnecessária e, na verdade,
apenas causa problemas. Todo o sofrimento que passamos e que causamos aos outros
se origina do apego ao “eu, mim, meu”. Ele nunca falou em termos de buscar por um
ser ou essência verdadeiros, porque essa própria busca reforça o apego e leva a
possessividade egoísta a níveis mais e mais sutis.

Um ser vivente é uma combinação temporária de vários elementos, sempre


mudando, assim como um rio é composto de incontáveis gotas de água, nunca
permanecendo estático mesmo pelo menor momento imaginável de tempo. O sentido
de continuidade que temos dia após dia, que experimentamos como um estado
estático de ser, é na verdade um processo dinâmico, um fluir contínuo. Simplesmente
não existe necessidade de um ser, funcionamos perfeitamente bem sem ele. Nós
somos esse fluir, a dança da vida, sem fixação ou solidez. Não precisamos procurar por
alguém atrás disso.

Ao mesmo tempo, existe uma verdade profunda em nossa busca por uma
essência. Nossa essência é a potencialidade para a iluminação, tathagatagarbha em
sânscrito, o embrião do buda, muitas vezes chamado de a natureza de buda. Assim
que essa potencialidade começa a se manifestar é conhecida como bodhichitta, o
coração ou mente que desperta. De início como bodhichitta relativo, ela é a aspiração
em direção à iluminação para si e todos os seres; finalmente, como bodhichitta final, é

46
o próprio estado de estar desperto, o coração e a mente finalmente despertos. O todo
da existência não é nada mais que a natureza onipresente de buda. Ainda assim, falar
da natureza de buda, mente de buda, buda primordial e assim por diante pode mais
uma vez dar a impressão de algum tipo de substância ou entidade, quando na
realidade isso está completamente além de todos os conceitos e não pode ser descrito
por qualquer analogia. É a condição de estar desperto: o estado búdico, de despertar,
da vigília. Não pode pertencer a ninguém; não é seu ou meu, mesmo que algumas
vezes falemos vagamente dessa maneira. Realiza-se pelas pessoas individuais e se
manifesta através das pessoas individuais, no entanto não é pessoal ou individual. A
dificuldade é que não podemos evitar pensar nisso como sendo nosso, e portanto
distorcê-lo completamente. Neste ponto vamos de encontro ao aspecto prático e
emocional do que significa o ser: não é apenas um princípio abstrato, mas alguma
coisa que nos toca muito profundamente. Nós instintivamente pensamos “esta é a
minha natureza de buda” ou "este é o meu ser verdadeiro” sem abrir mão realmente
do ser limitado, pessoal.

Ainda assim, não somos apenas nada. Não desaparecemos quando entramos na
ausência de ser. Acreditar nisso seria niilismo, uma visão que o Buda condenava. Ele
disse inclusive que o niilismo era mais difícil de superar do que o extremo oposto de
acreditar em um ser eterno. Quando o ser é transcendido, a presença ainda está lá, o
mundo ainda está lá, e a experiência ainda está lá. Alguém tem de estar lá para
comunicar a verdade, para manifestar o amor e a compaixão, e para realizar atividades
iluminadas. Em alguns sutras e tantras, esse estado de ser transcendente é chamado
de o grande ser. Quando uma palavra é qualificada como grande, muitas vezes indica
que ela transcende tanto seu significado comum quanto seu oposto. Portanto o grande
ser transcende tanto o ser quanto a sua negação, e passa completamente além do
alcance de nossas concepções ordinárias de ser e não ser. É uma condição de total
paradoxo, que a mente conceitual, dualista, não consegue abranger.

O grande ser não é apenas Deus. Assim como não existe a necessidade de um ser
na existência diária, individual, também não existe a necessidade de um princípio
centralizador em uma escala cósmica. Existe simplesmente a experiência da presença
sem ser, sem necessidade de identificar um proprietário final, criador ou controlador.
Quando não existe centro fixo ou ponto de referência, a percepção se torna
onipresente, e o que quer que surja dentro dela é reconhecido “apenas como é”: o
estado mental desperto.

Parece não haver nada no budismo que corresponda ao ser da psicologia


moderna, nenhum conceito de desenvolver um ser maduro, equilibrado, integrado por
si só, sem referência a uma meta espiritual. Essa ideia é um desenvolvimento
comparativamente recente, mesmo no pensamento ocidental, e não é algo para que o
Buda teria necessitado se voltar. Então, como podemos relacionar isso à abordagem

47
budista? As qualidades que produzem uma personalidade plenamente desenvolvida
são fundamentalmente as mesmas que são necessárias para uma prática de meditação
bem-sucedida. O budismo nos relembra de forma contínua do maravilhoso potencial e
da oportunidade única que temos como seres humanos, e que nunca devemos
denegrir a natureza humana ou se sentir envergonhados do que somos. Portanto, o
tema do desenvolvimento do ser versus o desenvolvimento espiritual depende
realmente de nossa atitude. As qualidades e funções do “ser psicológico” são neutras
por si só. Se forem baseadas naquela tendência centralizadora, que é considerada
bastante normal em muito da moderna psicologia, elas pertencem ao reino do
samsara. Se, por outro lado, elas fluem espontaneamente de um estado de abertura e
percepção, então são vistas como aspectos de bodhichitta. Do ponto de vista budista,
um buda é o único ser humano completo. A maior realização possível do potencial
humano é despertar. As mesmas características que possuímos no estado confuso são
transformadas em características iluminadas no estado desperto. Budas não poderiam
de jeito algum se manifestar sem qualidades distintas e personalidades individuais,
ainda assim, ao mesmo tempo eles nunca se afastam da natureza absoluta da unidade.

Diversos escritores do budismo antigo destacaram que o entendimento do ser ou


corrente da alma na Índia ao tempo do Buda era muito diferente do nosso atual.
Entretanto, existe considerável discordância sobre o que exatamente era isso; se o
Buda estava respondendo ao ser universal, impessoal dos Upanishads ou a um
conceito mais popular, animista mesmo. Embora fosse fascinante saber mais a
respeito do contexto exato dos discursos do Buda, não acho que esse problema afete a
aplicação prática de seus ensinamentos. Afinal de contas, o budismo se espalhou para
muito além da Índia e floresceu em diversas civilizações diferentes, como China e
Japão, com ideias diferentes sobre o ser e a alma, e é ainda absolutamente válido hoje
em nossa própria cultura.

Nosso conceito contemporâneo do ser como um todo unificado na verdade se


provou muito útil no ensino do dharma, já que fornece um termo taquigráfico que não
existia nas linguagens budistas tradicionais. Em consequência disso, mestres budistas
de hoje em dia falam sobre ser e ego com muito mais frequência do que encontramos
expressões equivalentes nos textos. Tradicionalmente, eles podem ter se referido aos
cinco skandhas (ver Capítulo Seis) ou aos cinco venenos (ver Capítulo Sete); ou eles
podem ter usado o termo auto-apego que significa a crença no ser, o conceito do ser,
não como uma teoria, mas como uma convicção instintiva e profundamente sentida.
Trungpa Rinpoche normalmente falava de ego, em contraste com não-ego ou ausência
de ego. Isso torna claro que ele não estava se referindo primordialmente ao conceito
filosófico de um ser ou alma, mas ao ser pessoal, experimental, egoísta da vida
comum, o material com o qual temos de trabalhar aqui e agora.

48
________

Portanto, quando perguntamos quem é liberado, não é o ser. A liberação não é


do ser, mas vem do ser. Se continuarmos perguntando: “Quem?”, somente
encontraremos um outro “ser” que é libertado do “ser”. Sempre que tentarmos
identificar o observador final, a experiência última, estaremos mais uma vez criando
um “eu” imaginário. É por isso que, quando Trungpa Rinpoche ensinava meditação,
sempre enfatizava se abandonar em vez de se concentrar. Iremos descobrir que a
atitude de abandono é também a base do aviso repetido seguidamente em Liberação
através da audição. Abandonar significa afrouxar a tensão do apego e do agarramento,
relaxando o esforço de segurar continuamente, quando na verdade não existe nada a
que se segurar. Abandonar é esvaziar, esvaziar-se de ilusões, conceitos e construções
imaginárias de todos os tipos. Finalmente, por meio do processo de abandono,
chegamos à experiência conhecida como vazio (shunyata).

O vazio é o coração do budismo. Como o não-ser, ele indica a ausência de solidez


e fixação, e a falta de existência inerente, independentemente de qualquer aspecto.
Ainda assim, não é negativo. É a fonte criativa de toda a existência aparente. É a
dimensão zero (shunya), de onde tudo surge e onde tudo se dissolve. Se não fosse pelo
vazio, nada poderia aparecer de fato. Ao mesmo tempo, se não houvesse
aparecimento, não poderia haver vazio. Vazio por si só não tem significado; seria não-
existência absoluta. Pensar a respeito disso de forma puramente teórica pode com
facilidade levar a conclusões absurdas. É uma experiência interior, uma compreensão
de como as coisas realmente são, substituindo nossas ideias fixas a respeito da
existência. Mas o bom senso não tem de voar pela janela! Uma pessoa desperta ainda
percebe o mundo como todas as outras, mas sem os obscurecimentos e distorções dos
conceitos falsos. Dentro do vazio, com o vazio como sua essência, os aparecimentos
surgem continuamente. Essa inseparabilidade do vazio e das aparições evita as duas
crenças extremas do niilismo (ou não-existência) e do eternalismo (ou existência
absoluta).

Do ponto de vista do ego, o vazio se parece com a aniquilação, porque é a


experiência verdadeira de ausência de ego. Para entrar nesse estado, temos que dar
um salto no escuro e estar dispostos a arriscar a sensação de que podemos perder
toda a nossa existência. Abandonar-se completamente é como a morte, e isso é
exatamente do que trata Liberação através da audição. O vazio é a experiência de
vasta amplidão, imensidade e liberdade. Nele, as limitações e complexidades da
existência individual desaparecem; as fronteiras entre o lado de dentro e o lado de
fora se dissolvem; e tudo está espontaneamente presente em sua pureza e perfeição
naturais, livre da dualidade de sujeito e objeto. O brilho e a claridade nos quais todos
os fenômenos aparecem como realmente são, ainda que sendo vistos como vazios em

49
essência, é chamado de luminosidade. Como veremos mais adiante, luminosidade é
uma palavra-chave no Livro tibetano dos mortos.

Existem numerosas formas ou maneiras diferentes de se entender o vazio entre


as escolas filosóficas budistas, e vastas quantidades de texto foram escritas sobre o
assunto. Essas visões surgem de percepções cada vez mais sutis sobre a natureza da
mente, que por seu turno produz experiências mais sutis e mais profundas de vazio,
indo da percepção básica do não ser até o repousar no vazio luminoso da natureza
última da mente. O vazio não é simplesmente um vácuo que é deixado quando as
ilusões forem removidas. Como a própria mente, é um processo, a essência viva de
cada momento da experiência.

Sabedoria, que é chamada de a mãe dos budas, nada mais é do que a


compreensão do vazio. Esse é o grande segredo do despertar. Todos os budas nascem
dessa percepção, pois somente a sabedoria do vazio pode dar nascimento à
iluminação. Sabedoria é a experiência direta, transformadora da realidade do vazio em
nossas próprias vidas. É a certeza viva de que nada existe como uma entidade
separada da forma como normalmente acreditamos. No simbolismo do vajrayana,
como veremos na Parte Dois, vazio e sabedoria são vistos como o princípio feminino
da iluminação, inseparavelmente unidos com o princípio masculino da compaixão e
dos meios habilidosos ou método.

Compaixão não é apenas um sentimento de piedade e empatia, mas uma força


ativa, uma energia fundamental que está incessantemente trabalhando para remover
as causas do sofrimento. Não se pode evitar seu surgimento, porque na realização do
vazio não existem fronteiras entre a própria pessoa e os outros. Compaixão é
sensibilidade absoluta, amor imparcial e preocupação ilimitada por tudo na existência.
É a expressão exterior natural da bem-aventurança da iluminação. Mesmo na vida
comum, quando estamos felizes e realizados, nos sentimos mais amorosos em relação
ao mundo e queremos expressar esse amor. Meios habilidosos significam a aplicação
da compaixão, a atividade iluminada que se esforça para remover o sofrimento e
conduzir todos os seres conscientes em direção à suprema felicidade.

Vazio e compaixão são completamente interligados. A relação entre eles tem


sido comparada à de uma chama e sua luz, ou a de uma árvore e suas folhas. Atividade
no mundo não é verdadeiramente iluminada a não ser que brote da percepção de que,
no sentido absoluto, nada está sendo feito ou precisa ser feito. Ao mesmo tempo, o
coração desperto sente como seu próprio o sofrimento de todos que ainda não
despertaram. Os bodhisattvas incorporam essa atividade pelo bem-estar de todos os
seres. Por meio da sabedoria, o bodhisattva sabe que samsara é ilusão, e através da
compaixão ajuda aqueles que estão sob o encanto dela. Ambos os aspectos seguem
juntos ao longo de todo o caminho. Não podemos esperar até atingirmos a iluminação
para manifestarmos a compaixão. Simplesmente sermos tão compassivos e tão

50
habilidosos quanto pudermos a cada estágio é o que aprofunda nossa percepção do
vazio. Eles crescem juntos, se inspiram mutuamente um ao outro, são dois elementos
indispensáveis do estado desperto.

O pleno despertar, a iluminação, o estado de liberação total, é indestrutível. É


simbolizado pelo vajra (ou dorje em tibetano), o instrumento ritual que deu seu nome
ao vajrayana. Vajra é uma palavra sânscrita que significa tanto "raio” quanto
“diamante”. Como raio, é uma arma divina e invencível, combinando força irresistível,
poder e energia. Como diamante, é brilhante, puro, afiado e inquebrável; nenhuma
outra substância pode cortá-lo, mas ele pode cortar através de tudo. A forma
iconográfica do vajra é derivada do antigo raio que era a arma de Indra, o deus dos
céus védico. Ele consiste em uma esfera central com um número de pontas,
normalmente cinco ou nove, emergindo simetricamente em duas direções opostas.
Essas pontas originalmente representavam raios, mas podiam também sugerir raios de
luz lançados de um diamante; também têm vários significados simbólicos, dependendo
de seu número e contexto. Quando existem cinco pontas em cada lado, em geral
simbolizam os cinco princípios masculinos e femininos de buda, que surgem
espontaneamente do vazio luminoso como manifestações puras de sabedoria e
compaixão.

Olhar para a significação da palavra liberação nos possibilitou explorar muitos


aspectos fundamentais dos ensinamentos do Buda. Liberação significa libertação de
samsara com suas três características de impermanência, sofrimento e não ser. É o
despertar de uma ilusão, na qual acreditamos que somos separados, substanciais e
independentes. Somos liberados do sofrimento para a grande bem-aventurança, do
não ser para o grande ser, e da impermanência para a realidade indestrutível da
natureza de vajra.

Liberação é frequentemente mencionada nestes textos como “grande liberação”.


Assim como o sentido transcendente de grande ser e grande bem-aventurança, grande
liberação não é apenas liberdade em oposição a escravidão. À luz da verdade última,
nunca houve nenhuma ilusão, portanto não há necessidade de se despertar dela. Nem
prisão nem liberdade jamais realmente existiram. Isso é também o significado
subjacente de autoliberação, um termo que é usado com frequência nos ensinamentos
Ningma. Em última instância, toda liberação é autoliberação. Como já vimos, o
caminho budista contém muitas abordagens e métodos diferentes, todos formas de
liberação. Essas várias abordagens não nos são impostas por uma autoridade externa;
correspondem às nossas necessidades e capacidades e se desenvolvem naturalmente
a partir de nossos pontos de vista e atitudes em relação ao caminho. Algumas vezes
parecemos estar passando por um processo de renúncia, outras vezes de purificação,
em outras de transmutação, e de vez em quando podemos ter lampejos de
reconhecimento direto. Ainda assim, a própria mente tem sempre sido pura, perfeita,

51
desperta e livre. Autoliberação é a percepção espontânea de que na verdade nunca
houve realmente nenhuma outra coisa. Liberação é tradicionalmente ilustrada pela
comparação com uma cobra se desenroscando, naturalmente e sem esforço, de seus
anéis se emaranhado. Nas palavras poéticas de Trungpa Rinpoche: “O nó da serpente
da mente conceitual se desenrosca no espaço.”18

18
Chögyam Trungpa, First Thought Best Thought, Boulder, Shambhala, 1983, p. 1.

52
Capítulo Três

Audição: o Poder da Transmissão

A SEGUNDA PALAVRA-CHAVE no título é audição. Nos é assegurado que a


liberação pode ser atingida através da audição desses ensinamentos durante o bardo.
Como é possível se liberar apenas ouvindo um texto, e como pode uma pessoa morta
ouvi-lo sendo lido?

Vimos que na visão budista um ser vivente consiste em um fluir contínuo de


movimentos de consciência, e esse fluir continua em um nível sutil após a morte do
corpo físico. Vimos também, no diagrama da roda da vida, que o físico e o não-físico
estão inseparavelmente interligados: mente e matéria se originam da mesma fonte.
Do ponto de vista científico, a consciência depende da existência do cérebro e do
sistema nervoso central. Alguns budistas do Ocidente estão até começando a
questionar o renascimento por esses motivos. Mas essa visão leva somente em
consideração a manifestação grosseira ou exterior do corpo e da mente (ver Capítulo
Nove)19. O único nível de existência que normalmente encontramos na vida comum é
seu aspecto visível, tangível. É como o topo de um iceberg aparecendo acima da
superfície do oceano. Se não tivermos efetivamente experimentado a realidade dos
níveis mais sutis na meditação, podemos de fato concluir que a morte deve significar a
extinção total da consciência. A morte é explicada como a separação entre o nível
grosseiro e o sutil. A continuidade sutil do fluir da mente carrega consigo os registros
do karma; quer dizer, carrega os resultados potenciais das ações passadas, as
sementes que vão brotar e gerar frutos na forma de um novo corpo e mente, quando
as circunstâncias adequadas surgirem.

A lei do karma é extremamente importante na compreensão de Liberação


através da audição. O que acontece conosco depois da morte não tem nada a ver com
punição, destino ou um poder superior, mas é inteiramente resultante de nossas
próprias ações. É simplesmente a aplicação da lei universal, justiça universal. O Buda
disse que se quisermos entender nossas vidas passadas, basta-nos olhar para as nossas
condições atuais, porque elas são o resultado do passado. Se quisermos saber como a
vida futura será, devemos examinar as ações presentes, porque são a causa do futuro.
Isso não quer dizer que podemos compor listas mecânicas de causas e efeitos; fatores
externos e as ações de outras pessoas também desempenham grande papel na

19
Uma discussão muito interessante pode ser encontrada em Sleeping Dreaming and Dying, Dalai Lama,
Wisdom Publications, Boston, 1997. Ver especialmente p. 165-170.

53
construção do destino, e existem variáveis demais para se fazer predições exatas,
principalmente sobre eventos e circunstâncias exteriores. Mas nossas reações a essas
circunstâncias e o que fazemos delas são nossa inteira responsabilidade.

É no mundo interior dos pensamentos, emoções, hábitos e reações que


podemos realmente observar o mecanismo de causa e efeito. O karma funciona de
momento a momento, assim como por longos períodos de tempo. Qualquer
pensamento ou emoção que surge na mente cria um efeito; ele deixa seus traços ali, e
cada traço pode se reproduzir repetidamente. Raiva gera mais raiva; desejo gera mais
desejo. Sempre que uma certa reação negativa se torne habitual, é posto em
movimento um processo interminável, circular, de uma causa propiciando o
surgimento de um efeito, em seguida aquele efeito se tornando uma causa
semelhante e assim por diante, repetidamente. O que parece em um momento uma
reação insignificante de aborrecimento ou ressentimento pode terminar envenenando
a mente por horas ou mesmo dias.

Felizmente, a força do karma é igualmente poderosa em direções positivas.


Felicidade gera mais felicidade tanto para nós quanto para os outros. Um sentimento
de simpatia ou um ato de bondade cria as condições para uma bondade maior se
desenvolver. Geralmente parece mais fácil pensar sobre o karma em termos de boas
ou más ações significativas, impelindo-nos em direção a vidas futuras felizes ou
infelizes. Mas é realmente a corrente de pensamentos mais comum, familiar e quase
despercebida que está continuamente determinando o padrão de nosso destino. O
sonhar acordado e o mexerico subconsciente, os pensamentos e preocupações
habituais que passam pela nossa mente todo o tempo estão continuamente criando
karma, perpetuando nosso senso de ser.

Mas é possível parar a reação kármica em cadeia e quebrar o padrão. A qualquer


dado momento, é só aquele momento que importa. Embora estejamos sendo
empurrados para a frente por um peso vasto e cumulativo de força kármica, e existem
incontáveis sementes kármicas na corrente da mente que devem ser colhidas mais
cedo ou mais tarde, só podemos lidar com um momento e um pensamento de cada
vez. Como diz um provérbio chinês, uma jornada de mil dias começa com um único
passo. Karma é uma doutrina de total responsabilidade por nós mesmos. Podemos ter
de tolerar os resultados dos erros passados, mas não temos de perpetuá-los. O que
quer que possa ter acontecido no passado, a doutrina do karma nos dá a certeza de
que agora mesmo, neste exato momento, podemos começar a mudar o curso futuro
de nossa existência.

Karma e ser andam juntos. Do ponto de vista final, karma é tão ilusório quanto o
ser, mas já que funcionamos a partir da profundamente arraigada crença no ser,
estamos sujeitos à lei da karma. Até que um ser consciente atinja a iluminação, o
sentido de ser ainda está lá na corrente da mente, e assim o karma é produzido.

54
Karma, a corrente de causa e efeito, cria a ligação entre o passado, o presente e o
futuro, e entre a vida passada, esta vida e a próxima vida. Mesmo depois de se separar
do corpo físico, o apego do ser continua, portanto durante o período após a morte, a
consciência passada ainda se sente como sendo o mesmo “eu” que antes. O ponto
importante a compreender é que esse “eu” é sempre imaginário, estejamos pensando
sobre uma vida passada, ontem, agora, amanhã, o estado de bardo ou uma vida
futura. Se realmente compreendermos esse ponto, a questão de como a
personalidade pode existir após a morte, ou quem é que renasce, poderá parecer
menos problemática. Uma ilusão dá lugar a outra ilusão. Faz algum sentido perguntar
se são a mesma coisa? Será que podemos dizer que são diferentes? A única solução
para todos esses enigmas de vida e morte é dissipar a ilusão que os criou em primeiro
lugar.

Não existe entidade individual que continue de uma vida para outra, mas sim um
fluir contínuo de mudança. O “eu” que imaginamos ser nesta vida não é o mesmo “eu”
da vida anterior ou o “eu” que irá nascer na próxima vida. Ainda assim, esses “eus”
passado, presente e futuro estão interligados pela ilusão do ser e pelos registros
kármicos que o sustentam de vida para vida. Alguém irá nascer, cuja existência, caráter
e destino dependem de nossas ações agora. Enquanto continuarmos a acreditar no
ser, o karma e o renascimento são reais para nós. A partir do momento que o ser é
visto como não existindo, a cadeia se rompe naquele instante.

Talvez seja bastante irônico que muitas pessoas apreciem ler o Livro tibetano dos
mortos, porque ele descreve os acontecimentos incríveis que se sucedem depois da
morte e nos reafirma que teremos uma outra chance em uma vida futura, quando o
verdadeiro propósito desses ensinamentos é nos ajudar a escapar do ciclo total de
nascimento e morte. O simples fato de que alguém está passando pelo bardo significa
que ainda não atingiu a liberação e portanto está ainda sob o poder do karma. No
estado do bardo, um sentido de ser surge, ligado à corrente de causa e efeito da vida
anterior. Os registros sutis ou traços na mente criam um sentimento de ter um corpo
como o antigo, com todos os sentidos intactos, muito similar à sensação de corpo que
temos quando estamos sonhando. Nos sonhos não estamos usando nossos sentidos
físicos para ver e ouvir, mas ainda parecemos ter a experiência de ver e ouvir. O
mesmo tipo de processo acontece com os seres no bardo. Qualquer que seja o tipo de
comunicação que possa chegar até eles, eles ainda a interpretarão em termos de ver e
ouvir.

Portanto, o texto descreve como a consciência de uma pessoa recentemente


falecida permanece nas vizinhanças por algum tempo, e é capaz de ver e ouvir tudo o
que está acontecendo. Ela irá sentir a atmosfera ao redor do cadáver, irá sentir um
apego a ele. E será fortemente afetada pela atitude das pessoas que se agruparam a
seu redor. Nesse momento é especialmente importante para a família e os amigos

55
permanecerem calmos. Se estiverem assustados e dominados pelo pesar, discutindo
entre si por sua parte da herança, ou se desempenharem os rituais fúnebres de
maneira descuidada ou hipócrita, todas essas emoções negativas serão ampliadas na
percepção da pessoa falecida e irão causar medo, raiva e confusão. Mas, se os amigos
e parentes puderem providenciar um ambiente de calma, cordialidade e confiança,
isso irá ser repassado e será de tremenda ajuda. Trungpa Rinpoche enfatizava que isso
é realmente o melhor presente que podemos dar aos mortos.

Ler Liberação através da audição, e especialmente recitar os versos conectados


com ele que contêm sua essência, pode tranquilizar e inspirar as mentes dos vivos em
um momento tão emocional. Isso por si só irá beneficiar o morto, mesmo se não se
perceber que uma conexão verdadeira está sendo feita. Normalmente, de forma a
trazer a consciência de outra pessoa para o estado de vazio e clareza, a pessoa deve
ser capaz de entrar e permanecer nele por si só. Conforme a consciência falecida se
afasta mais e mais desta vida, somente um praticante altamente preparado seria capaz
de alcançá-la e guiá-la na sua jornada. Contudo, se as circunstâncias corretas se
fizerem presentes, se a mente do leitor for estável o suficiente e a mente da pessoa
falecida sensível o suficiente, então o poder inerente do ensinamento pode propiciar a
liberação. Diz-se que a consciência se torna incomensuravelmente clara quando não
está mais confinada ao corpo material grosseiro, portanto os pontos essenciais da
instrução serão facilmente entendidos e lembrados.

Em diversas partes, Liberação através da audição afirma que isso é um lembrete


do que já nos foi mostrado por nossos mestres e experimentado na meditação.
Enfatiza a importância da prática durante a vida e recomenda ler e memorizar o texto,
de forma que nos tornemos completamente familiarizados com seu conteúdo.
Deveríamos torná-lo uma parte de nós mesmos tão cuidadosamente que não o
esqueceríamos mesmo se estivéssemos sendo caçados por sete cães ou uma centena
de assassinos!

Como um lembrete, o livro nos alcança em muitos níveis diferentes de


entendimento e realização. Em uma crise, a mente retorna a qualquer prática que
tenha nos tocado mais profundamente e que tenha tido o maior efeito em nós; não
podemos ter certeza por antecedência qual será. Por toda parte, existe a instrução
mais simples e direta: simplesmente reconhecer. Esse é o melhor, mas também o mais
difícil caminho a seguir. Aqueles que tenham estado engajados na prática de uma
deidade são lembrados de procurar o que quer que vejam como sendo a manifestação
daquela deidade, que é na realidade seu próprio estado desperto. Aqueles que não
receberam poder de nenhuma deidade especial são instados a ter fé em
Avalokiteshvara, a presença viva da compaixão. Repetidamente, os ensinamentos
básicos do vazio e da compaixão são encontrados: o que quer que apareça não tem
substância real, portanto não se sinta nem atraído pelas visões nem com medo delas.

56
Você é a forma natural do vazio, portanto nada pode machucá-lo; vazio não pode
causar dano a vazio. Dedique todos os seus pensamentos e todas as suas ações ao bem
dos outros, e resolva se tornar iluminado pelo bem de todos os seres.

Dessa forma, o que quer que a pessoa tenha praticado no passado é trazido à
lembrança pela leitura do livro. Ele afirma ainda que é “um ensinamento que ilumina
sem meditação, um ensinamento que libera apenas por ser ouvido”. Em seu prefácio
para o Livro tibetano dos mortos, Trungpa Rinpoche escreveu: “Liberação, neste caso,
significa que quem quer que entre em contato com este ensinamento — mesmo na
forma de dúvida, ou com uma mente aberta — recebe um lampejo súbito de
iluminação através do poder de transmissão contido nestes tesouros.”20

A menção do poder de transmissão introduz um princípio muito importante no


vajrayana. Nessa passagem, Trungpa Rinpoche estava se referindo ao sânscrito
adhishthana, que é muitas vezes traduzido como “bênção”. Não existe na verdade um
equivalente satisfatório em inglês, mas analisar as palavras sânscrita e tibetana pode
ajudar a jogar luz nessa realidade misteriosa, mas extremamente poderosa, que é um
marco na prática vajrayana. A palavra sânscrita significa literalmente “supervisionar”, e
transmite ideias de tomar posse, habitar dentro, presença, proteção e soberania. A
tibetana significa literalmente “uma onda que engolfa ou uma inundação de esplendor
e poder”. Trungpa Rinpoche a descreveu como criadora de uma atmosfera que
influencia o ambiente, uma experiência intensa de presença que nos domina e nos
possui, e a comparou à forma como os pássaros jovens são cobertos e protegidos pelas
asas da mãe. Algumas vezes ele também usava o termo transmissão para se referir à
palavra sânscrita abhisheka, a consagração ou permissão para realizar uma prática
tântrica. Abhisheka é um tipo específico, formal, de adhishthana; as duas são muito
próximas e são algumas vezes usadas como sinônimos nos tantras.

Podemos abordar a ideia de adhishthana por meio de experiências bastante


comuns. Em essência, ela se resume à simples comunicação entre duas pessoas, mas
essa comunicação contém algo mais do que aquilo que é transmitido pelas palavras ou
pelas ações exteriores. Quando crianças, recebemos tudo de nossos pais ou das figuras
que os representam; eles não apenas nos passam os conhecimentos e habilidades de
que necessitamos, mas influenciam profundamente toda a nossa vida. De uma certa
forma, eles nos possuem e continuam a viver dentro de nós. Crianças são muito mais
abertas do que adultos para absorver influências, boas ou más, mas mesmo depois de
adultos, estamos continuamente aprendendo com os outros, sendo afetados pelos
outros e recebendo adhishthana de todas as maneiras, sem nos darmos conta.
Excelentes mestres instintivamente transmitem o poder de adhishthana quando
passam adiante seu conhecimento e especialização. Amantes trocam mutuamente
adhishthana quando partilham seus interesses e entusiasmos. Na verdade, cada

20
The Tibetan Book of Dead, p. xi.

57
relacionamento contém um elemento de adhishthana em algum sentido, seja ele
positivo ou negativo.

Mas a adhishthana a que nos referimos aqui é a transmissão da presença do guru


tântrico. Toda a ideia do relacionamento guru-discípulo tem passado por momentos
difíceis no Ocidente, o que não quer dizer que tenha sempre tido momentos fáceis no
Oriente. A despeito da grande potencialidade que existe para mal-entendidos e abuso
de ambas as partes, a essência desse relacionamento permanece tão verdadeira e
profunda como sempre tem sido. Não se trata de controle de um lado nem de
submissão do outro. Essencialmente é sobre adhishthana, que é convocada pela
devoção e pelo anseio e recebida com fé e um coração aberto. Adhishthana é o
verdadeiro trabalho do guru.

Se a iluminação é nossa natureza verdadeira, por que precisamos da ajuda de


alguém para encontrá-la? Soa muito razoável dizer que ninguém pode realmente nos
dar nada, e que não deveríamos chamar ninguém de nosso mestre. Ainda assim,
permanece o fato de que, embora sejamos todos budas, ainda não o percebemos. Se
pudéssemos atingir a liberação por nós mesmos, por que ainda não o fizemos até
agora? Por que é tão difícil? Por que temos permanecido aprisionados pelo poder da
ilusão durante todas as nossas vidas, por eras incontáveis?

Embora a iluminação realmente habite dentro de nós, ela tem de aparentar que
vem de fora, por causa do apego ao ser. O ego não pode penetrar sua própria ilusão,
não pode dissolver a si próprio. Uma das dificuldades que às vezes surge para os
ocidentais em relação ao vajrayana é a suspeita de que segredos estão sendo
guardados de nós, que nós “não temos permissão” para fazer isso ou aquilo. O ponto
central aqui é que certas técnicas de meditação simplesmente não funcionam se
tentamos praticá-las por nós mesmos, agindo a partir da nossa própria vontade. Elas
podem produzir algum efeito ou até mesmo algum poder paranormal, mas não serão
capazes de transmutar confusão em sabedoria, não abrirão uma brecha na solidez do
ego. Não é que estejamos proibidos de fazer qualquer coisa, mas que,
psicologicamente, em nossas mentes, precisamos saber que recebemos permissão
autêntica e instrução correta de uma pessoa qualificada para que a prática seja efetiva.
Existe uma transmissão genuína que acontece, e para isso ocorrer uma relação de
confiança deve existir entre professor e estudante. Através do poder de adhishthana, o
guru nos fornece confiança em um nível muito profundo. Quanto maior a confiança
que temos nele ou nela, mais a nossa própria confiança irá aumentar; é realmente um
processo contínuo de se estar mais e mais receptivo a nossa natureza de buda inata.

O guru é alguém que se tornou transparente para o estado desperto, que


permite que brilhe livre através de si. No exato momento da transmissão, a mente do
guru e a mente do estudante se encontram e se tornam uma. Não existe mais

58
nenhuma separação entre guru e discípulo. Por isso se diz que o guru nos dá de volta
aquilo que sempre foi nosso.

O poder de adhishthana é inerente em Liberação através da audição porque o


livro é um terma. O ensinamento vem diretamente do Guru Rinpoche (Padmakara) e
está imbuído de toda a sabedoria, compaixão e poder de sua presença viva. Toda a
força concentrada de sua intenção e aspiração dá aos termas o poder de liberar seres
conscientes. É como se ele próprio estivesse presente sempre que o texto é lido. Esse
sentido de imediatismo e frescor é uma razão importante para a tradição do terma.
Inevitavelmente, ensinamentos se perdem ao longo dos séculos, sua linhagem de
transmissão pode ser interrompida ou distorções podem ocorrer, mas quando um
ensinamento terma é revelado, vem direto da fonte definitiva, a mente desperta
primordial. A autoridade de um terma recém-descoberto é tão grande quanto a de
outro descoberto séculos atrás.

Liberação através da audição diz de si próprio: “Encontrar com ele é uma grande
boa sorte. Ele é difícil de encontrar, exceto por aqueles que purificaram os véus
obscurecidos e desenvolveram a bondade.” Isso quer dizer que não é qualquer um que
pode encontrá-lo por acaso. Ouvi-lo ou lê-lo definitivamente pressupõe que, nesta vida
ou em vidas passadas, tivemos alguma conexão com ele. Mesmo se apenas o pegamos
na estante de uma livraria, isso não será totalmente por acaso. As conexões que
fizemos durante todo o incomensurável curso de nossa existência são extremamente
significativas. Por meio de seu poder, sementes são lançadas, e mais uma vez por meio
de seu poder essas sementes podem dar frutos a qualquer momento. É por isso que
Trungpa Rinpoche dizia que qualquer forma de contato com esse ensinamento irá
proporcionar um súbito lampejo de iluminação; não precisamos acreditar nele, mas
alguma coisa definitivamente terá entrado em nossas mentes como resultado. Isso não
quer dizer que iremos nos tornar plenamente iluminados naquele momento. Nossa
confusão provavelmente irá nos impedir de reconhecer aquele súbito lampejo, mas ele
será despertado novamente em algum ponto do futuro. Não há dúvida, como dizem os
tantras.

________

A liberação através da audição é apenas uma das seis formas de liberação


ensinadas pela tradição Ningma. As outras cinco são liberação através da visão,
liberação através do tato, liberação através do paladar, liberação através da lembrança
e liberação através do uso. Todas essas formas possuem o mesmo potencial de incitar
um vislumbre de autoliberação espontâneo através do poder de adhishthana,
originado do Guru Rinpoche, que é a personificação de todos os gurus.

59
A liberação através da visão é realizada ao se ver objetos terma como imagens,
pinturas, diagramas simbólicos ou textos. O texto de Liberação através da audição
pertence a essa categoria assim como à categoria de liberação através da audição,
porque, como o próprio livro diz: “É uma instrução profunda que libera apenas pelo
fato de ser vista ou ouvida." Liberação através da visão poderia também significar a
visão do Guru Rinpoche em um sonho ou visão; diz-se nos ensinamentos Ningma que
simplesmente por ver a sua face a pessoa é liberada.

A liberação através do tato se refere particularmente ao parceiro tântrico ou


consorte. O consorte incorpora a sacralidade do mundo objetivo e a aparente
alteridade da inspiração. A relação de amante e amado se torna extremamente
importante nos tantras mais elevados, para superar os últimos traços de egoísmo na
noção de se conquistar a própria iluminação por si só. Para um homem, sua parceira é
vista como uma dakini, personificação da energia iluminada feminina, enquanto o
parceiro de uma mulher é visto como um daka ou heruka, a energia masculina
correspondente. Padmakara é descrito como sempre cercado de dakinis. Algumas
vezes é chamado de o professor e domador das dakinis, algumas vezes elas são vistas
como suas inspiradoras e ajudantes, e algumas vezes aparecem espontaneamente
como manifestações de sua energia de sabedoria. Ele e elas são um, porque embora
apareçam em formas diferentes, são ambos manifestações do estado desperto.
Portanto, seja homem ou mulher, se a pessoa está exercendo a sua prática nessa
tradição, o relacionamento com um consorte cria uma conexão direta com o próprio
Guru Rinpoche.

A liberação através do paladar é realizada ao se comer substâncias especiais


como amrita, “ambrosia” ou “néctar da imortalidade”. Elas são muitas vezes
preparadas na forma de pílulas por grandes lamas, que as imbuem com o poder de
seus adhishthanas e as dão a seus discípulos para uso em doenças sérias ou no
momento da morte. Também podem ser colocadas na boca de um cadáver depois da
morte. Muitas pílulas de amrita foram preparadas e escondidas por Padmakara e
redescobertas junto com outros tesouros.

A liberação através da lembrança se refere a certas instruções que se relacionam


especificamente com a hora da morte. Elas têm o propósito de serem aprendidas
durante esta vida e praticadas o suficiente para se ganhar confiança nelas, com o
propósito de serem trazidas à mente na hora da morte. Entre elas está a transferência
de consciência. O pai de Karma Lingpa descobriu termas sobre transferência. Essa
prática é discutida de modo mais extenso na Parte Dois, quando chegamos ao texto de
Liberação através da audição, em que se diz que ela “libera espontaneamente assim
que é trazida ao pensamento”.

A liberação através do uso indica a utilização de yantras: diagramas, pinturas e


mantras escritos que são geralmente guardados em uma bolsa ou amuleto e usados

60
próximos à pele. Assim como são usados durante a vida, são muitas vezes presos ao
cadáver. Textos contendo esses mantras estão incluídos na coleção de termas de
Karma Lingpa. Recomenda-se que sejam lidos em voz alta junto com Liberação através
da audição, “porque os dois combinados são como uma mandala dourada incrustada
de turquesa”.

61
Capítulo Quatro

Bardo: a Experiência do Agora

A PALAVRA-CHAVE FINAL NO Título é bardo, a que realmente define estes


ensinamentos e os organiza. Trungpa Rinpoche e eu escolhemos manter o termo
tibetano em nossa tradução porque já era bastante conhecido. Para este livro, pensei
originalmente em traduzi-lo como “estado intermediário”; entretanto, quando li
alguns poemas recentemente descobertos de Ted Hughes, incluindo um chamado
“Crow in the Bardo”, senti que bardo havia verdadeiramente entrado na língua inglesa
e decidi retornar a ele21.

Tenho duas reservas a respeito do uso do termo tibetano, que menciono de


forma a dissipar possíveis mal-entendidos. Um é que ele pode associar estes
ensinamentos sobre o estado de pós-morte exclusivamente com o Tibete. Acontece
que Liberação através da audição, o mais famoso trabalho sobre o assunto, foi escrito
em tibetano, mas as ideias que ele contém se originaram na Índia e fazem parte
totalmente do budismo que foi transmitido da Índia para o Tibete. Minha outra
reserva é que pode sugerir algo estranho e exótico, em vez de ser uma ferramenta que
é prática e acessível. É crucial para o nosso entendimento de Liberação através da
audição que o bardo não seja visto como apenas uma experiência mística ou algo que
acontece depois da morte, mas como uma parte da vida diária.

Originalmente, o bardo se referia somente ao período entre uma vida e a


próxima, e isso ainda é o seu significado normal quando é mencionado sem nenhuma
qualificação. Havia considerável disputa sobre essa teoria durante os primeiros séculos
do budismo, com um lado argumentando que o renascimento (ou concepção) se dava
imediatamente após a morte, e o outro dizendo que devia haver um intervalo entre os
dois. Com o crescimento do mahayana, a crença em um período transicional
prevaleceu. Mais tarde o budismo expandiu o conceito inteiro para distinguir seis ou
mais estados similares, cobrindo todo o ciclo da vida, morte e renascimento. Mas ele
também pode ser interpretado como qualquer experiência transicional, qualquer
estado que se situe entre dois outros estados. Seu sentido original, a experiência de
estar entre a morte e o renascimento, é o protótipo da experiência do bardo,

21
Essa informação é extraída de um artigo do Sunday Times, Londres, 31 de janeiro de 1999, que incluía
um pequeno excerto do poema de trinta linhas, “Crow in the Bardo”. Os estudos do falecido Ted Hughes
estão em posse de Emory University, Atlanta, Geórgia. Outro poema que mostra seu interesse no Livro
tibetano dos mortos é “Prova na Porta do Útero”, publicado em Ted Hughes, Crow, Faber and Faber,
Londres, 1970.

62
enquanto os seis bardos tradicionais mostram como as qualidades essenciais daquela
experiência também estão presentes nos outros períodos transicionais. Refinando
ainda mais o entendimento da essência do bardo, ele pode então ser aplicado a
qualquer momento da existência. O momento presente, o agora, é um bardo contínuo,
sempre suspenso entre o passado e o futuro.

O bardo pode ter muitas implicações, dependendo de como se olhe para ele. É
um intervalo, um hiato, uma lacuna. Pode atuar como uma fronteira que divide e
separa, marcando o fim de uma coisa e o início de outra; mas também pode ser a
ligação entre as duas — pode servir como uma ponte ou um ponto de encontro que
junta e une. É uma encruzilhada, um degrau, uma transição. É um cruzamento no qual
alguém tem de decidir que caminho tomar, e é uma terra de ninguém que não
pertence nem a um lado nem ao outro. É um ponto de luz ou o ponto culminante de
uma experiência e, ao mesmo tempo, uma situação de extrema tensão capturada
entre dois opostos. É um espaço aberto, pleno de uma atmosfera de suspensão e
incerteza, nem isso nem aquilo. Em tal estado, a pessoa pode se sentir confusa e
assustada, ou pode se sentir surpreendentemente liberada e aberta a novas
possibilidades, em que tudo pode acontecer.

Momentos como esse ocorrem continuamente na vida, despercebidos; é a


significação interior dos estados do bardo conforme Trungpa Rinpoche os ensinou. Ele
os mencionou como períodos de incerteza entre sanidade e insanidade ou entre a
confusão do samsara e a transformação da confusão em sabedoria. “Eles são as
qualidades intensificadas dos diferentes tipos de ego e da possibilidade de se livrar do
ego. É aí que o bardo começa — a experiência culminante na qual existe a
possibilidade de se desprender das garras do ego e a possibilidade de ser engolido por
ele.”22

Onde quer que exista a morte de um estado mental, existe o nascimento de um


outro, e ligando os dois, lá está o bardo. O passado se foi e o futuro ainda não chegou;
não podemos capturar aquele momento intermediário, no entanto ele é realmente
tudo que há. “Em outras palavras, é a experiência presente, a experiência imediata do
agora — onde você está, onde você se encontra.”23

De acordo com essa tradição, os seis bardos são o bardo desta vida (ou
nascimento), o bardo do sonho, o bardo da meditação, o bardo do morrer, o bardo do
dharmata (ou realidade) e o bardo da existência (ou vir a ser). Outras tradições
reconhecem alguns outros adicionais, mas o princípio é o mesmo. Os bardos são
diferenciados uns dos outros dessa forma porque indicam modos de consciência
distintos, assim como o estado da consciência de vigília difere do estado da
consciência de sonho. Esses estados podem durar um período curto ou longo de
22
Transcending Madness, p. 132.
23
Transcending Madness, p. 3.

63
tempo, tão longo quanto toda uma vida, como é o caso do primeiro, e ao mesmo
tempo todos eles partilham a qualidade misteriosa e imensamente poderosa da
“intermediação”. Ou poderíamos dizer que, aprendendo a ver esses estágios da nossa
vida como bardos, podemos ter acesso a esse poder, que está sempre presente,
despercebido, em cada momento da existência.

Outro texto terma no mesmo ciclo dá instruções detalhadas para a prática


dentro dos seis bardos, e foi traduzido para o inglês com o título de Natural
Liberation24. Essas práticas possuem muitas semelhanças com os mais famosos “seis
dharmas” de Naropa, mais conhecidos como as “seis yogas”, que eram originalmente
chamados de instruções para liberação nos seis bardos25. As instruções são
brevemente resumidas em Os versos raiz dos seis bardos26, que acompanham
Liberação através da audição. Esses versos descrevem de forma muito concisa a
natureza de cada bardo e os meios de despertar dentro deles, portanto vou citá-los
aqui para introduzir cada um dos seis bardos.

O BARDO DESTA VIDA

Agora quando o bardo desta vida torna-se mais claro para mim,
Vou abandonar a preguiça, porque não há tempo a se perder na vida,
Entrarei no caminho imperturbado da audição, pensamento e meditação,
Fazendo da mente e das aparências o caminho, manifestarei o trikaya.
Agora que pela primeira vez eu obtive um corpo humano
Este não é um tempo para me demorar em desvios de distração.

Literalmente, este bardo é chamado o “lugar” ou “estado de nascimento”, o que


não significa que se refira somente ao nascimento em si, mas ao seu resultado, a
condição de vida na qual nascemos. Pode também ser traduzido como “nascer e
permanecer”. Isso quer dizer este nascimento em particular, esta vida. Outro nome
que é usado algumas vezes para ele é o bardo do nascimento e morte. Algumas
tradições na verdade interpretam o local de nascimento como sendo o útero e
reconhecem um bardo da gestação em separado, mas aqui, de acordo com o verso,
indica claramente esta vida. Ele dura desde o nascimento até a morte e cobre toda a
nossa existência de vigília normal. Podemos também pensar nele como qualquer

24
Padmasambhava, Natural Liberation, Somerville, Wisdom Publications, 1998. O texto é traduzido por
B. Alan Wallace, com um comentário de Gyatrul Rinpoche.
25
Ver Herbert V. Guenther, The Life and Teaching of Naropa, Londres, Oxford University Press,
1963; Glenn H. Mullin, Tsongkhapa’s Six Yogas of Naropa, Ithaca, Snow Lion, 1996; e Glenn H. Mullin,
Readings on the Six Yogas of Naropa, Ithaca, Snow Lion, 1997. Para uma abordagem Ningma dos seis
yogas relacionados com os bardos, ver o capítulo final de Thinley Norbu, White Sail, Boston, Shambhala,
1992.
26
Em tibetano, bar do drug gi rtsa tshig.

64
momento ou situação que ocorra durante a vida de vigília ou como a vida de qualquer
estado mental não importa quão curto ou longo possa ser. Qualquer coisa que seja,
depois que surge e antes que desapareça, acontece dentro do bardo desta vida,
aparentando existir e ser absolutamente real.

Trungpa Rinpoche disse que este estado tem base na velocidade, o ímpeto de
manter as coisas acontecendo. Se girarmos uma tocha com bastante velocidade no ar,
ela parece ser um círculo de fogo sólido. Se um avião perde velocidade, ele irá estolar
e cair. Nesse caso, a velocidade é necessária para manter a ilusão do que somos; ela
nos mantém acreditando na solidez e na permanência de nossa existência individual e
do mundo exterior. A essência ou ponto culminante desse bardo é dada quando uma
lacuna ocorre subitamente; nossa velocidade falha por um momento e a continuidade
é quebrada. Naquele exato instante, existe a possibilidade de se enxergar através da
ilusão, mas isso pode muito bem parecer assustador, como cair do céu no espaço
vazio.

O verso nos lembra que o nascimento como um ser humano é extremamente


raro e precioso, e que devíamos usar essa oportunidade para seguir um caminho
espiritual, que é o principal propósito desta vida. Audição, pensamento (ou
contemplação) e meditação são os três aspectos indispensáveis do caminho no
budismo. Primeiro, é claro, a pessoa tem de ouvir a respeito dele. Num sentido geral,
isso quer dizer estudar e aprender sobre ele a partir de qualquer fonte, o que pode
incluir ler livros ou ver filmes ou vídeos. Mas ouvir literalmente, escutar com a mente
aberta as palavras de um professor vivo, produz um efeito muito diferente. Isso é
especialmente importante no vajrayana, em que o guru incorpora a presença de toda a
tradição e transmite sua energia e inspiração. Já vimos como esse poder de
transmissão se aplica ao texto de Liberação através da audição.

Segundo, a pessoa deveria pensar com cuidado a respeito do que ouviu, formular
perguntas para clarificar seu significado e testá-lo de novo através de sua própria
experiência. Em seguida, deveria refletir profundamente sobre os ensinamentos e
relembrá-los com tanta frequência quanto seja possível, de forma que penetrem
inteiramente em sua mente. O budismo tem grande respeito pelo intelecto e acredita
que ele deve ser treinado e usado de maneira adequada, como uma ferramenta para
sua própria transcendência. As várias visões apresentadas pela filosofia budista nunca
são puramente teóricas. Pretendem guiar o pensamento da pessoa para a estrutura
correta da experiência de meditação. Todos esses ensinamentos e práticas algumas
vezes parecem extremamente complicados, mas isso se deve apenas à complexidade
das nossas mentes condicionadas. Por vidas incontáveis, temos vivido sob a influência
da ignorância, e agora não é fácil limpar todas as obstruções para compreender ou
para atingir todas as camadas de confusão profundamente escondidas. Por meio do

65
pensamento cuidadoso e do raciocínio, podemos nos convencer do que é verdadeiro e
ganhar confiança no caminho.

Finalmente, o que tem sido ouvido e pensado a respeito deve ser posto em
prática através da meditação. Isso é mais do que contemplação dos ensinamentos ou
do que seu entendimento intelectual. Nesse ponto, o aspecto conceitual e racional da
mente deve desaparecer, permitindo um avanço na direção da experiência direta,
intuitiva. Meditação significa trabalhar de forma direta com a mente e as energias
interiores, de acordo com qualquer técnica que a pessoa siga. Por meio desse
processo, as ilusões são dissipadas, a corrente de causa e efeito kármica é
interrompida, e a mente é transformada. A meditação realiza uma mudança efetiva no
modo de consciência da pessoa, e por isso é considerada um bardo em si, o bardo da
meditação acontecendo dentro do bardo desta vida.

Em cada um dos bardos, a essência da prática é o uso das circunstâncias


particulares daquele estado como um meio para despertar. O verso nos fala para
fazermos da mente e das aparências o caminho. Aparências significa tudo que surge no
campo dos sentidos; aparências e mente juntas constituem toda a nossa experiência.
Tomamos essa experiência por si só como o caminho, de tal forma que ela se torna a
base da nossa prática. Aparências externas parecem estar bastante separadas da
mente, por causa do nosso hábito dualista de dividir a experiência em sujeito e objeto,
mas gradualmente acabamos por ver que eles são indivisíveis e que todas as
aparências são o jogo espontâneo da mente. O guru revela a verdadeira natureza da
mente através de um processo de transmissão direta, um encontro de mentes que
pode facilmente acontecer durante este bardo, nossa vida atual.

O trikaya significa literalmente os “três corpos”, as três dimensões do estado


desperto; sua essência absolutamente vazia, a expressão visionária de sua natureza
luminosa e sua aparência real neste mundo. Uma explicação maior do trikaya e sua
conexão com o caminho se encontra no Capítulo Nove. Ao seguir o caminho,
chegamos à conclusão de que a verdadeira natureza tanto da mente quanto das
aparências é o estado primordial da natureza de buda. Nós mesmos somos
intrinsecamente buda e portanto manifestamos naturalmente os três aspectos, como
a expressão espontânea de nosso próprio ser.

O bardo do sonho e o bardo da meditação acontecem ambos dentro do bardo


desta vida. Sonhar intensifica a natureza ilusória da vida, enquanto a meditação
apresenta uma maneira de ver a vida como ela verdadeiramente é. Aqui estou
revertendo a ordem tradicional e tomando o bardo da meditação primeiro, de forma a
introduzir certas ideias que também são relevantes para o bardo do sonho.

66
O BARDO DA MEDITAÇÃO

Agora quando o bardo da meditação torna-se mais claro para mim,


Abandonarei a multidão de desordens e confusões,
Repousarei no estado ilimitado sem apego ou perturbação,
E ganharei estabilidade na criação e na conclusão.
Neste momento de meditação, focado, livre de atividade,
Não caia sob o poder das emoções confusas.

Meditação é um estado mental com maior claridade e percepção, diferente da


nossa condição normal de consciência, uma brecha no fluir contínuo de pensamentos
confusos e na completa identificação com o ego. Aqui, Trungpa Rinpoche a interpreta
não como uma prática formal de meditação, mas como uma função natural da mente,
uma inteligência inata que vê a clareza das coisas exatamente como elas são. Muitas
vezes, quando as pessoas tem tais vislumbres de abertura, elas os ignoram, tentam
suprimi-los ou até mesmo temem que possam estar ficando meio malucas. Perdemos
a tradição de valorizá-los, e, a não ser que alguém esteja trilhando um caminho
espiritual, não existe contexto no qual compreendê-los: parecem perturbadores e
subversivos, minando a importância do assim chamado mundo real. Por outro lado, é
possível se tornar muito apegado a esses estados meditativos naturais, ou mesmo a
qualquer tipo de meditação, não importando a qual tradição ela pertença. Nesse caso
isso pode se tornar uma armadilha e, em vez de produzir maior consciência, pode
manter a pessoa firmemente presa dentro do samsara.

Experiências como essas são breves lampejos do “estado ilimitado", que é a


verdadeira natureza da mente. Somos, porém, continuamente desviados dele e
confundidos pelas emoções perturbadas que surgem da ignorância. De forma a
descansar nele e ganhar estabilidade, é necessário treinar a mente de uma maneira
mais estruturada. O próprio verso menciona especificamente o método de meditação
usado no vajrayana, que consiste nos dois estados de criação e conclusão. Esse
método é chamado yoga da deidade, a prática de união com a deidade.

O significado das deidades no vajrayana se tornará mais claro durante o curso


dos capítulos seguintes e especialmente na Parte Dois. É um pouco confuso, porque a
mesma palavra, do sânscrito deva (masculino) e devi (feminino), é usada para significar
tanto as deidades do samsara quanto as deidades do estado desperto. As deidades do
samsara são os deuses e deusas que podem se encontrados em todas as antigas
religiões do mundo: indiana, do Extremo Oriente, grega, romana, celta e assim por
diante. O que as caracteriza como pertencentes ao samsara em vez de à iluminação é o
simples fato de que elas são cultuadas como seres reais, externos; em outras palavras,
não há compreensão do vazio último e do não-ser. As religiões monoteístas do

67
judaísmo, cristianismo e islã substituíram essas deidades por um Deus supremo, mas
como vimos (ver Capítulo Dois) o budismo considera isso ainda uma resposta ao
sentido de ser. As deidades do estado desperto são sinônimas dos budas; são a
presença viva da iluminação em todos os seus vários aspectos e funções. Cada uma
incorpora e enfatiza algum aspecto especial do estado de buda, ainda assim cada uma
é completa e perfeita por si só. A deidade escolhida como o foco da prática de alguém
representa o despertar total, a essência de todas as deidades; é a forma meditada da
própria natureza desperta do praticante, sua divindade inata. No Livro tibetano dos
mortos mantivemos o termo tibetano yidam, mas aqui eu a chamo de “a deidade
escolhida” do equivalente sânscrito ishtadevata.

Durante o estágio de criação, o meditante transforma o mundo comum em um


mundo sagrado por meio da meditação criativa ou imaginação. Isso é com frequência
mencionado como visualização, mas o sentido visual é apenas uma parte do processo
criativo. William Blake chamava a imaginação de a “Sabedoria Divina”, que é
exatamente o que se quer significar aqui. Ela envolve todos os sentidos e a totalidade
do corpo, do discurso e da mente do meditante. A sensação real da presença da
deidade e a confiança na realidade do mundo da deidade são a base da meditação. Os
detalhes das imagens ajudam a estabelecer e estabilizar essa convicção. Cada
elemento de iconografia tem um sentido simbólico, portanto provê uma conexão
direta com o estado mental desperto. O sucesso de toda a prática depende da
disposição de abrir mão de nossa visão comum de nós mesmos e reconhecer a
natureza ilusória de nossas atuais percepções. Percebemos que estamos efetivamente
criando nosso mundo diário todo o tempo com uma imaginação confusa, limitada e
sonhadora, portanto seria muito melhor criar um mundo iluminado utilizando as
técnicas de imaginação tântrica.

Ao longo do estágio de criação, o meditante nunca deve esquecer que as


deidades não são nem substanciais nem separadas dele próprio: elas são as aparições
espontâneas do vazio, a encenação da mente desperta. Todas as formas são feitas de
luz, como os arco-íris, portanto gradualmente o conceito fixo de realidade física da
pessoa diminui e o meditante começa a experimentar até mesmo o seu próprio corpo
físico como insubstancial. A um certo ponto, as deidades e seu ambiente se dissolvem
uma vez mais no vazio, e o meditante permanece em meditação disforme. Essa é a
essência do estágio de conclusão. Os dois estágios andam juntos desde o início, mas
finalmente o estágio de conclusão se torna muito mais profundo e extenso.

A conclusão possui dois aspectos: um que utiliza práticas de yoga trabalhando


direto com as energias vitais sutis (ver Capitulo Nove), e outro que simplesmente
permanece no estado natural de percepção última. Ai técnicas de yoga levam a uma
experiência consciente do processo de dissolução interior que ocorre na morte,
culminando na experiência de luminosidade. Então, dentro do estado meditativo, o

68
yogue ou yoguine toma a forma de sua deidade escolhida, que é conhecida como o
corpo ilusório. Finalmente, a pessoa medita que o corpo ilusório se manifesta em uma
forma física, à medida que ela retorna à vida comum. O estágio de conclusão leva a
pessoa através de um processo semelhante ao da sequência da morte, o estado de
pós-morte e renascimento, uma sequência que também ocorre no sono, sonho e
despertar. Praticando-o primeiro na meditação e depois no sono, a pessoa aprende
como transformar a própria morte em um meio de liberação. Somente através deste
bardo da meditação a pessoa adquire habilidades para implementar as instruções para
todos os outros bardos.

Os seis yogas de Naropa fornecem um arranjo sistemático do processo inteiro.


Eles são praticados principalmente na “nova” tradição que brota da segunda difusão
do dharma no Tibete, enquanto a “velha” tradição Ningma tem suas próprias práticas
correspondentes. Existe uma diferença marcante de estilo entre as duas, na maneira
como são apresentadas. Comentários sobre os seis yogas são com frequência
extremamente complexos e deixam óbvio que ninguém seria capaz de praticá-los sem
um treino considerável. A literatura Ningma, como Liberação natural e os próprios
ensinamentos de Trungpa Rinpoche sobre os bardos, algumas vezes parece possuir
uma simplicidade enganosa; suas ideias são expressas em linguagem muito
inspiradora, que nos relembra continuamente de nosso estado inato de natureza de
buda aqui e agora.

Em um sentido geral, os estágios da criação e conclusão estão presentes em


todos os aspectos da vida. Em todo processo de aprendizado, existe uma fase de
esforço e planejamento que, se persistirmos por tempo suficientemente longo, produz
frutos em uma fase natural e espontânea de realização. Se for uma habilidade física,
como andar de bicicleta, ela se torna instintiva e automática; se for um processo
mental, como decorar um poema, ele se funde com o segundo plano da mente e
permanece presente, como uma reserva de conhecimento e fonte de inspiração. Em
todas as artes, é essencial adquirir técnica e praticar constantemente, e mesmo assim,
a um certo ponto, temos de abandonar nossa confiança na técnica, deixar de lado o
esforço deliberado e permitir que a espontaneidade predomine — exatamente o
mesmo princípio se aplica à meditação.

O ponto culminante deste bardo é o esforço do ego para solidificar o espaço


aberto da meditação. Mesmo em um estágio avançado, o apego aos níveis mais sutis
pode surgir, produzindo uma sensação de conflito. Somos pegos entre os dois
extremos de nos prolongarmos na experiência bem-aventurada de eternidade e a
súbita dúvida a respeito de sua validade, que vem do vazio do espaço. Talvez
estejamos perdendo o equilíbrio ou enlouquecendo, podemos até mesmo perder tudo
e deixar de existir. Essa é a oportunidade de se entregar completamente e permanecer

69
simplesmente no estado ilimitado de abertura e claridade da verdadeira natureza da
mente, experimentando tudo exatamente como é.

O BARDO DO SONHO

Agora quando o bardo do sonho torna-se mais claro para mim,


Abandonarei o desleixado, cadavérico sono da ilusão
E entrarei no estado permanente com cuidadosa concentração,
Dominando sonhos, transformando emanações, purificando-me em luminosidade.
Não durma como um animal, mas entesoure
A prática que mescla o sono com a percepção direta!

O bardo do sonho inclui tanto o sonhar quanto o sono sem sonhos. Dura do
momento em que adormecemos até o momento de acordar novamente. Quando
adormecemos, passamos por um processo análogo ao da morte, à medida que as
percepções da consciência desperta se dissolvem e desaparecem. Consideramos isso
cair em um estado de inconsciência, mas na verdade a mente está se colocando em
seu estado mais profundo e natural, que somos incapazes de reconhecer como tal por
causa de nossa confusão.

De acordo com os ensinamentos de Liberação natural, as instruções que dizem


respeito a este bardo possuem três partes: corpo ilusório, sonho e luminosidade (ou
luz clara). A prática do corpo ilusório nos treina para ver a vida desperta como um
sonho e a perceber que todo o nosso mundo experimentado subjetivamente é uma
criação da mente, assim como a ilusão de um mágico, insubstancial e impermanente.
Essa percepção é fundamental em todas as práticas relacionadas aos bardos. É uma
preparação particularmente necessária para trabalhar com sonhos, porque eles se
originam em traços kármicos profundamente impressos na mente, e portanto são
muito difíceis de serem influenciados diretamente. Somente depois que o apego
intenso ao nosso conceito ordinário de realidade é amenizado torna-se possível
perceber o mundo dos nossos sonhos como sendo também nossa própria criação, e
controlá-lo. A prática da luminosidade é simplesmente reconhecer e permanecer na
natureza básica da própria mente, em seu vazio, radiância e claridade. Um vislumbre
de luminosidade aparece no momento que adormecemos, assim como aparece no
momento da morte, mas normalmente somos incapazes de reconhecê-lo ou mesmo
de notar qualquer coisa que seja.

Tradicionalmente, existem dois métodos de abordar a prática dos sonhos. Um é


o desejo intenso e da determinação de permanecer consciente durante o sono,
acompanhado por certas meditações. Esse é um método difícil e pouco confiável,

70
embora possa ocorrer naturalmente sob certas circunstâncias. O outro é o treino nos
yogas do estágio de conclusão e de sua aplicação aqui. À medida que adormecemos,
reconhecemos e retemos a percepção do estado de luminosidade, e em seguida
transformamos a experiência do sonho no corpo ilusório da prática. Isso é
particularmente recomendado para se ganhar confiança de que seremos capazes de
aplicar as mesmas técnicas na hora da morte.

No verso, dominar os sonhos significa primeiro reconhecer o sonho como tal no


momento em que surge. Isso leva à habilidade de cultivar sonhos lúcidos e lembrá-los.
Gradualmente, a pessoa aprende a dominar a percepção clara de sonhar, de tal forma
que possa transformar suas emoções e reações, e controlar os eventos do sonho de
várias maneiras. Praticantes que adquirem controle sobre seus sonhos podem
transformar o que quer que apareça, mudando sua forma, cor e tamanho ou
multiplicando-o em números incontáveis. Em seguida podem criar emanações e ir a
qualquer lugar que desejem sob qualquer forma. Toda essa atividade acontece dentro
da percepção de luminosidade, fora da qual todas as aparências surgem e na qual
todas se dissolvem novamente. Utilizando essa prática, a pessoa adquire percepção
sobre a natureza ilusória de todos os fenômenos, tanto na vida desperta quanto nos
sonhos.

Comentando a respeito do bardo do sonho, Trungpa Rinpoche enfatizou a


natureza onírica da vida comum: como continuamente criamos um mundo imaginário
a partir de nossos conceitos e desejos, esperanças e medos. A chave para se encontrar
a brecha, a intensa qualidade intermediária desse estado particular, é sentindo
vividamente a confusão entre despertar e dormir, e capturar um vislumbre de nossa
própria incerteza sobre o que realmente somos. Sonhos parecem absolutamente reais
enquanto estamos sonhando, portanto como podemos saber que a vida desperta não
é igual a um sonho? Talvez os sonhos sejam mais reais do que a vida desperta! Esse
tipo de incerteza pode agir como uma súbita inspiração para abandonar todos os
conceitos fixos e pode nos permitir penetrar por um momento no espaço aberto do
vazio luminoso, estejamos acordados ou adormecidos.

Os três bardos remanescentes estão voltados para o processo de morte, o


período após a morte e a abordagem do renascimento. Serão apresentados apenas
brevemente aqui, já que são o tema principal de Liberação através da audição e são
descritos em detalhes na Parte Dois.

O BARDO DO MORRER

Agora quando o bardo do morrer torna-se mais claro para mim,


Abandonarei a cobiça, o apego e a mente que tudo deseja,

71
Entrarei imperturbado na clara essência das instruções
E me transferirei para o espaço da autoconsciência inata,
E enquanto deixo este corpo condicionado de carne e sangue
Saberei que ele é uma ilusão transitória.

A morte é um processo de dissolução, descrito em termos dos elementos do


corpo e mente sendo progressivamente absorvidos do estado grosseiro para o sutil,
um a um. Parece ser um evento único e final, mas essa transformação está na
realidade acontecendo todo o tempo. Todos os elementos que compõem a nossa
existência estão continuamente surgindo e se dissolvendo de novo: nascimento e
morte ocorrem a todo momento. Sempre que tenhamos a sensação de algo chegando
ao fim ou de tentarmos nos agarrar a esse algo, esse é o gosto do bardo do morrer.

Mesmo quando os elementos ordinários grosseiros e sutis se dissolveram, o


apego continua, e portanto a continuidade do fluxo da mente se mantém em um nível
muito sutil, junto com o karma que lhe é associado. Diz-se que no momento final do
processo de dissolução, a luminosidade da morte aparece para todos os seres
conscientes. Logo antes desse momento, experimentamos o ponto culminante deste
bardo, onde somos pegos entre o desejo da existência continuada e o medo da
aniquilação. Para o ego, parece não haver nada além dessas duas alternativas; estamos
aprisionados entre a lógica ou da existência ou da não existência, já que não temos a
experiência de um estado que transcenda a ambos. A confusão da maioria dos seres
viventes é muito grande para enfrentar um dilema tão inconcebível, e eles
simplesmente apagam em direção à inconsciência.

A instrução dada para este bardo é a prática da transferência, a transformação


total da consciência da pessoa, no momento exatamente anterior à morte. Essa prática
pode ser feita de várias maneiras diferentes, de acordo com o nível de entendimento e
experiência de cada um, de tal forma que a mente se funda, ou diretamente com o
próprio estado desperto ou com algum aspecto particular dele, ao qual a pessoa sinta
conexão e devoção. Se a mente da pessoa falecida não for liberada dessa maneira, ela
irá despertar no próximo bardo depois de um período de inconsciência.

O BARDO DO DHARMATA

Agora quando o bardo do dharmata torna-se mais claro para mim,


Abandonarei todas as projeções de medo e terror,
Reconhecerei tudo o que surgir como a auto-exibição da consciência
E saberei que é da natureza visionária do bardo.
Quando chegar o tempo de atingir o ponto crucial
Não tema a auto-exibição dos seres pacíficos e coléricos!

72
Este bardo nos leva ao coração de Liberação através da audição, as visões das
deidades pacíficas e coléricas. Dharmata é o estado natural da verdadeira natureza de
todos os fenômenos, a qualidade essencial da realidade. O bardo do dharmata é a
brecha que ocorre quando um pensamento desapareceu, mas o outro ainda não
começou a surgir em seu lugar. A mente está mergulhada em sua própria essência
natural de vazio luminoso, que é idêntica à natureza de todos os fenômenos, e as
deidades pacíficas e coléricas aparecem como manifestações naturais da realidade
definitiva.

Em virtude do sentido de ser individual, que ainda continua, não reconhecemos


as deidades como nossa própria natureza; em vez disso, sentimos medo delas,
pensando que são separadas e estranhas a nós. A instrução básica é simplesmente
reconhecê-las e assim estar natural e espontaneamente auto liberado. Entretanto,
temos um desejo profundo, instintivo de retornar à existência individual, e por isso,
junto com as visões da iluminação, percebemos fracamente os caminhos que levam de
volta aos seis reinos do samsara. À medida que nos aprofundamos na experiência do
bardo, a energia desperta se torna mais e mais intensa, mas para a consciência confusa
parece mais e mais aterrorizadora.

A forma como essas visões são descritas é similar àquela do yoga das deidades.
Essas imagens nunca são acidentais ou arbitrárias. As deidades, com suas cores,
atributos e tudo o mais, revelam as diferentes qualidades de nossa natureza desperta,
e ao mesmo tempo cada uma se relaciona a um aspecto do samsara. A natureza
ilusória da vida comum é chamada de percepção impura porque surge da ignorância e
é dominada pela paixão, pela agressão e pela ilusão, enquanto a aparência das
deidades é pura percepção, pura visão; Trungpa Rinpoche costumava chamá-la visão
sagrada ou perspectiva sagrada. Trabalhar com essas imagens ajuda-nos a fazer
conexões entre a vida comum e o estado desperto, e mostra-nos que, na realidade, os
dois são indivisíveis.

Se a consciência falecida não reconhecer sua própria natureza intrínseca,


durante o bardo do dharmata, será empurrada para a frente em direção o
renascimento pela força irresistível do karma e se encontrará no próximo bardo.

O BARDO DA EXISTÊNCIA

Agora quando o bardo da existência torna-se mais claro para mim,


Manterei minha aspiração focalizada em minha mente
E me esforçarei para prolongar o curso do karma bom.
Fecharei a porta do útero e evocarei a resistência.
Este é um tempo para força mental e visão pura,

73
Abandonar o ciúme e meditar no guru como pai e mãe.

O bardo da existência é o período decisivo que determina ou a liberação ou o


renascimento em um dos seis reinos do samsara. Anteriormente, nós o traduzimos
como o bardo do vir a ser, mas Trungpa Rinpoche usava os dois em seu ensinamento, e
sinto que a existência é uma tradução melhor. Aqui ele significa o processo de vir para
a existência como um ser consciente personificado.

Conforme o bardo do dharmata desaparece, nossa experiência se torna mais e


mais confusa e assustadora, e somos impelidos para a frente pelo poder de nossas
ações passadas. Então nos encontramos sendo atraídos de volta para a nossa maneira
habitual de percepção, o ambiente começa a se tornar familiar e sentimos que
estamos voltando para casa de novo. Assim que vemos um homem e uma mulher no
ato de fazer amor, agarramo-nos ansiosamente a qualquer oportunidade de entrar em
um útero para reencarnarmos. Mesmo nesse último estágio, existem instruções para
evitar o renascimento ou, se não for possível, para escolher as melhores condições
possíveis nas quais reencarnar. Já que estamos continuamente criando nosso próprio
mundo por meio de nossa percepção, o cultivo da visão pura faz toda a diferença
nesse ponto. Devíamos tentar perceber tudo que experimentamos como a terra pura
de um buda e resolver reter este tipo de percepção na próxima vida. No momento em
que a nova existência está a ponto de ser concebida, deveríamos olhar para nossos
futuros pais como o guru ou a deidade escolhida, manifestando-se na forma de macho
e fêmea em união.

Durante este bardo, experimentamos vividamente o poder da causa e efeito


kármicos. Assim como tudo está se dissolvendo a cada momento, também está
continuamente reemergindo. Tudo aparece de novo da mesma velha forma pela força
do hábito. Algumas vezes no curso da vida diária, podemos ver muito claramente
como uma ação ou uma emoção irá produzir um resultado previsível, e existe um certo
momento em que isso pode ser evitado. Normalmente estamos tão apegados aos
nossos modos habituais que simplesmente deixamos que eles tomem seu curso
inevitável. Acreditamos que isso é o que somos, é a nossa personalidade, e sentimos
medo de abandoná-la em direção ao desconhecido.

________

Todos os seis bardos têm qualidades ou sabores diferentes, quer pensemos neles
como estados específicos que duram períodos definidos de tempo, ou como a essência
desses estados ocorrendo durante nossa vida diária. Trungpa Rinpoche os relacionava

74
aos seis reinos do samsara, um tema que será mais explorado no Capítulo Oito. Como
os bardos, os seis reinos representam modos de consciência, embora de uma forma
um pouco diferente. Assim como se referem às seis possíveis condições de
renascimento, podem ser vistos como descrições dos vários estados mentais em que
existimos: animalesco, divino, infernal e assim por diante. Presentemente, nascemos
na forma humana, portanto no sentido comum estamos experimentando o bardo
desta vida no reino humano, mas dentro desse estado básico experimentamos
psicológica e continuamente todos os outros reinos e todos os outros bardos. Quando
a energia característica de qualquer que seja o reino em que estamos se torna
especialmente intensa, ela vai em um crescendo que possui a natureza de um bardo:
“É a personificação da experiência total de cada diferente reino.”27

As experiências dos seis reinos e dos seis bardos não existem por si só; elas
surgem do espaço aberto da natureza primordial da mente. Luminosidade é o aspecto
da mente que dá surgimento a todas essas aparências: é o ambiente que as cerca, do
qual emergem e no qual se dissolvem. Está sempre presente, como o sol no céu,
escondido por trás das nuvens. Nesse momento, por causa da ignorância da nossa
natureza real, experimentamos tudo como as manifestações confusas do samsara. O
sentido de ser cria uma sensação de solidez, como a aparente solidez das nuvens
escondendo a face do sol, mas em certos momentos abre-se uma brecha através da
qual podemos receber um vislumbre da luz da realidade.

Essa brecha é criada pela intensidade da experiência emocional, que é sempre


acompanhada por uma reação igual e oposta, de forma que sejamos jogados em uma
situação de conflito e incerteza. Dois contrastes extremos estão presentes
simultaneamente. Trungpa Rinpoche descrevia isso como estar sendo encharcado com
água fervente e gelada ao mesmo tempo. Nesse exato momento, não há nada a fazer a
não ser se soltar: desistir de se apegar a um extremo ou outro, abandonar a batalha
entre vida e morte, bem e mal, esperança e medo. Então, naquele instante de
relaxamento, vem um súbito lampejo de realização. Existe sempre a possibilidade de
que, em meio a uma situação da vida diária ou no auge de alguma emoção, possamos
subitamente captar um vislumbre de seu vazio e luminosidade — um momento de
visão sagrada.

O ato de entrar no estado mental desperto, mesmo por um momento, é sempre


precedido por uma experiência, mesmo fugaz, de extremo contraste e conflito. Mesmo
nos níveis mais elevados e sutis de conquista, negativo e positivo continuam juntos
lado a lado até que saltemos além dos dois. Induzir situações paradoxais
deliberadamente, ou se confrontar com declarações paradoxais que a mente racional é
incapaz de conciliar, pode às vezes chocar uma pessoa que está pronta e levá-la a uma
ruptura. Grandes mestres ficaram conhecidos por precipitarem um despertar em seus

27
Transcending Madness, p. 62.

75
discípulos através de um súbito irromper de raiva ou alguma outra ação totalmente
inesperada. Existem muitas histórias desse tipo na literatura tântrica, tal como quando
o grande siddha Tilopa atingiu seu discípulo Naropa no rosto com seu sapato.28

Mesmo na vida comum, brechas desse tipo podem ocorrer. Pode acontecer
quando estamos em um estado de completa exaustão, sentindo que não aguentamos
mais, e a ponto de pular a fronteira em direção à loucura. Ou pode surgir no auge de
uma emoção extrema, quando nossa energia emocional atinge seu pico, e não
sabemos mais o que estamos fazendo ou o que causou tudo isso. De repente, o tempo
parece parar e nos sentimos calmos e desprendidos, suspensos em um estado de
absoluta imobilidade. Por um momento, entramos em uma dimensão diferente de ser,
mas sem treino é impossível estabilizar essas experiências e se aproveitar da
oportunidade que representam. Ser capaz de reconhecer e usar tais momentos de
elevada intensidade requer o fundamento firme de uma mente calma e estável e uma
confiança em nossa sanidade básica e na bondade de nossa própria natureza.

Todas as instruções ligadas aos seis bardos lidam basicamente com o permitir
que aquela brecha se abra, minando nossa crença no mundo comum que tomamos
como certo, e em seguida abandonando-se no espaço além dele. A experiência do
bardo é uma porta aberta para o despertar que está sempre presente. Nas palavras de
Trungpa Rinpoche: “O bardo é uma maneira muito prática de olhar para a nossa
vida.”29

28
A vida de Naropa é relatada em Guenther, The Life and Teaching of Naropa, e em Chögyam Trungpa,
Illusion’s Game, Boston, Shambhala, 1994.
29
Transcending Madness, p. 187.

76
Capítulo Cinco

O Arco-Íris dos Elementos

TODO O UNIVERSO MANIFESTO — apresente-se ele como os fenômenos


confusos do samsara ou como as visões puras dos budas — é composto de terra, água,
fogo, ar e espaço, que são conhecidos como os cinco grande elementos. Eles são os
materiais básicos da existência. Mas eles não são apenas a terra, a água, o fogo, o ar e
o espaço comuns que experimentamos na vida diária. Os elementos que vemos na
natureza são apenas as formas exteriores de qualidades sutis, elementais. Essas são as
qualidades inerentes da mente desperta, e se manifestam em todos os aspectos da
vida, sejam físicos, mentais, emocionais ou espirituais.

Os elementos e tudo que é composto por eles existem em três níveis, chamados
o grosseiro, o sutil e o secreto. Esse princípio trino universal é discutido mais
detalhadamente no Capítulo Nove.

O nível grosseiro, grosso ou material se refere à realidade física de nossos corpos


e de nosso ambiente. Inclui tudo que possa ser percebido pelos sentidos, mesmo com
a ajuda de instrumentos científicos, cujo uso nos permite penetrar muito além do
alcance da percepção normal, mas que ainda permanece dentro do reino físico. É a
esfera da vida comum e diária.

Além desse plano de existência se encontram as qualidades imateriais dos


elementos, que determinam como eles se manifestam e funcionam no mundo
exterior. É o nível sutil da energia. Não pode ser cientificamente definido ou medido.
Dentro destas duas dimensões está um espectro contínuo do material para o sutil: a
terra é o material mais denso e mais pesado dos elementos, enquanto o espaço é o
mais fino e mais sutil. Além do mais, cada único elemento contém todos os cinco
elementos dentro de si, portanto existem mundos dentro de mundos, todos
interconectados e interdependentes.

A dimensão mais interior, mais sutil de todas, é chamada de essência secreta,


que não é nada além do que a mente desperta, o estado final de vazio e sabedoria. A
essência secreta dos cinco grandes elementos é o princípio feminino da iluminação
tomando a forma dos cinco budas femininos. O mundo externo das circunstâncias e o
mundo interno dos seres viventes individuais têm a mesma origem e apresentam as
mesmas características. No nível físico, somos literalmente feitos de terra, já que tudo
que comemos vem da terra. Da mesma forma, uma grande proporção de nossa

77
comida e de nossos corpos é feita de água. Possuímos o fogo no calor do corpo e
captamos o ar com a respiração, enquanto o espaço nos rodeia e nos penetra até o
âmago de nossa estrutura atômica.

Todas as substâncias materiais possuem uma natureza sutil que molda a sua
forma externa. Sistemas médicos tradicionais e complementares fazem uso das
qualidades elementais sutis das plantas e dos minerais na cura. Essas qualidades agem
através de suas similaridades com os elementos sutis dos seres humanos. Nossos
estados fisiológicos, psicológicos e espirituais desempenham um papel na condição de
nossa saúde, e todas essas diferentes dimensões estão ligadas pela teoria dos cinco
elementos.

As qualidades sutis dos elementos também possibilitam o surgimento dos nossos


cinco sentidos: subjetivamente em relação ao desenvolvimento dos órgãos dos
sentidos e objetivamente em relação a suas esferas de funcionamento. Isso quer dizer
que eles produzem as propriedades sutis na matéria que as tornam perceptíveis aos
vários órgãos dos sentidos. As relações entre os elementos e os sentidos fornecidos
neste capítulo estão de acordo com as tradições indianas adotadas pelos tibetanos.
Elas são basicamente aplicáveis à teoria médica, por exemplo, ao descrever o
desenvolvimento de um embrião no útero. Entretanto, existem muitas outras
maneiras de relacionar os sentidos aos elementos em diferentes contextos — na
verdade, quase toda combinação possível pode ser encontrada —, e veremos um
conjunto completamente diferente de relacionamentos quando chegarmos à descrição
da dissolução do corpo na morte. Estes dados aqui se referem às qualidades básicas,
inerentes dos elementos, enquanto os outros sistemas poderiam ser vistos como
expressando relações adicionais e transitórias que surgem do contexto de uma visão
ou prática em particular.

Podemos encontrar inumeráveis paralelos aos cinco grandes elementos em todo


lugar para onde olharmos. Cada elemento tem sua própria cor, forma, temperatura,
textura, estação, órgão corporal, direção no espaço e muitas outras características.
Sabemos instintivamente o que significa um temperamento fogoso ou uma cor
quente. Na verdade, usamos descrições que nos reportam aos elementos todo o
tempo na linguagem comum. Certas associações tradicionais ocorrem com frequência
no budismo, especialmente nos tantras. Em geral, com poucas exceções, as mesmas
associações são encontradas nos tantras hindus. Outros sistemas, como as tradições
chinesas, a americana nativa e alquímica ocidental, diferem consideravelmente em
seus detalhes. Mas todas são baseadas no mesmo princípio fundamental de que
podem ser feitas ligações entre os vários níveis de existência. Essas ligações não são
apenas teóricas, mas podem ser utilizadas na compreensão da vida, nas curas e
especialmente na prática espiritual.

78
TERRA

O elemento terra é o mais denso dos cinco grandes elementos e tem as


características de solidez, peso, imobilidade e rigidez. Graus de peso e rigidez são
relativos; mesmo a mais suave sensação de água, por exemplo, vem da qualidade da
terra que é inerente na água. A terra possui uma natureza resistente que a impede de
se fundir e se misturar. É essa resistência que sentimos quando experimentamos
rigidez e suavidade relativas.

A qualidade sutil da terra é a origem do sentido do olfato e, correspondendo a


ele no mundo exterior, todos os aromas e odores. Olfato é mais térreo, o mais físico,
de nossos sentidos. Muitas vezes se diz que o olfato traz de volta memórias mais forte
e vividamente do que qualquer outros sentidos; ele nos liga às nossas naturezas
terrestres de uma forma muito profunda e instintiva.

A terra dá tanto aos seres viventes quanto aos objetos inanimados o seu molde e
a sua forma. Como todos os elementos, a terra está sujeita à impermanência, mas
muda tão lentamente que produz uma ilusão de permanência. Montanhas e rochas
parecem durar para sempre, e mesmo nossos corpos parecem mais ou menos os
mesmos dia a dia, por isso ficamos acostumados a pensar que eles não mudam. A terra
é nosso lar, nosso ambiente familiar, o chão sólido no qual podemos caminhar e nos
sentir seguros. A terra é uma casa de tesouros, a fonte de toda riqueza, uma mina de
ouro e pedras preciosas.

Dentro do corpo humano, o elemento terra fornece a carne e os ossos. Ela nos
dá forma, estrutura e força. Sustenta e contém os outros elementos dentro de nós. A
terra fornece o alimento que supre nossos corpos. O que quer que comamos, seja
mineral, vegetal ou animal, é uma transformação da terra. Ela pode sustentar todos os
tipos de ataques e convulsões, e suporta sem reclamar qualquer peso que se coloque
sobre ela. Nas danças clássicas da Índia, o dançarino sempre começa tocando o chão
em uma saudação para agradecer à Deusa Terra por atuar como chão para sua dança.
Mas a terra não é apenas o chão real no qual caminhamos; o tantra vê toda a vida
como uma dança ou uma peça, portanto o elemento sutil da terra se torna o chão da
dança de toda a nossa existência. Dentro da mente também, a terra é a origem de
tudo que surge; por causa dessa qualidade, a mente tem a capacidade inerente de agir
como uma base e um chão.

As qualidades da terra são também encontradas nos reinos emocional e


psicológico, que tornam a pessoa estável e confiável; fornecem paciência, resistência e
lealdade. A terra transmite uma sensação de recursos e riquezas inesgotáveis. Quando
as pessoas atuam em um papel de apoio ou exercem uma função de “fio-terra”, elas
estão demonstrando as qualidades da terra. Se uma emoção é determinada, uma ideia

79
é densa ou uma opinião é justa, todas compartilham o elemento terra. A terra é a base
da prática espiritual; na meditação retornamos para casa, para nós mesmos, aterrados
na realidade.

O elemento terra está presente em todas as estruturas de nossas vidas, na


família, na sociedade, na política e nas organizações. Todo plano, grupo ou atividade
precisa de algum tipo de estrutura básica e fundação, senão irá desabar. A terra é o
útero da vida. Assim como as sementes crescem no solo, também a imaginação cresce
na terra fértil da mente, e projetos frutificam dentro de um ambiente de apoio e
nutrição.

Toda característica pode ter um efeito positivo ou negativo, de acordo com as


circunstâncias. A terra apoia e contém, embora também possa destruir. Podemos ser
feridos pela sua dureza ou esmagados sob seu peso. Os cinco elementos cooperam por
meio de todos os aspectos da existência, mas se houver um desequilíbrio entre eles, os
problemas aparecem.

Se houver muito da qualidade da terra no corpo, podemos nos sentir lerdos,


pesados e incapazes de nos erguermos; nossa carne pode parecer volumosa, nossos
membros, espessos e pesados. Perdemos contato com a fluidez e flexibilidade da água,
o calor e a radiância do fogo, e a leveza e a mobilidade do ar. Psicologicamente, um
desequilíbrio da terra pode resultar em uma personalidade rígida, irredutível, uma
atitude de inflexibilidade perante a vida ou um excesso de confiança na formalidade e
na convenção. Uma coisa é ser realista e outra é ser materialista e atolado em uma
rotina.

Se estamos sem contato com nosso próprio elemento terra natural, isso pode se
tornar opressivo e restritivo. Podemos nos sentir como se estivéssemos pesados e
cercados por todos os lados, ou até mesmo que estamos sendo enterrados vivos. A
terra parece estar em toda a nossa volta, sufocando-nos, em vez de permanecer sob
nossos pés, que é o lugar dela. Então precisamos retornar ao chão firme de nosso ser e
estabelecer nossas próprias fundações interiores para recuperarmos força e
estabilidade.

A terra é a base de todos os elementos. Ela forma um recipiente para conter a


água. Fornece combustível para produzir fogo. Sua presença permite que o ar circule a
seu redor. As árvores podem crescer altas, buscando o céu e curvando-se
flexivelmente com o vento, somente porque suas raízes se espalharam profundamente
dentro da terra. Sem terra, seríamos afogados em aluviões de água, carregados por
correntes de ar, queimados no calor do fogo, perdidos na vastidão do espaço. Sem
terra, não teríamos lar, nenhum lugar para descansar. Sem terra, não poderíamos
empreender jornadas, seja com o corpo, seja com a mente. Sem o planeta Terra, não
poderíamos decolar em direção ao espaço. Sem a qualidade mental da terra como

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chão firme de onde começar, não haveria saltos da imaginação nem aventuras em
direção ao espaço interior.

Cada um dos elementos possui um símbolo que incorpora sua essência em uma
forma abstrata, geométrica. A forma simbólica da terra é um quadrado, e sua cor é
amarela. O quadrado expressa completude, solidez e imobilidade, ela forma a pedra
fundamental do mundo dos elementos. Amarelo é a cor da argila e da areia, nossos
materiais básicos de construção. É também a cor do precioso ouro e dos grãos prontos
para a colheita, ele transmite um sentimento da riqueza e da maturidade da terra.
Todas essas qualidades são exploradas em maior detalhe no Capítulo Sete, em
conexão com as cinco famílias dos budas.

Os primeiros quatro elementos — terra, água, fogo e ar — são associados com


práticas tântricas conhecidas como os quatro vajra karmas, ou atividades
indestrutíveis: pacificar, enriquecer, magnetizar e destruir. Essas são atividades
iluminadas desempenhadas com uma atitude de compaixão pelo bem de todos os
seres viventes. Pelo fato de não estarem envolvidas com apego ou ego, não criam a
corrente de causa e efeito. Aqui, karma é usado em seu significado verdadeiro,
simplesmente ação, em vez de ação e seus resultados. Na verdade, essas atividades
cortam através da cadeia de reação kármica e quebram o seu padrão. Eles são
chamados vajra porque são invencíveis e irresistíveis, nenhum poder consegue se opor
a eles ou evitá-los. Podem ser desempenhados de forma ritual para propósitos
externos, mas essencialmente são estilos diferentes de trabalhar no caminho e lidar
com problemas e obstáculos interiores.

Os símbolos ou mandalas dos elementos são usados como apoios meditativos e


rituais para as quatro atividades. A mandala amarela quadrada da terra é associada
com enriquecimento ou crescimento. A qualidade da terra produz naturalmente
riquezas de todos os tipos. No mundo exterior, esse ritual pode ser executado para
obter riqueza e sucesso, vida longa, boa sorte e colheitas fartas. Internamente,
enriquece o corpo e a mente e remove qualquer sentimento de pobreza e inutilidade.
Dharma, o ensinamento do Buda, é a maior riqueza. Enriquecer cria um ambiente
onde as circunstâncias para seu crescimento aparecem espontaneamente. A sabedoria
e a compaixão aumentam, e a experiência de meditação cresce naturalmente. Ela
enriquece a vida espiritual dos indivíduos, comunidades e do mundo todo.

ÁGUA

O elemento água corporifica o princípio da fluidez, que torna a coesão possível.


Nisso, ele é o oposto da terra. Se tentarmos misturar diferentes alimentos juntos, é a
umidade neles que permite a mistura, enquanto suas qualidades inerentes de terra

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tendem a mantê-los separados. A cola deve estar úmida e pegajosa para unir duas
superfícies, mas quando endurece, elas se tornam uma só, sólida como a terra. A água
é inconsútil; ela flui em uma corrente contínua, inquebrável. Ao contrário da matéria
sólida, duas gotas de água irão se fundir de forma indistinta. O que quer que seja
líquido e fluido, literal ou metaforicamente, é uma manifestação desse elemento.

Estamos cercados por todos os lados pela água dos oceanos, lagos e rios; sobre
nós, a água cai como chuva dos céus; e sob nós, brota do solo nas fontes. Mas o
elemento água também aparece como óleo, leite, seiva e suco; como qualquer coisa
que verte, pinga ou flui; como vinho e néctar. Tudo o que bebemos é um presente do
elemento da água. É a água que torna a terra fértil, e na água, a vida começa.

A água permeia todo o nosso corpo assim como permeia o mundo exterior.
Habita dentro de nós na forma de todos os nossos fluidos corporais; linfa, pus, catarro,
fluidos sexuais, suor e, o mais importante, sangue, o próprio símbolo potente da vida.
A qualidade inerente da água é responsável pelo sentido do paladar e de seus objetos,
a variedade dos sabores. É a liquidez da saliva que nos permite saborear, e o fluido na
comida que carrega o seu sabor. No reino da mente, a qualidade sutil da água confere
fluidez e adaptabilidade. A mente é uma corrente de experiências, mudando
continuamente e ainda assim nunca quebrando sua continuidade. É muitas vezes
comparada a um rio, fluindo eternamente, ou ao oceano, profundo e vasto.

A água não possui uma forma própria; preenche o que quer que a contenha,
adaptando-se a qualquer forma. Enquanto não for contida, continua sempre em
movimento, escorrendo através da menor das rachaduras, fluindo para baixo,
procurando pelo ponto mais baixo em que possa repousar. Ela doa sua qualidade
fluida e elástica a tudo em que se infiltre. Um galho que esteja seco e quebradiço pode
facilmente ser partido, mas um que esteja cheio de umidade é flexível e resistente.

A água suaviza e afrouxa o que quer que esteja duro e fixo. Limpa e purifica,
eliminando a sujeira e lavando-a em seu fluir incessante. Borrifar com água santificada
é um ritual universal de purificação. A água nos resfria e refresca quando estamos
encalorados e cansados. No passado, em muitos países do Oriente, os convidados
eram recebidos com água para lavar seus pés assim como com água para beber, e
essas duas oferendas ainda são uma parte importante do ritual budista. No Ocidente,
esses hábitos podem ter sido substituídos pelo gesto de mostrar aos convidados o
caminho para o banheiro e sugerir a ingestão de chá, café ou álcool, mas de qualquer
forma esses gestos de hospitalidade ainda representam as oferendas sagradas do
elemento da água.

A água está ligada a sentimentos, emoções e desejos. É complacente e intuitiva,


reagente aos sentimentos e necessidades das pessoas, assim como um lago reflete a
mudança das cores do céu acima dele. Fornece a qualidade de coesão da amizade e da

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afeição que mantém as pessoas unidas nos relacionamentos. Quando a água está em
perfeito equilíbrio com os outros elementos em uma pessoa, pode produzir um poder
reflexivo na personalidade e uma qualidade espiritual de profundidade e
tranquilidade. Estar na presença de tais pessoas pode nos fazer sentir como se
estivéssemos olhando para um lago profundo e claro que reflete nossa verdadeira
natureza, e ouvir suas palavras é como beber néctar puro, doce e refrescante. A água
suaviza a rigidez da terra, mas ao mesmo tempo precisa das qualidades da terra para
apoiá-la e dar-lhe forma. O elemento água na psicologia pessoal faz com que seja
possível mover-se para a frente e adaptar-se facilmente às circunstâncias cambiantes.

Negativamente, o elemento água pode facilmente ser superado pelas


características dos outros elementos. O vento pode perturbá-la, a terra pode represá-
la, e o fogo pode fazê-la evaporar. Se, por outro lado, os outros elementos forem
muito fracos, a água irá inundar, derrubando todas as paredes repressoras da terra,
apagando o fogo e saturando o ar, tornando-o pesado e opressivo. Um estado mental
dominado pela água torna-se completamente fluido; embora seja sensível, é ineficaz;
seu poder escorre inútil, desatrelado e sem direção. O entusiasmo é amortecido e
nenhuma atividade é possível. Na mente, assim como no ambiente, um desequilíbrio
de água destrói em vez de fertilizar.

Quando está concentrada e canalizada, a água tem uma tremenda força. Seu
poder é suave, mas persistente, e no tempo certo, pode consumir a pedra mais dura.
Grandes pesos podem ser transportados pela água com muito menos esforço do que
sobre a terra seca. Essa característica ajuda as pessoas a carregar seus fardos mais
levemente e a persistir firme e calmamente, superando obstáculos, assim como um rio
flui sem resistência em direção ao mar.

Todas as várias maneiras nas quais podemos descrever o elemento material da


água podem também ser aplicadas aos estados mentais, que são expressões da
qualidade sutil dos elementos. Água, como a mente, pode ser clara e brilhante,
cintilante e vibrante, ou pode ser lamacenta, fosca e estagnada. Suas ondulações
podem se espalhar em um padrão pacífico e harmonioso ou sua superfície pode ser
encrespada e opaca. Ela pode fluir de forma veloz ou lenta, assim como a mente. A
corrente agitada de pensamentos que com frequência nos ocupa é como uma corrente
superficial e tagarela, mas quando a mente está tranquila, ela se torna um lago calmo
que reflete o céu claro.

A forma simbólica da água é um círculo, e sua cor é o branco. Branco expressa


pureza e paz. O círculo branco da água é usado na atividade de pacificação. Ele cria um
ambiente pacífico para permitir o apaziguamento da agressão, a reconciliação dos
inimigos, a cura da mente e do corpo, ou a pacificação da própria turbulência interior
de alguém. A natureza purificadora, refrescante e suavizadora da água é invocada para
resfriar a febre das doenças, assim como os fogos da paixão, luxúria, ódio e raiva.

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Pacificar é um caminho de liberação tranquilo, permitindo que pensamentos e
emoções se dissolvam na abertura da mente vazia de tal forma que nenhum resultado
kármico os sigam para criar sofrimento.

FOGO

O elemento fogo nos dá calor e luz; sua natureza é irradiar, queimar e


transmutar; e sua característica é a temperatura. Sementes que tenham sido
protegidas na terra e trazidas à vida pela água são estimuladas ao crescimento pelo
calor do fogo. Entre todas as manifestações exteriores do elemento do fogo, a mais
importante para nós é o sol. Nosso mundo deve sua existência ao sol, toda a vida na
Terra depende do sol, e no seu tempo, o sol irá finalmente destruí-la. O sol aquece e
ilumina durante o dia, mas mesmo depois que ele se põe, o elemento do fogo
permanece conosco à noite na luz da lua e das estrelas.

Como uma força elemental do universo, o fogo é equivalente à luz, e na verdade


nós o experimentamos mais na forma de luz do que de calor. A visão depende da luz,
portanto o fogo é a origem sutil tanto do sentido da visão quanto de seus objetos de
percepção, as propriedades de forma e cor. Também falamos da mente vendo ou
percebendo seus objetos. A mente possui um poder inerente de iluminação, a partir
dela e de dentro dela, que é chamado de sua claridade ou luminosidade; essa é a
própria qualidade da percepção.

O símbolo do fogo é um triângulo vermelho, a forma abstrata de uma chama se


movimentando para cima. Quando pensamos no princípio do fogo, imediatamente
imaginamos chamas, a despeito do fato de que muitas pessoas não entram mais em
contato diário com o fogo natural. Quase esquecemos a tremenda importância do fogo
para a vida humana, portanto não mais pensamos nele como a presença poderosa e
divina que foi um dia. Não percebemos que o fogo sagrado ainda está entre nós todo o
tempo, sob todos os tipos de disfarce. Está presente no aquecimento central tanto
quanto em um fogo de lenha ou de carvão, e na luz elétrica assim como na chama de
uma vela. Sempre que acendemos uma luz, um fogão a gás ou uma chaleira elétrica,
estamos utilizando o dom do fogo.

Nos humanos, o elemento fogo fornece o calor do corpo, tão vital, que é quase
sinônimo da própria vida. Sem calor nos sentimos infelizes, distantes e sem vida,
mortalmente frios, frios como o túmulo. Qualquer sensação de temperatura, seja ela
quente ou fria, vem da qualidade do fogo. O fogo é o alquimista entre os grandes
elementos. Com sua função de transmutação, ele rege a digestão e o metabolismo.
Externamente, consome formas grosseiras de matéria, transformando-as em vapor e
gás, calor e luz. Ele cozinha nossa comida e em seguida, internamente, transmuta o

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alimento nas células vivas dos nossos corpos. O elemento fogo sutil dentro de nós
transmuta nosso alimento mental e espiritual: todas as sensações, impressões, ideias e
emoções que recebemos através dos sentidos e da mente.

O fogo queima as impurezas, não apenas lavando-as como faz a água, mas
consumindo-as completamente. Ao mesmo tempo, ele tempera, refina e fortalece. O
fogo permanece no centro entre os elementos mais densos e os mais leves — entre as
naturezas tangíveis e substanciais da terra e da água e a insubstancialidade do ar e do
espaço. Ele surge da matéria sólida e desaparece em direção ao nada. É o antigo
mensageiro dos deuses, a ligação entre o humano e o divino. Na Índia, oferendas
rituais são feitas através de Agni, o deus do fogo, que as devora e transporta suas
essências para o reino sutil das deidades.

Emocionalmente, o fogo se manifesta tanto como amor quanto como raiva.


Temos muitas expressões na nossa língua que indicam sua conexão com o amor em
todos os seus aspectos. Homens e mulheres adoram irradiar a intensidade de seus
sentimentos. O desejo sexual arde no corpo e na mente. Amizade e afeição são como
um fogo doméstico caloroso e intenso. O amor pode derreter o coração mais duro,
enquanto a compaixão queima medos e conceitos egoístas. O amor genuíno é o
autêntico fogo alquímico que pode transmutar a personalidade humana de chumbo
em ouro. Pessoas generosas e afetuosas são descritas como tendo o coração quente.
Um sorriso pode iluminar uma sala; uma pessoa pode brilhar de alegria.

A qualidade do fogo pode ser expressa através da raiva apaixonada assim como
do desejo apaixonado. Uma pessoa pode arder furiosamente com raiva, ter um
temperamento ardente ou se tornar incandescente de fúria. Mas o fogo está sempre
associado a um sentimento positivo de relacionamento. Mesmo no caso de ódio, ele
sugere um tipo de ódio engajado, quente e inflamado ao invés de uma rejeição fria,
gelada. As chamas tocam tudo aquilo que esteja a seu alcance, e seu calor e sua luz
atraem seres viventes em sua direção, embora elas possam facilmente destruir aquilo
que atraem. São insaciáveis, como a natureza apegada da ambição e da luxúria. Uma
personalidade fogosa irá trazer uma paixão intensa e consumidora para cada emoção.

Sem o calor suficiente do sol, a vida desapareceria da Terra. Sem o fogo interior,
os corpos viventes não poderiam se manter vivos. Sem o elemento fogo suficiente no
coração, nossas naturezas permaneceriam semiadormecidas, como se estivessem
hibernando na terra fria e pesada. Sem o fogo, a água fluente do sentimento e da
receptividade se torna congelada. Perdemos entusiasmo, esperança e aspiração, e
nossos pensamentos não podem mais se movimentar para cima como chamas em
direção ao céu.

Os três males básicos da paixão, agressão e ilusão são todos simbolizados por
fogos furiosos. Na arte tântrica, tanto as deidades coléricas quanto as deidades

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passionais e sedutoras dançam dentro de um círculo de chamas, simbolizando a
energia pura e essencial de suas naturezas. Por causa de seu potencial destrutivo, o
fogo é também um protetor, por isso os meditantes visualizam-se cercados por uma
parede protetora feita do fogo ardente da sabedoria.

A mandala triangular vermelha do fogo é usada na atividade de magnetizar. Isso


significa literalmente “trazer sob controle”, e é algumas vezes traduzida como
controlar ou subjugar, mas Trungpa Rinpoche usava a palavra magnetizar, que é
realmente muito apropriada. Ela exerce seu poder pela atração em vez de pela força.
Atrai tudo para a sua órbita de energia. Pode ser usada para conquistar seres viventes,
especialmente para influenciar suas mentes; para atrair para nós tudo o que
necessitamos no sentido espiritual; e para controlar as forças nocivas em nossas vidas
que impedem o progresso espiritual. Por meio dela, obtemos poder em todos os
aspectos da vida. Em algumas tradições, o fogo é também associado com o quarto
karma, a atividade de destruição, em virtude de sua natureza ardente.

O fogo é o mais dramático, o mais vívido e fascinante de todos os grandes


elementos. Ele é essencial e é lindo, e ao mesmo tempo é altamente perigoso; existe
sempre algo ameaçador a respeito dele, como se a própria natureza do fogo seja para
estar fora de controle.

O fogo não poderia existir sem a terra e o ar; ele se alimenta de ambos,
necessitando tanto de combustível quanto de oxigênio para existir. Deve ser contido
pela terra, confinado em um coração ou em um forno, de tal forma que seu poder
possa ser concentrado e posto em uso. Se ficar muito baixo, precisa ser abanado com
ar, e se ficar muito alto, precisa ser abrandado com água refrescante e calmante.
Enquanto arde, suas chamas desaparecem em direção ao espaço vazio, seu lar final.

AR

O quarto grande elemento pode ser chamado de ar ou vento. Sua característica é


o movimento. O vento é simplesmente o ar em movimento, que é inalado e exalado
pelos seres viventes como respiração. O ar está sempre em constante movimento,
embora quando esteja relativamente parado quase não percebamos sua presença.
Talvez possamos sentir o movimento muito leve de uma brisa contra nossa pele, ou o
peso viscoso da atmosfera em um dia úmido. Quando ele se move mais violentamente,
embora invisível, podemos ver seus efeitos à medida que corre através da árvores e
relva ou fustiga a superfície da água, e podemos ouvir os sons que ele produz
enquanto uiva ao redor de prédios, fazendo as coisas zunirem, gemerem, estalarem e
baterem. Podemos sentir o repuxo de uma pipa em sua corda enquanto ela se agita
nas rajadas de vento, e podemos ver os pássaros planando através dos céus em

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correntes termais. Em um dia ventoso, sentimos a presença do ar ao redor de nossos
corpos enquanto forçamos nossa passagem ou somos empurrados por sua força
contra nossas costas.

A qualidade sutil do ar dá origem ao sentido do tato, e a sensações que são


percebidas. O ar é menos material do que a terra, a água ou mesmo o fogo, portanto é
menos perceptível aos sentidos físicos. Não possui paladar; não podemos vê-lo ou
ouvi-lo, apenas os efeitos que ele causa; podemos sentir os aromas carregados no
vento, não o próprio vento. Mas podemos sentir seus movimentos contra a nossa pele;
o tato é a única experiência direta que temos do ar.

O ar é o hálito da vida para os seres viventes. Uma semente na terra ou um


embrião no útero, depois de terem sido alimentados pelo líquido e revigorados pelo
calor, precisam finalmente emergir em direção ao ar e começar a florescer de forma
independente. É a qualidade móvel do ar que torna o crescimento e o
desenvolvimento possíveis a partir do início mesmo da vida, já que crescimento por si
só é movimento e expansão.

Podemos apreciar mais plenamente a importância do ar tornando-nos mais


conscientes da nossa respiração. Quando estamos sem fôlego, sufocando e arfando,
engolimos grandes quantidades de ar, como se fosse uma bebida doadora de vida.
Quando estamos calmos e tranquilos, respirando muito suavemente, podemos sentir o
leve movimento do ar entrando e saindo de nossas narinas, alternadamente frio e
quente, e nos tornamos intuitivamente conscientes de que ele é de fato o hálito da
vida. A estreita conexão entre respiração e emoção já há muito é reconhecida: somos
sempre aconselhados a respirar fundo antes de agir impulsivamente e a respirar lenta
e profundamente quando nos sentimos assustados ou agressivos.

A respiração é uma conexão direta com o mundo externo. Quando


experimentamos qualquer tipo de sensação, a mente age como um intermediário
entre o ambiente e nós mesmos, interpretando instantaneamente as impressões
recebidas através dos sentidos. Mas no ato de respirar o ambiente na verdade entra
em nossos corpos sem nenhum intermediário. É a comunicação direta entre nós e o
universo.

A percepção consciente da respiração é o método mais básico e poderoso na


prática da meditação. A respiração também é usada como um veículo ou meio para
vários tipos de intercâmbio na meditação. Podemos atrair as essências de todos os
cinco elementos na respiração, porque todos os cinco são inerentes dentro de cada um
deles. Podemos renovar nossa energia ao respirarmos em paz e tranquilidade e
abandonar todas as tensões e preocupações ao exalarmos. Em uma prática mahayana
muito importante, inspiramos a dor e o sofrimento de todos os seres viventes e
exalamos bondade, felicidade e cura.

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Respirar não se refere apenas ao ar que inalamos e exalamos. A palavra sânscrita
para respiração é prana, que significa não apenas a respiração comum, mas a própria
vida. É a força da vida, energia vital e espírito. Prana está sempre em movimento,
como um cavalo inquieto; o cavalo é um símbolo antigo tanto de prana quanto de
vento. A mobilidade do ar torna possível o movimento dentro da mente e do corpo;
não apenas o movimento da respiração, mas também o movimento dos membros, a
circulação do sangue, as mensagens dos sentidos, as instruções do cérebro e a
transferência de percepção de uma parte do corpo para outra. Como uma qualidade
fundamental da mente, o ar é o seu movimento contínuo, sua mutabilidade e
atividade.

Psicologicamente, o elemento ar fornece um sentido de liberdade e dinamismo.


Uma personalidade dominada pelo ar é tremendamente ativa física e mentalmente e
odeia ser tolhida. O ar penetra em qualquer lugar sem esforço e simplesmente flutua
para longe de quaisquer restrições. Livre como o ar e leve como o ar descrevem de
forma precisa sua natureza. Mas todos os movimentos precisam de um ponto de
referência. Se o ar está em movimento, então deve estar se movendo para longe de
algum lugar, em direção a algum lugar ou em volta de alguma coisa, e esse ponto fixo é
fornecido pelo elemento da terra. O ar está sempre relacionado com a terra como seu
centro de movimento. As qualidades sutis do ar nos dão o poder de nos levantarmos
do chão, levantar nossos braços para o céu e dançar. Permite que nossos pensamentos
voem para cima e nossos corações se sintam leves e alegres. Sem o ar não haveria
leveza de coração nem risadas.

Se existe ar demais, sem terra o suficiente para equilibrá-lo, a atividade perderá


seu senso de propósito; não vai estar mais conectada com a terra e se tornará pura
inquietação. As pessoas que sofrem desse tipo de desequilíbrio podem facilmente
perder o contato com a realidade; tornam-se extremamente voláteis, suas ideias não
têm substância e suas emoções são volúveis, soprando aqui e ali como o vento.

Se existe um excesso de ar, mas sem o fogo da paixão para aquecê-lo, a atividade
se torna fria, mecânica, destituída de vida e de significado. Mas se existe muito pouco
ar, então o fogo não pode queimar de jeito algum, a água se tornará estagnada, e a
terra se tornará pesada, como massa que não cresce. Sem movimento e um sentido de
liberdade, as pessoas se afundam na melancolia, tornam-se fechadas em si próprias e
param de reagir ou sentir emoções.

O símbolo do ar é um semicírculo, que pode também ser representado como um


arco totalmente retesado ou como uma lua crescente. Sua cor é verde ou algumas
vezes, preta. O verde parece uma cor tranquila e repousante por causa de sua
associação com a natureza, mas na realidade a natureza está sempre ativa e em
movimento. Verde é a cor do crescimento, da juventude e do frescor. É a cor das
folhas se desdobrando e dos brotos arremetendo. Se pensarmos em prados de grama

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ondulante ou árvores cheias de folhas balançando ao vento, então poderemos ver que
o verde é de fato apropriado para ser o sinal visível do inquieto e invisível elemento do
ar.

A mandala do ar é normalmente associada com a atividade iluminada de


destruição compassiva. Se pacificar, enriquecer e magnetizar não obtiverem sucesso,
algumas vezes é necessário destruir o mal de uma só vez, esteja ele aparecendo no
mundo exterior ou seja ele uma manifestação da negatividade de alguém. A destruição
é baseada na percepção do vazio essencial de todos os fenômenos: as forças malignas
são liberadas em direção à sua própria natureza, e todos os obstáculos à iluminação
são superados. Pelo entendimento de que na realidade não existem tais coisas como
os obstáculos, eles todos são transformados em oportunidades e inspirações no
caminho.

ESPAÇO

O espaço é simultaneamente o primeiro e o último dos grandes elementos. Ele é


a origem e a precondição dos outros quatro, e é também a sua culminação. É o mais
sutil, o menos material dos elementos. Dentro dele, eles existem e funcionam juntos
em harmonia. A palavra sânscrita para espaço é a mesma que para céu: akasha, o que
significa “brilhante e claro”. O que é que chamamos de céu? Ele marca a fronteira da
nossa visão, o limite que a nossa vista consegue atingir. Se pudéssemos ver com mais
clareza, o céu se estenderia infinitamente em direção ao espaço exterior. O céu é uma
fronteira imaginária determinada pelas limitações dos nossos sentidos, e também
pelas limitações da nossa mente, já que achamos totalmente impossível imaginar um
universo totalmente ilimitado. O espaço é a dimensão na qual tudo existe. Ele é todo
abrangente, tudo permeia e é infinito. É sinônimo do vazio: aquele vazio que é
simultaneamente plenitude.

A qualidade inerente do espaço dá origem ao som à audição. Uma das definições


de akasha é o elemento no qual a vibração acontece. Essa vibração é a pulsação
primordial da vida; sua primeira manifestação como som acontece nas sílabas
sementes do mantra, que na teoria tântrica são a causa de toda a existência.

O elemento espaço habita em nós como mente ou consciência. Como o espaço, a


mente é infinita e ilimitada; não tem forma ou tamanho, não está em lugar algum, não
tem cor ou características. O espaço é a qualidade fundamental e intrínseca da mente,
de abertura. Na poesia e na filosofia indiana, a mente é com frequência comparada ao
céu. A mente é o espelho do céu, o espaço é o espelho da mente. Em essência
perfeitamente claro e vazio, ele permanece intocado pelas nuvens que o percorrem.
Nossa mente é o espaço interior, o espaço dentro do coração, em que podemos viajar

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infinita e eternamente. Mas a consciência não é limitada pela mente apenas. Todas as
células do nosso corpo e todas as partículas através do universo possuem seu próprio
tipo de inteligência, por meio da qual continuam a existir em sua forma particular e a
levar adiante sua função específica.

O espaço contém todos os elementos dentro de si, e ainda assim está além de
todas as características. Ele é inteligência pura, brilhante, abertura completa e
percepção de tudo que se vê. Quando está obscurecido, experimentamos confusão,
estupidez e ignorância; tornamo-nos seres fechados, limitados.

Terra, água, fogo e ar não podem existir sem espaço, mas eles também são
necessários para sua manifestação. O espaço se expressa por meio da dança dos
elementos. Se eles não estiverem todos funcionando adequadamente dentro de uma
personalidade, se existe muita qualidade de espaço, a pessoa irá perder o contato com
a realidade, se sentir flutuando no espaço, perdida em um reino de ilusão. Mas quando
existe carência de espaço a pessoa se sente apinhada, oprimida e claustrofóbica.

O espaço em harmonia com os outros elementos dá à pessoa uma sensação de


relaxamento e acomodação, um sentimento de que existe bastante espaço para tudo.
Nada precisa ser excluído ou suprimido, mas apenas deixado para ser como é. A mente
repousa em seu estado natural, que foi descoberto para ser nenhum outro além do
estado de vigília ou iluminação.

A cor simbólica do espaço é azul; o azul de um céu claro, luminoso. O espaço não
tem uma cor própria, mas quando fitamos sua profundidade infinita, o percebemos
como azul. Azul é a cor do mistério e da espiritualidade; é associado com o paraíso, e
por isso sempre transmitiu ideias de paz, felicidade, beleza e perfeição. Mas a
insondável profundidade do azul pode também acarretar uma ameaça e um sentido de
medo. Ao olhar fixamente para o espaço, as pessoas às vezes sentem que podem cair
da borda do mundo e despencar para sempre naquele vasto vazio. É o medo
fundamental da morte, o terror de perder o sentido do ser, o que confrontamos
quando olhamos para a face do elemento do espaço.

A forma simbólica do espaço é um ponto, algumas vezes desenhado como um


pequeno círculo alongado até uma chama no topo. Esse ponto é simultaneamente um
potencial zero e infinito, a semente criativa do universo.

OS CINCO DEVAS

Enquanto percebemos os elementos somente em suas formas materiais, eles


permanecem dentro do reino do samsara ou existência mundana. Nesse sentido, são
como uma prisão ou um túmulo. Aparecem e desaparecem, mudam e decaem, e

90
finalmente tudo que é composto por eles — nossos corpos e nosso mundo — irá
morrer. Mas o carcereiro da prisão é nossa própria mente, incapaz de ver além de suas
aparências superficiais e entendê-los como realmente são.

Os cinco elementos surgem da mente desperta, portanto eles mesmos são


aspectos dessa consciência: são budas. Isso é a sua essência secreta. Essa essência é
vazia, e ao mesmo tempo é também luminosa; brilha com as qualidades puras dos
cinco elementos. Em Liberação através da audição, a essência pura dos elementos
simplesmente aparece como luz das cinco cores. A essência da terra é uma luz
amarela; a essência da água, uma luz branca; a essência do fogo, uma luz vermelha; a
essência do ar, uma luz verde; a essência do espaço, uma luz azul. A essência é
invisível, portanto suas cores não aparecem externamente; se o fizessem, teriam
entrado no reino dos elementos materiais. São cores visionárias, perfeitamente puras,
claras e luminosas, como um arco-íris visto de dentro do coração.

O vazio é a noção de que nada tem uma existência permanente, substancial e


independente por si só. Já que isso é verdade, já que nada é fixo e estático, existe a
infinita potencialidade e a transformação dinâmica. É isso apenas que torna possível a
sempre mutável apresentação da vida se manifestar em toda a sua multiplicidade.
Portanto, o vazio é visto como o princípio criativo feminino. Os cinco grandes
elementos, originando-se do vazio, são as mães que dão origem a todos os fenômenos.
Quando são percebidos dessa maneira, são conhecidos como os cinco budas
femininos. Nos tantras são chamados devas, dakinis, mães ou rainhas, e neste livro
geralmente me refiro a eles como devas.30

O deva da terra é chamado Lochana ou Buda-Lochana, o Olho dos Budas. Seu


nome não se refere à visão comum e não tem conexão com o relacionamento dos
cinco sentidos com os cinco elementos mencionados anteriormente, em que a terra
está associada com o sentido do olfato. Ele representa a visão pura dos budas, a
experiência desperta do mundo como ele verdadeiramente é, visto através do olho do
buda. Nesse nível de percepção unificada, ele é o observador, o observado e o ato da
observação, tudo ao mesmo tempo. Ele incorpora o aspecto da vigília chamado
equanimidade e igualdade: a única, a própria, natureza básica de tudo o que existe, a
base do ser que se manifesta externamente como as qualidades da terra. Em uma
prática de meditação que compôs, Trungpa Rinpoche descreveu esse estado de visão
sagrada: "Você não vai encontrar terra comum e pedras aqui, mesmo se procurar por
elas. Todas as montanhas são Buda-Lochana, que é a onipresente sabedoria da
equanimidade e da imobilidade imutável.”31

30
Thinley Norbu, Magic Dance, Nova York, Jewel, 1981, é uma celebração da natureza das cinco dakinis,
assim como outros tópicos a partir do ponto de vista de um yogue Ningma.
31
Chögyam Trungpa, The Sadhana of Mahamudra. Não disponível comercialmente.

91
Mamaki é o deva da água. A mesma prática de meditação diz a respeito dele: "A
água que flui aqui é a Buda Mamaki, que é o lago da sabedoria espelhada, clara e pura,
como se o céu tivesse derretido.” O nome Mamaki quer dizer “meu”, não no sentido
de possessividade, mas de afeição e de pertencer a alguém. Ela olha para todos os
seres como sendo seus, e pertence a cada um deles. Isso se relaciona com a qualidade
emocional da água; ela expressa a claridade e a pureza do coração quando o aspecto
confuso do sentimento foi clarificado e sua sensibilidade inata é revelada. Quando
captamos um vislumbre do estado de percepção de Mamaki, sentimos empatia com
todos os seres; podemos entrar em suas mentes e corações assim como uma gota de
água se funde com outras gotas. Mamaki é a mãe amorosa que trata todos os seres
conscientes, sem exceção, como seus próprios filhos. Ela se infiltra em todo lugar, nos
rodeia, é a água da vida.

A essência do fogo é Pandaravasini, o Deva de Túnica Branca. Branco é a cor da


pureza, normalmente associada com a água, mas neste caso ela possui implicações
levemente diferentes. O fogo não apenas expulsa a sujeira, ele a queima
completamente. O brilho estonteante das vestimentas brancas do deva irradia luz a
toda a sua volta. Ele expressa o calor branco da compaixão dos budas assim como o
poder purificador e transmutador do fogo. Já que ele é a corporificação do fogo, é
pleno da energia da paixão, que, como um aspecto da iluminação, é idêntico ao amor
compassivo. Nossa cobiça, luxúria e desejos ordinários devem ser transmutados e sua
essência libertada, de forma a realizar esse estado. Pandaravasini é a própria energia
transmutadora, inerente ao nosso próprio ser. Assim como o elemento do fogo existe
em toda parte no mundo físico, Pandaravasini também está sempre presente em cada
aspecto da vida. Uma vez que despertemos para a sua presença, todas as
circunstâncias se tornam uma oportunidade para transformação, uma manifestação da
essência do fogo.

O nome do deva do ar é Samaya-Tara. Tara significa Salvadora, ele que carrega


todos os seres ao longo do oceano de samsara, e Samaya se refere à promessa que ela
fez para realizar essa tarefa. Tara é uma das mais amadas de todas as deidades
budistas, e ele possui muitas manifestações diferentes. Mas todas as suas formas
brotam da qualidade básica do ar: velocidade desobstruída e atividade. É conhecido
como Tara Veloz porque sempre responde com ação imediata e compassiva. Tara
personifica aquele estado de ser no qual a sabedoria, a compaixão e a atividade são
inseparáveis. Ele age sem pensar: tão logo veja a necessidade da ação, o conhecimento
do que deve ser feito está instantaneamente presente, junto com o poder infalível
para realizá-lo. Samaya-Tara, a essência do ar, é o nosso hálito da vida, inspirando-nos
a viver, a nos movimentarmos e a agir de acordo com a verdade.

O deva do espaço é chamado de Akashadhatvishvari. Seu nome significa a Dama


do Elemento (ou Reino) do Espaço; podemos chamá-lo de a Rainha do Espaço. Ele é o

92
princípio feminino do espaço e do vazio, a matriz criativa do todo da existência. Como
o seu elemento, é impossível de capturar ou definir com palavras; não pode ser
descrita em linguagem humana. Sua natureza é a imensidão, a expansividade e a
abertura, onipresente e que tudo permeia. Ele reina no centro da mandala e faz nascer
todos os elementos.

Os cinco devas incorporam a essência final, vazia e ainda assim luminosa de


todos os elementos. São aspectos de pura energia iluminada brilhando a partir do
estado de não-ser e não-dual. Portanto, elas não devem ser confundidas com espíritos
da natureza ou deidades elementais no sentido comum. O budismo na Índia e no
Tibete, assim como em outros países para onde se difundiu, sempre reconheceu
muitos tipos de seres espirituais que pertencem aos diferentes reinos do samsara em
vários níveis. Já que no Ocidente nós não temos um sentimento específico para esse
tipo de deidade, este tema pode parecer irrelevante para a maioria das pessoas. Mas
para aqueles que acreditam nelas ou que podem apreciá-las como metáforas, a
distinção é muito importante. As deidades do samsara são forças que podem ter um
poder maior ou menor tanto para o bem quanto para o mal, mas estão todos
submetidos às leis de causa e efeito. Mesmo grandes deidades como a deusa da terra,
que testemunhou a iluminação do Buda, ou Agni, o deus do fogo, permanecem dentro
da esfera do samsara, mesmo que em um nível muito elevado. Isso é aceito tanto no
hinduísmo quanto no budismo. Às vezes é passada a impressão de que o budismo
desacredita as deidades hindus tratando-as como relativas, mas isso não é verdade;
elas sempre foram vistas dessa forma, parte de um ciclo de existência sem início e sem
fim, completamente diferentes do Deus absoluto das religiões monoteístas.

Nós somos feitos dos cinco elementos e somos inteiramente dependentes deles,
portanto quando começam a se desintegrar no momento da morte, significa que nosso
mundo comum está chegando ao fim. Se os tomarmos como reais, pode parecer que
eles se voltaram contra nós e estão destruindo nossa própria existência. Mas, se
entendermos a natureza dos cinco devas, veremos que não existe nada a temer e nada
que possa ser destruído. Um dos conjuntos de versos conectados com Liberação
através da audição chamado a Prece-aspiração para libertação da perigosa passagem
do bardo32, diz:

Possam os elementos do espaço não se levantarem como inimigos,


Possa eu ver o reino do buda azul.
Possam os elementos da água não se levantarem como inimigos,
Possa eu ver o reino do buda branco.
Possam os elementos da terra não se levantarem como inimigos,

32
Em tibetano, bar do ’phrang sgrol kyi smon lam.

93
Possa eu ver o reino do buda amarelo.
Possam os elementos do fogo não se levantarem como inimigos,
Possa eu ver o reino do buda vermelho.
Possam os elementos do ar não se levantarem como inimigos,
Possa eu ver o reino do buda verde.
Possa o arco-íris dos elementos não se levantarem como inimigos,
Possa eu ver os reinos de todos os budas.

Esse verso não é apenas uma prece, mas uma aspiração ou resolução; ele
pretende ser uma forma de nos inspirar e influenciar nosso estado mental, em vez de
ser uma solicitação. Ele nos incita a penetrar através de nossa percepção dos
elementos materiais como sendo reais e sólidos, seja em suas manifestações criativas
ou destrutivas, e a reconhecer sua essência vazia. Se houver um sentido muito forte de
autopreservação na corrente da mente, então nos agarraremos rapidamente à
realidade aparente e temeremos sua dissolução. Mas, já que somos naturalmente
compostos dos cinco elementos, sem dúvida também possuímos a natureza inerente
dos cinco devas e o potencial para despertar dentro do seu estado de ser e de
consciência.

94
Capítulo Seis

O Processo de Cinco Etapas do Ego

OUTRA MANEIRA DE OLHAR a natureza da existência é a partir do ponto de vista


de nossa própria percepção, da maneira como experimentamos o mundo individual
que cada um de nós habita. Todos os fenômenos que aparentam existir fora de nós
estão também contidos dentro deste mundo, porque a nossa experiência real deles
somente existe dentro de nossas mentes, intermediada pelos sentidos. O budismo
analisa esse reino da nossa experiência em termos de unidades básicas, ou dharmas,
em sânscrito. Em um contexto budista, dharma no singular (muitas vezes começado
com uma maiúscula) normalmente significa o ensinamento do Buda, mas esses dois
significados da palavra compartilham um princípio subjacente e não são tão diferentes
um do outro quanto parecem à primeira vista. Algumas vezes ao traduzir, a pessoa não
sabe dizer qual dos dois significados foi pretendido, e algumas vezes ambos estão
implicados ao mesmo tempo.

A palavra dharma tem o sentido básico de manter e apoiar. Seu uso primário é
para transmitir as ideias de lei, religião e dever que preservam a sociedade humana e
são preservados por ela em uma relação recíproca. Em um nível pessoal, significa o
papel especial na vida que cada ser vivente nasceu para realizar — a verdade interior
da pessoa, a lei pela qual alguém vive. Pode também significar a natureza inerente da
qualidade de qualquer coisa, a lei que determina exatamente o que cada coisa é e faz.
Assim como o dharma de um rei é reinar, o dharma do fogo é queimar. Nesse sentido,
existem inúmeros dharmas, as leis fundamentais de tudo o que existe. Entre eles,
certos elementos físicos e psicológicos em particular foram identificados no budismo
como estando na raiz de nossa maneira de perceber o mundo.

A ligação entre dharma e os dharmas é a própria ideia de lei interior e verdade. O


dharma ensinado pelo Buda revela a verdade sobre a existência, a lei final da vida.
Dharma, a verdade em si, manifesta-se espontaneamente como os muitos dharmas, as
realidades fragmentadas da existência relativa, temporária. Eles tomam muitas
formas, aparecem e desaparecem, ainda assim, em essência, nunca foram nada além
da verdade.

No budismo, o mundo externo nunca é considerado separado do observador. Só


podemos conhecer o mundo como o experimentamos. O universo físico certamente

95
não é ignorado, mas é sempre tratado como indivisivelmente ligado com o mundo
interior da consciência. Portanto, na análise budista, ele é representado por somente
cinco dharmas: o campo dos cinco sentidos. Todos os fenômenos materiais são
definidos pelo fato de que podem ser vistos, ouvidos, farejados, saboreados ou
tocados. Se não fossem perceptíveis pelos sentidos, não saberíamos nada sobre eles, e
o que quer que venhamos a conhecer chega até nós somente por meio dos sentidos.
Todos os outros dharmas estão envolvidos com os processos de percepção e
consciência, e com estados psicológicos. Esses estados mentais condicionam a maneira
pela qual experimentamos o mundo, de tal forma que mente e corpo, interior e
exterior, nunca podem ser separados. O sistema de dharmas descreve a existência,
não de uma forma teórica, mas como ela é realmente vivida por seres conscientes de
momento a momento.

As várias antigas escolas budistas desenvolveram diferentes listas e número de


dharmas, mas seu propósito sempre foi o mesmo. Eles são uma ferramenta para
análise, de forma a observar como o sentido de ser surge a partir de uma combinação
de muitos fatores diferentes e como evolui e se perpetua, embora não tenha uma
realidade independente própria. No melhor método conhecido de análise, todos os
dharmas são agrupados em cinco categorias, que são os cinco skandhas: forma,
sentimento, percepção, condicionamento e consciência, descritos em detalhe mais
adiante neste capítulo.

A palavra sânscrita skandha tem um duplo significado: pode indicar um grupo


composto de unidades menores ou uma única unidade que faz parte de um grupo
maior, como uma divisão de exército que contém muitos soldados, mas é parte de
uma força muito maior. Tradicionalmente, em seu uso budista, a ênfase era no
primeiro sentido, a ideia de que cada skandha é composto de um grupo de dharmas.
Em tibetano, phung po significa literalmente “monte, pilha”, enquanto as primeiras
traduções para o inglês usavam “agregar”. Para mim, ambas as palavras soam bastante
estranhas, pouco naturais. O significado alternativo tem sido mais preferido,
especialmente por eruditos ocidentais, que têm usado expressões tais como
“constituintes da personalidade” ou “componentes psicológicos”. No todo, sinto que é
melhor mantê-la em sânscrito.

A filosofia budista é sempre prática e se relaciona diretamente com a


experiência, por isso muitas vezes parece ser mais uma psicologia espiritual do que
uma filosofia. O sistema dos skandhas demonstra como eles se combinam para
produzir a ilusão de um ser, e ainda assim esse ser não tem base na realidade. Embora
sejamos tão completamente apegados a ele, tudo o que somos e tudo o que
experimentamos pode ser explicado perfeitamente sem ele. Trungpa Rinpoche
descreveu os cinco skandhas como o processo de cinco etapas do desenvolvimento do
ego. É por isso que não estou completamente feliz em traduzir skandha como

96
“componente”, o que dá a impressão de entidades separadas em vez de elementos
interativos e interdependentes de um processo. Eles não são tanto do que somos
feitos, mas sim como funcionamos.

Cada um de nós pensa em si como uma personalidade única, unificada, mas, se


examinarmos nossa experiência cuidadosamente, podemos ver que nossos
pensamentos e sentimentos estão mudando todo o tempo. Em um momento estou
feliz, no momento seguinte sinto-me contrariada ou zangada, então alguma coisa
chama minha atenção e a zanga é esquecida por um novo interesse. Começo a me
concentrar em algum plano, apenas para descobrir alguns minutos mais tarde que
estou pensando em algo completamente diferente, sem sequer haver notado. Se uma
parte do meu corpo está doendo, então sinto que não sou nada além de dor. Em
outras palavras, o “eu” está mudando continuamente. Não existe um encadeamento
consciente unificador que perpasse todos os diferentes pensamentos e sentimentos.
Mesmo o corpo está mudando, embora só o percebamos depois de um longo período
de tempo. Somos uma corrente interminável de estados psicológicos momentâneos e
interconectados. É assim que uma pessoa é vista no budismo. Em vez de um ser fixo,
existe um fluir contínuo de momentos de consciência, que é chamado de continuum
mental ou corrente mental. Os dharmas são partículas temporárias de experiência,
como gotas de água que fazem a corrente fluir, enquanto os skandhas podem ser
vistos como os padrões presentes na corrente.

O budismo apresenta diferentes maneiras de ver essa situação e de trabalhar


para superar nossos conceitos equivocados. Tradicionalmente, o ensinamento do Buda
é dividido em três fases, conhecidas como as três voltas da roda do dharma (não
exatamente o mesmo que as três yanas descritas no Capítulo Um). A primeira delas é
especialmente focada na compreensão da impermanência e na ausência do ser. É aqui
que a análise da experiência em dharmas e skandhas é de especial ajuda. O primeiro
passo em direção ao despertar é superar nossa visão ordinária, de senso comum de
nós mesmos como seres reais, sólidos e permanentes. Investigar as unidades básicas
da existência mina a solidez do nosso mundo. Aquilo que chamamos corpo - ou uma
mesa, uma árvore ou qualquer coisa que seja — são apenas nomes, termos
convencionais; são na verdade somente coleções de dharmas, surgindo e decaindo
novamente, combinando-se temporariamente de acordo com as circunstâncias. Desse
ponto de vista, os dharmas são reais; eles são as realidades últimas, porque são o que
realmente experimentamos. É o ser que é irreal, apenas uma construção da mente.

A segunda fase do ensinamento é expressada na coleção de textos conhecida


como os Sutras da perfeição da sabedoria (Prajnaparamita). Aqui é revelado que os
próprios dharmas são vazios de qualquer existência independente ou de natureza
inerente própria. Nesse estágio, a meditação se expande para além da área da própria
falta de substancialidade individual para compreender a natureza onírica do universo

97
inteiro. Essa compreensão quebra a barreira da dualidade do ser e do outro, e estimula
o amor e a compaixão por todos os seres viventes, que estão sofrendo
desnecessariamente por causa de sua confusão a respeito da existência. Não é mais
necessário para o meditante se concentrar em identificar os dharmas separados como
um antídoto para o sentido de ego. Ao contrário, com pelo menos uma experiência
básica de sua ausência, existe mais ênfase em entender o processo pelo qual nossa
experiência de vida baseada no ego é continuamente construída e mantida pelos cinco
skandhas, e em ser vista através de sua aparente realidade.

Finalmente, o ensinamento da terceira fase revela que a compreensão do vazio


não é nenhuma outra senão a da natureza de buda. A ausência de um ser limitado,
individual, não é o nada, mas a experiência da presença desperta. É o grande ser, puro
desde o início. A potencialidade para a iluminação existe dentro de cada um de nós,
como uma natureza verdadeira, original. Esses ensinamentos são encontrados nos
sutras da doutrina tathagatagarbha33. Deve-se apontar aqui que a interpretação
desses sutras é controversa, e que a própria visão positiva típica da tradição Ningma
não é apoiada por todas as escolas tibetanas.

A segunda e a terceira volta da roda do dharma correspondem a ensinamentos


mahayana. Dentro dessa estrutura filosófica, o vajrayana desenvolveu métodos
dinâmicos e práticos, e o vívido simbolismo encontrado nos tantras. Nosso estado
desperto fundamental nunca foi diminuído ou destruído, apenas obscurecido pela
ignorância. Mas de onde veio a ignorância? Ela surgiu daquele próprio estado básico,
assim como uma ilusão. Toda a elaborada estrutura do ego e do mundo samsárico de
alguma forma se desenvolveu sem qualquer realidade própria, como em um sonho.
Portanto, tudo o que somos os componentes de nossa existência mundana podem ser
vistos potencialmente como componentes da iluminação. No vajrayana, a iluminação é
prefigurada como tendo cinco aspectos: os cinco modos do conhecimento primordial,
transcendente, personificado nos budas das cinco famílias (ver Capítulo Sete). Os
tantras mais elevados sequer falam em termos de potencialidade ou transformação,
mas de identidade completa. O Guhyasamaja Tantra, por exemplo, simplesmente
afirma que os cinco skandhas são os cinco budas.

Em Liberação através da audição, os budas das cinco famílias aparecem durante


o bardo do dharmata, que significa literalmente a qualidade de dharma, a
“dharmidade”, a natureza essencial de todos os dharmas. Raios brilhantes de luz
refulgem de seus corações, que são identificados como as luzes dos cinco skandhas
puros. O significado das cinco famílias é explicado no próximo capítulo, no qual a
correspondência entre os budas e os skandhas é discutida plenamente, portanto esse
aspecto, embora muito significativo, é mencionado apenas brevemente na seguinte
descrição dos skandhas. Cada um dos cinco skandhas tem também uma associação

33
Ver Shenpen Hookham, The Buddha Within, Albany, SUNY, 1991

98
particular com um dos cinco grandes elementos. Isso significa que existe uma conexão
entre os cinco devas (que são a essência dos elementos) e os cinco budas (que são a
essência dos skandhas), mas eles nem sempre se correspondem da maneira que se
esperaria. Esse aspecto, também, é deixado para mais tarde (ver Capítulos Nove e
Doze), quando seus inter-relacionamentos às vezes complexos irão fazer mais sentido.

FORMA

O primeiro skandha é a forma. Normalmente, forma quer dizer aparência, o


formato e a cor de alguma coisa; em outras palavras, o que quer que seja visível ao
olho. Mas aqui esse sentido é estendido para significar tudo que possa ser percebido
por qualquer um dos cinco sentidos, incluindo o próprio corpo de cada um, assim
como o ambiente. A forma é dividida em 11 dharmas. Os primeiros dez representam a
atividade dos cinco sentidos: estes são as cinco faculdades de visão, audição, olfato,
paladar e tato; e os cinco campos de operação, tudo que possa ser visto, ouvido,
farejado, saboreado e tocado (ou sentido, por exemplo, dentro do corpo). Esses dez
dharmas são derivados das combinações dos elementos de terra, água, fogo e ar,
todos contidos dentro do elemento do espaço. Como vimos no capítulo precedente,
nossos sentidos subjetivos e o mundo objetivo exterior são ambos compostos das
mesmas qualidades elementares, e é por causa dessa origem partilhada que são
capazes de interagir uns com os outros. Experimentamos o mundo do modo como o
fazemos, por causa do que somos; somos feitos deste mundo particular, e ele é feito
de nós.

O skandha da forma se refere a essa interface, a esfera de relacionamento entre


sujeito e objeto, não em relação à matéria ou à existência material em si. A forma é
muito básica e clara: apenas contato simples e direto entre os sentidos e seus objetos,
sem interpretações, reações ou ideias preconcebidas. Ainda não é percepção, mas sem
o fundamento da forma a percepção completa não poderia se desenvolver. A forma é
o nosso sentido fundamental de existência neste mundo, nossa experiência de nós
mesmos como corpos e dos fenômenos externos como objetos.

O décimo primeiro dharma dentro deste skandha é um tipo sutil de forma


chamada de o imanifesto. Ele pode aparecer na mente em sonhos, visões e
visualizações, ou pode ser um registro invisível criado pela meditação ou por
pensamentos e intenções repetidos. Também inclui uma forma especial feita por votos
e promessas solenes que criam um padrão na mente. Um voto modifica a
personalidade, produzindo mudanças no comportamento e algumas vezes até
mudanças físicas, portanto pode-se dizer que ele possui uma forma só sua. Votos
religiosos são vistos no budismo como objetos sagrados que são dados e recebidos. Se

99
alguém não deseja mais permanecer comprometido com um voto, deve ser dado de
volta pelo que o recebeu, não simplesmente ser negligenciado e esquecido. Pragas são
igualmente poderosas e, se não são realizadas, devem ser devidamente reinvocadas e
dispensadas, como lixo tóxico, ou continuarão a fazer mal.

A forma corresponde ao elemento terra; ela fornece o terreno básico para a


operação dos outros skandhas. Como a terra, a forma parece ser sólida e duradoura,
mas na realidade é impermanente e destrutível. O Buda disse que, quando é
examinada, ela parece ser cheia de buracos e rachaduras, ou como uma massa
evanescente de bolhas. Mesmo no nível puramente físico, sabemos que as coisas não
são o que parecem. Uma mesa de aparência sólida não é nada mais do que uma
coleção de partículas atômicas. O universo aparentemente substancial é na realidade
uma dança de energia no espaço vazio.

Psicologicamente, a forma é o fundamento para o desenvolvimento do ego. É


uma expressão da nossa convicção de que realmente existimos. Nós nos percebemos
como separados por causa da divisão entre os sentidos e seus objetos. Pensamos que
somos reais e sólidos porque temos corpos, e pensamos que o mundo é real e sólido
por causa dos sentidos. Fundamentamos todas as nossas vidas nessa convicção, que é
em última instância uma ilusão. A forma surge da falta de percepção fundamental; ela
é o primeiro passo na direção de solidificar a abertura e a percepção do espaço. A
forma e o ego criam-se mutuamente e sustentam um ao outro.

Toda essa experiência de vida baseada no ego, autocentrada, é o que chamamos


de samsara. Mesmo assim, do ponto de vista definitivo, não existe distinção entre
samsara e iluminação. É possível, mesmo nesta vida, entrar em um estado no qual a
forma se torna uma experiência de pura presença, livre da identificação com o corpo
ou de apego a ele. Então a dança espontânea da energia é revelada em todo o seu
esplendor natural.

Na linguagem do vajrayana, os skandhas são realmente os cinco budas, que


expressam as diferentes qualidades do estado desperto. Portanto, para a mente
desperta, a forma aparece como o Buda Akshobhya, o Inabalável. Sua família é
chamada de Vajra, o raio-diamante indestrutível. Nele, a falsa identificação com a
solidez ilusória da forma é transmutada em ser genuíno, inabalável e indestrutível,
porque sua essência é vazio e ausência do ser. Nada poderia ser perturbado ou
destruído. Akshobhya incorpora um aspecto da iluminação que é comparável a um
espelho. Em um espelho, todas as formas são refletidas clara e precisamente; elas
parecem ser reais, embora não sejam, e o próprio espelho não é afetado pelas
imagens que reflete. É assim que deveríamos ver o skandha da forma.

100
SENTIMENTO

O segundo skandha é o sentimento, nossa resposta imediata às impressões dos


sentidos fornecidas pela forma. Sentir é tanto físico quanto emocional, mas nesse nível
é muito simples, direto e descomplicado — apenas uma reação instintiva que pode ser
positiva, negativa ou neutra. Assim que recebemos qualquer tipo de estímulo,
sentimos prazer, dor ou neutralidade, e junto com essa reação resulta um sentimento
emocional de felicidade, tristeza ou indiferença. Eles não são necessariamente
correspondentes nessa ordem. Algumas vezes é possível sentir-se alegre mesmo
quando estamos sob dor física ou triste na presença de sensações prazerosas. O
sentimento que surge entre os dois, que não é nem prazer nem dor, pode ser confusão
— não estar bem seguros do que sentimos — ou pode ser indiferença, como resultado
de apatia e insensibilidade.

Esses sentimentos não são emoções plenamente desenvolvidas; são tão básicos
que são quase inconscientes, embora estejam se manifestando todo o tempo,
formando o pano de fundo de pensamentos e ações. Se olharmos com cuidado,
podemos ver como nossa ligação automática ou nosso desagrado pelas pessoas,
situações e ideias nos influenciam continuamente. Depois do primeiro skandha, o
sentir é um passo adiante no desenvolvimento da dualidade, que fortalece o sentido
do ego em relação ao ambiente que o rodeia. A distinção entre sujeito e objeto parece
imediatamente mais real e válida. Mesmo em um nível tão simples, sentimentos são
muito importantes para nós; parecem provar nossa existência. Porque temos uma
reação ao mundo exterior, devemos ser reais e o mundo deve ser real.
Instintivamente, queremos nos apegar às sensações prazerosas e evitar as
desagradáveis, portanto apego e aversão começam a crescer. Descobrimos que o ego
pode usar qualquer tipo de sentimento, mesmo a dor, para reforçar o sentido de sua
própria importância. Essa é a forma de apego mais arraigada: não é apenas uma busca
pela felicidade, mas apego à nossa própria identidade.

Sentimentos podem parecer reais e significativos, mas com discernimento, serão


vistos como vazios e transitórios. São comparados à espuma no mar, que desaparece
tão súbita e rapidamente quanto aparece, ou ao voo de uma flecha entrando em nosso
campo de visão e desaparecendo em um instante. O sentimento é associado com o
elemento água. Ele tem a qualidade líquida da água, fluente e mutável. É afetado por
toda impressão nova, assim como a água absorve as cores e sabores de tudo o que
encontra.

Por meio da compreensão da natureza vazia e transitória do sentimento,


desenvolvemos tranquilidade e equanimidade. Por baixo do constante puxa e empurra
das simpatias e antipatias, existe uma essência subjacente da mente que permanece a
mesma em todas as experiências. Essa é a qualidade especial do Buda Ratnasambhava,

101
o Nascido como uma Joia. Sua família é chamada Ratna, a joia preciosa da nossa
natureza desperta. Ratnasambhava não precisa reagir com apego ou aversão de forma
a se afirmar ou ser afirmado de sua própria existência; ele possui completa confiança
no valor e na riqueza do sentir genuíno, portanto pode se dar ao luxo de ser equitativo
e imparcial com todos.

PERCEPÇÃO

O terceiro skandha é a percepção. Neste estágio, o ato de saber entra em cena,


assim ele é às vezes, e falando de maneira estrita, mais precisamente chamado de
“conhecer” ou “reconhecer”. A mente é considerada nossa sexta faculdade dos
sentidos. Ela coordena tudo; identifica as impressões e os sentimentos que elas
estimulam e as relaciona de volta com o órgão dos sentidos apropriado. Identifica
objetos e os diferencia uns dos outros; reconhece-os e os nomeia. O skandha da
percepção portanto torna possível rotular as experiências e expressá-las em
pensamentos e palavras. Na verdade, ele completa o processo de percepção posto em
movimento pelos dois primeiros skandhas, da forma e do sentir.

Quando olhamos para algo indistinto e não podemos muito bem definir o que é,
existe um momento de incerteza e de confusão; embora possamos ver o objeto
fisicamente, nossa percepção dele é incompleta. Forçamos os olhos para vê-lo mais
claramente, e, uma vez que percebamos o que ele é, nossa visão na verdade parece
melhorar; agora sabemos o que devemos estar vendo, portanto somos capazes de
percebê-lo adequadamente. Isso é um exemplo de como a percepção trabalha como
parte de uma experiência completa. A memória está ligada com a percepção, mas
neste caso o objeto está dentro da mente; a percepção toma nota do objeto e se
lembra dele. Sentimos como se estivéssemos vivendo no passado quando nos
lembramos, mas a memória em si está na verdade no presente; sempre é um novo
momento de percepção, literalmente um “re-conhecer”.

A própria qualidade de saber, que é inerente à percepção, intensifica o sentido


de individualidade separada. Ela cria um ponto de referência centralizado, de tal forma
que a dualidade entre sujeito e objeto é fortalecida. Percepção é um processo de mão
dupla de comunicação. De um ponto de vista comum, ela fornece uma ligação entre
sujeito e objeto, conectando o observador com o mundo externo. Mas de um ponto de
vista absoluto, no qual nunca houve divisão entre o ser e o outro, a percepção os
separa e enfatiza a lacuna entre eles. Assim, contribui para o desenvolvimento do ego.

A percepção é tradicionalmente definida como a mente perseguindo seus


objetos. Está relacionada ao elemento fogo, que se estende com suas chamas como
línguas famintas, alcançando e consumindo. O fogo também ilumina, assim como faz o

102
conhecimento. E assim como as chamas se dissolvem no ar tênue, as percepções
parecem reais, no entanto não se pode pegá-las nem contê-las. A percepção é
comparável a uma miragem, quando um viajante sedento vê um lago no deserto, mas
é apenas uma ilusão criada pela mente a partir de um intenso desejo por água.

A percepção purificada se manifesta como Buda Amitabha, a Luz Infinita. No


pensamento indiano, conhecimento e percepção sempre estiveram equiparados à luz.
A mente brilha espontaneamente com sua própria radiância, iluminando seus objetos.
Ser percebido é brilhar na luz da consciência. A consciência iluminada de Amitabha
olha profundamente em direção a cada objeto dentro do campo ilimitado de sua
percepção, reconhecendo e apreciando suas qualidades particulares. Esse tipo de
saber une o sujeito e o objeto, em vez de separá-los um do outro. A energia pura da
percepção dissolve as fronteiras em uma unidade transcendente de observador e
observado.

CONDICIONAMENTO

A palavra sânscrita samskara, o quarto skandha, tem sido traduzida de muitas


formas diferentes; parece não haver uma única palavra que seja inteiramente
adequada ou conveniente. Eu me deparei com as seguintes traduções: pensamentos,
intelecto, conceito, eventos mentais, ocorrências mentais, fatores mentais, formações
mentais, construções mentais, volição, intenção, motivação, impulsos, forças,
condições, atividades, predisposições e tendências habituais. Aqui proponho o uso de
“condicionamento”, que parece expressar seu significado global, especialmente
porque a palavra em questão samskrita é muitas vezes traduzida como “condicionado”

O condicionamento é o maior grupo entre os cinco skandhas, contendo muitos


elementos ou fatores diferentes. De uma maneira muito genérica, ele pode ser levado
a representar a totalidade de tudo o que surge na mente, assim como os dharmas
podem, grosso modo, serem levados a significar todos os fenômenos. Desse ponto de
vista, Trungpa Rinpoche usou “intelecto” em seu livro Glimpses of Abhidharma, e no
Livro tibetano dos mortos nós usamos “conceito”34. Entretanto, esses fatores
condicionadores não se referem realmente a todos os pensamentos e atividades
discursivas da mente. São tipos específicos de estados mentais causadores, dando
origem às nossas visões, emoções e ideias características, que por seu turno, são as
causas de nossas ações. Eles existem na corrente mental como predisposições
latentes, mais do que como pensamentos ou conceitos plenamente desenvolvidos.
Embora possuamos todas essas tendências inerentes, alguns deles se tornam
fortalecidos através do surgimento repetido, enquanto outros raramente aparecem,

34
Chögyam Trungpa, Glimpses of Abhidharma, Boston, Shambhala, 1975.

103
portanto criando as diferenças entre as pessoas. Estão intimamente conectados com o
caráter: com a ajuda deste skandha, o ego se expande para se tornar uma
personalidade em pleno desenvolvimento.

A coisa mais significativa sobre esses estados mentais particulares é que eles
levam à ação, que é o significado literal de karma. Podem ser vistos coletivamente
como impulsos motivadores, porque colocam em movimento a corrente kármica de
causa e efeito. São como os motores dirigindo o mecanismo do karma. Todas as
atividades do corpo, fala e mente — nossos feitos, palavras e pensamentos
manifestados —, surgem deste skandha. São gatilhos kármicos. A palavra samskara
transmite as ideias de construção e conclusão: ela completa o processo de reagir e
perceber, e constrói a versão de cada pessoa da realidade. Também cria um sentido de
artificialidade; é uma alteração do estado natural da mente.

Existem diferentes listas de fatores condicionadores entre as várias escolas


filosóficas budistas. No vajrayana, diz-se que são 51 ou 52 deles, algumas vezes
arredondados para baixo para cinquenta em textos descrevendo a iconografia de
certas deidades. Muitas das deidades tântricas usam guirlandas de crânios ou cabeças
cortadas que simbolizam os fatores condicionadores em sua natureza purificada. Cada
uma é como um “eu” separado, algumas vezes assumindo o controle completamente,
algumas vezes aquietando-se em segundo plano, mas se olharmos de perto para elas
descobrimos que não existe ser unificador entre elas: nenhuma delas é “eu mesmo’’
Portanto, quando são cuidadosamente levadas a cabo e despidas de sua realidade
aparente, esses egos fragmentados perdem sua vitalidade e tornam-se apenas
guirlandas de crânios que a pessoa desperta usa como adorno.

Para o nosso propósito aqui, será suficiente entender essa definição geral de
condicionamento, mas alguns leitores podem estar interessados em olhar a tradicional
lista de fatores em maiores detalhes. Alguns são sempre encontrados juntos, enquanto
outros são mutuamente excludentes. Eles aparecem e desaparecem de momento a
momento, formando continuamente novas combinações.

Os cinco primeiros são intenção, atenção, contato, sentimento e percepção. Eles


são sempre ativados na corrente da mente, não importa o que estejamos pensando,
sentindo ou fazendo. O mais importante deles é a intenção, definida como o primeiro
movimento da mente em direção a um objeto. Não é necessariamente deliberado ou
plenamente cônscio, mas se examinarmos com cuidado nossas mentes, podemos
muitas vezes descobrir motivações ocultas das quais não temos consciência na maior
parte do tempo. Contudo, sua presença indica que a mente está sempre ocupada com
uma coisa ou outra, e portanto com frequência criando causas kármicas. Karma
depende de intenção; se não existe intenção, não haverá resultado kármico, mas a
própria intenção situa-se muito mais profundamente do que supomos. Os próximos
dois fatores são atenção e contato, nos quais a mente se foca e em seguida se conecta

104
com seu objeto. Contato é o equivalente ao primeiro skandha, forma, que é o contato
da faculdade dos sentidos com o campo dos sentidos. Em seguida vêm sentimento e
percepção, equivalentes ao segundo e terceiro skandhas, que já foram descritos.
Embora estejam contidos dentro deste skandha, são também tratados como skandhas
separados por si só, porque marcam estágios tão significativos no desenvolvimento da
experiência total.

Os próximos cinco fatores também estão sempre presentes, mas em graus


diferentes, portanto sua força ou fraqueza relativa determina a qualidade de cada
atividade mental. Eles são desejo, decisão, cuidado, concentração e entendimento.
Desejo é o elemento de atração pelo qual a mente é fortemente atraída em direção a
algo; pode ser por assuntos mundanos, ou pode ser pela iluminação e em benefício
dos outros. Decisão é a aplicação firme da mente. Pode também significar devoção e
confiança; poderíamos dizer que a mente é devotada ao objeto e se confia a ele.
Cuidado é trazer a mente repetidamente de volta ao seu objeto, e é a base da
meditação. Concentração é mais completo do que cuidado, é a absorção da mente em
seu objeto; entendimento é o conhecimento direto resultante dessa absorção. As
palavras sânscritas para as duas últimas formações mentais são samadhi e prajna, que
podem também se referir aos estados mais elevados de meditação e sabedoria.
Portanto, a potencialidade para sua realização está sempre presente na corrente da
nossa mente desde o início, embora em nossa condição comum elas existam apenas
como versões muito fracas da concentração e do entendimento. Contudo, sem elas
nenhuma atividade mental e nenhuma ação corporal seriam possíveis.

Em seguida vêm os 11 fatores condicionadores classificados como positivos e


proveitosos. É muito difícil encontrar uma única palavra em inglês que transmita o
significado desses estados mentais, por isso diversas palavras ou uma paráfrase possa
ser necessária. Eles são (sem ordem fixa): fé, que é uma combinação de crença e
confiança; vigilância sobre os estados mentais de alguém; um sentido de facilidade e
harmonia no corpo e na mente, como resultado de treino meticuloso; equanimidade;
vergonha inspirada pela consciência; medo das consequências de má ação; uma
combinação de coragem, entusiasmo e energia; desapego; ausência de ódio; ausência
de confusão; e não-violência.

Existem 26 fatores negativos e inúteis: ignorância e ilusão; desejo e apego; ódio;


orgulho; dúvida e incerteza; falsa crença nos extremos ou da permanência ou da
aniquilação do ser; raiva; contínua inimizade ou ressentimento; fúria abrasiva;
violência ou intenção de prejudicar; inveja; falsidade; hipocrisia ao fingir possuir boas
qualidades; desprezo e ocultação das boas qualidades dos outros; falta de vergonha;
falta de medo das consequências; avareza e egoísmo; vaidade e narcisismo; ausência
de fé e confiança; negligência sobre aceitar o que é bom e rejeitar o que é mau;

105
preguiça; ausência de cuidado; inabilidade para aplicar sua compreensão à vida,
resultante da falta de cuidado; inércia mental; inquietação mental; e desordem.

Finalmente, existem quatro neutros, que podem ser proveitosos ou prejudiciais,


dependendo de como se combinem com os outros. O primeiro deles é o sono, que
pode ser sono real ou sonolência, e que é apropriado ou inoportuno, dependendo de
tempo e lugar. O seguinte é o arrependimento, que pode se manifestar como remorso
genuíno por fazer o mal ou como culpa e preocupação inúteis. Os dois últimos
fornecem uma análise do processo de pensamento: primeiro, conjectura, que é o
movimento inicial ou lampejo de pensamento, fazendo uma conexão, mas ainda
buscando e incerto; em seguida, reflexão, pensamento seguro no qual a mente se
estabelece em seu objeto, examina-o e adquire conhecimento sobre ele.

Essa lista não representa o que consideraríamos comumente toda a série de


tendências humanas. Os fatores condicionadores tradicionais são realmente apenas os
materiais básicos para nossas emoções e padrões de pensamento mais complexos.
Algumas das antigas escolas budistas possuem listas ainda maiores, seguindo linhas
similares. Elas foram compiladas depois da morte do Buda de memória por seus
discípulos, a partir de tópicos que ele mencionara como sendo relevantes para seus
exercícios. Acima de tudo, os fatores foram especificamente identificados como sendo
ajudas ou obstáculos no caminho; estão relacionados com o desenvolvimento ou
detrimento da percepção meditativa e da conduta virtuosa.

Quando investigamos este skandha e nos conscientizamos de seu nível de


funcionamento dentro de nós, começamos a perceber em que extensão somos
programados e como todos estes fatores pré-condicionados e interdependentes
determinam nosso comportamento. Os detalhes da análise não são vistos como
particularmente importantes no vajrayana, mas é extremamente importante estar
ciente do princípio de condicionamento. Uma vez que comecemos a perceber essas
forças em funcionamento, podemos sentir que são muito significativas em nossas
vidas, que elas constroem nosso caráter e são essenciais para nossa identidade; mas
olhar dentro delas para descobrir sua realidade é como perceber que não existe nada
sólido por dentro. A imagem tradicional deste skandha é a bananeira. As folhas da
bananeira crescem direto do caule em bainhas, mais como um gigantesco alho-poró, e
não importa quantas camadas você retire, nunca chega ao núcleo central.

O condicionamento está associado com o ar, o elemento de movimento e


atividade. Ele forma o brotar da ação, as causas do karma, portanto quando é
purificado, sua essência é revelada como a realização sem esforço de todas as ações.
Essa é a qualidade especial do Buda Amoghasiddhi, Sucesso Infalível, que é o senhor da
família do Karma ou Ação. Sua atividade iluminada não se origina da confusão;
portanto não dá origem a causa e efeito kármicos. Ela surge espontaneamente de sua

106
inseparável sabedoria e compaixão. Isso é energia pura, dinâmica, não mais distorcida
por ignorância e não mais dando origem a nenhuma outra ilusão.

CONSCIÊNCIA

O quinto e último skandha é a consciência, vijnana em sânscrito. Consciência é


aquilo que sabe ou experimenta. Não implica uma consciência mais elevada ou
desperta; que é expressa pela palavra jnana. O prefixo vi em vijnana indica divisão e
separação: vijnana é consciência dividida, dualista. Não é mais total, mas limitada e
fragmentada; é separada de seu original, primordial de conhecimento não-dual e se
tornou a consciência comum da vida diária. Em alguns casos, vi pode indicar até
mesmo negação da palavra em que funciona como prefixo. Metaforicamente,
podemos dizer de verdade que a consciência comum é inconsciência, comparada com
o genuíno despertar de jnana. Sempre que falemos de consciência em psicologia
budista, ela se refere a todas as funções da mente não iluminada, incluindo o que a
psicologia ocidental chama de subconsciente ou inconsciente. Dizemos que estamos
inconscientes durante o sono ou em coma; mas a mente samsárica subjacente ainda
está ativa nesses estados, portanto ainda é categorizada como vijnana.

A consciência possui oito aspectos. Os seis primeiros operam através dos seis
sentidos. Todos os skandhas são interdependentes, e a consciência os permeia a
todos; nenhum deles poderia funcionar sem a presença da consciência, portanto ela já
é inerente mesmo no primeiro, o skandha da forma. Forma é a simples existência dos
sentidos e seus objetos; a consciência os traz à vida, por assim dizer. De sua parte, a
consciência se apoia em todos os outros skandhas para poder operar. Não é uma
entidade fixa nem algum estado abstrato de pura consciência, mas um processo
impermanente, mutável, dinâmico. Os seis primeiros aspectos deste skandha são a
consciência da visão, a consciência da audição, a consciência do olfato, a consciência
do paladar, a consciência do tato e a consciência da mente. Esta última é equivalente à
mente racional. Ela coordena a informação dos outros sentidos e experimenta
pensamentos e sentimentos. Tudo que chega através dos sentidos vindo de fora e
todas as ideias e emoções que surgem de dentro chegam a nós como imagens mentais
e servem como objetos da consciência mental. Esses seis primeiros tipos de
consciência estão no nível da vida em vigília.

O sétimo aspecto é chamado de a consciência mental afligida ou impura, e é


responsável pelo nosso sentido de ser. Trungpa Rinpoche a chamava de “a mente
nebulosa”, porque está nublada pela ignorância, a aflição emocional fundamental.
Aflição, ou klesha em sânscrito, quer dizer literalmente “uma dor”, alguma coisa que
nos dói ou atormenta. É a dor de não conhecer nosso ser verdadeiro, indestrutível e

107
desperto. Essa ignorância permeia a consciência dos seis sentidos, de tal forma que
todas as nossas percepções são imediatamente influenciadas pela confusão. Essa
mente nublada é o nível dos sonhos, das memórias, das imagens subconscientes e da
confusa corrente subterrânea dos pensamentos. Age também como ligação entre as
primeiras seis consciências e a oitava, que é a consciência original, ou “o armazém dos
pontos de referência”, como Trungpa Rinpoche a chamava. A sétima consciência olha
em ambas as direções. Ela manda mensagens dos sentidos e da faculdade mental para
serem mantidos nos bancos de memória do armazém, e as traz de volta para a
superfície quando quer que sejam necessárias na vida em vigília. Fornece acesso à
vasta biblioteca de informação que cada um de nós possui, que está em constante
processamento e utilização enquanto seguimos em nossas vidas diárias.

A oitava consciência é a base das outras sete. Ela guarda os registros deixados
pelas experiências passadas, que em retorno tornam-se as sementes das experiências
futuras. Mas é difusa e indiferenciada; nem mesmo é dependente deste corpo e desta
vida em particular. É potencialmente um sentido de ser, mas não um indivíduo
plenamente formado. Carrega a continuidade dos efeitos kármicos de uma vida para a
próxima, e cria um corpo mental durante o bardo entre a morte e o renascimento. De
algumas formas, corresponde ao nosso conceito de mente inconsciente, mas é
entretanto chamada de consciência porque está sempre presente e potencialmente
consciente, mesmo em coma ou em sono profundo. Onde quer que haja mente,
haverá consciência, os dois termos são usados de forma intercambiável. Mente ou
consciência está muito intimamente ligada com prana, a força da vida; é equivalente à
própria vida, porque ainda estamos vivos, enquanto o prana e a mente ainda não
deixaram o corpo, mesmo quando estamos aparentemente “inconscientes”. Através
da meditação, torna-se finalmente possível penetrar nesse nível e transformar a
consciência comum (vijnana) em conhecimento puro e não-dual (jnana).

Podemos também olhar para os oito aspectos da consciência em ordem reversa


para ver como eles dão origem ao sentido de ser. A oitava é a fonte, contendo a
semente latente do desenvolvimento do ego; é como o útero do ego. A sétima é o
nascimento do ego por causa da ignorância de sua própria natureza verdadeira; aqui a
semente se agita em direção à vida e se torna um broto. Finalmente, o broto cresce
para ser uma planta plenamente desenvolvida com a consciência mental como seu
caule, enquanto as cinco consciências dos sentidos são suas folhas e flores, brotando
do caule e se comunicando com o ambiente. A planta no seu todo é permeada pelo
sabor do “eu, mim, meu”. No nível básico da oitava consciência, o ego é apenas um
potencial, do sétimo em diante está presente em toda a experiência. É difícil até
mesmo imaginar a consciência sem um ego. Sentimos que sermos conscientes não
implica de modo algum, automaticamente, estarmos conscientes de algo além de nós
mesmos. Isso acontece por estarmos tão acostumados a pensar em termos de
dualidade, com nossa consciência dividida.

108
Mas consciência é exatamente igual a um show de mágicas: quando olhamos
com cuidado, nada está lá e nada realmente aconteceu. Existe apenas uma peça
mágica de aparências, uma dança entre um observador imaginário e um fenômeno
imaginado. Outra analogia é uma bola de cristal, clara e transparente por si só, mas
aparentando assumir todas as várias cores que a rodeiam.

A consciência partilha as qualidades do quinto elemento, o espaço. Como o


espaço, ela é a mais sutil das cinco e permeia todas elas. É a primeira e a última, sua
fonte e sua culminação. A consciência é luminosa. Em essência, ela é o Buda
Vairochana, o Iluminador. Ele incorpora o conhecimento da totalidade, a dimensão
toda abrangente da verdade, a esfera de todos os fenômenos como eles realmente
são. A consciência se expande ao infinito, não mais autocentrada, porque a distinção
entre sujeito e objeto é transcendida. Isso não é algum sentimento vagamente
oceânico, mas um saber vivido, preciso e direto das coisas em sua verdadeira natureza.
É a mágica genuína do ser sem ser, experimentando as características do oitavo
aspecto de uma maneira completamente aberta e ilimitada. Esse tipo de consciência é
simbolizada pelo círculo do oitavo bodhisattva masculino e o oitavo bodhisattva
feminino, que também aparecem durante as visões do bardo. Os bodhisattvas
masculinos incorporam os oito tipos de consciência e os bodhisattvas femininos
incorporam seus respectivos objetos de consciência. Eles dançam juntos, desfrutando
do jogo de encontro e separação, contudo sempre plenamente cientes de sua unidade
essencial.

O Sutra do coração, a essência dos Sutras da perfeição da sabedoria descreve


como o bodhisattva Avalokiteshvara olhou com seu olho da sabedoria para os cinco
skandhas e viu o seu vazio. Ele proclamou que “forma é vazio, no entanto vazio
também é forma”. O mesmo é verdade sobre os outros skandhas: sentimento é vazio e
vazio é sentimento; percepção é vazio e vazio é percepção; condicionamento é vazio e
vazio é condicionamento; consciência é vazio e vazio é consciência.

A natureza essencial dos skandhas é o vazio; eles não possuem realidade própria.
Isso significa que quando meditamos no vazio, podemos nos libertar das atividades e
características grosseiras dos skandhas e interromper o incansável fluir de causa e
efeito que eles criam constantemente. Paramos de nos apegar à nossa ideia habitual
de nós mesmos e relaxamos na amplidão e na claridade do espaço. Quando as
escrituras falam dos budas e bodhisattvas entrando em estado de samadhi e
transmitindo ensinamentos, como no Sutra do coração, eles estão descrevendo
estados de meditação que são acessíveis aos seres humanos. É possível para nós

109
olharmos para o interior de nossa própria natureza verdadeira assim como
Avalokiteshvara o fez.

O que ele viu foi vazio não apenas como uma condição negativa, mas como uma
positiva. O vácuo natural e espontaneamente se manifesta como o universo, com
todos os seus fenômenos maravilhosos e variados. A existência pode não ser real no
sentido que temos sempre imaginado, mas é real em um sentido muito mais
maravilhoso, como o jogo do despertar. Tudo no universo está contido dentro dos
cinco skandhas, e toda expressão de iluminação está contida dentro da natureza dos
cinco budas. O vazio é inseparável da luminosidade, o poder criativo da mente
desperta, e portanto a essência pura dos skandhas aparece como luz radiante
brilhando a partir do coração dos budas.

Os skandhas por si só são neutros: não são algo de que tenhamos que nos
envergonhar ou tentar suprimir. Em qualquer caso, é impossível se livrar deles.
Enquanto estivermos vivos, possuímos os cinco skandhas, mas porque os possuímos
temos também a natureza dos cinco budas. É simplesmente um processo natural.
Enquanto existir um corpo para receber impressões dos sentidos, haverá sentimento,
depois percepção e em seguida elaboração de pensamentos sobre o que foi percebido.
Essas elaborações dão surgimento a um ciclo interminável de pensamentos e ações
subsequentes, de tal forma que nos recriamos continuamente de momento a
momento. A prática da meditação possibilita que nos tornemos desemaranhados do
processo como um todo, e paremos de os identificar e nos envolver com ele. Podemos
simplesmente observar o que quer que surja na mente sem nos sentirmos orgulhosos
dos bons estados mentais ou deprimidos pelos maus. Na meditação, simplesmente
lidamos com a energia básica dos skandhas, que é liberada para se manifestar como
padrões de consciência em vez de confusão. Não precisamos temer a perda de nossos
“eus” transitórios e ilusórios. Mesmo um homem ou mulher plenamente desperto
ainda possui um sentido de identidade pessoal e em geral irradia uma personalidade
muito poderosa.

Nossa existência física, sensações, percepções, condicionamentos e todos os


conteúdos da nossa consciência constroem o retrato de quem somos. Agarramo-nos a
esse retrato, temendo a morte e a não-existência. Ao nos identificarmos com os
skandhas na verdade criamos uma nova vida, um novo “eu” a cada momento. Estamos
constantemente formando as condições para nosso renascimento, seja ele na próxima
vida ou aqui e agora. Mesmo quando os skandhas desta vida presente se separam e se
dissolvem na morte, a corrente do karma continua. Ela nunca terminará enquanto nos
auto-identificarmos com os skandhas, enquanto continuarmos a acreditar que
realmente somos este corpo e esta mente.

110
Capítulo Sete

A Exibição do Estado Desperto

NO CORAÇÃO DE Liberação através da audição encontra-se a visão dos cinco


budas, ou, como eles são frequentemente conhecidos, os cinco tathagatas:
Vairochana, Akshobhya, Ratnasambhava, Amitabha e Amoghasiddhi. Eles são as
manifestações personificadas dos diferentes aspectos da iluminação; por meio deles,
podemos nos conectar com nossa natureza de buda intrínseca. O derradeiro estado
desperto — o que realmente significa ser um buda perfeito — é inconcebível e
inexprimível. É como pura luz, que torna tudo visível, mas será ela própria invisível até
que seja refratada através de um prisma e dividida nas cinco cores do arco-íris do
estado desperto.

Em todas as tradições do mundo, a experiência mística, a experiência da


realidade suprema, tem sempre sido descrita em termos de luz. Isso é mais do que
apenas uma metáfora para expressar o inexprimível; percepção espiritual é muitas
vezes experimentada como uma verdadeira inundação da mente com radiância,
algumas vezes mesmo com cores específicas. O som também pode desempenhar um
papel em tais experiências e é muito significativo em Liberação através da audição;
mas acima de tudo, vajrayana é repleto de imagens de luz: tremeluzente, brilhante,
faiscante, deslumbrante; massas de fogo chamejante, anéis de chamas e fagulhas
reluzentes, todo aparecem espontaneamente a partir do vazio, exibindo a natureza da
iluminação. Embora eu prefira “despertar” ou “vigília” à “iluminação”, existe um belo
jogo de palavras em inglês entre “luz” e “iluminação” que não existe em sânscrito ou
tibetano.

Aquilo que torna um buda iluminado ou desperto é jnana, o conhecimento


verdadeiro da realidade. Cada um dos cinco budas representa e incorpora um aspecto
particular desse jnana transcendente. Esses cinco aspectos são muitas vezes
conhecidos em inglês como as cinco sabedorias, mas aqui existe um problema, porque
sabedoria é comumente usada para traduzir uma outra palavra budista, prajna, por
exemplo em frases como “sabedoria e compaixão” ou “a perfeição da sabedoria”.
Tanto jnana quanto prajna incluem tudo o que subentendemos por sabedoria e
conhecimento, entendimento e intuição; no final eles se fundem e no entanto são bem
distintos um do outro. Portanto, embora no sentido geral fosse possível traduzi-los
como sabedoria, é importante ser capaz de distingui-los. Várias outras palavras e

111
frases têm sido apresentadas por tradutores recentemente, mas não acho qualquer
uma delas satisfatória. Tanto em sânscrito quanto em tibetano elas são palavras muito
simples e comuns, e são com frequência usadas em poesia, portanto sinto que não é
apropriado traduzi-las com termos mais obscuros que introduzem um tom muito
diferente.

Quando comecei a trabalhar com Trungpa Rinpoche, decidimos traduzir prajna


como “conhecimento” e jnana como “sabedoria”, pela razão que conhecimento
(prajna) leva à sabedoria (jnana), o estado supremo. Entretanto, agora sinto que
“sabedoria” é mais apropriado para prajna e “conhecimento” é a tradução mais
natural e direta de jnana. Se atentarmos para como as duas palavras são usadas, a
principal diferença entre elas é que o conhecimento possui um objeto ou um
conteúdo, enquanto a sabedoria é uma faculdade ou uma qualidade da mente. Em
qualquer caso, são interdependentes: conhecimento pode levar à sabedoria, mas ao
mesmo tempo, sabedoria é uma precondição para a obtenção do verdadeiro
conhecimento. Embora possam existir separados um do outro em um nível mundano,
são inseparáveis no contexto do conhecimento espiritual, um conhecimento que
transforma a mente e o coração.

Prajna é definido como o estado mental que conhece o vazio. É uma atitude e
uma maneira de ser que resultam da experiência direta do vazio e do não-ser,
portanto a ênfase aqui é mais no aspecto da sabedoria do que no do conhecimento.
Ele possui elementos de discernimento e percepção, e é simbolizado por uma espada
afiada que corta através da dúvida e da ilusão. É uma das seis perfeições ou virtudes
transcendentes. Prajnaparamita, a Perfeição da Sabedoria, é o princípio feminino da
iluminação, a mãe dos budas; ela dá nascimento ao estado de vigilância, cuja natureza
verdadeira é jnana.

Jnana é o supremo conhecimento da verdade, de como tudo realmente é. Um


buda é alguém que sabe, alguém que despertou para a verdade. O conhecimento
supremo de fato tem um objeto, muito embora a distinção entre sujeito e objeto
esteja transcendida. Ele é não-conceitual e não-dual: não-conceitual porque não é o
resultado de um processo de raciocínio, mas de experiência direta, imediata, e não-
dual porque é uma unidade completa com essa experiência, portanto não existe mais
qualquer sentido de um conhecedor ou um experimentador. É um estado de saber, um
“ser conhecimento”, no qual o conhecedor se torna um com aquilo que é conhecido.
Esse conhecimento é inato; tem sempre estado presente dentro de nós desde o início,
mas é obscurecido pela ignorância e pela confusão. Despertar é realmente o
reconhecimento daquilo que já sabemos, que sempre soubemos. Isso é apresentado
na tradução tibetana de jnana, ye shes, que significa literalmente “conhecimento
primordial”. É infinito, sem início ou fim, portanto está sempre fresco e novo; é sempre
conhecimento direto, imediato, no momento presente.

112
As cinco jnanas são cinco maneiras de conhecer a realidade, cada uma revelando
um ponto de vista iluminado diferente. Elas se complementam entre si e juntas
formam um todo perfeito. Não podem ser isoladas umas das outras e, fiéis ao princípio
da interpenetração, que já vimos com os cinco elementos, cada uma contém todas as
cinco dentro de si. Não são apenas atributos que os budas possuem; elas são a
natureza fundamental dos budas. Brilham como a luz das cinco cores: branco, amarelo,
vermelho, verde e azul Já vimos que os cinco skandhas e os cinco elementos são, em
sua essência pura, os cinco budas masculinos e os cinco budas femininos. Agora
encontraremos muitas outras categorias em grupos de cinco que correspondem a elas,
e veremos como seus estilos característicos aparecem, tanto no mundo confuso do
samsara como no reino iluminado.

Já que o todo da existência, tudo sem exceção, surge do estado desperto, tudo é
em última instância uma expressão dos cinco budas e partilha suas características.
Portanto, tudo pertence à família de um dos cinco budas. Seres humanos, todas as
outras criaturas viventes, objetos inanimados, lugares, eventos, atividades, ideias
abstratas, emoções, o que quer que seja imaginado, tudo tem uma afinidade particular
com uma ou mais das famílias. Diz-se na realidade que existe apenas uma família: o
estado final de despertar ao qual todos os seres conscientes pertencem. Mas então,
por causa das diferentes características dos seres, pode-se dizer que existem três
famílias, ou cinco, ou uma centena; se alguém analisa isso ainda mais, existem
incontáveis famílias, tantas quanto o número de todos os seres conscientes que
existem. Todos os tantras mais elevados do vajrayana usam o sistema das cinco
famílias, que cria o padrão típico de mandala com um centro e os quatro pontos
cardeais.

Fundamentalmente, a manifestação dos cinco aspectos do conhecimento é


simplesmente energia, e a energia por si é neutra, mas no mundo do samsara aparece
como os cinco tipos de confusão e negatividade: ilusão, paixão, agressão, orgulho e
inveja. Essas são as cinco aflições, também chamadas impurezas, mas prefiro um outro
sinônimo amplamente usado em tibetano — os cinco venenos. Elas não são nada além
de distorções da energia iluminada, portanto são também incluídas dentro das cinco
famílias. Cada uma delas é a antítese de um dos cinco conhecimentos, e ao mesmo
tempo, seremos capazes de ver quão intimamente estão relacionadas e como a
energia dos venenos é também o terreno básico de onde o conhecimento nasce. O
conhecimento é equiparado a amrita, o elixir da imortalidade, e se diz que a prática do
vajrayana tem o poder de transformar veneno em elixir.

Todo o significado e propósito das cinco famílias é nos acordar para a natureza
de buda inerente em nós, por meio de nossa própria natureza humana. Não apenas
possuímos todas as boas qualidades do coração desperto, podemos até transformar
nossas falhas e tendências negativas em aspectos da iluminação. Na verdade, de

113
acordo com o tantra, o único caminho pelo qual podemos atingir o conhecimento dos
budas é usando a energia dos cinco venenos. Tornar-se familiar com o sistema das
famílias pode nos ajudar a fazer conexões entre os reinos da confusão e da
consciência, à medida que vamos percebendo que cada aspecto do corpo, da mente e
do ambiente é em essência uma expressão dos cinco princípios da natureza de buda.

A arena na qual a transformação acontece é a mandala35. Uma mandala é a


moradia dos budas; é o seu mundo e o seu ambiente. Dentro desse mundo, tudo é
uma expressão do pleno despertar e um lembrete para o despertar. Todas as cores
que são vistas são os raios do conhecimento; todos os sons que são ouvidos são a
proclamação natural do dharma; se fôssemos comer o fruto das árvores que crescem
lá, eles teria o sabor da suprema bem-aventurança. Os corpos das deidades, as
paredes dos palácios, as árvores, as pedras, a água e o que quer que possa ser
encontrado lá, nada é sólido e substancial, mas aparece como se fosse feito de luz do
arco-íris.

A palavra mandala significa literalmente “circular”, e tem muitas aplicações,


literais e metafóricas, semelhante ao nosso uso de palavras como círculo, ciclo, órbita,
anel e esfera. O círculo é uma imagem universal que sugere totalidade e conclusão;
esta visão de uma totalidade toda abrangente se encontra no centro de sua função no
budismo. Pictoricamente, ela não precisa necessariamente ser um círculo. Algumas
vezes pode apenas se referir à arrumação das deidades ou seus símbolos ao redor de
uma figura central. Muitas vezes as deidades são colocadas dentro de um palácio
quadrado com quatro portões, que também é conhecido como mandala. As formas
geométricas que simbolizam os quatro elementos são chamadas mandalas; elas são a
moradia dos cinco devas, que são a sua essência.

A mandala é muito mais do que uma imagem pintada ou visualizada para ser
usada na meditação; é um princípio que se aplica a todas as áreas da vida. O conceito
de mandala é muito simples, é algo com o qual estamos muito familiarizados quando
utilizamos palavras como círculo ou esfera, metaforicamente. Falamos do círculo da
família e do círculo de amigos seguidores; esferas de interesse, atividade e influência;
as esferas mental e física; e assim por diante. Em termos budistas, nosso ambiente,
nossos corpos e nossas mentes são todos mandalas. Podemos pensar em uma
mandala em qualquer escala, por exemplo, as mandalas da casa, da vizinhança, do país
ou de toda a raça humana. Qualquer área de relacionamento constitui uma mandala.
Quando pensamos em qualquer grupo de pessoas, coisas ou mesmo conceitos em
relação a um foco central, isso pode ser expressado em termos de uma mandala. Cada
um de nós ocupa o centro de nossa mandala pessoal de amigos, família, colegas e de

35
Chögyam Trungpa, Orderly Chaos, Boston, Shambhala, 1991, lida particularmente com o princípio da
mandala. Ensinamentos tanto sobre o princípio da mandala e sobre as cinco famílias são encontrados
em muitos dos seus livros.

114
fato todo mundo com quem já estivemos em contato. Ao mesmo tempo, somos cada
um parte de inumeráveis outras mandalas: padrões de relacionamento nos quais
existe um fluir incessante de energia e comunicação, indo e vindo, entre o centro e a
periferia. A mandala do guru e os discípulos é particularmente importante no
vajrayana. Esses padrões de relacionamento, conforme ocorrem na vida diária, são
imprevisíveis e desordenados. Algumas vezes funcionam e outras não, mas em geral
não temos muito controle sobre eles ou muita consciência do que está realmente
acontecendo dentro deles. A mandala das deidades, por outro lado, surge de um
estado de perfeição e harmonia naturais, refletido no arranjo formal das pinturas e
estruturas da mandala.

2/março/21 O princípio da mandala aponta o caminho para transmutar os padrões confusos


do samsara nos padrões harmoniosos da iluminação. Vimos que os cinco skandhas são
em essência os cinco budas, e os cinco elementos são em essência os cinco devas.
Embora do ponto de vista definitivo estejam inseparavelmente unidos, do nosso ponto
de vista, parece haver um processo de mudança, uma transformação da mandala
samsárica dos skandhas, dos venenos, e dos elementos grosseiros na mandala do
estado desperto. Isso não é de forma alguma uma imposição forçada de ordem ou
uma supressão do livre fluir da energia, mas sim uma descoberta da ordem oculta que
habita o coração do caos e da confusão. Caos contém uma energia enorme — é o
material bruto da criatividade —, mas é a própria confusão que obstrui a expressão de
seu poder criativo. O segredo da mandala é tocar nessa energia bruta e caótica e
transformá-la através da consciência para revelar sua natureza inerente.

Existem muitos tipos diferentes de mandalas no budismo. Durante o bardo do


dharmata, os cinco budas aparecem cada um no centro de suas próprias mandalas,
junto com o seu consorte deva e seus filhos e filhas, os oito bodhisattvas. Eles também
aparecem juntos em uma grande mandala que contém todas as deidades pacíficas,
seguida pela mandala das deidades coléricas, que são a mais extrema expressão de sua
energia irresistível. Em seguida vou descrever o arranjo simples e básico da mandala
dos cinco budas, junto com as categorias quíntuplas mais importantes que
correspondem a eles. (Os cinco devas não serão trazidos a este ponto por causa de
certas inconsistências, que podem ser mais bem explicadas mais tarde. Elas e os oito
bodhisattvas aparecem no Capítulo Doze.)

Uma das categorias consiste na divisão quíntupla em corpo, fala, mente,


qualidade e atividade. Isso se aplica a todo aspecto da existência: budas, seres viventes
comuns e o todo da natureza. Os três primeiros — corpo, fala e mente — são
explicados em maior extensão no Capítulo Nove. Resumidamente, o corpo
corresponde à forma material ou aparência visível de qualquer coisa; fala é a
expressão da energia e da comunicação; e mente é a essência sem forma, vazia.
Qualidade é a totalidade de características; no caso dos budas, refere-se a todas as

115
virtudes iluminadas, tais como sabedoria e compaixão. Atividade é a forma como cada
coisa efetivamente funciona; os budas desempenham ações iluminadas por meio das
quatro atividades indestrutíveis.

A mandala quíntupla básica é fundamental para todas as práticas tântricas.


Nessas práticas, o meditante se identifica com a deidade central e emana as deidades
circundantes na direção dos pontos cardeais, começando com o leste. Simbolicamente,
o meditante sempre se senta de frente para a direção do sol nascente, de forma que o
leste esteja em frente, o sul à direita, o oeste atrás e o norte à esquerda. Quando uma
mandala é desenhada ou pintada, o leste é normalmente mostrado abaixo da figura
central, com o sul no lado esquerdo da pintura quando a olhamos de frente, o oeste no
topo e o norte à direita (ver Figura 2). Durante as visões do bardo, Vairochana, o buda
central, aparece primeiro, mas ao descrever os cinco budas, chegarei a ele por último,
seguindo a mesma sequência que os elementos e os skandhas nos capítulos
anteriores.

AKSHOBHYA

O primeiro dos cinco budas é Akshobhya, o Inabalável, que aparece na direção


leste da mandala. Sua família é chamada Vajra, porque ela combina a força, o poder e
a energia do raio com o brilho, a pureza e a indestrutibilidade do diamante.

Akshobhya é visualizado sentado de pernas cruzadas, tocando o chão em frente


a ele com sua mão direita. Quando Shakyamuni fez seu grande voto para atingir a
iluminação, sentado em meditação embaixo da árvore bodhi, Mara, o Maligno (cujo
nome significa literalmente “morte”), veio tentar demovê-lo de atingir sua meta.
Primeiro, Mara enviou um exército de demônios aterrorizantes para atacá-lo, em
seguida suas lindas e sedutoras filhas para tentá-lo, mas o futuro Buda permaneceu
imóvel. Ele tocou o solo com sua mão e convocou a Deusa Terra para testemunhar sua
resolução. Em resposta, a Terra tremeu e sacudiu em todas as direções, como para
enfatizar sua irremovível firmeza, assim como para demonstrar reverência a seu
grande voto. Akshobhya faz o mesmo gesto de tocar o chão para mostrar que ele
personifica esse aspecto particular do estado de buda.

Akshobhya é a personificação do conhecimento do espelho. Esse espelho é a


própria mente, claro como o céu, vazio embora luminoso. É às vezes conhecido como o
grande espelho, o espelho cósmico que contém o todo da existência. É a natureza
purificada do skandha da forma: todas as formas são como reflexos aparecendo dentro
dele; ele contém as imagens de todo o espaço e de todo o tempo, embora permaneça
vazio e intocado por eles; nada no espelho tem qualquer realidade intrínseca ou
existência independente por si só. É um espelho mágico, porque é a fonte de todas as

116
aparências que surgem dentro dele; elas não existem em nenhum outro lugar, porque
não existe lugar fora do espelho. Esse tipo de conhecimento percebe tudo com
precisão e claridade; não julga nem compara, não sente apego ou aversão. É como
assistir a uma peça. No grande espelho, a peça da existência é desempenhada sem
início e sem fim; é colorida, intensa e real; percepções e experiências são nitidamente
reais e vivas, embora nunca tenham surgido. O conhecimento do espelho é a
compreensão do vazio e da aparência simultâneos. Refulge como um raio de pura luz
branca ou azul vinda do coração de Akshobhya.

O tipo de compreensão expressa pelo conhecimento do espelho é uma forma de


visão mística muito particular dos indianos. Ela é encontrada de maneira muito intensa
na doutrina hindu de maya, que é o poder criativo e mágico da ilusão. Algumas vezes
as pessoas consideram o conceito de maya niilista, porque supõem que ele signifique
que tudo é totalmente irreal e, portanto, sem valor. Mas a natureza essencial de uma
ilusão é que ela, na verdade, aparenta ser totalmente real; tem de ser convincente ou
não poderá ser chamada de ilusão. No budismo, isso é conhecido como verdade
relativa ou convencional. Enquanto permanecermos sob seu poder, devemos respeitar
seu nível de realidade e obedecer às suas leis, ou faremos mal a nós mesmos e aos
outros. É somente à luz de uma compreensão mais elevada e mais abrangente que
finalmente a reconheceremos pelo que ela é. Então, sabendo que ela não é real em
última instância, podemos tomar parte nela sem que sejamos tomados por ela.
Podendo ser plenamente desfrutada como a expressão espontânea de uma realidade
maior. Aquela aparência vivida da peça da ilusão é o que percebemos com o
conhecimento do espelho.

Contudo, a superfície de nosso claro espelho da mente está coberta com poeira
e sujeira, obscurecida pela ignorância. A ignorância básica se desenvolve na forma de
cinco venenos. No caso da família Vajra, o veneno característico é a agressão, que
cresce a partir da reação negativa instintiva de rejeição e cresce para se tornar um
enorme complexo de sentimentos hostis tais como ódio, raiva, fúria, malícia, inimizade
e violência. Fundamentalmente, é uma força de separação, o instinto para afirmar sua
própria identidade defendendo as fronteiras entre o ser e o outro. A agressão só pode
existir porque tomamos como reais as aparições sempre mutáveis no espelho, sem
perceber que nossa natureza intrínseca não é tocada por elas. O conhecimento do
espelho mostra-nos que na verdade não existe nada para se lutar contra e nada do que
precisemos nos defender.

Neste ponto, pode ser de ajuda lembrarmo-nos que emoções intensas somente
são venenos se forem usadas a serviço do ego. Isso acontece quando elas são egoístas
e prejudiciais, quando protegem o ser pequeno, limitado e dividido e o separam dos
outros. Emoções são simplesmente expressões de energia: podem ser venenos ou
alimento e remédio. A energia da raiva pode ser extremamente positiva, como

117
veremos em um capítulo posterior ao encontrarmos as deidades coléricas. Sua cólera é
algumas vezes chamada de raiva sem ódio; é dirigida para o mal e a ignorância, e para
o sofrimento que eles causam, mas é inteiramente livre de ódio pessoal contra seres
viventes.

Akshobhya representa a mente eterna e imutável de todos os budas, portanto,


constatamos que as características desta família estão conectadas com intelecto e
inteligência. O intelecto combina todas as qualidades do vajra. É brilhante, aguçado e
penetrante como um diamante, e energético e poderoso como um raio. Seu brilho
ilumina a escuridão da ignorância, sua agudeza corta através da confusão e sua
brilhante claridade enxerga tudo sem obstrução. Ele possui a qualidade tranquila e
refletiva do conhecimento do espelho, juntamente com a inabalável confiança e a
certeza de Akshobhya. Todos esses atributos pertencem à família Vajra, que é parte de
nossa natureza intrínseca. Todas as pessoas têm a potencialidade para liberar sua
inteligência desperta, não importa quão estúpidas possam se achar. Isso não quer
dizer esperteza mundana ou habilidade acadêmica, mas claridade e firmeza, que
surgem naturalmente se apenas permitirmos que nossas mentes relaxem, e se tornem
calmas e claras como a superfície de um espelho.

Quando o intelecto é mal utilizado ou deixado livre, torna-se destrutivo, e a


qualidade cortante da mente é transformada em uma arma hostil. Até temos o ditado:
“Você é tão afiado que vai acabar se cortando.” Essa mente negativa tende a notar
cada erro e cada falha. Ela desenvolve uma abordagem excessivamente crítica e é
facilmente irritada por qualquer coisa que não possa controlar ou entender. Quando
seus ideais elevados não se realizam, ela se torna desapontada e hostil em relação aos
outros ou em relação a si própria. Muita autocrítica, em vez de ajudar alguém a
melhorar, pode rapidamente se tornar ódio contra si mesmo. Finalmente, as pessoas
que se apoiam demais em suas faculdades críticas podem se tornar completamente
intolerantes e incapazes de ver algum ponto bom em qualquer coisa; percebem
aqueles que são menos inteligentes como fracos, confusos e emocionais, e acabam
querendo se isolar completamente da desordem precária da vida comum.

A família Vajra é associada com o elemento água. Quando a água é congelada


até virar gelo, ela se torna dura e cortante, tão clara e cintilante quanto um diamante
lapidado; mas a inteligência igual à de um diamante, para atingir seu pleno potencial,
deve também ser fluida e adaptável como a água corrente é em seu estado natural.
Quando a mente se torna dura e hostil, a qualidade serena e refrescante da água
transforma-se em frieza congelante. É muito difícil se aproximar de pessoas que estão
com um ânimo agressivo. Elas rejeitam automaticamente qualquer aproximação e
cercam-se de arestas pontudas de tal forma que nada pode tocá-las. Algumas vezes,
entretanto, o intelecto pode se tornar excessivamente aquecido e transbordar
fervente em fúria raivosa. Em suas formas mais extremas, essas duas tendências

118
evoluem para estados mentais dos infernos frio e quente. Embora a água pareça
etérea e sem peso, é na verdade extremamente pesada; qualquer coisa que seja
molhada imediatamente se torna mais pesada; essa é a natureza impassível de
Akshobhya. Mesmo se a superfície do oceano for fustigada por ondas violentas, as
profundezas não podem ser perturbadas: esse é o ser imperturbável de Akshobhya. A
água sempre flui na direção do ponto mais baixo que consegue encontrar e se
estabelece lá, criando uma base de estabilidade inabalável. Quando uma grande
quantidade de água começa a se mover, ela sobrepuja tudo que estiver em seu
caminho: é impossível de ser parada e é invencível.

A cor da família Vajra pode ser branca ou azul. Branco é a cor da água: ela pode
parecer brilhante, pura e translúcida como um lago tranquilo e um intelecto claro, ou
opaca e nublada como água turbulenta e uma mente raivosa e perturbada. O próprio
Akshobhya, no entanto, é de cor azul, e muitas das deidades coléricas também são
azuis, porque incorporam a energia transmutada do ódio e da agressão.

Vajra está conectada com o inverno e com o amanhecer. A primeira luz é pálida e
clara e com um sentido de austeridade; o vento sopra do leste, amargamente frio e
cortante; a paisagem é desolada, com seus aspectos agudamente definidos, brilhantes
e cristalinos, ou brancos e quebradiços como a neve.

O símbolo da família Vajra é o próprio vajra. Ele tem cinco pontas em cada final,
que representam os budas masculinos e femininos das cinco famílias. Isso nos lembra
mais uma vez o princípio da interpenetração universal: todos os budas e todos os
aspectos do conhecimento são completos em si, e cada um contém os outros cinco.

RATNASAMBHAVA

Movendo-se na direção horária ao redor da mandala, o próximo buda é


Ratnasambhava, o Nascido como uma Joia, sentado no sul. A joia (ratna) em seu nome
é explicada nos tantras como significando bodhichitta, o coração desperto e a mente
iluminada, “a joia de todos os budas”. Sua família é chamada de a família Ratna, e seu
símbolo é a chintamani, uma joia milagrosa que realiza desejos da mitologia indiana, e
que é também às vezes usada como nome da família.

O caminho de saber expresso por Ratnasambhava é o conhecimento


equalizador. Ele poderia também ser traduzido como o conhecimento da semelhança,
uniformidade, igualdade ou equanimidade. O estado mental interior e o reino exterior
do ambiente sempre refletem um ao outro. A mente repousando em um estado de
equanimidade percebe intuitivamente que todos os fenômenos partilham a mesma
natureza essencial, portanto ela vê tudo como igual; olhando para dentro, poderíamos

119
chamá-lo equanimidade, e olhando para fora, igualdade. Semelhança não implica uma
mistura de opostos que se torna uma branda neutralidade ou o suavizar de diferentes
características de qualquer maneira. É uma visão do “mesmo-gosto” ou “um gosto”
universal, da essência desperta de toda a existência, de tal forma que, na verdade
final, não existe diferença entre samsara e nirvana. A natureza de buda nunca é
obstruída ou corrompida: ela é igual em todos os seres.

Ratnasambhava é a essência pura do skandha do sentimento. Os opostos polares


de apego e aversão, prazer e dor, que se originam nesse skandha, são equilibrados
pela equanimidade. Com essa atitude mental, eles podem ser aceitos e apreciados
como parte de nossa experiência total sem causar qualquer distúrbio emocional. A
qualidade do sentimento é preciosa por si só — simplesmente saborear a vivacidade e
a inteligência inerente na própria possibilidade do sentimento. Por meio dele,
podemos descobrir uma essência oculta em toda sensação, a qualidade de tudo sendo
simples e despida como ela é. Isso é o que é conhecido no tantra como o mesmo-
gosto, que em sua forma mais elevada se torna experiência de grande bem-
aventurança.

13/04/21 A cor da família Ratna é amarela ou dourada. Em todos os lugares do mundo, a


palavra ouro tem o mesmo significado: riqueza, tanto material quanto espiritual. O
ouro do dinheiro fornece a segurança material; o ouro alquímico representa a
perfeição espiritual; um anel de casamento de ouro simboliza amor e fidelidade; joias
de ouro emprestam sua beleza e seu valor a quem as usa; anjos, santos e deidades têm
halos dourados para mostrar sua santidade; e a coroa de ouro de um rei é o símbolo
da soberania. Na natureza, amarelo-ouro é a cor do amadurecimento e da colheita, do
âmbar precioso e do açafrão, da manteiga rica, do mel doce e do sol caloroso.

A estação de Ratna é o outono, e a hora do dia é a manhã alta e o meio-dia. O


calor do sol sulino amadureceu todas as frutas da terra; agora é tempo de desfrutá-las
e partilhá-las com os outros. Trungpa Rinpoche descreve vividamente Ratna como uma
grande árvore caída que começou a apodrecer: cogumelos e fungos florescem nela,
limo e líquen a cobrem, plantas novas brotaram sobre ela, vermes e insetos se
alimentam dela e pequenos animais se abrigam dentro dela; ela verte uma goma
pegajosa como âmbar, e sua casca se desfaz, revelando cores e texturas fascinantes.36

O elemento conectado com Ratna é a terra. A terra tem muitos nomes


diferentes na Índia, incluindo Possuidora da Riqueza, Doadora da Riqueza, Útero de
Joias, Local de Habitação, Ela que Apoia, Toda Duradoura e Paciente. Nosso planeta
Terra é literalmente uma mina de ouro e joias, mas além disso é em última instância a
fonte de tudo o que possuímos. A Mãe Terra fornece toda a nossa comida, roupas,

36
Ver “Five Styles of Creative Expression” em Chögyam Trungpa, Dharma Art, Boston, Shambhala, 1996,
p. 82.

120
abrigo e riqueza material; mostra completa equanimidade e generosidade imparcial
em relação a seus filhos.

Com essas associações, o quadro geral das características positivas de Ratna


transmite uma impressão de riqueza inesgotável, generosidade e bondade. O próprio
Ratnasambhava representa o princípio da qualidade de todos os budas. Qualidade
significa a existência espontânea dos atributos e poderes da iluminação, a convicção
total e a confiança perfeita na natureza desperta, pela qual os budas podem despertar
outros e conduzi-los ao mesmo estado.

A personalidade Ratna atrai boa sorte e é capaz de apreciá-la e desfrutá-la ao


máximo. Ratna é o tipo ideal para ser o regente de um país; no mundo antigo, o dever
mais importante de um rei era de ser o provedor de todo o seu povo. Diz-se que o
Buda Shakyamuni teria pertencido a essa família espiritual. Ele nasceu príncipe e
cercado de tudo que poderia desejar. No seu nascimento, foi previsto que se tornaria
ou um grande rei ou um buda plenamente desperto. Ao escolher renunciar ao seu
poder e riqueza mundanos, ele expressou a generosidade de sua natureza, não
beneficiando as pessoas materialmente, mas dando o precioso dharma que remove
todo o sofrimento para o mundo todo. Ratnasambhava incorpora essa suprema
generosidade do Buda e a revela neste gesto especial de doação: a mão direita aberta,
com a palma para a frente.

A generosidade de Ratna brota da confiança inabalável na possessão da


bondade. De forma a nos conectarmos com essa confiança, precisamos abandonar
nosso autoconceito limitado e nos abrirmos para o poder ilimitado das qualidades de
buda, permitindo que elas entrem em nossas vidas — ou melhor, que nós as
redescubramos lá — e irradiá-las para todos os seres. Por definição, bondade não pode
ser guardada para si; a virtude, a bondade e a riqueza da família Ratna são
inseparáveis de sua generosidade. O bodhisattva Samantabhadra, cujo nome significa
Bondade Universal, pertence a essa família. Ele é famoso nos sutras mahayana por
fazer oferendas incomensuravelmente vastas a todos os budas, a fim de realizar sua
igualmente vasta visão de liberar todos os seres conscientes de todos os tempos e de
todos os espaços. O propósito de se fazer oferendas não é simplesmente agradar o
receptor ou expressar generosidade, mas estabelecer uma conexão e iniciar um
intercâmbio de energia entre doador e receptor. Quando uma oferta material ou
mental é feita aos budas, que são o próprio poder da bondade, suscita a resposta
incomensuravelmente maior de sua adhishthana, sua presença viva fluindo no mundo.
Portanto, em muitas práticas rituais, oferendas são feitas com a intenção de que
possam ser tão ilimitadas e perfeitas quanto aquelas de Samantabhadra.

O veneno associado a essa família é o orgulho ou arrogância, a inversão da


igualdade. O sentido expansivo da existência partilhada com todos os seres se contrai
em direção ao mundo fechado do ser individual limitado, e a alegria de participar da

121
riqueza ilimitada de todo o universo é reduzida ao orgulho das virtudes e das posses de
uma pessoa em particular. A arrogância surge do fato de se estar excessivamente
impressionado com suas próprias boas qualidades e desmerecer as dos outros. Por
causa da qualidade de generosidade inerente na família Ratna, uma pessoa assim pode
efetivamente desejar beneficiar os outros, mas de alguma forma acaba o fazendo de
uma maneira arrogante ou condescendente. A consciência básica da igualdade se
perdeu, distorcida para uma relação desigual entre doador e receptor. Generosidade
arrogante pode ser humilhante quando a dignidade e o amor-próprio dos outros são
esquecidos. Pessoas ricas que exibem seu dinheiro ostensivamente para todos os
lados, ou anfitriões que insistem em empurrar muita comida ou bebida em seus
convidados relutantes, são exemplos de comportamento Ratna negativo. Na esfera das
emoções também, a generosidade básica de Ratna pode se tornar um fardo em vez de
um dom; por exemplo, um amor possessivo que abafa e inibe o crescimento em vez de
acalentá-lo.

11/05 A personalidade Ratna distorcida gostaria de expandir seu próprio território para
dentro do dos outros, como se a terra estivesse tentando preencher todo o espaço. O
orgulho quer construir grandes monumentos para sua própria existência,
impressionantes e despóticos, ricamente decorados com sinais ostensivos de riqueza.
O sentido de semelhança ou igualdade, por outro lado, confia em sua própria
dignidade e presença inata, e assim não tem necessidade de impressionar os outros. O
orgulho é irritadiço e defensivo, enquanto a igualdade não se sente ameaçada por
nada e não guarda ressentimentos.

Na maioria das vezes o medo da pobreza está escondido no fundo do coração do


orgulho. Enquanto uma pessoa pode distribuir presentes a partir de um desejo
genuíno de ajudar e dar prazer, uma outra pode fazê-lo motivada por um sentimento
interior de inutilidade. Acumular muitas posses ou uma coleção de objetos de valor é
uma forma de adquirir um senso de seu próprio valor, mas pode levar a um
sentimento de orgulho e superioridade também. Em muitas das mitologias do mundo,
as criaturas que vivem embaixo da terra são as guardiãs do tesouro. Entre as pessoas
da família Ratna, com sua conexão com o elemento terra, um amor acumulativo pode
muitas vezes ser encontrado junto com sua generosidade. Na vida espiritual, é
também muito fácil cair em uma atitude que Trungpa Rinpoche chamava de
materialismo espiritual. Isso pode envolver visitar um número enorme de mestres
famosos, receber muitos poderes ou acumular instruções de diferentes práticas sem
fazer nenhuma delas com o coração.

A contemplação de conhecimento equalizador é o remédio para todos os


extremos da psicologia Ratna, criando equilíbrio e harmonia. Por meio de sua
sabedoria, reconhecemos o potencial inerente para a iluminação em todos os seres,
tornando impossível desrespeitá-los simplesmente porque são diferentes. Sentir nossa

122
semelhança essencial profundamente, não importa o quanto às vezes as pessoas
possam parecer estranhas para nós, nos dá o poder da simpatia e da empatia. Reações
emocionais de gostar e desgostar começam a perder sua importância, de tal maneira
que o amor imparcial e abrangente possa brotar em seu lugar. Equanimidade interior
se desenvolve a partir da visão de que a mesma oportunidade para despertar existe
em todas as circunstâncias, sejam alegres ou tristes, prazerosas ou desagradáveis,
privilegiadas ou desfavorecidas. Essas conscientizações tornam possível que todas as
qualidades espirituais do elemento terra se manifestem. A partir de um fundamento
firme, equilibrado, com uma segurança e confiança inabaláveis, a personalidade Ratna
desperta pode atuar como uma mina inesgotável de tesouro espiritual para os outros,
sem orgulho, arrogância ou possessividade.

AMITABHA

Na direção oeste da mandala senta-se Amitabha, o Buda da Luz Infinita, que é o


senhor da família Padma, ou do Lótus. Tudo a respeito desta família é vermelho: o
brilho da luz radiante de Amitabha é como o pôr-do-sol no céu do oeste, expressando
o amor e a compaixão totais do estado desperto; o lótus que simboliza a família é
vermelho; seu elemento é o fogo; e o veneno que deve ser transmutado em amor é o
fogo consumidor da paixão.

A palavra sânscrita para esse veneno em particular é raga, que, interessante


como possa parecer, significa basicamente cor, especialmente vermelho. Ela também
significa um modo musical, porque a música, acima de todas as artes, expressa as
várias cores da emoção. Finalmente, ela significa amor, luxúria, desejo e paixão. Todos
os seus significados correlatos transmitem a qualidade passional e emocional
característica dessa família. O aspecto positivo da personalidade Padma é caloroso e
entusiasmado, amoroso e afetuoso; é sexualmente atrativo, sensual e magnético;
aprecia a beleza e se delicia com todos os prazeres dos sentidos; é naturalmente
compassivo, sentindo a dor dos outros e tentando abraçar o mundo. A energia Padma
expõe toda a alegria da vida; é romântica, poética, musical e artística; impele as
pessoas a tornar seus ambientes os mais bonitos possíveis, a decorar suas casas e criar
jardins para seu desfrute e relaxamento. Os amantes irradiam toda a luz de Padma a
seu redor. A energia de Padma pode ser erótica, mas está igualmente presente em
todas as variedades de amor; uma mãe com seu bebê e alguém cuidando com ternura
de um amigo doente também emanam a radiância Padma. Nas pessoas religiosas, essa
qualidade se manifesta como intensa devoção.

Negativamente, o estilo Padma pode parecer ganancioso e apegado,


consumindo tudo indiscriminadamente, como chamas famintas. Ele pode se

123
desenvolver como uma personalidade dependente, querendo mais e mais, nunca
sabendo quando parar. Sua qualidade de apego intenso pode resvalar para uma
possessividade em relação tanto a pessoas quanto a coisas. Nos relacionamentos,
pessoas dominadas por Padma podem se tornar excessivamente emocionais,
sentimentais e agarradas. Alternativamente, podem ficar intoxicados com seu próprio
poder sedutor e brilhante, atraindo amantes ou seguidores apenas para abusar deles e
descartá-los, ou podem se tornar enganosos e manipuladores em suas tentativas de
controlar os outros. Enquanto a tendência de Ratna é expandir e abranger tudo, a
energia Padma magnetiza e suga tudo para si.

A fascinação com os prazeres dos sentidos e com a beleza em todas as formas


podem facilmente virar autoindulgência. Outro perigo é que a personalidade Padma
pode não ser capaz de ver por baixo da superfície ou por trás da máscara de uma
fachada atraente. As qualidades particulares de Amitabha dá àqueles que pertencem a
essa família um grande senso de curiosidade e interesse em todos os detalhes da vida,
mas uma vez que a curiosidade inicial tenha sido satisfeita, eles podem não sentir
nenhuma necessidade de olhar mais fundo para o significado real de um objeto. Ou
podem se sentir intensamente movidos e inspirados pela beleza da arte religiosa e a
linguagem da liturgia e pensar que isso é suficiente, sem conquistar nenhuma
realização espiritual genuína. Existe uma tendência a se focar na superfície, cativado
pelo glamour, e ao mesmo tempo ter uma capacidade de ignorar qualquer coisa
desagradável.

A hora do dia de Padma é o anoitecer, quando o mundo está banhado pelo


brilho do pôr-do-sol e os pensamentos se voltam para o romance. Essa é a hora em
que as famílias estão reunidas após um dia de trabalho, em que os amigos se juntam
para o relaxamento e o prazer, e em que os amantes se encontram. A estação é a
primavera, com sua juventude e suas promessas sedutoras. Depois do duro inverno, a
natureza se torna suave e gentil mais uma vez. Na mitologia indiana, o deus da
primavera é a companhia constante do deus do amor, sempre à disposição para criar
uma cena para encontros românticos, com flores desabrochando, pássaros cantando e
brisas perfumadas flutuando pelo ar.

Desejo e apego são vistos no budismo como as forças mais poderosas que nos
mantêm vinculados ao samsara vida após vida, embora a energia que os alimenta seja
também a força impulsionadora do amor, da compaixão e do esforço em busca da
iluminação. A energia da paixão é a fonte da vida, o fogo da vida. O fogo que nos
consome é também o calor que nos dá a vida e a luz que ilumina nosso caminho. Nada
seria possível sem o desejo e a paixão. É apenas o problema básico de se agarrar a um
ser permanente que os transforma em veneno. A reflexão sobre as qualidades da
família Padma nos revela de forma excepcionalmente clara que os cinco venenos não

124
podem simplesmente ser negados, mas devem ser transmutados através do
entendimento de sua verdadeira natureza em conhecimento e sabedoria.

O conhecimento personificado por Amitabha é em geral chamado de


“discriminação” em inglês. Nunca me senti feliz com essa tradução; aqui, prefiro
chamá-lo de o conhecimento da investigação ou de conhecimento investigador,
embora, como veremos, isso também não faz justiça ao original sânscrito
pratyavekshana-jnana (em tibetano, so sor rtogs pa’i ye shes). Pratyavekshana é uma
palavra muito interessante e contém muitas implicações que podem ajudar a iluminar
seu significado aqui. Vamos examinar essas aplicações práticas primeiro e em seguida
voltar ao nome propriamente dito.

O modo de conhecimento de Amitabha complementa os de Akshobhya e


Ratnasambhava. Primeiro, a mente desperta percebe o todo da existência dentro do
grande espelho como vazio e aparência simultâneos; em seguida, experimenta o
mesmo-gosto essencial de toda a existência; agora, ele olha em detalhe para as
naturezas diferentes e distintas de cada objeto e ser vivente individual. No nível da
vida comum, este conhecimento torna possível tanto distinguir uma coisa da outra
quanto considerar cada uma por si só. Ele está conectado com o skandha da
percepção, que nos permite reconhecer, nomear e relembrar de todos os objetos dos
sentidos. Ele é o reconhecimento da multiplicidade dentro da unidade. Para os budas e
bodhisattvas, essa é a sabedoria através da qual eles compreendem as mentes dos
seres viventes, de forma a ajudar cada um deles utilizando o método mais adequado
às suas características e necessidades.

Voltando ao nome sânscrito, a palavra pratyavekshana é composta de três


elementos: prati + ava + ikshana. Ikshana dá à palavra o seu significado básico de olhar
e ver. O prefixo ava significa “para baixo”, e aqui pretende enfatizar uma ordem de
visão mais elevada em vez da ação literal de olhar para baixo. O prefixo prati é
complexo e ambíguo em suas funções. Indica movimento para adiante, chegar perto e
estar na presença de alguma coisa, mas também movimento ao contrário, de retorno,
contra. Em certas circunstâncias, pode também significar cada um ou todos, mas por
razões gramaticais, esse uso em especial é improvável aqui, embora seja possível que a
associação tenha permanecido na mente das pessoas. Tradutores tibetanos,
entretanto, quase sempre adotaram o primeiro significado de prati, como fizeram
nesse caso, enfatizando assim a percepção dos objetos individuais.

Combinando esses três elementos, a palavra completa pode ser usada de várias
maneiras diferentes, mas relacionadas. Primeiro, ela possui o significado de
observação e atenção. O movimento de vaivém de prati muitas vezes indica
reciprocidade, como olhar para um reflexo que nos olha de volta, ou repetição, como
contemplar um objeto repetidamente. Isso continua em seu equivalente páli,
pacchavekkhana, no qual significa “reflexão e contemplação”. A imagem de Amitabha

125
parece sugerir esta ideia: ele senta em meditação, com as mãos apoiadas juntas em
seu colo e os olhos semicerrados, enquanto ele olha profundamente para seu objeto
de contemplação e alcança uma percepção profunda com sua visão interior. Essa
imagem repete a postura de Shakyamuni sob a árvore bodhi em samadhi, antes de seu
supremo despertar.

Segundo, o sentido de observar e cuidar se expande para uma atitude de velar


por, cuidar de, se preocupar com e tomar conta de. Existe um conteúdo emocional
tanto de solicitude quanto de apreciação. Pratyavekshana pode também significar
consideração, respeito e estima. É claro que não podemos ter certeza se os budistas
indianos que usaram a palavra originalmente tinham ou não essa significação
particular em mente, especialmente porque ela não continuou a existir na tradução
tibetana, mas se coaduna perfeitamente com a qualidade compassiva e cuidadosa da
família Padma. O sentido inerente em prati de ir em direção a alguma coisa é também
muito relevante aqui. É uma característica da família Padma se engajar plenamente em
todos os aspectos da vida, cara a cara, nunca rejeitando o mundo dos sentidos.

Terceiro, existe um elemento perguntador de busca e curiosidade que


predomina na forma como pratyavekshana é usada nas línguas da Índia moderna. Lá,
ela significa investigação, exame, indagação e pesquisa, todos brotando do mesmo
significado básico de olhar com atenção para alguma coisa. Isso está obviamente
presente na ideia de discriminação que examina as diferenças entre os vários objetos.
Mas a palavra discriminação parece implicar alguma coisa mais do que apenas um ato
direto de diferenciar; ela inclui um sentido de comparação e julgamento. Aqui não
existe a questão de julgar ou escolher uma coisa e rejeitar outra, mas apenas a
consciência e a apreciação da diversidade. Poderíamos até afirmar que esse modo de
conhecimento não discrimina, já que brota do amor incondicional e imparcial. E
devemos também nos lembrar que estamos falando de um aspecto de jnana, o
conhecimento supremo não dualista, intuitivo e não conceitual. Portanto, para traduzir
pratyavekshana como “discriminação” me parece inadequado assim como talvez
enganoso.

Claramente, a partir das explicações tradicionais, a intenção primária é transmitir


a consciência iluminada da individualidade. Traduções, tais como “discernimento” e
“diferenciação”, também têm sido usadas, mas sinto que existe mais do que isso. É
possível que todas as diferentes implicações inerentes à palavra sânscrita original
possam estar presentes ao mesmo tempo: não apenas a habilidade de distinguir entre
diferentes objetos de percepção, mas ainda, mais importante, a capacidade de olhar
profundamente para cada um, apreciando suas qualidades únicas e entrando no fundo
do seu ser com amor e compreensão. Infelizmente, não parece ser possível transmitir
tudo isso de forma concisa em inglês, da mesma forma que não o foi em tibetano.
Minha sugestão aqui de “investigação” ou “conhecimento investigador” também é

126
inadequado, mas espero que seja um pouco melhor do que “discriminação”. Pelo
menos ela traz consigo a implicação de olhar com cuidado as coisas e prestar atenção a
detalhes individuais.

A natureza possessiva do veneno da paixão é transformada pelo conhecimento


investigador. Paixão em sua forma mais grosseira simplesmente quer possuir. Ela vê
todos os tipos de diferentes objetos de prazer, sem fazer distinção entre eles, e logo se
agarra cegamente a eles todos. Mas a mente desperta, em vez de se tornar possuída
pelo desejo quando vê esses objetos, examina-os com atenção, respeitando suas
naturezas individuais e apreciando-os sem apego. Quando alguém permite que as
pessoas e as coisas sejam apenas como elas são, sem nenhum pensamento de possuí-
las ou controlá-las, elas imediatamente aparecem sob uma luz diferente — mais
bonitas, mais interessantes e mais desfrutáveis. Desejo e apego estão enraizados na
dualidade, mesmo assim são movidos por um impulso em direção à unidade e um
anseio de superar a solidão da separação. O conhecimento investigador surge da não-
dualidade, portanto pode se permitir relaxar e se regozijar na aparência da
separatividade, e tomar parte na dança da multiplicidade com todas as suas várias
formas e atributos. Purificada pela percepção interior, a impulsividade da paixão se
transforma em cuidado e interesse genuínos; em vez de apego, ele vê com
sensibilidade e empatia. Desejo é transmutado em amor, e paixão em compaixão.

Sem desejo e paixão, não poderíamos ansiar por iluminação ou praticar o


dharma, e sem eles o dharma não poderia ser transmitido. Amitabha representa o
discurso sagrado dos budas: discurso que é sempre verdadeiro. Ele mesmo é a
expressão do dharma; de fato, Dharma é algumas vezes utilizado como um nome
alternativo para essa família. A comunicação brota da paixão, de ir em busca, de
relacionamento. A personalidade Padma tem uma tremenda habilidade para se
comunicar. Assim como somos atraídos para o calor do fogo, toda a atmosfera dessa
família é extremamente atraente para os seres humanos. Amitabha é provavelmente o
mais conhecido e amado dos cinco budas em todo o Tibete e no Extremo Oriente.
Avalokiteshvara, o Bodhisattva da Compaixão, pertence a essa família e é invocado
com intensa devoção, sob diferentes nomes, onde quer que o budismo tenha se
espalhado. E Padmakara, o guru Nascido do Lótus, é a personificação direta de
Amitabha. Sua natureza manifesta plenamente tanto a compaixão quanto a
comunicação da família Padma, irradiando de forma ilimitada a luz do dharma, que é o
significado do nome de Amitabha.

AMOGHASIDDHI

127
No quarto quadrante da mandala, na direção norte, está Amoghasiddhi, o Buda
do Sucesso Infalível. Sua família pode ser conhecida como Karma ou como Samaya.
Karma significa “ação” e samaya, “uma promessa” ou “compromisso”. O supremo
compromisso é atingir a iluminação e conduzir todos os seres para fora do sofrimento
do samsara. Combinando essas duas ideias, Amoghasiddhi representa a atividade
iluminada de todos os budas, cumprindo o compromisso deles com o despertar
universal. Assim como tem dois nomes, essa família também tem dois símbolos: um é
uma espada, que simboliza a energia dinâmica e a força penetrante; o outro é um vajra
duplo, dois vajras na forma de uma cruz, que expressam a universalidade da ação
iluminada, espalhando-se nas quatro direções. Amoghasiddhi levanta sua mão direita
com a palma para a frente, como se empurrasse o perigo para longe, em um gesto de
destemor, assim como Shakyamuni destemidamente se opôs às investidas furiosas de
Mara, completamente confiante em seu sucesso.

Amoghasiddhi personifica o conhecimento executor das ações. É o


funcionamento de fato do estado desperto, colocado em ação. Ele combina a intuição
de saber exatamente o que precisa ser feito em cada situação com o poder infalível de
fazê-lo. É a realização natural dos três estados prévios de conhecimento. A pessoa
desperta, tendo plenamente compreendido a natureza essencial da realidade, sua
unidade tanto quanto sua diversidade, deve então agir a partir dessa compreensão.
Iluminação não consiste apenas em saber a verdade, mas em expressá-la. Enquanto
ainda existirem seres viventes sofrendo no samsara, os budas e bodhisattvas não
podem permanecer inativos; sua atividade compassiva flui espontaneamente de suas
próprias naturezas — esse é o conhecimento executor das ações.

Na vida diária, todos nós possuímos esse tipo de conhecimento em nossa


habilidade básica de agir, que é necessária para manifestar quaisquer outras
qualidades. Aqueles em quem esse conhecimento predomina demonstram dinamismo
e energia incomuns; muitas vezes têm grande ambição e atingem posições de poder e
influência. São confiantes e decididos e não têm dúvidas de que irão ser bem-
sucedidos. Personalidades Karma são velozes, sempre ocupadas e em movimento; são
inquietas e geralmente acham difícil relaxar. Tais pessoas podem se tornar
intrometidas notórias, interferindo na vida dos outros, mas ao mesmo tempo são as
que fazem as coisas acontecerem. São as que organizam, reclamam, protestam contra
a injustiça e atormentam as autoridades para comprometê-las com as reformas.

Bravura e heroísmo são também atributos dessa família. Grandes líderes


militares e guerreiros da história demonstraram a confiança e a coragem do gesto
simbólico de destemor de Amoghasiddhi. Outros, tais como diplomatas e conselheiros,
preferem agir com subterfúgios, usando habilidades mentais em vez de ação física.
Hoje em dia, somos liderados por políticos em vez de por reis e guerreiros; política e
grandes negócios tornaram-se as arenas mais importantes para o exercício das

128
características de Karma. Mas, qualquer que seja o campo escolhido, a perspectiva da
família Karma é de ver a vida como uma chamada à ação: se a pessoa não conquista,
então não é ninguém.

A família Karma é associada com o elemento ar, que possui as qualidades de


movimento constante. O vento frio e afiado que sopra do norte corta como uma
espada, assim como a ação decisiva fatia os nós e emaranhados da confusão e da
dúvida. Amoghasiddhi é a natureza perfeita do skandha do condicionamento; o
skandha que leva à reação kármica em cadeia. Karma está associado com a noite,
quando todo o trabalho foi realizado e existe um senso de realização. Sua estação é o
verão, porque no verão a natureza está mais ativa. As frutas estão amadurecendo, os
animais jovens estão crescendo em força; tudo está procurando realizar seu potencial
nessa época do ano. As árvores estão densas e verdes; as flores explodem em um
excesso de cores; e nuvens densas e negras trazem as tempestades tropicais.

A cor de Karma é principalmente o verde. Como vimos na conexão com os


elementos, verde transmite um sentimento de energia juvenil e a atividade inquieta da
natureza. Ele sugere liberdade e o espaço para nos expandirmos e nos expressarmos.
Até temos a luz verde como um sinal de que podemos seguir em frente e colocar
nossos planos em ação. Na cultura indiana, o verde muitas vezes simboliza força e
bravura; na dança dramática Kathakali, heróis e guerreiros usam maquiagem verde.
Mas a cor de Karma é às vezes preta ou multicolorida. Todas as cores estão contidas
no preto, portanto as duas sugerem um sentido de universalidade, cobrindo todas as
áreas e preenchendo todos os aspectos da vida.

O veneno da família Karma é o ciúme e a inveja, que incidentalmente fornece


uma outra ligação com a cor verde, que na cultura ocidental (embora não na Ásia) é a
cor da inveja. Geralmente, a inveja se desenvolve a partir de um medo de falhar e de
não ser capaz de corresponder às suas próprias maiores expectativas. O medo pode
fazer com que a pessoa sinta que todo mundo está fazendo melhor do que ela, ou que
todo mundo está tendo vantagens injustas. Esses medos incitam não só a inveja direta
do sucesso dos outros, mas um tipo de paranoia adicional, um sentimento de que todo
mundo está contra essa pessoa. A personalidade Karma possui uma tal ânsia de
avançar com rapidez que não consegue suportar qualquer restrição à sua velocidade e
ao seu dinamismo. Existe ressentimento tanto no caso de os colegas não serem tão
eficientes quanto a pessoa, quanto no caso de eles serem mais eficientes do que ela. O
espírito de competição transforma-se em suspeita dos motivos de todo mundo, e a
pessoa acaba estando constantemente na defensiva e com medo de atacar.
Suscetibilidade e excesso de sensibilidade às críticas são manifestações dessa
tendência. A habilidade natural da família Karma para liderar e inspirar os outros pode
se transformar em manipulação e desonestidade. As pessoas de Karma podem se
tornar obcecados em medir seu progresso e preocupados com sua posição,

129
comparando-se com os outros. Na vida espiritual, podem ser inclinados a tratar o
caminho como uma pista de corrida, com a iluminação como um prêmio a ser
conquistado no final. Podem ser impacientes e impetuosos. De início, a vida parece
ser um desafio motivador, mas finalmente pode se tornar uma luta esmagadora: a
inspiração original do que quer que seja por que estejam se esforçando fica perdida na
urgência de superar os obstáculos, e eles acabam enxergando apenas inimigos contra
quem lutar.

Todos esses problemas em relação à ação surgem de nossa equivocada


identificação original com o ser limitado, individual. Temos de voltar ao início para ver
a irrealidade do ego e entender que ele é, por sua própria natureza, condicionado e
impermanente, portanto incapaz de alcançar qualquer coisa. Uma vez que a nossa
visão confusa e distorcida das coisas seja clareada e remontada às origens do vazio, o
que quer que apareça pode ser reconhecido como o jogo espontâneo do estado
desperto. O estado desperto não é uma condição passiva; é o solo primordial do ser,
cuja natureza inerente é expressar-se, e toda expressão é uma forma de atividade. O
conhecimento executor das ações é real e eficaz, porque flui direto do poder da
bondade universal, completamente livre de interesse pessoal. Ele não tem limitações e
nada pode obstruí-lo, e sempre alcança sua meta para o benefício de todos os seres.
Em última instância, tudo já foi alcançado e todos os seres conscientes já foram
despertados. No reino da iluminação, causa e efeito são revertidos: o resultado já é
certo e já existe, portanto as ações que parecem ser sua causa são automáticas,
espontâneas e sem esforço.

VAIROCHANA

Finalmente, no centro da mandala, chegamos a Vairochana. Ele é o Iluminador, o


Ser Radiante que brilha em todas as direções. Ele é o sol universal, cuja luz penetra em
cada canto do universo. Sua família é conhecida simplesmente como a família Buda ou
Tathagata. Essa família representa a condição natural e primordial da consciência,
onisciente e onipresente. Ela pode ser considerada a primeira ou a última das cinco
famílias, assim como o elemento do espaço e o skandha da consciência à qual ela
corresponde. Ela é a base de toda a mandala, da qual as outras quatro famílias surgem.

Vairochana é retratado com suas mãos colocadas ao nível de seu coração em um


gesto de ensinar; seus dedos formam um círculo representando o dharmachakra, a
“roda do dharma”. Com esse gesto, ele revela o conhecimento do coração que já
possuímos em nosso íntimo; representa toda a atividade de ensino do Buda
Shakyamuni e de todos os budas em todos os tempos e lugares. O dharmachakra, uma

130
roda com oito pontas, é o símbolo da família Buda, e é também o símbolo do próprio
budismo, o nobre caminho óctuplo.

Vairochana incorpora o conhecimento do dharmadhatu. Dharmadhatu é um


termo que precisa ser explicado em vez de traduzido. Já vimos o significado da palavra
dharma em conexão com os skandhas. Aqui ela carrega seus dois sentidos: o dharma
como “verdade e realidade” e dharmas no sentido geral de todos os fenômenos.
Dhatu, nesse contexto, pode ser traduzido como “reino”, “dimensão” ou “espaço”. O
dharmadhatu é a dimensão que contém o todo da existência, passado, presente e
futuro. Já que os termos budistas sempre se relacionam com a mente, ele não é uma
dimensão externa, mas um nível de consciência, uma experiência real e direta da
verdadeira natureza da existência. Trungpa Rinpoche muitas vezes o chamava de o
espaço todo abrangente, portanto vou chamar o conhecimento do dharmadhatu de o
conhecimento todo abrangente. Ele é uma percepção que vê claramente a natureza
final de tudo, em todo lugar e em todos os tempos, como ela verdadeiramente é. Seu
sabor é de um firmamento vasto e ilimitado.

A característica dominante dessa família é uma abertura totalmente desperta,


uma consciência toda abrangente que rebrilha como o sol em todas as direções. Ela
possui uma qualidade de pureza e claridade, e uma serenidade calma e pacífica que
flui naturalmente de sua natureza centrada e ao mesmo tempo ilimitada. Pessoas com
a personalidade da família Buda têm a mente aberta, são compreensivas e receptivas.
São capazes de manter um sentido infantil de deslumbramento frente à beleza e à
vastidão do universo e à magia da vida. São descontraídas e despreocupadas,
magnânimas e serenas.

Quando nosso conhecimento e nossa sabedoria naturais e inatos se tornam


distorcidos, encontramo-nos na condição confusa de vida ordinária. A ignorância da
verdadeira natureza da existência é a distorção fundamental que dá origem aos cinco
venenos e, por esse motivo, a todos os problemas do samsara; ela é o problema
subjacente e que permeia todos os outros. Paixão, agressão, orgulho e inveja são
apenas diferentes estilos de exprimir e se entregar à decisão fundamental de ignorar a
realidade. O veneno particularmente conectado à família Buda, a antítese do
conhecimento, é uma versão mais desenvolvida dessa ignorância básica: em sânscrito
é chamada de moha, que pode ser traduzida em graus crescentes de intensidade como
“confusão”, “ilusão” ou “engano”. Não é meramente ignorância como uma ausência
de conhecimento, mas uma ignorância deliberada, sustentada, de nossa verdade
interior, resultando em um estado de autoengano. O ego, nosso ser limitado e
separado, está continuamente tecendo sua própria teia de engano, criando samsara e

131
tornando-se mais e mais capturado na rede que ele criou para si próprio. Para o ego,
essa teia não se parece mais com uma armadilha, mas como um casulo suave e morno,
convidativo e protetor. Embrulhado de forma segura em sua maneira habitual de
perceber a vida, a última coisa que ele quer é ser acordado e desnudado.

O aspecto negativo da psicologia da família Buda é a capacidade de criar e


habitar um mundo de sonhos. Isso pode até acontecer em um nível espiritual. As
qualidades de Buda dão à pessoa uma habilidade natural para a meditação, mas se
esse talento não for adequadamente direcionado, a pessoa pode viver com alegria em
um lindo estado de ilusão; talvez possa até começar a entrar em transes e a ter visões,
que podem sutilmente acentuar a sensação de um ser superior. Em um plano mais
comum, gentileza e calma podem se tornar muito passivas e evoluir para complacência
e preguiça. A personalidade Buda irá suportar todo tipo de problema por amor a uma
vida tranquila. Existe a tendência a se retirar, como uma tartaruga para seu casco, e se
isolar de todo contato; é a visão de “não quero saber” e “ignorância é bem-
aventurança”. Mesmo um pequeno lampejo da vastidão do conhecimento todo
abrangente pode ser esmagador e ameaçador, de tal forma que a pessoa tenta fugir
dele e se esconder agindo como cego, surdo e mudo. A consciência luminosa torna-se
estupidez obtusa e teimosia.

A auto-absorção em seu próprio mundo pequeno não se aplica somente a


indivíduos: ela pode ser vista em grupos de pessoas também, em sociedades exclusivas
e comunidades voltadas para dentro de si mesmas, que não toleram as diferenças e
suspeitam dos forasteiros. Todas essas características negativas são inversões dos
atributos positivos inerentes da família Buda. Se a mente aberta e a inteligência
abrangente da personalidade é suprimida ou negada, pode se voltar para si mesma e
levar à apatia, à depressão e até mesmo ao desespero profundo. Essa é a rejeição final
do conhecimento todo abrangente, o próprio oposto de sua qualidade vasta e aberta.
O conhecimento todo abrangente surge a partir da experiência de abandono e de se
abrir para o infinito radiante da vigilância, onde todas as potencialidades podem ser
realizadas. Dissolver o aperto da existência centrada no ego na vastidão do espaço
libera os medos e as tensões que nos fazem querer buscar refúgio na ignorância.

Vairochana representa o corpo indestrutível de todos os budas, assim como o


dharmadhatu poderia ser considerado o corpo do todo da existência, ou o espaço
como o corpo do universo. É um corpo insubstancial, um corpo do não-ser, que, por
não ser limitado por nenhuma noção definidora de ego, pode manifestar o vazio em
qualquer forma que seja. No plano relativo, nossos corpos físicos são a expressão
externa da presença interior e nosso meio de se relacionar com o mundo. Podemos
voltar nossos rostos e corpos na direção do mundo, irradiando como Vairochana, ou
então podemos voltar nossas costas para o mundo e nos esconder, usando o corpo
como um meio de autoproteção para esconder nosso ser interior mais profundo.

132
A família Buda não tem uma afiliação específica com uma estação ou uma hora
do dia. Em termos de qualidades visuais e assim por diante, ela parece neutra por ser
tão inclusiva; como Trungpa Rinpoche observou, é bastante insípida e desinteressante!
Ela incorpora a totalidade do tempo e do espaço, e forma o pano de fundo para as
manifestações mais características das outras famílias.

O conhecimento todo abrangente do dharmadhatu é a essência pura do skandha


da consciência e do elemento espaço; portanto, sua cor é o azul do espaço. Espaço
infinito e céu ilimitado são símbolos da mente em seu estado natural: aberta, clara e
luminosa. O azul do céu sugere a espiritualidade e a alegria do lado positivo da
personalidade Buda, enquanto no outro extremo os “blues”37 indicam a tristeza e o
desespero de seu aspecto negativo.

A família Buda é também conectada com a cor branca, já que Vairochana é em


geral descrito como sendo branco. A cor transmite a paz e a pureza do Desperto, que é
a própria fonte de luz. Branco é particularmente associado com as deidades pacíficas,
e azul com as deidades coléricas, enquanto o vermelho representa seus aspectos
passionais. Como veremos, mandalas de todos os três aparecem durante as visões do
bardo. As deidades pacíficas representam a natureza fundamental e sempre presente
da iluminação, portanto, ao descrever os princípios básicos dos cinco budas, é
Vairochana com seu corpo branco que habita o centro da mandala e a impregna com
sua presença pacífica.

Os cinco modos do saber são essencialmente um, mas podemos olhar para eles
de diferentes ângulos, como as facetas de um cristal que brilha com diferentes cores,
equilibrando e complementando uma à outra. De uma certa forma, podem ser vistos
como uma progressão, embora cada um dependa da realização simultânea dos outros.
Em uma versão tântrica da iluminação do Buda, ele realizou todos os cinco em
sequência, começando com o conhecimento do espelho e culminando com o
conhecimento todo abrangente.

O conhecimento todo abrangente impregna a mandala. Ele é a experiência direta


do todo da realidade, completa e perfeita, abrangendo todos os fenômenos, passados,
presentes e futuros. É a condição de estar plenamente desperto, na qual todas as
outras são baseadas e para a qual todas as outras fluem.

O grande espelho reflete o dharmadhatu. Dentro dele, a mente desperta


percebe o todo da existência — ilusória porém real, aparente porém vazia. Pelo fato

37
Blues, neste caso, refere-se ao estilo musical originado na América do Norte que canta a tristeza e a
solidão. (N. do T.)

133
de a natureza essencial de todas as coisas ser o vazio, o conhecimento equalizador é
inerente no conhecimento do espelho; e pelo fato de todas as coisas surgirem desse
vazio, o conhecimento investigador também surge simultaneamente. Vazio e
aparência não podem ser separados; unidade e multiplicidade não podem ser
separadas; semelhança e diferença não podem ser separadas.

O conhecimento equalizador brota da realização do vazio e do não-ser, porque


quando não existe um apego ao ego, a pessoa é capaz de experimentar o fundamento
básico do ser, que não é outro senão a bondade universal. Quando não mais existem
barreiras entre o ser e os outros, o amor, que é a essência do conhecimento
investigador, não pode se esquivar de surgir.

Esse amor é a compreensão de todos os seres viventes, a aspiração pela sua


felicidade e a compaixão por seu sofrimento, que surgem automaticamente como
resultado de se sentir a conexão com eles; ele se expressa espontaneamente em
atividade. Esse é o conhecimento executor das ações, infalível e desobstruído, cujo
propósito é realizar a iluminação de todas as partículas da existência.

A iluminação não pode existir para alguém só. Enquanto a pessoa sente a
separação entre o ser e os outros, não está plenamente desperta. Portanto, ensina-se
que os bodhisattvas só podem salvar todos os seres compreendendo o paradoxo que,
na verdade, não existem seres para serem salvos e ninguém para salvá-los. Ao mesmo
tempo, os bodhisattvas só podem ajudá-los por meio da compreensão de suas
naturezas individuais, assim como pela visão de suas naturezas de buda. O poder
irresistível e a eficácia da ação iluminada só podem resultar da motivação
completamente altruísta, isto é, das percepções do vazio, da igualdade e do amor,
dentro da experiência toda abrangente da realidade absoluta. Portanto, todos os cinco
aspectos do conhecimento fluem com naturalidade um em direção ao outro e são
mutuamente realizados.

Da mesma forma, todos os outros grupos de cinco são interdependentes e


inseparáveis. A mandala é uma visão da totalidade, uma maneira de olhar a totalidade
do nosso ser. As cinco emoções, que podem ser experimentadas ou como venenos ou
como o solo básico dos cinco caminhos do saber, se entre mesclam continuamente;
nossa energia nunca é confinada só a um compartimento. Toda a nossa existência é
uma inter-relação dinâmica de forças; a mandala é apresentada como estática apenas
para que possamos começar a compreendê-la de alguma forma, embora incompleta. É
uma dança capturada em um fotograma congelado, para que possamos identificar os
dançarinos e captar um vislumbre do padrão de seus movimentos.

As cinco famílias possuem todos os tipos de associações e correspondências,


muito mais do que se poderia listar aqui. Mais detalhes serão dados quando
examinarmos as visões do bardo na Parte Dois. Não são apenas seres viventes que

134
pertencem às famílias, mas todo aspecto possível da existência. Podemos reconhecer
qualidades Vajra, Ratna, Padma, Karma e Buda em tudo ao nosso redor: nas estações,
paisagens, países, ideias, obras de arte, filmes, literatura, moda e assim por diante,
infinitamente. Não existe necessidade de nos restringirmos às conexões tradicionais;
associações de outras culturas e outros tempos podem trazer percepções inesperadas
para a natureza das famílias. O importante é não dividir tudo e todos em categorias.
Classificar pessoas e coisas dessa maneira pode facilmente se tornar um jogo
fascinante e bastante superficial. O essencial é usar essas imagens e analogias para ir
além da mente discursiva e alcançar uma percepção intuitiva da presença toda
abrangente do despertar em suas infinitas manifestações.

Primeiro, todas essas conexões podem parecer arbitrárias e artificiais, mas se o


princípio da mandala for abordado e praticado corretamente, ele abre uma visão
mágica da vida. Tudo se torna significativo e fonte de inspiração. Toda experiência é
imbuída de um simbolismo que se relaciona com as cinco famílias. Isso é o que
Trungpa Rinpoche chamava de simbolismo natural: o símbolo aponta, não para algo
além de si próprio, mas para sua própria natureza inerente e vazio-luminosa. Tudo se
torna um lembrete espontâneo de algum aspecto das cinco famílias e
automaticamente se liga à sabedoria e ao conhecimento de seus corações.
Começamos a ver o todo da vida à luz da mandala. O objetivo da prática vajrayana é
viver de tal forma que todas as visões são vistas como aspectos dos budas; todos os
sons são ouvidos como mantras, o discurso sagrado dos budas; e todos os
pensamentos e sentimentos surgem como expressões naturais da mente desperta dos
budas.

O princípio da mandala significa que absolutamente tudo está incluído: todo o


mundo confuso do samsara, assim como todo o reino da iluminação. Nada é rejeitado
ou deixado de fora do círculo. Todos os nossos problemas e conflitos emocionais,
todas as nossas características boas e más, podem ser usadas no caminho. Em muitas
das atuais práticas derivadas dos vários tantras, os cinco budas não são imaginados em
suas formas pacíficas como foram descritas aqui; em vez disso, cinco devis ou cinco
herukas coléricas podem manifestar as qualidades das cinco famílias. O importante é
experimentar o sabor e o sentimento das diferentes famílias e desenvolver confiança
no tipo particular de transmutação que cada uma efetua. A mandala é o espaço
sagrado no qual a transmutação é realizada.

Deveria ser mencionado que o sistema de correspondências fornecido aqui é


aquele encontrado em Liberação através da audição. Em outras tradições vajrayanas, e
mesmo em outras práticas dentro da tradição Ningma, podem haver algumas
divergências em relação a ele. Em particular, o Kalachakra Tantra possui um sistema
inteiramente diferente. Os outros principais tantras seguem amplamente o esboço
apresentado aqui, embora um ou mais dos budas possam ser colocados em uma

135
posição diferente na mandala. Teoricamente, qualquer um dos cinco pode ser
colocado no centro, que por isso envolverá uma sequência de deslocamentos.

A diferença mais significativa que ocorre é a alternância de Akshobhya e


Vairochana, já que os dois são os mais prováveis de serem encontrados no centro.
Vimos também que eles partilham as cores azul e branca. Akshobhya é quase sempre
azul, enquanto Vairochana é branco, mas a cor da luz que os rodeia e que emana deles
pode ser uma das duas, como veremos em Liberação através da audição. Falando em
termos das famílias em vez dos budas, Trungpa Rinpoche algumas vezes descreveu a
família Vajra como azul e a família Buda como branca, e algumas vezes ao contrário.

Em vajrayana há muitas discrepâncias desse tipo, e iremos encontrar várias mais


adiante neste livro, mas não deverão causar confusão ou preocupação. Cada sistema
de correspondências possui sua própria verdade e seu próprio poder, revelando
percepções maravilhosas através da teia de relacionamentos que ele incorpora. Cada
um é concebido para um propósito em particular e tem sido mostrado que é eficiente
ao longo de muitos séculos de prática. É verdadeiro porque funciona, portanto deveria
ser observado exatamente como é dentro de seu próprio contexto, e não ser
comparado com outros ou alterado para se encaixar em algum esquema que possa
parecer mais lógico. A mandala não é um diagrama estático, mas uma exposição
dinâmica sempre mutável, uma dança mágica da vida.

136
Capítulo Oito

Seis Estilos de Aprisionamento

TODOS OS SERES HUMANOS são formados pelos cinco grandes elementos e


funcionam por meio dos cinco skandhas. Sua verdadeira natureza é o estado desperto,
expresso como as cinco famílias de budas, mas sua energia de iluminação tornou-se
confusa e distorcida como os cinco venenos ou aflições. Sob a influência dos venenos,
seres viventes se manifestam em várias maneiras características, que formam os seis
reinos da existência samsárica.

Os seis reinos estão ilustrados na roda da vida: consistem em três reinos


elevados dos deuses, deuses ciumentos e humanos, e três reinos inferiores dos
animais, fantasmas famintos e seres infernais. Alternativamente, podem ser
classificados como dois reinos elevados dos deuses e dos deuses ciumentos, dois
reinos inferiores dos fantasmas famintos e dos seres infernais, e dois reinos
intermediários dos animais e dos humanos. Nos reinos inferiores, o efeito do karma
negativo é muito forte, de tal forma que existe grande sofrimento e é muito difícil
mudar as tendências que mantêm a pessoa aprisionada nessa condição. Nos reinos
elevados, existe menos sofrimento e mais liberdade, porque os resultados das ações
positivas são mais importantes do que as negativas.

Onde existem os seis reinos? No sentido exterior, eles aludem a todas as formas
possíveis de vida consciente, divididas em seis tipos principais. Entre eles, temos
conhecimento direto apenas da vida humana e da animal. Algumas pessoas acreditam
em fantasmas, mas a existência real de seres viventes nos reinos do céu e do inferno é
provavelmente uma ideia muito estranha nos dias de hoje, para muitas pessoas no
Ocidente, embora não fosse assim no passado, e algo perfeitamente admitido no
budismo.

Todos esses seres sobrenaturais pertencem ao rico e fascinante tesouro das


lendas indianas, que fornece o pano de fundo comum às religiões da Índia, e as
descrições dos seus reinos são baseadas, com algumas adaptações, nessa mitologia38.

38
Existem muitos livros excelentes sobre mitologia hindu, que é muito vasta para ser abrangida em um
único volume. Um dos melhores trabalhos de referência é de Alain Daniélou, The Myths and Gods of
India, Vermont, Inner Traditions International, 1991 (publicado originalmente como Hindu Polytheism,
Nova York, Bollingen Foundation, 1964). Para narrativas e interpretações inspiradas sobre alguns dos
mitos, ver de Heinrich Zimmer, Myths and Symbols in Indian Art and Civilization, Nova York, Bollingen

137
Para tristeza dos apreciadores de histórias, a maioria dessas lendas não se tornou
parte da tradição budista, porque pertencem ao drama do samsara e não foram
consideradas relevantes para os ensinamentos do Buda sobre a liberação do samsara.
O sistema dos seis reinos é baseado na psicologia das várias classes de seres em vez de
se basear nas suas origens mitológicas. Mas algumas das histórias que mencionarei
neste capítulo jogam luz sobre a natureza dos reinos. No fim das contas, o Buda nunca
rejeitou sua própria herança cultural; apenas contestou certas maneiras de interpretá-
la, e seus pressupostos básicos certamente permaneceram como parte da visão de
mundo budista.

Essa visão do universo é inimaginavelmente vasta, tanto no espaço quanto no


tempo. Ela contém muitos níveis de dimensões interpenetrando e interagindo umas
com as outras. Formas de vida que são imperceptíveis aos nossos sentidos coexistem
conosco, ocupando simultaneamente o mesmo espaço. Nossos próprios sentidos,
percepções e consciência determinam o tipo de mundo em que vivemos; nós, como
seres humanos, só podemos perceber o universo de forma especificamente humana.
Os animais têm muito em comum conosco fisicamente, mas mesmo eles percebem o
ambiente de maneira muito diferente da nossa, enquanto seres dos outros reinos
diferem tanto de nós, que em geral permanecemos completamente despercebidos de
sua existência. Podemos apenas concebê-los nos termos daquilo que já sabemos,
portanto os imaginamos como tendo alguma forma humana ou animal; em lendas pelo
mundo afora, seres sobrenaturais são capazes de alterar suas formas e aparecer de
muitas maneiras diferentes.

Samsara é o estado de vagar em círculos. A roda da vida nos apresenta um


quadro não apenas da vida humana, mas da vida como um todo — manifestando-se
em todas as multidões de possibilidades dentro dos seis reinos, movendo-se
incessantemente de um para outro, transformando-se de um tipo de consciência em
outro. Em linguagem comum, os seis reinos em geral pretendem explicar os vários
tipos de existência nos quais os seres conscientes podem nascer. Nascemos como
humanos nesta vida, mas teoricamente é possível que pudéssemos renascer em
qualquer um dos outros reinos como resultado de nossas ações. Essas ações
determinam nosso corpo físico, nossos estados mentais subjacentes e a maneira como
experimentamos o mundo e os outros seres. Corpo, mente e ambiente são
inseparáveis. Por exemplo, não poderíamos de repente nos encontrar em um corpo
animal com uma consciência humana; teríamos primeiro de desenvolver uma
consciência animal e perceber todo o ambiente com a mente de um animal.

Foundation, 1946, e The King and the Corpse, Nova York, Bollingen Foundation, 1948. Uma adaptação
recente e prazerosa de uma seleção de histórias está em Roberto Calasso, Ka, Londres, Jonathan Cape,
1998. Também recomendaria todos os livros de Wendy Doniger O’Flaherty.

138
Tradicionalmente, essa interpretação dos seis reinos tem sido enfatizada como
um incentivo à prática do dharma39. Em uma cultura onde a crença na reencarnação é
aceita, a contemplação sobre o ciclo infindável de vida após vida é muito poderosa e
eficaz. Mas para aqueles de nós que não cresceram com essas ideias, como parte de
seu passado cultural, seria artificial simplesmente aceitá-las como uma questão de fé.
Precisamos chegar a uma compreensão mais profunda de seu significado interior,
antes que possamos integrá-las à nossa visão de vida. Muitos budistas ocidentais têm
dificuldades com o conceito de renascimento nos seis reinos, ou mesmo com o
renascimento por si só. Ninguém pode nos provar o que existe além da morte.
Entretanto, podemos investigar nossas mentes aqui e agora e descobrir todos os
mundos contidos nelas. Podemos descobrir o que a vida como um ser humano
realmente significa neste exato momento, e isso pode nos levar a uma crença razoável,
baseada na experiência presente, sobre o que acontece após a morte.

Quando observamos a mente em meditação, podemos ver com clareza como


cada pensamento surge e cessa, como causa e efeito operam, como estados mentais
sucedem uns aos outros exatamente como uma vida depois da outra, e como nossa
permanência imaginada é na verdade um processo de mudança contínua. Se
aprendermos a observar todas essas coisas acontecendo nesta vida, não é tão difícil
aceitar a ideia de todas elas continuarem após a morte. Nossa própria mente é a única
coisa que podemos realmente conhecer. Podemos aprender a ver, além de qualquer
dúvida, como criamos continuamente nosso próprio mundo através do poder da
mente, e como os seis reinos têm uma significação muito real na psicologia da
existência diária. Como Milton escreveu:

A mente é seu próprio lugar, e dentro dela


Pode fazer um Paraíso do Inferno, um Inferno do Paraíso.40

Trungpa Rinpoche sempre falou sobre os seis reinos como estados mentais e
enfatizou a importância de compreendê-los dessa forma, enquanto temos a
oportunidade nesta vida. Ele se referia a eles como estilos de aprisionamento, estilos
de confusão, estilos de insanidade e mundos de fantasia41. São todos estratégias para
manter o que ele chamava de jogos do ego em face à possibilidade do despertar.
Surgem a partir dos venenos, e quando permitimos que uma dessas emoções

39
Descrições tradicionais dos seis reinos podem ser encontradas em Gampopa, The Jewel Ornament of
Liberation, traduzido por H. V. Guenther, Berkeley, Shambhala, 1971, Capítulo 5, e Patrul Rinpoche, The
Words of My Perfect Teacher, Londres, Harper Collins, 1994, Capítulo 3. Ambos os livros cobrem muitos
outros aspectos do budismo.
40
John Milton, Paraíso perdido, Livro 1.
41
Ver especialmente Chögyam Trungpa, The Myth of Freedom, Boulder, Shambhala, 1976. Outros
capítulos e referências aos seis reinos podem ser encontrados em muitos de seus livros.

139
poderosas se desenvolva e tome conta de nossas vidas, encontramo-nos no reino em
particular associado a ela. 0 veneno corroendo o centro do ser que habita cada reino
se origina do medo básico de perder o ego, expresso nessas seis formas características.
Todos os reinos são baseados em apego e avidez, não nos permitindo que nos
liberemos em direção ao espaço.

Quando estamos completamente imersos em um estado emocional insuperável,


todo o nosso mundo se torna colorido por ele; tendemos a ver o ambiente e as outras
pessoas sob a mesma luz, de tal forma que se torna impossível distinguir a realidade
interior da exterior. Quando estamos felizes, descobrimos que nossa felicidade afeta
todos ao nosso redor, as pessoas reagem a nós e se sentem mais felizes também;
somos capazes de desfrutar do tempo, mesmo se estiver feio ou desagradável, e
vemos beleza até na mais feia paisagem. Da mesma forma, quando estamos
consumidos por raiva ou por ódio, tudo se torna odioso; não sentimos prazer no
ambiente que nos cerca e achamos que todos estão direcionando sua agressividade
para nós. Atraímos o pior das outras pessoas, e mesmo objetos inanimados parecem
refletir nosso mau humor, quebrando-se, ficando no caminho e causando acidentes.
Esses são exemplos diários de morada nos reinos do céu e do inferno. As descrições
dos seis reinos que se seguem podem parecer extremas; mostram cada reino em sua
forma mais intensa, não diluída por quaisquer outras características. Para nós que
somos humanos, as experiências dos outros reinos sempre acontecem dentro da
natureza humana básica; é como se víssemos apenas suas sombras ou seus reflexos.

As características dos seis reinos partilham muitos aspectos com aqueles das
cinco famílias. Em Liberação através da audição, os cinco budas pacíficos aparecem
sucessivamente por cinco dias, e simultaneamente, a cada dia, um caminho de luzes
coloridas leva a um dos reinos. Raios brilhantes, fascinantes, refulgem a partir do
coração dos budas, e à pessoa falecida é apresentada uma escolha entre a luz
penetrante do despertar e a luz mais suave e confortável dos caminhos de volta à
existência samsárica, criada pelos venenos. Aqui existe uma dificuldade óbvia em
relacionar um sistema sêxtuplo a um outro quíntuplo. O método tradicional é
identificar um sexto veneno, ganância, como sendo distinto da paixão. Seres infernais
são associados com a agressão, fantasmas famintos com a ganância, animais com a
ilusão, humanos com a paixão, deuses ciumentos com a inveja, e deuses com o
orgulho. Entretanto, isso não é inteiramente compatível com a mandala dos cinco
budas, e como resultado o texto propõe algumas conexões incomuns, que são
discutidas ao lidar com os reinos individualmente.

Trungpa Rinpoche também relacionava os seis reinos aos seis bardos. Seres
humanos em todos os reinos passam por todos os bardos, mas existe também uma
correspondência individual especial. Aqui os bardos são vistos como destaques da
natureza de cada reino. A experiência intermediária possui uma qualidade extrema: é

140
como se estivéssemos na borda de um rochedo escarpado, prontos para pular no
espaço, mas não temos certeza se esse pulo irá nos matar ou nos libertar. Isso
acontece sempre que a qualidade intensificada, ampliada, de uma emoção atinge o
seu pico; subitamente ela apresenta uma brecha, que é o portal do despertar.
Podemos ou seguir através dele e despertar do sonho do reino no qual estamos, ou
permanecer aprisionados em nossos padrões habituais de pensamento.

O REINO DOS SERES INFERNAIS

O reino dos seres infernais é o mais baixo de todos os reinos e é causado pela
agressão extrema. É o mais intenso, mais confinado e mais claustrofóbico. Todos os
venenos emocionais são viciadores; quando estamos sob o seu domínio, parecem ser
absolutamente necessários para nos manter em movimento, e fornecem uma razão
para nossa própria existência. De algumas maneiras, a agressão é o mais difícil de se
livrar, porque nos faz sentir muito fortemente que estamos com a razão. O problema é
sempre culpa de alguma outra pessoa, e parece não haver nada que possamos fazer a
não ser reagir com ódio ou raiva. Externar nossa agressividade pode nos proporcionar
um alívio de curto prazo, mas não produz de fato o resultado desejado. Queremos
destruir o mundo ao nosso redor que está nos causando tanta dor, mas em vez disso
descobrimos que o mundo é um espelho cheio de nossos próprios reflexos. Nossa
própria agressividade volta até nós de todos os ângulos, ampliada e transformada em
terríveis alucinações. Ela deságua em uma situação de extrema claustrofobia, sem
espaço para onde se abrir e sem tempo para relaxar. É por isso que, em todas as
tradições, o inferno é o mundo subterrâneo: ele jaz no mais profundo da terra,
esmagado e fechado por todos os lados, não oferecendo nenhuma esperança de
escapar.

Em outras religiões, também, o inferno é feito de fogo; mas no budismo existem


dois tipos de inferno: um feito de fogo ardente e outro feito de frio gélido. Ambos
contêm oito regiões de intensidade variável, onde diferentes tipos de tormentos são
infligidos. As descrições dos infernos são tão horríveis que podemos achar difícil
relacioná-las com nossas próprias vidas. Já que estamos no reino humano,
presentemente só experimentamos sombras dos outros reinos filtradas pela natureza
humana. Tão terrível quanto possa parecer, o inferno é uma condição que os seres
humanos conhecem muito bem. Frequentemente descrevemos suas manifestações
exteriores, tais como guerra, terrorismo, tortura e degradação, como o inferno na
terra, embora sejam apenas projeções do inferno que é experimentado primeiro
dentro do coração dos homens.

141
Fúria abrasadora e raiva incandescente conjuram a atmosfera dos infernos
quentes. Gostaríamos de queimar o mundo inteiro com a força de nossa raiva, mas em
vez disso descobrimos que nós mesmos estamos sendo consumidos. Cheios da
necessidade de vingança, gostaríamos de aterrorizar nosso inimigo, mas em vez disso o
terror nos assombra em sonhos e mesmo nas horas em que estamos acordados.
Pessoas nesse estado mental não conseguem ver sua própria agressividade e não têm
consciência do efeito que causam nas outras; sentem que só elas estão sofrendo e que
só elas são vítimas da hostilidade dos outros. Tudo que fazem volta-se para elas com o
mesmo ódio que arde em seus corações. Mesmo os elementos juntam-se na
conspiração contra elas. A terra torna-se um ferro incandescente; a água torna-se
metal derretido; o fogo irrompe de todas as fissuras do solo; e o ar é um vento
sufocante e abrasador. Não existe saída em nenhuma direção.

No primeiro nível dos oito infernos quentes, os habitantes atacam e matam uns
aos outros incessantemente. Essa imagem é algo que podemos reconhecer na vida
humana, quando a agressão cega faz com que as pessoas ataquem com violência em
todas as direções, enxergando em todo mundo um inimigo. Nos infernos quentes
restantes, as alucinações aumentam até extremos fantásticos. Os seres de lá são
incessantemente atormentados pelo servos de Yama, o Senhor da Morte, de formas
cada vez mais horríveis. Mas esses torturadores não são criaturas exteriores
semelhantes a demônios; são as projeções da mente consumida pelo ódio. Os únicos
seres conscientes nas regiões do inferno são aqueles que lá sofrem. Quanto mais forte
o apego, mais forte o senso de projeção, de tal forma que nossa situação interior
parece ser completamente dependente das circunstâncias exteriores.

Nas descrições tradicionais, uma série de infernos vizinhos cercam o mais terrível
dos infernos quentes. Existem valas de carvão ardente, pântanos cheios de corpos em
putrefação, amplas estradas pavimentadas com navalhas afiadas, florestas cujas
árvores possuem folhas de lâminas e espinhos de metal, e rios de água fervente. A
distância, parecem fornecer uma rota de fuga dos fogos do inferno, portanto a sua
simples visão instila alegria e esperança naqueles sofredores que foram finalmente
libertados. Mas não é tão fácil se livrar da intensidade do apego que fez alguém
mergulhar em uma experiência tão extrema quanto os reinos infernais. Obrigados a
peregrinar pelos infernos vizinhos, é como se alguém fosse assombrado por pesadelos
recorrentes e fosse arremessado de volta continuamente para um estado de
sofrimento, incapaz de se libertar.

Em seguida existe aquele tipo de ódio glacial, reprimido ou severamente


controlado, cheio de orgulho, ressentimento e amargura, que leva aos infernos
gelados. Em vez de partir para o ataque, tentamos congelar as outras pessoas com o
nosso desprezo. Em vez disso, nossos corações congelam enquanto olhamos para o
mundo com os olhos frios do ódio. Esse mundo congelado é também o inferno da

142
depressão e do desespero, raiva dirigida e aversão enraizada contra nós mesmos.
Sentimos um total autodesprezo e não podemos imaginar como jamais seríamos
capazes de mudar, porque somos e sempre fomos tão mesquinhos. Como se
estivéssemos trancados em um pilar de gelo, somos incapazes de nos comunicar ou
responder aos outros. Já que não existe senso de relacionamento, não existem
torturadores externos aqui; é um mundo de isolamento encerrado em si próprio. Os
corpos nus dos sofredores estalam e se empolam no frio intenso, produzindo a
aparência de flores de lótus vermelhas e azuis, que dão seus nomes a alguns desses
infernos. Aqui, assim como nos infernos quentes, não existe senso de espaço ou de
amplidão. A terra é como ferro congelado; a água solidificou-se em gelo; o ar corta
como uma espada. Tudo se tornou sólido, duro e cortante. Estamos cercados por
paredes de gelo, nossos próprios reflexos nos assombram e nossas vozes ecoam de
volta até nós.

Finalmente, existem os infernos efêmeros, que duram um período de tempo


bem mais curto. Esse tipo de inferno pode ser encontrado em diferentes locais por
toda a terra. Os seres de lá podem estar aprisionados dentro de rochas, árvores, lagos,
gelo, fogo ou qualquer tipo de objeto inanimado. Diz-se que seus sofrimentos são o
resultado de ações isoladas ou ações executadas em uma única vida, em vez do efeito
de karma negativo acumulado ao longo de períodos extremamente extensos. Essa
ideia, como a do inferno de fogo, parece ser universal; corresponde às lendas
encontradas nas mitologias tanto do Oriente quanto do Ocidente, onde os espíritos
são aprisionados, como Ariel em A tempestade, antes que Próspero o libertasse.

Existe uma lógica distorcida associada com a agressividade, na qual sempre se


justifica e põe a culpa nos outros. Tornamo-nos tão convencidos de que o nosso
sofrimento depende da situação externa que sentimos que não podemos mudar a
própria atitude. Os outros erraram, portanto não devemos ceder a eles e desistir de
nossa raiva; ou os outros nos machucaram tanto que nunca podemos deixar de odiá-
los e sermos felizes novamente. O que foi feito não pode ser desfeito; devemos isso a
nós mesmos: nunca perdoar ou esquecer. Irradiamos as chamas do ódio ardente, e
elas nos lambem de volta, da terra e do céu. Emanamos as ondas do ódio congelante e
transformamos o mundo todo em um congelador.

Diz-se que a vida nos vários infernos dura bilhões de anos pelas medidas
humanas. A agressão cria um ambiente de total constrição no qual nos sentimos
aprisionados para sempre; perdemos toda a esperança e não podemos sequer
começar a enxergar uma saída. Para um pessoa em completa desgraça, o tempo mal
parece passar, ou talvez seja mais verdadeiro dizer que o tempo perde todo o seu
significado. Não existe mais sentido de passado ou futuro, apenas o insuportável
presente, que parece eterno. Ainda assim, o apego dos seres viventes à sua própria
identidade é tão forte que parece indestrutível. Eles desejam morrer e pôr um fim ao

143
seu tormento mas não podem; são cortados em pedaços muitas e muitas vezes, e
sempre revivem.

Mas mesmo os resultados das ações mais negativas enfim acabam. As sementes
da bondade gradualmente emergem na corrente mental, e um ser infernal pode
começar a sentir remorso ou piedade por um colega sofredor. Aquele pequeno
lampejo de compaixão é o suficiente para começar o processo que finalmente leva ao
nascimento em um reino superior.

Em todos os seis reinos, o Buda se manifesta na forma mais adequada para se


comunicar com os seres que lá habitam. No inferno, ele aparece como Dharmaraja, o
Rei do Dharma, um outro nome para Yama, o Senhor da Morte. De acordo com a lenda
indiana, Yama foi o primeiro mortal a morrer, por isso se tornou o guia e o juiz de
todos os mortos. Como Dharmaraja, ele é negro ou de pele escura, e carrega vasos de
água e fogo em suas mãos para aliviar o sofrimento dos que queimam ou dos que
congelam. Aqui não há lugar para sutilezas: a dor daqueles que sofrem no inferno é
tão intensa que somente um antídoto direto irá ajudá-los, antes que possam abrir seus
corações para a mensagem do Buda. Em um nível mais profundo, ao mostrar-lhes o
fogo e a água simultaneamente, ele permite que experimentem um sentido de
contraste que está completamente ausente de suas vidas. Seres infernais estão
aprisionados em sua dor porque estão convencidos que ela é real: o queimar ou o
congelar tornou-se toda a sua existência. Ver a presença simultânea do fogo e da água
nas mãos do Buda abre caminho para um súbito momento de dúvida sobre a sua
condição — talvez haja uma alternativa, afinal de contas.

Em Liberação através da audição, o caminho que leva a este reino aparece


simultaneamente a Akshobhya, o buda da família Vajra, que transmuta o veneno da
agressão. O peso insuportável do karma negativo neste reino inferior parece colocá-lo
a uma vasta distância das qualidades despertas de Vajra. Ainda assim, existe a
possibilidade de a inteligência e a clareza irromperem. Qualquer vislumbre de
despertar está sempre conectado a um bardo, no sentido de uma brecha na qual a
solidez e a certeza se dissolvam. Já que o inferno é o reino do apego mais intenso e da
maior solidificação, ele é particularmente associado com o bardo do morrer, onde
todos os elementos e componentes do ser se dissolvem. Para os seres infernais,
abandonar sua agressividade é como morrer, porque estão tão completamente
identificados com ela. O bardo é o ponto mais alto, a experiência mais extrema do
reino. Naquele momento de maior intensidade, equilibrado entre duas alternativas,
existe uma súbita oportunidade de ver além dos dois extremos da existência e da
aniquilação do ego.

144
O REINO DOS FANTASMAS FAMINTOS

O reino dos fantasmas famintos é uma condição de extrema frustração e desejo


insatisfeito. Seu sofrimento é menos intenso do que aquele do inferno, no sentido de
que os seres aqui não se sentem totalmente oprimidos e confinados, mas ainda é
muito grande por causa do peso das ações negativas que fizeram com que nascessem
em tal estado.

Os “fantasmas” originais são apenas um grupo entre os muitos que habitam este
reino; seu nome sânscrito é preta, que significa simplesmente “os finados”.
Originalmente, preta se referia a um espírito de um morto cujos ritos funerários não
tinham sido desempenhados, por isso ele não podia continuar para seu destino de
renascimento ou liberação. Ele permaneceria assombrando o local de enterro ou de
cremação, esperando para receber as oferendas rituais que o libertariam. Uma
informação casual interessante joga luz sobre a natureza dos pretas a partir de uma
lenda hindu que diz respeito ao deus Brahma, que personifica a energia criativa do
desejo. Por meio de seu poder mental, ele criou a primeira fêmea, a filha nascida de
sua mente, mas imediatamente sua natureza o impeliu a sentir desejo por ela. Já que
ele personifica também a bondade, a verdade e a pureza, lutou para controlar seus
sentimentos, e os pretas nasceram do suor que escorreu de seu corpo durante esse
intenso conflito interior. Em muitas lendas, outras estranhas criaturas surgem de
maneira similar a partir do resíduo do desejo ou da raiva que, embora tenham sido
vencidos, não podem ser inteiramente destruídos; em outras palavras, eles sempre
dão origem a consequências kármicas, fantasmas que permanecem para nos
assombrar.

O termo fantasma faminto vem de uma interpretação tibetana do nome (em


tibetano yi dvags)42, e parece uma boa escolha porque descreve a característica
principal desse tipo de ser. Em inglês, fantasma passou a significar popularmente um
espírito suspenso entre esta vida e a próxima, assim como o significado original de
preta, portanto devemos estar cientes de que no budismo ele de fato se refere a uma
nova existência, um estado de renascimento. Da mesma forma, nossa ideia de
fantasma parece corresponder muito bem à psicologia deste reino. Todos os
fantasmas são famintos e insatisfeitos de uma maneira ou de outra, vagando
inquietos, obcecados com o que lhes falta e assombrando os outros com suas
demandas insaciáveis.

Outra classe de seres neste reino são os gandharvas, misteriosos seres


sobrenaturais da mitologia indiana que são associados à lua e têm um estranho poder
sobre as mulheres. Alimentam-se apenas de fragrâncias e são grandes médicos,
músicos e amantes. Provavelmente por causa de sua conexão com as mulheres, eles se
42
Ver Sarat Chandra Das, A Tibetan-English Dictionary, p. 1.132

145
tornaram identificados com os espíritos dos mortos que procuram por um útero para
renascer. A consciência da pessoa morta durante o bardo da existência é conhecida
como um gandharva, e este reino dos fantasmas famintos está ligado ao bardo da
existência. Os gandharvas no bardo estão fora do contexto dos seis reinos, já que ainda
não renasceram, mas, se ficarem muito tempo no bardo sem entrar em um útero,
podem consequentemente se tornarem fantasmas famintos permanentes, no sentido
pleno da palavra.

Vários espíritos habitam o reino dos fantasmas famintos, incluindo a maior parte
da vasta série de seres da mitologia indiana que não são nem plenamente humanos,
animais ou divinos. Existe um grande número de espíritos espectrais, atormentados,
que assombram áreas de cremação e outros locais desolados, incluindo alguns que
entram em cadáveres e os reanimam43. Muitos deles são malévolos e deformados de
alguma maneira, constantemente criando problemas para outras criaturas viventes,
causando infortúnios, doenças ou insanidade. Alguns sofreram mortes violentas e
ainda se encontram desnorteados pela dor e pelo medo, e alguns desejam machucar
os outros em função dos ferimentos que lhes foram infligidos em vidas anteriores, tais
como espíritos femininos que tentam prejudicar crianças e mulheres grávidas.

Em seguida existe toda uma hoste de forças negativas que provocam doenças
físicas e mentais. Nos livros de medicina tibetana, são frequentemente mencionados
como demônios e levados muito a sério nos diagnósticos e no tratamento 44. Existe
sempre algum tipo de ligação kármica do passado entre essas forças negativas e suas
vítimas. Tais conexões podem ser resultado de uma energia emocional muito forte ou
de algum tipo de fixação que passa a ter vida própria, ou então podem surgir de danos
que foram causados aos outros.

Outro tipo de demônio é o espírito noturno que se alimenta de carne e sangue


chamado rakshasa. Rakshasas são descritos como grandes, feios e violentos, cheios de
ganância e luxúria; eles tipificam as forças do mal, assim como os demônios o fazem no
Ocidente. Quando as traduções de textos tibetanos se referem a deuses e demônios,
os rakshasas são estes últimos. Trungpa Rinpoche explicava que os demônios
representam tudo de que gostaríamos de nos livrar, enquanto deuses e deusas
incorporam tudo que gostaríamos de atrair para as nossas vidas. Certos rakshasas
pertencem a um nível mais elevado, mais como deuses menores ou deuses ciumentos,
e existem muitos outros seres neste reino que são menos malignos e menos
atormentados do que a classe inferior dos fantasmas famintos. Eles algumas vezes
possuem grande poder, que podem usar para o bem se assim o quiserem, mas ainda

43
Estes são os vetalas, sobre os quais existe uma coleção maravilhosa de histórias em sânscrito.
Algumas delas aparecem em The King and the Corpse (ver nota 38), e elas estão inteiramente traduzidas
em Sivadasa, The Five-and-Twenty Tales of the Genie, Nova Délhi, Penguin, 1995.
44
Uma excelente fonte de informação é Terry Clifford, Tibetan Buddhist Medicine and Psychiatry,
Wellingborough, Aquarian Press, 1984.

146
são obcecados com suas próprias necessidades e isso os torna mentirosos e
imprevisíveis.

O Tibete possuía suas próprias tradições de seres sobrenaturais, incorporados a


outros indianos, e o mesmo aconteceu onde quer que o budismo tenha se espalhado.
Podemos fazer o mesmo; poderíamos imaginar todos os gnomos, duendes, gigantes,
gênios e vampiros, o povo das fadas e as pequenas criaturas do folclore ocidental
neste reino — todos os “demônios e fantasmas e as feras de pernas desajeitadas, e
coisas com que nos defrontamos à noite”.

Esses vários espíritos podem viver na terra, sob a superfície, no oceano ou no ar.
Embora existam muitos tipos diferentes, tradicionalmente todos são retratados como
um único tipo, uma espécie de caricatura que expressa sua natureza faminta. Possuem
bocas pequenas, pescoços longos e finos e grandes barrigas inchadas, que tanto
podem ser um sinal de fome quanto de gula. Sua inabilidade para satisfazer sua fome
se manifesta de diferentes maneiras, dependendo do fato de eles terem percepções
distorcidas do mundo externo, de sua própria condição interior, ou ambos.

No primeiro caso, alguns procuram desesperadamente por comida e bebida, mas


nunca conseguem encontrar nada. Alguns imaginam que conseguem vê-las a distância,
como uma miragem, mas quando se aproximam, aquilo se revela uma ilusão. Outros
podem ver um banquete preparado para eles, e estão prontos a começar a comê-lo
quando guardas assustadores aparecem e começam a persegui-los.

A segunda categoria de fantasmas famintos tem comida e bebida disponíveis,


mas suas bocas e gargantas são tão pequenas e seus estômagos tão grandes, que
nunca são capazes de consumir nem mesmo uma fração da quantidade de que
precisam. Possuem dedos longos e ávidos, com os quais agarram tudo freneticamente
e tentam engolir tudo que podem, mas isso somente os faz se sentirem mais e mais
vazios.

Fantasmas famintos da terceira categoria estão sujeitos a várias alucinações


interiores e exteriores, e por isso não podem se beneficiar de sua própria comida. Para
alguns, a comida e a bebida irrompem em chamas dentro deles e os queima. Para
outros, ela se transforma em substâncias repugnantes como sangue, pus e urina, que
eles comem; existem outros que acham que estão comendo sua própria carne; e para
alguns, a comida se transforma em material impossível de se comer, como ferro ou
palha.

O sentimento subjetivo básico deste reino é a privação insuportável, um senso


de pobreza combinado com gula. Paradoxalmente, os fantasmas famintos são
cercados por um ambiente de riqueza e abundância, tudo que eles desejam já está lá,
mas sua fome os impede de desfrutá-lo. A autopreservação é muito forte, portanto
existe muito pouca noção de amplidão ou relaxamento. São totalmente obcecados em

147
tentar satisfazer suas próprias necessidades, de forma que não podem se permitir
sentir a dor dos outros ou incentivar o menor impulso de generosidade. O nascimento
nessa condição de existência é o resultado de extrema avareza, maldade e sovinice.

É fácil encontrar típicos fantasmas famintos em todas as áreas da vida humana:


material, emocional, intelectual e espiritual. Isso não tem nada a ver com condições
externas; mesmo um bilionário pode ter a mentalidade de um fantasma faminto.
Pessoas que fizeram fortuna por meio de sovinice e economia muitas vezes são
incapazes de desfrutar de suas riquezas de forma adequada; estão sempre tentando
aumentá-la e ficam com receio de perdê-la. Consumo e acúmulo compulsivo são
outras manifestações dessa tendência no mundo material. De início, comprar um
objeto de desejo dá prazer, mas depois de um tempo, a atividade de comprar ou
colecionar torna-se um fim em si mesmo. Não traz mais nenhuma satisfação real, mas
na verdade desperta uma fome ainda maior. Roupas são guardadas nos armários e
nunca usadas; coleções de objetos lindos são trancadas e nunca desfrutadas ou
partilhadas com os outros.

Com frequência, devoramos sensações à maneira de um fantasma faminto,


embora isto seja difícil de detectar e identificar, porque é muito efêmero e quase
abstrato. Nossa avidez por beleza pode ser assim; por exemplo, quando bebemos da
riqueza da cor e da textura ou do aroma das flores, muitas vezes com uma respiração
mais ávida, como se tentando solidificar a sensação, trazê-la para dentro de nós e
possuí-la.

Emocionalmente, o fantasma faminto é insaciável. Pode ser alguém que tente


com desespero fazer amigos, seja extremamente exigente por um tempo, mas depois
perca o interesse. Ou alguém que se apaixona várias vezes seguidas, mas nunca
encontra o parceiro certo com quem estabelecer uma relação sólida. O eterno
estudante, sempre querendo acumular mais informação, mas nunca colocando-a em
prática, é um exemplo do fantasma faminto no reino das ideias. Da mesma forma,
buscar um caminho espiritual pode se tornar um meio de vida, coletando amostras de
todos sem assumir um compromisso. Em todos esses casos, a busca, a esperança e a
expectativa se tornam mais importantes do que a realização. Na verdade, Trungpa
Rinpoche dizia que qualquer tipo de fome — seja de conhecimento, de habilidades ou
mesmo de iluminação — e qualquer processo de aprendizado pertencem ao reino dos
fantasmas famintos.

Podemos ligar vários exemplos da psicologia dos fantasmas famintos às três


categorias de percepção distorcida nas descrições tradicionais. Algumas vezes as
pessoas sentem que, se pelo menos pudessem encontrar o lugar ideal para viver ou o
trabalho ideal, seriam perfeitamente felizes: isso é como o fantasma faminto que não
consegue encontrar comida ou para quem ela é apenas uma miragem. A busca
interminável por amor ou perfeição é a mesma coisa. O fantasma faminto que é

148
expulso do local onde há comida e bebida é um exemplo dessas pessoas que, no
fundo, não acreditam que merecem obter o que desejam. Ninguém na verdade os
impede, mas eles enxergam todos os tipos de obstáculos, de forma a negar a si
mesmos a oportunidade de realização.

Aqueles que não são obstruídos externamente, mas que mesmo assim são
incapazes de consumir e utilizar a alimentação, comportam-se como os fantasmas com
estômagos grandes e bocas pequenas. Adquirem e colecionam todo tipo de coisa, sem
obter nenhum benefício ou satisfação real. Para utilizar uma metáfora ligada à comida,
eles podem consumir vastas quantidades de conhecimento e informação, sem digeri-
las. Algumas vezes não saboreamos a experiência do momento presente, porque
estamos tão ansiosos por capturá-la para o futuro: um estudante atento em tomar
notas perde a essência do que está sendo dito; um turista ocupado tirando fotografias
não desfruta realmente da qualidade viva da cena. O que quer que recebamos através
de qualquer de nossos sentidos é alimento para todo o nosso ser, mas não pode nos
alimentar a menos que a ingiramos de maneira adequada e completa.

Quando a comida não realiza o seu propósito de alimentar, causa mal- estar;
essa é a situação ilustrada pela terceira categoria de fantasma faminto. Se o próprio
querer se torna mais importante, quando obtemos o que queremos, perdemos o
interesse, ou descobrimos que aquilo é inútil para nós, ou que na verdade não
queríamos aquilo: virou palha. Algumas vezes conseguimos o que queremos e
descobrimos que aquilo é um fardo pesado, como um pedaço de ferro; ou que nos
enoja e nos revolta, como pus. Se usamos mal os dons e oportunidades desta vida por
causa de ganância e maldade, podemos terminar nos sentindo desapontados,
enganados e amargos, ao ponto de queimarmos por dentro de desespero. Isso é
particularmente verdadeiro na esfera espiritual. Se seguimos um caminho com uma
atitude de apego — o que Trungpa Rinpoche chamava de materialismo espiritual —, o
que quer que aprendamos pode se tornar um obstáculo para a realização genuína.

A mentalidade do fantasma faminto é “tudo pegar e nada dar”. Ele usa as


pessoas e as situações; trata tudo e todos como objetos de consumo. No folclore, os
fantasmas sugam todo o calor da atmosfera ao redor deles. Pessoas em um estado de
fantasma faminto sugam a energia dos outros, fazendo todo mundo nas vizinhanças se
sentir drenado e exausto. Quanto mais você der para eles, mais vão pedir.

Este reino possui afinidades tanto com a família Padma quanto com a Ratna. Em
Liberação através da audição, está ligado a Amitabha, o buda da família Padma. O
caminho que leva até ele é descrito como “produzido por paixão e maldade” e
“acumulado de intensa paixão”. Emoções tais como paixão, desejo, ganância e querer
são normalmente consideradas características de Padma. Entretanto, Trungpa
Rinpoche relaciona o reino dos fantasmas famintos à família Ratna. Dois outros textos
do mesmo ciclo de Liberação através da audição, chamados As cem homenagens e A

149
prática do dharma45, só mencionam maldade e avareza como causa de nascimento
como um fantasma faminto. Isso se encaixaria na psicologia de Ratna, já que é o outro
lado da generosidade e expansividade daquela família. Orgulho é o veneno
normalmente associado com Ratna, mas aqui, em vez de orgulho de riquezas, é um
orgulho distorcido no sentido da privação, inseparável do da pobreza. É um vazio oco,
pedindo para ser preenchido.

O buda que aparece no reino dos fantasmas famintos é chamado Jvalamukha,


Boca de Fogo. É vermelho na cor, o que o relaciona com a família Padma. Ele brilha
com a luz e o calor ilimitados de Amitabha, que nunca podem ser drenados, e com
compaixão infinita, que nunca pode ser exaurida. Carrega um vaso com ambrosia
divina para satisfazer todas as necessidades. Mas esse dom da comida perfeita, que
terminaria com a fome dos fantasmas famintos para sempre, propõe a eles o dilema
final: aceitá-lo significaria abrir mão de suas existências como fantasmas famintos. Essa
é a suspensão entre esperança e medo, apego e desapego, típica do bardo da
existência. Existência é baseada em apego, como vimos na roda da vida; o fantasma
faminto está sempre procurando por alguma outra coisa, faminto por uma nova vida,
mesmo assim temendo a perda da antiga. A brecha do bardo é um momento de
oportunidade no qual abandonamos os extremos da esperança e do medo.

O REINO DOS ANIMAIS

O reino animal é o único no qual somos capazes de observar os seres viventes


que o habitam. Aqui se torna particularmente óbvio que as descrições dos seis reinos
não pretendem fornecer um quadro completo e literal da vida no interior deles, mas
apenas apresentar a qualidade emocional essencial, subjacente, de cada tipo de
existência. A vida animal cobre um amplo espectro de espécies, e as incontáveis
criaturas dentro deste reino apresentam uma vasta gama de comportamentos
diferentes. Se observarmos os animais de perto, especialmente aqueles que são
domesticados, poderemos ver que mostram características de todos os seis reinos em
momentos diferentes, dentro das limitações de suas próprias consciências. Mas colorir
a experiência deles com todos os outros reinos é o veneno feito de ignorância,
confusão e ilusão. Liberação através da audição adverte que a pessoa “pode cair no
reino animal da ilusão e experimentar o sofrimento da estupidez, da mudez e da
escravidão”.

Do ponto de vista cristão e mesmo do ponto de vista secular ocidental, os


animais são vistos como inocentes e não responsáveis por suas ações, porque não

45
Em tibetano, brgya phyag sdig sgrib rang grol zhes bya ba bar do thos grol gyi cha lag e chos spyod
bag chags zhes bya ba bar do thos grol gyi cha lag, respectivamente.

150
distinguem o bem e o mal. Pela mesma razão, são considerados inferiores aos seres
humanos e, em termos cristãos, sem alma. A visão budista é inteiramente diferente.
Todos os seres conscientes em todos os seis reinos possuem a natureza de buda. Mas
pelo fato de sua natureza essencial estar obscurecida pela ignorância, estão
igualmente sujeitos à lei do karma, e a lei do karma é simplesmente uma questão de
causa e efeito. Já que tudo está mudando continuamente e nenhuma condição é
permanente, eles consequentemente renascerão em estados mais favoráveis. Todo ser
vivente já experimentou nascimento em todos os seis reinos repetidamente. Os reinos
dos animais, dos fantasmas famintos e dos seres infernais são chamados de reinos
inferiores, porque são formados por uma predominância de karma negativo, e são
também muito difíceis de escapar, porque esse tipo de karma forte e negativo tende a
se autoperpetuar. O tormento dos seres infernais produz ainda mais raiva e ódio, e o
sentimento de privação dos fantasmas famintos torna-os ainda mais avarentos. Da
mesma forma, o sofrimento sentido pelos animais leva-os continuamente a mais
perplexidade e confusão.

Os animais têm seu próprio tipo de inteligência, que é apropriada ao seu estado
de existência. Eles agem direta e instintivamente, sem dúvidas ou hesitações; possuem
sentidos extremamente aguçados, âmbitos de percepção que nós perdemos, e
algumas vezes o que parece ser poderes de percepção extra-sensorial; também
possuem habilidades físicas e de coordenação maravilhosas. Mas seu intelecto e poder
de raciocínio são pouco desenvolvidos. Não podem formular perguntas sobre sua
existência ou examinar suas próprias mentes. Simplesmente vivem suas vidas com
total envolvimento e absoluta absorção.

Um psicólogo diria que os animais não têm auto percepção ou auto-consciência,


mas de um ponto de vista budista poderíamos dizer que eles têm consciência somente
do eu. Percebem o mundo totalmente em relação a si mesmos, que só faz sentido até
onde o afete e às suas reações. Obviamente, experimentam a dualidade do eu e do
outro em um sentido prático mas o outro existe somente em termos do eu. Isso é
exatamente o que o budismo quer dizer com ilusão. É a criação de um mundo só seu,
um casulo para a existência individual, separada. É como um mundo de sonho onde
tudo é a manifestação do sonhador, por isso o reino animal está relacionado com o
bardo do sonho.

Quase toda a atividade dos animais está dirigida para a imediata satisfação de
suas necessidades. São extraordinariamente pacientes, persistentes e obstinados
nessa busca; instintivamente se beneficiam de toda oportunidade que se apresente, e
não se preocupam com as consequências para eles ou para os outros. Isso só é possível
porque lhes falta a visão de um horizonte mais amplo; o seu mundo é estreitado na
direção de sua própria sobrevivência e da propagação de sua espécie.

151
Muito do sofrimento do reino animal deriva da luta pela sobrevivência. Na
natureza, muitos animais estão continuamente ou matando ou sendo mortos. As
presas estão em constante medo de perder suas vidas; não podem relaxar por um
único momento. Os predadores se exaurem caçando, enquanto aqueles que não são
carnívoros passam todas as suas horas acordadas procurando por comida; eles estão
inteiramente à mercê do ambiente e do clima. Dessa forma, estão continuamente
reforçando seu estado de ilusão autocentrada, que os prende ao renascimento no
mesmo reino, ou criando karma de gula ou agressão, que pode finalmente levá-los ao
reino dos fantasmas famintos ou dos seres infernais. Mas, acima de tudo, os animais
sofrem nas mãos dos seres humanos. A despeito de sua força física quase sempre
maior do que a nossa, nós os caçamos, os matamos, destruímos seus hábitats, os
escravizamos, os exploramos e abusamos deles, e somos capazes de fazer tudo isso
por causa de um poder mental maior. Por causa da falta do tipo certo de inteligência,
eles se permitem ser capturados, manipulados e controlados.

O reino animal é muito próximo do reino humano. Muito da existência humana


diária parece ser gasta em um estado mental animal, aceitando a vida como ela é, em
um estado semiadormecido, sem desafios intelectuais e espiritualmente inconsciente.
É bem possível viver uma vida contente e materialmente produtiva dessa maneira. As
pessoas com características do reino animal são normalmente convencionais,
dependentes, sérias e eficientes. Possuem um sentido firme de prioridades e
hierarquia. Podem ser excelentes pais e pilares da comunidade. São muito leais a suas
famílias e a qualquer grupo com o qual se identifiquem, mas intensamente
desconfiados de pessoas de fora, que podem com facilidade levá-las a atitudes de
chauvinismo, racismo ou intolerância religiosa. São o tipo de pessoa que pode dizer
“meu país certo ou errado” e “se foi bom para meus pais, é bom para mim”. Adoram
clichês e opiniões de segunda mão, porque não querem pensar as coisas por si.
Acreditam em trabalho duro e honesto, mas não são particularmente ambiciosas;
preferem ser empregados do que ter de enfrentar os desafios da liderança. Mesmo o
trabalho intelectual pode ser feito com uma atitude de animal: a pessoa pode ser
altamente culta e ter absorvido muito conhecimento, mas lhe falta a imaginação para
fazer uso disso de uma forma inspiradora ou inovadora.

Qualquer comportamento que consideremos instintivo, automático ou habitual


partilha da mentalidade animal. Animais gostam de rotina e se tornam ansiosos
quando ela é perturbada. No nível mais básico, a vida gira em torno de comida, sono,
sexo e autopreservação. Existe sempre um sentido de restrição e limitação, uma
ausência de visão. Qualquer situação nova ou desconhecida é perturbadora ou
ameaçadora, e vista com suspeita. A mentalidade animal é realista e prática, mas é
indiferente à beleza. Ela não pode dar um passo atrás e olhar para si objetivamente,
portanto não tem senso de ironia, e não está nem um pouco interessada em
autoconhecimento. É totalmente séria e sincera, e odeia ser ridicularizada ou criticada.

152
Seres humanos são parecidos com animais, porque são facilmente controláveis
manipuláveis pela sociedade, pela religião, pela educação, pela publicidade e todos os
tipos de influências. É a parte ignorante e crédula de nossa natureza que permite que
sejamos usados dessa maneira.

Quando as pessoas acusam os seres humanos de se comportarem como animais,


estão geralmente se referindo à violência extrema, crueldade ou destrutividade, ou
gula e excessos, que na verdade não são nada típicos dos animais, mas são mais
prováveis de serem manifestações dos reinos dos fantasmas famintos e dos infernos.
O sabor do reino animal é a confusão e a inconsciência. As ações são levadas adiante
instintivamente, através do hábito, com uma qualidade de ignorância indiferente.

O reino animal tem muito em comum com as características da família Buda, e é


com regularidade ligado a ela. Entretanto, em Liberação através da audição, ele não é
especificamente ligado a nenhuma das cinco famílias. Durante as aparições dos cinco
budas, um dos seis reinos deve necessariamente ser omitido, portanto o caminho que
leva ao reino animal aparece mais tarde, quando um aspecto diferente do estado
desperto se manifesta. Essa é a visão dos cinco vidyadharas, personificando os
princípios de percepção, comunicação, inteligência e profunda visão interior: a
transmutação final de nossa natureza animal.

O buda que aparece no reino animal é chamado Dhruvasimha, Leão Inabalável, já


que o leão é o rei dos animais. Sua cor é azul, uma das duas cores alternativas
associadas com a família Buda. Ele traz um texto sagrado em suas mãos. Como um
símbolo budista, um texto representa o dharma inteiro, seja ele falado ou escrito.
Existem muitas maneiras diferentes de se ensinar o dharma, e o buda podia, é claro, se
comunicar com os animais intuitivamente; mas é significativo que ele na verdade
apresenta o dharma a eles na forma de um livro. A linguagem marca um estágio crucial
na evolução da consciência: o desenvolvimento da razão e a habilidade de expressar
pensamentos andam lado a lado. O dom da linguagem simboliza a inteligência superior
que deve ser desperta de forma a liberar a natureza animal da escravidão de sua
existência auto satisfeita, que é similar ao bardo do sonho. Como podemos mostrar
àqueles no estado mental animal que eles estão adormecidos e que o que quer que
estejam experimentando é um sonho? Ao ver o livro do dharma nas mãos do buda,
eles recebem um vislumbre de um mundo diferente, e uma súbita brecha de incerteza
se abre. Estou acordado ou adormecido? Esta vida é real ou é apenas um estado de
ilusão?

O REINO DOS SERES HUMANOS

153
De acordo com a antiga cosmologia indiana, raças de humanos habitavam os
quatro diferentes continentes ou mundos (literalmente, “ilhas”), situados nos pontos
cardeais ao redor do monte Meru, o eixo do nosso sistema de mundo. Nossa morada
era o continente sul, Jambudvipa, a ilha da Maçã Rosa. Originalmente, Jambudvipa
abrangia apenas a Índia ou o Sul da Ásia, mas hoje em dia significa todo o planeta
Terra.

Quando refletimos sobre o reino humano, devemos nos lembrar mais uma vez
de que estamos olhando aquilo que o distingue particularmente dos outros reinos, em
vez de descrever todo o espectro da existência humana. Como seres humanos, em um
nível psicológico, passamos continuamente através de todos os seis reinos durante o
curso de nossas vidas diárias, embora exista uma qualidade humana quintessencial
que permeia todas as nossas experiências. A correlação tradicional é com a família
Padma, embora em Liberação através da audição seja com a família Ratna. O reino
humano tem grandes afinidades com ambas, assim como o reino dos fantasmas
famintos, mas aqui existe um sabor completamente diferente daquele dos fantasmas
famintos.

A família Padma expressa a transmutação da paixão e do desejo. É a família do


Buda Amitabha e do Bhodisattva Avalokiteshvara, as duas manifestações mais amadas
da iluminação, onde quer que o budismo tenha se espalhado neste mundo, portanto
existe uma atração inerente dentro da mente humana a tudo o que Padma representa.

Trungpa Rinpoche descrevia o reino humano como o epítome da comunicação e


do relacionamento, que por sua vez é a essência da paixão. Podemos ver que isso é
verdade ao compará-lo com os outros reinos. A inteligência dos animais não se
desenvolveu o suficiente para que eles pudessem se comunicar plenamente, enquanto
os fantasmas famintos e os seres infernais estão muito imersos em seu próprio
sofrimento para se relacionarem com os outros; deuses e deuses ciumentos possuem
inteligência superior, mas suas mentes estão inteiramente ocupadas com seus
próprios interesses. Somente os seres humanos são tão curiosos a respeito de tudo ao
seu redor, tão emocionais, tão afetados pelos outros e tão ansiosos para fazerem
contato. Junto com a comunicação, existe uma ânsia criativa e um esforço idealista
pela perfeição. Seres humanos são desesperados para saber tudo o que há para saber;
querem atrair tudo para sua própria esfera e trazer tudo sob seu controle. A pesquisa
científica é essencialmente uma paixão pelo conhecimento e a arte, uma paixão pela
expressão. Essa qualidade passional de magnetizar, de curiosidade e de criatividade
alimentou o desenvolvimento humano desde o início da história.

É esta qualidade que dá à vida humana seu valor único na visão budista. Ela é
chamada de preciosa vida humana, porque entre os seis reinos ela oferece a melhor
oportunidade para praticar o dharma e atingir a iluminação. Aqui estamos falando
sobre a encarnação como ser humano, em vez de experimentar o reino humano como

154
um estado mental temporário. Nascemos com um anseio de descobrir o significado de
nossa existência, um desejo de atingir a perfeição e um instinto para o
relacionamento; todas essas qualidades nos permitem receber a comunicação do
dharma e abrir nossas mentes para o espaço do despertar.

Quando a paixão se torna obsessiva, ela degenera em apego, ganância e luxúria,


que resultam no grande sofrimento que aflige o reino humano: o sofrimento da perda
e de não sermos capazes de mantermos aquilo que amamos; o sofrimento de não
obtermos o que desejamos e termos de suportar o que não desejamos; e o sofrimento
da dor e da morte, que é o resultado do apego ao corpo e do agarramento à ideia do
eu.

Em Liberação através da audição, entretanto, o caminho que leva ao reino


humano aparece ao mesmo tempo que a visão de Ratnasambhava, o buda da família
Ratna, e diz-se que é “acumulado de orgulho intenso”. As cem homenagens e A prática
do dharma, por outro lado, ligam o reino humano à paixão. É interessante que ambas
as conexões se fazem. Como vimos no reino dos fantasmas famintos, as características
de Padma e Ratna estão intimamente relacionadas, mas no caso da mentalidade dos
fantasmas famintos, suas paixões são extremamente apegadas e avarentas, e seu
orgulho é combinado com maldade e egoísmo. No reino humano, encontramos um
sentimento de orgulho mais positivo e expansivo, um orgulho que alimenta os
relacionamentos em vez de se afastar deles. A joia realizadora de desejos, que concede
todos os desejos, é o símbolo da família Ratna, portanto poderia ser vista como o
complemento natural ao desejo da família Padma.

Por contraste, Trungpa Rinpoche dizia a um certo ponto que “o reino humano
parece ter menos orgulho do que qualquer dos outros reinos”46. Ele explicava que
queria se referir ao orgulho da autossatisfação e da complacência. De uma maneira
geral, é uma característica humana não se acomodar sobre as conquistas feitas, não
permanecer satisfeito, mas sempre se mover em direção a alguma coisa nova. Existe
uma energia inquieta, pesquisadora na natureza humana que evita que a pessoa fique
imobilizada, e isso torna possível estar aberto a novas possibilidades e receptivo aos
ensinamentos espirituais.

Entretanto, existem muitos aspectos diferentes do orgulho; ele pode facilmente


se transformar em arrogância e superioridade, o que com muita frequência domina os
relacionamentos humanos com outros seres viventes, especialmente com os animais.
Esse aspecto do orgulho parece ser uma característica particularmente humana,
comparada com os habitantes dos outros reinos. Na verdade tem sido um fator básico
na evolução humana, já que somente uma atitude inerente de arrogância, combinada
com curiosidade e uma criatividade apaixonada, poderia ter possibilitado à

46
Ver Transcending Madness, p. 244 e 253.

155
humanidade dominar a natureza em tal extensão. O termo sânscrito para orgulho é
mana, que está ligada às palavras mente e homem. O Homo sapiens evoluiu por meio
do desenvolvimento do poder mental, e essa mente, perguntando sobre tudo com
curiosidade insaciável e inventividade ilimitada, construiu a civilização da qual tanto se
orgulha. A história da raça humana realmente parece ser um drama de paixão e
orgulho entremeados.

Trungpa Rinpoche relaciona o reino humano ao bardo do corpo ilusório,


substituindo o bardo do dharmata na lista normal dos seis bardos. A prática do corpo
ilusório é um dos estágios finais do yoga, mas não é geralmente classificado como um
bardo. Em Liberação natural, essa prática é incluída como parte das instruções ligadas
ao bardo dos sonhos; ao comentá-la, Gyatrul Rinpoche destaca que ela pode ser vista
como uma prática preliminar para todos os bardos47. Trungpa Rinpoche a apresenta
como o epítome da experiência do bardo, um estado de suspensão no qual
começamos a enxergar a ambiguidade de nossa situação em qualquer dos reinos:
“Você está entre extremos, e se dá conta de que isso também é uma situação
extrema.”48

A essência do yoga do corpo ilusório é a percepção de que o seu próprio corpo e


a sua mente, assim como os fenômenos externos, são irreais, assim como uma imagem
em um espelho ou o reflexo da lua na água. Essa prática interrompe a crença em nossa
substancialidade e o apego a ela, e nos coloca em uma posição de total incerteza a
respeito de nossa própria existência. Trungpa Rinpoche a relaciona com a natureza da
paixão intensamente pessoal e sensível do reino humano, que nos faz tão
singularmente vulneráveis e com frequência produz um sentimento de conflito e de
ambiguidade. Nunca sabemos bem onde estamos, se as coisas são reais ou irreais,
sólidas ou transparentes, amigáveis ou ameaçadoras. Uma vez que percebamos que as
coisas não são o que parecem, podemos começar a vê-las como realmente são.
Compreender esse princípio é o primeiro passo para alcançar o puro corpo ilusório da
deidade, que faz a ligação com a aparição das deidades pacíficas e coléricas no bardo
do dharmata.

O buda do reino humano é o próprio Shakyamuni, que pertence à família Ratna,


retratado com seu corpo dourado brilhante e túnicas cor de açafrão. Shakyamuni é o
Sábio do clã dos Shakyas e é algumas vezes chamado de o Leão dos Shakyas. Ele
carrega uma cuia de pedinte e um bastão de mendigo, que simboliza o antídoto tanto
para o orgulho quanto para o desejo. Ele abriu mão de uma vida de príncipe, o
pináculo da existência mundana e tornou-se um pedinte sem teto e sem status, sem
posses e sem prazeres sensuais. Aos olhos das pessoas mundanas, ele foi um fracasso
completo, e mesmo assim sua aparência irradia alegria absoluta, realização, dignidade

47
Natural Liberation, p. 150.
48
Transcending Madness, p. 295.

156
e paz. Esse é um desafio supremo para as pressuposições básicas da mentalidade
humana. Sua cuia de pedinte vazia apresenta o paradoxo final, e vê-la pode
subitamente mergulhar a mente no espaço aberto do despertar.

O REINO DOS DEUSES CIUMENTOS

Os deuses ciumentos são os oponentes dos deuses, continuamente em guerra


entre si por causa de ciúme e inveja. Em sânscrito são chamados de asura, que é
muitas vezes traduzido como “antideus”. Em traduções das lendas hindus, são algumas
vezes chamados de demônios; isso provavelmente se deve ao fato de que muitos deles
são também rakshasas, aquelas criaturas ferozes e sedentas de sangue que estão
classificadas entre os fantasmas famintos no sistema budista. Na maioria das lendas,
certamente aparecem como maus e demoníacos, empenhados na destruição do
mundo, enquanto os deuses lutam do lado do bem. Diz-se nos Vedas que os deuses
escolheram a verdade e rejeitaram a falsidade, enquanto os deuses ciumentos
escolheram a falsidade e rejeitaram a verdade. Mesmo assim este reino ainda é um
dos três mais elevados no qual o karma positivo predomina sobre o negativo. Os
deuses ciumentos eram os irmãos mais velhos dos deuses, e fundamentalmente
possuem a mesma natureza divina, com toda a sua inteligência, poderes e vantagens.
Seu caráter não é tão completamente dominado pela negatividade como o dos seres
nos reinos inferiores. Eles não são tão dominados pelo sofrimento das aflições
emocionais, e têm muito mais liberdade de ação. Entretanto, a despeito de sua grande
inteligência e potencial, podem facilmente cair para os três reinos inferiores. Sua
tendência à agressividade e violência muitas vezes faz com que pareçam demoníacos,
o que sugere os reinos infernais, e suas características de rakshasa os conecta ao reino
dos fantasmas famintos. Nas lendas hindus, muitas vezes assumem a forma de
animais; um deus ou uma deusa luta com eles e os mata, liberando-os de sua natureza
bestial, o que representa sua ilusão extrema.

Nessas lendas, em geral descobrimos que algum impulso de ciúme deflagra sua
agressividade, portanto o nome deuses ciumentos é bastante apropriado. Pode ser
ciúme da mulher de alguém, ou de status ou de posses, agravado pela convicção de
que todas essas coisas pertencem a eles por direito e lhes estão sendo negadas.
Algumas vezes parecem revolucionários: bons ou maus, dependendo de qual lado eles
apoiam. São retratados na roda da vida como guerreiros vestidos com armaduras e
portando armas. Possuem todas as qualidades associadas a guerreiros e heróis ao
longo da história: coragem, liderança, dinamismo e, acima de tudo, tremenda energia.
São capazes de fazer grandes benefícios assim como grandes malefícios, e seu caráter
vai de nobre e altamente civilizado até rude, impiedoso e tirânico, não muito diferente
dos ditadores em nosso mundo. São famosos por seus poderes mágicos, e se forem

157
atraídos pela religião, geralmente é com a intenção de ganharem poder. Muitas vezes
atingem níveis espirituais muito avançados por meio de práticas ascéticas, que tendem
a perseguir com ambição concentrada, como tudo o que fazem.

Trungpa Rinpoche descreve o processo de desenvolver uma mentalidade de deus


ciumento por meio de contrariedades e desilusões com o reino dos deuses, que cresce
como uma reação contra ele. Quando o karma positivo que causou o renascimento
como um deus se exaure, o único caminho a seguir é para baixo. O reino dos deuses é
um local de prazer, perfeição, ordem e civilidade que contém dentro de si a semente
dessa reação. Ela dá lugar a um elemento de rebeldia, um desejo de experimentar
alguma coisa rude e realista, e uma necessidade impulsiva de expressar sua própria
energia sem restrições. Uma vez que desenvolvamos essa atitude de
descontentamento, não é mais possível relaxar e desfrutar da existência bem-
aventurada dos deuses. Mesmo assim permanece uma inveja subjacente daqueles que
ainda podem desfrutá-la, um sentimento de estar sendo enganado e um medo de
perder aquilo que era nosso por direito. Então começamos a nos sentir impedidos e
excluídos, e a suspeita cresce furiosa. Não se pode confiar em ninguém; imaginamos
que todos estão nos espiando e fofocando a nosso respeito. Logo toda tentativa de se
comunicar parece uma ameaça, e as conspirações são vistas em todas as direções. Isso
é paranoia, o lado extremo do estado mental dos deuses ciumentos.

Os deuses ciumentos habitam as encostas do monte Meru, logo abaixo do reino


dos deuses. Em muitas pinturas da roda da vida, esses dois reinos são representados
como um só, dividido apenas por uma grande árvore — a árvore da realização dos
desejos, a kalpataru, que concede todos os pedidos. Os deuses ciumentos sentem-se
permanentemente insultados pela visão dela, porque embora suas raízes cresçam no
território deles, seus frutos mágicos são acessíveis apenas aos deuses.

Outro grande tesouro que os deuses possuem e que falta aos deuses ciumentos
é o elixir da vida. Nesse caso, o ciúme parece ser plenamente justificado, já que os
deuses o ganharam através da astúcia e da fraude. A despeito de seu amor pela
verdade, muitas histórias mostram os deuses seguindo a verdade apenas literalmente,
e não em espírito. Nessa lenda em particular, os deuses planejaram erguer uma
reserva de tesouros que estavam nas profundezas do oceano cósmico, e que incluía a
árvore dos desejos e o elixir da vida (amrita ou soma). Fizeram uma trégua com os
deuses ciumentos e os persuadiram a ajudá-los a revolver o oceano, uma tarefa que
necessitava de todas as suas forças combinadas. Muitos tesouros maravilhosos
apareceram; cortesãs divinas, animais miraculosos, as cinco árvores do paraíso, armas
invencíveis e joias mágicas emergiram das águas agitadas, como manteiga originando-
se do leite. Finalmente o próprio elixir emergiu, trazido para o alto pelo médico divino,
no que os deuses ciumentos, espertos como sempre, apoderaram-se dele e quase
conseguiram roubá-lo. Mas o deus Vishnu transformou-se em uma linda e encantadora

158
mulher, a personificação da ilusão, e conseguiu enganá-los e fazê-los desistir dele.
Como resultado dessa fraude, os deuses ciumentos estão condenados a sofrer
ferimentos terríveis e a morrer em grande número durante suas batalhas, enquanto os
deuses são milagrosamente curados e vivem vidas imensamente longas, graças ao
poder do elixir.

Essa história joga uma luz interessante sobre a mentalidade dos deuses
ciumentos: como no ditado, “só porque você é paranoico, não quer dizer que não haja
alguém lhe perseguindo”. Seu ressentimento pode muito bem ter sido causado por
algum tipo de injustiça, mas é a natureza apegada do ego que produz a reação
distorcida de ciúme e inveja. Então, assim como com os outros venenos, um círculo
vicioso se cria: eles alimentam continuamente suas suspeitas e encontram mais causas
para o ressentimento, provocando uma paranoia sempre crescente.

O caminho que leva ao reino dos deuses ciumentos aparece no quinto dia, junto
com a mandala de Amoghasiddhi, senhor da família Karma. Suas características são
muito próximas da descrição da personalidade Karma. Eles sempre sentem que seus
vizinhos têm alguma coisa melhor, que a grama é sempre mais verde do outro lado da
cerca. O que quer que possuam, temem que alguém esteja planejando roubá-la, assim
como eles o fariam, portanto têm de permanecer constantemente em guarda. Estão
sempre preparados para a guerra; esse tema é ao mesmo tempo seu trabalho e sua
diversão. A diplomacia tem sido descrita como a guerra conduzida por outros meios, e
deuses ciumentos têm as qualidades dos diplomatas ou espiões, para quem qualquer
relacionamento é sempre uma oportunidade para intriga. Com seu intelecto aguçado,
imaginam que todo mundo está jogando algum jogo complicado ou engajado em
alguma conspiração. Na vida espiritual, eles são ambiciosos; sua energia os leva a
extremos, e podem com facilidade se tornar fanáticos. São intensamente competitivos,
vendo rivais em toda parte. São manipuladores e usam as pessoas para seus próprios
fins. Estão constantemente comparando sua situação com a dos outros e são rápidos
para sentir qualquer insulto, real ou imaginado.

A família Karma é ligada com a velocidade, e a velocidade crescente de nossa


cultura e modo de vida poderia ser considerada encorajadora do estado mental dos
deuses ciumentos. Vivemos em um mundo acelerado onde parece cada vez mais
importante conseguirmos o que queremos agora mesmo. A atividade da família Karma
muitas vezes surge de uma preocupação com a justiça e os direitos humanos, mas sua
distorção como política da inveja é típica deste reino. Ela demonstra claramente como
a energia da ação pode se tornar demoníaca se permitirmos que a competitividade e a
suspeita a ponham fora de controle.

Este reino está relacionado com o bardo desta vida, durando do nascimento até
a morte, o que também é baseado na velocidade. Uma vez que o estado mental
ganhou existência, deve ser mantido em movimento; o ímpeto emocional deve ser

159
mantido. Simplesmente estar vivo acarreta uma batalha constante contra as forças da
decadência, e a energia furiosa dos deuses ciumentos é o instinto de sobrevivência
levado a seu extremo. Portanto a brecha, a pausa em sua atividade que poderia abrir
um vislumbre de liberação para eles, é a experiência culminante de estar equilibrado
entre a velocidade intensa e a total imobilidade, ou entre ganhar e perder, e a
incerteza de saber qual é qual.

Neste reino, o buda aparece como um guerreiro, de cor verde, segurando uma
espada e um escudo, e vestido com uma armadura brilhante. Seu nome é Vemachitra,
Aquele que Usa uma Vestimenta Brilhante. Os deuses ciumentos não seriam capazes
de ouvir a mensagem de compaixão do buda; não acreditariam nos seus motivos e
desprezariam sua suavidade. Já que percebem tudo como um inimigo, a única maneira
que ele pode se comunicar com eles é em seu próprio território, cara a cara como
guerreiros. Ele não se manifesta como uma deidade colérica com uma forma terrível,
mas é invencivelmente pacífico e absolutamente poderoso. Ele apenas bloqueia todos
os ataques dos deuses ciumentos e faz com que a sua correria impetuosa pare, de tal
forma que ao confrontar o buda, eles sejam forçados a pelo menos se confrontarem
consigo mesmos.

O REINO DOS DEUSES

O reino dos deuses é um reino de prazer: prazer material em seus níveis mais
inferiores e prazer espiritual em seus níveis mais elevados. É o reino mais elevado
dentro do samsara, portanto está situado no topo da roda da vida. Assim como as
ideias populares de paraíso em todas as culturas, é um lugar de prazer e perfeição, o
ideal pelo qual os seres humanos se empenham. Os deuses desfrutam de tudo que
poderiam possivelmente desejar, são altamente inteligentes e criativos, possuem
poderes mágicos e são capazes de atingir os níveis mais avançados de meditação.
Mesmo assim, estão confinados dentro do samsara e são parte do interminável ciclo
da roda da vida.

O reino dos deuses é dividido em três partes: o mundo do desejo, o mundo da


forma e o mundo sem forma. Essa classificação tripla na verdade inclui todos os seis
reinos; o todo da existência samsárica é conhecido como os três mundos. Mas os
mundos da forma e o sem forma abrangem apenas os níveis mais altos do reino dos
deuses, enquanto o mundo do desejo inclui os outros cinco reinos, assim como os
níveis inferiores do reino dos deuses.

O mundo do desejo é o mundo dos sentidos. Significa desejo por todos os


prazeres de todos os sentidos, incluindo os prazeres da mente. Os cinco outros reinos
e os níveis inferiores do reino dos deuses são completamente dominados e

160
determinados pela experiência sensorial, indo do quase inteiramente doloroso nos
infernos até o quase inteiramente prazeroso nos paraísos. Existem seis paraísos no
mundo do desejo dos deuses, habitados por várias classes de deidades, e todos
contendo palácios mágicos, jardins de prazer magníficos e todo o tipo de perfeição e
satisfação que poderia ser imaginado.

De acordo com a mitologia, o mais inferior desses paraísos está situado nas
encostas do monte Meru e é regido pelos quatro grandes reis dos pontos cardeais.
Parece ser um tipo de paraíso bastante mundano e materialista, cujos habitantes
desfrutam de poder, grandeza, riqueza e status. Em quadros da roda da vida onde os
deuses ciumentos não recebem um reino separado daquele dos deuses, eles também
habitam essa região.

Acima dele, no topo do monte Meru, está o paraíso dos 33 deuses — uma
fórmula tradicional do antigo panteão védico, embora não inclua todas as deidades
hindus mais recentes e mais conhecidas. Esse é o paraíso descrito na roda da vida, o
protótipo do paraíso da mitologia indiana. Seu regente é Indra, uma deidade poderosa
que foi muito reverenciada durante o tempo do Buda. Ele era o deus do céu e da
tempestade, e um grande herói nas batalhas contra os deuses ciumentos. Sua arma é o
raio, a forma original do vajra. A árvore dos desejos cresce nesse paraíso, e ali são
encontrados muitos outros tesouros mágicos que emergiram do revolver do oceano.
Acima de tudo, os deuses possuem o elixir da vida, que é uma panaceia e que fornece
a longevidade. Mas isso, sua maior bênção, é ao mesmo tempo sua maior maldição.
Porque os deuses não são realmente imortais; vivem vidas inimaginavelmente mais
longas em termos humanos e não mostram sinais de envelhecimento, mas finalmente
suas vidas devem chegar a um termo. Eles não podem imaginar sua própria morte,
nunca a contemplam ou se preparam para ela, portanto quando ela chega lhes causa
extremo sofrimento.

Acima desses dois paraísos terrestres existem mais quatro outros no céu ao
redor do topo do monte Meru. O primeiro deles é caracterizado como livre de toda
luta, já que as deidades estão além do alcance dos ataques dos deuses ciumentos. O
segundo, Tushita, é um reino de completa satisfação; é onde o Buda Shakyamuni
habitava antes de seu nascimento como ser humano, e onde Maitreya, o buda do
futuro, agora espera por seu tempo de descida à Terra. No terceiro paraíso, as
deidades podem emanar magicamente tudo o que desejarem; no quarto, elas têm
apenas que desejar, e o que quer que desejem é espontaneamente produzido para
elas por outros.

Seres humanos podem renascer nesses paraísos inferiores, seguindo práticas


religiosas convencionais e fazendo boas ações. Embora ainda estejam dentro do
mundo do desejo, são considerados lugares afortunados de renascimento, a
recompensa por muitas vidas sucessivas de virtude. A desvantagem é, que com tanto

161
prazer e satisfação, é difícil encontrar motivação para praticar o dharma; portanto,
desse ponto de vista, o nascimento como ser humano é considerado o melhor. Mara, o
Maldoso, que tentou o Buda às vésperas de sua iluminação, é também conhecido
como o soberano do mundo do desejo e habita seu paraíso mais elevado. Ele
representa o aspecto sedutor da espiritualidade, que é apropriado pelo ego para nos
convencer de que estamos fazendo grande progresso e nos tornando seres altamente
evoluídos.

Os mundos da forma e sem forma são níveis de existência de uma ordem bem
diferente. Aqui forma não significa materialidade, mas simplesmente aparência: as
qualidades de cor e molde. As deidades no mundo da forma não são mais dominadas
pelo desejo de prazeres sensuais e perderam seu apego às percepções grosseiras; elas
se experimentam como imateriais, portanto se diz que têm corpos sutis de luz. No
mundo sem forma, elas transcenderam o apego a todos os sentidos, exceto a mente;
são puros seres espirituais com corpos mentais que não têm forma visível. Já que são
deidades que não possuem corpos físicos, não podem passar pela morte no sentido
usual, portanto quando suas vidas imensamente longas chegam a um fim, elas
simplesmente despertam em um reino diferente ou em um outro nível do reino dos
deuses.

Juntos, esses mundos contêm 21 níveis de estados meditativos profundos. No


mundo da forma, os primeiros quatro níveis (as quatro absorções meditativas) são
cada um dividido em graus de fraco, médio e forte, perfazendo 12 no total.
Representam purificações crescentes do processo de meditação. Acima deles estão
cinco níveis conhecidos como moradas puras; o mais alto, Akanishtha, é o paraíso no
qual o Buda se tornou iluminado.

O mundo sem forma consiste em quatro níveis extremamente sutis e profundos


de meditação, que o Buda dominou sob a orientação de seus mestres antes que
partisse por si só para atingir a iluminação. Ele percebeu que esses estados, elevados
como são, não resultam liberação do ciclo de renascimentos. Para as deidades nesses
paraísos, o skandha da forma não funciona mais como meio de apego ao ego, porque
elas não se identificam com o corpo; mas ainda retêm um sentido de ego por meio da
atividade dos outros quatro skandhas — sentimento, percepção, condicionamento e
consciência. No primeiro estágio de absorção, tudo é percebido como semelhante ao
espaço infinito: aberto, vazio, insubstancial e desobstruído. O segundo é a experiência
da infinidade da consciência. O terceiro é a experiência de não haver absolutamente
nada lá. No quarto, transcende-se até mesmo o conceito de nada e entra-se em um
estado no qual não existe nem percepção nem não-percepção, o ponto mais alto da
existência.

Todos os paraísos no mundo da forma e sem forma são regidos pelo deus
Brahma. No hinduísmo, Brahma é a personificação masculina da ausência de forma,

162
princípio absoluto, o neutro brahman, que simplesmente significa “expansão” ou
“imensidão”. Brahma e Indra (o regente dos reinos inferiores dos deuses) eram as duas
primeiras deidades ao tempo do Buda, embora mais tarde sua importância tenha
declinado. Ambos desempenharam um papel significativo na história do Buda como
representantes supremos de todos os seres humanos do universo: primeiro,
encorajando-o em seus esforços para atingir a iluminação, em seguida louvando seu
sucesso e cultuando-o com oferendas, e finalmente pedindo a ele que não
permanecesse em silêncio, mas que ensinasse o dharma. Como já vimos na conexão
com o reino dos fantasmas famintos, Brahma representa tanto a bondade suprema
quanto o princípio criativo. Está sujeito à lei do karma e é apenas um de uma série
infinita de brahmas. Seu nome em tibetano significa “o Ser Puro”, e no budismo não é
visto como o princípio criativo, mas como a personificação da verdade, da santidade e
da pureza. Brahma, com suas qualidades de excelência, foi incorporado ao budismo
para representar os níveis supremos de realização dentro do samsara.

Tradicionalmente, diz-se que o veneno que mais afeta os deuses é o orgulho,


conectado com a família Ratna. Essa tradição é seguida em As cem homenagens e A
prática do dharma, mas em Liberação através da audição, caminho que leva ao seu
reino aparece junto com Vairochana, senhor da família Buda, associado à ilusão. Em
seu comentário, Trungpa Rinpoche relaciona os deuses com o orgulho, que define
como a “intoxicação com a existência do ego”49, embora em algum outro lugar
também os associa com a família Buda. Ele descreve seu estado mental dominante
como sendo o de completa auto absorção, sugerindo uma combinação de orgulho e
ilusão.

Auto absorção é a chave para a experiência humana do reino dos deuses. Nos
níveis inferiores, o mundo do desejo, ela aparece como prazer ou como o
prolongamento do desfrute de saúde, riqueza, beleza, educação e todos os tipos de
prazeres. Muitas das aspirações normais dos seres humanos poderiam ser
consideradas expressões do reino dos deuses, ou o “céu na terra”. Mas estar
psicologicamente naquele reino significa que a pessoa não está apenas desfrutando
desses prazeres, mas usando-os como um meio de manter o sentido do eu. A vida é
vista como uma busca pela felicidade e realização; quando essa busca se torna todo o
propósito da vida, ela pode facilmente se desenvolver na direção de uma preocupação
excessiva com juventude e beleza, vida saudável, auto aperfeiçoamento, crescimento
emocional e assim por diante. Sempre existe uma certa dose de autoconsciência e
auto exaltação nesses esforços. A noção de espiritualidade pode ser mencionada com
frequência, mas essa espiritualidade está realmente baseada no ego. É uma maneira
de tentar fabricar amor, luz e paz excluindo toda a escuridão e o desprazer. Tudo isso é
muito semelhante ao quadro das qualidades distorcidas da família Buda, que é ligada

49
The Tibetan Book of Dead, p. 10.

163
ao reino animal. Mas a ignorância e o engano dos deuses é extremamente inteligente,
sofisticada e criativa, ao contrário da mentalidade confusa e subdesenvolvida dos
animais. Os deuses são o expoente supremo da ilusão, construindo castelos no ar, mas
se tornaram extasiados com sua própria criação mágica e estão convencidos de que
tudo é real e permanente.

O sentimento de ser imortal é uma característica divina muito poderosa que nós,
como seres humanos, trazemos dentro de nós secretamente a maior parte do tempo.
Repetidas vezes, grandes mestres têm nos relembrado que somente uma consciência
da inevitabilidade da morte pode nos despertar da complacência. E correspondendo
ao nosso sentimento de imortalidade durante a vida, existe um anseio pela eternidade
após a morte: paraíso eterno, paz eterna ou mesmo não-existência eterna. Como
Trungpa Rinpoche disse ao discutir este reino: “O sonho final do ego é a eternidade,
particularmente quando a eternidade se apresenta como a experiência da
meditação.”50

Nos reinos mais elevados dos deuses, os mundos da forma e sem forma,
tornamo-nos inteiramente absorvidos nos estados de meditação, portanto o sentido
do ser torna-se muito mais sutil, enganoso e perigoso. É natural, do ponto de vista do
ego, que uma vez que tenhamos alcançado lugar tão maravilhoso, queiramos ficar nele
para sempre. Mas se não tivermos a visão do vasto vazio e não consigamos nos
dissolver no espaço aberto da meditação, sempre haverá a pequena voz do ego
pensando: “Eu estou experimentando esta consciência, esta paz, esta bem-
aventurança.”

Na narrativa tântrica da iluminação do Buda Shakyamuni, todos os budas do


universo vieram a ele e lhe disseram que era impossível atingir a iluminação por meio
dos samadhis do mundo sem forma. Eles o levaram até o paraíso Akanishtha, o cume
do mundo da forma, e lá ele se tornou plenamente iluminado. Essa história é muito
significativa, porque as absorções sem forma no espaço infinito, a consciência infinita,
o nada e a não-dualidade são as mais sedutoras das experiências espirituais. Nesse
estágio, é extremamente difícil distinguir o apego sutil da realização genuína ou a
dissolução do ego a partir de sua cristalização. Se qualquer apego permanece, o
meditante provavelmente experimenta esses estados como união com Deus ou com
um Absoluto sem forma; porque enquanto houver um ser para realizar a união, deve
também haver um outro transcendente com quem se unir.

Não sem surpresa, o reino dos deuses está ligado com o bardo da meditação.
Todas as práticas de meditação em qualquer nível podem ser feitas com uma atitude
ou de desapego ou de apego. No samadhi genuíno, o mais profundo estado de
meditação, existe uma completa absorção não dual, portanto aquele eu se dissolve;

50
Transcending Madness, p. 60.

164
mas com os deuses, a própria experiência da absorção se torna um objeto de apego e
um meio de autopreservação. A brecha que ocorre aqui é o contraste entre o
prolongamento de nossa experiência, a solidificação, e uma súbita dúvida simultânea,
um lampejo de abertura. Não estamos certos se estamos próximos a nos tornar
iluminados ou na verdade enlouquecendo. No ponto culminante dessa intensa
ambiguidade, poderíamos pular através dela para o estado desperto ou recair no
transe divino, “a conquista última e absoluta do atordoamento, as profundezas da
ignorância”51, como Trungpa Rinpoche a chamou.

O buda que aparece no reino dos deuses é chamado Shatakratu, um dos nomes
de Indra; significa Executor de Cem Sacrifícios, uma pessoa santa e muito respeitada.
Ele é branco na cor, como o Buda Vairochana, e toca um instrumento de cordas. Como
os deuses estão tão imersos no prazer, este buda fala a eles em uma linguagem que
irão ouvir, a linguagem da música. Música é a mais efêmera das artes; o som flui do
silêncio e retorna novamente ao silêncio quase tão rápido quanto surgiu; os momentos
de silêncio são tão essenciais quanto os momentos de som. A música está mudando
constantemente, o movimento é a sua própria existência: é o perfeito ensinamento
sobre a impermanência para os deuses, que são tão apegados à imortalidade e à
eternidade.

51
The Myth of Freedom, p. 26.

165
Capítulo Nove

O Padrão Tríplice do Caminho

QUER CONSIDEREMOS O MUNDO ao nosso redor, nossa própria natureza ou a


natureza dos seres iluminados, constatamos que nada existe em uma condição
estática. A vida é um processo dinâmico e contínuo de aparição e desaparição. A
realidade não é apenas o mundo dos fenômenos, apenas o que quer que apareça; é
também não-aparição, potencialidade. Isso é o vazio, a dimensão aberta da realidade.
Entre esses dois polos existe um terceiro estado, o fluxo de energia que os liga e os
une.

O nível mais alto ou mais profundo é o vazio, a essência de todos os fenômenos.


O nível intermediário é a energia pela qual o vazio se comunica e se revela. O nível
mais baixo ou mais externo é a matéria, a manifestação real da forma física. A essência
é invisível, completamente além da esfera dos sentidos, um estado de unidade e
simplicidade. A matéria é multiplicidade e diversidade, perceptível aos sentidos físicos.
A energia que flui entre eles partilha de ambos; pode ser descrita em termos do reino
dos sentidos, embora não esteja contida dentro dele.

Vamos observar o funcionamento desse padrão triplo em três áreas diferentes:


primeiro, o trikaya, as três dimensões do estado desperto; segundo, o corpo, a fala e a
mente dos seres viventes comuns; e por último, a tríade dos níveis grosseiro, sutil e
muito sutil da existência. Em adição, também categorias exterior, interior e secreta,
conforme aplicado, por exemplo, aos cinco elementos da mandala. Todos esses grupos
são expressões do mesmo princípio, portanto existem muitas semelhanças entre eles.
Como já constatamos tantas vezes, eles se interpenetram uns aos outros, e cada
aspecto individual contém todos os três dentro de si. Podemos descobrir todos os
tipos de correspondência e relacionamento entre eles.

O TRIKAYA

O padrão triplo do estado desperto é chamado trikaya, que significa literalmente


os “três corpos”. Eles são o dharmakaya, que é muitas vezes traduzido como “corpo da
verdade”; o sambhogakaya, ou “corpo do deleite”; e o nirmanakaya, ou “corpo de

166
emanação”. Kaya significa “corpo” em sânscrito, tanto literal quanto metaforicamente,
como em inglês. Já que são termos muito significativos cujos equivalentes em inglês
não parecem tão adequados, vou seguir a prática de Trungpa Rinpoche em manter as
palavras sânscritas e me referir a eles como os três kayas, ou coletivamente como o
trikaya.

Trikaya é singular porque os três kayas são uma unidade indivisível, três
dimensões da totalidade. O sambhogakaya e o nirmanakaya juntos são conhecidos
como o rupakaya, o “corpo da forma”, distintos do dharmakaya, que é o vazio sem
forma. Como diz o Sutra do coração: “Forma é vazio e vazio é forma”; forma e vazio
são inseparáveis e não podem ser entendidos isolados um do outro. Os dois aspectos
do rupakaya são os níveis nos quais a mente de um ser desperto se manifesta de forma
a beneficiar outras pessoas. Dharmakaya representa a realização do próprio propósito
de uma pessoa de atingir a iluminação, enquanto sambhogakaya e nirmanakaya
existem para realizar o propósito dos outros.

Em um texto complementar à Liberação através da audição, chamado Auto


liberação através da visão nua mostrando a consciência, a respeito do qual veremos
mais no próximo capítulo, o trikaya é descrito como a própria natureza da mente.
Falando dessa mente, ou consciência, o texto afirma:

Dentro de si o trikaya é indivisível e completo em um:


Vazio onde absolutamente nada existe é o dharmakaya,
Claridade, a radiação interior do vazio, é o sambhogakaya,
Nascendo em toda parte sem obstrução é o nirmanakaya,
Os três completos em um são sua natureza intrínseca.

A última linha se refere à unidade indivisível dos três kayas, que é chamada de
svabhavikakaya, o “corpo da natureza intrínseca”. A totalidade dos “três completos
em um” é a natureza de nossa própria mente; forma a estrutura do nosso ser e o
padrão no qual operamos. O trikaya é uma expressão de como as coisas realmente
são, inerentemente puras e perfeitas, mas sob a influência da ignorância o
experimentamos como os três aspectos da existência comum. Ele corresponde tanto
ao nosso corpo, fala e mente comuns quanto aos nossos níveis grosseiro, sutil e muito
sutil. Também experimentamos os três kayas de uma maneira confusa durante os três
estados de consciência por que passamos toda noite e todo dia: em sono profundo,
entramos no dharmakaya; o sonhar corresponde ao sambhogakaya; e o estado de
vigília é o nirmanakaya.

Os três kayas aparecem naturalmente durante os três bardos descritos em


Liberação através da audição. A luminosidade da morte, na qual a pessoa que morre

167
entra na culminação do bardo do morrer, é o dharmakaya. A aparição radiante das
deidades pacíficas e coléricas, aparecendo durante o bardo do dharmata, é o
sambhogakaya. Tomar a forma de um ser vivente no bardo da existência é o
nirmanakaya. Nesses momentos, a pessoa nos bardos tem a oportunidade de realizá-
los, reconhecendo-os pelo que realmente são.

Trungpa Rinpoche explicava o trikaya em termos da maneira como nos


relacionamos com o caminho espiritual e com a vida em geral, que sempre opera em
acordo com esse padrão triplo52. Como está dito no verso raiz do bardo desta vida:
“Fazendo da mente e das aparências o caminho, eu manifestarei o trikaya.” O bardo
desta vida é aqui e agora, portanto manifestar o trikaya não deveria ser visto apenas
como uma transformação que acontece milagrosamente quando atingimos a
iluminação ou após a morte. A experiência do trikaya pode ser encontrada em toda
parte; é uma presença contínua em nossas vidas. O dharmakaya está presente no
sentido da amplidão, a fonte e o pano de fundo de todos os fenômenos. O
sambhogakaya está presente no sentido da energia brotando, a qualidade sagrada,
mágica da vida. E o nirmanakaya está presente no sentido dos fenômenos
constantemente surgindo, impermanente embora vividamente aparente.

Do ponto de vista de um praticante, começamos de onde estamos, como seres


humanos personificados. Os estágios sucessivos de prática nos levam da realização do
nirmanakaya, através do sambhogakaya, à consumação final do dharmakaya. Quando
essa realização se torna estabilizada, a jornada é revertida, e voltamos através dos
kayas, manifestando sambhogakaya e nirmanakaya como a expressão do estado
desperto, a partir de um ponto de vista completamente realizado. Isso tudo vai se
tornar mais claro nas explicações subsequentes dos kayas individuais.

DHARMAKAYA

Os significados diferentes mas relacionados da palavra dharma foram discutidos


no Capítulo Seis, e vimos como ela forma uma parte de diversos outros termos
significativos. Existe o dharmata: a qualidade da própria realidade, a verdadeira
natureza de todos os fenômenos, livre das interpretações da mente confusa. Em
seguida existe o dharmadhatu: o espaço todo abrangente, o espaço que é nada, mas
contém tudo. Dharmakaya, o “corpo” do dharma, sugere o aspecto positivo, vivo, da
realidade absoluta. É a totalidade de todas as possibilidades, potencialidade infinita. É
descrita como a essência vazia, porque todos os fenômenos surgem do vazio; o vazio é

52
Os ensinamentos de Trungpa Rinpoche no trikaya como o caminho, exemplificados na vida de
Padmasambhava, podem ser encontrados em Chögyam Trungpa, Crazy Wisdom, Boston, Shambhala,
1991.

168
a essência de toda a existência. Está sempre presente como a base da existência, sua
dimensão secreta, invisível.

Como Trungpa Rinpoche colocou, o dharmakaya surge “desnecessariamente” do


espaço infinito. É a experiência real do espaço, e em um sentido, é sua primeira
corporificação; é por isso que é conhecido como um corpo. É consciência que existe
por si só; a luz pura, indiferenciada do conhecimento; o estado não nascido, imutável,
imortal, do despertar absoluto. É a mente universal, onipresente de buda, o
autoconhecimento do estado desperto. Portanto, ele é chamado de o buda original ou
primordial (adibuddha), o buda que nunca precisou despertar. Na tradição Ningma, o
buda primordial é chamado Samantabhadra, Bondade Universal. Sua iconografia
expressa com clareza a natureza do dharmakaya. Ele está sentado de pernas cruzadas,
sorrindo levemente, em profunda meditação, e seu corpo tem a cor azul profunda do
espaço infinito. Ele está nu para expressar o estado de completa simplicidade e de
espontânea naturalidade. Naquela esfera primordial, as complexidades do ego e a
dualidade do samsara e do nirvana nunca surgiram. Sua nudez é também um lembrete
de que, embora o personifiquemos como um buda, o princípio da natureza de buda
transcende todos os atributos, qualificações e descrições.

O verso afirma que “nada jamais existe” no dharmakaya, mas isso não é uma
afirmação niilista; vai além dos conceitos ordinários tanto de existência quanto de não-
existência. Trungpa Rinpoche o descrevia como “um sentido de fertilidade” e “vazio
grávido”. De maneira que para alguma coisa existir, deve haver também um sentido de
sua não-existência, um sentido de ausência antes que se torne presente. Antes de as
palavras serem ditas ou os pensamentos surgirem na mente, deve haver um espaço no
qual eles não foram falados ou pensados; mesmo assim, como de fato se manifestam,
em um sentido já estão ali. Tudo já está realizado; causa e efeito são simultâneos. A
experiência do dharmakaya como parte de vida é o reconhecimento dessa totalidade,
uma atitude de abertura sem expectativa, vendo tudo como realmente é, em vez de
como gostaríamos que fosse. É o pensamento positivo total, que é precisamente o
significado do dharmakaya buda Samantabhadra: bom de todas as maneiras, em todos
os tempos e em todos os lugares.

No estágio de conclusão das práticas vajrayana, as instruções irão com


frequência afirmar algo como “repouse além do pensamento no dharmakaya não-
nascido” ou “olhe para a face do dharmakaya primordial”. Mesmo que só sejamos
capazes de conduzir uma meditação sem forma, superficial e distraída, uma linguagem
desse tipo é uma parte muito habilidosa do método tântrico, lembrando-nos que
somos realmente o trikaya quer saibamos disso ou não. Se pudermos simplesmente
relaxar na amplidão, sem seguir os pensamentos nem suprimi-los, sem aceitação ou
rejeição, então a mente em seu estado natural é revelada como o dharmakaya.

169
SAMBHOGAKAYA

Sambhogakaya significa literalmente o “corpo do prazer”. É a forma visionária


das deidades, a expressão natural, espontânea do dharmakaya, irradiando
incessantemente a partir do vazio. É a encenação da energia desperta, experimentada
como a plenitude da alegria e da bem-aventurança. Um dos provérbios de William
Blake a descreve perfeitamente: “Energia é o eterno deleite.”53

O sambhogakaya é a dimensão da comunicação, o meio pelo qual a nudez e a


simplicidade do dharmakaya se comunicam com o nível material da existência. A dança
da energia se manifesta como vibrações sutis de som e luz. Na tradição indiana, o
universo evolui de um som primordial, incriado, uma pulsação espontânea auto
existente no espaço vazio. Tudo na existência ressoa com sua vibração particular. No
sambhogakaya, todos os sons de todo o universo reverberam com seus verdadeiros
significados, como expressões espontâneas do dharma. Se são altos ou baixos, doces
ou estridentes, curtos ou longos, são o som natural do dharma, preenchendo o todo
do espaço. Em termos de fala humana, a vibração primordial evoluiu na direção das
sílabas da língua sagrada, o sânscrito. Essas sílabas, correspondendo às letras do
alfabeto sânscrito, são conhecidas como akshara, “imperecíveis"; são as sementes que
dão origem a todos os fenômenos. Por isso se diz que o mundo é feito da guirlanda das
letras. É o que está por trás do princípio do mantra, o som sagrado. Os mantras das
deidades são a natureza dessas deidades expressas na forma de som.

A luz se irradia do vazio do dharmakaya como as cinco cores dos cinco tipos de
conhecimento. Ela aparece em nuvens de arco-íris brilhantes, em círculos reluzentes,
em pontos cintilantes e raios de luz deslumbrantes. Em seguida as cinco cores se
cristalizam na forma dos cinco budas e de todas as outras deidades da mandala. Essas
formas divinas não são corpos de carne e osso, mas feitas inteiramente de luz; surgem
da luz e se dissolvem de volta na luz. É o reino da visão sagrada retratado na arte
tântrica e trazido para a vida de forma vívida na meditação. O sambhogakaya é a ponte
entre o vazio e a forma: o vazio se exibindo como forma, a forma se revelando como
vazio.

A experiência do sambhogakaya é perceber o mundo de modo direto e


desprotegido, dando as boas-vindas ao que quer que apareça, sem preconceitos. As
percepções dos sentidos se tornam mais claras, mais agudas e mais coloridas. A
natureza dos cinco budas revela-se espontaneamente em vislumbres da percepção
interior, e a pessoa vê intuitivamente como o todo da existência está impregnado
pelas qualidades das cinco famílias. O mundo é reconhecido como sagrado, mágico e
pleno de maravilhas; ele se torna uma fonte ilimitada de vida e bondade. Contém toda
a vitalidade e a paixão das emoções, livre da confusão que traz infelicidade e dor.
53
William Blake, O casamento do céu e da terra.

170
Existe uma sensação de destemor, diversão e descoberta contínua: um convite para
tomar parte na dança da vida. Esse é o significado do simbolismo no vajrayana — não
premeditado ou imposto, mas simbolismo natural que é inerente em tudo. Seu único
propósito é nos despertar. As deidades não são nada além do estado desperto, nosso
próprio estado desperto. O simbolismo natural, auto-existente do mundo, sempre
aponta na direção do despertar.

NIRMANAKAYA

O nirmanakaya é a manifestação física real, energia solidificada em matéria.


Literalmente significa o “corpo de emanação”, porque ele emana do sambhogakaya
sob a forma de incontáveis seres despertos em todos os seis reinos. É a aplicação
prática da iluminação, a personificação da energia da compaixão, totalmente
compreensivo e sensível às necessidades de todos os seres. É a atividade dos budas em
forma viva, o buda que podemos ver e ouvir. É incessante em sua manifestação,
desimpedido de quaisquer obstáculos, infinito e onipresente. Ele responde às
necessidades dos seres viventes em qualquer maneira que seja mais apropriada para
eles. O Buda Shakyamuni é descrito como um homem perfeito em todos os aspectos,
mas seres despertos nem sempre se manifestam necessariamente em aparências
ideais como a dele. Podem tomar qualquer forma, agradável ou desagradável, bonita
ou feia, e desempenhar qualquer papel; em qualquer situação, o que quer que seja
necessário para o benefício dos outros.

O princípio da natureza de buda só pode se revelar plenamente e levar adiante


atividades iluminadas através da personificação. O título de tulku, dado àqueles que
são reconhecidos como as reencarnações do grande mestre, é simplesmente o termo
tibetano para nirmanakaya (sprulsku) em sua pronúncia moderna. Homens e mulheres
que realizaram de forma plena a sua natureza de buda são capazes de nascer com a
consciência de quem realmente são e com a intenção consciente de ajudar os outros a
alcançarem tal estado. No caso deles, renascimento ou reencarnação é muito
diferente das pessoas comuns, porque não se apegam a um ser imaginado que
continua de uma encarnação para outra. O nirmanakaya se manifesta diretamente da
sabedoria e da compaixão, não como um resultado de traços kármicos em uma
corrente mental confusa. Para nós, os resultados do karma nos impelem ao
nascimento em um dos seis reinos, quer gostemos ou não. Uma pessoa iluminada, por
outro lado, pode ter feito um voto de nascer em uma forma particular, e o poder
daquela intenção irá realizar essa manifestação. Pode até haver diversas emanações
diferentes incorporando diferentes aspectos de uma poderosa corrente de energia
iluminada.

171
No vajrayana, o guru é sempre visto como nirmanakaya. Não importa se ele ou
ela foi reconhecido como um tulku, em outras palavras, como tendo uma ligação em
particular com alguma figura do passado. Aprender a ver o buda no guru é o primeiro
passo para ver todos os seres como buda. Todos nós somos efetivamente
nirmanakaya, mas não o percebemos. O sentido de viver o princípio do nirmanakaya
acontece por meio da aplicação das técnicas de meditação na vida diária: meditação
em ação. Com essa atitude, qualquer situação é possível de ser trabalhada, o que quer
que façamos é apropriado, e todas as nossas atividades geram frutos. Todo o ambiente
se torna nosso amigo em vez de nosso inimigo, de tal forma que nos sentimos
completamente em casa no mundo.

CORPO, FALA E MENTE

Todo ser vivente também consiste em uma estrutura tríplice que reflete o
trikaya. Esses três aspectos são o corpo, a fala e a mente, conhecidos como as três
portas. O karma é criado através da instigação das três portas: nossos atos, palavras e
pensamentos. Quando eles são transformados em instrumentos de consciência, em
vez de confusão, tornam-se o corpo vajra, a fala vajra e a mente vajra, três portas para
o despertar. Uma pessoa desperta ainda tem corpo, fala e mente individual, mas não
se identifica mais com o ego. A mente vajra é inseparavelmente una com a mente de
buda, o dharmakaya. A fala vajra é sempre a comunicação do dharma, o
sambhogakaya. O corpo vajra é a forma autêntica do buda, o nirmanakaya.

CORPO

O corpo se refere à nossa manifestação física, o aspecto visível, tangível do ser,


correspondendo ao nirmanakaya. É a expressão exterior na forma material de nossa
mente e energia. É o nível no qual as outras pessoas nos veem e no qual as vemos. O
corpo contém todos os órgãos dos sentidos, através dos quais nos conectamos com o
mundo externo. Interagimos com o ambiente através deles; a sensação se estende
para fora em direção ao mundo, portanto de uma certa maneira o ambiente é também
parte de nosso corpo. Não estamos fechados dentro de uma parede sólida, e não
existe barreira real entre o lado de dentro e o de fora. O corpo é a experiência total de
nós mesmos, como seres físicos em um universo material.

O corpo é a base do caminho espiritual. O cuidado, a atenção, que são o


fundamento de toda a prática budista, começam com o corpo. Pelo fato de estarmos
tão apegados ao corpo e tão identificados com ele, sofremos interminavelmente

172
durante a vida e nos apegamos à existência mesmo após a morte. Por meio da prática
do cuidado, chegamos a perceber que ele é impermanente e não é o eu. Ainda assim,
essa percepção não diminui o corpo de maneira alguma; ao contrário, ela nos fornece
uma nova apreciação de sua verdadeira função. Com a consciência, as impressões dos
sentidos se tornam mais intensas, os movimentos mais graciosos e dignificados, e as
ações, mais habilidosas e eficazes. Tornamo-nos naturalmente mais sensíveis e
compreensivos em relação ao ambiente em nível físico, o que faz a ligação com os
níveis de fala e mente, como nos comunicamos e como pensamos a respeito do
mundo. Do ponto de vista egoísta, o corpo parece nos isolar e nos afastar dos outros; a
parede da pele nos divide da atmosfera ao nosso redor e nos fecha em nossas conchas
isoladas. Mas de um ponto de vista desperto o corpo é o meio de nos estendermos e
tocarmos os outros; ele é o instrumento através do qual desempenhamos as
atividades do nirmanakaya.

Corpo vajra significa um corpo que é perfeito e indestrutível. Não sendo nenhum
sonho egoísta de imortalidade pessoal, paradoxalmente, ele brota da consciência da
irrealidade do corpo. Todo o universo material, tanto o corpo quanto o seu ambiente,
aparece espontaneamente do vazio a cada instante; não tem solidez ou
substancialidade; é indestrutível porque não existe nada que possa ser destruído.
Como Trungpa Rinpoche o expressou: “As coisas estão lá porque não estão lá — de
outra forma elas não poderiam existir”.54

No vajrayana, o método de transformar o corpo, a fala e a mente comuns em


corpo, fala e mente vajra é a prática da yoga da deidade. A yoga da deidade trabalha
com todos os três aspectos ao mesmo tempo. Ela não traz necessariamente uma
mudança exterior perceptível, mas é baseada em uma nova percepção de si próprio. A
transformação do corpo acontece por meio da meditação na forma da deidade. O
meditante é a deidade central da mandala e todos os outros seres viventes são
deidades dentro dele; a morada é um palácio milagroso e o mundo todo um paraíso, a
terra pura da deidade. Todas essas formas são feitas de luz, tão insubstanciais quanto
um arco-íris, mas ainda mais vívidas e lindas do que qualquer luz já vista pelos olhos.

Usar essas imagens na meditação é muito importante durante o estágio da


criação, mas a coisa mais vital é ter completa confiança na realidade da deidade. Ela é
a presença real viva do estado desperto, possuindo todas as qualidades dos cinco
budas, e a mandala inteira é impregnada com essas qualidades. No estágio de
conclusão, todas as formas se dissolvem de volta no vazio. Isso corta qualquer apego
que ainda possamos ter a elas e nos previne de cair na armadilha de acreditar em sua
existência substancial. O sentido da presença continua na vida diária, transformando
gradualmente nossas percepções e nosso relacionamento com o mundo.

54
Journey Without Goal, p. 72.

173
FALA

Como o sambhogakaya, a fala é a dimensão da energia, comunicação e emoção;


ela une o corpo e a mente. Estamos acostumados a pensar em nós mesmos como
corpo e mente, mas em geral ignoramos ou não nos damos ao trabalho de identificar
esse terceiro aspecto de nossa natureza. A fala não significa apenas palavras ou sons
produzidos pela voz, que são apenas as manifestações mais superficiais da fala. Ela
também se refere à energia emocional, que abastece todas as formas de expressão, e
à respiração, que é um outro aspecto da energia vital.

A voz depende inteiramente da respiração no seu sentido usual, mas qualquer


forma de expressão criativa, seja qual for o meio utilizado, depende do fluir da nossa
inspiração ou energia. Dizemos que encontramos a voz quando descobrimos como
expressar o que realmente queremos comunicar através de palavras, música, arte,
dança ou qualquer outro meio. Comunicação é a essência da fala, tanto entre mente e
corpo quanto entre cada indivíduo e o mundo exterior. Assim como o sentido do corpo
inclui o ambiente, a fala inclui todos os sons do mundo. Comunicação é um processo
de mão dupla; estamos continuamente recebendo mensagens de tudo ao nosso redor
e respondendo a elas ao enviar mensagens de todas as maneiras.

Embora a fala seja um conceito mais abstrato do que o corpo, estamos


igualmente apegados à sua aparente realidade, e acreditamos nela tanto quanto no
corpo. A despeito da evidência de sua precariedade, confiamos nas palavras para
transmitir pensamentos e acreditamos nelas para exprimir o que pretendemos.
Sentimos que o que falamos brota de nossa verdadeira natureza e confirma nossa
existência. O sentido vajra da fala se desenvolve a partir da conscientização do vazio
inerente dela: o espaço ao redor das palavras, o silêncio que envolve o som, a
amplidão de onde a comunicação surge, a ausência do ego em sua base.

A palavra é poder criativo, o poder do mantra. Todas as línguas são sagradas, não
apenas o sânscrito, e qualquer palavra ou som pode ser percebido como um mantra.
Se simplesmente escutarmos sem expectativas, ouvindo o vazio por trás do som,
podemos nos tornar sensíveis à sua qualidade interior e à mensagem que ele carrega.
É a música do não-ser e do despertar. O poeta Milarepa é muitas vezes retratado com
uma mão em concha junto à sua orelha, escutando intencionalmente suas próprias
músicas à medida que surgem de seu vazio e silêncio. Toda fala pode se tornar a
poesia do dharma quando ela flui daquele sentido de espaço.

A transformação da fala comum em fala vajra é realizada pela recitação de


mantras. Mantra não é apenas uma prece ou invocação; é a própria deidade. É a
presença viva da deidade no som, assim como a imagem visual é a sua presença viva
na forma. Mantra é também a própria fala da deidade, a palavra de poder que executa

174
as ações iluminadas da deidade. Como as formas visualizadas, o som do mantra se
dissolve de volta para o vazio ao final da meditação. Utilizando essa prática,
aprendemos a experimentar tudo o que dizemos e tudo o que ouvimos como mantra,
ressoando ainda vazio como um eco.

MENTE

A mente é o aspecto invisível de nossa natureza, a fonte da fala e do corpo. Ela


não é apenas intelecto; é coração e mente em unicidade — nossa consciência, nossas
percepções, sentimentos e reações, assim como a vaga corrente subterrânea de
pensamentos que flui e reflui continuamente. As sensações se originam no corpo, mas
é a mente que as experimenta. Dizemos que as emoções vêm do coração, mas é a
mente que está ciente delas. Pensamentos, ideias e conceitos de todos os tipos são
como ondas surgindo e sumindo na superfície do oceano da mente. Todos eles, não
importa quão poderosos possam ser, quão fortemente exigem nossa atenção, são
apenas tipos diferentes de atividade mental. Juntos se dissolvem de volta no vazio do
dharmakaya. Em nossa condição comum, confusa, o que chamamos de mente deveria
na verdade ser chamado de falta de atenção. Mas quando a confusão é clareada, a
mente é revelada como percepção direta e intuitiva, a inteligência do coração. É por
isso que o significado da palavra sânscrita chitta abrange ambos, o coração e a mente,
e por que o lugar da mente é no coração, como veremos.

O primeiro passo na meditação é acalmar a mente; então podemos começar a


conquistar a percepção interior de sua natureza. A mente é como o espaço; na
amplidão e na claridade da verdadeira natureza da mente todos os pensamentos
surgem e desaparecem, não deixando nenhum traço, como pássaros voando através
do céu. Apoiando-nos nesse estado, apenas os deixamos chegar e partir, não nos
fixando em qualquer conceito ou nos agarrando a qualquer pensamento ou
sentimento. Apenas o céu claro permanece; essa é a indestrutível mente vajra. A
prática da yoga da deidade fornece as condições para que essa experiência se
aprofunde e se expanda até a sua máxima capacidade. A mente do meditante se torna
una com a mente da deidade, o estado desperto. A partir desse estado, a sensação de
relacionamento e comunicação no reino da fala vajra e a sensação de presença e
realização de ações no reino do corpo vajra fluem de forma espontânea e sem esforço.

Nas palavras de Trungpa Rinpoche:

No nível tântrico, a experiência positiva da não-existência acontece quando a mente


está completamente sintonizada nas possibilidades mágicas da vida. No nível da mandala vajra

175
da mente, mexericos subconscientes, ou a contínua tagarelice de fundo e os comentários
constantes dos pensamentos, são completamente eliminados. A mente está completamente
aberta. Essa experiência vajra da mente cria uma celebração contínua ao lidar com a vida de
forma direta e simples. No nível vajra da mente, toda situação acontece muito simplesmente,
por si só, e a mente se relaciona com o que quer que surja de maneira muito simples.55

OS TRÊS NÍVEIS

Uma outra maneira na qual o padrão triplo opera é em três níveis ou graus de
densidade, com os quais já nos encontramos na relação com os cinco grandes
elementos. Eles impregnam a totalidade do ambiente e se aplicam aos seres viventes.
No contexto da vida humana, são conhecidos como o corpo e a mente grosseiros, sutis
e muito sutis. O corpo significa simplesmente o aspecto da forma, enquanto a mente é
a consciência correspondente. A fala, o seu potencial comunicativo, está subentendida
embora não seja mencionada neste contexto. Deveríamos nos lembrar que os três
aspectos são indivisíveis; é apenas no nível grosseiro da nossa existência comum que
eles parecem ser distintos e separados.

Os três níveis correspondem ao estado de vigília, o estado de sonho e o estado


de sono profundo. O reino exterior emerge do reino interior, sutil, da dimensão da
energia, e no fim das contas deriva da essência mais profunda e mais sutil de nosso
ser. Mais uma vez, o padrão triplo espelha o princípio do trikaya, a influência recíproca
dinâmica de essência, energia e forma material. Não devíamos retratá-las como um
conjunto de bonecas russas, uma dentro da outra. Ao contrário, formam um espectro
contínuo de energia fluindo e refluindo do nível mais sutil ao mais material.

A vida em vigília comum corresponde à dimensão grosseira. Quando vamos


dormir, pensamos que estamos nos tornando inconscientes, mas na verdade estamos
penetrando no nível da consciência sutil. Entramos no mundo dos sonhos e o
experimentamos como uma versão estranha e alucinada do estado de vigília; em
seguida entramos em sono profundo, sem sonhos, do qual não podemos observar ou
lembrar de nada, e mesmo assim estamos ainda vivendo e respirando. Mesmo
enquanto estamos acordados, nossos pensamentos, sentimentos e percepções estão
continuamente aparecendo e desaparecendo, subindo e descendo através dos níveis
de consciência. Todos os fenômenos surgem da infinita potencialidade do vazio,
através dos níveis sutis, até que aparecem no reino grosseiro, e tudo se dissolve de
volta no vazio em um processo interminável de transformação.

55
Journey Without Goal, p. 75.

176
O Nível Grosseiro

O corpo grosseiro, maciço, é o nosso corpo, como normalmente pensamos nele,


o corpo de carne e sangue. É o equivalente samsárico do nirmanakaya. Na maior parte
do tempo, estamos conscientes apenas deste nível superficial da existência, e nos
identificamos com ele completamente. Neste plano, experimentamos a aparente
dualidade de sujeito e objeto em sua maior extensão, por isso pensamos no mundo
externo como totalmente separado de nós. O corpo é formado pelos elementos
grosseiros interiores, enquanto o ambiente é formado pelos elementos grosseiros
exteriores. Interior e exterior estão ligados pelos sentidos. A mente grosseira é a
consciência que opera por meio dos sentidos; elabora a experiência total de nossa vida
diária de vigília. Embora sua causa final seja a mente muito sutil, que continua de vida
para vida, os níveis grosseiros da consciência dependem do cérebro e dos sentidos
para poder funcionar. Por isso as pessoas que não aceitam a realidade de outros níveis
concluem que não pode haver tipo algum de consciência após a morte.

O Nível Sutil

Como o sambhogakaya, o complexo sutil mente-corpo é o intermediário entre a


essência e a manifestação, também correspondendo à fala, a ligação entre corpo e
mente. Este é o nível no qual a transmutação acontece. Como ele é a matriz da qual o
corpo e a mente grosseiros surgem, o corpo e a mente grosseiros são afetados por
qualquer mudança que ocorra dentro deste nível, portanto as mudanças devem ser
conduzidas cuidadosa e gradualmente sob a orientação de um mestre experimentado.
Uma transformação súbita e completa seria grande demais para uma pessoa
despreparada suportar, e poderia levar a sérias doenças físicas e mentais.

A mente sutil corresponde ao estado de consciência que temos nos sonhos,


quando todos os tipos de formas estranhas e ilusórias são criadas a partir de memórias
e outras impressões da corrente mental. Também entramos nesse estado durante o
bardo do dharmata após a morte, e podemos aprender a entrar nele intencionalmente
durante o estágio de conclusão da prática vajrayana.

O próprio corpo sutil é triplo, consistindo em nadi, prana e bindu 56. Cada um
desses importantes termos tem diversos significados, dependendo do contexto,
portanto prefiro manter as palavras sânscritas para eles. Nadi é análogo ao aspecto da
forma ou corpo do princípio triplo, prana a energia ou fala, e bindu à essência ou
mente. Nadi significa literalmente um "tubo” ou “canal”; a mesma palavra é usada em
trabalhos médicos para nomear veias e artérias, mas neste contexto, eles não são
56
Em tibetano, rtsa, rlung e thig le, respectivamente.

177
físicos e não podem ser percebidos pelos sentidos comuns. Formam uma rede que cria
a estrutura básica do corpo sutil. São imaginados como sendo tubos luminosos e ocos
através dos quais a energia vital flui, assim como o sangue flui através das veias. Esse
movimento ou corrente é prana, que pode significar “respiração”, “espírito", "energia”
ou “vida”, e é inseparável da mente. Bindu, literalmente um “ponto” ou uma “gota”, é
a essência criativa da mente, e é carregado pelo prana como um cavaleiro em um
cavalo ao longo dos caminhos dos nadis.

Os detalhes do corpo sutil variam de acordo com a tradição que a pessoa segue e
com a prática específica na qual está engajada. Teoricamente, é descrito e
representado como uma estrutura definida como a do corpo grosseiro, mas na prática
é muito mais ilusório. Isso não quer dizer que é puramente imaginário. Ele é, como o
nome sugere, sutil: somente para ser entendido por meio da intuição e da experiência
direta. Em um sentido, os nadis não existem como uma estrutura pronta, mas são
criados conforme o prana flui ao longo deles; são o padrão do fluxo de prana, como o
traçado do voo de um pássaro no céu, ou o canal formado por um peixe enquanto ele
desliza através da água. Os vários sistemas tântricos contém muitos nomes e
descrições diferentes dos nadis, os diferentes tipos de prana, e os bindus, que diferem
muito uns dos outros. Em relação à Liberação através da audição, só precisamos ter
um quadro amplo do corpo sutil, que será de grande ajuda no entendimento do
processo da morte. Mais detalhes precisos serão mais bem compreendidos vindos de
um guru no contexto de uma prática em particular.

Formando o eixo do corpo sutil está o nadi central. Em sua plena extensão, ele
vai de um ponto na fronte entre as sobrancelhas até o chakra coronário no topo da
cabeça, e em seguida direto até os órgãos genitais. Ele é chamado madhyama, o “do
meio”, ou avadhuti, o “eliminador”, porque elimina a dualidade entre sujeito e objeto.
Quando o prana e a mente são conduzidos para o nadi central através da prática da
yoga, a pessoa alcança percepções crescentes de vazio e bem-aventurança. A
consciência comum dualista (vijnana) se transforma em conhecimento desperto
(jnana), por isso ele também é conhecido como o nadi do conhecimento (jnananadi).

Dois outros nadis principais, chamados lalana e rasana57, correm à esquerda e à


direita do nadi central. Eles terminam nas narinas, onde o prana em seu aspecto mais
superficial, a respiração, entra e sai do corpo. Lalana significa “brincalhão” ou
“sedutor”, simbolizando o polo objetivo da experiência, a atração dos objetos dos
sentidos. Rasana significa “gosto” ou “língua” simbolizando o polo subjetivo, o
desfrutador da experiência. Falando de forma genérica, lalana está à esquerda do nadi
central, e rasana, à direita, enquanto algumas fontes os descrevem como estando ao
contrário. Em certas práticas, podem estar invertidos nas mulheres, embora seja

57
Os nomes tibetanos para os principais nadis são dbu ma (madhyama), kun ’dar ma (avadhuti), rkyang
ma (lalana) e ro ma (rasana).

178
pouco comum encontrar essa distinção. São associados com diversos outros pares de
polaridades complementares, tais como sol e lua, sabedoria e método, vermelho e
branco, masculino e feminino, inalação e exalação, atração e aversão. De novo,
quaisquer desses pares podem estar invertidos, portanto grupos de correspondência
completamente diferentes podem ser encontrados entre os ensinamentos de várias
tradições. O significado subjacente dos nadis esquerdo e direito é que eles apontam
para nossa dualidade fundamental, e seu significado básico não é afetado por que lado
ele é visto, se é vermelho ou branco, masculino ou feminino.

Diz-se que existem 72 mil nadis menores ramificando-se do nadi central. A


imagem de milhares de nadis espalhando-se através do corpo, transportando energia
confusa que flui em todas as direções, fornece um quadro vívido da consciência
dispersa e perturbada da condição humana. Por trás de toda essa confusão está a
divisão dualista básica em sujeito e objeto, o eu e o outro, simbolizada pelos dois nadis
laterais.

A função dos nadis é conduzir o prana. A palavra prana deriva de um significado


básico que quer dizer viver, respirar e se mover, e é definida como o poder da vibração
ou do movimento. Talvez “energia” fosse o melhor equivalente em inglês. Prana é
universal. É a essência da energia nuclear e da energia cósmica. Toda manifestação de
energia no mundo natural é a vibração de prana, e o nadi é o padrão que ele forma —
“as trilhas do mundo”, como Trungpa Rinpoche o chamava. No nível pessoal, inclui
tudo que possamos considerar energia mental, emocional, física ou nervosa. Regula o
corpo junto com todas as suas funções automáticas e transporta cada aspecto nosso
de experiência, consciência, percepções dos sentidos, sentimentos e assim por diante.
O prana é triplo: seu aspecto exterior sustenta o corpo, seu aspecto interior
corresponde aos cinco elementos e aos cinco venenos, e seu aspecto secreto são os
cinco tipos de conhecimento.

Além de significar a energia sutil em geral, prana recebe diferentes nomes para
indicar seus cinco modos principais de operação no corpo. Todos contêm a mesma
raiz, significando “respiração”, com prefixos que mostram a natureza específica de seu
movimento. Falando no sentido estrito, o equivalente tibetano (rlung) não é uma
tradução de prana, mas de vayu, que significa “ar” ou “vento”, o mesmo que o
elemento. Isso explica por que traduções do tibetano muitas vezes falam dos ventos
do corpo sutil. Vayu provavelmente pretende se referir à movimentação real do prana
através dos nadis, mas são muitas vezes considerados sinônimos em sânscrito. Como
prana se tornou muito conhecido em inglês, acho que é preferível continuar a usá-lo.
Vayu é também algumas vezes adicionado aos nomes das cinco energias: existe o
próprio prana, ou pranavayu, que é chamada a energia sustentadora da vida; em
seguida a energia penetrante; a energia ascendente; a energia uniforme; e a energia

179
descendente58. Elas não chegam a ser energias diferentes, mas uma mesma energia
desempenhando diferentes funções. Existem ainda muitos outros aspectos de prana,
cada um preenchendo sua própria função especial, que são identificados para os
propósitos de certas meditações e na prática médica.

Ao longo da extensão do nadi central existem diversos pontos focais ou centros


de energia: os chakras. Um chakra significa literalmente uma “roda”. Em certas
meditações, elas são vistas como rodas girando, mas em geral são retratadas como
flores de lótus, cada uma com seu número específico de pétalas, de onde os nadis
menores brotam. Os dois nadis laterais criam nós ao redor do nadi central nesses
pontos, comprimindo-o e evitando que o prana entre e flua através dele sob condições
normais. No momento da morte, os nós se afrouxam de tal forma que o prana entra
no nadi central; ele pode também ser induzido a entrar através do poder da
meditação.

Os chakras variam em número de acordo com o propósito para o qual estão


sendo considerados. Em relação à Liberação através da audição, existem cinco
principais, correspondendo aos budas das cinco famílias, os cinco aspectos do prana e
os cinco elementos, que se dissolvem por ocasião da morte.

O primeiro chakra, a morada de Vairochana, está na cabeça. Existem dois


importantes chakras na cabeça, um no topo e outro no centro da fronte. Em práticas
que requerem seis ou mais chakras, esses dois são claramente destacados, mas neste
contexto ambos são mencionados como o primeiro chakra. Ele é marcado com um
mantra, a sílaba branca OM, e apoia o elemento espaço. Está associado com a energia
penetrante que circula através do corpo, distribuindo energia vital e governando os
movimentos dos membros.

O próximo chakra está situado na garganta e é o lugar de Amitabha. Está


marcado com a sílaba vermelha AH e apoia o elemento fogo. É a origem da energia
ascendente que é responsável pela fala, paladar e pela capacidade de engolir.
Alternativamente, o chakra da garganta é algumas vezes considerado o lugar da
energia descendente, nos outros casos localizada no mais inferior dos cinco chakras.

O terceiro chakra está ao nível do coração, o lugar de Akshobhya. Está marcado


com a sílaba azul HUM. Apoia o elemento água e a energia de vida, o prana original
que sustenta e mantém a vida. Ele controla o movimento da respiração e dá clareza à
mente. De acordo com algumas fontes, a energia de vida é encontrada no chakra da
cabeça, enquanto a energia penetrante habita o coração.

58
Em sânscrito e tibetano, estes são pranavayu (sro ’dzin rlung), vyanavayu (khyah byed rlung),
udanavayu (gyen rgyu rlung), samanavayu (mnyam rgyu rlung) e apanavayu (thur sel rlung).

180
O quarto chakra está no umbigo e é a morada de Ratnasambhava. Está marcado
com a sílaba amarela SVA. A energia que funciona aqui é a energia uniforme. Ela
circula em torno dos órgãos internos regulando o sistema digestivo e mantendo todas
as funções vitais em equilíbrio. Também faz circular o calor interior do corpo, e seu
nome alternativo em tibetano é “igual ao fogo”, embora o fogo não seja seu elemento.
Seu elemento é a terra, porque a terra está associada a Ratnasambhava.

Finalmente, na base da espinha, ao nível dos órgãos sexuais, está o chakra


conhecido como local secreto. Esta é a morada de Amogasiddhi. Está marcada a com a
sílaba verde HA e apoia o elemento ar. É o local da energia descendente que flui para
baixo, eliminando os restos do corpo e regulando o ato de urinar, de defecar e a
menstruação. Como vimos, esta energia é às vezes tida como estando localizada no
chakra da garganta, trocando de lugar com a energia ascendente, que então se origina
no local secreto e sobe de lá até a área do peito e da garganta.

Como foi mostrado no Capítulo Sete, os budas das cinco famílias incorporam os
princípios transcendentes do corpo, fala, mente, qualidade e atividade. Os cinco
chakras são experimentados como pontos focais destes princípios: corpo na cabeça,
fala na garganta, mente no coração, qualidade no umbigo e atividade no local secreto.
Meditando nos chakras como as mandalas dos budas, suas energias são despertadas e
transformadas nos cinco budas que habitam dentro de nós. O significado dos cinco
chakras é também universal; deveríamos não só identificá-los em nós, mas também
experimentá-los no ambiente. Como já vimos, corpo, fala e mente dizem respeito ao
princípio triplo da forma, energia e inteligência presentes através do universo. A
qualidade se relaciona com o reconhecimento das qualidades da iluminação em tudo
ao nosso redor e à percepção do mundo inteiro como a terra pura do buda. Atividade
é meditação em ação, um sentido do desempenho espontâneo das atividades
iluminadas que ocorrem como uma função natural da vida.

Os primeiros três chakras são particularmente importantes desde os estágios


iniciais de prática no vajrayana como os pontos focais do corpo, fala emente. O
praticante medita na forma de um guru ou deidade aparecendo no céu, com as três
sílabas brilhando na cabeça, garganta e coração. Na conclusão da prática, raios de luz
branca brotam do OM no chakra da fronte do guru ou deidade, raios de luz vermelha
brotam do AH na garganta, e raios de luz azul brotam do HUM no coração. Eles são
absorvido pelos próprios três chakras do praticante, purificando o corpo, a fala e a
mente comuns, e transformando-os em corpo, fala e mente vajra, as bases do
nirmanakaya, sambhogakaya e dharmakaya.

É interessante considerar as implicações da mente estando localizada no


coração, enquanto o corpo se localiza na cabeça. Isso não se deve à ignorância sobre o
cérebro na Índia antiga, onde a cabeça era considerada a parte mais importante e
honrada do corpo, e onde tocar os pés de outra pessoa com a cabeça era o maior de

181
todos os sinais de respeito. Nosso sentido de identidade individual como seres
corpóreos, junto com os níveis grosseiros de consciência que dependem das funções
mentais do cérebro, é considerado presente na cabeça. A cabeça é o foco da
experiência de personificação. Conforme o meditante se baseia mais e mais na
consciência não conceitual, sem as correntes subterrâneas de pensamentos, as
perturbações emocionais e as distrações sensoriais, a mente no sentido da consciência
e da visão interior é sentida crescentemente como habitando o chakra do coração, o
ponto central do corpo sutil.

O terceiro aspecto do corpo sutil é bindu, o impulso gerador, a quintessência do


potencial criativo. Ele é polarizado em força masculina e feminina, os bindus branco e
vermelho, que estão sempre procurando se encontrar e se unir. No mundo natural,
poderiam ser vistos como a carga positiva e negativa. No nível mais superficial,
correspondem ao esperma e ao óvulo, no nível mais profundo à compaixão e ao vazio,
os princípios masculino e feminino da iluminação. Outro nome para bindu é
bodhichitta, a mente desperta, produzida da união entre o vazio e a compaixão, a na
linguagem simbólica dos tantras, os fluidos sexuais masculino e feminino são até
chamados de os bodhichittas branco e vermelho (o vermelho simboliza o sangue
menstrual).

A mente e bindu estão intimamente ligados, com bindu como a base ou o


instigador de todos os diferentes tipos de consciência. A mente é o criador de tudo no
samsara e no nirvana, mas bindu é a fagulha criativa. Trungpa Rinpoche o descreveu
como sendo ativo, investigador e perguntador, como um sistema de radar. A mente ou
consciência observa, vê o que está acontecendo e responde. Os bindus perpassam o
corpo sutil; são conduzidos pelo prana e se agrupam nos chakras, onde fazem com que
os diferentes modos de consciência surjam. Por exemplo, bindus do estado de vigília
estão concentrados principalmente no chakra da cabeça, que corresponde ao corpo e
ao nirmanakaya, de tal forma que durante a vida normal em vigília sentimos que nossa
identidade está centrada na cabeça. Bindus do sonho juntam-se no chakra da
garganta, correspondendo à fala e ao sambhogakaya. Bindus do sono sem sonhos
habitam o chakra do coração, que é o lugar da mente e do dharmakaya.

Chakras, nadis, pranas e bindus são visualizados apenas à medida que são
necessários para os propósitos de alguma prática específica. Na transferência de
consciência, por exemplo, o nadi central pode começar no chakra do coração ou do
umbigo e não se estender mais para baixo. Em certas meditações, os cinco budas
podem ser colocados em diferentes chakras, da mesma forma como trocam de lugar
no círculo da mandala. Na yoga da deidade, a visualização dos chakras muitas vezes é
extremamente detalhada, com diferentes deidades e mantras em cada pétala dos
lótus. Todos os detalhes de cores, número de pétalas, sílabas e assim por diante

182
variam de prática para prática, portanto é impossível fornecer uma contagem do corpo
sutil que se aplique a todas as situações.

O corpo sutil é a dimensão da ausência de forma emergindo em direção à forma;


seu estilo da manifestação não é fixo e não pode ser determinado. A forma aparente
que ele toma é trazida à vida através da própria consciência que temos dele e é
transformada através da prática do yoga. Em seu estado aperfeiçoado, ele se torna o
corpo da deidade: a experiência direta de nós mesmos como a deidade escolhida em
cuja meditação estamos engajados.

O Nível Muito Sutil

Quando chegamos ao nível muito sutil, existe ainda menos possibilidade de


descrevê-lo em linguagem comum. Contudo, ele é retratado como dois bindus, um
branco e um vermelho de essência masculina e feminina, unidos como um porta-joias
redondo e fechado, no centro do chakra do coração. Ele é chamado de o bindu
indestrutível. Dentro dele está a energia de vida fundamental, o prana muito sutil,
apoiando a mente muito sutil, cuja natureza é luminosidade. Aqui o prana corresponde
ao corpo, porque serve de apoio e veículo da mente. Os dois são idênticos em essência
e se distinguem apenas pelas suas funções: o prana se relaciona ao aspecto do
movimento, enquanto a mente é o aspecto da consciência.

O bindu indestrutível é eterno e imutável. Continua de vida para vida, sem início
e sem fim. É a natureza básica de nossa mente e a essência da vida, uma continuidade
de consciência luminosa. Ele é bodhichitta, o coração-mente desperto, e é
tathagatagarbha, a natureza de buda intrínseca que todos nós possuímos, mas não
percebemos.

Somos incapazes de reconhecê-lo porque nossa mente está sempre ocupada


com o nível grosseiro, exterior da existência. A consciência ordinária é incapaz de
percebê-lo; somente quando os níveis mais grosseiros cessam é que os níveis mais
sutis podem se manifestar. Atingir um estado muito sutil significa que todos os
aspectos relativamente grosseiros do prana e da mente devem ter entrado no nadi
central e em seguida se dissolvido no bindu no centro do coração. Isso acontece
involuntariamente na morte, por isso se diz que a luminosidade da morte aparece para
todos os seres conscientes, mas se eles não tiverem se acostumado com ela durante a
vida não a reconhecem. Sempre que vamos dormir, penetramos no nível muito sutil,
algumas vezes retornando ao mundo sutil dos sonhos e outras permanecendo no
estado luminoso do sono profundo e sem sonhos. Já que não podemos reconhecer e
permanecer na luminosidade, parece-nos que perdemos a consciência. Mesmo para
aqueles que podem reconhecê-la, a experiência da luminosidade do sono não é tão

183
profunda ou completa quanto a da morte, porque nem todo o prana se dissolveu; uma
parte permanece circulando através do corpo para mantê-lo vivo e respirando.

Diz-se que um breve lampejo da luminosidade também ocorre no orgasmo, no


desmaio e mesmo ao espirrar, mas de novo não o notamos. A prática vajrayana
especial da união sexual cultiva essa potencialidade, usando a energia da paixão e a
experiência da bem-aventurança para intensificar a consciência e romper todas as
obstruções ao despertar. Por meio deste e de outros métodos que pertencem ao
estágio do yoga da deidade, o praticante ou a praticante pode passar pelo processo
que ocorre na morte, culminando no reconhecimento da luminosidade, sem que o
corpo precise morrer. Essa é a realização do dharmakaya, a fonte última da vida e de
todas as aparências. A partir desse estado, a pessoa pode então tomar um corpo de
forma, surgindo com o corpo de uma deidade no sambhogakaya ou com um corpo
físico no nirmanakaya. É assim que a pessoa manifesta de fato os três kayas no
caminho.

184
Capítulo Dez

A Grande Perfeição

LIBERAÇÃO ATRAVÉS DA AUDIÇÃO provém da tradição Ningma, a escola antiga,


cujos ensinamentos se originam daqueles trazidos ao Tibete por Padmakara e seus
contemporâneos no século VIII. O elemento final da Parte Um é uma breve introdução
ao sabor característico dessa tradição e a alguns de seus aspectos e terminologia
específicos.

Primeiro de tudo, em vez dos três yanas descritos no Capítulo Um, o caminho é
dividido em nove yanas59. Os primeiros dois são chamados o shravakayana (o caminho
do ouvinte) e pratyekabuddhayana (o caminho do buda solitário); eles correspondem
ao nível do hinayana. O terceiro é o bodhisattvayana (o caminho do bodhisattva),
equivalente ao mahayana. Os outros seis caem no domínio do vajrayana. Tanto na
antiga quanto na nova tradição os tantras são divididos em categorias de exterior e
interior. Eles partilham as três classes dos tantras exteriores ou inferiores, que são
conhecidos como kriya (ação ritual), charya (conduta ou modo de vida) e yoga (união).
Na tradição Ningma, essas categorias de tantra formam os próximos três yanas. Na
terminologia Ningma, a classe charya é também conhecida como ubhaya (de ambos os
tipos) porque faz a ponte entre os outros dois yanas. As novas tradições (Kagyü, Sakya
e Geluk) têm apenas uma categoria de tantra interior ou superior: anuttarayoga (yoga
mais elevado); a esta classe pertencem os conhecidos tantras, tais como Guhyasamaja
Chakrasamvara, Hevajra e Kalachakra. A tradição Ningma divide a classe do tantra
interior em seus três yanas finais: mahayoga (grande yoga), anuyoga (yoga adicional) e
atiyoga (yoga transcendente).

A mahayoga está principalmente preocupada com o estágio de criação, e


anuyoga com o estágio de conclusão, enquanto a atiyoga leva o praticante para além
de ambos. A atiyoga contém o ensinamento especial particularmente associado com a
tradição Ningma, em geral conhecido por seu nome tibetano de dzogchen, que

59
Para os ensinamentos de Trungpa Rinpoche sobre os nove yanas, ver Chögyam Trungpa, The Lion’s
Roar, Boston, Shambhala, 1992. Para Ningma e dzogchen em geral, ver Dudjom Rinpoche; The Nyingma
School of Tibetan Buddhism, Patrul Rinpoche, The Words of My Perfect Teacher; e Longchen Rabjam, The
Practice of Dzogchen, traduzido por Tulku Thondup, Ithaca, Snow Lion, 1989.

185
significa “a grande perfeição”. Ele é organizado em três seções de mente, espaço e
instruções especiais60, que expõem a visão dzogchen e os meios práticos de realizá-la.

Infelizmente, nenhuma literatura sânscrita original ligada ao dzogchen


sobreviveu, ou pelo menos nenhuma foi ainda descoberta, e mesmo o nome dzogchen
é encontrado apenas em tibetano61. Muitos textos foram mais tarde descobertos
como termas, portanto foram naturalmente compostos em tibetano e não possuem
contrapartidas em sânscrito. Esses ensinamentos foram altamente refinados e
desenvolvidos dentro do Tibete, mas provavelmente se originaram na distante região
noroeste da antiga Índia, atualmente Afeganistão e Paquistão, que foi um grande
baluarte do tantra e o local de nascimento de Padmakara. Essa área era um ponto de
encontro de muitas culturas e influências; foi conquistada por invasores muçulmanos
muitos séculos antes do resto do norte da Índia, portanto não é de surpreender que
muito tenha desaparecido.

Dzogchen é um ensinamento de absoluta objetividade e simplicidade, indo


direto ao coração da mensagem do Buda. É o resultado da percepção mais sutil e
profunda da natureza final da realidade e da mente. Repetidamente, na jornada ao
longo do caminho budista, encontramos métodos concebidos para realizar uma certa
experiência, mas uma vez que a experiência tenha sido assimilada, somos lembrados
de que ela não é o estágio final e devemos abandoná-la para poder progredir mais.
Tornar-se apegado à conclusão de qualquer estágio é como habitar o reino dos deuses;
não é a liberação completa. Dzogchen se apoia de maneira absoluta na realidade
sempre presente da natureza de buda. Ele elimina completamente a ideia de que
existe qualquer diferença entre samsara e nirvana, confusão e sabedoria; perpassa
todos os pontos de referência, destruindo a dualidade da experiência e do
experimentador. Esse é o princípio tão vividamente expresso pela energia selvagem e
feroz das deidades coléricas.

A técnica usada no dzogchen é a transmissão direta de mente a mente entre


guru e discípulo, apontando ou identificando a verdadeira natureza da mente. A mente
sempre permanece a mesma, não importando que experiências entram e saem dela.
Portanto, se alguém conseguisse se basear nesse estado sem dispersões, não haveria
necessidade de outros métodos. Entretanto, não basta ter um vislumbre dessa
essência mental; é muito mais difícil mantê-la continuamente. Para esse propósito, as

60
Em tibetano, sems sde, klong sde e man ngag sde, respectivamente.
61
Alguns textos tibetanos fornecem o termo mahasanti na versão sânscrita de seus títulos, e o grande
erudito Ningmapa Rongzom Pandita (séculos XI e XII) propôs que sua leitura deveria ser mahasandhi,
significando “grande união”. Namkhai Norbu sugere que mahasanti é uma forma Prakrit, ou dialeto, e
não precisa ser corrigido. Neste caso, ele significaria “grande paz”. Poderia se esperar encontrar
mahasampanna, que é fornecido como o equivalente sânscrito no Tibetan-English Dictionary de Sarat
Chandra Das, mas sem citar uma fonte. Para mais informações, ver John Myrdhin Reynolds, The Golden
Letters, Ithaca, Snow Lion, 1996, p. 264-265. Este livro contém excelentes seções sobre as origens, a
visão e a prática do dzogchen, assim como traduções de alguns dos textos básicos mais importantes.

186
práticas dos dois outros tantras interiores, mahayoga e anuyoga, são usadas, com base
no fundamento preparatório dos yanas precedentes. Alguns mestres dzogchen
apoiam-se somente na atiyoga, que contém seus métodos próprios de estabilizar e
aprofundar a realização da pessoa, mas isso requer qualidades excepcionais tanto no
mestre quanto nos alunos, assim como uma forte conexão kármica com esse caminho
em particular.

Temos visto a palavra mente utilizada de muitas maneiras diferentes. Em geral,


ela cobre todos os estados possíveis da mente, desde a corrente subterrânea de
tagarelice confusa, passando pelo raciocínio e pela razão lógica, emoções e percepções
dos sentidos, até o estado desperto. O estado desperto é a natureza fundamental,
primordial da mente, que é também chamado “a própria mente”. Mas na realidade
existe apenas uma mente, seja ela ilusória ou desperta, seja grosseira ou sutil, crie o
samsara ou o nirvana. Tem sido dito que a única diferença entre os budas e os seres
comuns é que seres comuns não sabem que são budas. Entretanto, o próprio fato de
que pensamos em nós como seres comuns significa que estamos em um estado de
confusão em vez de iluminação. É por isso que existe uma necessidade de dharma,
com seus diversos métodos e abordagens diferentes, para se encaixarem em todos os
tipos de naturezas e habilidades.

Um termo muito significativo no dzogchen é consciência (vidya em sânscrito, rig


pa em tibetano), a natureza última da mente e um sinônimo para o estado desperto. É
o conhecimento de um estado de ser, uma experiência direta pessoal, que dá à pessoa
completa certeza e confiança. É desobstruída, significando que é onisciente e
onipresente: nada pode obscurecê-la, limitá-la ou ficar no seu caminho. É a capacidade
primordial, intrínseca, de reconhecimento, por conhecer a natureza real das coisas,
antes que a ignorância e a confusão possam se manifestar. Está além do pensamento,
além dos processos de pensamento ou da distinção entre a mente e seus objetos.
Vidya poderia ser traduzido de várias maneiras. Trungpa Rinpoche às vezes utilizava
“insight”, e no Livro tibetano dos mortos a traduzimos como “inteligência” ou “mente”,
mas “consciência”62 tornou-se mais amplamente adotada e parece transmitir o sentido
da presença desperta, assim como o saber.

Em sânscrito, vidya deriva de um significado raiz que quer dizer “ver”, e é uma
das muitas palavras usadas para conhecimento; cobre todas as artes e ciências,
qualquer ramo do aprendizado que tenha uma aplicação prática, e principalmente o
conhecimento mágico e secreto dos mantras. Algumas vezes se refere ao próprio
mantra: conhecimento que se torna palavra, conhecimento que é poder, um
encantamento mágico no sentido mais genuíno. Vidya como mantra é uma afirmação
da verdade que tem o poder inerente de se tornar verdadeira, ou melhor, de revelar o
verdadeiro e desconhecido estado das coisas que está sempre presente. Esse tipo de

62
O termo original é awareness, normalmente traduzido como “percepção” ou “consciência” (N. do T.)

187
conhecimento não é magia mundana, mas magia espiritual que transmuta confusão
em sabedoria. Em seu nível mais elevado, percebemos que os seres conscientes
sempre estiveram despertos, portanto nenhuma transformação foi realmente
necessária ou realmente aconteceu de maneira alguma. Conhecimento mágico ou
consciência é simplesmente a visão nua e direta daquilo que é. Embora tenha ido
muito além da dualidade do conhecedor e do conhecido, vidya, como é utilizada na
linguagem do dzogchen, reteve seu sentido original de experiência prática, em
primeira mão.

Em Liberação através da audição, essa natureza última da mente é revelada


como sendo o estado de luminosidade, que o texto descreve como vazio e claridade
inseparáveis. O próprio Buda disse que a mente é luminosa, mas é obscurecida pelas
impurezas que não são intrínsecas a ela. Sua natureza verdadeira e fundamental é a
luminosidade, o nível mais sutil da mente, abrigando o bindu indestrutível dentro do
coração e continuando de vida para vida. Nos sutras mahayana, o vazio por si só é
apresentado como a verdade absoluta, a mais elevada descrição possível da realidade,
enquanto os tantras falam muito mais frequentemente da luminosidade como a
essência da mente e de todos os fenômenos. Como diz o Guhyasamaja Tantra: “A
natureza de tudo é a luminosidade, pura desde o começo, como o espaço.”63

O vazio é o aspecto mental da insubstancialidade, do não ser, do espaço e da


amplidão, como o céu ilimitado. A claridade é o poder da mente de iluminar os seus
objetos, que na verdade não são nada além da exibição de sua própria natureza
luminosa. Esses dois aspectos são às vezes descritos como as perspectivas objetivas e
subjetivas da luminosidade: luminosidade objetiva é o vazio da existência inerente, e
luminosidade subjetiva é a claridade que percebe o vazio. Mas no dzogchen não há
nenhuma distinção entre sujeito e objeto; ao contrário, diz-se que o vazio é a essência
da luminosidade, enquanto a claridade é a sua natureza ou expressão.

A luminosidade experimentada na meditação é chamada de a luminosidade do


caminho, da comparação ou da criança. A verdadeira luminosidade de nossa natureza
desperta é chamada de luminosidade básica ou luminosidade mãe; ela se mostra no
momento da morte, e se for reconhecida a mãe e a criança se encontram e se tornam
uma só na liberação.

Luminosidade é muitas vezes traduzida como “luz clara”, que é uma


interpretação literal do tibetano e não do sânscrito. Trungpa Rinpoche não gostava
desse termo, embora algumas vezes o utilizasse em suas palestras, que formam a base
de seus livros, por ser bastante conhecido. Ele sentia que o termo havia se tornado
indissoluvelmente associado com noções como a luz no fim do túnel das experiências
de quase-morte, e que acabava passando uma impressão de luz visual e comum,

63
Guhyasamaja Tantra, Capítulo 2.

188
enquanto pretendia significar um conceito extremamente sutil que seria mais bem
transmitido por “luminosidade”. Os dois termos, luminosidade e claridade, em geral
não são diferenciados e são traduzidos pela mesma palavra em inglês, de tal forma que
encontramos “luz clara”, “luminosidade” ou “claridade” para ambos64. Eles certamente
são muito próximos, já que claridade aqui não é apenas clara e transparente, mas
também brilhante e luminosa: o potencial iluminador da mente. No Livro tibetano dos
mortos, usamos somente luminosidade, mas ao olhar o texto muito cuidadosamente
com isso em mente, é evidente que há uma distinção entre eles e portanto agora
parece melhor fazer essa distinção nas passagens revisadas da tradução que se segue
na Parte Dois.

Luminosidade é o pano de fundo sempre presente de Liberação através da


audição, a partir do qual as visões das deidades pacíficas e coléricas aparecem. Na
verdade, ela está no centro da experiência do bardo. Como Trungpa Rinpoche disse,
ela “surge como brechas sutis de todos os tipos”, em todos os seis reinos da
existência65. Parece assustador porque ela não oferece nada a que se agarrar ou a que
se segurar; “luz clara é o sentido de desolação do espaço completamente aberto” 66. Se
conseguirmos nos deixar levar por ela e se fundir com ela de tal forma que não exista
mais nenhum senso de observador e observado, “quando a luz clara deixa de ser uma
experiência, então aquilo é o próprio espaço”67.

Espaço é um outro conceito básico. Ele não se refere ao conceito comum e físico
do espaço, mas ao espaço da mente. Trungpa Rinpoche disse uma vez que o espaço é a
versão budista de Deus. Em seu comentário sobre o Livro tibetano dos mortos,
escreveu que este é um “Livro sobre o Espaço”. Espaço não é diferente de mente, mas
fornece uma perspectiva diferente; é o ambiente da mente, inseparável da consciência
da mente. Em vez de falar em termos de mente universal ou cósmica, que poderia
facilmente ser interpretado como algum tipo de noção vagamente teísta, existe o
espaço vasto, ilimitado e aberto que não pode ser personificado ou deificado de
nenhuma forma. Não se pode rezar para ele; não se pode agradá-lo ou se irritar com
ele; não se pode acreditar ou desacreditar dele. Ele simplesmente está, a base
primordial de tudo. Pelo fato de ser completamente aberto e infinito, é impossível se
acomodar nele ou se tornar fixado nele. Essa absoluta ausência de pensamento

64
Luminosidade é ’od gsal em tibetano e prabhasvara em sânscrito; claridade é gsal ba em tibetano e
svaccha (com outras alternativas possíveis) em sânscrito. Já existe um problema potencial na tradução
do tibetano, porque teoricamente ambas as palavras podem ser abreviadas em certas circunstâncias
para gsal. Entretanto, me parece que elas são geralmente distintas, e certamente o são em Liberação
através da audição. Quando eu estava trabalhando neste texto com Trungpa Rinpoche, não gostava da
distinção e portanto não o indaguei a respeito; ele usava somente “luminosidade” naquela época. Em
contraste, Rigdzin Shikpo prefere usar somente “claridade” e me diz que Trungpa Rinpoche também a
preferia quando eles estavam trabalhando juntos na década de 1960.
65
Transcending Madness, p. 290.
66
Transcending Madness, p. 254.
67
Transcending Madness, p. 299.

189
conceitual, fabricação ou esforço é a qualidade particular do dzogchen ou atiyoga. O
prefixo ati significa “extrema” “transcendente”, “além”. Quanto mais longe formos,
nunca poderemos chegar ao fundo espaço, ele está sempre além.

Quando falava do espaço, Trungpa Rinpoche estava combinando diversos


aspectos, para os quais existem diferentes palavras, tanto em sânscrito quanto em
tibetano. Primeiro existe akasha (em tibetano nam mkha’), o quinto grande elemento,
que também significa o “céu”. Como vimos no Capítulo Cinco, mesmo em sua
manifestação mais superficial, o espaço está de alguma forma separado dos outros
quatro elementos. Ele é o mais sutil entre eles, é imperceptível, e contém e apoia os
demais. Em algumas das antigas escolas filosóficas budistas, o espaço era classificado
como um dharma puro, não-condicionado, igualado ao nirvana. De acordo com essa
compreensão, o espaço transcende os elementos materiais, não tem dimensões e se
encontra inteiramente fora dos conceitos habituais de espaço e tempo.

O Guhyasamaja Tantra frequentemente menciona o espaço dessa forma. Em


uma passagem, o supremo buda Vajrasattva ensina a todos os budas e bodhisattvas
que todos os fenômenos (dharmas) são como um sonho, embora aparentem ser reais
através da “ilusão vajra” e existem no “espaço vajra”. Vajra indica a natureza pura,
brilhante e indestrutível do estado desperto. Os budas e bodhisattvas ficam atônitos
com esse ensinamento e exclamam:

Embora os fenômenos não existam em si próprios,


ainda assim sua realidade é ensinada;
Oh, quão maravilhosa é a meditação sobre o espaço
dentro do espaço!

Vajrasattva então explica que mesmo o corpo vajra, a fala vajra e a mente vajra
dos seres iluminados são assim. Tudo existe no espaço, mas já que o espaço em si não
existe em nenhum dos três mundos — o mundo do desejo, o mundo da forma ou o
mundo sem forma — nada nunca realmente surgiu. O tantra continua:

Em seguida todos os budas perguntaram: “Ó Abençoado, onde todos os


fenômenos iluminados existem e onde eles nascem?” Ele respondeu: “Eles
existem no seu corpo, fala e mente, e nascem do seu corpo, fala e mente.”
Eles perguntaram: “Onde a mente existe?” Ele respondeu: “No espaço.”
Eles perguntaram: “Onde o espaço existe?” Ele respondeu: “Em nenhum
lugar.” Nesse momento, todos os budas e bodhisattvas ficaram plenos de

190
admiração e assombro. Contemplando suas próprias mentes, a morada da
natureza última da realidade, eles permaneceram silentes.68

Em seguida, existe a palavra dhatu (em tibetano dbyings), que no budismo tem o
significado de espaço como uma extensão de seu significado primário: um
componente fundamental. Aqui ela transmite a ideia da vasta extensão do vazio, da
amplidão e da insubstancialidade. Ela é muitas vezes combinada com outras palavras.
Akashadhatu pressupõe a natureza infinita do espaço. Jnanadhatu é a esfera ilimitada
do conhecimento primordial, assim como a inseparável unidade do conhecimento e do
espaço. Vajradhatu é a dimensão da natureza vajra indestrutível, onde nada pode ser
destruído precisamente por causa de seu vazio essencial. Dharmadhatu é aquilo que
contém todos os dharmas: o reino de todos os fenômenos, o espaço todo abrangente;
ele pode também se referir à mente, que é naturalmente vazia como o espaço e
mesmo assim é a fonte de toda a experiência.

Finalmente, existe a palavra tibetana long (klong), que é característica do


dzogchen. Mais uma vez, ela indica o vasto e aberto firmamento, mas aqui o espaço é
experimentado de dentro, livre da dualidade de sujeito e objeto, “o espaço vivo do ser
de uma pessoa”, como Rigdzin Shikpo o coloca. Nenhum texto sânscrito foi encontrado
para utilizar uma palavra equivalente à maneira como long é utilizada no dzogchen,
nem parece haver qualquer palavra em inglês adequada a ela. Pode significar uma
onda, que tem o sentido tanto de uma corrente que flui quanto de um vasto vagalhão,
e pode também significar o centro ou interior, a ideia de estar no meio de alguma
coisa69. Podemos descobrir esses significados aparentemente disparatados
combinados nas imagens das pinturas tibetanas. Lá, as deidades e gurus estão
rodeados por auréolas de raios de luz que ondulam suavemente. Eles representam as
ondas incessantes de energia compassiva emanando do altruísmo, ou “irradiando sem
um irradiador”, para usar uma expressão de Trungpa Rinpoche. Esse espaço vibrante é
uma imagem do long, e os textos muitas vezes descrevem uma deidade como estando
rodeada por um long das cinco cores.

O espaço de um long não tem centro e não tem fronteiras. Estamos no meio do
espaço, e somos o próprio espaço. É uma extensão ilimitada de amplidão,
incessantemente dando origem ao fluir dinâmico das aparências. Diferentes tipos de
long são descritos no dzogchen, onde ele forma o tema de toda uma seção de
ensinamentos. Ele pode estar pleno de energias aparecendo vividamente como a luz
das cinco cores, ou pode estar totalmente além de qualquer tipo de percepção ou
experiência, além mesmo do conceito de energia.

68
Guhyasamaja Tantra, Capítulo 15.
69
Nos dicionários, a tradução sânscrita é geralmente fornecida como urmi, “onda”. No livro de Tulku
Thondup Rinpoche, Hidden Teachings of Tibet, Londres, Wisdom Publications, 1986, p. 268, é fornecida
no glossário como abhyantara, "interior”, mas em outros lugares traduzida como "grande firmamento”.

191
Combinando essas várias maneiras de olhar o espaço em uma única palavra em
inglês, Trungpa Rinpoche fez disso a pedra angular de seu ensinamento. Ele escreveu
no comentário ao Livro tibetano dos mortos: “O espaço contém nascimento e morte; o
espaço cria o ambiente no qual se comportar, respirar e agir, ele é o ambiente
fundamental que fornece a inspiração para este livro.”70

O espaço é vazio e luminosidade: vazio luminoso. Porque ele é vazio, nada existe,
ainda assim por ser luminoso, tudo surge a partir dele. Como Trungpa Rinpoche
afirmou, o dharmakaya surge desnecessariamente do espaço infinito. Aqui não existe
nem samsara nem nirvana, nem eu nem outro, nem budas nem seres conscientes. Esse
estado é conhecido como a pureza primordial porque não é manchado nem
obscurecido por insinuação de confusão ou pensamento dualista; ele é a natureza pura
e original de toda a existência, que sempre se encontra no centro de todos fenômenos
aparentes.

Esse é o estado de Samantabhadra, o buda primordial da tradição Ningma, cujo


nome significa Bondade Universal — bondade absoluta, antes que a distinção entre
bem e mal sequer existisse. É o despertar que nunca precisou se tornar desperto
porque nunca adormeceu; ele nunca se afasta da consciência não-dual.

Ele está inseparavelmente unido com o princípio feminino, Samantabhadri. Ela é


o espaço e o vazio que dá origem a toda a existência aparente. Porque ele é uno com
ela, nunca se afasta dessa fonte. Ela é a forma suprema de Prajnaparamita, a sabedoria
do altruísmo, portanto pelo fato de que Samantabhadra é uno com ela, nunca cai na
ilusão do eu. Todas as deidades femininas incorporam esse princípio; esse é o seu
significado primário, embora elas possam também expressar outros aspectos ao
mesmo tempo. A palavra tibetana para dakini, o princípio feminino personificado, é
khandroma, que significa “aquela que se move através do espaço”. Na mandala das
cinco famílias, o deva central é Akashadhatvishvari, a Rainha do Espaço. (Explicações
posteriores do princípio feminino e da relação entre os budas masculinos e femininos
serão encontradas no Capítulo Doze; detalhes das dakinis estão no Capítulo Treze.)

No despertar primordial em que está Samantabhadra, o que quer que apareça é


visto como a dança da energia no espaço, o jogo da mente. Dharmakaya se manifesta
como sambhogakaya. Dentro dessa extensão vasta e inconcebível, as cinco luzes se
irradiam e se transformam em exibições mágicas. As cinco dakinis dos elementos
dançam, cada uma com sua própria qualidade especial. A Dakini Azul do espaço abarca
todo o universo com seu gestual todo abrangente. A Dakini Verde voa através do
espaço, avivando cada partícula com energia vital. A Dakini Vermelha resplandece com
sua paixão ardente, irradiando calor e luz em todas as direções. A Dakini Branca flui
com graça arrebatadora nos rios e oceanos, em nuvens de chuva e torrentes de água.

70
The Tibetan Book of Dead, p. 1.

192
A Dakini Amarela dança majestosamente, formando a terra sólida e as montanhas
altaneiras. As cinco luzes do conhecimento perpassam o todo da existência; nada se
encontra fora delas. A realidade última do dharmadhatu é refletida no espelho claro; a
igualdade transcendente perpassa as qualidades únicas de cada coisa separada; o
amor surge espontaneamente e a ação iluminada é automaticamente concluída.

A condição de ignorância (avidya) em vez da de consciência (vidya) acontece


quando a energia se desprende de sua origem e se toma isolada. Trungpa Rinpoche
descreve isso como sendo a solidificação do espaço. À medida que a energia
estilhaçada se acelera, ela parece se tornar sólida e substancial, como o efeito do
cinema, que é criado pelo rodar do carretel do filme. Se a energia retorna à sua fonte,
que é a amplidão do espaço, então ela é o buda primordial, mas se ela continua em
direção à confusão, se transforma nos seres conscientes. Todo o processo do samsara
então se desenvolve por meio do surgimento dos cinco skandhas e das 12 ligações
subordinadas. A um certo ponto, aquela energia inteligente se torna auto-consciente e
começa a reparar que é separada. A ausência do ego, que é o aspecto vazio do espaço,
congela-se em um sentido de eu, enquanto o aspecto luminoso que dá origem às
aparências é erroneamente percebido como o outro. É como se a consciência tivesse
adormecido e acordado em um mundo de dualidade completamente diferente,
portanto agora ela acredita que é assim que tudo sempre foi.

Não existe uma razão pela qual tudo isso deveria acontecer. Também não é visto
como mau ou vergonhoso, como algum tipo de pecado original; é simplesmente como
as coisas são. E também não é a história de alguma coisa que aconteceu uma única vez
há muito tempo. O desenvolvimento do ego a partir da consciência está acontecendo a
cada momento. No fim das contas, não é realmente possível solidificar o espaço; toda
a ilusão elaborada está sendo criada continuamente e se dissolvendo de novo. O
espaço básico da nossa natureza está sempre presente. Como Liberação através da
audição nos lembra, Samantabhadra e Samantabhadri são a essência da nossa própria
mente. A descoberta do espaço é o propósito final da meditação, dos primeiros
estágios de acalmar a mente inquieta até a conquista final do dzogchen, a grande
perfeição.

A vida dentro do samsara consiste em seis reinos; estamos continuamente


circulando através deles de momento a momento, assim como de vida para vida. Mas
a essência dos seis reinos é o espaço. Eles são as várias maneiras por meio das quais
tentamos solidificar o espaço, os estilos por meio dos quais tentamos expressar nossa
confusão. O que quer que aconteça ocorre dentro do ambiente do espaço, sem o qual
nada poderia surgir. O espaço é a não-existência de tudo o que existe. Portanto,
sempre que existir um sentido de apego ou fixação, existirá também a possibilidade do
abandono. Sempre que existir um sentido de estar aprisionado, existirá também a
possibilidade de amplidão e liberdade. Sempre que existir um sentido de tensão e

193
solidez, existirá também a possibilidade de relaxamento e dissolução. Esse
relaxamento não é um estado de passividade e inação, mas de consciência clara e
precisa, livre da interferência da mente confusa. A energia que surge dessa noção de
espaço é desobstruída, sem os preconceitos e limitações que a mente impõe. A ação
se torna espontânea, livre de hesitação e dúvida: Trungpa Rinpoche costumava dizer:
“Apenas faça!” Essa atitude de simplesmente relaxar e se basear no espaço de sua
natureza básica é particularmente forte no dzogchen. Toda a abordagem de Trungpa
Rinpoche ao dharma era baseada nela; qualquer que fosse o tipo de prática que ele
estivesse ensinando, sempre estava impregnada pelo sabor do dzogchen, ou ati, como
ele normalmente o chamava.

Os ensinamentos finais do dzogchen são encontrados na seção de instruções da


atiyoga. Eles consistem em dois estágios chamados cortar através (trekchö) e
sobrepujar (thögal)71. Esses dois estágios são a base das instruções dadas em Liberação
através da audição. Transcendem os estágios de criação e conclusão através da
dissolução dos mínimos traços de apego ao eu ou ao pensamento conceitual, até
mesmo ao conceito de iluminação. Esse não é mais um caminho de transformação,
mas de autoliberação espontânea resultante do reconhecimento direto da realidade.

O primeiro estágio, cortar através, é algumas vezes interpretado como


significando cortar através do que é duro, através de obstáculos ou solidez, mas pode
ser também cortar dura, direta e destemidamente. Nele, o meditante é ensinado a
identificar a consciência nua, a própria base da mente, como sendo distinta das
operações da mente ou da consciência. Os pensamentos são autoliberados no
momento do seu surgimento, e a pessoa permanece continuamente na presença da
consciência. A pessoa reconhece com completa certeza a natureza original, pura e
vazia de todos os fenômenos, além tanto do samsara quanto do nirvana, o que é
conhecido como a pureza primordial. Isso significa que todos os elementos grosseiros
e skandhas são autoliberados em seu estado natural; não é uma questão de eles serem
purificados ou transmutados para aquele estado, mas de serem reconhecidos como
realmente são. O praticante que realizou a prática de cortar através pode alcançar o
corpo do arco-íris: na morte, sua mente se funde com o dharmakaya, enquanto o
corpo simplesmente se dissolve nas cinco luzes coloridas dos elementos sutis.

O estágio final, sobrepujar, significa cruzar sobre o topo ou passar por cima;
poderia ser pensado como atingir o ponto mais alto ou mesmo passar além do cume
da realização. Experiências visionárias de luz manifestam-se espontaneamente a partir
do firmamento da pureza primordial: arco-íris fascinantes e raios de luz, correntes
dançantes de luz, círculos das cinco cores e esferas de luz, nos quais todas as deidades
pacíficas e coléricas aparecem. Isso é chamado presença espontânea ou realização
espontânea. Não existe mais qualquer necessidade de meditar; essas visões não são

71
Na grafia tibetana, khregs chod e thod rgal, respectivamente.

194
objetos de meditação, mas as aparições naturais da própria realidade, de nossa
própria natureza, emergindo de dentro e tornando-se visíveis ao olhar.

Enquanto cortar através é um caminho de sabedoria e vazio, sobrepujar é um


caminho de meios habilidosos e compaixão. O yogue ou a yoguine que o atinge
conquista a realização completa em todos os três kayas e pode se manifestar em uma
forma sambhogakaya ou nirmanakaya de acordo com sua vontade. Seu corpo se torna
um corpo de luz, aparecendo simplesmente pelo bem dos outros. Ele ou ela
permanece no estado desperto e não passa mais por nascimento ou morte, em outras
palavras, não experimenta mais nenhum dos bardos, embora o corpo possa parecer
nascer e morrer como o de uma pessoa comum. Diz-se que o Guru Rinpoche e algumas
outras poucas pessoas excepcionais conquistaram isso; eles permanecem no mundo se
manifestando em muitas formas, visionárias e materiais, para aqueles que são capazes
de percebê-los.

As descrições dos bardos e as instruções relacionadas a eles contidas em


Liberação através da audição são realmente voltadas para pessoas que praticaram o
cortar através ou o sobrepujar em um certo grau, ou pelo menos ganharam alguma
experiência nos estágios de criação e conclusão. Mesmo assim, pelo fato de o estado
puro de consciência ser a essência de nossa mente e todas as aparições das deidades
que surgem dele serem a expressão de nossa própria natureza, todos nós possuímos a
potencialidade inerente de vê-los e reconhecê-los.

Um texto complementar à Liberação através da audição, descoberto por Karma


Lingpa no mesmo ciclo de terma, apresenta lindamente a visão dzogchen. Esse texto é
chamado Autoliberação através da visão nua mostrando a consciência 72. Ele oferece
instruções sobre como reconhecer e permanecer no estado de consciência suprema,
que descreve em grande profundidade. Se um praticante se torna acostumado com
este estado ao longo da vida, então ele ou ela será capaz de entrar nele facilmente na
hora da morte. Portanto, além de ser um poema extático sobre a natureza da mente,
esse texto fornece um ensinamento no nível mais profundo em relação à Liberação
através da audição. Traduzi algumas curtas passagens dele para dar uma ideia da
abordagem dzogchen. Ele começa por afirmar o ponto fundamental que mente
confusa e mente desperta são uma e a mesma em essência, e que todos os diferentes

72
Em tibetano, rig pa ngo sprod gcer mthong rang grol. Uma tradução completa disto está incluída em
The Tibetan Book of Dead de Thurman e The Tibetan Book of the Great Liberation de Evans-Wentz. John
Myrdhin Reynolds, em Self-Liberation through Seeing with Naked Awareness, Nova York, Station Hill
Press, 1989, apresenta o texto tibetano, a tradução e o comentário. Eu, agradecidamente, tenho feito
uso deste texto para os meus próprios excertos traduzidos, à medida que ele não está incluído em
nenhuma das coleções do kar gling zhi khro às quais tenho acesso.

195
caminhos dentro do budismo levam ao mesmo fim, o reconhecimento da natureza
verdadeira da mente:

Maravilhoso!
Uma mente abrange todo o samsara e o nirvana.
É a própria natureza da pessoa desde o início,
no entanto não é reconhecida.
Sua claridade e consciência fluem incessantemente,
no entanto não é encontrada face a face.
Raiando sem obstrução por toda parte, sua realidade não é captada.
De tal forma que este si próprio possa reconhecer a si próprio,
Todas as inconcebíveis 84 mil portas para o dharma
São ensinadas pelos budas do passado, do presente e do futuro.
Os budas não ensinaram nada
Exceto a realização desse si próprio.

É importante lembrar que no budismo “uma mente” não implica em nenhum


tipo de entidade cósmica ou substância. Ela se refere simplesmente à faculdade
iluminadora, conhecedora da mente, que é a mesma, proceda ela de acordo com a
verdade, que cria o nirvana, ou de uma forma distorcida, que cria o samsara. Não pode
ser chamada precisamente de individual ou universal, de pessoal ou impessoal, porque
tais distinções não se aplicam a ela. Essa mente contém o espectro total do estado
desperto: seu vazio essencial, sua energia radiante e sua manifestação incessante (ver
“O Trikaya” no Capítulo Nove).

Dentro de si o trikaya é indivisível e completo em um:


Vazio onde absolutamente nada existe é o dharmakaya,
Claridade, a radiância interior do vazio, é o sambhogakaya,
Nascendo em toda parte sem obstrução é o nirmanakaya,
Os três completos em um são sua natureza intrínseca.

Já que nossa mente é inerentemente buda, tudo que precisamos fazer é


reconhecer e se basear em nossa verdadeira natureza. A partir desse ponto de vista, o
estado desperto é a nossa mente perfeitamente comum, a experiência diária. No
entanto, mesmo depois que ela nos foi mostrada, parecemos ser incapazes de reter
essa realização. Nossas próprias tentativas de fazê-lo nos atrapalham, porque erram
seu objetivo. Começamos fazendo esforços para mudar, para encontrar alguma coisa,
ou para atingir alguma meta, mas esses mesmos esforços se tornam

196
contraproducentes. No sentido último, não há realmente nada a fazer e nada a mudar.
No entanto começamos a ter dúvidas e sentimos que somos incapazes de conquistar
qualquer coisa. Desesperamo-nos em chegar a lugar algum, quando realmente não há
nenhum lugar para ir. Esse paradoxo é enfatizado com uma série de perguntas para
nos chocar e fazer ver o absurdo de toda a situação:

Quando o método poderoso de entrar nesse si próprio é mostrado,


Seu próprio autoconhecimento no momento presente é apenas isso!
Sua própria auto-iluminação não elaborada é apenas isso,
Então por que dizer que não consegue compreender a natureza da mente?
Não existe nada mesmo para meditar dentro dela,
Então por que dizer que nada acontece quando você medita?
Sua própria experiência direta de consciência é apenas isso,
Então por que dizer que você não consegue encontrar sua própria mente?
Consciência ininterrupta e claridade são apenas isso,
Então por que dizer que não consegue reconhecer sua mente?
Aquele que pensa sobre a mente é a própria mente,
Então por que dizer que não consegue encontrá-la mesmo se você procurar?
Não existe nada mesmo para ser feito com ela,
Então por que dizer que nada acontece, não importa o que você faça?
Ela só precisa ser deixada naturalmente em seu próprio lugar,
Então por que dizer que ela não vai parar quieta?
Ela só precisa ser deixada à vontade, fazendo nada,
Então por que dizer que você não consegue fazer isso?
Claridade, consciência e vazio inseparáveis estão espontaneamente presentes,
Então por que dizer que sua prática não é bem-sucedida?
Espontaneamente auto-manifestada sem causa ou condição,
Então por que dizer que você não consegue mesmo se tentar?
Pensamentos são liberados instantaneamente assim que surgem,
Então por que dizer que antídotos não têm poder?
Saber no presente momento é apenas isso,
Então por que dizer que você não o sabe?

Essa passagem está cheia de termos típicos dzogchen, como autoconhecimento,


autoconsciência, auto-iluminação e assim por diante. Eles são ambíguos, e algumas
vezes é difícil decidir que aspecto apresentar na tradução. A palavra usada aqui para
“ser” (em sânscrito sva, em tibetano rang) também significa “seu próprio”, portanto
em alguns contextos parece apropriado enfatizar que é sua própria mente, sua própria

197
claridade, sua própria consciência. Essas qualidades não são criadas por ninguém, não
vêm de nenhum outro lugar e não precisam ser alcançadas ou aperfeiçoadas de
nenhuma forma. É por isso que com frequência encontramos traduções como
“natural”, “inerente” ou “intrínseco”. Entretanto, existe mais do que isso. No uso
comum, autoconhecimento implica conhecimento de suas condições interiores, como
sendo diferente do conhecimento do mundo exterior; mas aqui, o que quer que a
pessoa saiba, perceba ou experimente, é reconhecido como estando dentro da mente,
e portanto é autoconhecimento (rang shes). O que quer que a mente experimente está
experimentando a si própria. A claridade da mente faz com que as aparências surjam e
se tornem visíveis; isso é chamado auto-claridade ou auto iluminação (rang gsal). Os
fenômenos que surgem são a própria mente, embora pareçam ser externos; são
conhecidos como auto-aparência ou auto-exibição (rang snang). Autoconsciência (rang
rig) em particular se refere ao conhecer fundamental, inato da realidade. Ela é a
consciência da inseparabilidade do vazio e das aparências; a mente estando consciente
de suas próprias criações, do jogo entre o observador e o observado, e ao mesmo
tempo estando consciente dessa consciência. Dzogchen também utiliza o significativo
termo autoliberação (rang grol), que discutimos no Capítulo Dois. Tudo que parece nos
prender e nos iludir vem da nossa própria percepção equivocada; a mente construiu
sua própria prisão e sua própria teia de enganos. Portanto, assim que a verdadeira
natureza da mente é realizada, ela é vista como tendo sempre estado essencialmente
livre; naquele instante, ela se libera por seu próprio poder. O texto nos exorta a olhar
cuidadosamente para nossa própria mente e se assegurar de que ela é de fato
verdadeira:

É certo que a natureza da mente é vazia, sem fundamento:


Sua mente é não-existente como o espaço vazio.
Olhe para sua própria mente! Ela é assim ou não?
É certo que o que quer que apareça é tudo auto-exibição:
Originando-se de si própria como uma aparência, como uma imagem em um
espelho.
Olhe para sua própria mente! Ela é assim ou não?
É certo que todas as qualidades são espontaneamente autoliberadas:
Autoproduzidas e autoliberadas como nuvens no céu.
Olhe para sua própria mente! Ela é assim ou não?

Para entender todo esse conceito, não basta pensar ou sentir que nada é real ou
que está tudo na mente; é preciso uma percepção genuína da essência do que a mente
é realmente. É por isso que os ensinamentos sobre o vazio e o não-ser são fortemente

198
enfatizados antes de qualquer outra coisa. A própria mente fundamental, a fonte de
toda essa exibição, não é a “minha mente” ou a “sua mente” no sentido limitado e
egocêntrico. Toda a ilusão do que e do outro outro acontece dentro da mente, que
abrange a ambos. Mas enquanto ainda acreditarmos em um eu separado e um mundo
lá fora, a ilusão é certamente real em seus próprios termos. Dizer que tudo é mente a
partir daquele ponto de vista seria loucura. Os praticantes dzogchen são conhecidos
por serem extremamente práticos e realistas. Longchenpa, um grande mestre do
século XIV, iria rir das pessoas que sustentam visões filosóficas idealistas, dizendo que
é claro que o mundo externo é real! Com a realização da autoconsciência, tudo é visto
como sendo real de uma maneira inteiramente diferente, como a expressão da
natureza desperta. Entre essas duas visões da vida, existe o período de transmutação,
cheio de paradoxos e ambiguidades. Precisamos estabelecer, por meio da experiência
pessoal direta, os diferentes estágios de percepção que levam ao estado último.

Trungpa Rinpoche costumava dizer que a prática do vajrayana é baseada no


abandono da esperança de atingir o nirvana e do medo de permanecer no samsara. Ele
chamou essa atitude de desesperança, e descreveu toda a vida e o ensinamento de
Padmakara como uma ilustração da desesperança. Para a maioria das pessoas,
incluindo grandes santos como Naropa e Milarepa, desesperança realmente significa o
total desespero de perder toda a esperança, indo até o fundo, antes que sejamos
capazes de aceitar a verdade simples e óbvia. Se o que estamos procurando já está
dentro de nós, se nossa própria natureza já está desperta, então procurar em qualquer
outro lugar só pode nos levar para mais longe dela. A intensidade da nossa
desesperança, sua completitude e sua genuinidade determinam se podemos dar o
salto para o reconhecimento direto, imediato, ou se precisamos seguir um caminho
mais gradual de transformação. Durante o estágio de criação do vajrayana, a pessoa
realiza sua prática com a atitude de que o resultado já está alcançado, de tal forma
que a esperança de sucesso ou o medo do fracasso se desfazem gradualmente. Essa
convicção é o caminho para superar o materialismo espiritual, a atitude de apego que
vê a iluminação como um prêmio a ser conquistado no final da jornada. Com fé e
confiança na realidade sempre presente da natureza de buda, o caminho se torna um
processo contínuo de redescoberta, um revelar daquilo que já está plenamente
presente, em vez de uma jornada difícil até uma meta muito distante.

Como é estranho que ele seja desconhecido, embora esteja presente em toda
parte!
Como é estranho esperar por um fruto diferente, outro que não esse!
Como é estranho procurá-lo em outro lugar, embora ele esteja em si próprio!
Maravilhoso!
Isso, consciente no momento presente, claro, embora insubstancial,

199
Apenas isso é a culminação de todas as visões!
Isso, sem objeto de pensamento, todo abrangente, embora livre de tudo,
Apenas isso é a culminação de toda a meditação!
Isso, que é chamado de natural, mundano e relaxado,
Apenas isso é a culminação de toda conduta!
Isso, não buscado, espontaneamente existente desde o início de tudo,
Apenas isso é a culminação de toda fruição!

Atingir a iluminação pode parecer não ser mesmo nada de especial; aqueles que
a atingiram parecem viver de uma maneira completamente comum e mundana, sem
mesmo meditar, sem nenhum sentido de ter conquistado algo. O estado ideal de ser
de um praticante dzogchen é totalmente natural; combina consciência focada com
relaxamento sem esforço. Desse ponto de vista, toda a meditação é inventada e todas
as práticas são artificiais. Tentar atingir a liberação por meio delas é como uma cobra
se enroscando em nós cada vez mais apertados, em vez de se desenroscar sem
esforço no espaço. A pessoa deveria simplesmente se apoiar natural e
espontaneamente na natureza básica da mente. Existe uma história sobre um lama
chamado Zurchungpa que ilustra o estado contínuo de consciência focada que isso
requer. Ele estava sendo questionado por um estudante de uma tradição diferente que
perguntou: “No dzogchen, a meditação não é considerada a coisa mais importante?”
Zurchungpa respondeu: “O que há para se meditar a respeito?” Então o estudante
perguntou: “Bem, você nunca medita?” Ao que Zurchungpa respondeu: “O que é que
existe possa jamais me perturbar?”

Já que não existe nada sobre o que meditar, não meditar em nada mesmo,
Já que não existe nada pelo que ser perturbado, estável em obsequiosidade,
Olhe de maneira desapegada para o estado de não-meditação e não-
perturbação.
Autoconsciência, autoconhecer, auto-iluminar, brilha claramente:
Essa própria alvorada é chamada de a mente desperta.

Se alguém já olhou fundo o suficiente para a natureza da mente e é capaz de


tomar como base aquele estado, então se torna possível usar todas as percepções dos
sentidos e toda a experiência na vida, para aumentar sua própria realização. Sem
jamais perder de vista o vazio básico da mente, o que quer que aconteça é
reconhecido como a exibição de seu aspecto luminoso. Esse é o caso durante nosso
estado de vigília diário, durante sonhos e também após a morte durante o bardo.
Torna-se especialmente importante reconhecer quando as visões do bardo aparecem.
Se nos tornamos acostumados a reconhecer o que quer que surja como uma

200
expressão da natureza luminosa e vazia de nossa mente, então não seremos levados
por nenhuma aparência, por mais impressionante ou aterrorizante que ela possa ser.

Consciência de todas as aparências como mente, sem apego,


Está desperta, embora ver e visto surjam.
Aparências não são equivocadas, o erro vem através do apego;
Conhecendo o pensamento de apego como mente, ele é autoliberado.

O texto continua:

Não existe nenhuma aparência que não seja conhecida como originada da
mente,
Qualquer aparência que surja é a própria mente, desobstruída.
Embora ela surja, como a água e as ondas do oceano,
Já que elas não são duas, isso é libertado na natureza da mente.

Nossa essência intrínseca é um estado da maior simplicidade, embora durante o


processo de se revelar tenhamos de trabalhar com a complexidade e a confusão de
nossas mentes, como elas são no presente. Pode parecer que ensinamentos como esse
na verdade nos encorajem a não meditar ou fazer qualquer tipo de prática. Entretanto,
as vidas dos grandes mestres dzogchen mostram que eles geralmente passaram
muitos anos em retiro e fizeram esforços tremendos, antes que atingissem o estado
espontâneo de consciência natural. Em adição, suas biografias revelam que tiveram
uma fé e uma devoção extraordinárias a seus gurus e grande respeito por todos os
estágios do caminho. Podem existir algumas poucas pessoas que, como resultado de
práticas de vidas anteriores, possam penetrar direto na essência em um curto período
de tempo, mas a grande maioria de nós precisa passar por um período mais longo de
preparação. Para se basear no estado de não-meditação e não-perturbação,
precisamos praticar a meditação convencional primeiro, senão apenas permanecemos
sob a influência da perturbação, quer estejamos conscientes disso ou não. Como diz o
texto:

Todos os seres são na realidade a essência desperta,


Mas sem praticarem de fato eles não irão despertar.

201
Mesmo que não possamos perceber aquela essência no presente, simplesmente
sabendo a respeito dela e tendo fé nela fazem uma enorme diferença. Esses
maravilhosos ensinamentos são como o sol em um dia nublado: podemos ter completa
confiança que o sol está sempre por trás das nuvens. A visão dzogchen pode impregnar
subitamente todo o caminho, qualquer que seja a prática na qual estejamos engajados
e em qualquer estágio que tenhamos atingido. O texto conclui com este último
conselho:

Ver sua própria consciência de forma nua e direta,


Essa Autoliberação através da visão nua é muito profunda,
Então comece a conhecer isso por si mesmo, sua própria autoconsciência!

202
PARTE DOIS - O TEXTO

203
Capítulo Onze

A Luminosidade da Morte

TODAS AS IDEIAS BÁSICAS que estão por trás de Liberação através da audição
foram apresentadas na Parte Um, portanto agora podemos olhar o texto em detalhe à
luz desses princípios. Ele abre com um verso de louvor e devoção ao trikaya, o ser
triplo do estado desperto.

Amitabha, luz infinita, o dharmakaya;


Deidades de lótus pacíficas e coléricas, o sambhogakaya;
Padmakara, encarnado como o protetor dos seres;
Homenagem aos gurus, os três kayas.

Essa invocação prepara a cena para todo o ensinamento que está para se seguir.
Embora lide com a morte, a eventualidade mais temida de toda a nossa existência,
com as aterrorizantes aparições do período após a morte, e com as perturbadoras
possibilidades de renascimento, tudo está plenamente impregnado pelo amor e pela
compaixão infinitos do estado desperto. O Buda Amithaba, que preside a família
Padma (Lótus), incorpora o princípio da compaixão, expresso como luz radiante
ilimitada. É o aspecto da iluminação ao qual podemos nos conectar com mais
facilidade, especialmente em momentos de desgaste e raiva. Por causa disso, um
amplo número de práticas relacionadas à morte se desenvolveram no contexto da
devoção a Amitabha. Sua própria terra pura é conhecida como Sukhavati, a Bem-
Aventurada (em tibetano dewachen), é e a meta de muitos budistas mahayanas após a
morte. Outras práticas para se adquirir longevidade estão centradas em Amitabha na
forma levemente diferente de Amitayus, cujo nome significa Vida Infinita em vez de
Luz Infinita. Embora seja muito legítimo desejar prolongar a vida humana, o significado
interior de tais práticas é na verdade para atingir o estado de consciência que
transcende o próprio conceito de nascimento e morte.

Nesse verso, Amitabha representa o dharmakaya, embora ele normalmente


apareça como um dos budas sambhogakaya, para enfatizar o lugar central da
compaixão. Algumas vezes Samantabhadra, que normalmente é o buda dharmakaya
na tradição Ningma, é mostrado com um corpo vermelho em vez de seu corpo azul

204
costumeiro, para indicar sua unidade com o princípio de Amitabha. O dharmakaya é o
aspecto mais elevado e informe do guru. Já que é a essência mais profunda de todos
os seres, é o guru no seu sentido último, a luz infinita habitando o coração de todos os
seres.

O sambhogakaya é representado pela mandala das deidades do lótus pacíficas e


coléricas, que são todas as várias manifestações de iluminação, masculina e feminina,
que aparecem em formas visionárias de luz durante o bardo. Aqui todas são vistas
como se emanando de Amitabha, irradiando o amor ilimitado da família Padma. O
sambhogakaya é o nível da comunicação, inspiração e transmissão, a própria natureza
do princípio do guru; é a forma divina do guru. Quando as mentes do mestre e do
aluno se encontram e se tornam uma, tudo é visto com os olhos da visão sagrada; o
mundo inteiro se torna uma mandala de deidades originando-se espontaneamente
como a expressão da mente do guru. Como Trungpa Rinpoche escreveu: “O todo da
existência é libertado e se torna o guru.”73

Padmakara (Padmasambhava) é a manifestação de Amitabha no nível do


nirmanakaya. Mesmo seu nome, o Nascido do Lótus, o conecta com Amitabha. Ele é o
exemplar perfeito do guru em forma humana; é por isso que é conhecido como Guru
Rinpoche, o Guru Precioso. É o protetor de todos os seres, porque possui o poder
supremo de dispersar suas ilusões e despertá-los para sua própria natureza verdadeira.
Como o compositor e escondedor dos termas, ele é a fonte humana original de
Liberação através da audição. Prestando homenagem a ele no início, o leitor ou
ouvinte estabelece uma conexão direta com ele.

A última linha: “Homenagem aos gurus, os três kayas”, pode ser considerada,
como já foi descrito, referindo-se a cada um dos três kayas alternadamente como o
guru. Também poderia ser considerado de uma forma levemente diferente para
significar homenagem a todos os gurus do passado, presente e futuro, especialmente
às grandes figuras desta linhagem em particular, assim como ao mestre espiritual da
pessoa aqui e agora, já que são todos vistos como manifestações do trikaya completo.
O guru é a personificação do dharmakaya, sambhogakaya e nirmanakaya. Como vimos
no Capítulo Nove, os três kayas são aspectos do caminho, que é realmente o todo da
vida diária. Trungpa Rinpoche descreveu a vida e o ensinamento de Padmakara como a
expressão viva do trikaya: o sentido de totalidade e de espacialidade do dharmakaya, a
energia e o jogo do sambhogakaya e a atividade prática do nirmanakaya. O princípio
do trikaya também se encontra no centro de Liberação através da audição, que
estamos prestes a explorar.

73
Trungpa Rinpoche, The Sadhana of Mahamudra.

205
Liberação através da audição toma como seu assunto principal três dos seis
estados tradicionais do bardo: o bardo do morrer, o bardo do dharmata e o bardo da
existência74. Seu propósito real é a orientação durante os estágios posteriores da
experiência pós-morte; a primeira seção, que lida com o bardo do morrer é muito
breve. Também parece menos clara que o resto do texto, como se fosse esperado que
o leitor tivesse a capacidade de preencher as lacunas com informações adicionais.
Existem de fato numerosos outros ensinamentos relacionados ao processo de morrer
e a diferentes maneiras de se preparar para a morte. Em particular, um seguidor desta
tradição estaria familiarizado com Auto liberação através de sinais e presságios da
morte75, um outro texto do mesmo ciclo de termas.

Literalmente, o nome deste bardo significa “o tempo da morte”. É em geral


levado a incluir todo o processo de morte, começando no início de uma doença
terminal, ou ferimento, ou o que quer que seja a causa direta da morte, até o
momento em que o aspecto mais sutil da mente e da força de vida deixa o corpo. No
caso de uma longa doença, ele se referiria especialmente à sua fase final, quando a
pessoa moribunda passa por uma mudança na qualidade de sua consciência.
Entretanto, algumas explicações se concentram apenas no momento final, quando a
mente entra no estado de luminosidade e tem a possibilidade da liberação completa.
Essa era a interpretação de Trungpa Rinpoche, e é também o foco principal das
instruções de Liberação através da audição, portanto em nossa tradução o chamamos
de “o bardo do momento antes da morte”. Aqui prefiro tomá-lo no seu sentido mais
amplo e chamá-lo de o bardo do morrer.

Como já vimos, o budismo vê o todo da nossa existência como uma sucessão de


nascimentos e mortes. Em qualquer escala que olhemos para isto — de vida a vida, de
dia a dia ou de momento a momento —, as condições de cada “vida” são
determinadas pelas forças kármicas colocadas em movimento pela vida anterior.
Embora inúmeras influências estejam constantemente em atuação dentro da corrente

74
Além do Transcending Madness de Trungpa Rinpoche e seu comentário sobre O livro tibetano dos
mortos, extensa informação sobre estes três bardos pode ser encontrada nos seguintes livros: de Tsele
Natsok Rangdrol, The Mirror of Mindfulness, Boston, Shambhala, 1989, e seu comentário, de Chökyi
Nyima Rinpoche, The Bardo Guidebook, Hong Kong e Katmandu, Rangjung Yeshe Publications, 1991; de
Lama Lodö, Bardo Teachings, Ithaca, Snow Lion, 1982; de Bokar Rinpoche, Death and the Art of Dying,
São Francisco, ClearPoint Press, 1983; de Tenga Rinpoche, Transition and Liberation, de D. I. Lauf, Secret
Doctrines of the Tibetan Books of the Dead. Capítulos sobre os três bardos também estão incluídos em
The Tibetan Book of Living and Dying, de Sogyal Rinpoche; Repeating the Words of the Buddha,
Katmandu, Rangjung Yeshe Publications, 1991 e Rainbow Painting, Rangjung Yeshe Publications, 1995,
ambos de Tulku Urgyan Rinpoche; The Dharma, Albany, SUNY, 1986, Secret Buddhism, São Francisco,
ClearPoint Press, 1995, e Luminous Mind, Boston, Wisdom, 1997, todos de Kalu Rinpoche; The Small
Golden Key, 1997 e White Sail, Boston, Shambhala, 1992, ambos de Thinley Norbu; Enlightened Journey,
de Tulku Thondup, Boston, Shambhala, 1995.
75
Em tibetano, ’chi ltas mtshan ma rang grol. Glenn Mullin traduziu este texto junto com oito outros
relacionados ao tema da morte. Ver Glenn Mullin, Death and Dying: The Tibetan Tradition, Boston,
Arkana, 1986.

206
mental, nosso estado mental durante os últimos momentos antes da morte é
particularmente importante para decidir a direção que nosso futuro irá tomar.

Resultados kármicos são classificados em quatro graus diferentes de força. O


mais forte é chamado de “karma pesado”, que pode ser ou negativo ou positivo. O
karma pesado negativo resulta das cinco ações extremas de assassinar a própria mãe,
o próprio pai, ou uma pessoa realizada que esteja próxima da iluminação
(tecnicamente, um arhat); ferir um buda (uma pessoa plenamente desperta que está
além do nascimento e da morte e portanto não pode ser morta de verdade); e causar
deliberadamente séria desavença dentro de uma comunidade espiritual (a sangha).
Essas ações são tão destrutivas e tão opostas à bondade básica da nossa natureza
que tomarão frente e dominarão a corrente mental, caso não tenham sido objeto de
arrependimento e purificação durante esta vida. Também pode haver karma pesado
positivo resultante da obtenção de certos estados meditativos, que irão exercer uma
poderosa influência para o bem. Se não existe karma pesado na corrente mental,
então o karma do período logo antes da morte - nossos pensamentos, palavras e ações
finais — torna-se a parte mais significativa. Em seguida em importância está o karma
habitual de toda a nossa vida, e isto, é claro, é muito provável que influencie a
disposição dos nossos momentos finais. Por último, o karma de nossas vidas passadas
também pode ter algum efeito na determinação do nosso futuro renascimento.

Se formos felizes o suficiente para viver em uma cultura onde a abordagem da


morte é aceita e reconhecida como uma grande oportunidade, ou se temos amigos
com a mesma atitude que nos apoiarão, o medo natural pode ser transformado em
uma fonte de inspiração. Nas culturas budistas, é considerado uma grande bênção
saber antecipadamente de nossa morte iminente, de forma que possamos nos
preparar para ela. Autoliberação através de sinais e presságios da morte é devotado
inteiramente a esse assunto; descreve métodos de prever a morte meses e até anos
antes através da observação de sintomas físicos, análise de sonhos e do desempenho
de procedimentos divinatórios. Outro texto complementar fornece métodos para
aquilo que é chamado de trapacear a morte — fugir dela, se ainda não for inevitável,
com práticas de purificação e longevidade. Mais cedo ou mais tarde, a morte é certa,
embora seja perfeitamente correto e adequado retardá-la de modo que possamos
fazer o melhor uso de qualquer que seja o tempo que nos resta. Se, depois de executar
tais práticas, os sinais da morte iminente ainda estejam presentes, então somos
instados a começar o treinamento em uma das práticas específicas de morrer. Antes
de apreciar as instruções fornecidas no texto, vamos dar uma olhada no processo real
do que acontece quando morremos.

207
A morte ocorre quando uma doença fatal ou acidente destrói a força ou quando
o ímpeto kármico que determina nossa expectativa de vida natural se exaure. Morrer é
descrito como um processo de dissolução, desde o mais denso e o mais pesado até o
mais fino e o mais sutil nível do nossos ser. Primeiro, existe a dissolução exterior dos
quatro elementos que compõem o corpo físico — terra, água, fogo e ar — e em
seguida a dissolução interior de nossos estados mentais. Essencialmente, o que
acontece na morte é que toda a nossa energia vital ou prana retorna à sua fonte: essa
energia é reabsorvida pelo nadi central e em seguida pelo bindu indestrutível no
centro do coração. Uma maneira de definir a morte é a separação dos corpos
grosseiro e sutil. Conforme o processo de reabsorção acontece, o corpo sutil não é
mais capaz de manter o funcionamento do corpo físico grosseiro. Um a um, os cinco
pranas primários e secundários se recolhem, os nós dos chakras se desfazem e os
elementos se dissolvem; como resultado, as funções corporais e os sentidos começam
a falhar.

Em seu comentário, Trungpa Rinpoche explicava o processo de morte em termos


de incerteza, medo e confusão que experimentamos enquanto passamos pelos
estágios de dissolução. Estamos deixando para trás o mundo real, sólido e dualista dos
vivos e entrando no mundo irreal, cambiante e fantasmagórico mundo dos mortos: “A
sepultura que existe no meio da neblina.” Como poderíamos esperar, isso não se aplica
somente à morte iminente no sentido literal, mas também à contínua ocorrência da
dissolução da vida diária. Nossa experiência de vida é baseada na dualidade — eu e o
outro, sujeito e objeto, bom e mau, prazer e dor; essa é a causa de toda a nossa
confusão. Somos programados dessa maneira pelos skandhas, por isso esse modo de
experiência é o que consideramos real; ele se tornou o critério pelo qual julgamos a
realidade. Quando os elementos se dissolvem na morte, toda a estrutura na qual nossa
percepção dualista do mundo é baseada começa a se desmoronar, e nosso sentido de
identidade é minado. Veremos exemplos de como isso pode acontecer em cada
estágio do processo de dissolução. À medida que os sentidos se deterioram, a fronteira
entre o interior e o exterior que preserva nossa identidade torna-se frágil, confusa e
distorcida e finalmente se rompe por completo. Mesmo nos ecos dessa experiência
que ocorrem durante a vida, podemos senti-los igualmente perdidos e desnorteados;
podemos começar a duvidar de nossa existência e temer que estejamos perdendo a
sanidade.

Mas ao mesmo tempo, a perda do ego que nos é forçada apresenta


oportunidades continuadas de se deixar levar em direção ao espaço aberto e claro, até
que alcancemos a luminosidade de nossa natureza básica. O problema não está na
dualidade em si; está no fato de que experimentamos a dualidade de uma maneira
parcial e incompleta — nos identificamos com um lado e rejeitamos ou nos agarramos
ao outro. “Mas se estivermos completamente em contato com esses sentimentos
dualistas, a experiência absoluta de dualidade é ela própria a experiência da não-

208
dualidade. Então não há problema algum, porque a dualidade é vista a partir de um
ponto de vista perfeitamente claro e aberto no qual não existe conflito; existe uma
visão tremendamente abrangente da unidade.”76 Ou, como está dito em Autoliberação
através da visão nua:

Aparências não são enganosas, o erro vem através do apego


Conhecendo o pensamento de apego como mente, ele é autoliberado.

Ao aprender a ver o mundo dessa maneira, podemos experimentar a dualidade


como ela realmente é, plena e completamente, de tal forma que é transformada na
totalidade toda abrangente do estado desperto. O praticante que estabilizou essa
realização é capaz de ver com equanimidade a desintegração do corpo e dos níveis
grosseiros da mente, confiante no estado natural e inato de luminosidade e vazio.

Todo o processo pode ser observado pelas mudanças exteriores que acontecem
no corpo e também por sensações interiores experimentadas pela pessoa moribunda.
Conforme ela se torna crescentemente desconectada do mundo externo, a consciência
dos estados internos aumenta. Durante esse Período, existem também sinais secretos
sob a forma de aparições de luz dentro da mente — chamadas de secretas porque a
maioria das pessoas sequer repara nelas, mas são extremamente significativas para o
meditante treinado. Indicam que enquanto os níveis mais grosseiros do ser se
dissolvem, os níveis mais sutis se tornam manifestos, até que por fim a essência mais
sutil é revelada. Esses sinais são lampejos confusos de luminosidade, a natureza básica
da mente, tornando-se mais e mais claros conforme as camadas de densidade se
dissolvem. Existem muitos sinais diferentes que podem aparecer tanto na morte
quanto durante a yoga que reproduz o processo de morte; a lista tradicional de oito
sinais fornecida aqui inclui apenas os mais conhecidos.

A série de dissoluções pode acontecer durante um período relativamente longo


de tempo, ou pode ser extremamente rápida; em casos de morte súbita, ocorre
instantaneamente, portanto os diferentes estágios não podem ser distinguidos. De
qualquer forma, os estágios podem se sobrepor e a sequência pode variar de acordo
com a constituição individual da pessoa. Existem diversas descrições tradicionais de
todo o processo, cada uma enfatizando certos aspectos e prestando menos atenção
em outros, e elas contêm algumas diferenças nos detalhes que ocorrem durante a
sequência de dissoluções. A descrição que se segue é extraída de diversas fontes e
tenta cobrir todo o processo tão coerentemente quanto possível, mas só pode ser uma
norma rudimentar. A pessoa não precisa sentir que tudo deve acontecer nessa ordem

76
The Tibetan Book of Dead, p. 3.

209
em particular, mas é de muita ajuda tornar-se acostumado ao padrão geral de eventos
de forma a se preparar e diminuir o medo de morrer.

Primeiro vem a série de dissoluções exteriores, que afeta o corpo físico e os


níveis de consciência associados a ele. Isso não quer dizer que o corpo decai
imediatamente, mas apenas que as forças vitais que o mantêm vivo se extinguem. A
energia de cada elemento se dissolve no próximo, mais sutil. Enquanto isso acontece, a
pessoa moribunda primeiro experimenta uma intensificação das características
originais do elemento, e em seguida, enquanto o elemento se dissolve, as qualidades
do seguinte tomam conta e são brevemente ampliadas. Cada um dos elementos está
associado a um dos sentidos, um dos skandhas e uma das formas básicas do
conhecimento transcendente dos cinco budas. Aqui são chamadas de básicas porque
já existem dentro de nós como nossa natureza básica. Já que não reconhecemos nossa
consciência comum como conhecimento transcendente, somente manifestamos esses
aspectos na maneira dualista e limitada da existência samsárica. Todos se dissolvem ao
mesmo tempo que os elementos. Deveríamos notar que nos estágios descritos aqui a
correlação dos sentidos com os elementos é diferente daquela fornecida no Capítulo
Cinco, em que foi observado que quase todas as combinações podem ser encontradas
nos vários contextos. Mais uma vez, deveríamos lembrar-nos que essas
correspondências não são fixas; são simplesmente padrões na dança da criação e
dissolução que está acontecendo de forma contínua na mente e no corpo.

O primeiro estágio é a dissolução da terra na água. A terra fornece a estrutura


sólida do corpo, carne, ossos e músculos. Assim que o processo de dissolução começa,
as qualidades da terra tornam-se mais poderosas; podemos nos sentir extremamente
pesados, como se estivéssemos afundando no chão ou sendo esmagados por seu peso.
Em seguida, conforme as qualidades da terra de solidez e substancialidade diminuem,
nossos membros não mais nos aguentam, e nos sentimos fracos e exaustos. Muitas
vezes se nota naqueles que estão próximos da morte que o corpo encolhe e se torna
menor. O chakra do umbigo se desintegra, e a energia uniforme se retira. A energia
uniforme regula o sistema digestivo e faz circular o calor interior, portanto com a sua
desaparição, essas funções se desaceleram. O corpo não consegue mais metabolizar o
alimento, e começa a perder seu calor interior.

A terra é associada com o skandha da forma, que fornece a base para nosso
sentido da existência material. À medida que seu poder declina, tudo parece instável;
começamos a perder nosso chão e apoio; todo o nosso mundo está desaparecendo
sob nossos pés. Mentalmente também, existe uma sensação de afundamento; a
pessoa moribunda sente-se deprimida, desnorteada e esmagada pelo peso. É possível
se ter um antegozo dessa sensação durante a vida; existe uma sensação de se estar
perdendo contato com a realidade, como se a pessoa estivesse entrando em um
processo que poderia finalmente levar a uma completa desintegração. Como Trungpa

210
Rinpoche o colocava: “A qualidade tangível da lógica física viva torna-se vaga.” Todas
as descrições do que acontece na morte são relevantes para nós aqui e agora, se
observarmos cuidadosamente a experiência.

Quando a energia da terra se funde com a energia da água, o corpo começa a se


sentir quase líquido em vez de firme e sólido. Algumas vezes experimentamos a
mesma sensação em momentos de medo ou ansiedade: é como se nossos membros se
tornassem de água. O sentido da visão, através do qual percebemos as formas, se
deteriora, tornando-se embaçado; tudo parece dançar frente aos nossos olhos. A terra
está associada com o conhecimento básico do espelho, que reflete todos os objetos
dos sentidos e capacita-nos a manter tudo claro na mente. Sem essa capacidade, a
massa confusa de pessoas e coisas que nos rodeiam torna-se muito para assimilar, de
modo que começamos a perder a claridade mental e visual. A mente se torna fosca e
nublada como um espelho que perdeu seu brilho. A clareza e o brilho da nossa
compleição começam também a desaparecer.

O leitor poderá notar uma inconsistência aqui: no Capítulo Sete, vimos que a
terra está conectada a Ratnasambhava, que habita o chakra do umbigo, enquanto a
forma e o conhecimento do espelho pertencem a Akshobhya, que habita o coração.
Mas neste caso a conexão acontece através dos budas femininos, os devas. Os cinco
devas são a essência dos cinco elementos, embora os budas masculinos também
possuam suas próprias associações independentes com os elementos. O deva Buda-
Lochana é a essência da terra, e ele, como veremos no próximo capítulo, é a consorte
de Akshobhya. Aqui é como se o deva, como o elemento da terra, assumisse certos
atributos de seu consorte.

O sinal secreto desse estágio, visível para meditantes experimentados embora


não para a maioria das pessoas, é uma aparição idêntica a uma miragem. Bruxuleante
e insubstancial, uma miragem é a imagem perfeita da solidez da terra derretendo-se
na fluidez da água. Todavia, essa visão não é nem terra nem água, mas apenas luz: o
primeiro lampejo da luminosidade natural da mente.

Em seguida, o elemento da água se dissolve no fogo, acompanhado pela


desaparição do skandha do sentimento equalizador básico. O chakra do coração se
desintegra e a energia de vida é reabsorvida. Aqui de novo encontramos uma mistura
de atributos — neste caso, o reverso da situação anterior. Akshobhya habita o chakra
do coração e está conectado com a água, mas o deva Mamaki, que é a essência da
água, é a consorte de Ratnasambhava, que personifica o conhecimento equalizador e o
skandha do sentimento, portanto são os atributos de Ratnasambhava que
predominam aqui, em vez dos de Akshobhya.

De início, conforme as qualidades dos elementos são intensificadas, a pessoa


moribunda experimenta sensações de estar sendo saturada de água ou de estar sendo

211
arrastada por uma inundação. Fluidos podem ser descarregados pelos orifícios
corpóreos, então quando a energia de água diminui, os constituintes líquidos do corpo
começam a secar e a pele se torna ressecada. O sistema circulatório de sangue e linfa
diminui. A boca, a língua e o nariz secam, e a pessoa moribunda sente muita sede.
Nesse estágio, o sentido da audição começa a degenerar; sons externos não podem
mais ser distinguidos claramente, e o zumbido baixo interno, que é algumas vezes
escutado nos ouvidos, não está mais presente.

O skandha do sentimento permite-nos reagir às impressões dos sentidos,


enquanto sentimentos de relativo prazer, dor e indiferença dependem do
conhecimento equalizador básico. À medida que seus poderes declinam, começamos a
perder esse tipo de reação. As sensações são embotadas e os sentimentos não
parecem mais tão importantes; tornamo-nos indiferentes, desligados do mundo lá
fora, e afundamos ainda mais em nosso mundo privado, interior; nas palavras de
Trungpa Rinpoche: “Você se certifica de que sua mente ainda está funcionando.” Esse
estágio é algumas vezes comparado na vida comum com períodos de aridez e
desesperança, quando nos sentimos completamente secos, murchos e incapazes de
fluir com os ritmos e mudanças da vida. Ao mesmo tempo, a pessoa moribunda pode
se tornar nervosa e irritável, perdendo o senso de equilíbrio fornecido pelo
conhecimento equalizador. Com a retirada da energia de vida, a vitalidade se escoa e a
mente se torna obscurecida, confusa e temerosa.

O sinal secreto que aparece aos olhos da mente conforme a energia da água se
funde com a energia do fogo é algo como uma fumaça que parece rodopiar ao redor
da pessoa. Isso também é uma visão parcial da luminosidade da mente, ainda
enevoada e obscurecida.

No terceiro estágio, o fogo se dissolve no ar, junto com o skandha da percepção


e o conhecimento investigador básico. O deva Pandaravasini é a essência do fogo e seu
consorte é Amitabha, que habita o chakra da garganta e também personifica o fogo,
portanto dessa vez não existe discrepância entre os atributos do buda masculino e do
feminino. Quando o chakra da garganta se desintegra, a energia descendente se retira.
(Essa sequência segue o esquema menos comum, no qual a energia descendente está
estacionada na garganta e a energia ascendente no local secreto. Ver Capítulo Nove.)

Inicialmente, a pessoa moribunda sente-se quente e febril e pode imaginar que


todo o ambiente está queimando, mas em seguida, enquanto a energia do fogo é
absorvida, o corpo perde seu calor e os membros começam a esfriar. A energia
descendente regula a urina e a excreção, portanto o controle sobre essas funções pode
ser perdido. O sentido do olfato começa a deteriorar. A separação do skandha da
percepção significa que perdemos a habilidade de identificar e definir a informação
que recebemos dos sentidos. Sem o conhecimento investigador básico, encontramos
dificuldade em distinguir as várias pessoas e coisas ao nosso redor, e finalmente não

212
podemos nem mesmo reconhecer mais os entes queridos. Tentamos nos conectar com
“a temperatura abrasadora do amor e do ódio”, mas suas chamas diminuem cada vez
mais. Existe uma sensação de grande confusão, da mente tornando-se alternadamente
clara e obscura, e de crescente desligamento desta vida. O sinal secreto de que o fogo
se dissolveu no ar é a aparição de luzes faiscantes a toda a volta, como vaga-lumes ou
fagulhas vermelhas se elevando do fogo.

O quarto estágio é a dissolução do ar, do skandha do condicionamento e do


conhecimento executor básico das ações, junto com a desintegração do chakra do
local secreto e a reabsorção da energia ascendente. Aqui mais uma vez, não existe
problema de consistência entre o deva Tara, a essência do ar, e seu consorte
Amoghasiddhi, que habita o chakra do local secreto.

O skandha do condicionamento é a raiz da ação, a padronização característica


dos conceitos e emoções nos quais nossa vida é baseada. Quando ele desaparece, a
pessoa moribunda perde toda a motivação e o sentido de propósito; é como se a
programação da pessoa tivesse se exaurido. Sem o conhecimento básico executor das
ações, não existe mais habilidade alguma para desempenhar ações. A energia
ascendente possibilita que a respiração e a deglutição aconteçam, portanto ambos são
afetados. A inalação se torna curta e áspera, enquanto a exalação é longa e suspirada,
como se todo o fôlego da pessoa estivesse retornando à atmosfera de onde veio. O
sentido do paladar é perdido e a pessoa não pode mais comer ou beber. Pode haver
sensações de flutuação e de estar sendo atingido por um vento forte; em seguida,
conforme a respiração se torna mais e mais difícil, a pessoa pode ter a sensação de
estar sendo esmagada e sufocada.

Na sequência habitual dos cinco elementos, o ar é seguido pelo espaço, portanto


esperaríamos descobrir que o ar se dissolve no espaço. Em geral, entretanto, diz-se
que o ar se dissolve na consciência, o skandha associado com o espaço, e depois que a
consciência se dissolve no espaço. O sinal secreto da dissolução do ar é como a chama
de uma vela, que em textos tibetanos sempre é chamada de uma lamparina de
manteiga. A chama é descrita alternadamente como se queimando a ponto de se
apagar, queimando suave e firmemente como se estivesse em um lugar sem vento, ou
brilhando luminosamente.

Sentimentos de dissociação extrema e de estar sendo desincorporado, que são


ligados com esse estágio, podem ser experimentados durante a vida, especialmente
sob a influência de drogas. Podem ser sentidos como o limiar da insanidade ou o seu
oposto, a entrada na experiência mística, o passo final antes do abandono do ser.
Todas as experiências de dissolução, do primeiro sentimento de estar perdendo o chão
até a sensação de desincorporação, são partes da decadência inevitável e necessária
da nossa natureza material centrada no ego. Ao mesmo tempo, os sinais secretos
aparecendo na mente que é treinada para reconhecê-los revelam a aproximação cada

213
vez maior com a nossa natureza espiritual luminosa. De início, assim que passamos
pelos estágios de dissolução, ela aparece somente como uma miragem, oscilante e
ilusória, velada pelo apego ao mundo físico. Em seguia torna-se uma fumaça
enevoada, ainda vaga e indistinta. Depois, começamos a perceber fagulhas flamejantes
emergindo da fumaça, pontos cintilantes de luz que nos levam mais perto, até que
finalmente eles se fundem em uma única chama.

Nesse momento a pessoa moribunda pode ter visões de vários tipos; são
reconfortantes ou perturbadoras, depende das ações prévias da pessoa e dos
pensamentos que predominam em sua mente. Aqueles que levaram vidas violentas
podem sentir que estão cercados por figuras assustadoras e vingativas, enquanto
aqueles que levaram vidas bondosas são recebidos por rostos amistosos. Pessoas
religiosas podem ver deidades, anjos ou seus mestres espirituais vindo ao encontro
delas.

Quando a dissolução dos quatro elementos exteriores está completa, a


consciência começa a se dissolver no espaço, a dimensão da amplidão e do vazio
ilimitados. O chakra associado com a consciência e o espaço é o frontal ou o coronário,
a morada de Vairochana e Akashadhatvishvari, a Rainha do Espaço. Enquanto ele se
desintegra, o conhecimento todo abrangente básico e o sentido do tato também
desaparecem. A energia penetrante, que é distribuída por todo o corpo e possibilita os
movimentos, é reabsorvida, de tal forma que o corpo se torna imóvel e rígido. Uma vez
que a retirada de todos os aspectos do prana para o nadi central se completa, a
respiração cessa com uma exalação final, e externamente a pessoa moribunda parece
estar morta.

Existe alguma ambiguidade sobre a sequência de eventos neste ponto, a junção


entre as séries de dissoluções interiores e exteriores. Muitos relatos incluem a
desaparição do sentido do tato no estágio anterior, enquanto de acordo com outros,
todos os cinco sentidos se dissolvem juntos no início ou no fim da dissolução dos
elementos. Na prática, em casos de morte natural, parece haver em geral um
fechamento gradual da percepção dos sentidos. Mas o processo como um todo é
extremamente subjetivo e variável, e é impossível descrevê-lo em detalhes precisos.

Agora o processo da dissolução interior acontece. Como seres viventes


individuais, somos criados das essências masculina e feminina produzidas por nossos
pais, quando fomos concebidos, que permanecem durante todas as nossas vidas como
os bindus branco e vermelho contidos a cada final do nadi central, avadhuti. Agora eles
retornam ao centro do coração de onde se originaram e se juntam de novo como
fizeram no momento da concepção. Ao mesmo tempo, todos os estados mentais sutis
relacionados com agressão, paixão e ilusão cessam. Eles são chamados os oitenta
instintos, uma coleção de estados emocionais primários surgidos dos três venenos

214
fundamentais77. Não são todos expressões de agressão, paixão e ilusão de uma forma
óbvia, mas podem ser mais bem descritos como as energias básicas de rejeição,
atração e indiferença, indo desde aqueles que são mais grosseiros, mais dualistas e
que necessitam de um grande nível de energia, até aqueles que são mais sutis, menos
dualistas e necessitam de menos energia. De acordo com algumas tradições, os oitenta
instintos se dissolvem juntos no início do processo interior, mas de acordo com os
ensinamentos Ningma, se dissolvem em três estágios. A mente da pessoa moribunda é
permeada alternadamente por um sentido de brancura, vermelhidão e escuridão: sua
própria luminosidade vislumbrada como se fosse através de filtros tingidos pelas cores
dos três venenos.

Primeiro, todo o prana que entrou na parte superior do avadhuti se move para
baixo em direção ao coração, e com ele o bindu branco recebido do pai desce da coroa
da cabeça. Ao mesmo tempo, os 33 instintos surgidos da agressão também se
dissolvem. A mente é preenchida com uma luz branca brilhante, como um céu claro
inundado com a luz da lua. Alguns textos também mencionam uma série de sinais
adicionais semelhantes àqueles que apareceram mais cedo, neste caso, uma miragem
ou fumaça.

Em seguida, todo o prana que entrou na parte inferior do avadhuti sobe para o
coração, junto com o bindu vermelho feminino recebido da mãe. De acordo com
diferentes tradições, diz-se que o bindu vermelho habita o chakra do umbigo, em um
ponto de quatro dedos de largura abaixo do umbigo, ou no local secreto nos órgãos
genitais. Os quarenta instintos surgidos da paixão se dissolvem. A mente é preenchida
com irradiação vermelha, como o céu no nascente ou no poente, e também pode
haver um sinal como fagulhas ou vaga-lumes.

Não é completamente certo qual dos dois bindus, com suas associações de luzes
coloridas, irá se mover para o chakra do coração primeiro. Algumas vezes eles estão
invertidos, dependendo da constituição do indivíduo. Diversos relatos têm o vermelho
como primeiro e em seguida o branco, mas na prática da yoga parece ser mais comum
experimentar o branco primeiro. Mais uma vez, algumas tradições associam a paixão
com a fase branca e a agressão com a vermelha. Algumas fontes sugerem que a
respiração exterior pode não ter cessado inteiramente e as visões das figuras de boas-
vindas podem ser vistas nesse momento; outros afirmam que mesmo no estágio final
ainda pode ser possível para a pessoa moribunda reviver sob circunstâncias
excepcionais. Os tibetanos acreditam que essa é a explicação para certas experiências
de quase-morte, tais como encontrar entes queridos ou ver uma luz brilhante, mas
eles são bastante definitivos em relação ao fato de que não é possível retornar à vida
depois de atingir o estado final de luminosidade.

77
Em sânscrito, prakriti, significando “natural, original, primário”; em tibetano, rang bzhin rtog pa ou
rang bzhin kun rtog, significando “pensamento ou conceito natural”.

215
Depois disso, os bindus masculino e feminino se unem no coração, incluindo
entre eles o bindu indestrutível que reside lá, os estados emocionais sutis
remanescentes, os sete instintos relacionados à ilusão, desaparecem. A mente é
dominada por um sentimento de escuridão, a luz negra. Ela é descrita como sendo
parecida com o crepúsculo ou um eclipse do sol— um tipo de luz oculta, uma
escuridão brilhante. Pode também haver um sinal semelhante à chama de uma
lâmpada obscurecida por uma lanterna de vidro enfumaçado.

Uma vez que os bindus tenham se unido no chakra do coração, não existe mais
possibilidade de se reviver. A consciência se dissolve no espaço, e todas as
características mentais e emocionais específicas que constituíram o indivíduo são
reabsorvidas. Para a maioria dos seres viventes, a dissolução final da consciência
significa a perda de sua identidade, portanto, eles sentem que estão sendo
aniquilados; a experiência de escuridão se assemelha à extinção. Existe uma sensação
de se estar caindo em uma escuridão densa e total, e eles perdem a consciência.

Agora vem o estágio final, o alvorecer da luminosidade da morte. Embora se diga


que ela aparece para todos os seres conscientes sem exceção, em geral eles são
incapazes de reconhecê-la ou sustentá-la. Assim como no sono profundo, quando
normalmente não estamos conscientes de estar adormecidos e não nos lembramos
disso, os praticantes mais avançados são capazes de permanecer nesse estado com um
nível de consciência expandido. Dentro do bindu indestrutível no centro do coração,
toda a energia vital é agora absorvida na direção do prana muito sutil da energia de
vida, o prana original, que mantém a consciência muito sutil, a mente da luminosidade.
O sinal que aparece para o yogue ou a yoguine treinados é comparado a um céu de
outono perfeitamente claro no momento da alvorada, livre de qualquer vestígio de
luar, de luz do sol ou de crepúsculo; ele é banhado somente por seu próprio poder
natural e auto-iluminado.

Em seu comentário, Trungpa Rinpoche não menciona a série de dissoluções


interiores, que acontecem no nível sutil e são imperceptíveis para a maioria das
pessoas, mas descreve a experiência da luminosidade como o momento de completo
relaxamento depois do abandono do intenso esforço para manter o ego. Ele o
compara à sensação de estar encharcado tanto de água gelada quanto de água
fervente ao mesmo tempo, ou ao prazer e à dor simultâneos que não podem mais ser
distinguidos. Esse é o momento no qual a dualidade se abre em direção à unidade. “O
esforço dualista de tentar ser alguma coisa é completamente confundido pelas duas
forças extremas da esperança por iluminação e do medo de se tornar insano. Os dois
extremos são tão concentrados que permite um certo relaxamento; e quando você
não se esforça mais, a luminosidade se apresenta naturalmente.”78

78
The Tibetan Book of Dead, p. 4-5

216
Embora a pessoa aparente estar morta externamente, ainda permanece uma
“respiração interior” ou uma “pulsação interior”, como o texto a chama, até que o
prana finalmente deixa o corpo. A pessoa permanece ou em um estado de
reconhecimento ou de inconsciência por um período de tempo que depende do
indivíduo e das circunstâncias. Para a maioria das pessoas, pode ser apenas alguns
segundos, enquanto praticantes avançados são capazes de permanecer no estado de
luminosidade por diversos dias ou mesmo semanas. A morte de fato só ocorre quando
os bindus vermelho e branco se separam novamente, liberando o bindu indestrutível
que se encontra encerrado entre eles. Eles continuam a viajar para os extremos
opostos do avadhuti e emergem sob a forma de uma gota avermelhada de fluido das
narinas e uma gota esbranquiçada do órgão sexual. Essa é a indicação de que a morte
finalmente aconteceu. O próprio bindu indestrutível, a entidade da mente e do prana
muito sutil e indivisível, deixa o corpo por um dos nove ou dez pontos possíveis de
saída. Se a pessoa moribunda realiza a transferência para uma terra pura, ele viaja
direto para cima do avadhuti e emerge através do brahmarandhra, a “abertura de
Brahma”, no chakra coronário. Mas em todos os outros casos ele escapa do avadhuti
para um dos dois nadis e, finalmente, emerge pelo nariz, pela boca, pelos olhos, pelos
ouvidos, pelo ânus, pelo órgão sexual, pelo umbigo ou pela fronte (dois pontos na
fronte são algumas vezes distinguidos: entre os olhos e acima da linha do cabelo).
Essas diferentes saídas indicam o reino para o qual a pessoa está destinada a renascer
pela força de seu karma.

A série inteira de dissoluções, culminando na experiência de luminosidade, é o


próprio processo que o yogue ou yoguine passa durante o estágio de conclusão do
yoga da deidade, mas sem a morte do corpo79. Ele é realizado fazendo com que o
prana entre o avadhuti permaneça lá e se dissolva, e com que os bindus vermelho e
branco se unam e se movam para cima e para baixo dentro dele. Como resultado, o
meditante experimenta realizações crescentemente profundas de vazio, combinadas
com sensações intensamente crescentes de bem-aventurança. Embora isso seja
acompanhado por certos movimentos físicos, técnicas de respiração e imagens,
essencialmente é um processo de abandono no nível mais profundo de identificação
com os componentes físico, mental e emocional do estado ordinário de uma pessoa. O
praticante já foi preparado pelo yoga do estágio de criação, que estabelece as
condições apropriadas e desenvolve as técnicas de meditação necessárias. O estágio
de criação gradualmente transforma a percepção ordinária em visão sagrada, até que

79
Mais detalhes sobre as práticas de yoga e sua relação com os bardos podem ser encontrados em
Highest Yoga Tantra, de Daniel Cozort, Ithaca, Snow Lion, 1986; Death, Intermediate State and Rebirth in
Tibetan Buddhism, de Lati Rinbochay e Jeffrey Hopkins, Londres, Rider, 1979; Kalachakra Tantra, de
Geshe Ngawang Dhargyey, Dharamsala, Library of Tibetan Works and Archives, 1994.

217
tudo é experimentado como uma expressão da deidade, o jogo da mente desperta.
Durante o estágio de conclusão, a visão das coisas como elas realmente são é de fato
realizada e se torna uma realidade viva.

A plena realização da luminosidade é a conquista do dharmakaya. Ele é


comparado à morte e ao sono sem sonhos, nos quais entramos no estado do
dharmakaya sem reconhecê-lo. Mas, para aqueles que podem entrar nele
profundamente e manter a estabilidade, ele é muito mais do que um simples estado
de paz, claridade, alegria e ausência de pensamento conceitual. É completamente
unificado com a mente de todos os budas, todos os seres despertos de todos os
tempos e espaços; é a totalidade do estado desperto. Embora os textos digam que ele
aparece à nossa frente, que clareia como o sol nascente, na realidade sempre esteve
lá: é mais como o sol se revelando depois que as nuvens se dissolvem. É a consciência
nua, o estado natural e básico da mente quando todo o conceito de eu se dissolveu
completamente. Em Liberação através da audição, corresponde ao momento final do
bardo do morrer.

O dharmakaya é o aspecto sem forma, a fonte de todos os fenômenos. Assim


como o sambhogakaya e o nirmanakaya, os dois aspectos da forma surgem do
dharmakaya, também os corpos sutil e grosseiro reaparecem do bindu indestrutível,
muito sutil. Depois de permanecer no estado sem forma de luminosidade, o meditante
experimenta as três visões da luz e a reaparição dos elementos sutis em ordem
inversa. Eles criam um corpo sutil, conhecido como o corpo ilusório, que tem a forma
da deidade escolhida pela pessoa. Isso corresponde ao sambhogakaya e só pode ser
percebido por outros que tenham atingido o mesmo nível de realização. Com um
corpo ilusório, a pessoa pode viajar a qualquer lugar que deseje, transformar-se, enviar
emanações e desempenhar ações iluminadas pelo bem dos outros, enquanto
permanece em um estado de samadhi ou meditação profunda. Essa fase é comparada
ao sonho e também ao bardo em seu sentido original do intervalo entre a morte e o
renascimento. Nos sonhos habitamos todo um mundo de sonho com um corpo de
sonho, que é um outro tipo de corpo ilusório, mas sobre o qual não temos controle.
Então, depois da morte, temos um corpo sutil do bardo, por meio do qual passamos
por todas as experiências do bardo. As práticas do estágio de conclusão incluem
métodos pelos quais todos os três tipos de corpos sutis podem ser realizados como
sambhogakaya.

Finalmente, quando o meditante retorna do samadhi, retorna à vida diária com


um corpo físico que foi purificado e transmutado, correspondendo ao nirmanakaya.
Renascimento e despertar do sono são análogos a esse estágio. Aqui o renascimento
equivale ao momento final do bardo da existência, quando a pessoa entra no útero no
momento da concepção. Trabalhar com esses três princípios durante a vida e
conquistar realização neles é o meio pelo qual a pessoa pode “manifestar o trikaya”,

218
como é dito nos versos-raiz. Durante as experiências de morte, bardo e renascimento,
somos apresentados à oportunidade de despertar nas esferas correspondentes de
iluminação; é por isso que é tão importante entender o princípio do trikaya em relação
à Liberação através da audição.

O texto começa por afirmar que ele é “o meio de liberação no bardo para
praticantes de capacidades medianas”. Primeiro, eles devem ter recebido as instruções
práticas, orais, sobre reconhecer e permanecer na natureza final e verdadeira da
realidade. Isso não pode ser aprendido em livros, mas deve ser mostrado diretamente
pelo guru ao estudante em um encontro de mentes, uma transmissão plena do poder
da presença desperta. Quando a morte chega, os praticantes com as mais altas
capacidades, que conquistaram profundidade e estabilidade suficientes em sua
prática, não necessitarão de nenhuma assistência, mas irão simplesmente fundir suas
consciências com o dharmakaya. O verso raiz para o bardo do morrer descreve assim a
melhor maneira de morrer:

Agora quando o bardo do morrer torna-se mais claro para mim,


Abandonarei a cobiça, o apego e a mente que tudo deseja,
Entrarei imperturbado na clara essência das instruções
E me transferirei para o espaço da autoconsciência inata.
E enquanto deixo este corpo condicionado de carne e sangue
Saberei que ele é uma ilusão transitória.

Como o verso indica, a prática a ser desempenhada durante o bardo do morrer é


a transferência, que significa literalmente se mover de um lugar para outro, assim
como mudar de casa80. Aprisionados como estamos na percepção do espaço
tridimensional, naturalmente pensamos na mente, espírito ou consciência deixando o
corpo no momento da morte e reaparecendo em algum outro lugar. Embora na
realidade ela não tem dimensão nem localização; como diz o Guhyasamaja Tantra, a
mente mora no espaço e o espaço mora em nenhum lugar.

Os seis reinos da existência são criados pela mente. Por mais duro que possa ser
aceitar, sempre nos encontramos vivendo em circunstâncias que se amoldam aos
padrões kármicos da corrente mental. Criamos nosso próprio mundo com nossas

80
Frequentemente conhecido por seu nome tibetano, powa ('pho ba); em sânscrito é samkranti. Para
ensinamentos Ningma sobre transferência, ver Patrul Rinpoche, The Words of My Perfect Teacher, Parte
Três, e Thinley Norbu, White Sail.

219
próprias projeções por meio de percepções e pensamentos. Não vemos isso porque,
no nível grosseiro, a dualidade é irresistivelmente poderosa: sentimos que a mente e o
corpo são separados, o eu e os outros são separados, e o indivíduo e seu ambiente são
separados. Mas, à medida que a consciência dos níveis mais sutis aumenta, a unidade
de mente e corpo e a inter-relação dos mundos interior e exterior tornam-se mais
aparentes. No nível muito sutil, não existe nenhuma distinção: a mente e o corpo são
um, e essa unidade abrange o todo da existência.

Portanto, transferência é realmente a transformação da consciência em um tipo


diferente de entendimento com novas percepções. Em um sentido geral, toda morte é
um tipo de transferência, já que ela é uma transformação de um modo de consciência
em outro. A diferença é que na prática da transferência a pessoa escolhe
deliberadamente sua nova condição de existência; está no controle do processo em
vez de ser controlada pelas forças do karma.

Existem muitas práticas de transferência diferentes, assim como diferentes


maneiras de classificá-las. Elas dependem da visão da realidade que o praticante foi
capaz de alcançar e manter durante esta vida. Podem levar a pessoa ao estado
desperto em qualquer um de seus três aspectos: dharmakaya, sambhogakaya e
nirmanakaya. Algumas vezes parece confuso que existam tantos métodos, cada um
prometendo produzir um resultado específico. Todos são apenas meios habilidosos,
fornecendo apoios e estruturas para a mente. Se, quando o tempo chegar, estivermos
abertos o suficiente para reconhecer a luminosidade como nossa própria natureza,
então nos tornaremos plenamente despertos, qualquer que seja o método que
tenhamos utilizado. Se não pudermos atingir isso, então nossa consciência será
transformada em qualquer nível que sejamos capazes de manter. Embora possamos
aspirar a nos fundirmos com o dharmakaya, se nunca houvermos treinado a mente a
permanecer nesse estado durante a vida, não podemos esperar atingi-lo subitamente
na hora da morte. Infelizmente, não é suficiente apenas acreditar na verdade final e
esperar que seremos capazes de reconhecê-la quando a hora chegar. É por isso que
sempre é melhor escolher um método que corresponda à prática à qual já estamos
acostumados, que se tornou nossa segunda natureza. Dessa maneira, entramos em
um nível mais elevado de consciência e continuamos no caminho até que sejamos
capazes de reconhecer a luminosidade completamente.

A transferência a que os versos se referem é o método supremo de transferência


do dharmakaya. Não existe o conceito de a mente ir a lugar algum, não existe nada
para ser transferido e ninguém para quem transferir, portanto não há necessidade de
nenhum tipo de imagem para auxiliar a prática. A pessoa moribunda simplesmente
relaxa na natureza primordial da mente, assim como se acostumou a fazer durante a
vida. Em tais casos, os praticantes mais consumados nem sequer passam pelo processo
normal de dissolução durante a morte. Seus corpos podem desaparecer

220
completamente, seus elementos grosseiros se dissolvendo totalmente na luz do arco-
íris. Entretanto, diz-se que muitos grandes mestres que foram capazes disso
escolheram desempenhar externamente uma forma mais convencional de
transferência, de maneira a demonstrá-la para seus alunos, e deixar para trás seus
corpos e as relíquias que permanecem depois da cremação como uma fonte de
bênçãos.

Se a pessoa tem apenas capacidades medianas, como diz o texto, deveria tentar
a transferência para o dharmakaya quando a luminosidade aparece no final do bardo
do morrer. Se não obtiver sucesso, ainda existe a possibilidade de realizar a
transferência para o sambhogakaya durante o bardo do dharmata ou para o
nirmanakaya durante o bardo da existência. Indicar essas três oportunidades é o
propósito principal em Liberação através da audição.

Os seis yogas de Naropa também contêm práticas de transferência que


pertencem ao estágio de conclusão do yoga da deidade. Eles requerem experiência no
controle do prana, e novamente podem ser eficientes em níveis diferentes,
dependendo das realizações prévias da pessoa.

Um tipo mais simples de transferência é largamente ensinado e adequado a


pessoas que possuem uma fé forte, mas que não tiveram muita experiência no yoga da
deidade. Essa prática utiliza o poder da devoção a um dos budas, especialmente
Amitabha, e sua meta é renascer em sua terra pura. O renascimento em uma terra
pura não é ainda a iluminação completa. Aqueles que lá nascem recebem
ensinamentos diretamente dos budas e bodhisattvas e desfrutam das melhores
situações possíveis para seu desenvolvimento no caminho. Do ponto de vista final,
uma terra pura é a nossa própria visão pura, mas no sentido relativo, é um reino criado
pelas aspirações dos budas. Muitos tipos de terras puras são descritos na literatura
budista, todos contendo muitos níveis de realização. Elas podem até estar neste
mundo à nossa volta, mas normalmente não podemos percebê-las.

Amitabha representa a ausência de limites da compaixão, a infinita resposta do


estado desperto ao sofrimento dos seres viventes. Antes que se tornasse um buda, ele
prometeu estabelecer condições nas quais qualquer um que apelasse a ele finalmente
atingiria a iluminação. Seu próprio reino é Sukhavati, e por causa de sua promessa, ela
é a mais acessível de todas as terras puras. Atingi-la depende da força e da sinceridade
dos desejos da pessoa, mais que do poder de sua prática.

Nesse tipo de prática de transferência, mesmo se a pessoa não aprendeu como


trabalhar com o corpo sutil, pode imaginar vividamente toda a sua inteira consciência
e energia concentradas em um único ponto no coração, e em seguida fazer sua
arremetida através do chakra coronário em direção ao coração de Amitabha. Isso deve
ser praticado sob a orientação de um mestre experimentado até que a pessoa tenha

221
conquistado confiança e mostrado alguns indícios de sucesso; na hora da morte, ele é
colocado em funcionamento. O uso de imagens e o intenso sentimento de devoção
são auxílios poderosos para a transformação de nosso estado mental; precisamos
acreditar que podemos, e de fato entrar na presença de Amitabha através do poder de
seu amor. Se este pensamento é forte o suficiente durante os últimos momentos antes
da morte, ele corta através da corrente kármica de causa e efeito que, de outra forma,
nos impeliria em direção ao renascimento em um dos seis reinos do samsara.

Para que essa prática obtenha sucesso, a pessoa deve ter completa confiança em
Amitabha e em seu mestre; deve ser genuína e forte o suficiente para manter a mente
focada sem nenhum traço de dúvida ou perturbação. Esse tipo de fé muito simples e
direta na verdade faz a ligação com a atitude dzogchen de que tudo já está realizado e
perfeito. Não existe absolutamente nenhum sentido do seu próprio esforço ou de sua
própria realização. Entretanto, nesse caso, ainda existe uma percepção da dualidade; a
iluminação é vista como sendo externa a si na pessoa de Amitabha, por quem a pessoa
sente total gratidão e devoção. Ainda assim, existe uma intuição subjacente de
unidade e de nossa própria natureza desperta. Embora falemos de seres conscientes
necessitando serem salvos e dos budas os salvando, é sempre importante lembrar que
no budismo não existe diferença essencial ou distância entre o salvador e o salvado.

Além das técnicas de transferência no sentido usual, numerosos outros métodos


de focalizar a mente na hora da morte são ensinados em todas as escolas budistas. Os
pontos mais importantes são abandonar o apego, sentir amor e compaixão por todos
os seres, permanecer atento e concentrado, e se apoiar no sentido do espaço. Todos
os ensinamentos essenciais do caminho budista, qualquer que seja aquele que a
pessoa praticou durante a vida, tornam-se o meio de transformar a mente na hora da
morte.

Se a pessoa moribunda é incapaz de realizar a transferência sem ajuda, então as


instruções na primeira seção de Liberação através da audição devem ser lidas em voz
alta para ajudá-la a realizar a transferência do dharmakaya durante o bardo do morrer.
Somente se não obtiver sucesso será necessário continuar a ler todo o texto, com suas
instruções para os bardos do dharmata e da existência. Mesmo os melhores
praticantes podem algumas vezes necessitar desse tipo de ajuda, porque a experiência
real da morte é extremamente opressiva. Embora a pessoa possa ser experiente na
meditação, a mente pode estar confusa em função de uma doença prolongada ou
perturbada pelo choque de um acidente súbito ou um ataque violento, ou o efeito
kármico de alguma ação negativa — especialmente o rompimento de compromissos
espirituais — pode amadurecer inesperadamente. Mas a princípio essa instrução é

222
dirigida para “todos os tipos de pessoas comuns que receberam ensinamento, mas,
embora sejam inteligentes, não reconheçam, ou reconheceram, mas não se tornaram
acostumadas à meditação”.

Instruções detalhadas são dadas para a leitura do texto. Se possível, ele deveria
ser lido pelo principal guru da pessoa moribunda, ou então por um irmão ou irmã de
dharma, significando aqueles que partilharam ensinamentos e iniciações. Entretanto,
se tal pessoa não puder ser encontrada, alguém que pertença à mesma linhagem de
transmissão pode fazer a leitura. Se nenhum deles estiver disponível, a leitura deve ser
feita por alguém que saiba ler em voz alta de forma clara e precisa. O leitor deverá ser
alguém que a pessoa moribunda ame e acredite. Na hora da morte, quando se está
naturalmente confuso e assustado, é particularmente importante não provocar
sentimentos negativos, tais como antipatia e suspeita. Também é importante haver
uma atmosfera calma e positiva e, por essa razão, a família deveria ser mantida
afastada para que seu pesar e sua ansiedade não causem nenhuma perturbação.
Oferendas devem ser feitas em um espírito de generosidade desapegada, não apenas
de forma material, mas também imaginando oferendas ilimitadas preenchendo todo o
universo. Isso cria o estado mental correto para o abandono final da existência
samsárica.

A leitura pode até ser feita na ausência da pessoa moribunda ou falecida, “Se o
corpo não está presente, alguém deveria sentar-se na cama ou na cadeira do falecido,
e, proclamando o poder da verdade, invocar sua consciência, imaginando que ele ou
ela está sentado à sua frente ouvindo, e ler em voz alta.”

Para um praticante experimentado que seja capaz de alcançar os níveis sutis da


mente, a distância não representa problema, já que a mente em si não tem localização
física. Quando lamas são solicitados a assistir alguém que está morrendo ou acaba de
morrer, irão começar a fazer uma conexão com a consciência daquela pessoa
imediatamente, mesmo se estiverem longe. Eles podem ajudar a pessoa moribunda a
efetuar a transferência combinando seus poderes, ou se a pessoa já faleceu, podem
até mesmo ser capazes de efetuar a transferência em seu nome. A ideia de
transferência por uma outra pessoa pode ser mais fácil de entender, se considerarmos
o efeito notável que certos meditantes muito avançados podem ter nos outros apenas
pela sua presença. Algum tipo de transferência acontece sempre que permitimos que
nossas mentes se desliguem das preocupações comuns e se elevem a outro plano de
consciência.

A transferência não deve ser tentada muito cedo, já que isso seria o equivalente
a cometer suicídio. O melhor momento é quando a respiração está prestes a parar,
antes que os estágios finais de dissolução tenham acontecido. Mas, se a transferência
não é realizada nesse estágio, as instruções para o bardo do morrer devem ser
ministradas. Como o texto explica, assim que a respiração parou, todo o prana é

223
absorvido pelo avadhuti e a «luminosidade livre das complexidades brilha claramente
na consciência”. É um momento decisivo, porque é nesse ponto que a maioria das
pessoas desfalece em direção à inconsciência. Antes que isso ocorra, o mestre ou
amigo deve preparar a pessoa dizendo:

Ó filho da família desperta, é chegado o tempo de você procurar o


caminho. Assim que sua respiração exterior parar, a luminosidade básica
do primeiro bardo, que o seu guru já lhe mostrou, irá raiar sobre você. Isso
é o dharmata, vazio e aberto como o espaço, uma consciência pura,
desnuda, clara e vazia, sem centro ou circunferência. Neste momento, você
mesmo deveria reconhecê-lo e permanecer nesse estado, e eu também
vou mostrá-lo para você ao mesmo tempo.

Para aqueles que precisam de mais assistência, toda a sequência da dissolução


dos elementos deveria ser lida em voz alta, de tal forma que a pessoa moribunda
entenda o que está acontecendo. Liberação através da audição fornece apenas uma
breve indicação do processo: “Agora o sinal da terra se dissolvendo na água está
presente, água no fogo, fogo no ar, ar na consciência.” O leitor, que idealmente seria o
guru da pessoa, explicaria a sequência de eventos em qualquer quantidade de
detalhes que seja necessário ou usaria um dos textos associados.

Em cada estágio do processo de morrer, existe a possibilidade de um salto em


direção a algum nível de compreensão, assim como existe a cada momento da vida. Já
que somos feitos dos cinco elementos, nossa essência é os cinco devas. Quando os
elementos se dissolvem em seu estado puro, se tivermos reconhecido sua essência
através da meditação, podemos ir em direção ao vazio em vez de nos identificarmos
com a desintegração física que está acontecendo. De acordo com alguns
ensinamentos, as respectivas cores dos elementos inundam a mente, cada uma a seu
turno81. Quando a terra se dissolve, tudo aparece permeado por uma luz amarela; ao
reconhecê-la como a manifestação pura do Buda-Lochana, podemos
instantaneamente atingir a iluminação em seu reino. Da mesma forma, quando a água
se dissolve, podemos atingir o estado de Mamaki; quando o fogo se dissolve, podemos
atingir o estado de Pandaravasini; quando o ar se dissolve, podemos atingir o estado
de Samaya-Tara; e quando a consciência se dissolve, podemos atingir o estado de
Akashadhatvishvari.

Quando a sequência de dissoluções está quase completa, a pessoa moribunda é


instigada a permanecer plenamente desperta e atenta: “Ó filho da família desperta,

81
Lama Lodö, Bardo Teachings, e Bokar Rinpoche, Death and the Art of Dying.

224
não deixe que seus pensamentos divaguem.” Então ele ou ela é lembrado a adotar a
atitude de bodhichitta, o coração e a mente despertos, e a meditar desta forma:

Cheguei à hora da morte. Agora, já que estou morrendo, não pensarei em


nada a não ser no coração, no amor e na compaixão despertos, e
alcançarei a iluminação perfeita por amor a todos os seres conscientes tão
ilimitado quando o espaço. Com essa atitude, especialmente neste
momento, pelo amor a todos os seres, reconhecerei a luminosidade da
morte como o dharmakaya. Dentro desse estado, atingirei a suprema
realização do mahamudra e agirei pelo bem de todos os seres. Se não
obtiver sucesso, então reconhecerei o bardo quando entrar nele.
Manifestarei o corpo do bardo do mahamudra de aparência e vazio
inseparáveis, e agirei pelo bem de todos os seres tão ilimitado quanto o
espaço, aparecendo em qualquer maneira que beneficie cada um deles.

Mahamudra, o grande símbolo ou o grande selo, é uma outra abordagem da


natureza da realidade, que tem se tornado particularmente associada com a tradição
Kagyü. O nome é explicado pela analogia com o selo de um rei: quem quer que o leve
representa o rei e traz a sua autoridade, e o que quer que seja carimbado com ele é
aceito como autêntico. O todo da existência é selado com o vazio; os fenômenos
aparentes são reconhecidos como os embaixadores da verdade final. O Mahamudra
pode também ser visto como um símbolo no sentido de que tudo é um símbolo de sua
própria natureza final. Isso é o que Trungpa Rinpoche chamava de simbolismo natural,
expressando a vividez e a claridade das coisas assim como elas são: “A pessoa
experimenta a realidade como o grande símbolo que representa a si próprio.” 82 Mudra
também significa um gesto das mãos na dança ou em um ritual, portanto mahamudra
poderia ser chamado de o grande gesto, expressando visualmente a verdade que está
além das palavras e dos conceitos.

O mahamudra trabalha com a forma e a manifestação: depois de passar pela


experiência do vazio, a pessoa chega ao sentido de claridade e plenitude. Práticas
antigas focalizavam-se no vazio como um antídoto para o ego apegado, mas o
mahamudra enfatiza a simultaneidade do fenômeno aparente e do vazio. É o sentido
do positivo que vem depois de realizar o negativo, a plenitude do vazio. Aqueles que
despertaram para a ausência de forma do dharmakaya não permanecem lá, mas o
manifestam através da compaixão pelo bem dos outros, e isso é exatamente o que a

82
Chögyam Trungpa, The Heart of the Buddha, Boston, Shambhala, 1991, p. 168. Muitos dos livros de
Trungpa Rinpoche contêm referências ao mahamudra, mas ver especialmente Illusion’s Game.

225
pessoa moribunda aspira a fazer. O corpo do bardo do mahamudra é um corpo
puramente ilusório no qual a aparência e o vazio coexistem simultaneamente,
conhecido como dois-em-um83. Esse corpo pode tomar qualquer forma que seja
apropriada de maneira a ajudar os seres viventes.

A pessoa moribunda é então solicitada a praticar qualquer tipo de meditação ao


qual esteja acostumada, sempre tendo cm mente a atitude de bodhichitta. Assim que
haja certeza de que a respiração parou, o ajudante deveria auxiliar a pessoa a ficar na
posição do leão adormecido — deitado sobre o lado direito com a cabeça apoiada na
mão direita. Essa é a posição na qual o Buda Shakyamuni faleceu:

Neste momento, o primeiro bardo, que é chamado de a luminosidade do


dharmata, a mente não-distorcida do dharmakaya, surge na corrente
mental de todos os seres. Este é o intervalo entre o cessar da respiração
exterior e a pulsação interior, quando o prana se dissolve no avadhuti, por
isso as pessoas comuns o chamam de inconsciência.

Esse período dura um tempo indeterminado. De modo geral, quanto maiores as


capacidades espirituais da pessoa e o seu treino em meditação, mais ele dura. Para
alguns, pode não ser mais do que um estalar de dedos, enquanto para a pessoa
mediana parece ser o tempo necessário para se ingerir uma refeição. Meditantes
experimentados podem ser capazes de permanecer nele por diversos dias; “dias” são
explicados como significando a duração de uma sessão de meditação durante a qual a
pessoa pode permanecer perfeitamente concentrada, de modo que poderia durar
diversas semanas ou até mesmo meses. Por questões de segurança, os tibetanos
dizem que, mesmo no caso de pessoas comuns, o corpo deveria ser deixado
imperturbado por algo em torno de três dias. Em Liberação através da audição, é
recomendado que “a pessoa deveria se empenhar em salientar a luminosidade” por
quatro dias e meio.

Ao final desse período, o princípio de vida do prana e da mente indivisíveis


escapa e deixa o corpo. Aqui ele é mencionado como prana, porque o texto está

83
Em sânscrito, yuganaddha; em tibetano, zung ‘jug. Este termo tão importante é muitas vezes
traduzido como “união” ou “unidade”, que sinto que são muito genéricos e podem ser usados para
muitas outras palavras. “Conjunção” pode ser aceitável, especialmente tendo em mente seu significado
alquímico. Outras traduções úteis incluem “Ser unitivo” (Guenther), “integração” (Thurman),
“coalescência” (Dorje e Kapstein), e “ambos-de-uma-vez” (Hookham), mas prefiro o “dois-em-um” de
Snellgrove. O termo sânscrito significa literalmente “unidos em um par”. Ele implica a coexistência
simultânea de dois elementos distintos e iguais, em vez de eles se fundirem e se dissolverem. Assim
como se refere à aparição e à desaparição, é frequentemente utilizado para a experiência de bem-
aventurança e do vazio ou para a compreensão de que as verdades relativa e absoluta não são
separadas.

226
falando sobre o seu movimento, enquanto mais adiante é chamado de mente ou
consciência, enfatizando o seu aspecto de consciência. De forma a conseguir a
transferência, o prana deve ir direto para cima através do brahmarandhra, portanto
em muitas práticas existem instruções para bloquear todas as outras saídas com
mantras. Aqui, aquele que auxilia a pessoa moribunda é instruído a pressionar as
“artérias do sono” no pescoço, que irá evitar que o prana retorne aos nadis direito e
esquerdo.

Durante esse período, o salientar efetivo da luminosidade acontece. Para uma


pessoa de alto nível espiritual, a instrução é breve e simples: “Respeitado, agora a
luminosidade básica brilha à sua frente. Por favor reconheça-a e permaneça na
prática.” Mas, para a maioria das pessoas que precisam de uma instrução mais
detalhada, ela é salientada em uma das mais bonitas e admiráveis passagens de todo o
texto:

Ó filho da família desperta, escute! Agora a luminosidade pura do


dharmata está raiando sobre você. Reconheça-a! Ó filho da família
desperta, a essência da sua consciência do saber neste presente momento
é puro vazio, puro vazio no qual não existe substância, qualidade ou cor
essencial qualquer que seja: isso por si é o dharmata, Samantabhadri. Mas
enquanto a sua consciência do saber está vazia, ela não é apenas um vazio
absoluto; sua consciência do saber é desobstruída, faiscante, pura e
vibrante: essa consciência em si é o buda Samantabhadra. Estes dois, sua
consciência cuja essência é o vazio sem nenhuma substancialidade e sua
consciência do saber que é clara e vibrante, são indivisíveis: isso em si é o
dharmakaya do buda. Essa sua consciência é uma grande massa de luz, é
claridade e vazio inseparáveis, não possui nascimento nem morte, portanto
é o buda da luz imutável. Reconhecê-la é o suficiente. Quando você
reconhece a pura essência da sua consciência do saber como o buda, olhar
para a própria consciência é permanecer na intenção do buda.

Essa instrução deve ser repetida três ou sete vezes. Por meio dela, “primeiro, a
pessoa é lembrada daquilo que o guru já salientou; segundo, a pessoa reconhece sua
própria consciência nua como luminosidade; e terceiro, tendo reconhecido a si
própria, a pessoa se torna inseparavelmente unida com o dharmakaya e é certo de ser
liberada”.

A verdadeira natureza da mente, “sua própria consciência nua”, não é nada mais
do que o estado primordial de iluminação. E esse estado primordial é a união

227
indivisível dos princípios masculino e feminino Samantabhadra e Samantabhadri — a
Bondade Universal, sem princípio e sem fim. É a descoberta final de nossa própria
bondade básica. É a nossa consciência original que nunca se extraviou do estado
desperto.

Quando a luminosidade da morte é reconhecida, é comparada ao encontro de


mãe e filho. A mãe é a luminosidade básica, fundamental, que aparece à frente da
pessoa, a natureza verdadeira, fundamental, de todos os seres. O filho é a experiência
pessoal de luminosidade, ou a luminosidade do caminho, que a pessoa já atingiu na
meditação. Quando elas se juntam, é como se o filho corresse e pulasse nos braços da
mãe depois de uma longa separação.

Para uma pessoa desperta que entendeu plenamente o significado da morte,


esta é simplesmente uma das muitas transformações da vida ilimitada, e para alguém
que ganhou experiência e confiança na meditação, é a suprema oportunidade de
atingir a iluminação. Do ponto de vista absoluto, nascimento, vida e morte são a
atividade espontânea da consciência, originando-se continuamente e dissolvendo-se
de volta no solo primordial, o espaço do vazio luminoso. A natureza de buda permeia
todo o tempo e toda a existência sem nenhuma brecha, portanto não há bardo dentro
dela. Bardos só ocorrem no reino samsárico da confusão e da ignorância, onde nos
identificamos com o corpo e com os níveis grosseiros da consciência. A natureza de
buda está sempre presente, quer estejamos acordados, dormindo, sonhando ou
morrendo. Quando adormecemos ou morremos, o desaparecimento gradual dos
nossos sentidos e elementos exteriores significa que nossa consciência interior, sutil,
se manifesta, mas como ainda não nos familiarizamos com ela, experimentamos
apenas inconsciência ou morte. Do ponto de vista relativo de nossa condição presente,
a morte é o evento mais devastador de toda a vida, e é inescapável. Portanto, embora
a meta seja ver através da ilusão da morte, a lembrança constante de sua
inevitabilidade é um dos mais poderosos incentivos à prática enquanto ainda estamos
nesta vida e seguindo o caminho.

Os “quatro pensamentos que transformam a mente" ou “quatro lembretes" é


um ensinamento mahayana sobre o qual se medita repetidamente com o mesmo
propósito. O primeiro pensamento é a contemplação do valor da vida humana.
Considerando todas as formas da vida possíveis nos seis reinos do samsara, é
extremamente raro nascer como um ser humano, e ainda mais raro nascer em um
lugar e um tempo onde a pessoa tenha a oportunidade de ouvir e praticar o dharma. O
segundo pensamento é contemplação da impermanência. Tudo está mudando
incessantemente e desaparecendo; não sabemos quando a morte vem, somente que

228
ela é certa. O terceiro pensamento é a contemplação do karma, a inevitabilidade de
causa efeito. O que quer que pensemos, digamos ou façamos coloca em movimento
uma cadeia de consequências da qual não podemos escapar, seja nesta vida ou na
próxima. O quarto pensamento é a contemplação das falhas do samsara e o
sofrimento inerente na situação. Olhando para a origem do sofrimento, reconhecemos
que ele brota da ganância, do ódio e da ilusão do ego, agarrado à existência individual.

Estranho como possa parecer, embora o ego apegado seja realmente nada a não
ser causa de tristeza, é extremamente difícil abandoná-lo. Podemos esperar que, no
momento da morte, seria um tremendo alívio se ver livre de tal fardo e se dissolver na
luz da realidade. Ao contrário, é uma perspectiva aterrorizante, porque ainda existe a
ilusão de alguém ali esperando sobreviver. Mas iluminação significa a morte do ego; a
pessoa que quer se tornar iluminada não estará mais lá. Como Trungpa Rinpoche
costumava dizer: “Você não pode assistir ao seu próprio funeral!” A essência de todas
as afirmações do bardo está relacionada com esse paradoxo, manifestando-se em
várias situações: a tensão entre tentar ficar por ali e assistir ao que está acontecendo
ou se abandonar completamente ao desconhecido, ao inconcebível.

Já que a totalidade dos ensinamentos do Buda centram-se nessa situação difícil,


tudo o que ele contém é relevante para a hora da morte. Se não conquistamos
profundidade ou estabilidade na meditação, seremos incapazes de permanecer
concentrados e conscientes durante o processo da morte. Se nunca compreendemos a
verdade da impermanência ou praticamos desapego, quando a morte chega,
agarramo-nos desesperadamente à nossa antiga vida. Se não tivermos confiança na
bondade básica de nossa mente, seremos incapazes de nos abandonarmos no espaço
aberto. Se não tivermos olhado além da superfície da consciência, não
reconheceremos a natureza luminosa da mente quando ela for revelada.

Qualquer prática que tenhamos feito e qualquer percepção que tenhamos


conquistado deveriam portanto ser aplicadas na hora da morte. Inversamente, as
visões e os métodos que são ensinados especificamente em relação à morte são
exatamente os mesmos em essência do que os que são praticados durante a vida.
Adormecer é a analogia mais próxima a morrer na nossa experiência normal. A yoga do
dormir e do sonhar treina o praticante a estar consciente das dissoluções sutis e a
permanecer na luminosidade do sono, que é como um reflexo da luminosidade da
morte, e em seguida utilizar o corpo sutil do sonho como um veículo para a prática.

Mas existem muitas outras maneiras nas quais todo o processo de morrer é
comparado com diversos níveis diferentes nas experiências desta vida. Entre os seis
bardos, a característica do bardo do morrer é o processo de dissolução. Ele possui uma
qualidade emocional particular de pavor e pânico frente à desintegração de tudo o que
somos e à perda de tudo o que sabemos. Esse mesmo sentimento pode ocorrer
sempre que passarmos por algum choque inesperado ou recebermos notícias

229
devastadoras; por exemplo, se estivermos envolvidos em um acidente, se ouvimos a
respeito da morte súbita de alguém que amamos, ou se nos dizem que temos uma
doença séria. Isso causa uma sensação terrível de afundamento, como se o chão
estivesse se abrindo sob nossos pés. Quando nosso mundo desaba, podemos ser
tomados por uma fraqueza, sentirmo-nos mal e desmaiar, ficar sem fôlego como se
estivéssemos sufocando, ou nos sentirmos frios por dentro, exatamente como é
descrito durante a dissolução dos elementos. A todo custo, desejamos que
pudéssemos recuar ao momento anterior e manter o mundo exatamente como ele
costumava ser. Mas quanto mais nos apegarmos, pior fica. Abandonar-se é o único
remédio. Aqui mais uma vez, as atitudes desenvolvidas durante a prática fornecerão a
motivação e a presença de espírito para lembrar e aplicar o que quer que já tenhamos
aprendido.

De uma forma menos dramática, também experimentamos o medo da


aniquilação e da perda em uma escala menor quando reconhecemos que um certo
período de nossa vida chegou ao fim. Mesmo na memória, se olharmos para o passado
à medida que envelhecemos e pensarmos “a vida nunca mais será a mesma
novamente”, existe uma angústia de nostalgia, um agarrar ao que já se foi para
sempre, e um medo do vazio que ele deixa para trás. É sempre doloroso abandonar
alguma coisa com a qual nos identificamos. Quando um projeto é terminado, um
interesse que nos absorveu não parece mais importante ou um apego emocional
termina, pode haver uma sensação real de perda. Lá no fundo, muitas vezes não
queremos realmente mudar nossos hábitos, reações e comportamento, mesmo que
não gostemos deles e saibamos que causam dor aos outros. Pensamos “isso é o que
sou”; eles são parte do padrão do nosso sentido de ego, e abandoná-los é como o
processo de morrer.

Mesmo assim não podemos evitar o abandono, porque a morte ocorre a cada
momento. O processo de dissolução do grosseiro para o sutil, seguido pela evolução
inversa do sutil para o grosseiro, está acontecendo dentro de nós todo o tempo.
Ocasionalmente podemos ser capazes de captar um lampejo fugaz dele, quando
adormecemos ou acordamos de um sonho, mas quase sempre estamos
completamente ignorantes das bases sutis da consciência e permanecemos totalmente
identificados com suas manifestações superficiais. Conforme cada momento de
consciência passa, dá origem ao seguinte, portanto o fluxo incessante do samsara
segue em frente. Mas esse ciclo de nascimento e morte acontece dentro da amplidão
do espaço. Subjacente a todas as aparências que surgem e passam está o dharmata, a
natureza verdadeira dos fenômenos, que é ‘‘aberta e vazia como o espaço”. Se nos
abandonamos em direção ao espaço assim que cada pensamento, emoção e
experiência morrem, então a reação kármica em cadeia é interrompida. Existe sempre
uma brecha — um bardo — entre o cessar de um momento e o surgimento do

230
próximo, em que a luminosidade pode ser reconhecida e o estado desperto é visto
como estando sempre presente e todo abrangente.

Esse abandonar é na verdade a essência da meditação sem forma que é ensinada


bem no início do caminho e que alcança a sua perfeição no dzogchen. Quando a
meditação é descrita como o abandono no espaço, não é apenas uma imagem
fantasiosa; é realmente como a dissolução da consciência no espaço na hora da morte.
Se pudermos praticá-la plena e completamente, nenhum outro método será
necessário. Viveríamos a vida libertos das limitações do samsara e morreríamos sem
qualquer medo, como uma criança correndo feliz em direção aos braços de sua mãe.

231
Capítulo Doze

Paz Invencível

A GRANDE SEÇÃO CENTRAL DE Liberação através da audição é uma descrição do


bardo do dharmata, que tem origem nas experiências visionárias que surgem durante
a prática da atiyoga do estado de sobrepujar. Dharmata significa literalmente
“dharmidade”: a qualidade essencial das coisas como realmente são, a natureza
verdadeira dos fenômenos. É a realidade em seu estado puro, original. É incondicional;
não é construída a partir ou dependente de qualquer outra coisa, e não pode ser
destruída como o fenômeno do samsara. Não é obscurecida pelos véus que distorcem
nossa visão e não é contaminada pelos venenos da paixão, agressão e ilusão. Quando a
luminosidade básica raiou ao final do bardo do morrer, foi chamada de “a
luminosidade do dharmata”: é a experiência da natureza essencial da mente, “aberta e
vazia como o espaço”. Agora, a partir daquela luminosidade do dharmata, as
aparências do bardo do dharmata surgem — a energia criativa natural da mente se
desdobra em uma atividade dinâmica de som, cor e raios de luz. As cores do arco-íris
formam o corpo das deidades; os sons são a fala em mantra das deidades; e os raios
de luz são o conhecimento primordial, a mente das deidades. Uma outra maneira de
afirmar isso é que o dharmakaya se manifesta como sambhogakaya.

A mente absorvida na luminosidade da morte foi identificada como dharmakaya,


a união inseparável de Samantabhadra e Samantabhadri. Esse é o estado de pureza
primordial, no qual samsara e nirvana, nascimento e morte, ou o ser e o outro nunca
existiram. A pureza tem um significado especial nos tantras: aponta para a natureza
original, essencial e inerente de tudo. É como um espelho que nunca é afetado pelas
imagens que reflete ou pela sujeira que se acumula na sua superfície. Quando se diz,
por exemplo, que os elementos purificados são os devas e que os skandhas purificados
são os budas, significa que eles nunca realmente foram qualquer outra coisa. Ver as
coisas dessa maneira é a percepção pura ou visão sagrada.

Na ilimitada amplidão do espaço, que é Samantabhadri, a auto-exibição


espontânea do estado desperto começa a se desdobrar. A consciência não dual,
reconhecendo o que quer que apareça como sua própria natureza, é Samantabhadra,
o primordialmente desperto. Mas quando não existe reconhecimento a consciência
dualista dos seres conscientes comuns se desenvolve, e a experiência se torna dividida
entre sujeito e objeto. Tudo acontece no espaço da própria mente. No contexto de

232
Liberação através da audição trata-se da mente de alguém que acabou de morrer, mas
se o aplicarmos a nós mesmos aqui e agora, ela está acontecendo dentro de nossa
própria mente. Dentro de cada um de nós existe aquela essência muito sutil que
permanece para sempre no estado primordial e, simultaneamente, existe também a
queda em direção à confusão.

De acordo com os ensinamentos dzogchen, o bardo do dharmata se desdobra


em uma série adicional de quatro dissoluções. É uma visão de como as aparências
brotam continuamente do solo primordial. Primeiro, o espaço se dissolve em
luminosidade. A oportunidade de reconhecer a luminosidade básica já ocorreu na
conclusão do bardo do morrer, mas para os que não a reconheceram, ela passou como
se nada tivesse acontecido. Agora, a consciência da pessoa morta acorda novamente e
a percebe como se ela fosse externa, manifestando-se como as energias sutis de luz,
cor e som.

Em seguida, o show de luz da luminosidade se dissolve no estado de dois-em-um.


Esse termo, que discutimos no Capítulo Onze, aponta para a natureza aparente e
simultaneamente vazia das visões que surgem durante o bardo do dharmata. A
exibição deslumbrante de luz e cor se cristaliza na forma das deidades. Todas as
deidades pacíficas e coléricas aparecem frente à pessoa morta, tão vívidas e ao mesmo
tempo tão insubstanciais quanto um arco-íris aparecendo no céu.

Em seguida, todas as formas das deidades se dissolvem em conhecimento, a


verdadeira essência dos budas. O conhecimento se manifesta como raios penetrantes
de luz brilhando a partir dos corações dos budas, em direção ao coração da própria
pessoa e se expandindo como uma brilhante formação de lâminas e esferas de luz — a
pura essência das cinco maneiras de conhecer a realidade.

Finalmente, os raios do conhecimento se dissolvem em oito portais de existência


espontânea, onde todas as potencialidades, tanto do samsara quanto do nirvana,
aparecem simultaneamente. A existência espontânea ou presença espontânea aponta
a maneira na qual tudo surge do solo primordial: auto originado, tudo de uma vez, sem
esforço de nenhum tipo84. Os oito portais apresentam lampejos de todas as maneiras
possíveis de emergir do estado primordial, desde o permanecer no nirvana — através
da manifestação da luz e da energia sutis, das formas das deidades e das terras puras
— até o ciclo de nascimento e morte nos seis reinos do samsara.

Ao reconhecer essas visões como as manifestações da sua própria mente a


pessoa é liberada ou então vagueia em direção ao bardo da existência. Essa série de
dissoluções não é descrita em Liberação através da audição, mas corresponde mais ou
menos à sequência saída da primeira parte do bardo do dharmata, com a diferença de
que aqui as deidades coléricas aparecem no final.

84
Em sânscrito, anabhoga; em tibetano, Ihun grub.

233
Se a pessoa falecida não reconheceu a luminosidade quando esta raiou ao final
do bardo do morrer, pode permanecer em um estado de inconsciência por um período
que vai desde um simples momento, até quatro dias e meio; em média, dura o tempo
que se leva para fazer uma refeição. Em seguida, o prana escapa do corpo e a
consciência torna-se clara de novo. Imediatamente ao acordar do estado de
inconsciência, as tendências sutis para a dualidade e um sentido de ego são reativados.
Em um lampejo, a pessoa falecida passa pela experiência das três luzes e da reaparição
dos elementos sutis em ordem inversa, criando um corpo mental que pode ver e ouvir,
tal como em um sonho.

Existe alguma ambiguidade nesse ponto do texto de Liberação através da


audição; ele descreve algumas das características do bardo da existência entremeadas
com as do bardo do dharmata. Isso pode talvez ser explicado pelo fato que o bardo do
dharmata, sendo um ensinamento dzogchen, só é descrito nos textos Ningma. Ele não
aparece nas outras tradições, tais como os seis yogas de Naropa. Em vez disso, existe a
tríade de morte, bardo e renascimento, em que o “bardo” por si mesmo sempre se
refere ao bardo da existência. Portanto, do ponto de vista geral do vajrayana, a pessoa
falecida entra no bardo da existência assim que a consciência deixa o corpo. Mas do
ponto de vista do dzogchen a natureza luminosa da mente da qual o bardo do
dharmata surge está sempre presente, e com ela, a potencialidade de experimentar as
visões das nossas deidades inatas. Durante o bardo do dharmata, a consciência é
absorvida no estado de luminosidade, mas está constantemente oscilando no limite
entre este e o bardo da existência, com sua percepção da dualidade e de ter um corpo
mental.

Antes de embarcar na descrição detalhada do bardo do dharmata, algumas


breves instruções são dadas primeiro, contendo a essência do conselho que será
repetido novamente quando as visões aparecerem. A consciência da pessoa falecida
“de repente torna-se clara”, sem saber do que aconteceu e não sabendo se está morta
ou viva, e “a segunda luminosidade raia”, significando a luminosidade do bardo do
dharmata. Agora existe uma outra oportunidade de reconhecer a natureza da mente,
antes que a consciência seja mais atraída em direção ao bardo da existência e
assoberbada por suas experiências, portanto mais uma vez o caminho para a liberação
é indicado. “Durante esse tempo, quando as violentas alucinações do karma ainda não
apareceram e os terrores dos senhores do morte ainda não chegaram, a instrução
deveria ser dada.”

Aqui os instruções diferem para pessoas em diferentes estágios do caminho.


Para aqueles que são experimentados nos estágios de conclusão ou cortar através,
apenas a instrução simples para reconhecer é repetida, porque nessas práticas a
pessoa penetra diretamente na essência da realidade com um uso mínimo de imagens.

234
“Dever-se-ia chamar o nome da pessoa morta três vezes e repetir as instruções
anteriores para indicar a luminosidade.”

Aqueles que estavam praticando o estágio de criação deveriam ser lembrados de


sua prática particular. Aqui se usa a forma e as imagens para perceber o mundo todo
como uma manifestação da existência sagrada. A descrição e o ritual da deidade
escolhida da pessoa deveria ser lida em voz alta, e a pessoa deveria imaginar com total
concentração e intensidade que é realmente a deidade e deveria fundir-se com aquela
presença divina. A deidade não é visualizada com uma forma sólida, substancial, mas
como se fosse feita de luz, efêmera e ilusória, como a lua refletida na água, a
expressão pura do vazio luminoso.

Aqueles que não estavam praticando nada do yoga da deidade são instruídos a
meditar em Avalokiteshvara, o Senhor da Grande Compaixão. Avalokiteshvara é a
emanação bodhisattva de Amitabha; é a presença viva e ativa do amor e da compaixão
no mundo. Por causa de seus votos para liberar todos os seres conscientes, ele é a
deidade natural e universal escolhida e disponível para todos; nenhum poder ou
ensinamento especial é necessário para se meditar nele e aspirar a entrar em seu reino
puro.

Por meio desses três métodos, a pessoa falecida tem uma outra chance de entrar
nos reinos do dharmakaya, sambhogakaya e nirmanakaya durante o bardo do
dharmata. “Assim como a luz do sol supera a escuridão, também o poder do karma é
superado pela luminosidade do caminho, e a liberação é atingida.” Como o texto se
repete mais uma vez, depois de praticamente cada instrução, não há dúvida de que os
que não a reconheceram anteriormente o farão agora por lhes estar sendo mostrado
dessa maneira, e é impossível que não sejam liberados. Da mesma forma, ele ressalta
a necessidade de se ler as instruções em voz alta pelo bem daqueles que não eram
hábeis o suficiente na meditação para chegar ao reconhecimento sem ajuda ou pelos
que possam estar confusos em função de doença grave, ou cujas mentes possam estar
nubladas pelo efeitos kármicos de compromissos rompidos.

A este ponto, o texto parece chamar o bardo do dharmata de “o terceiro bardo”,


seguindo o segundo bardo, ou segunda luminosidade. Foi assim que o traduzimos no
Livro tibetano dos mortos, mas agora acho que é possível interpretar essa passagem
em particular de uma outra maneira que faça mais sentido85. Já que ele menciona “as
confusas alucinações cármicas do terceiro bardo”, deve se referir ao bardo da
existência, com suas aterrorizantes aparições de demônios vingadores e senhores da
morte, não às visões puras das deidades no bardo do dharmata. É um pouco confuso,
mas essencialmente o texto está enfatizando que a instrução deveria ser lida agora,
antes que o terceiro bardo predomine:
85
Isto diz respeito à p. 39, parágrafo 3, de nossa tradução. As outras traduções disponíveis em inglês são
bastante semelhantes.

235
Dessa maneira a pessoa é liberada ao reconhecer a luminosidade do
segundo bardo, mesmo se não reconheceu a luminosidade básica. Mas se
mesmo isso não a libera, então se diz que existe o terceiro bardo: depois
que o bardo do dharmata apareceu, as confusas alucinações kármicas do
terceiro bardo irão aparecer. Portanto, nessa hora, é muito importante que
a grande indicação do bardo do dharmata seja lida, porque é
extremamente poderosa e de grande ajuda.

Em seguida, o texto volta a descrever brevemente as experiências de se entrar


no bardo da existência. Acordar subitamente da inconsciência da morte traz consigo
uma enorme sensação de confusão, incerteza e medo. Nesse estágio, a consciência
recentemente falecida ainda sente uma forte ligação com o corpo antigo e com suas
circunstâncias, mas não entende o que aconteceu. Existe uma descrição comovente de
como os mortos podem ver e ouvir seus parentes chorando e começando a
desempenhar todas as tarefas que precisam ser feitas após uma morte. Os mortos
tentam desesperadamente fazer sua presença ser notada, mas não podem ser vistos
ou ouvidos, por isso se afastam em desespero. Então, “sons, luzes coloridas e raios de
luz” aparecerão, e eles “se sentirão ainda mais fracos de medo, terror e perplexidade”.
Sem a âncora de um corpo físico e de ambientes familiares, existe um sentido de
desorientação e instabilidade, enquanto todos os tipos de imagens em contínua
mudança surgem da mente como um sonho muito confuso ou uma alucinação
induzida por drogas. Nada é como se esperava que fosse; é como se todas as
expectativas baseadas na experiência comum tivessem sido viradas de cabeça para
baixo. Agora o leitor deveria chamar a pessoa falecida pelo nome e começar “a grande
mostra do bardo do dharmata”.

A instrução detalhada aos mortos começa com uma tranquilização, explicando o


que já aconteceu e o que está por acontecer, e que eles estão passando pela
experiência de três dos seis bardos. Já que não reconheceram a luminosidade no bardo
do morrer, agora irão experimentar o bardo do dharmata e o bardo da existência. São
lembrados de que não estão sozinhos, que a morte chega para todos, e que é
impossível permanecer nesta vida, não importa o quanto o queiram. Medo e
perplexidade são as emoções predominantes nesse bardo, portanto a coisa mais
importante é passar um sentido de confiança. O verso raiz para o bardo do dharmata
contém a chave para confrontá-lo sem medo e reconhecer o que quer que possa
surgir:

Agora quando o bardo do dharmata torna-se mais claro para mim,

236
Abandonarei todas as projeções de medo e terror,
Reconhecerei tudo o que surgir como a auto-exibição da consciência
E saberei que é da natureza visionária do bardo.
Quando chegar o tempo de atingir o ponto crucial
Não tema a auto-exibição dos seres pacíficos e coléricos!

A primeira manifestação do bardo do dharmata é uma exibição impressionante


de luz e som preenchendo todo o espaço. Se a pessoa não estiver preparada, essa
energia vibrante parece assustadora e atordoante, embora simplesmente a expressão
das qualidades naturais da pessoa. É descrita desta maneira:

Ó filho de família desperta, quando sua mente e corpo se separarem, o


dharmata irá aparecer, puro e claro, embora difícil de discernir, luminoso e
brilhante com uma clareza assustadora, tremeluzindo como uma miragem
em uma planície na primavera. Não tenha medo dele, não fique
desnorteado. É a irradiação natural de seu próprio dharmata, portanto,
reconheça-o.
Um grande rugir de trovão virá de dentro da luz, o som natural do
dharmata, como mil trovões soando simultaneamente. É o som natural de
seu próprio dharmata, portanto não fique com medo ou desnorteado.
Você tem o que se chama um corpo mental de impressões kármicas, não
tem um corpo físico de carne e sangue, portanto quaisquer sons, cores e
raios de luz que apareçam não podem machucá-lo e você não pode morrer.
Basta simplesmente reconhecê-los como sua própria auto-exibição e saber
que isso é o bardo.
Ó filho de família desperta, se não reconhecê-los dessa maneira como
sua própria auto-exibição e se você não recebeu esse ensinamento, então
a despeito de qual seja a prática de meditação que fez durante a sua vida,
as luzes coloridas irão assustá-lo, os sons irão atordoá-lo e os raios de luz
irão aterrorizá-lo. Se você não entender esse ponto essencial do
ensinamento, não reconhecerá os sons, luzes e raios, e portanto irá seguir
vagando pelo samsara.

Como Trungpa Rinpoche apontava, esse tipo de experiência alucinatória pode


ocorrer durante nossa vida; embora não de uma forma tão extrema, “existe uma
qualidade basicamente desolada, solidão e vacilação”. Ela provém do medo do vazio,

237
do medo de perder seu próprio ego e se tornar absorvido nas visões do estado
desperto: “Aquele súbito vislumbre de ausência de ego traz uma espécie de abalo.” 86

A exibição fascinante e caleidoscópica de luzes se transforma nas imagens


semelhantes a arco-íris das deidades do bardo: aparência e vazio indivisíveis. Primeiro
as formas pacíficas dos cinco budas aparecem, em seguida os vidyadharas passionais e
finalmente os herukas coléricos. Todos parecem impressionantes e assustadores para
a consciência confusa no bardo, então as instruções são repetidas várias vezes
afirmando que não devemos ter medo, mas devemos nos abandonar e permitir que
nos fundamos com eles.

Esses fenômenos são aterrorizantes porque são muito brutos e intensos. Não são
como sons, luzes e cores comuns; são pura energia, expressando as qualidades sutis
dos cinco elementos. A consciência no bardo não está mais protegida pela solidez da
carne e dos ossos, nem limitada pela lentidão dos sentidos físicos. É como se a pessoa
tivesse mergulhado completamente nua em um redemoinho de sensações. É
impossível se afirmar se elas vêm de dentro ou de fora. Trungpa Rinpoche discute a
natureza das visões do bardo em seu comentário, relacionando-as com as meditações
da prática especial do bardo em retiro, que é conduzida em total escuridão. Ele afirma
que o que ocorre não é exatamente visão, percepção ou experiência, porque isso
envolve uma relação dualista. Aqui não há observador ou experimentador, nenhuma
maneira de separar as aparições de si próprio e fazer delas objetos, ou de olhar a
própria experiência de forma a entendê-la. Ele destaca que esse mesmo princípio de
percepção direta e não dual é o ponto-chave para entender o simbolismo da arte e da
meditação tântricas. Retornaremos ao assunto do simbolismo no próximo capítulo.

Trungpa Rinpoche com frequência falava da maneira que percebemos o mundo


como “projeção”, e utilizamos essa palavra em nossa tradução para sugerir a não-
dualidade das visões e da pessoa que as está vendo. O que quer que apareça durante o
bardo é uma projeção da própria pessoa. Isso simplesmente pretendia transmitir a
ideia de que todas as visões vem da própria mente da pessoa e são as manifestações
de sua própria natureza. Entretanto, durante os anos que se passaram desde que a
tradução foi publicada, descobri que projeção pode algumas vezes dar a impressão
errada, especialmente no que diz respeito às deidades. Ela parece implicar algo falso e
pode sugerir que as deidades não são nada além de projeções da nossa consciência
dualista. Agora prefiro usar o termo auto-exibição, que possui um senso de
ambiguidade bastante apropriado, ajudando a sabotar nosso modo habitual de pensar
de forma dualista: sugere ao mesmo tempo, tanto a aparição das deidades a partir de
nossa própria mente quanto sua própria aparição espontânea e auto-existente.

86
The Tibetan Book of Dead, p. 15.

238
O problema ocorre porque tendemos a pensar no ego individual comum como
sendo o projetor. Mas as deidades são a manifestação de nossa própria natureza
original e desperta, que transcende a individualidade. São realidades universais.
Quando os elementos grosseiros e os skandhas se dissolvem, as deidades inatas são
reveladas. Estão naturalmente presentes, sem qualquer esforço de nossa parte. Isso é
chamado existência espontânea ou presença espontânea. As deidades não são apenas
psicológicas, nem são criadas pela meditação. São a nossa natureza verdadeira, mas
em virtude de incontáveis vidas vagando no samsara perdemos de vista essa natureza.
Elas não são símbolos de ideias abstratas, mas a própria realidade. São a presença viva
da iluminação, não ideais de iluminação. São o que somos realmente, mas são muito
mais reais do que nós no nosso presente estado.

Ao descrever essa experiência do retiro do bardo, Trungpa Rinpoche segue


adiante e diz: “De forma a percebê-las adequadamente, aquele que percebe essas
visões não pode ter um ego fundamental, centralizado. Ego fundamental neste caso é
o que motiva a pessoa a meditar ou a perceber alguma coisa.”87 Isso diz respeito ao
yogue ou yoguine que estão engajados no retiro e atingiram uma experiência estável
do vazio. Mas no bardo ainda nos agarramos à existência do ego ou não estaríamos lá,
portanto as deidades parecem surgir à nossa frente como visões externas. Assim que
as percebemos como separadas de nós, reagimos com paixão, agressão ou medo, e
quando as transformamos nos objetos de nossas emoções, elas se tornam nossas
próprias projeções.

Na origem de todas essas aparências está o casal primordial, Samantabhadra e


Samantabhadri (ver Figura 3). Eles na verdade não aparecem até a metade do caminho
do bardo do dharmata, mas já foram identificados como a verdadeira natureza da
mente durante o bardo do morrer. Nas pinturas da mandala do bardo, eles são
representados ou no centro ou no topo. São mostrados da maneira mais simples
possível, nus, sem adornos. Estão abraçando um ao outro em união sexual. O corpo
dele é de um azul profundo do espaço; algumas vezes é quase negro, a fusão de todas
as cores. Ela é de um branco puro, simbolizando a pureza do estado primordial; é o
matiz mais próximo à ausência total de cor, à transparência do vazio. O texto de As
cem homenagens os descreve desta maneira:

Buda primordial cujo corpo é a luz imutável,


Puro conhecimento transcendente, pai de todos os budas,
Da cor do céu, sentado em postura de meditação,
Homenagem a Samantabhadra, o dharmakaya.

87
The Tibetan Book of Dead, p. 12.

239
Mãe que dá à luz todos os budas dos três tempos,
Branca como o cristal puro e sem máculas do dharmadhatu,
Alegremente abraçando o pai com grande bem-aventurança,
Homenagem a Samantabhadri, a grande mãe.

Tornou-se um costume nas traduções em inglês chamar os devas de consortes


dos budas, mas nos textos originais o casal é sempre mencionado como pai e mãe. Isso
se aplica aos princípios masculino e feminino, onde quer que eles apareçam, não
apenas a Samantabhadra e Samantabhadri. Eles são os pais da iluminação; juntos,
produzem bodhichitta, a mente desperta. Fundamentalmente, o princípio feminino é o
poder criativo que dá à luz. Ela é o espaço (dhatu), a dimensão zero do vazio
(shunyata) de onde todos os fenômenos surgem. O simbolismo da mãe revela muito
claramente que o vazio não é negativo ou passivo, mas um estado dinâmico de
potencialidade infinita. O princípio masculino complementar é o conhecimento
transcendental não dualista (jnana), originando-se espontaneamente da amplidão do
espaço, fluindo através dele e perpassando-o. Existem muitas maneiras de interpretar
essa união do masculino e do feminino; por exemplo, eles podem simbolizar a
indivisibilidade da aparência e do vazio, da bem-aventurança e do vazio, da verdade
relativa e da verdade final, conhecimento e espaço, compaixão e vazio, ou meios
habilidosos e sabedoria.

Cada um dos budas das cinco famílias incorpora um aspecto especial do


conhecimento e da qualidade do estado desperto. Suas consortes, os cinco devas,
incorporam sua ausência de ego, sua liberdade em relação às limitações, o espaço e a
amplidão de sua natureza essencial. No contexto das visões do bardo, Trungpa
Rinpoche enfatizou o sentido de fertilidade e comunicação do princípio feminino. Ela
fornece as circunstâncias através das quais o buda masculino pode tornar visível e
expressar a qualidade básica da sua família. Ela é também aquela que o inspira a se
comunicar. Algumas vezes nos tantras, os budas são descritos como estando
totalmente absorvidos na bem-aventurança do nirvana, e então são os devas que os
incitam, pedindo a eles que ajam e ensinem o dharma em nome de todos os seres.

Em resposta a essa solicitação, o princípio masculino se manifesta como


compaixão, que só pode ser eficaz quando baseada no entendimento do vazio. A
expressão do vazio é a sabedoria, a realização prática do verdadeiro significado do
não-ser, cortando através das ilusões de solidez, permanência, separação e limitação.
A expressão da compaixão são os meios habilidosos, a aplicação sem hesitação de
qualquer método que possa ser usado para ajudar seres viventes de qualquer maneira
que seja possível. Portanto, a aparência das deidades de pai e mãe durante o bardo é a
auto-exibição da própria natureza da pessoa na forma da união desses dois princípios.

240
O significado de sua união sexual é tão importante quanto seus significados
individuais. Ilustra graficamente a absoluta inseparabilidade e interdependência dos
dois elementos complementares do estado desperto. Mas, acima de tudo, é uma união
extática que produz bem-aventurança. Bem-aventurança é a própria essência da
iluminação; é o acordar do ser inteiro da pessoa em direção à experiência
transcendente da sensibilidade. Ela é chamada de a grande bem-aventurança que não
se escoa: é inexaurível, não é afetada por nenhuma circunstância externa e nunca se
dispersa nas emoções comuns dos cinco venenos. Quer as deidades em união sejam
pacíficas ou coléricas, a expressão em seus rostos e a atitude de seus corpos revelam a
bem-aventurança que os permeia totalmente.

As visões que aparecem durante o bardo do dharmata são coletivamente


conhecidas como as cem deidades pacíficas e coléricas; as deidades pacíficas são
comuns a todas as tradições vajrayana, mas as deidades coléricas são especificamente
Ningma e não são encontradas da mesma forma em nenhum outro lugar88. Muitos
mestres dizem que pessoas sem treino não terão essas visões de jeito algum e que só
aqueles que são experimentados na meditação dzogchen as verão. Por outro lado, elas
expressam realidades universais, portanto muitas vezes se afirma que aparecem para
todos, porque são a manifestação pura da própria natureza da pessoa. Como vão
aparecer é em que consiste a questão. Podemos nos sentir totalmente atordoados
pelos sons, cores e luzes que as rodeiam, mas se estivermos acostumados à
meditação, seremos capazes de ver essas impressões caóticas claramente como
deidades familiares e de nos fundir com seus corações com confiança.

A diferença está em se podemos reconhecê-las ou não. O reconhecimento é o


ponto-chave durante o bardo. Podemos estar tão obtusos e estupefatos que não
notamos absolutamente nada, da mesma forma que muitas vezes não temos
consciência de ter quaisquer sonhos à noite. Talvez na manhã seguinte possamos
apenas sentir que tivemos um sonho agradável ou um pesadelo confuso e
perturbador. A analogia com sonhos é fácil de entender, mas exatamente o mesmo
princípio se aplica à vida em vigília. As deidades estão presentes aqui e agora, mas não
as vemos e interpretamos suas mensagens de modo completamente equivocado.

88
A mandala das cem deidades pacíficas e coléricas se origina no ciclo Mayajala (Rede de ilusão mágica)
de tantras Ningma, cujo texto básico é o Guhyagarbha Tantra (Tantra da essência secreta). Tradução
com comentários de Gyurme Dorje em sua tese de doutorado inédita: A Critical Edition of the
Guhyagarbha-tantra, SOAS, Universidade de Londres, 1988. Enquanto as deidades mais importantes são
as mesmas, alguns dos detalhes de sua iconografia e as figuras menores na mandala diferem daquelas
de Liberação através da audição e seus textos associados. Ver também Herbert Guenther, Matrix of
Mystery, Boulder, Shambhala, 1984.

241
O texto nos diz que “samsara é invertido e tudo aparece como luzes e imagens”.
Comumente, tudo dentro da nossa experiência inteira é construído e condicionado
pelos cinco elementos, pelos cinco skandhas e pelos cinco venenos. Mas durante o
bardo do dharmata o samsara é invertido: a experiência comum é virada de trás para a
frente, de dentro para fora e de cabeça para baixo. Em vez de perceber somente o
aspecto grosseiro e externo das coisas, experimentamos sua essência pura, original,
vinda de dentro. Nossos próprios elementos se manifestam como os devas, nossos
skandhas como os budas, e os cinco venenos são transformados nos cinco tipos de
conhecimento desperto.

O que quer que exista, seja no mundo do samsara ou no mundo da iluminação, é


produzido a partir das cinco qualidades elementais, aparecendo a partir do espaço
básico como a luz das cinco cores. Essa exibição brilhante permeou a consciência
quando ela acordou pela primeira vez no bardo do dharmata. Agora a luz dos cinco
elementos se forma em bindus, esferas de luz dentro das quais as visões das deidades
se cristalizam em formas radiantes e translúcidas, “a partir do espaço da luz do arco-
íris”.

Primeiro, as deidades pacíficas aparecem. São sentidas como se habitassem o


coração da pessoa, o ponto focal do princípio da mente no sentido da inteligência
direta, intuitiva. Incorporam as qualidades fundamentais do estado desperto, existindo
pacificamente apenas como elas são, espontaneamente presentes sempre e em toda
parte. Não são nada parecidas com as visões de figuras de boas-vindas que
apareceram mais cedo e que são reportadas em experiências de quase-morte. Nem
são elas como as visões divinas tranquilizadoras e confortadoras de algumas
experiências religiosas, produzindo sentimentos de bem-aventurança ou unidade
cósmica. Trungpa Rinpoche as descreve como irritantes e até mesmo hostis,
especialmente se a pessoa tem esse tipo de expectativa. Elas estão além de qualquer
coisa que pudermos imaginar — “um súbito lampejo de outra dimensão” Sua
tranquilidade é “uma paz completamente envolvente, impassível, paz invencível, o
estado pacífico que não pode ser desafiado, que não tem idade, nem fim, nem
início”89. Sua simples presença inspira tanta reverência que parece ameaçadora. A
essência da compaixão não responde a quaisquer tentativas centradas no ego de se
comunicar com ela, baseadas em esperança ou medo. Elas preenchem todo o espaço,
toda a nossa mente, e os raios penetrantes de luz de seus corações iluminam cada
canto do nosso ser, de tal forma que nada é deixado ao abrigo e não há nenhum lugar
onde se esconder.

As deidades das cinco famílias aparecem em suas próprias terras puras ou reinos,
que são o ambiente ou campo do estado desperto. Assim como os seis reinos do
samsara são produzidos a partir da mente, da mesma maneira são as terras puras. Por

89
The Tibetan Book of Dead, p. 13.

242
causa da tendência humana de rotular e categorizar para poder entender,
diferenciamos aquele campo infinito e todo penetrante como as terras puras dos
diferentes budas. Também podemos percebê-las com a visão sagrada e criá-las através
de atividades iluminadas. Mas, já que não nos reconhecemos e aos outros seres
viventes como deidades, não reconhecemos as terras puras ao nosso redor. Em vez
disso, interpretamos equivocadamente a experiência de vida como os seis reinos do
samsara. Portanto, durante o bardo, nossas tendências para criar os mundos de sonho
dos seis reinos também se manifestam, aparecendo como caminhos convidativos de
luz colorida.

As visões do bardo são descritas como acontecendo em uma sequência de dias,


mas não devemos considerar isso literalmente. Assim como acontece com o padrão da
mandala em termos de espaço, a mente humana necessita do apoio de uma estrutura
familiar para chegar a termos com a realidade inconcebível que está por trás dela, e
inevitavelmente pensamos no tempo como se movendo do passado para o futuro, um
dia depois do outro. Mas isso não quer dizer que os eventos irão necessariamente
seguir a ordem descrita aqui, ou mesmo que o tempo linear é relevante no estado de
pós-morte. Em qualquer caso, esses dias são definidos como a extensão de tempo,
durante a qual a pessoa consegue permanecer concentrada sem distração, portanto
para a maioria de nós, eles podem ser tão efêmeros quanto um pensamento
passageiro.

Cada um de nós expressa a energia de maneiras características, portanto cada


um de nós possui uma afinidade especial com certas expressões da energia desperta.
Esse é o significado da divisão em cinco famílias e a razão pela qual o estado desperto
se manifesta nessas diferentes formas em diferentes dias. O tipo de energia que nos
domina é aquela à qual estamos mais propensos a perceber e a reagir no bardo.
Mesmo na vida comum, podemos descobrir que emoções muito fortes, tais como
paixão ou raiva, podem nos incitar a um pico de intensidade onde uma brecha se abre
de repente. É a essência da experiência do bardo. A visão das deidades associada com
aquela energia em particular pode acabar sendo a única que seremos capazes de
perceber durante o bardo. É como a típica situação problemática com que nos
confrontamos na vida, que é exatamente a que traz em si a maior potencialidade para
o nosso despertar.

No estado despido do bardo do dharmata, estamos face a face com a própria


realidade; somos confrontados com possibilidades infinitas, além de toda a
imaginação. Essas descrições de dias sucessivos são como instantâneos daquela
experiência total, esmagadora, tirados de diferentes pontos de vista; um ou outro
deles pode nos parecer familiar de alguma forma, de maneira que consigamos fazer
uma conexão.

243
Mesmo dentro da tradição Ningma existem diversos relatos levemente
diferentes desse bardo. Neles, algumas das deidades podem aparecer com outras
cores e atributos, que podem ser encontradas refletidas nas pinturas da mandala do
bardo. (Ver Figura 4, em que as deidades pacíficas estão arrumadas fora do círculo
central que contém as deidades coléricas.) Em adição às descrições dadas em
Liberação através da audição, fiz uso dos dois textos anteriormente mencionados, As
cem homenagens e A prática do dharma.

O PRIMEIRO DIA

Ó filho de família desperta, depois de permanecer inconsciente por


quatro dias e meio você irá seguir em frente, e despertando de seu
desmaio, irá pensar: “O que aconteceu comigo?” Reconheça-o como sendo
o bardo. Neste momento o samsara é invertido, e tudo que você vê
aparece como luzes e imagens de deidades.
O todo do espaço brilhará com uma luz azul. Então o abençoado
Vairochana irá aparecer à sua frente vindo da parte central do Reino da
Semente em Expansão. Seu corpo é branco na cor, e ele está sentado em
um trono de leão, segurando uma roda de oito raios em sua mão e
abraçando a mãe, a Rainha do Espaço. A luz azul do skandha da consciência
em sua pureza básica, o conhecimento todo abrangente, claro e brilhante,
vivo e fascinante, virá em sua direção do coração de Vairochana em união
com sua consorte, e penetrará em você de tal forma que seus olhos não a
suportarão. Ao mesmo tempo, a luz suave dos deuses irá também penetrá-
lo, ambas de lado a lado.

O elemento espaço contém todos os outros elementos, portanto é o primeiro a


se manifestar como luz azul a partir do vazio luminoso da natureza fundamental da
mente. A família é a do Buda, aparecendo dentro de sua própria terra pura no centro
da mandala dos cinco budas. O nome desse reino é literalmente “o bindu em
expansão”: o ponto em semente que contém o todo da existência e se espalha
infinitamente para permear e abranger toda a extensão do espaço. Ao final desta
seção, ele é também chamado por um outro nome, o Reino da Série Densa. Ambos os
nomes transmitem um sentido de totalidade e densidade: dentro de cada átomo
existem tantos budas quanto existem átomos no universo.

Na visão do primeiro dia, encontramos a combinação de branco e azul que foi


mencionada anteriormente em conexão com a família Buda. Vairochana, com sua
forma branca radiante, é consciência panorâmica, aquele que vê e sabe e ilumina cada

244
partícula da existência em todas as direções. Ele está unido com o deva
Akashadhatvishvari, a Rainha do Espaço. Ela é branca como ele, a cor da lua, enquanto
ele é da cor de um búzio. Cada um deles segura um sino na mão esquerda. Ele
representa o princípio feminino de vazio e sabedoria e é sempre seguro na mão
esquerda. Em sua mão direita, cada um segura uma roda, o símbolo de sua família.
Com seus oito raios irradiando nas direções primária e intermediária, ela representa a
universalidade; é a roda do dharma, cujos oito raios significam o caminho óctuplo
nobre do Buda, e é também um outro símbolo de soberania.

A iconografia dessas imagens segue o ideal mahayana no qual o esplendor


mundano, a beleza e a nobreza representam a perfeição espiritual. Os budas
masculino e feminino são representados como o rei e a rainha do seu reino, enquanto
os bodhisattvas que aparecem no dias subsequentes são os príncipes e princesas. Eles
vestem os “13 adornos sambhogakaya”, modelados no costume da antiga realeza
indiana e que consiste em cinco peças de roupa e oito itens de joalheria90. Suas
vestimentas são um corpete de seda branca bordado em ouro; uma peça inferior como
um dhoti, de seda multicolorida; uma faixa de seda amarela larga; um xale de seda
azul; e fitas em seda cor de arco-íris pendendo de uma faixa na cabeça. Suas joias são
de ouro e pedras preciosas: brincos, braceletes, tornozeleiras, cinto, três colares
(pequeno, médio e grande), e uma coroa incrustada com pedras nas cores das cinco
famílias. A lista de itens pode variar ligeiramente e nem sempre é apresentada
completa nas pinturas.

Os tronos de todos os cinco budas são formados por lótus, sobre os quais está
um disco da lua apoiado em um disco do sol. O lótus é um símbolo da pureza
primordial da iluminação brotando do pântano lamacento do samsara. Ele também
simboliza o princípio feminino, que dá à luz todas as manifestações da iluminação.
Sentar ou ficar de pé sobre um lótus indica que as deidades não abandonaram o
samsara pela paz do nirvana; elas entram no mundo, mas não são corrompidas por ele.
Já que a lua é prateada ou branca, a cor do sêmen, ela representa o princípio
masculino da compaixão e dos meios habilidosos. O sol é dourado ou vermelho, a cor
do sangue menstrual, representando o princípio feminino da sabedoria e do vazio.
Com algumas exceções, as deidades pacíficas estão sentadas na lua e as deidades
coléricas no sol. Em geral, ambos os discos são imaginados como estando presentes,
embora somente o mais alto seja de fato visível.

Vairochana e a Rainha do Espaço estão sentados em um trono sustentado por


leões, o rei dos animais, símbolo de soberania. Em pinturas tibetanas, são retratados
como leões da neve, criaturas fantásticas com corpos brancos, e jubas e caudas

90
Para um livro abrangente e lindamente ilustrado sobre iconografia e seus significados, incluindo
muitos dos atributos das deidades pacíficas e coléricas, ver Robert Beer, The Encyclopedia of Tibetan
Symbols and Motifs, Londres, Serindia Publications, 1999.

245
turquesa. Usar um animal como assento ou como veículo significa que, por um lado, a
pessoa superou e transmutou completamente os aspectos negativos de seu
comportamento instintivo, e por outro lado, conquistou e integrou suas características
positivas. Os tronos animais também representam certos atributos iluminados
possuídos por todos os budas; o leão representa os quatro tipos de destemor através
dos quais as forças maléficas dos quatro maras são superadas.

Do coração do casal divino irradia-se um intenso raio de luz azul; é a luz do


conhecimento todo abrangente, o conhecimento do dharmadhatu. Ela brilha porque o
skandha da consciência é “purificado em seu lugar”, ou “em sua base”; isso quer dizer
que ele é revelado em sua própria pureza básica, natural. No bardo, possuímos todos
os skandhas em seu estado sutil, purificado, e estes skandhas são os próprios cinco
budas. O conhecimento todo abrangente é a própria essência de Vairochana,
significando que o nosso skandha da consciência é libertado de sua tendência dualista
e transformado no conhecimento todo abrangente da realidade total.

Mas a luz brilhante da realidade é muito dura de suportar. É cegante e irresistível


conforme flui em nossa direção; penetra o coração como uma espada afiada. Ao
mesmo tempo, outra luz flui em nossa direção, convidativa, suave e prazerosa. É um
raio de luz branca que forma um caminho que leva ao reino dos deuses, criada pela
ignorância e pela ilusão. Ignorância significa ignorar e se fechar para a claridade e a
amplidão da consciência panorâmica. Por causa dos efeitos negativos de ações
passadas, os mortos ficarão aterrorizados pela irradiação azul lancinante e penetrante
e tentarão escapar dela, mas se sentirão atraídos pelo fulgor branco, prazeroso e
tranquilizante da ilusão. Se seguirem esse caminho, irão “vagar pelo reino dos deuses e
circular entre os seis tipos de existência”. Os caminhos que levam aos seis reinos são
percebidos como luzes mais suaves porque é sempre mais fácil reverter para padrões
habituais de comportamento do que se abrir para uma forma inteiramente nova de
ser. Trungpa Rinpoche descreve esse momento de escolha como o real significado de
magia: “O ponto no qual podemos ou nos estender mais e ir em direção a um brilho
não familiar, ou retornar a uma palidez familiar e mais tranquilizante, é o limiar da
magia.”91

Existem muitas abordagens possíveis para a iluminação. Se formos incapazes de


reconhecer as deidades e a luz brilhante como nossa própria natureza intrínseca,
deveríamos nos apoiar em uma atitude de fé, confiança e devoção. Deveríamos pensar
no raio de luz azul como a compaixão de Vairochana, estendida como um gancho para
nos atrair em direção ao seu coração e estimular um sentimento de intenso anseio por
ele. Depois da descrição da visão de cada dia, a pessoa falecida é lembrada do verso
correspondente da Prece-aspiração para libertação da perigosa passagem do bardo:

91
Journey Without Goal, p. 111.

246
Quando, por causa de intensa ilusão, vago no samsara,
No caminho luminoso do conhecimento todo abrangente
Possa o abençoado Vairochana ir à minha frente,
Grande mãe, a Rainha do Espaço, atrás de mim,
Livra-me da passagem perigosa do bardo
E leva-me ao estado desperto perfeito.

Se nos entregarmos ao raio azul brilhante do conhecimento, seja através do


reconhecimento ou da devoção, iremos nos “dissolver em luz de arco-íris no coração
do abençoado Vairochana em união com sua consorte e nos tornaremos despertos no
sambhogakaya no centro do Reino da Série Densa”.

A atitude de devoção é necessária enquanto ainda sentirmos urna sensação de


separação entre as deidades e nós. Mesmo embora possamos ter compreendido
intelectualmente, e mesmo experimentado em algum grau na meditação, que as
deidades são nossa própria natureza verdadeira, é muito difícil integrar e estabilizar
essa realização plenamente. Enquanto ainda fizermos uma distinção entre o lado de
dentro e o lado de fora, precisamos nos refugiar na natureza desperta que existe além
de nós e nos deixarmos ir em direção a ela sem reservas. Isso não contradiz as
observações de Trungpa Rinpoche sobre a implacabilidade das deidades pacíficas. É
verdade que elas não podem ser cortejadas ou enganadas por nenhum tipo de
abordagem de autoproteção, mas a devoção genuína é o oposto da autopreservação,
que é a completa entrega do ego.

Aqueles que são experimentados no estágio de criação do yoga da deidade ou no


estágio de sobrepujamento da atiyoga serão capazes de reconhecer as deidades como
a exibição de sua própria mente e se fundir com elas. Aqueles que não puderem as
reconhecer diretamente, mas que tenham confiança suficiente para se abandonar
completamente, também se fundirão com elas. Uma outra possibilidade é para os que
praticaram o yoga do corpo ilusório a fim de transformar o corpo do bardo no corpo
ilusório e completar sua prática dessa forma. Aqueles que têm fé, mas pouca
experiência, podem renascer em um nível inferior da terra pura, onde continuarão no
caminho, ou no mínimo renascer neste mundo com excelentes conexões com o
dharma. Em cada ponto ao longo de toda a experiência do bardo, o estado em que
entrarmos depende do quanto deixamos de lado a autopreservação e nos deixamos ir
na direção das visões da realidade.

247
O SEGUNDO DIA

Por causa do karma resultante da ignorância e da confusão, podemos não ser


capazes de responder à primeira visão de forma alguma. Os cinco venenos formam
véus ou obscurecimentos, impedindo-nos de ver com clareza, portanto continuamos a
vagar pelas experiências do bardo. Pelo fato de os véus de agressão nos cegarem para
a presença da luminosidade na qual estamos imersos, tudo em nossa natureza que
corresponda à família Vajra agora se manifesta a partir do coração para nos convidar e
nos despertar. Em As cem homenagens, os cinco budas são descritos como não
rejeitando os cinco venenos, mas incorporando sua pureza básica. Portanto, porque
indubitavelmente sofremos os cinco venenos, os cinco budas irão inevitavelmente
aparecer como a manifestação de nossa bondade e nossa vigilância intrínsecas.

Ó filho de família desperta, escute sem distração. No segundo dia, a luz


branca do elemento purificado da água irá brilhar. Então o abençoado
Vajrasattva-Akshobhya irá aparecer à sua frente vindo do Reino da Alegria
Manifesta azul do leste. Seu corpo é azul na cor, e ele segura um vajra de
cinco pontas em sua mão. Está sentado em um trono de elefante
abraçando a mãe Buda-Lochana. Os dois bodhisattvas masculinos,
Kshitigarbha e Maitreya, e as duas bodhisattvas femininas, Lasya e Pushpa,
os rodeiam. Portanto, seis imagens do estado desperto irão aparecer. A luz
branca do skandha da forma em sua pureza básica, o conhecimento do
espelho, branco fascinante, virá em sua direção a partir do coração de
Vajrasattva, em união com sua consorte, e o penetrará de tal forma que
seus olhos não suportarão olhá-lo. Ao mesmo tempo, a luz suave e
enfumaçada do inferno também irá penetrá-lo, lado a lado, com a luz do
conhecimento.

A família Vajra surge da esfera de luz branca do elemento água. Akshobhya, o


senhor da família Vajra, está aqui combinado com Vajrasattva, o Ser Vajra. Vajrasattva
não é normalmente colocado dentro da mandala das cinco famílias, mas acima e além
dela. Ele é a essência de todos os budas e contém todas as famílias em si. É
particularmente associado com a purificação e portanto é quase sempre branco na
cor, mas aqui ele é azul por causa de sua identificação com Akshobhya. De novo nessa
família encontramos a combinação de azul e branco.

Uma outra ligação inesperada é fornecida por sua consorte, Buda-Lochana, que é
o deva da terra. Ela também se adapta à cor de Akshobhya, tornando-se o azul do
lápis-lazúli. Em relação aos skandhas, a terra corresponde à forma, e a água, ao

248
sentimento, embora no sistema das cinco famílias que estamos usando aqui,
Akshobhya combina com ambos, a forma e a água. Esse cruzamento de atributos foi
mencionado na dissolução dos elementos, mas não foi discutido em nenhum detalhe,
porque a união dos budas masculinos e os devas ainda não havia sido explicada. Agora
podemos ver como a combinação das qualidades da terra e da água acontece através
da união de Akshobhya com Lochana. Terra e água necessitam um do outro. Nesse
caso, a terra (o deva) fornece as circunstâncias que apoiam e contêm a água (o buda).
Como Trungpa Rinpoche ressaltou em seu comentário, o nome dela significa o Olho de
Buda, portanto ela é o olho do despertar através do qual as características sólidas e
estáveis do Akshobhya encontram um escoadouro. Ela “abre, ela fornece a saída ou
ativação da coisa inteira, o elemento da comunicação”.

Cada um dos pares segura um sino na mão esquerda e um vajra de cinco pontas
na direita. As cinco pontas de cada lado do vajra representam os cinco budas
masculinos e femininos, portanto mais uma vez somos lembrados do princípio da
totalidade inerente em cada uma das famílias.

Akshobhya e Lochana estão sentados em um trono apoiado por elefantes,


sugerindo a imobilidade e a força da família Vajra. O elefante muitas vezes simboliza a
mente, selvagem e perigosa de início, mas inteligente e rápida nas respostas desde
que esteja domada. Aqui ele representa a posse das dez forças dos budas, originando-
se das dez qualidades do conhecimento sobrenatural e espiritual.

Ao redor do casal central está a sua família de bodhisattvas. Os bodhisattvas são


frequentemente chamados de filhos e filhas dos budas. Em um sentido geral, todos os
bodhisattvas representam o princípio do engajamento ativo pelo bem-estar dos
outros; são a manifestação viva de todas as qualidades da iluminação no mundo à
nossa volta. Durante as visões do bardo, 16 bodhisattvas aparecem, oito masculinos e
oito femininos, organizados em grupos de quatro em cada um dos quatro pontos
cardeais. Eles aparecem porque também fazem parte da nossa natureza.

Os oito bodhisattvas masculinos são bastante conhecidos como figuras


independentes, cujas histórias são contadas nos sutras mahayana. Eles têm também
muitas formas diferentes além daquelas que são encontradas aqui. Já que
personificam o princípio masculino dos meios habilidosos compassivos, cada um
transmite seu próprio tipo de compaixão, que pode ser mais suave ou mais poderosa,
ou pode desempenhar uma função especial ou ainda ser dirigida para seres
conscientes em uma situação particular. Como um grupo, representam a purificação
natural das oito qualidades de consciência. Isso significa que cada experiência — sem
exceção — pode ser desfrutada livre de apego de uma maneira desperta, com a
atitude de contribuir positivamente para a iluminação e a felicidade de toda a
existência.

249
Os oito bodhisattvas femininos são algumas vezes conhecidos como deusas de
oferenda ou puja devas. Representam a transmutação dos objetos das oito qualidades
de consciência. Isso significa que tudo que se origina nos campos dos sentidos,
incluindo a mente, seja bom ou ruim, agradável ou desagradável, alegre ou triste, é
oferecido ao estado desperto e torna-se uma inspiração para despertar. O feminino
sempre simboliza o vazio. Em sua forma exterior, esses oito devas exibem vários tipos
de desfrute sensorial, mas interiormente incorporam seu vazio essencial. Sem o
princípio da transmutação, tudo o que experimentamos simplesmente perpetua o
samsara. Alimentos e bebidas e todos os outros prazeres sensuais alimentam apenas o
nosso corpo e a nossa mente grosseiros, portanto no fim das contas, eles conduzem à
morte. Mas ao oferecê-los aos budas, o que significa desfrutá-los com a consciência de
nosso estado desperto inato, eles podem ser transmutados em amrita, o elixir da
imortalidade.

Os bodhisattvas masculino e feminino não são dispostos em pares com seus


casais correspondentes, mas simplesmente colocados em círculos de quatro ao redor
do trono do casal central, de acordo com sua afinidade individual com as famílias
Vajra, Ratna, Padma e Karma. Todos eles tomam as cores de suas respectivas famílias.

À direita do trono está Kshitigarbha, Essência da Terra. Ele representa a


fertilidade e o crescimento. É conhecido por sua dedicação a ajudar seres nos reinos
inferiores, especialmente nos infernos, que estão aprisionados dentro ou abaixo da
terra. É da cor de uma montanha nevada. Traz um feixe de juncos em sua mão direita,
simbolizando o produto da terra, e um sino em sua mão esquerda. Incorpora a
consciência da visão, que, como é dito em As cem homenagens, não deveria ser
rejeitada como uma parte impura do samsara, mas aceita em sua pureza natural.

Do lado esquerdo está Maitreya, Amizade. Ele é a presença viva da bondade


amorosa, o amigo verdadeiro e companheiro constante de todos os seres. Está
destinado a ser o buda da próxima era, assim como Shakyamuni é o buda da presente
era. Seu corpo é da cor de uma nuvem branca. Ele segura um sino em sua mão
esquerda. Em sua mão direita, está uma ramagem de flores brancas; elas provêm da
perfumada árvore nagchampa indiana, sob a qual está previsto que ele irá atingir a
plena iluminação como o futuro buda. Ele representa a consciência pura da audição.

À frente do par central de deidades, está Lasya, Dança. Seu nome faz referência
ao tipo feminino gracioso da dança indiana, em contraste com o estilo masculino mais
vigoroso. Nas palavras de Trungpa Rinpoche, ela “exibe a beleza e a dignidade do
corpo... a majestade e a sedução do princípio feminino”92. Ela representa a pureza
básica de tudo que apareça como objeto da visão, e oferece isso aos olhos de todos os

92
The Tibetan Book of Dead, p. 18.

250
budas. É da cor da pedra da lua. Traz um sino em sua mão esquerda, e em sua mão
direita está um espelho, o símbolo da forma.

Atrás do casal central está Pushpa, Flor, simbolizando as belezas da natureza. É


de um branco pérola, e segura um lótus branco e um sino. As oito bodhisattvas
femininas não correspondem exatamente aos oito campos de consciência, já que se
diz que três delas representam os pensamentos do passado, presente e futuro. Parece
que ideias diferentes foram combinadas nesse sistema. Pushpa purifica todos os
pensamentos relacionados ao passado, o que poderia significar memórias,
arrependimentos, apegos e assim por diante; poderia também significar o conceito do
tempo passado que não mais existe, embora possua uma tal realidade aparente e um
tal poder sobre nossas mentes.

A luz branca brilhante do conhecimento do espelho, o skandha da forma


purificado, refulge. O skandha da forma é a base de todas as nossas pressuposições
sobre a natureza da existência material. Comumente, ele é o fundamento da
percepção equivocada de nós mesmos e do mundo, como sendo sólidos e
permanentes. Agora, o princípio purificado da forma é transmutado no grande
espelho, no qual forma e vazio são unificados: o espelho está vazio, no entanto a
forma aparece vividamente dentro dele. Com o olho desperto do Buda-Lochana,
experimentamos todas as percepções dos sentidos surgindo e desaparecendo como
uma reflexão ou um sonho.

Ao mesmo tempo, um caminho de luz mais suave, da cor de fumaça, aparece,


levando ao reino dos seres infernais. O estado infernal resulta de agressão, raiva e
ódio, as emoções negativas características ligadas à família Vajra. O caminho que leva
ao inferno é construído a partir de toda a agressão acumulada durante toda a nossa
vida. Quanto mais tenhamos nos acostumado a reagir agressivamente, mais claro irá
parecer o caminho enfumaçado, e mais tranquilizador e mais convidativo irá parecer
em contraste com a luz fascinante da claridade total e do autoconhecimento. As visões
das deidades do bardo não são de fato diferentes dos fenômenos da vida diária; são o
samsara virado do avesso. Portanto, se instintivamente reagimos com agressividade a
qualquer coisa que não possamos controlar, o caminho de nossas tendências
agressivas habituais irá naturalmente se apresentar como o mais fácil de seguir.

As instruções apelam para que a consciência da pessoa falecida não olhe para o
caminho da luz suave e enfumaçada. “Se você for atraído por ela, irá cair em direção
ao inferno e afundar no pântano lamacento de sofrimento insuportável, do qual não
existe jamais nenhuma saída.” Em vez disso, a pessoa deveria despertar intensa
devoção em relação à luz branca brilhante.

Ao fazê-lo, ela se dissolve no coração de Vajrasattva e atinge a iluminação no


sambhogakaya em seu Reino de Alegria Manifesta. O verso para o segundo dia é este:

251
Quando, por causa de intensa agressão, vago no samsara,
No caminho luminoso do conhecimento do espelho
Possa o abençoado Vajrasattva ir à minha frente,
Grande mãe Buda-Lochana atrás de mim,
Livra-me da passagem perigosa do bardo
E leva-me ao estado desperto perfeito.

Agora podemos ver mais claramente como esses “dias” nos apresentam uma
sucessão de visões da vida à luz das cinco famílias. Todas as famílias são completas em
si, portanto nada é deixado de fora. Não é que apenas os aspectos Vajra da experiência
estejam presentes no segundo dia, enquanto todo o resto é eliminado da descrição,
mas mais como se naquele momento víssemos todo o nosso mundo através dos
aspectos de Vajra. Tudo está impregnado com o brilho, a clareza e a precisão do modo
Vajra de percepção. Os objetos dos sentidos, originando-se do skandha da forma, são
claros como cristal e vívidos, aparecendo como na nova luz da alvorada. A mente é
aguçada e clara, com a inteligência de Vajra assemelhada ao diamante. Ao mesmo
tempo, existe um senso de firmeza e solidez que vem da natureza de Akshobhya,
ampliada pelas qualidades da terra de Lochana. Existe também a atividade compassiva
dos bodhisattvas e a transmutação da forma e da visão pelos devas. Todos eles
existem de forma inerente dentro de nós. Estão continuamente sendo manifestados
como a atividade de nossa própria mente. De momento a momento, temos a escolha
de ou aceitar o mundo de nossa forma inconsciente habitual, influenciados por
tendências habituais para a negatividade e a agressividade, ou de despertar e ver este
mundo de forma renovada, através da visão desperta do Buda-Lochana.

O TERCEIRO DIA

Se a pessoa nem sequer reparou na visão da família Vajra, ou se estava com


medo e fugiu dela, então os aspectos Ratna da sua própria natureza irão aparecer em
seguida, de modo a transmutar os véus obscuros do orgulho que fazem com que a
pessoa continue através da jornada do bardo.

Ó filho de família desperta, escute sem distração. No terceiro dia, a luz


amarela do elemento purificado da terra irá brilhar. Então, o abençoado
Ratnasambhava irá aparecer à sua frente vindo do Glorioso Reino amarelo

252
do sul. Seu corpo é amarelo na cor e ele segura uma joia realizadora de
desejos em sua mão. Ele está sentado em um trono de excelentes cavalos,
abraçando a mãe Mamaki. Os dois bodhisattvas masculinos, Akashagarbha
e Samantabhadra, e as duas bodhisattvas femininas, Mala e Dhupa, os
rodeiam. Portanto, seis imagens do estado desperto irão aparecer vindas
do espaço de arco-íris, raios e luz. A luz amarela do skandha do sentimento
em sua pureza básica, o conhecimento equalizador, amarelo brilhante,
enfeitado com esferas de luz, tão claras e brilhantes que os olhos não
conseguem tolerar, virão em sua direção do coração de Ratnasambhava
em união com sua consorte, e penetrarão no seu coração de tal forma que
seus olhos não conseguirão olhar para ela. Ao mesmo tempo, a suave luz
azul do reino humano irá também perfurar seu coração, lado a lado com a
luz do conhecimento.

Dentro da esfera de luz amarela do elemento terra, as deidades da família Ratna


aparecem. Mamaki, a essência da água, é a mãe da família, complementando a terra
de Ratnasambhava, o pai. Ela fornece o elemento de fertilidade que possibilita à terra
ser produtiva. Seus corpos são dourados, e cada um segura um sino e uma joia, a
pedra dos desejos que realiza todos os desejos.

Seu trono é apoiado por cavalos. Na antiga Índia, cavalos eram a propriedade
mais estimada da casta regente e da casta guerreira, portanto sua presença contribui
para a atmosfera geral de orgulho, riqueza e nobreza que caracteriza a família Ratna. O
cavalo representa a realização das quatro bases da habilidade miraculosa, que são
como as suas quatro pernas, com sua velocidade e resistência mágicas.

Na direita está Samantabhadra, Bondade Universal. Como um bodhisattva, ele é


diferente do buda primordial Samantabhadra. É amarelo-topázio; segura um sino e
uma espiga de milho, simbolizando a fertilidade; e representa a consciência do olfato.
É conhecido por sua generosidade em fazer vastas oferendas a todos os budas através
do espaço e do tempo. Aqui ele personifica particularmente a bondade da terra, com
seu senso de infinita abundância, confiança e estabilidade.

Na esquerda está Akashagarbha, Essência do Espaço. É de uma rica cor dourada,


segurando um sino e uma espada. Uma espada sempre transmite a ação da sabedoria
compassiva cortando através da confusão. Sua presença sugere o espaço que circunda
a terra, no qual tudo pode crescer e se mover; ele é a extensão do céu que a terra
necessita para exibir suas qualidades e para equilibrar sua própria solidez. Representa
a consciência do paladar.

253
À frente está Mala, Guirlanda. É de um amarelo-açafrão, segurando uma
guirlanda e um sino. Com gestos graciosos, oferece suas guirlandas, tecida com flores
da terra, como adornos para os budas. Representa os conceitos de todos os
fenômenos, os objetos da consciência mental.

Atrás está Dhupa, Incenso. É de uma cor amarela, como a joia simbólica da
família Ratna. Personifica os objetos do sentido do olfato, e segura uma tigela de
incenso com a qual oferece o desfrute do aroma. A fragrância do seu incenso permeia
a atmosfera, enchendo todo o ambiente com bondade e frescor.

O conhecimento equalizador brilha a partir do coração de Ratnasambhava como


um raio de luz amarela brilhante. Pelo fato de Mamaki ser a essência do elemento
água, o skandha do sentimento que acompanha a água é agora associado com a
família Ratna. Sentimento é a raiz de todas as sensações—agradáveis, desagradáveis
ou neutras—que por seu turno leva às emoções de atração, aversão e indiferença.
Quando o skandha do sentimento é purificado, isso não quer dizer que as distinções
entre as sensações desapareçam ou que cessemos de experimentar emoções, mas que
não somos mais escravizados por elas. O conhecimento equalizador da semelhança
liberta-nos para apreciar o sabor único, essencial, que se encontra no coração de toda
a experiência.

O mundo Ratna é permeado por uma atmosfera de riqueza, prazer e


positividade. A terra pura de Ratnasambhava é chamada de o Reino Glorioso por causa
de todas as qualidades da iluminação gloriosas, semelhantes a joias, que são
manifestadas através dele. O conhecimento equalizador perfura nosso coração com
seu deslumbrante raio de luz amarela, incitando-nos a despertar para aquele estado.
As instruções advertem-nos para não ter medo da luz brilhante.

Repouse sua consciência sobre ela, relaxada no estado livre de atividade,


ou deixe-se ser atraído para ela com saudade. Se reconhecê-la como a
irradiação natural de sua própria consciência, mesmo que não sinta
devoção ou saudade e não diga a prece-aspiração, todos os raios de luz e
as formas das deidades irão se dissolver em você inseparavelmente, e você
atingirá a iluminação.

Mas as qualidades Ratna podem ser distorcidas e virar o veneno do orgulho.


Orgulho é uma outra maneira de olhar a vida, um outro caminho. Ele entra no seu
coração como uma luz azul suave que leva ao reino humano:

254
Este é o caminho convidativo da luz das impressões kármicas acumuladas
pelo seu intenso orgulho. Se for atraído por ela, irá cair no reino humano e
experimentar nascimento, velhice, morte e sofrimento, e nunca escapará
do pântano lamacento do samsara. É um obstáculo que bloqueia o
caminho da liberação, portanto não olhe para ele, mas abandone o
orgulho.

O verso para o terceiro dia é o que se segue:

Quando, por causa de imenso orgulho, vago no samsara,


No caminho luminoso do conhecimento equalizador
Possa o abençoado Ratnasambhava ir à minha frente,
Grande mãe Mamaki atrás de mim,
Livra-me da passagem perigosa do bardo
E leva-me ao estado desperto perfeito.

Ao estimular a fé genuína e a confiança na realidade de nossa natureza desperta,


conforme expressa através das características Ratna, podemos nos dissolver no
coração de Ratnasambhava e atingir a iluminação em seu Reino Glorioso.

O QUARTO DIA

O texto nos assegura que a liberação é certa quando entramos neste caminho,
mas pode haver aqueles que ainda são incapazes de reconhecê-lo por causa dos
efeitos maléficos de suas ações passadas. Em seguida, a família Padma irá aparecer,
porque desejo e paixão impedem-nos de enxergar a verdadeira natureza de nossa
mente.

Ó filho de família desperta, escute sem distração. No quarto dia, a luz


vermelha do elemento purificado do fogo irá brilhar. Então o abençoado
Amitabha irá aparecer à sua frente vindo do Reino Bem-Aventurado
vermelho do oeste. Seu corpo é vermelho na cor, e ele segura um lótus em
sua mão. Está sentado em um trono de pavão abraçando a mãe
Pandaravasini. Os dois bodhisattvas masculinos, Avalokiteshvara e
Manjushri, e as duas bodhisattvas femininas, Gita e Aloka, os rodeiam.
Portanto, seis imagens do estado desperto irão aparecer vindas do espaço

255
da luz do arco-íris. A luz vermelha do skandha da perfeição em sua pureza
básica, o conhecimento investigador, vermelho brilhante, ornamentado
com esferas de luz, claro e brilhante, nítido e fascinante, irá penetrar direto
em seu coração vindo do coração de Amitabha em união com sua consorte,
de tal forma que seus olhos não a suportarão. Não tenha medo dela. Ao
mesmo tempo, a suave luz amarela dos fantasmas famintos também irá
brilhar, lado a lado com a luz do conhecimento. Não desfrute dela,
abandone o desejo e o anseio.

A família Padma de Amitabha aparece do elemento fogo. Tudo que esteja ligado
com essa família expressa a transmutação da paixão, a raiz do samsara, em compaixão,
a atividade da iluminação. O fogo simboliza a ambos e é a força transmutadora que
transforma um no outro. Amitabha é de cor cobre, enquanto Pandaravasini é como um
cristal de fogo. Sua vestimenta branca, de onde ela tira seu nome, é tecida de um
material limpo pelo fogo. Eles seguram sinos e lótus vermelhos em suas mãos. O lótus
cresce com suas raízes cravadas na lama e no lodo, mas sua flor surge acima da água
imaculada e impoluta; ele se alimenta do rico adubo dos venenos e os transmuta em
iluminação.

O trono de Amitabha é apoiado por pavões, que têm a reputação de comer


veneno, consumindo-o e transformando-o nas cores brilhantes das penas de sua
cauda. Eles representam a posse dos dez poderes, para desempenhar várias ações
milagrosas. A cauda do pavão é um exemplo supremo de beleza e magnificência
exibido para sedução e luxúria, portanto sentar sobre um pavão representa a
superação dos aspectos negativos da personalidade Padma. A pessoa desperta utiliza
esses grandes poderes de atração para atrair os outros para a verdade, em vez de
seduzi-los para fins egoístas. Tanto o lótus quanto o pavão expressam a abertura
incondicional da compaixão, sua habilidade para absorver e se alimentar de lixo e
veneno, acolhendo qualquer situação, por mais negativa que possa ser.

Ao lado do casal central está Avalokiteshvara, o Senhor que Olha para Baixo.
Embora todos os bodhisattvas incorporem a atividade compassiva, ele é o princípio da
compaixão. Onde quer que encontremos amor espontâneo e altruísta entre seres
viventes, teremos uma manifestação de Avalokiteshvara. É de cor coral, segurando um
sino e um lótus vermelho, a flor da compaixão. Representa a consciência corporal, o
sentido do tato.

À esquerda está Manjushri, Glória Gentil, que é conhecido como o bodhisattva


da sabedoria. Ele incorpora o aspecto intelectual da compaixão, e a intuição do vazio,
que sozinha faz com que a genuína compaixão seja possível: a compreensão de que

256
ajudar os outros e ser ajudado são ilusão, porque todos os seres já estão despertos na
esfera da verdade última. É de cor escarlate, segurando um sino em sua mão esquerda.
Em sua mão direita, As cem homenagens afirmam que ele segura um lótus, enquanto
A prática do dharma dá a ele uma espada: esse é seu atributo habitual, a espada da
sabedoria que corta através dos nós da confusão e da dúvida, mas os dois são
frequentemente combinados, como uma espada apoiada sobre um lótus. Ele
representa a consciência mental.

À sua frente está Gita, Canção. É da cor da flor do hibisco vermelho. Toca um
instrumento de cordas, que originalmente teria sido o instrumento indiano vina, mas
nas pinturas tibetanas se parece mais com um violão. O violão parece ser uma imagem
apropriada para usar no Ocidente. Ela toca nele para acompanhar suas canções de
oferendas para os budas, representando os objetos do sentido da audição.

Atrás está Aloka, Luz. É da cor de um lótus vermelho, e segura uma lâmpada de
brilho forte, oferecendo luz para todos os budas. Ela purifica o conceito do futuro e
todos os pensamentos, planos, esperanças e medos relacionados a ele.

A fascinante luz vermelha que flui do coração de Amitabha e de Pandaravasini é


a luz do skandha da percepção transmutada em conhecimento investigador. A
percepção liga sujeito e objeto, mas no estado comum a distinção dualista entre eles
sempre permanece e dá início às reações emocionais. O conhecimento investigador
transcende a dualidade e vê as coisas como elas realmente são, individuais porém
indivisas. Ele olha com o olho do amor para todos os seres viventes e todos os objetos
inanimados, distinguindo-os e apreciando suas diferentes qualidades.

A fim de se dissolver na irradiação do coração de Amitabha, precisamos


abandonar a cobiça e o apego. Se não pudermos fazer isso, se acharmos a luz muito
aguda e penetrante, em vez disso seremos atraídos para a suave luz amarela.
Recairemos em nossas maneiras habituais de desejo, ganância e paixão. Mas o
samsara é impermanente e insatisfatório, portanto nunca poderemos realmente estar
satisfeitos e realizados dentro dele. Se seguirmos aquele caminho, finalmente
acabaremos no reino dos fantasmas famintos, o mundo do desejo perpetuamente
frustrado. “Aquele é o caminho da luz das impressões kármicas acumuladas por sua
intensa paixão. Se você for atraído para ele, cairá no reino dos fantasmas famintos e
experimentará sofrimento insuportável de fome e sede.”

Para evitar recair na hábito da ganância e para estimular as qualidades despertas


da família Padma dentro de nós, durante o bardo, devemos nos lembrar deste verso:

Quando, por causa de intensa paixão, vago no samsara


No caminho luminoso do conhecimento investigador

257
Possa o abençoado Amitabha ir à minha frente,
Grande mãe Pandaravasini atrás de mim,
Livra-me da passagem perigosa do bardo
E leva-me ao perfeito estado desperto.

Ao se permitir entrar na luz radiante da presença de Amitabha, tornamo-nos


despertos em Sukhavati, o Reino Bem-Aventurado, a terra pura que ele estabeleceu
como a expressão viva de seus votos de liberar todos os seres. Esse é o campo de
experiência no qual a suprema bem-aventurança é inseparável da consciência do
vazio. Se não atingirmos a plena iluminação, poderemos renascer lá para continuar
nosso progresso no caminho. Diz-se que para alcançar as outras terras puras, a pessoa
precisa ter fortes conexões kármicas com eles ou ter desempenhado práticas
especiais. Mas, por causa da compaixão de Amitabha, Sukhavati está acessível a todos
os que têm fé nele. Isso quer dizer que a visão das deidades Padma seja talvez a única
que muitas pessoas terão no bardo — se de fato elas conseguirem ver qualquer coisa
que seja. É uma experiência da atmosfera e da presença do amor absoluto, embora
possa ser muito intensa de se suportar.

O QUINTO DIA

Se formos incapazes de reagir à visão de Padma, então todas as nossas


tendências ao ciúme e à inveja virão para o primeiro plano, e nós “vagaremos para
baixo em direção ao quinto dia do bardo”, quando a família Karma se manifesta.

Ó filho de família desperta, escute sem distração. No quinto dia, a luz verde
do elemento do ar purificado irá brilhar. Então, o abençoado
Amoghasiddhi, o senhor acompanhado por seu círculo, irá aparecer à sua
frente vindo do Reino das Ações Acumuladas verde do norte. Seu corpo é
verde na cor, e ele segura um vajra duplo em sua mão. Está sentado em um
trono de pássaros kinnara voando pelo céu, abraçando a mãe Samaya-
Tara. Os dois bodhisattvas masculinos, Vajrapani
Sarvanivaranavishkambhin, e as duas bodhisattvas femininas, Gandha e
Naivedya, os rodeiam. Portanto, seis imagens do estado desperto
aparecerão vindas do espaço da luz do arco-íris. A luz verde do skandha do
condicionamento em sua pureza básica, o conhecimento executor das
ações, verde brilhante, claro e refulgente, vivo e aterrorizante,

258
ornamentado com esferas de luz, irá penetrar direto em seu coração vindo
do coração de Amoghasiddhi em união com sua consorte, de tal forma que
seus olhos não podem suportar olhar para ele. É a energia criativa natural
do conhecimento originando-se de sua própria consciência, portanto
permaneça sem ação no supremo estado de equanimidade no qual não
existe nem perto nem distante, nem amor nem ódio, e você não terá medo
dele. Ao mesmo tempo, a luz vermelha suave dos deuses ciumentos,
causada pela inveja, irá também brilhar sobre você, junto com a luz do
conhecimento. Medite, de tal forma que não sinta atração nem aversão
por ela. Mas, se sua mente for fraca, então simplesmente não desfrute
dela.

Da luz verde do elemento ar, a família Karma aparece em último das cinco. Ela
representa a atividade perfeita; incorpora a energia ou habilidade que executa e põe
em ação as qualidades de todas as famílias. A mãe da família e consorte de
Amoghasiddhi é Tara, a mais amada de todas as deidades femininas. É a personificação
feminina da ação compassiva. Primeiramente é a essência do elemento ar, embora
tenha muitas formas diferentes e possa aparecer em qualquer das cinco famílias. Aqui
ela é nomeada especificamente Samaya-Tara para marcar seu relacionamento com a
família Karma ou Samaya. Amoghasiddhi é turquesa, enquanto Samaya-Tara é da cor
de uma esmeralda. Eles seguram sinos e vajras duplos: vajras na forma de uma cruz,
simbolizando atividade que não pode ser obstruída em todas as quatro direções.

Seu trono é carregado no ar por kinnaras, criaturas que são metade pássaro e
metade humano. Na mitologia indiana, kinnaras são músicos celestiais semelhantes
aos gandharvas, algumas vezes aparecendo como metade pássaro e outras como
metade cavalo. Aqui eles representam a execução das quatro atividades indestrutíveis,
e demonstram a energia e a velocidade da família Karma, viajando instantaneamente
através do espaço. Em pinturas, eles têm faces, corpos e braços humanos com pés,
asas e caudas de pássaro; dois ou quatro deles estão colocados sob o trono, tocando
uma variedade de instrumentos musicais tais como de cordas, flautas e címbalos93. Em
seu comentário, Trungpa Rinpoche descreve esse pássaro, chamado shang-shang em
tibetano, como um tipo de garuda. O trono de Amoghasiddhi é algumas vezes
considerado apoiado por garudas, embora kinnaras sejam vistos com mais frequência.
Garudas comem serpentes e têm uma aparência muito feroz, com chifres, garras e
bicos de ferro. São descritos no Capítulo Quatorze, em uma mandala na qual apoiam o
trono das deidades coléricas.

93
Estas estranhas criaturas podem ser vistas claramente em muitas pinturas tibetanas antigas. Por
exemplo, ver Steven M. Kossak e Jane Casey Singer, Sacred Visions, Nova York, The Metropolitan
Museum of Art, 1998, Ilustrações 4, 23c, 25 e 36c, esta última também mostrando um garuda sobre a
cabeça de Amoghasiddhi.

259
À direta do casal está Sarvanivaranavishkambhin, Removedor de Todos os
Obstáculos. É verde, segurando um sino na mão esquerda e um livro na direita. O livro
representa o ensino do dharma, que mostra como superar todas as dificuldades e
obstáculos à liberação. Ele personifica a consciência original.

À esquerda está Vajrapani, Aquele que Traz um Vajra em sua Mão. É de cor
esmeralda, segurando um sino e um vajra. Como seu nome sugere, ele normalmente
pertence à família Vajra, e é mais comum ser visto como uma deidade protetora
colérica. Aqui, o seu Vajra simboliza energia e atividade, portanto ele está igualmente
confortável na família Karma. Representa a consciência mental afligida, ou mente
nublada. Mesmo este aspecto da consciência é pura em seu estado natural e não
precisa ser rejeitado.

À frente está Gandha, Fragrância. Ela é descrita tanto como sendo verde quanto
da cor do lótus azul. Segura um búzio cheio de perfume extraído de essências
preciosas para untar o corpo dos budas. Em geral, a oferenda de perfumes simboliza o
sentido do tato, porque óleos e cremes perfumados sempre foram usados na Índia
para massagem e para aliviar a pele no calor. Mas aqui o tato está ausente da lista, e
se diz que Gandha purifica os pensamentos do momento presente.

A última bodhisattva feminina pode ser ou Naivedya, Oferente de Alimento, ou


Nritya, Dança. Ambas aparecem com frequência em listas semelhantes de oito deusas.
Os textos tibetanos disponíveis para mim têm versões truncadas dos nomes sânscritos,
que se parecem mais com Nritya, mas em termos de iconografia é claro que ela
corresponde a Naivedya94. É de um verde-marinho e segura um recipiente de comida
deliciosa contendo o elixir da vida, oferecendo os objetos do sentido do paladar aos
budas. Ao compreender seu vazio essencial, o desfrute do paladar é purificado em
consciência, e a comida se torna não apenas o combustível para o corpo perecível, mas
alimento para a mente desperta.

O skandha do condicionamento, que leva a todas as nossas ações mundanas e à


corrente de causa e efeito kármicos, é na sua natureza pura o conhecimento executor
das ações, que desempenha espontaneamente o trabalho de iluminação. Ele refulge a
partir do coração de Amoghasiddhi e Tara como um raio verde brilhante. Agora que
atingimos o quinto dia do bardo, as instruções tornam-se ainda mais insistentes,
lembrando-nos de não temer, não resistir, nem pensar nas visões como se fossem
separadas de nós mesmos. Nossas tendências para o ciúme, inveja e suspeita farão
com que nos sintamos ameaçados e nos atrairão para o raio de suave luz vermelha.
“Esse é o caminho convidativo do karma acumulado por sua intensa inveja. Se você for
atraído por ele, cairá no reino dos deuses ciumentos e experimentará tormento
insuportável de brigar e discutir.” Deveríamos tentar atingir um estado de
94
No texto terma associado a Liberação através da vestimenta, ela é mencionada como zhal zas ma, a
forma tibetana de Naivedya, embora seu mantra contenha nritye.

260
equanimidade, no qual não sintamos nem medo da luz brilhante nem atração pela luz
suave, mas se isso for muito difícil deveríamos pelo menos tentar não desfrutar do
caminho de nossas reações habituais, e portanto evitar de ser sugado para dentro dele
completamente.

Este é o verso para o quinto dia:

Quando, por causa de intensa inveja, vago no samsara,


No caminho luminoso do conhecimento executor das ações
Possa o abençoado Amoghasiddhi ir à minha frente,
Grande mãe Samaya-Tara atrás de mim,
Livra-me da passagem perigosa do bardo
E leva-me ao perfeito estado desperto.

Se formos capazes de responder à aparição das deidades Karma e nos


dissolvermos em seus corações, nos tornaremos despertos no nível do sambhogakaya
em sua terra pura, aqui dado o nome alternativo de Reino das Ações Perfeitas. Esse é o
campo no qual todas as atividades indestrutíveis que liberam seres conscientes são
executadas espontaneamente, onde tudo já é perfeito.

O SEXTO DIA

Se a pessoa falecida não foi capaz de fazer uma conexão com nenhuma das cinco
famílias individualmente, no sexto dia todas elas irão aparecer ao mesmo tempo.

Ó filho de família desperta, escute sem distração. Embora as visões de cada


uma das cinco famílias tenham sido mostradas a você conforme elas
apareceram até ontem, você foi tomado por um pânico sob a influência de
impressões kármicas negativas, e assim, permaneceu aqui até agora. Se
tivesse reconhecido a irradiação interior do conhecimento daquelas cinco
famílias como sua própria auto-exibição, teria se dissolvido em luz do arco-
íris no corpo de uma das cinco famílias, e com isso, teria se tornado
desperto no sambhogakaya. Mas como não a reconheceu tem estado
vagando aqui até o presente momento. Portanto, hoje observe sem
distração. Agora, a visão das cinco famílias completas e aquilo que é
chamado de a visão dos quatro conhecimentos combinados virão convidá-
lo. Reconheça-os!

261
As deidades das cinco famílias aparecem exatamente como antes, cada uma em
seu próprio círculo de luz cercado por arco-íris das cinco cores, arranjados em uma
vasta mandala. Vairochana e a Rainha do Espaço estão no centro, Akshobhya-
Vajrasattva com Buda-Lochana e as outras deidades Vajra no leste, Ratnasambhava
com Mamaki e as deidades Ratna no sul, Amitabha com Pandaravasini e as deidades
Padma no oeste, e Amoghasiddhi com Samaya-Tara e as deidades Karma no norte. A
mandala possui quatro portais, cada um protegido por um par de guardiães masculinos
e femininos. Os budas dos seis reinos do samsara também aparecem, e sentados acima
de todos eles estão Samantabhadra e Samantabhadri, o pai e a mãe de todos os budas.
Isso compõe a mandala inteira das 42 deidades pacíficas.

Embora ela seja a mandala pacífica, os guardiães dos portais aparecem na forma
colérica para poderem desempenhar suas funções. Eles estão lá para proteger o
espaço sagrado da visão pura. Eles nos acordam e protegem nossa consciência das
influências negativas e da fuga para distrações de qualquer tipo. Estão cercados por
chamas, abraçando um ao outro em união sexual e pisoteando o cadáver do ego.

Existem diversos grupos de quatro que podem ser simbolicamente ligados a eles.
Em As cem homenagens, os guardiães masculinos são descritos como purificando as
quatro visões falsas, que não são tanto visões filosóficas, mas perspectivas instintivas
da vida que obstruem nosso entendimento e nossa prática do dharma. Primeiro, existe
a crença na permanência, no sentimento de que duramos para sempre. Segundo, há a
crença oposta na extinção, de que quando morremos não existe mais nada. Terceiro,
há a crença na existência do ego como uma essência permanente e independente. E
quarto, existe a crença nas características pelas quais as coisas podem ser definidas e
fixadas como permanentes e independentes. Em outros sistemas, essas visões são
algumas vezes associadas com as quatro guardiãs femininas.

Aqui, de acordo com As cem homenagens, as guardiãs femininas incorporam os


quatro estados imensuráveis da mente, também conhecidos como as quatro moradas
de Brahma. O primeiro é a compaixão, o desejo de que todos os seres sejam liberados
do sofrimento. O segundo é a amizade ou bondade amorosa, o desejo pela felicidade
de todos os seres. (Na prática da meditação, as duas estão normalmente em ordem
inversa.) O terceiro é a alegria, prazer altruísta na felicidade e nas boas qualidades dos
outros. E o quarto é a equanimidade, a liberdade de qualquer inclinação ao apego ou à
aversão desequilibrados.

Os guardiães do portal leste são o masculino Vijaya, Vitória, e a feminina


Ankusha, Anzol. Ambos possuem a cor branca da família Vajra. Vijaya segura um sino
em sua mão esquerda e um bastão na direita. Ele purifica a visão da permanência.

262
Trungpa Rinpoche relacionava os guardiães masculinos com as quatro atividades
iluminadas indestrutíveis, que são quatro estilos de liberação. Estes foram explicados
no capítulo sobre os elementos e também são muitas vezes associados com os devas e
as guardiãs femininas. Vijaya representa a atividade de pacificação, que vence
completamente a agressividade e acalma as negatividades da mente e do corpo. Ele
resume o que Trungpa Rinpoche chamou de paz invencível, a qualidade irresistível e
vitoriosa da paz do estado desperto. Ankusha segura um anzol de ferro para nos trazer
para perto. Nas palavras de Trungpa Rinpoche, a função do seu anzol é “capturá-lo
como um peixe se você tentar fugir”95. Representa a compaixão imensurável.

Guardando o portal sul estão Yamantaka, Destruidor da Morte, e Pasha, Laço,


ambos da cor amarela da família Ratna. Yamantaka segura um sino e um cajado
encimado por um crânio, e purifica a visão da extinção. Ele desempenha a atividade do
enriquecimento. Yama, o deus da morte, significa literalmente “restrição”, a limitação
derradeira de tudo o que desejamos. Ao pôr um fim à morte, Yamantaka destrói todas
as limitações e aumenta tanto a riqueza espiritual quanto a mundana. Pasha segura
um laço ou corda para nos amarrar. Trungpa Rinpoche, em seu comentário, pinta um
quadro maravilhoso de alguém tentando escapar inflando-se de orgulho (o veneno
Ratna), preenchendo todo o espaço da mandala, e então “a deusa com um laço amarra
você dos pés à cabeça, deixando-o sem nenhuma chance de se expandir”96.
Representa a bondade imensurável.

No portal oeste estão Hayagriva, Pescoço de Cavalo, e Shrinkhala, Corrente,


ambos da cor vermelha da família Padma. Hayagriva segura um sino e uma corrente de
ferro e purifica a visão da crença no ego. O som do sino convida e a corrente ata. Com
sua cabeça de cavalo, relincha alto para nos acordar e desempenha a atividade de
magnetizar, que atrai e subjuga através da energia da compaixão apaixonada. O que
quer que precisemos para concluir nossa prática é atraído para nós espontaneamente
e trazido sob nosso controle. Shrinkhala também segura uma corrente de ferro para
nos agrilhoar, se tentarmos fugir através da paixão. Representa o estado imensurável
da alegria solidária.

Finalmente, no portal norte estão Amritakundalin, Serpentina de Amrita, e


Gantha, Sino. São ambos verdes, pertencendo à família Karma. Amritakundalin segura
um sino e o vajra duplo da realização da ação desobstruída. Ele purifica a visão da
crença em características e desempenha a atividade da destruição, reprimindo sem
hesitação a negatividade quando ela passa dos limites. Amrita é o néctar da
imortalidade que não permite que escapemos cometendo suicídio. Se tentarmos nos
destruir por causa de desespero ou paranoia, Amritakundalin nos trará de volta à vida.

95
The Tibetan Book of Dead, pág. 23.
96
The Tibetan Book of Dead, p. 23.

263
Gantha segura um sino, que ela toca alto para silenciar nossos protestos e gritos de
medo. Representa o estado imensurável de equanimidade.

Juntos, esses oito guardiães dos portais nos mostram de maneira convincente
que não existe escapatória da natureza verdadeira de nossa mente, nosso estado
desperto inato. A mandala está preenchida com os princípios das cinco famílias,
abrangendo a pureza primordial de cada aspecto do nosso ser. Se formos incapazes de
reconhecê-la, e nos agarrarmos à ilusão do ego, não escapamos de verdade da luz
brilhante do conhecimento, apenas criamos um esconderijo temporário entre os
mundos de fantasia dos seis reinos do samsara. Mas mesmo lá não podemos
permanecer escondidos, porque os budas que vêm salvar seres conscientes nos seis
reinos estão também presentes nesta mandala. No mesmo contexto, os seis budas são
todos considerados manifestações da Avalokiteshvara, o Senhor da Compaixão. Aonde
quer que possamos ir, a compaixão da iluminação irá nos alcançar.

No reino dos deuses, Avalokiteshvara aparece como Indra Shatakratu, Indra dos
Cem Sacrifícios, o líder dos deuses no antigo panteão védico. Ele é branco e purifica o
veneno do orgulho. Toca o instrumento de cordas, encantando aqueles que estão
intoxicados com o prazer e ensinando a impermanência através da música do dharma.

No reino dos deuses ciumentos, ele aparece como Vemachitra, um herói de


armadura brilhante, um grande líder portando armas de guerra. É verde na cor e
purifica a inveja. Subjuga a energia agressiva, paranoica e a velocidade desse estado
mental por meio da força suave e invencível do verdadeiro guerreiro.

No reino humano, ele nasce como o Shakyamuni, o Buda histórico. Aqui na terra,
age como um peregrino sem lar, segurando uma cuia de esmolas e um cajado de
mendigo, ensinando através de seu exemplo de renúncia. É amarelo na cor e purifica a
paixão.

No reino animal, ele tem o nome de Dhruvasimha, Leão Inabalável, já que o leão
é o rei dos animais. É azul e purifica a ilusão. Traz com ele um livro para iluminar a
ignorância da mentalidade animal.

Entre os fantasmas famintos, ele aparece como um deles, poderoso e senhorial,


chamado Jvalamukha, Boca de Chama. É vermelho e purifica a ganância. Para
satisfazer o estado mental de fome insaciável, ele oferece comida divina em um prato
incrustado de joias.

Para aqueles que habitam o inferno, ele é Dharmaraja, o Rei do Dharma. É preto
na cor e purifica a agressividade. Carrega vasos de água refrescante e de fogo
abrasador para libertar os seres conscientes além do sofrimento dos infernos quente e
gelado.

264
Acima de todos eles está o princípio da bondade universal, Samantabhadra e
Samantabhadri em união. Toda a exibição do estado desperto está aberta à nossa
frente. As instruções nos lembram mais uma vez a sua real natureza:

As 42 deidades sambhogakaya emergirão novamente de dentro do seu


próprio coração e aparecerão à sua frente. Elas surgem como sua própria
auto-exibição, portanto reconheça-as. Ó filho de família desperta, aqueles
reinos não existem em nenhum outro lugar, mas habitam no centro e nas
quatro direções de seu coração, e aparecem à sua frente. Nem essas
imagens vêm de nenhum outro lugar, mas elas também existem desde o
início como a energia natural de sua consciência, portanto reconheça-as
dessa maneira.

A culminação do sexto dia é “a visão dos quatro conhecimentos combinados”. Os


raios de luz que se estendem do coração dos budas até nossos próprios corações se
espalham em tecidos luminosos de brilho estonteante, “muito finos e claros, como
teias de raios de sol agrupados”. Em seguida, sobre esse tecido de luz, bindus
faiscantes emergem; eles são discos ou esferas, parecendo-se com tigelas de joias
voltadas para baixo para nos intimidar do alto. Desta vez, as primeiras duas cores são
invertidas. Sobre o tecido branco do conhecimento todo abrangente aparecem esferas
como espelhos inclinados; sobre o tecido azul do conhecimento do espelho aparecem
esferas como tigelas turquesa viradas para baixo; sobre o tecido amarelo do
conhecimento equalizador aparecem esferas como tigelas douradas; e sobre o tecido
vermelho do conhecimento investigador estão as esferas como tigelas de cor coral.
Dentro de cada uma, existem cinco esferas semelhantes, mais cinco dentro de cada
uma e assim por diante, tornando-se menores e menores, de tal forma que parece que
estamos olhando para a infinita profundidade do espaço. Somos atraídos para esses
lagos de luz, perdendo todo o senso de ponto de referência, de tal forma que não
existe centro nem periferia.

A aparição dessas quatro luzes significa que temos o potencial para manifestar
todas as qualidades do conhecimento primordial. Mas, porque sua manifestação ainda
não foi plenamente realizada, a luz verde do conhecimento executor das ações não
brilha junto com as outras. O quinto aspecto do conhecimento é a realização efetiva
dos outros quatro. É chamado de a energia criativa do conhecimento, indicando a
potência e a habilidade de expressar o estado desperto plena e completamente.

265
Ó filho de família desperta; estas também se originaram da energia criativa
de sua consciência, não vieram de nenhum outro lugar. Portanto, não
fiquem apegados a elas e não as temam, mas permaneçam relaxados em
um estado livre de pensamentos. Nesse estado, todas as imagens e raios
de luz se dissolverão em você, e você se tornará iluminado. Ó filho de
família desperta, a luz verde do conhecimento executor das ações não
aparece, porque a energia criativa do conhecimento de sua consciência
não é perfeita.

A experiência dessas visões é chamada de o caminho interior ou passagem


Vajrasattva, que é o nosso ser vajra mais profundo e indestrutível. Essa é a
oportunidade final de se fundir com as deidades em sua forma pacífica, Nesse
momento, deveríamos tentar nos lembrar das instruções anteriores de nosso guru e
de nossa experiência inicial dos raios brilhantes de luz, que foram mostrados com
sendo nossa própria auto-exibição, originando-se de nossa própria consciência. Se
tivermos confiança, seremos capazes de reconhecê-los — tal como em um encontro de
velhos amigos ou de uma mãe com seu filho —, e se dissolver na luz e nas imagens
para se tornar desperto no sambhogakaya.

Ao mesmo tempo, os raios de luz suaves e foscos que levam aos seis reinos do
samsara, incluindo o dos animais, que não havia aparecido antes, brilharão juntos. São
a luz branca do reino dos deuses, a luz vermelha do reino dos deuses ciumentos, a luz
azul do reino humano, a luz verde do reino animal, a luz amarela do reino dos
fantasmas famintos e a luz enfumaçada do reino do inferno. Se formos atraídos para
qualquer uma delas, nasceremos ali. Para evitar isso, deveríamos nos lembrar da
prece-aspiração:

Quando, por causa dos cinco venenos, vago no samsara,


No caminho luminoso dos quatro conhecimentos combinados
Possam os seres vitoriosos das cinco famílias irem à minha frente,
As grandes mães das cinco famílias atrás de mim,
Salvem-me dos caminhos de luz dos seis reinos impuros,
Livrem-me da passagem perigosa do bardo
E levem-me ao estado desperto perfeito.

Por meio da inspiração desse verso, os melhores praticantes reconhecerão suas


próprias auto-exibições e se fundirão com os budas, aqueles de habilidades medianas

266
serão liberados pelo poder da devoção intensa, e aqueles de menor inteligência
atingirão a iluminação através da passagem de Vajrasattva.

267
Capítulo Treze

Louca Sabedoria

DEPOIS QUE AS DEIDADES PACÍFICAS se dissolveram de volta no vazio luminoso,


elas emergem outra vez em uma nova forma: como os cinco vidyadharas com suas
consortes, as cinco dakinis. Elas não são realmente nem pacíficas nem coléricas,
portanto não são incluídas entre as cem deidades pacíficas e coléricas, e não são
descritas em As cem homenagens. São em geral retratadas em pinturas da mandala do
bardo completa (ver Figura 4, em que são mostradas diretamente abaixo do círculo
central), mas quando as mandalas pacíficas e coléricas são pintadas separadamente
podem aparecer em qualquer uma das duas, se dividir entre as duas ou mesmo ser
simplesmente deixadas de fora.97

Os vidyadharas são conectados com a fala e residem na garganta, emergindo


dela para aparecer à nossa frente, assim como as deidades emergiram do coração. Eles
são a energia expressiva e comunicativa do estado desperto. Já que fomos muito
esquecidos ou muito assustados para reagir às deidades em suas manifestações
pacíficas, elas agora exibem um aspecto diferente, cantando e dançando para atrair
nossa atenção, nos convidando e nos seduzindo ao despertar. Eles e suas parceiras
dakini são poderosos, apaixonados e extáticos, entrelaçados em união, dançando nus
no céu (ver Figura 5).

Vidyadhara significa um detentor de vidya, conhecimento espiritual, que tenho


traduzido como “consciência”. Seu significado é discutido no Capítulo Dez, e todas as
várias implicações mencionadas aqui são relevantes para os vidyadharas. Na mitologia
indiana, os vidyadharas eram seres celestiais poderosos e mágicos, frequentemente
representados como tendo asas e voando pelo ar. O termo pode também se referir a
seres humanos altamente realizados, tais como grandes mestres e siddhas: yogues e
yoguines consumados que adquiriram poderes paranormais. Eles possuem o vidya da
suprema consciência, a experiência direta e a presença da natureza última da mente,
mas também manifestam vidya em seu sentido relativo. São mestres em todo o tipo
de aprendizado e habilidade no mais alto grau, que exibem como expressão de sua

97
Para ver um par de thangkas mostrando as deidades pacíficas e coléricas, no qual os vidyadharas
estão divididos entre elas, ver W. Essen e T. Thingo, Die Götter des Himalaya, Munique, Prestel-Verlag,
1989, Vol. 1, Ilustrações 119 e 120. Para um exemplo em que elas estão incluídas entre as deidades
coléricas, ver Detlef Ingo Lauf, Tibetan Sacred Art, Berkeley, Shambhala, 1976, Ilustração 6.

268
realização e seu método de ensino. Eles são cientistas, artistas, guerreiros e amantes,
mas acima de tudo são mágicos. Vidya é particularmente associado com o
conhecimento de mantra: som como o poder comunicativo e criativo do estado
desperto; os vidyadharas são mestres do mantra. Trungpa Rinpoche diz em seu
comentário: “Eles representam a forma divina do guru tântrico, possuindo poder sobre
os aspectos mágicos do universo.”98

Dakini, como deva, é um termo que cobre todo o espectro do princípio


feminino99. Pode ser usado para budas e bodhisattvas femininos, assim como para as
que são chamadas de dakinis mundanas, tais como deidades locais que ainda
necessitam da orientação de yogues poderosos como Guru Rinpoche, que é conhecido
como “o domador de dakinis”. Pode também se referir a mulheres que sejam
praticantes avançadas e consortes espirituais. Usar o nome dakini em vez de deva
ressalta uma qualidade especial do princípio feminino. Na mitologia indiana, dakinis
são bruxas, sejam humanas ou de outro mundo; são ferozes e muitas vezes maliciosas,
comedoras de carne crua e bebedoras de sangue. No vajrayana, sua natureza
samsárica é transformada em um instrumento de sabedoria e compaixão. O aspecto
feroz, apaixonado, da energia que elas personificam é reconhecido como um elemento
vital no caminho do despertar e uma expressão da realização iluminada. A etimologia
tradicional da palavra dakini se origina do significado raiz “voar”, e a tradução tibetana,
khandro ou khandroma, significa “indo para o céu”. Elas dançam na amplidão do
espaço, exultando-se na alegria e na liberdade da experiência do altruísmo.

Dakinis trazem consigo uma atmosfera de poder, magia e perigo — a magia e o


poder da transmutação, o perigo de se abandonar no espaço. Incorporam todo o
mistério de maya, “ilusão”, porque o princípio feminino é a verdade última do vazio, e
mesmo assim é também a verdade relativa dos cinco elementos e dos campos dos
sentidos. Se formos engolidos pela ilusão, as dakinis irão aparecer como trapaceiras —
brincalhonas, enganosas e possivelmente nocivas; mas se olharmos para além de suas
fachadas elas nos guiarão até a iluminação. São ao mesmo tempo criativas e
destrutivas. Estão continuamente nos trazendo mensagens, fornecendo lembretes,
mostrando nossos erros, nos inspirando, nos convidando para que nos juntemos à sua
dança. São chamadas de a raiz das quatro atividades, porque são a fonte da inspiração
e da energia necessárias para as ações iluminadas. São as guardiãs dos ensinamentos
secretos, cujo real significado é “auto-secreto”, escondidos de nós até que estejamos
prontos para entendê-los, ao ouvir a voz das dakinis dentro de nós.

Os vidyadharas e as dakinis parecem expressar de uma maneira muito especial o


espírito do caminho vajrayana. Eles se comunicam através da linguagem do

98
The Tibetan Book of Dead, p. 24.
99
Um livro excelente sobre o princípio dakini é o de Judith Simmer-Brown, Dakini’s Warm Breath,
Boston, Shambhala, 2001.

269
simbolismo, que é tão importante para a compreensão de Liberação através da
audição. Existem dois aspectos do simbolismo no vajrayana, a iconografia das deidades
e o simbolismo natural da vida diária, que estão intimamente ligados. Agora que já
exploramos um pouco das imagens tradicionais associadas com as deidades pacíficas, a
visão dos vidyadharas nos dá uma boa oportunidade de olhar mais de perto o
significado e a função desse simbolismo.

Não é um simbolismo no seu sentido mais comum, no qual uma coisa representa
outra, normalmente um conceito abstrato. Aqui, como disse Trungpa Rinpoche, “a
própria coisa é seu próprio símbolo”100. Ele estava falando do nível de realização do
mahamudra, que traduziu como “o grande símbolo”, mas suas palavras se aplicam a
todo o simbolismo tântrico. Tem a ver com a percepção direta, ver as coisas como elas
de fato são. Dharma não é uma teoria ou um sistema de crenças imposto à realidade,
portanto não precisamos de símbolos para apontar para alguma outra coisa. Dharma é
a descoberta do significado inerente no mundo assim como ele é; tudo já revela a
mensagem do Buda. De acordo com Trungpa Rinpoche: “O universo está
constantemente tentando nos alcançar para dizer ou ensinar alguma coisa, mas nós o
estamos rejeitando o tempo todo.”101 Somente precisamos abrir nossos olhos e
mentes, e o caminho para fazer isso é através da meditação. O que não significa
necessariamente meditação sobre as deidades, que vem mais tarde, mas primeiro e
mais importante a meditação do abandono, que nos permite experimentar nosso
mundo mais completamente, com maior claridade e precisão.

Mesmo sem a ajuda de um caminho meditativo, o simbolismo natural da vida


diária se revela espontaneamente. Poetas e artistas sempre souberam disso. Como
William Blake escreveu:

Se as portas da percepção fossem limpas, tudo apareceria para o homem


como é: Infinito.
Porque o homem fechou-se em si próprio, até que veja todas as coisas
através das frestas estreitas de sua caverna.102

Blake alegava que sempre via com “uma visão dupla”, percebendo a natureza
espiritual das coisas com seu olho interno, ao mesmo tempo que seu olho externo via
sua aparência física. Sua abordagem da vida era tremendamente próxima do tantra em
muitas maneiras, embora pareça que permaneceu um sentido de dualismo em sua
visão fundamental, um conflito entre espírito e matéria.

100
Illusion’s Game, p. 116.
101
Dharma Art, p. 35.
102
William Blake. O casamento do céu e do inferno.

270
O simbolismo do vajrayana é baseado no significado final do vazio, que, como diz
o Sutra do coração, não é outro senão a forma. É um processo de mão dupla: forma é
vazio e vazio é forma, e não existe oposição entre eles.

Isso recua até uma compreensão dos princípios budistas básicos da


impermanência e do não-ser. Sabemos que tudo é impermanente, que a vida é um
processo contínuo de mudança. Nada poderia existir por um momento, se fosse
realmente sólido e imutável. Portanto, a forma está sempre revelando sua essência
vazia. No entanto, o vazio também se manifesta incessantemente como forma,
exibindo o universo fenomenal inteiro em seu estado de pureza natural. A consciência
desses dois elementos inseparavelmente ligados é mahamudra, o grande símbolo, a
visão das deidades.

A apreciação desse tipo de simbolismo depende acima de tudo de se


desenvolver um sentido real da presença das qualidades iluminadas, que é
simplesmente o que as deidades são, e permitir que despertem dentro de nós. É um
processo de abrir nossa visão, não apenas de desenvolver a imaginação e projetá-la
em direção ao mundo exterior. À medida que aprendemos a trabalhar com as imagens
do estágio de criação na yoga das deidades, gradualmente chegamos a experimentar o
significado das deidades diretamente, sem pensamento conceitual. Em vez de
“imaginá-las”, sentimos a presença real de suas naturezas, até que finalmente possam
se tornar tão reais que as encontramos cara a cara.

Em nosso estado ordinário, o ego, ou observador, situa-se no centro da


experiência como uma aranha, paralisando tudo que caia na sua rede. Nós nos
projetamos no mundo; como Trungpa Rinpoche colocou: “Tudo é ‘eu’ por toda
parte.”103 Para usar outra de suas expressões, solidificamos o espaço, mas, uma vez
que o ponto de referência do ego comece a se dissolver, descobrimos que podemos
experimentar tudo de uma maneira diferente, dentro da amplidão do espaço sem
centro. Podemos perceber diretamente de nossa mente original, vazia, ou “mente-
sem-ponto-de-referência”, e nos tornarmos um com os objetos da percepção, com
sensações e emoções104. Então tudo se torna muito mais real, mais vivo e vívido. O que
quer que vejamos, escutemos, toquemos, saboreemos e cheiremos, fala de nossa
própria natureza inerente. “O mundo todo é símbolo — não no sentido de um signo
representando algo além de si próprio, mas símbolo no sentido de realçar as
qualidades vívidas das coisas como elas são.”105

Desse ponto de vista, o simbolismo está intimamente ligado com o princípio da


mandala; ele é uma ponte entre a percepção ordinária, que cria o samsara, e a visão
sagrada, na qual tudo é visto como a mandala do estado desperto. Todo o ambiente é

103
Dharma Art, p. 47.
104
Dharma Art, p. 43.
105
The Myth of Freedom, p. 156.

271
uma terra pura, e todos os seres conscientes dentro dele são deidades. Mas o
simbolismo não é apenas visual; inclui todos os sentidos. Tudo o que ouvimos e tudo o
que dizemos é o som do mantra das deidades e quaisquer pensamentos e sentimentos
que surjam de dentro de nossa mente são a expressão da mente desperta da deidade.
Aqui, o simbolismo é uma chave para a transmutação. Todavia, ao mesmo tempo a
mandala já está completamente presente e perfeitamente concluída. Dessa
perspectiva, o simbolismo é simplesmente uma afirmação da realidade e um método
de reconhecimento direto.

Como podemos começar a ter um sentimento pelas imagens vajrayana? Já


vivemos em um mundo simbólico: palavras são símbolos, números são símbolos; o que
fazemos, o que vestimos, como nos movemos, são todos símbolos; mesmo nossos
pensamentos e sentimentos são símbolos. Portanto estamos na verdade bastante
acostumados ao simbolismo, embora normalmente não pensemos nele dessa forma.
Se aprendermos a apreciar o simbolismo da vida diária, poderemos gradualmente
relacioná-lo ao simbolismo iconográfico das deidades. Como Trungpa Rinpoche dizia, o
simbolismo não precisa ser especial, ele é na verdade muito comum. “Em última
instância, ele é simplesmente nossa situação de vida — vida e experiência, vida e
experiência — muito simples e direta.”106

As cores são símbolos particularmente poderosos. Muitas vezes experimentamos


emoções em termos de cor, e descobrimos que certas cores estimulam determinados
estados de ânimo. Portanto, quando trazemos as cores para o contexto do vajrayana,
elas se tornam um meio natural e muito eficiente de ligação com o estado mental
desperto. Elas estão inteiramente a nossa volta, portanto nos fornecem lembranças
contínuas. Por exemplo, se estamos fazendo a prática da purificação do Vajrasattva
branco, qualquer lampejo de branco que vemos irá nos lembrar da pureza intrínseca
que ele representa. Podemos facilmente usar as cores para fazer a ligação com as
cinco famílias. Os princípios das cinco famílias estão amplamente expostos em cada
aspecto da vida; só precisamos olhar para eles.

Eventos, também, são simbólicos. Tudo o que nos acontece carrega uma
mensagem que pode ser interpretada em termos das deidades. Por exemplo, existem
vários protetores do dharma, como guardiães dos portais que apareceram
anteriormente. Se tivermos um acidente ou um choque súbito, pode ser uma
advertência deles de que estamos nos desviando do caminho de alguma maneira. Ou
podemos receber sinais para nos incutir confiança de que estamos no caminho certo.
Não é uma questão de elaborar tais eventos intelectualmente, e não existe uma
abordagem automática para interpretá-los. O simbolismo passa ao largo da mente
racional. Precisamos desenvolver a sensibilidade, de modo que haja um
reconhecimento imediato, intuitivo, da mensagem. À medida que nos tornamos

106
Dharma Art, p. 36.

272
gradualmente acostumados à linguagem simbólica deles, podemos aprender a confiar
na orientação inata das deidades.

Como o nosso entendimento das deidades e nossa sensibilidade à sua presença


aumentam através da prática da meditação, esse simbolismo adquire um significado
ainda mais profundo. Ele se torna a realidade e se abre na direção da magia, que
poderia ser chamada de a aplicação prática do simbolismo. Aqui novamente, a
característica diferencial da magia tântrica se encontra na dissolução das fronteiras do
ego e do abandono em direção ao espaço. Ela não pode ser utilizada para seu próprio
interesse de maneira alguma; é um poder sobre si próprio, e não um poder sobre os
outros. O poder comum e o conceito comum de magia são baseados na paixão e na
agressão, enquanto a magia tântrica é baseada em transcendê-las. É o primeiro passo
para dominar a nossa mente. Em seguida precisamos desenvolver a energia, a
confiança e a coragem de um guerreiro, para realmente querer ir além de nossos
limites e saltar em direção ao desconhecido. Isso pode ser muito simples e direto:
fazer um esforço, quando nos sentimos exaustos, abrir mão do ressentimento, quando
nos sentimos feridos, mostrar amor e bondade, quando nos sentimos irritados e
aborrecidos. Sempre temos uma escolha. Como Trungpa Rinpoche disse em relação às
visões do bardo, o limiar da magia é o ponto a partir do qual podemos escolher entre
retornar à luz confortável e pálida do samsara ou ir em direção ao brilho estranho e
assombroso do despertar.

Não importa o quanto possamos ser capazes de apreciar as qualidades mágicas


do universo, somente o adhishthana do guru pode abrir a porta para a genuína magia
do vajrayana. É o guru quem nos dá a experiência direta da verdadeira natureza da
mente, que só pode ser alcançada por meio da auto-entrega. Embora a natureza de
buda seja nossa, em algum ponto temos de abrir mão do sentido de ego através da
confiança em alguém. É nesse momento que o simbolismo se torna vivo e a magia
acontece. Consequentemente, aprendemos a dançar com o mundo fenomênico, que
se torna uma fonte de inspiração em vez de dar origem à identificação e ao apego. É
um processo contínuo; quanto mais nos abrimos, mais a magia é revelada. Tornamo-
nos unos com as energias do universo, como Trungpa Rinpoche o colocou. É por isso
que ele disse que o guru tântrico tem poder sobre os aspectos mágicos do universo, e
que isso é representado pelos vidyadharas.

Ele também algumas vezes chamou os vidyadharas de “portadores da louca


sabedoria”. A expressão “louca sabedoria” tem um significado muito profundo para a
compreensão da essência do vajrayana e da natureza do guru tântrico. Na verdade se
refere não a vidya, mas a jnana, e poderia igualmente ser chamada de conhecimento
selvagem107. As diferenças entre conhecimento (jnana), sabedoria (prajna) e
consciência (vidya) são discutidas em capítulos anteriores; é necessário distingui-las

107
Em tibetano, ye shes ’chol ba, uma expressão utilizada particularmente em dzogchen.

273
porque são usadas como termos técnicos importantes, mas na prática eles se
sobrepõem e se fundem. Expressam diferentes sabores de uma realidade. A louca
sabedoria tem a inteligência penetrante da consciência, assim como a qualidade
transcendente de “ir além” da perfeição da sabedoria (prajnaparamita). Ela é o
conhecimento desperto, primordial, a partir de uma perspectiva tântrica, transmitindo
um sentido de êxtase e intoxicação, de estar embriagado com o néctar do
conhecimento e em fulgor com a bem-aventurança do estado desperto. É essa própria
qualidade de selvageria e loucura que funciona como combustível para a energia mais
intensa da compaixão, estimulando a determinação e a confiança para fazer
absolutamente qualquer coisa, a fim de remover o sofrimento da existência nos seis
reinos e despertar toda a vida para a glória de seu estado original. Diz-se
tradicionalmente de Padmakara que ele subjuga o que quer que precise ser subjugado,
destrói o que quer que precise ser destruído, e cuida de tudo que precise de seu
cuidado.

Esse conhecimento pode ser chamado de louco porque é livre de


condicionamentos e transcende os conceitos convencionais; ele vira tudo de cabeça
para baixo. Mesmo as imagens dos vidyadharas está longe do quadro de santidade
apresentado pela maioria das religiões. As vidas dos expoentes humanos da louca
sabedoria, como o próprio Trungpa Rinpoche, contradizem muitas das nossas
expectativas normais de comportamento espiritual. Do ponto de vista convencional,
nunca saberemos o que esperar da energia selvagem e rude do estado desperto,
completamente desagrilhoada e desobstruída. Sua ação espontânea algumas vezes
parece escandalosa, imoral ou mesmo destrutiva. Ela requer uma visão de muito longo
prazo, e coloca coisas em movimento que podem não dar frutos até uma próxima
encarnação. Penetra no âmago do que quer que seja necessário, mas nós, ao
contrário, em geral não podemos ver nada com clareza, portanto as ações de uma
pessoa genuinamente desperta podem parecer completamente incompreensíveis. Tal
comportamento é abrupto e totalmente direto, originando-se de um estado mental
imerso no vazio e na compaixão, sem estratégias ou considerações mundanas de
qualquer tipo. A louca sabedoria é destemida, descomprometida e sem hesitações. Ela
não se agarra a nenhuma auto-imagem e já está além de todos os pontos de
referência, portanto não se importa mais com comparações ou julgamentos. Ela
destrói nossos preconceitos e ilusões sobre o caminho espiritual e vê
instantaneamente através das nossas auto-ilusões. E elimina o chão embaixo de
nossos pés de tal forma que não temos escolha a não ser dançar no espaço vazio.

O SÉTIMO DIA

274
A visão dos vidyadharas aparece para a pessoa falecida porque ele ou ela não
reconheceu as deidades pacíficas durante os seis dias anteriores, e por isso não foi
liberada. O livro diz que isso pode acontecer no caso de pessoas desafortunadas o
suficiente para não terem conexões kármicas com o dharma, ou porque nasceram em
locais incivilizados onde ele não é ensinado, ou porque não tiveram interesse ou pouca
oportunidade de praticá-lo. Outra situação que poderia fazer com que as pessoas não
as reconhecessem é quando deixaram seus compromissos samaya degenerar. Samaya
é a promessa sagrada feita entre guru e discípulo no nível tântrico que cria um vínculo
inescapável. Não é algo com que se possa comprometer de forma leve ou entrar por
engano. Não cumprir esse compromisso significa que a pessoa não está vivendo de
acordo com seu potencial de iluminação. Quanto mais próxima a pessoa tenha
chegado da magia do vajrayana, mais a pessoa se machuca ao rejeitá-lo ou abusar
dele, e por isso se torna inevitavelmente mais e mais confusa e perdida no samsara.
Ambas as classes de pessoa — aquelas que não tiveram contato com o dharma e as
que o abandonaram de livre e espontânea vontade — correm o perigo de serem
arrastadas para baixo, em direção ao reino animal, que é dominado pela ignorância e
pela ilusão. Portanto agora o caminho da suave luz verde que leva àquele reino
também aparece, junto com os vidyadharas e as dakinis, as personificações do
conhecimento, da sabedoria e da consciência total.

Ó filho de família desperta, escute sem distração. No sétimo dia, a luz


multicolorida das impressões kármicas, purificada no espaço, irá brilhar.
Em seguida as deidades vidyadhara virão do puro Reino dos Viajantes do
Céu para convidá-lo. No centro de uma mandala envolvida pela luz do arco-
íris, ele que é chamado de o Vidyadhara Plenamente Maduro, o
incomparável Senhor Lótus da Dança, irá aparecer. Seu corpo é radiante
com as cinco cores e ele abraça a mãe, a Dakini Vermelha. Eles dançam
com facas curvas e taças de crânio cheias de sangue, acenando e fitando o
céu.
Do leste da mandala, ele que é chamado de o Vidyadhara Estabelecido
nos Estágios irá aparecer. É branco, sorri de maneira radiante e abraça a
mãe, a Dakini Branca. Eles dançam com facas curvas e taças de crânio
cheias de sangue, acenando e fitando o céu.
Do sul da mandala, ele que é chamado de o Vidyadhara com Poder
sobre a Vida irá aparecer. É amarelo, lindamente proporcionado, e abraça a
mãe, a Dakini Amarela. Eles dançam com facas curvas e taças de crânio
cheias de sangue, acenando e fitando o céu.
Do oeste da mandala, ele que é chamado de o Vidyadhara Mahamudra
irá aparecer. É vermelho, sorri de maneira radiante e abraça a mãe, a

275
Dakini Vermelha. Eles dançam com facas curvas e taças de crânio cheias de
sangue, acenando e fitando o céu.
Do norte da mandala, ele que é chamado de o Vidyadhara
Espontaneamente Existente irá aparecer. É verde, sua expressão é ao
mesmo tempo irada e sorridente, e ele abraça a mãe, a Dakini Verde. Eles
dançam com facas curvas e taças de crânio cheias de sangue, acenando e
fitando o céu.

Aos cinco vidyadharas são dados nomes que correspondem aos níveis de
despertar, em vez de nomes próprios. Eles aparecem à nossa frente porque são as
manifestações de nosso potencial inato, convocando-nos a reconhecê-los e a nos
fundirmos com eles. O Vidyadhara Estabelecido nos Estágios representa a realização
dos dez estágios do caminho bodhisattva no mahayana, enquanto os outros quatro
representam níveis de realização de acordo com o sistema mahayoga Ningma, que
também abrange os dez estágios a partir de uma perspectiva diferente.

As cinco dakinis, também, não têm nomes e são identificadas somente por suas
cores. Como o princípio feminino, elas representam a amplidão e a criatividade do
estado desperto. A conquista da realização é sempre inseparável da ausência de ego.
Elas são o céu ilimitado da inspiração no qual os poderes milagrosos e as atividades
mágicas dos vidyadharas acontecem. Podemos também relacioná-las aos cinco
elementos, que formam a matriz de onde todos os fenômenos surgem.

No centro da mandala está o Vidyadhara Plenamente Maduro. A maturação se


refere ao colhimento do poder do adhishthana, e corresponde ao primeiro dos quatro
níveis conhecidos como o fruto da mahayoga. Entretanto, nesse estágio, o corpo físico
não foi ainda completamente permeado pelos efeitos da realização mental da pessoa,
portanto no caso de um yogue ou yoguine vivo, os nadis estão apenas parcialmente
transformados. Embora o vidyadhara central seja descrito aqui como tendo cinco
cores, incorporando todas as cinco famílias, é normalmente representado em pinturas
como sendo vermelho, igual a sua consorte dakini. Não existe azul nessa mandala, já
que ele foi desalojado pelo vermelho da família Padma. A mandala dos vidyadharas
emana da fala, portanto é regida por Amitabha. O vidyadhara central é também
chamado de o Senhor Lótus da Dança, Padmanarteshvara. Esse é um nome dado às
vezes a Amitabha ou a Avalokiteshvara, expressando a essência da atividade
compassiva da família Padma. Sua dança é o jogo da aparência e do vazio, que é
comparada a representar um papel em um drama ou produzir uma ilusão mágica.

Ao leste da mandala está o Vidyadhara Estabelecido nos Estágios, dançando com


a Dakini Branca. Em um certo sentido, ele representa a combinação dos outros quatro,

276
portanto podemos ter esperado encontrá-lo no centro da mandala. Entretanto, já que
ele é branco, é uma transformação de Vairochana e pertence à família Buda, que é
com frequência colocada no leste em vez de no centro. O leste é a direção da
pacificação e da remoção do sofrimento, que parece particularmente apropriada para
o vidyadhara que incorpora o espírito do caminho bodhisattva.

Os dez estágios do caminho bodhisattva são níveis extremamente altos de


conquista, culminando na iluminação plena e completa como um buda no décimo
primeiro estágio. O termo bodhisattva se refere àqueles grandes seres que ainda não
se tornaram budas. Trabalham na direção da iluminação plena desenvolvendo sua
sabedoria e compaixão por meio do serviço a todos os seres conscientes. Em cada um
dos estágios, atingem uma maior capacidade de compreensão e de ajuda aos outros, e
através de colocar essas habilidades em ação, atingem um nível mais elevado de
despertar.

Durante as visões anteriores das deidades pacíficas, os grandes bodhisattvas se


manifestaram como a atividade do estado desperto. Não existe contradição entre as
duas interpretações, quando nos lembramos que todos os seres são inerentemente
budas desde o início. Um ponto de vista é olhá-los de baixo, da nossa perspectiva de
esforço em direção à iluminação, enquanto o outro é vê-los de cima, do estado
primordial no qual tudo é a expressão natural da iluminação.

O Vidyadhara com Poder sobre a Vida representa o segundo nível do mahayoga.


Aqui os nadis e os elementos do corpo foram completamente transformados, de tal
forma que a pessoa tem controle sobre seu próprio tempo de vida. Esse poder é o
primeiro dos dez que são conquistados neste estágio; são o poder sobre a extensão da
vida, sobre o renascimento para o bem dos outros, sobre a própria mente entrando
em meditação, sobre a matéria para que se possa prover as necessidades para aqueles
que precisam, sobre os desejos para que se possa transformar objetos em qualquer
coisa que seja requerida, sobre o karma para que se possa diminuir seus resultados
negativos para os outros, sobre a aspiração para que a intenção da pessoa pelo bem
dos outros seja realizada, sobre milagres para que se possa converter pessoas, sobre o
conhecimento de todos os aspectos do dharma e sobre o próprio dharma como
habilidade de ensinar.

Esse vidyadhara é uma transformação de Ratnasambhava, aparecendo no sul da


mandala com sua parceira, a Dakini Amarela. A família Ratna incorpora todas as
qualidades iluminadas e aumenta as conquistas e realizações espirituais. Poder sobre a
vida implica poder sobre a morte, portanto existe uma conexão com Yamantaka, o
Destruidor da Morte, que apareceu como guardião do portal sul.

O terceiro nível é a realização do mahamudra, o grande selo ou grande símbolo.


Aqui prana e bindu foram transformados como foram os nadis, de tal forma que a

277
pessoa torna-se interiormente idêntica à deidade, o corpo mahamudra de aparência e
vazio indivisíveis. Tal corpo pode aparecer em qualquer lugar, em qualquer forma, e
emana numerosas outras formas para levar adiante atividades iluminadas. Por
exemplo, existem muitos relatos na literatura indiana e tibetana de grandes mestres se
manifestando como deidades para seus discípulos, tanto a distância e enquanto
permanecem presentes em sua forma habitual. O Vidyadhara Mahamudra,
aparecendo no oeste, é uma transformação de Amitabha. Ele e a Dakini Vermelha
incorporam o poder de comunicação da família Padma para atrair e influenciar os
seres viventes.

No norte da mandala está o Vidyadhara Espontaneamente Existente com a


Dakini Verde. Ele representa o quarto nível, a conquista da iluminação.
Espontaneidade transmite a ideia de que o estado desperto floresce sem esforço, todo
de uma vez, completo e perfeito. É uma transformação de Amoghasiddhi, que realiza
atividades iluminadas de maneira infalível. É a culminação do caminho, em que todas
as qualidades de buda são preenchidas e todos os conceitos de esforço e conclusão se
afastam. É interessante que este vidyadhara é o único cuja expressão é descrita como
zangada. Sua zanga expressa a energia ativa, dinâmica do estado desperto, que
veremos em sua forma mais intensa se manifestando como as deidades coléricas.

Os vidyadharas e dakinis podem estar ou nus ou vestindo pedaços de pele de


animal ao redor de suas cinturas, talvez com algumas joias bem básicas. Sua
simplicidade e ausência de ornamentos apontam para a qualidade intuitiva de
reconhecimento direto, além das complexidades do pensamento conceitual. Sua
postura de dança é graciosa e dinâmica, quase como um voo, e os cinco casais são
muitas vezes mostrados em posições diferentes, de tal forma que possamos
facilmente imaginá-los se movendo, em vez de congelados em poses estáticas. Eles
expressam o estado de liberdade ilimitada e alegria extática. Executam os gestos
(mudras) com suas mãos para acompanhar maneiras especiais e poderosas de fitar,
que levam a cabo ações mágicas.

Em suas mãos esquerdas, seguram taças de crânio cheias de sangue. A taça de


crânio representa o princípio feminino da sabedoria, contendo o sangue da vida do
samsara transmutado em elixir, o conhecimento selvagem ou louca sabedoria que os
inspira com a energia compassiva. Em suas mãos direitas, cada um segura uma faca
curva, representando o princípio masculino dos meios habilidosos. Essa faca se origina
da faca tradicional de açougueiro, tem a forma de lua crescente para cortar a carne, e
termina em um gancho para esfolar a pele. Com ela, desmembram o cadáver do ego.

Ao redor da periferia da mandala está uma grande aglomeração de deidades


menores. Também não estão incluídas entre as tradicionais cem deidades e não são
normalmente representadas nas pinturas do bardo:

278
Além dos vidyadharas, incontáveis multidões de dakinis aparecerão:
dakinis dos oito grandes solos sepulcrais, dakinis das quatro famílias,
dakinis dos três níveis, dakinis das dez direções, dakinis dos 24 locais de
peregrinação, guerreiros e serventes masculinos e femininos, e todos os
protetores masculinos e femininos do dharma. Usando os seis ornamentos
de ossos; carregando tambores, trompetes feitos de fêmur, tambores de
crânios, estandartes feitos da pele esfolada de crianças, pálios e fitas de
pele humana, e incenso feito de carne humana; tocando incontáveis tipos
diferentes de instrumentos musicais — eles preenchem todas as regiões do
universo. Aglomerados bem próximos uns dos outros, sacudindo-se e
balançando-se para frente e para trás, vão fazer todos os instrumentos
vibrar com música a fim de se rachar a cabeça de alguém. Executando
várias danças, vão convidar os que mantiveram seus compromissos samaya
e punir aqueles que os deixaram se degenerarem.

Assim como antes, essas deidades aparecem no céu à nossa frente, mas elas só
podem fazê-lo porque são parte da nossa natureza inerente. Os locais de moradia das
várias classes de dakinis são locações externas, mas também correspondem a partes
do corpo tanto no nível grosseiro quanto no nível sutil. Essas dakinis, guerreiros,
serventes e protetores são todos expressões de nossa fala e energia vital, de nossa
natureza emocional e comunicativa. São a essência da energia criativa e destrutiva;
não vêm para nos convidar polidamente, mas com danças e canções selvagens,
clamando com urgência para atrair nossa atenção. Guerreiro ou herói, é um outro
termo genérico para as deidades em suas manifestações apaixonadas ou coléricas, e é
bastante usado como a contraparte masculina de dakini, embora tenha também uma
forma feminina, e em ambas as formas também se refiram a yogues e yoguines
humanos. Ela nos lembra que o caminho espiritual é um esforço contínuo contra a
ilusão e o egoísmo, e que precisamos de coragem e energia para segui-lo. Muitos dos
protetores do dharma eram originalmente deidades não-budistas e espíritos locais que
foram dominados, e prometeram ajudar e proteger o ensinamento a todos que o
seguissem. Representam os aspectos da nossa natureza que foram desviados do
interesse pela verdade e o bem-estar dos outros. Podem algumas vezes ser ferozes e
cruéis; são a nossa verdadeira consciência e irão usar quaisquer meios necessários
para evitar que nos desencaminhemos.

Todas as coisas que eles carregam, seus instrumentos musicais e os ornamentos


que usam, estão relacionados ao solo sepulcral, um conceito muito importante no
simbolismo vajrayana. Solos sepulcrais, ou de cremação, correspondem aos cemitérios

279
no mundo ocidental, embora sejam muito mais perturbadores e assustadores.
Provavelmente eram ainda mais temíveis muitos séculos atrás quando esses
ensinamentos surgiram. Naquela época, eram locais desolados, situados fora das áreas
habitadas, na fronteira com alguma floresta ou deserto. Podemos imaginar a cena:
ossos e crânios espalhados pelo chão, a fumaça e o fedor de carne queimada
enchendo o ar, cães selvagens e hienas que vagam rosnando enquanto fuçam as
brasas e cinzas das piras funerais, corvos que bicam as entranhas de cadáveres
semiqueimados, e abutres que sobrevoam em círculos. Tigres, leões ou outros animais
selvagens vagueiam e rugem nas florestas próximas. Os corpos de criminosos
executados pendem balançando dos galhos das árvores, enquanto serpentes
venenosas deslizam para dentro e para fora de buracos entre as raízes. Ainda mais
aterrorizadora é a presença de demônios que habitam os cadáveres e fantasmas que
continuam a assombrar os restos de seus antigos corpos até que sejam libertados por
oferendas rituais.

Apesar disso, são os lugares que yogues e yoguines escolhem para viver, por
muitas razões. Eles ficam isolados e completamente abandonados à noite, assim
ninguém os perturba. Vivendo lá, estão cara a cara com a realidade da morte e
superam muitos obstáculos ao progresso espiritual, tais como apego, medo, repulsa,
orgulho e a superioridade da casta. Podem encontrar seres poderosos do outro mundo
ou grandes mestres, e especialmente as dakinis, que adoram habitar solos sepulcrais.

A parte externa dos solos sepulcrais sempre desempenhou um papel importante


na prática tântrica, mas os praticantes não precisam ir lá de fato, porque suas
qualidades podem ser encontradas em toda parte, uma vez que nos tornemos
sintonizados com seu simbolismo. Os cadáveres desmembrados, a carne e o sangue, os
crânios, os ossos, os órgãos internos e a pele esfolada representam tudo o que
preferiríamos evitar. Revelam as áreas que nos repugnam e nos revoltam, e as partes
secretas e sensíveis que não queremos olhar ou expor. Aqui encontramos tudo o que
rejeitamos como não tendo nada a ver com nossa natureza espiritual, mesmo assim é
a fonte bruta de nossa energia, e deve ser reconhecida e aceita. O pensamento desse
ambiente terrível, com todas as suas vívidas percepções sensoriais de visão, som e
olfato, produz uma consciência aguda da impermanência; da contínua presença da
morte na vida; e de como a beleza, o prazer e a perfeição mundanas podem se
transformar nos seus opostos a qualquer momento. O mundo é o nosso solo sepulcral,
onde tudo está continuamente morrendo e renascendo. Mas é um lugar de
nascimento, assim como é um lugar de morte; é o solo da transmutação.

Algumas vezes a própria vida força essa consciência em nós. Quando estamos
próximos da doença, da morte ou do perigo, quando nos sentimos subitamente
expostos e vulneráveis, ou quando existe muita dor e horror para suportar, entramos
no solo sepulcral. É um estado mental no qual podemos facilmente nos desequilibrar;

280
sentimos que estamos vivendo no limite, e tudo se aglomera sobre nós, clamando com
exigências. Nesses momentos, podemos estar particularmente abertos a ouvir as vozes
desses mensageiros enigmáticos. Mas em nosso estado de medo e confusão não
estamos certos se eles vão nos ajudar ou nos prejudicar, e não sabemos se
acreditamos neles ou não. A única solução é relaxar e deixar-se levar pela dança da
vida e da morte que está acontecendo o tempo todo. A luz refulgente do
conhecimento brilha a partir do coração dos vidyadharas, convidando-nos a nos fundir
com eles, enquanto simultaneamente a luz opaca da ignorância tenta-nos a nos retirar
em direção a um comportamento instintivo, automático, a virar as costas, nos enroscar
e ir dormir.

Ó filho de família desperta, uma luz de cinco cores brilhará a partir do


coração dos cinco senhores vidyadharas; é a luz das suas impressões
kármicas purificada no espaço, o conhecimento com o qual você nasceu.
Como filamentos de cor enrolados juntos, cintilando e tremeluzindo lado a
lado, clara e translúcida, brilhante e aterrorizante, ela penetrará direto em
seu coração, de tal forma que seus olhos não poderão suportar. Ao mesmo
tempo, uma luz verde suave do reino animal também irá brilhar junto com
a luz do conhecimento. Então, sob a influência das impressões kármicas
que o desviaram do caminho, você ficará com medo da luz de cinco cores e
fugirá dela, e em vez disso será atraído para a luz suave dos animais.
Portanto, não tema a luz brilhante e radiante das cinco cores quando ela
aparecer. Não tenha medo, mas reconheça-a como conhecimento.
De dentro da luz, o som espontâneo integral do dharma irá rugir
como mil trovões. Ele vibra, troveja e reverbera com gritos de guerra e com
o som penetrante de mantras coléricos. Não se aterrorize, não corra, não
tema. Reconheça-o como a energia criativa da sua consciência
manifestando-se espontaneamente. Não se deixe atrair pela suave luz
verde dos animais, não a deseje. Se for atraído para ela, cairá no reino
animal da ignorância e experimentará o sofrimento extremo da estupidez,
da mudez e da escravidão do qual não existe escapatória.
Sinta devoção pela luz clara e brilhante das cinco cores e concentre-
se unicamente nos abençoados vidyadharas, os mestres divinos, pensando:
“Estes vidyadharas, guerreiros, e as dakinis vieram me convidar para o puro
Reino dos Viajantes do Céu. Vocês dão atenção a seres conscientes como
eu, que nunca desenvolveram bondade e conhecimento. Vocês têm
piedade daqueles como eu que nunca foram alcançados, embora até hoje
todas as deidades das cinco famílias de budas do passado, presente e
futuro tenham estendido até nós seus raios de compaixão. Agora, todos
vocês vidyadharas não me deixem ir mais baixo do que isso, mas agarrem-

281
me firme com seus ganchos de compaixão e puxem-me rapidamente para
o puro Reino dos Viajantes do Céu.” Com intensa concentração diga esta
prece-aspiração:

Possam os divinos vidyadharas pensarem em mim


E com seu grande amor conduzirem-me no caminho.
Quando, por causa de intensas impressões kármicas, vago no Samsara,
No caminho luminoso do conhecimento com o qual nasci
Possam os guerreiros vidyadhara irem à minha frente
E as grandes mães dakinis atrás de mim,
Livrem-me da passagem perigosa do bardo
E levem-me ao puro Reino dos Viajantes do Céu.

A luz das cinco cores combinada é a luz das nossas impressões ou tendências
kármicas fundamentais purificadas, formadas pelo efeito das ações passadas, que
permanecem na consciência original. São comparadas a traços de perfume
impregnando a consciência. Essas impressões formam padrões de tendências que nos
predispõem para uma circunstância em particular e para características físicas e
mentais específicas. Aqui são descritas como "purificadas no espaço". Assim como os
cinco skandhas foram revelados em seu estado básico naturalmente puro como os
cinco aspectos do conhecimento, também as impressões kármicas retornam à sua
pureza original no espaço do dharmadhatu. Em vez de dar origem a mais ignorância,
elas refulgem como a luz do conhecimento primordial, que é então chamado de o
conhecimento nascido conosco, nosso conhecimento natural, inato. Ele pode também
ser interpretado como o conhecimento nascido junto com a ignorância ou
conhecimento nascido simultaneamente. O estado desperto e o estado confuso estão
sempre presentes ao mesmo tempo dentro de nós; continuamente os produzimos
juntos.

Mas embora esse conhecimento de nossa verdadeira natureza sempre exista


dentro de nós, nós nos desviamos cada vez mais fundo em direção à ignorância,
durante vida após vida e momento após momento. Para que nosso conhecimento
inato se manifeste espontaneamente, precisamos preparar as condições para isso,
desenvolver a sabedoria e a compaixão e abrir brechas no nevoeiro espesso da
confusão. Essa é a razão final para a prática do dharma. E não estamos sozinhos; a
qualidade do despertar está presente em toda parte para nos ajudar. Isso é o que
significa a visão dos vidyadharas, os divinos mestres, e as dakinis, o princípio da
inspiração. No estado do bardo após a morte, aparecem na forma mais vívida e forte, e
ainda assim estão à nossa volta aqui e agora. Temos a chance contínua de adormecer

282
na ignorância ou despertar no conhecimento, de nos abrirmos para a luz brilhante ou
seguirmos o caminho da luz indistinta. Nas palavras de Trungpa Rinpoche; “Esse
simbolismo do Livro tibetano dos mortos é muito profundo para as nossas situações
reais da vida diária. Ele não precisa se referir somente à experiência de pós-morte.
Talvez a experiência de pós-morte apenas tipifique o tipo de situação na qual as
escolhas são mais iluminadoras ou estimulantes e mais imediatas.”108

108
Glimpses of Abhidharma, p. 101-102.

283
Capítulo Quatorze

Compaixão Colérica

A VISÃO DAS DEIDADES COLÉRICAS é a culminação do bardo do dharmata. Se o


espírito que vagueia no bardo ainda não respondeu ao convite dos vidyadharas, a
energia do estado desperto se manifesta da maneira mais poderosa e dinâmica
possível, como “os 58 seres flamejantes, coléricos bebedores de sangue”. Antes de
descrever as visões em detalhes, o texto recapitula as razões para ler esses
ensinamentos para a pessoa falecida e a importância vital de praticá-los durante a
vida.

Embora as manifestações coléricas não sejam diferentes em essência dos budas


pacíficos, sua aparência pode ser assustadora para alguém que nunca as contemplou
antes. A consciência da pessoa falecida está também se tornando mais e mais aturdida
e exausta, à medida que as experiências do bardo continuam sem serem reconhecidas.
Portanto, o súbito medo provocado pelas novas visões será provavelmente
devastador, a não ser que algum tipo de conexão prévia já exista na mente; ao tentar
escapar delas em pânico, a pessoa será precipitada em direção ao renascimento no
samsara. Se a pessoa reagir com horror ou agressividade, essas emoções negativas irão
propeli-la na direção dos reinos inferiores. Por outro lado, se houver o menor lampejo
de reconhecimento, a intensidade da situação na verdade ajuda a focar a mente. Por
meio de puro terror, a pessoa se refugia naquele lampejo de alguma coisa familiar sem
ser perturbada, e assim conquista pelo menos uma liberação parcial e atinge um
estado mais elevado.

Em um momento tão crucial, somente a familiaridade prévia com as deidades


coléricas irá ajudar; de outra maneira, suas aparências ferozes e horríveis serão mal
compreendidas por aqueles que não as conhecem. Mesmo praticantes
experimentados de outras tradições, vendo-as pela primeira vez, podem não ser
capazes de penetrar em suas verdadeiras naturezas sob a pressão do medo e do
aturdimento.

Agora, se a pessoa não passou por esse tipo de ensinamento, nem mesmo
um oceano de erudição será de utilidade. Nessas circunstâncias, mesmo
grandes mestres de filosofia e eruditos que observaram as regras

284
monásticas ficam confusos e não reconhecem, por isso seguem vagando no
samsara. Isso é ainda mais verdadeiro para as pessoas comuns; fugindo de
seu medo, terror e pânico, elas caem nos reinos inferiores e sofrem seus
tormentos. Mas yogues e yoguines que praticaram seus mantras secretos,
mesmo se forem os mais inferiores dos inferiores, reconhecerão os
bebedores de sangue como suas próprias deidades escolhidas assim que as
verem, como se estivessem encontrando velhos amigos. Assim irão confiar
nelas e, fundindo-se inseparavelmente com elas, tornar-se-ão despertos. O
ponto essencial é que no reino humano eles meditaram claramente sobre
essas formas bebedoras de sangue, fizeram oferendas e as louvaram, e
mesmo se apenas olharam para suas imagens pintadas ou esculpidas irão
reconhecê-las quando elas aparecerem e conquistarão a liberação.

Essa afirmação não pretende desmerecer o aprendizado ou a disciplina


monástica, mas aponta para um elemento essencial do vajrayana, a necessidade de
incluir cada aspecto da vida no caminho e abraçar de coração aberto mesmo aquilo
que preferiríamos evitar. Esse é o princípio da louca sabedoria e do solo sepulcral.
Monges, monjas e eruditos que levaram vidas puras, virtuosas, devotadas à meditação,
ao estudo e aos costumes religiosos, não importa quão excelentes possam ter sido,
estarão em desvantagem nesse ponto, a despeito de suas boas qualidades, se não
tiverem conquistado a liberação em um estágio anterior. Porque agora se encontram
inesperadamente confrontados com forças que rejeitaram antes e que nunca
incorporaram em suas práticas. Se os vidyadharas eram anticonvencionais, as deidades
coléricas surgem como um choque total. É por isso que mesmo os melhores
praticantes necessitam de orientação em um momento como este, e aqueles que
estão despreparados encontram-se em perigo:

Enquanto estiveram vivos, fizeram mau uso do caminho do mantra secreto


e não conseguiram acomodá-lo em suas mentes. Não conheceram as
deidades do mantra secreto durante a vida, portanto também não as
reconhecem quando elas aparecem no bardo. Vendo subitamente algo que
nunca viram antes, pensam naquilo como um inimigo e sentem
agressividade em relação a isso, e com o resultado, descem para os reinos
inferiores.

285
As deidades coléricas são parte de nossa natureza, assim como as deidades
pacíficas. Estão dentro de nós, contudo aparecem para nós externamente. São
transpessoais; não pertencem ao ego individual, mas à nossa natureza não dual.
Portanto, podemos interpretá-las e tentar entendê-las de ambos os pontos de vista, de
dentro e de fora.

Vendo-as como externas, são as expressões da energia desperta mais intensa,


derramando-se torrencialmente em resposta à ignorância e ao sofrimento dos seres
conscientes. Ou, para colocá-lo de outra forma, essa energia é a natureza
fundamental, auto-existente e compassiva do estado desperto, que os seres
conscientes percebem como colérica por causa da visão obscurecida resultante da
ignorância e do sofrimento. Essas deidades são expressões do mesmo estado desperto
que está presente todo o tempo, e no bardo estamos diretamente expostos a ela,
como a luz plena e deslumbrante do sol. Já que não reconhecemos as visões
anteriores, mas continuamos a vagar no bardo, significa que estamos sendo levados
ainda mais pela confusão, estamos nos tornando mais envolvidos com o ego e,
instintivamente, reagimos ao que quer que apareça com um sentido maior de
preservação. A exibição espontânea da iluminação não mudou, mas agora a
percebemos como mais feroz e mais ameaçadora.

Intensidade e paixão podem muitas vezes parecer ameaçadoras mesmo quando


não há intenção de fazer mal. Tornamo-nos amedrontados com nossa própria energia
porque ela muitas vezes se manifesta na forma distorcida dos cinco venenos, e tão
facilmente se torna violenta e destrutiva. Mas não existe maneira suave e gentil de se
contemplar o poder total do estado desperto; essa é uma razão para o caráter
assombroso das deidades coléricas. Uma outra razão é que elas nos mostram de forma
convincente a coexistência universal da destruição com a criatividade. Nós nos
encontramos constantemente com lembretes de que a dissolução está acontecendo a
cada momento, e que sem a morte não pode haver nascimento. As deidades coléricas
incorporam a unidade, o sabor igual, da vida e da morte dentro da esfera da
totalidade.

Contudo, não representam meramente princípios universais; são imediatas e


pessoais. Têm havido algumas tentativas de explicá-las psicologicamente como o lado
escuro da nossa natureza, a sombra que devemos conhecer e integrar; mas esse tipo
de interpretação, embora possa ter alguma validade, deixa escapar o ponto especial.
Elas são de fato as forças da nossa mente, aquelas mesmas forças que podem se
transformar em crueldade, luxúria, arrogância e assim por diante. Mas como a auto-
exibição da consciência, representam aquela energia em sua pureza original, não
distorcida. Em relação às visões anteriores, foi dito que, simplesmente porque somos
feitos dos cinco skandhas e dos cinco elementos, os budas e devas irão aparecer
automaticamente. Já nas imagens das deidades pacíficas vimos que seu simbolismo

286
está relacionado com a transmutação, mas de uma maneira que revela a essência
desperta como primordialmente presente, apenas aguardando reconhecimento. Aqui
o processo real de transmutação é expresso de uma maneira muito mais aberta e
direta. Mesmo as ações mais maldosas de que os seres humanos são capazes se
originam da energia que é pura em sua natureza básica, e essa energia deve ser
liberada; é isso que o simbolismo das deidades coléricas expressa. Portanto, elas não
são a sombra, mas a energia pura que transcende o dualismo de luz e escuridão.
Caminhos espirituais que tentem suprimir toda a negatividade ou que finjam que ela
não existe não permitem que seus seguidores experimentem e reconheçam essa
energia, que mesmo assim está latente dentro deles.

O poder tremendo das deidades coléricas é completamente desprovido de ego;


ele surge do estado de vazio; é pura sabedoria e compaixão. Seu primeiro e único
propósito é nos despertar. Sua cólera é a fúria daqueles que despertaram direcionados
para as forças que se opõem ao despertar. Mas em um mundo de confusão e
incerteza, apegado ao sentido de existência individual, é fácil fazer uma interpretação
equivocada de sua presença irresistível. Elas podem provocar nossos temores e
ansiedades mais profundos, podem nos provocar repulsa e nos horrorizar de tal forma
que sintamos ódio delas, ou podem parecer que estão nos atacando, de forma a que
reajamos com raiva e violência.

Trungpa Rinpoche costumava falar a respeito de como solidificamos a


experiência da luminosidade. Todos os fenômenos, sejam neste mundo ou no bardo,
se originam da luminosidade. Se reconhecermos isso e nos deixarmos levar pela
amplidão, podemos tomar parte no jogo da existência sem sermos levados por ele.
Mas se começarmos a acreditar nele, então a coisa toda começa a parecer sólida.
Reagimos à simples presença das deidades pacíficas de várias maneiras, tentando
ignorá-las ou transformando-as em objetos de medo ou de apego. Tão importante
quanto não se tornar apegado a elas é não ter medo delas. As instruções são para
sentir intensa saudade e devoção em relação a elas. Essas são emoções que abrem o
coração e nos permitem o abandono; não são baseadas na oscilação entre atração e
aversão, que é a reação do ego. Se somos atraídos pelas deidades pacificas e
começamos a acreditar nelas e em seu ambiente como externamente reais, podemos
imaginar que fomos para o céu. Então elas se tornam as deidades coléricas para nos
lembrar do vazio e nos despertar.

O que quer que apareça no bardo é uma versão mais dramática, nua e crua do
que acontece durante a vida. As deidades coléricas usam a tática de choque; o tempo
para a persuasão gentil já passou. Na vida comum, é muito difícil para nós aceitar
situações assustadoras ou estressantes como oportunidades para o despertar. É difícil
manter a consciência sob todas as circunstâncias, ver a natureza de buda em cada ser
vivente, aceitar coisas que desgostamos com equanimidade, reagir calmamente à

287
agressão e mostrar compaixão pelos nossos inimigos. Essas são algumas das situações
nas quais podemos reconhecer as deidades coléricas em um sentido geral. Mas
sempre que falemos de deidades, precisamos nos lembrar que elas são realmente as
nossas próprias qualidades, nossos poderes e funções despertos em potencial.
Trazemo-las à existência como presenças vivas em nossas vidas através de receber
adhishthana e por meio da prática do yoga delas.

Elas são chamadas as deidades do mantra secreto (o caminho do mantra secreto


é o termo tibetano normal para vajrayana, correspondendo ao sânscrito mantrayana).
Mantras são largamente usados em todo o mundo budista, mas seu sigilo é especial
para o vajrayana por causa da importância do adhishthana, por meio do qual o guru
passa adiante os seus poderes. É claro que não são inteiramente secretos, já que
podem ser lidos em textos por qualquer um preparado para passar por um bocado de
problemas, mas são sempre auto-secretos, no sentido de que não podem ser eficazes
sem o genuíno adhishthana e a prática dedicada. As deidades coléricas são geralmente
consideradas caracteristicamente tântricas e são muitas vezes escolhidas como
deidades meditáveis por praticantes tântricos. Seus mantras e práticas são mantidos
particularmente secretos, porque são muito poderosos e podem ser facilmente mal
compreendidos; se a energia que liberam for usada para propósitos egoístas, irá
apenas prejudicar o praticante e os outros.

O texto diz que os melhores yogues e yoguines tântricos, aqueles que estão
acima da média, serão liberados no momento em que pararem de respirar, enquanto
outros praticantes perfeitos do mahamudra e do dzogchen irão reconhecer a
luminosidade no bardo do morrer. Para eles, a leitura do texto é desnecessária, mas
para todos os outros é extremamente necessária e de grande ajuda. Ele reaviva a
memória de qualquer ensinamento semelhante que tenham recebido, qualquer
prática que tenham feito ou qualquer realização que tenham conquistado no passado,
de tal maneira que o que estiver acontecendo no bardo torna-se familiar, e eles são
capazes de reconhecer que o que quer que apareça é simplesmente suas próprias
auto-exibições. Ou, se não puderem reconhecê-lo, pelo menos sementes são plantadas
para o futuro na consciência da pessoa falecida, levando a um melhor renascimento,
de tal forma que mais e mais ligações são estabelecidas. As sementes que são
plantadas, combinadas com outras circunstâncias, podem dar frutos inesperadamente,
dando a impressão de não ter havido nenhum esforço ou preparação prévia, mas
sempre existe uma causa oculta na corrente mental. Essa criação de conexões é o
segredo do grande poder de Liberação através da audição, como o próprio texto
explica:

Se eles reconhecerem a luminosidade durante o bardo do morrer,


alcançarão o dharmakaya, e se a reconhecerem durante o bardo do

288
dharmata, quando as deidades pacíficas e coléricas aparecem, alcançarão o
sambhogakaya. Se a reconhecerem durante o bardo da existência,
alcançarão o nirmanakaya e nascerão em uma situação melhor, onde se
encontrarão com este ensinamento. Já que o resultado das ações continua
na vida seguinte, esta Grande liberação através da audição é um
ensinamento que ilumina sem meditação, que libera apenas por ser
ouvido, que conduz grandes pecadores ao caminho secreto, que rompe a
ignorância em um único momento, um ensinamento profundo que dá a
iluminação perfeita e instantânea, portanto os seres conscientes a quem
ele alcançou não podem mais ir para existências inferiores. Tanto este
quanto Liberação através da vestimenta devem ser lidos em voz alta,
porque os dois combinados são como uma mandala dourada incrustada
com turquesa.109

Depois de estabelecer a importância da leitura, o texto continua a indicar as


sucessivas visões do bardo. Do oitavo até o décimo segundo dia, os princípios
masculino e feminino das cinco famílias aparecem na forma dos cinco casais heruka.
Heruka é um nome que se refere a qualquer das deidades coléricas e bebedoras de
sangue, embora ele seja geralmente reservado para as deidades masculinas principais.
A palavra provavelmente deriva de uma raiz que significa “rugir", mas suas três sílabas
são interpretadas como vazio, compaixão e sua unidade. Aqui elas têm características
particulares que pertencem à tradição Ningma. Trungpa Kinpocbe observou que, nos
tantras Ningma, a natureza das deidades é sempre mais extrema do que em outras
tradições: as deidades pacíficas são mais pacíficas, ou invencivelmente pacíficas como
ele as descreveu, enquanto as deidades coléricas são ainda mais coléricas e poderosas.

A origem dos herukas é descrita na lenda da subjugação de Rudra. Trungpa


Rinpoche a relata brevemente em seu comentário, mas existem diferentes versões110.

109
Isto se refere a um outro texto do mesmo ciclo terma: Liberation through Wearing, the Self-
Liberation of the Skandhas. Em tibetano, btags grol phung po rang grol. Consiste fundamentalmente nos
mantras das cem deidades pacíficas e coléricas.
110
A forma mais antiga dessa lenda ocorre no Sarvatathagatatattvasamgraha e está citada em
Snellgrove, Indo-Tibetan Buddhism, p. 134-141. Uma forma mais recente pode ser encontrada em Yeshe
Tsogyal, The Life and Liberation of Padmasambhava, Cantos 5 e 6. Rudra, significando uivante ou
rugidor, era um nome utilizado nos Vedas para muitas deidades e princípios, tais como o vento e a
respiração. Era também o nome mais antigo da deidade que mais tarde se desenvolveu como Shiva, o
Auspicioso, um dos mais importantes deuses do hinduísmo mais recente. A crença em tal deidade como
um ser externo real vai diretamente contra a ideia central do budismo, portanto como Mahadeva, o
Grande Deus, ele era visto como a personificação de visões equivocadas que impedem o despertar. Para
ser justo, isso é mais a percepção budista da crença hindu do que hinduísmo genuíno, especialmente no
que diz respeito ao tantra. Ao mesmo tempo, ele tinha uma outra imagem, bem diferente. Desde os
primeiros dias Rudra-Shiva era um forasteiro dentro do panteão ortodoxo, o mais espiritual de todos,
que penetrava mais profundamente além da natureza samsárica dos deuses. Ele representa o princípio

289
Essencialmente, é uma alegoria sobre a perversão dos ensinamentos tântricos, e em
particular da abordagem dzogchen da espontaneidade. Muitas eras cósmicas atrás, um
certo praticante desses ensinamentos, que são intemporais e aparecem em todas as
eras, fez uma interpretação equivocada deles, achando que deveria ir e fazer o que
quisesse. Ele acreditava que seguir um estilo de vida natural e espontâneo,
satisfazendo cada desejo e cada impulso, o levaria à liberação, mas não compreendeu
que a espontaneidade deve ser baseada na realização da verdadeira natureza da
mente. Portanto, em vez de transmutar os cinco venenos, entregou-se a eles, e em vez
de cortar através da ilusão do ego, o fortaleceu e o inflou. Como resultado, depois de
sua morte, sofreu durante eras incontáveis nos reinos inferiores, até que finalmente
renasceu como um monstro, um rakshasa canibal chamado Rudra. Nessa forma,
acumulou enorme poder e aterrorizou todo o universo. Depois de falhar ao tentar
convertê-lo por meios pacíficos, os budas decidiram que ele devia ser parado através
da força e emanaram a manifestação colérica dos herukas para derrotá-lo. Por meio de
sua subjugação, Rudra foi liberado e se tornou um protetor do dharma como
Mahakala, o Grande Ser Negro. Como um sinal de sua vitória, os herukas assumiram
sua forma demoníaca, completa com todos os seus atributos. Exteriormente, essa
aparência horrorosa representa a mais extrema personificação do egoísmo, mas
internamente cada aspecto dele expressa a transmutação e a liberação do ego.

Existem muitas deidades coléricas meditativas na tradição Ningma, e todas


partilham muitos detalhes de iconografia e simbolismo, que podem ser aplicados aqui
para complementar as descrições de Liberação através da audição e seus textos
correlatos. Os cinco herukas que aparecem durante o bardo representam os princípios
coléricos básicos da mandala dos budas, portanto são identificados simplesmente
pelos nomes das cinco famílias. Da mesma forma, suas consortes, os aspectos coléricos
dos cinco devas, são chamadas de as damas coléricas das cinco famílias.

Samantabhadra e Samantabhadri também têm suas contrapartidas coléricas, o


Grande Supremo Heruka e a Dama Colérica do Espaço. Embora não apareçam nas
visões de Liberação através da audição, são descritos tanto em As cem homenagens
como em A prática do dharma. Em pinturas, são colocados no centro da mandala com
o casal da família Buda imediatamente abaixo deles. O Grande Supremo Heruka 111 é
descrito como sendo o que traduzimos anteriormente como “cor de vinho”, mas vai do

da dissolução, que externamente é visto como destruição, mas internamente é o retorno da consciência
ao seu estado primordial de conhecimento verdadeiro. Ele é o Senhor do Yoga, o protótipo do yogue
tântrico, e veio a representar a consciência liberada. Portanto, como uma figura simbólica, pode ter sido
visto como o maior rival e ameaça ao vajrayana, em um tempo em que as duas tradições tântricas
estavam se desenvolvendo em um relacionamento muito próximo uma da outra. Entretanto, a lenda
budista não tem absolutamente nenhuma semelhança com qualquer das lendas hindus de Rudra ou
Shiva. Ele realmente partilha alguns traços iconográficos com os herukas — a lua em seu cabelo, o colar
de crânios, a pele de tigre ao redor de sua cintura, a cinza aplicada em seu corpo e as serpentes
enroscadas em seus membros —, mas não possui asas ou a forma feia de um rakshasa.
111
Em sânscrito, mahottara heruka; em tibetano, che mchog heruka.

290
vermelho escuro ao púrpura, castanho-avermelhado ou marrom. A Dama Colérica do
Espaço112 é descrita como sendo azul-escura. Entretanto, em pinturas, às vezes eles
têm a mesma cor, ou castanho-avermelhado ou azul, com a parceira feminina em um
tom um pouco mais claro que o seu par masculino. Diversas versões levemente
diferentes dos ensinamentos do bardo existem dentro da tradição Ningma, e existem
até diferentes descrições das deidades entre os textos desse ciclo terma.

As deidades coléricas emergem do cérebro, o local da razão e do intelecto, em


oposição à inteligência emocional e intuitiva do coração. Nas cinco famílias, a família
Vajra é associada tanto com o intelecto quanto com a agressão. Como Trungpa
Rinpoche explica, “o intelecto aqui é algo agressivo no sentido vajra, algo
extremamente poderoso”. As deidades coléricas expressam imensa raiva, sem ódio, é
claro, a mais imensa raiva que a mente iluminada poderia jamais produzir, como a
mais intensa forma de compaixão”.113

O chakra da cabeça, localizado na área do cérebro, está também conectado ao


corpo, o sentido da intensa energia física incorporada das deidades coléricas. É
significativo que todas as deidades sejam na verdade descritas como emanando dos
órgãos físicos do coração, da garganta e do cérebro, em vez dos chakras associados a
eles. Aqueles que estão no bardo não possuem mais seus antigos corpos, mas ainda
são seres conscientes, portanto existem nos três níveis que chamamos corpo, fala e
mente. Experimentam a sensação de um “corpo mental” formado a partir de ligações
kármicas com o passado e o futuro. Mais importante, as deidades são uma parte
inerente de nossa existência física aqui e agora; não são abstratas, não são apenas
visões ou ideais. Mente e corpo não podem ser separados, e é apenas vivendo como
seres corpóreos que despertamos para a iluminação.

O OITAVO DIA

Ó filho de família desperta, escute sem distração. Embora o bardo


pacífico já tenha aparecido, você não o reconheceu, portanto tem vagado
ainda mais até chegar a este ponto. Agora, no oitavo dia, as deidades
coléricas bebedoras de sangue aparecerão. Reconheça-as sem se
perturbar.
Ó filho de família desperta, ele que é chamado de o grande e glorioso
Heruka Buda emergirá de dentro de seu próprio cérebro e aparecerá à sua
frente claramente como ele de fato é. Seu corpo é castanho-avermelhado
na cor, com três cabeças, seis braços e quatro pernas bem abertas. Sua

112
Em sânscrito, krodhadhatvishvari; em tibetano, khro mo dbyings phyug.
113
The Lion's Roar, p. 202.

291
face direita é branca; sua face esquerda, vermelha; e sua face central,
castanho-avermelhada. Seu corpo refulge como uma montanha de luz,
seus nove olhos olham para os seus com uma expressão aterrorizante, suas
sobrancelhas lembram lampejos de raios e seus dentes brilham como o
cobre.
Ele ri alto com gritos de “a-la-la!” e “ha-hee-ee”, e emite sons sibilantes
altos de “shoo-oo!”. Seu cabelo vermelho-dourado ergue-se para o alto
rebrilhando em chamas, suas cabeças são coroadas com crânios secos e
com o sol e a lua, seu corpo é adornado com serpentes negras e cabeças
recentemente cortadas. Com suas seis mãos, ele segura uma roda na
primeira à direita, um machado na do meio e uma espada na última; um
sino na primeira à esquerda, uma relha de arado na do meio e uma taça de
crânio na última. A mãe, a Dama Colérica Buda, abraça o corpo do pai. Ela
segura seu pescoço com sua mão direita, e com a esquerda segura uma
taça de crânio com sangue em direção à sua boca. Ele produz sons altos
estalando os lábios com seu palato e sons de grunhidos como o roncar do
trovão. O fogo do conhecimento flameja dos pêlos de seu corpo, que são
uma massa de vajras flamejantes. Ele senta-se em um trono carregado no
ar por garudas, com um par de pernas dobrado e o outro esticado.
Não tenha medo dele, não fique aterrorizado, não fique petrificado.
Reconheça-o como a forma de sua própria consciência. Ele é a sua deidade
escolhida, portanto não tema. Ele é na verdade o próprio Vairochana
abençoado em união com a mãe, portanto não tenha medo.
Reconhecimento e liberação são simultâneos.

Em vez de estarem rodeados por arco-íris, os herukas são envolvidos em chamas,


uma tempestade de fogo ardendo com a força de sua compaixão colérica. Eles são
como o brilho incandescente do raiar de cem mil sóis; são o poder nuclear da
iluminação. Riem e uivam e rugem com intensidade ensurdecedora. Seus corpos são
imponentes, com membros volumosos e exagerados, dando impressão de solidez e
força inabalável. Contudo, ao mesmo tempo, são ágeis, até mesmo graciosos, e cheios
de energia dinâmica. São alados, uma característica que é exclusiva das deidades
coléricas Ningma114. Com suas asas abertas e braços esticados, parecem como se
estivessem prestes a levantar vôo, no entanto seus pés pesados e cravados no chão
permanecem firmemente assentados. Mas seu peso e sua solidez são metáforas, e

114
Exceto por uma forma testemunhada de Mahakala como “Senhor da Tenda”; ver Nebesky-
Wojkowitz, Oracles and Demons of Tibet, Graz, Akademische Druck-u, Verlagsanstalt, 1975, p. 51. Isso
também pode ser uma imagem Ningma.

292
nunca deveriam ser imaginados como substanciais; seus corpos são feitos
inteiramente de luz — eles são “a forma vazia”.

Os herukas das cinco famílias que aparecem durante o bardo têm cada um três
cabeças, seis braços e quatro pernas. Em geral, seja nas deidades pacíficas ou nas
coléricas, a posse de muitos membros evidencia a multiplicidade e a universalidade de
seus poderes, enquanto significados simbólicos específicos podem também se aplicar
em cada caso em particular. Existem com frequência diversas interpretações
diferentes das quais apenas poucas podem ser dadas aqui. Não há conflitos entre essas
várias interpretações, mas deveriam todas ser mantidas na mente ao mesmo tempo.
Juntas, constroem um retrato da transformação completa da confusão, negatividade e
maldade no estado desperto.

As três cabeças dos herukas simbolizam a energia transmutada da paixão,


agressão e ilusão. Elas evidenciam que os herukas são a expressão viva dos três
aspectos do pleno despertar: dharmakaya, sambhogakaya e nirmanakaya. Também
representam a liberdade por meio dos três portais para a liberação: primeiro, a
realização do vazio e da amplitude da realidade; segundo, a compreensão de que não
existem características pelas quais a realidade possa ser definida ou cristalizada; e
terceiro, alcançar o ponto que transcende a aspiração e o esforço, quando não existe
mais qualquer esperança de sucesso ou medo do fracasso.

Seus seis braços representam as seis perfeições da generosidade, moralidade,


paciência, energia, meditação e sabedoria, e também os seis tipos de conhecimento;
os cinco que pertencem às cinco famílias, mais a sua unidade como o sexto.
Alternativamente, os seis braços demonstram a liberação dos seres dos seis reinos da
existência; e, em outras palavras, superam os estados negativos da mente que cria os
seis reinos.

Suas quatro pernas representam as quatro bases da habilidade milagrosa que


podem ocasionalmente ser exibidas como poder paranormal, mas é essencialmente
um processo de crescimento interior e realização espiritual. Essas bases são definidas
como renúncia aos objetivos mundanos combinada com profunda concentração em
quatro áreas: o desejo de despertar, vontade ou intenção firme, energia e
perseverança e indagação intelectual. As quatro pernas também simbolizam as quatro
atividades vajra de pacificação, enriquecimento, magnetização e destruição, e a
liberação dos seres dos quatro tipos possíveis de nascimento — de um ovo, de um
útero, de calor e umidade, ou espontaneamente. Seus pés pesados demonstram que
os herukas subjugaram completamente os quatro maras, que são as forças da morte
física e espiritual, aspectos do Maligno que sempre tenta obstruir o despertar. Eles são
o mara dos skandhas, o processo de construir e manter o ego; o mara das aflições ou
venenos; o mara da própria morte; e o mara chamado “filho dos deuses”, o apego à
realização espiritual que acaba se transformando em outro suporte para o ego.

293
Os herukas têm um terceiro olho em suas testas; seus três olhos significam que
eles veem e sabem tudo do passado, presente e futuro e dos três mundos do desejo,
da forma e da ausência de forma. Seus rostos são untados com unguentos feitos de
três substâncias do solo sepulcral: cinzas, sangue e gordura derretida, simbolizando os
três kayas. Eles exibem seus quatro caninos, semelhantes à lua crescente, com
determinação para subjugar os quatro maras. Franzem os rostos de maneira
ameaçadora, de tal forma que suas sobrancelhas contraídas ondulem como raios
cruzando o céu escuro de suas testas. Seus cabelos se erguem como chamas,
expressando a energia irrestrita de sua natureza colérica e a reversão das tendências
samsáricas. A lua dos meios habilidosos e o sol da sabedoria brilham em seus cabelos.
Suas asas de garuda indestrutível se abrem amplas, simbolizando a realização de todos
os objetivos.

Como os budas pacíficos, os herukas usam uma coroa de cinco pontas, mas
agora ela é adornada com crânios, simbolizando a liberação dos cinco venenos
transformados no conhecimento das cinco famílias. Isso mostra que os venenos não
precisam ser abandonados nem destruídos, mas podem ser exibidos como adornos,
uma vez que sua energia seja usada corretamente. Estão ornados com um longo colar
que pende com cinquenta cabeças cortadas. As cabeças podem ser interpretadas
como os cinquenta caracteres do alfabeto sânscrito, os sons primordiais vibrando no
centro de toda a existência, ou como os 51 ou 52 fatores no skandha do
condicionamento, purificados em seu estado natural. Algumas vezes uma guirlanda de
ombro com cabeças em putrefação é incluída nos adornos dos herukas. Os três tipos
de crânio — secos, decadentes e frescos — representam o passado, o presente e o
futuro. A guirlanda longa pode também conter todas as três enfileiradas em uma corda
de intestinos, simbolizando a impermanência e a insubstancialidade dos fenômenos.

Suas roupas consistem em três peles masculinas esfoladas. No alto, um manto de


pele de elefante estendido de ombro a ombro, simbolizando a força e a superação da
ilusão. Abaixo se encontra uma capa ou xale feito de uma pele humana completa,
simbolizando a compaixão e a transmutação da paixão. Ao redor da cintura está uma
tanga de pele de tigre, indicando o domínio da selvageria e da ferocidade da agressão.
A pele de tigre, com suas faixas simétricas em cada lado da espinha, também simboliza
a transcendência da dualidade de sujeito e objeto.

Serpentes se enroscam ao redor de suas pernas, formando cinco grupos de


ornamentos de cobras: ao redor dos braços e das pernas, em torno do pescoço, em
volta do peito como uma faixa ou guirlanda, através dos ouvidos e prendendo o
cabelo. Elas representam as cinco castas de deidades serpentes, sendo que algumas
vezes diz-se que são de cores diferentes, e simbolizam os cinco níveis da paixão que
foram controlados. Outra interpretação liga a pele de elefante com a transmutação da

294
ilusão, a pele humana com a paixão, a pele de tigre com o orgulho, o colar de cabeças
com a inveja e os ornamentos de cobras com a agressão.

Os herukas também usam um conjunto de seis ornamentos de ossos: um enfeite


de cabelo circular, brincos, um colar, braceletes (contados juntos com pulseiras e
tornozeleiras), um cinto, e unguento feito de cinza de ossos. Algumas vezes a cinza é
substituída por um ornamento no peito preso a duas faixas cruzadas sobre o torso.
Eles simbolizam as seis perfeições: o ornamento de cabelo é a meditação; os brincos, a
paciência; o colar, a generosidade; os braceletes, a moralidade; o cinto, a energia e a
cinza, sabedoria. Os primeiros cinco podem também corresponder aos budas das cinco
famílias: Akshobhya, Amitabha, Ratnasambhava, Vairochana e Amoghasiddhi. Nem
todos os detalhes de roupas e adornos estão descritos neste texto ou representados
nas pinturas do bardo, mas deveríamos certamente imaginar os herukas como
possuidores de todas essas qualidades.

Eles se sentam em tronos de lótus, lua e sol, com o sol sendo o ponto mais
elevado. Suas pernas estão abertas, com as direitas dobradas e as esquerdas esticadas
em uma postura heróica de dança derivada da posição de um arqueiro, pisoteando
cadáveres que jazem sob seus pés. Os cadáveres representam os aspectos masculinos
e femininos de Rudra, o ego personificado, nas formas de vários deuses e deusas
designados para cada uma das cinco famílias.

Os tronos dos herukas são apoiados por garudas voadores, enfatizando seu
dinamismo e sua atividade onipresente de destruir o mal. O garuda se parece com uma
águia com braços e torso humano, e com garras, bico e chifres de ferro meteorítico. De
acordo com a mitologia indiana, o Garuda original era um pássaro divino que rompia a
casca do ovo já plenamente desenvolvido, seu corpo dourado tão brilhante quanto o
fogo, suas asas cobrindo o céu. Tanto no hinduísmo quanto no budismo ele é uma
figura muito poderosa e, particularmente na tradição Ningma, tornou-se um símbolo
da realização espontânea do despertar. É corajoso e invencível, e viaja
instantaneamente através do espaço. Personifica a energia e a determinação do
meditante, que leva a pessoa ao pico da realização em duas asas vajra indestrutíveis,
da sabedoria e dos meios habilidosos, vazio e compaixão. É o inimigo das serpentes,
aqui representando qualquer tipo de negatividade e veneno, e é mostrado devorando-
as com seu bico. Seus olhos rebrilham com luz, buscando-as em todas as direções. Ele
é adornado com uma joia realizadora de desejos em sua cabeça, que verte o que quer
que seja necessário para a obtenção do sucesso na prática do dharma.

A plena manifestação das deidades é comparada a uma peça em ambos os


sentidos da palavra. Ela é a expressão espontânea e criativa do deleite, e é a
representação de um drama que acontece no palco do solo primordial do ser. Sem
jamais se moverem para além da tranquilidade da sua natureza interior essencial, eles
desempenham qualquer papel que seja necessário para despertar todos os seres.

295
Nessa peça, demonstram os nove estados ou sentimentos (navarasa) da estética
indiana: erótico, heróico, repulsivo, humorístico, colérico, temível, compassivo,
assombroso e pacífico115. A interpretação budista difere levemente do original (que foi
primeiramente formulado para a dança), no sentido que o bailarino geralmente
representa os sentimentos de repugnância, medo e assombro, enquanto os herukas
provocam as mesmas reações nos outros por meio de sua conduta. Também, nesse
contexto, os nove sentimentos são agrupados em atributos de corpo, fala e mente.
Com seus corpos, os herukas são graciosos, sensuais e sedutores, expressando a
transmutação da paixão; mostram a energia, o poder e a coragem dos heróis
guerreiros, expressando a transmutação da agressão; e possuem a aparência repulsiva,
terrível dos rakshasas, com caninos à mostra, carrancas coléricas e olhos revirados,
expressando a transmutação da ilusão. Com sua fala, riem alto com diferentes tons e
sentimentos no gargalhar; gritam ameaças violentas e comandos de grande
ferocidade, mantras coléricos; e emitem guinchos altos e aterrorizantes, rugindo e
bramindo como trovões e raios. Seu estado mental é pleno de compaixão em relação a
todos os seres; assombroso, extraordinário e afrontoso, para dominar os seres
recalcitrantes; e eternamente pacífico, já que nunca se apartam da natureza imutável
do dharmadhatu.

As damas coléricas têm três olhos e expressões ferozes, mas em outros aspectos
possuem uma forma física normal. Seu único rosto representa a equidade, ou sabor
único, de todos os fenômenos na verdade final. Seus dois braços simbolizam a
sabedoria e os meios habilidosos trabalhando juntos em equilíbrio e harmonia. Sua
pose dançarina, intimamente entrelaçada ao redor do corpo de seu consorte, significa
que a sabedoria nunca está separada dos meios habilidosos. Elas saltam em direção ao
abraço dos herukas com abandono extático, e a atitude total de ambos os parceiros
irradia o desfrute ardente de sua bem-aventurança.

A aparência delas não é descrita em detalhes nos textos do bardo, mas em geral
as consortes coléricas femininas estão nuas, exceto por uma saia de pele de leopardo
simbolizando o destemor. Elas usam a coroa de crânios e os ornamentos de ossos sem
o unguento do solo sepulcral que simboliza a sabedoria, porque elas próprias são a
personificação da sabedoria. Podem também trazer uma guirlanda de crânios e outros
adornos de joias.

115
Como os nove sentimentos são tão importantes nas artes da índia, pode ser de ajuda listá-los em
sânscrito com seus equivalentes tibetanos (nyams gud): erótico (shringara, sgeg pa); heróico (vira, dpa’
ba); repulsão/repulsivo (bibhatsa, mi sdug pa); humorístico (hasya, dgod pa), colérico (raudra, drag
shul); temível/assustador (bhayanaka, ‘jigs su rung ba); compassivo (karuna, snying rje);
assombroso/maravilhoso (adbhuta, rngams pa); e pacífico (shanta, zhi ba). Em outros contextos
tântricos, eles podem ser interpretados diferentemente; por exemplo, ver Alex Wayman, Yoga of the
Guhyasamajatantra, Nova Délhi, Motilal Banarsidass, 1977, p. 327-328. Para referências de fontes, ver
Herbert V. Guenther, Matrix of Mystery, Boulder, Shambhala, 1984, pág. 271, notas 16 e 17.

296
O Heruka Buda e a Dama Colérica Buda são transformações de Vairochana e
Akashadhatvishvari, que são suas essências pacíficas fundamentais. Nessa forma
furiosa, simbolizam a transmutação total da energia que está por trás da ignorância e
da auto-ilusão. Essa energia, em seu estado puro e natural, é o conhecimento todo
abrangente da realidade, a liberação em direção à ilimitada amplitude do
dharmadhatu. Em virtude de sua natureza colérica, seus corpos não são brancos, mas
da cor castanho-avermelhada do Grande Supremo Heruka, que não aparece no texto,
mas é a origem dos cinco herukas.

Com seu par de braços principal, o heruka envolve a cintura da dama colérica,
segurando os mesmos atributos de suas contrapartidas pacíficas: em sua mão direita,
uma roda, o símbolo da família Buda, e em sua mão esquerda, um sino, que toca o
som do vazio. Em suas mãos que sobram, ele carrega um machado, uma espada, um
arado e uma taça feita de crânio. O machado corta a árvore da existência mundana e
racha ao meio a solidez da crença no ego, mas é também um machado de batalha
usado como arma de guerra contra as forças malignas. O arado revolve as causas do
sofrimento e evita o plantio de sementes kármicas negativas. Esses dois utensílios são
seguros em mãos opostas, e juntos representam o poder sobre a causa e o efeito
kármicos. A espada é o atributo universal de um guerreiro; com sua lâmina afiada, ela
destrói os cinco venenos, e é também um símbolo da consolidação dos poderes
espirituais. A palavra utilizada aqui para a taça feita de crânio pretende significar um
recipiente para comida, bebida e oferendas; é utilizada por yogues tântricos como um
lembrete contínuo da impermanência de tudo na vida. Na mão esquerda, representa
sabedoria. Como um atributo dos herukas, ela é cheia com o sangue de Mara, o
sangue da vida do samsara, transmutado como o elixir do conhecimento.

A dama colérica é da mesma cor do heruka, mas em um tom mais claro. Ela se
apóia em sua perna direita, tendo sua perna esquerda enroscada em torno da cintura
dele. Com seu braço direito, ela envolve o pescoço dele, e em sua mão direita também
traz uma roda, que está oculta pela cabeça dele. Em sua mão esquerda, traz um cálice
feito de crânio cheio de sangue humano, que segura em frente à boca de seu parceiro
para que ele o beba. Nesse contexto de oferecer o sangue da vida do samsara para o
princípio do despertar, ele é conhecido pela expressão cifrada de um búzio vermelho,
porque os búzios são usados com frequência como recipientes para oferendas.

Muitos níveis de significado podem ser identificados aqui. O símbolo da família,


seguro na mão direita, representa o princípio masculino. Representa o tipo particular
de meios habilidosos daquela família, a maneira especial na qual os budas manifestam
sua compaixão. O cálice feito de crânio cheio de sangue é seguro na mão esquerda e
significa o princípio feminino da sabedoria e do vazio. Considerando o crânio e seus
conteúdos individualmente, o crânio representa o princípio masculino que nesse caso
é a bem-aventurança; isso acontece porque ele é branco, que é a cor da essência

297
masculina, que no corpo sutil se origina no chakra coronário. O sangue contido no
crânio é da cor vermelha da essência feminina e representa o princípio feminino do
vazio. Portanto a mãe, que simboliza os objetos da experiência, apresenta a unidade
da bem-aventurança e do vazio ao pai, que é a consciência que experimenta. Consumir
o sangue significa transmutá-lo completamente e é a atividade da compaixão, que
somente é possível em conjunto com a sabedoria do vazio. Ao mesmo tempo, o casal
simboliza a união desses dois princípios em todos os seus vários significados. Em As
cem homenagens, os devas coléricos são chamados de damas do espaço das cinco
famílias; são o espaço, a amplidão e o altruísmo no qual a energia desobstruída dos
herukas flui.

Eles são a expressão de nossa verdadeira natureza, a explosão irresistível de


nosso potencial não reconhecido para destruir todas a limitações e cortar através de
todos os obstáculos em direção ao despertar. A instrução é sempre reconhecê-los
como nossa deidade escolhida, que não outra senão nossa natureza de buda, nosso
estado desperto de suprema consciência. Qualquer um que tenha praticado o yoga da
deidade na tradição Ningma se sentirá familiarizado com a aparição dos herukas
coléricos e se sentirá à vontade com eles quando encontrá-los no bardo. Mesmo que
tenham meditado somente sobre uma manifestação pacífica, se eles realmente
compreenderam o significado da deidade, serão capazes de reconhecer a mesma
essência no coração do aspecto colérico. Em termos da vida comum, quanto mais
pudermos aprofundar e estabilizar nossa consciência na meditação, maiores serão as
chances de nos conectarmos com aquela consciência em qualquer tipo de situação,
não importando o quão perturbadora ela possa ser. Mas, se não reconhecermos o
primeiro heruka e tentarmos fugir em função do medo, uma outra forma irá aparecer
imediatamente vinda das profundezas do nosso anseio urgente por liberação.

O NONO DIA

Ó filho de família desperta, escute sem distração. No nono dia, a


manifestação bebedora de sangue da família Vajra, chamado de o
abençoado Heruka Vajra, emergirá da região leste do seu cérebro e
aparecerá à sua frente. Seu corpo é azul-escuro na cor, com três cabeças,
seis braços e quatro pernas bem abertas. Sua face direita é branca; sua
face esquerda, vermelha e sua face central, azul. Com suas seis mãos, ele
segura um vajra na primeira à direita, uma taça feita de crânio na do meio
e um machado na última; um sino na primeira à esquerda, uma taça feita
de crânio na do meio e um arado na última. A mãe, a Dama Colérica Vajra,
abraça o corpo do pai. Ela envolva o pescoço dele com sua mão direita, e

298
com a esquerda segura uma taça feita de crânio com sangue junto à sua
boca.
Não tenha medo dele, não fique aterrorizado, não fique petrificado.
Reconheça-o como a forma de sua própria consciência. Ele é a sua própria
deidade escolhida, portanto não tema. Ele é realmente o próprio
abençoado Vajrasattva em união com a mãe, portanto sinta devoção e
saudade. Reconhecimento e liberação são simultâneos.

O heruka da família Vajra representa a transmutação de todo o ódio, agressão e


raiva comuns na tremenda força colérica do estado desperto. Segurando um vajra em
sua mão direita, com a claridade e a agudeza de um diamante, ele destrói todas as
correntes subterrâneas de negatividade, irritação, repulsa e ressentimento que
nublam nossa consciência e revela o brilhante conhecimento do espelho, ardendo em
chamas ao redor dele. O vajra, além de ser o símbolo mais importante do vajrayana, é
também uma arma supremamente poderosa, indestrutível e devastadora. Aqui ela é
usada com uma compaixão totalmente impiedosa contra aquelas forças de negação
que nos impedem de deixar florescer nosso pleno potencial.

Independentemente de suas cores e dos utensílios em particular que eles


carregam, a descrição dos herukas e de suas consortes que aparecem nas quatro
direções é a mesma do casal central, embora ela não seja repetida a cada vez. Todos
os herukas são mais escuros na cor do que suas contrapartidas pacíficas, evidenciando
a intensidade de suas naturezas. O corpo e a face central do Heruka Vajra é azul-
escuro, enquanto a Dama Colérica Vajra é azul-clara. Ela segura um vajra em sua mão
direita como um símbolo da família e uma taça de crânio cheia de sangue em sua mão
esquerda, como antes. O heruka segura um sino em sua mão esquerda primária como
antes, e carrega duas taças feitas de crânio, um machado e um arado nas suas outras
mãos, seus significados simbólicos sendo os mesmos que os do Heruka Buda.

O DÉCIMO DIA

Ó filho de família desperta, escute sem distração. No décimo dia, a


manifestação bebedora de sangue da família Ratna, chamado de o
abençoado Heruka Ratna, emergirá da região do sul do seu cérebro e
aparecerá à sua frente. Seu corpo é amarelo-escuro na cor, com três
cabeças, seis braços e quatro pernas bem abertas. Sua face direita é
branca; sua face esquerda, vermelha e sua face central é amarelo-escura
brilhante. Com suas seis mãos, ele segura uma joia na primeira à direita,

299
um cajado tântrico na do meio e um bastão na última; um sino na primeira
à esquerda, uma taça feita de crânio na do meio e um tridente na última. A
mãe, a Dama Colérica Ratna, abraça o corpo do pai. Ela envolve o pescoço
dele com a sua mão direita, e com a sua mão esquerda segura uma taça de
crânio com sangue junto à boca dele.
Não tenha medo dele, não fique aterrorizado, não fique petrificado.
Reconheça-o como a forma de sua própria consciência. Ele é a sua própria
deidade escolhida, portanto não tema. Ele é na verdade o próprio
Ratnasambhava em união com a mãe, portanto sinta devoção por eles.
Reconhecimento e liberação são simultâneos.

Agora a energia liberada do orgulho e da arrogância irradia como um raio de sol


vindo de uma joia dourada refulgente, derrubando as barreiras que nos cegam para o
conhecimento equalizador e a presença da natureza de buda em tudo ao nosso redor.
O Heruka Ratna é amarelo-dourado escuro e a Dama Colérica Ratna é de um amarelo
mais pálido, as manifestações coléricas de Ratnasambhava e Mamaki. Cada um deles
segura uma joia realizadora de desejos em suas mãos direitas e os símbolos usuais em
suas mãos esquerdas. Em suas outras mãos, o heruka carrega um cajado tântrico, um
bastão, uma taça de crânio e um tridente.

O tridente era um símbolo budista muito antigo para as três joias: o Buda, os
ensinamentos do dharma e a comunidade (sangha). Suas três pontas podem
representar qualquer número das tríades que são encontradas no budismo. Nesse
contexto, ele é visto particularmente como uma arma que destrói os três venenos da
paixão, agressão e ilusão com um único golpe. Também simboliza a manifestação dos
três kayas; a perfeição de corpo, fala e mente; e a posse do controle sobre o fluxo de
prana nos três nadis. O bastão é uma arma com a qual se bate, esmaga e pulveriza as
forças perniciosas e obstrutivas.

O cajado tântrico, ou khatvanga, é um outro emblema muito significativo no


vajrayana. Ele significa literalmente uma “perna de cama” e era originalmente bem
curto e usado como um porrete. Transformou-se em um cajado de asceta encimado
por um crânio e por fim em um cajado longo, esguio e em forma de cetro carregado
por muitas deidades tântricas. Sua haste é octogonal, representando o caminho
óctuplo nobre do Buda. Três cabeças humanas estão empaladas sobre ele; a mais alta
é um crânio seco simbolizando o dharmakaya, a do meio é uma cabeça em
decomposição para o sambhogakaya e a inferior é uma cabeça recentemente cortada
para o nirmanakaya. Abaixo das cabeças está uma jarra cheia com o elixir da vida, e em
seguida um vajra duplo, simbolizando a atividade universal iluminada. Um cachecol
está amarrado a tudo isso, suas duas pontas representando a inseparabilidade de

300
mahayana e vajrayana. Muitas vezes ele é encimado por um tridente, cujas pontas
representam os três nadis principais. O cajado inteiro pode também simbolizar o nadi
central, com o vajra duplo, a jarra e as três cabeças formando os cinco chakras
principais. Sua posse indica o controle do corpo sutil. Quando ele é empunhado por
uma única figura na dobra do braço esquerdo, representa o consorte, seja masculino
ou feminino. Aqui é seguro na mão direita do meio do heruka e é um símbolo dos
meios habilidosos, enquanto a mão esquerda oposta segura a taça de crânio da
sabedoria.

O DÉCIMO PRIMEIRO DIA

Ó filho de família desperta, escute sem distração. No décimo primeiro


dia, a manifestação bebedora de sangue da família Padma, chamado de o
abençoado Heruka Padma, emergirá da região oeste de seu cérebro e
aparecerá à sua frente. Seu corpo é vermelho-escuro na cor, com três
cabeças, seis braços e quatro pernas bem abertas. Sua face direita é
branca, sua face esquerda azul e sua face central vermelho-escura ardente.
Com suas seis mãos ele segura um lótus na primeira à direita, um cajado
tântrico na do meio e um bastão na última; um sino na primeira à
esquerda, uma taça de crânio cheia até a borda de sangue na do meio e um
pequeno tambor na última. A mãe, a Dama Colérica Padma, abraça o corpo
do pai. Ela envolve seu pescoço com a sua mão direita, e com a sua mão
esquerda segura uma taça de crânio com sangue junto à boca dele.
Não tenha medo dele, não fique aterrorizado, não fique petrificado. Seja
alegre e reconheça-o como a forma de sua própria consciência. Ele é a sua
deidade escolhida, portanto não fique assustado ou aterrorizado. Ele é na
verdade o próprio abençoado Amitabha em união com a mãe, portanto
sinta devoção em relação a eles. Reconhecimento e liberação são
simultâneos.

Amitabha e Pandaravasini se manifestam em seus aspectos coléricos como um


lótus escarlate ardente, incendiado pela energia irresistível da paixão, luxúria e
ganância, transformada na compaixão e no amor do conhecimento investigador. Eles
seguram um lótus, o símbolo da família Padma, em suas mãos direitas e, como
anteriormente, um sino ou uma taça de crânio em suas mãos esquerdas. Como o
Heruka Ratna, o Heruka Padma segura um cajado tântrico e uma taça de crânio em
suas mãos do meio. As taças de crânio trazidas pelos herukas todas contêm sangue,

301
mas desta vez ela é especificamente descrita como estando cheia de sangue até a
borda, talvez para enfatizar a conexão do sangue com o desejo — o desejo que
impulsiona e anima o samsara. O pequeno tambor é seguro por uma curta alça de
madeira; ele ressoa com a voz agradável do dharma. O bastão é um outro tipo de
porrete; embora o texto não especifique isso, nas pinturas das deidades do bardo, ele
sempre parece ser representado com um crânio sorridente no topo, de tal forma que é
ao mesmo tempo uma arma e um símbolo da morte e da transmutação.

O DÉCIMO SEGUNDO DIA

No décimo segundo e último dia do bardo do dharmata, o heruka e a dama


colérica da família Karma aparecem, acompanhados por uma grande multidão de
vários tipos de dakinis coléricas, que representam o funcionamento dinâmico de nossa
consciência desperta inerente.

Ó filho de família desperta, escute sem distração. No décimo segundo


dia, a manifestação bebedora de sangue da família Karma, chamado de o
abençoado Heruka Karma, emergirá da região norte de seu cérebro e
aparecerá à sua frente. Seu corpo é verde-escuro na cor, com três cabeças,
seis braços e quatro pernas bem abertas.
Sua face direita é branca, sua face esquerda vermelha e sua face central
de um verde-escuro majestoso. Com suas seis mãos, ele segura uma
espada na primeira à direita, um cajado tântrico na do meio e um bastão
na última; um sino na primeira à esquerda, uma taça de crânio na do meio
e um arado na última. A mãe, a Dama Colérica Karma, abraça o corpo do
pai. Ela envolve o seu pescoço com sua mão direita, e com a mão esquerda
segura uma taça de crânio com sangue junto à boca dele.
Não tenha medo dele, não fique aterrorizado, não fique petrificado.
Reconheça-o como a forma de sua própria consciência. Ele é sua deidade
escolhida, portanto não tema. Ele é na verdade o próprio abençoado
Amoghasiddhi em união com a mãe. Sinta saudade e uma devoção
apaixonada. Reconhecimento e liberação são simultâneos.

A energia dinâmica e tremendamente ativa da família Karma, com suas


tendências ao ciúme, à ambição e à paranoia, é transformada no conhecimento
executor das ações, com a habilidade para superar todas as obstruções e atingir todos

302
os objetivos. Em seu aspecto pacífico, Amoghasiddhi segura um vajra duplo, mas aqui
o heruka brande uma espada, o símbolo alternativo da família Karma, e aquele que é
mais apropriado para a manifestação colérica. Com ela, ele corta através das dúvidas,
dos obstáculos e limitações de todos os tipos. Todos os outros utensílios que ele
carrega já foram descritos, junto com as suas funções. A Dama Colérica Karma é verde-
clara, e ela porta uma espada e uma taça de crânio com sangue.

O texto nos lembra que por mais aterrorizantes que as deidades coléricas
possam parecer, assim que sua verdadeira natureza é mostrada, é fácil reconhecê-las e
ser liberado. É igual a uma situação na qual estivéssemos aterrorizados por um leão
empalhado, pensando que é real, mas assim que alguém nos mostra que é apenas uma
imitação, todos os nossos medos se evaporam. Quando reconhecemos os herukas
como nossa deidade escolhida, a experiência pessoal da luminosidade que tivemos
anteriormente na meditação se funde com a luminosidade auto-existente do bardo,
como uma criança correndo para os braços de sua mãe: “Aparecendo de si própria
para si própria, de forma a liberar a si própria, como ao encontrar um velho amigo, a
autoconsciência auto-iluminada é auto liberada"

Entretanto, sem essas instruções, ou se a pessoa falecida foi incapaz de ouvir e


responder a elas, “mesmo uma pessoa boa pode recuar a vagar no samsara”. Por isso
agora, uma comitiva de deidades femininas furiosas aparece de todas as direções da
mandala, em um clamor para nos incitar e nos convidar, preenchendo cada canto do
espaço, de tal forma que não há como evitá-las. Elas cercam o grupo de todos os cinco
herukas, de forma que a mandala colérica inteira se revela à nossa frente. Algumas
tradições dividem essas visões em um décimo terceiro e um décimo quarto dia,
completando sete dias de visões coléricas, correspondendo aos sete dias da primeira
parte do bardo do dharmata.

Muitas dessas deidades possuem cabeças de animais e pássaros selvagens, seus


corpos são de muitas cores e elas usam xales de pele humana e peles de leopardo ou
de tigre ao redor de suas cinturas. São tão grandes e assustadoras quanto os herukas;
cada uma delas parece preencher todo o espaço. Elas gesticulam de maneira selvagem
e se contorcem em movimentos vigorosos de dança. Carregam armas, emblemas de
vários tipos e cadáveres do solo sepulcral; bebem sangue e comem carne humana
crua. Comer e beber substâncias tão repulsivas simboliza aceitar todos os aspectos do
samsara como fundamentalmente puros, sem fazer nenhuma distinção, e em seguida
transmutá-los por completo através do ato de consumi-los. A interpretação dos
emblemas trazidos pelos três primeiros grupos é extraída de As cem homenagens.

Primeiro, oito dakinis coléricas emergem das oito direções do cérebro. Em As


cem homenagens, elas são chamadas de mães (em tibetano, ma mo), mas em
Liberação através da audição, são chamadas coletivamente as oito gauris, depois que a
primeira delas aparece. Seus nomes, e os do próximo grupo, estão listados em

303
sânscrito transliterado para a escrita tibetana. Em algumas das matrizes tibetanas, o
nome gauri foi mudado para keuri, portanto em algumas traduções elas são chamadas
de as oito keurimas. Gauri é um dos muitos nomes do princípio feminino no
hinduísmo. Significa branco, brilhante ou dourado, e designa seu aspecto mais pacífico
como a linda e jovem mulher de Shiva. Mas aqui ela é adotada como uma deusa
budista colérica e está acompanhada por uma coleção igualmente inesperada de
espíritos maléficos, párias e criminosos. Eles unificam todos os tipos de contradições:
beleza com horror, pureza com impureza, o mais elevado com o mais baixo, vida com
morte. Demonstram claramente a natureza paradoxal do princípio das dakinis,
utilizando as mesmas coisas que nos aprisionam no samsara para nos libertar.

Como um grupo, eles correspondem aos bodhisattvas masculinos da mandala


pacífica, representando a natureza basicamente pura dos oito tipos de consciência 116.
Possuem rostos humanos, mas são de aparência feroz: seus cabelos revoltos se
erguem como chamas, seus três olhos se reviram e fitam, e eles dançam de maneira
triunfante sobre tronos de cadáveres humanos.

No leste está Gauri, a Branca. Ela representa a consciência original. Segura uma
taça de crânio com sangue em sua mão esquerda, e na direita brande um cadáver de
bebê como se fosse um porrete, mostrando que ela subjuga os pensamentos dualistas
do samsara. O corpo sem vida é um símbolo do estado mental original, não dualista, e
já que é o cadáver de um bebê, significa que ele nunca cresceu para o mundo do ego e
do outro.

No sul está a amarela Chauri, a Ladra. Ela representa a consciência mental, que
agarra e rouba tudo o que se aproxime da sua esfera. Nos tantras, se diz que
deveríamos roubar o tesouro da iluminação dos budas; ela transforma o ato de roubar,
de tal forma que ele conduza não ao sofrimento, mas ao despertar. Ela atira uma
flecha a partir de um arco — o arco da sabedoria lançando a flecha dos meios
habilidosos.

No oeste está Pramoha, Paixão. Vermelha como a cor da paixão, ela é a mulher
sedutora que arma as ciladas com suas artes da ilusão. Representa a consciência da
mente aflita na qual os cinco venenos operam. Agita um estandarte feito com a pele
de um monstro aquático sobre sua cabeça. O makara, ou monstro aquático, é uma
criatura mitológica baseada no crocodilo e combinada com características de diversos
outros animais. No hinduísmo, ele é um emblema de Kama, o deus da luxúria,
enquanto no budismo, é um símbolo do samsara, que por sua vez é muitas vezes
comparado a um rio ou um oceano. Pramoha o eleva bem alto como um estandarte da
vitória, para demonstrar que o samsara não é abandonado ou rejeitado, mas aceito
como realmente é.
116
A correspondência dos oito gauris e das oito pishachis com as consciências e seus campos é extraída
de Tulku Thondup, Enlightened Living, Boston, Shambhala, 1990, p. 134-135, notas 16 e 17.

304
No norte está a negra Vetali, a Vampira. Este é um espírito horripilante que
assombra os solos sepulcrais e entra e anima os cadáveres. Representa a consciência
do corpo ou tato. Ela dá vida ao cadáver da existência, que é essencialmente vazio,
sem ego e insubstancial. Segura um vajra e uma taça de crânio com sangue,
simbolizando o estado indestrutível e imutável da realidade, que transcende a
existência e a não-existência.

No sudeste está a alaranjada Pukkasi, a Mulher Pukkasa, representando a


consciência do olfato. Seu nome indica que ela pertence a um dos muitos grupos
sociais párias, geralmente o resultado de casamentos mistos entre castas. Segura um
punhado de entranhas em sua mão direita e se empanturra com elas, levando-as à
boca com sua mão esquerda. Devorar intestinos significa que ela consome os venenos
como eles são, reconhecendo seu estado naturalmente puro. Comer com a mão
esquerda é outro sinal de impureza no contexto indiano, portanto tudo o que diz
respeito a ela desafia as convenções.

No sudoeste está a verde-escura Ghasmari, a Voraz, representando a consciência


do paladar. Ela bebe o sangue do samsara de uma taça de crânio transbordante que
segura com sua mão esquerda. Em sua mão direita, segura um vajra com o qual ela
mexe o sangue, trazendo pedaços de carne e osso à superfície para serem consumidos.
Sangue, ossos e carne simbolizam paixão, agressão e ilusão.

No noroeste está a amarelo-clara Chandali, a Mulher Chandala, representando a


consciência da visão. Chandalas são os mais inferiores e os mais desprezados dos
grupos de párias, e suas mulheres são particularmente louvadas na literatura tântrica.
Ela arranca a cabeça do tronco de um cadáver, simbolizando a separação das visões
falsas e enganadoras. Em seguida, segurando o coração, a fonte da vida, com sua mão
direita, ela devora o corpo com sua mão esquerda.

No nordeste está a azul-escura Shmashani, a Habitante do Solo Sepulcral,


representando a consciência da audição. Ela também está comendo um cadáver,
separando a cabeça do corpo. Desta vez a ação é interpretada como a separação do
apoio da existência samsárica; ela arranca as causas que nos fazem vagar em círculos
pelos seis reinos, experimentando o solo sepulcral do nascimento e da morte repetidas
vezes.

Depois das oito mães, o grupo de oito pishachis aparece117. Elas eram
originalmente seres demoníacos, cujos nomes podem se originar ou de seus hábitos de
comer carne ou das cores variadas de suas cabeças e corpos. As quatro nos pontos
cardeais têm cabeças de animais e as quatro nas direções intermediárias têm cabeças

117
Em tibetano, phra men ma, pronunciado tramenma. Embora eu não o tenha encontrado em
dicionários, foi-me dito pelo falecido Khunu Rinpoche em 1975 que pishachi é o equivalente sânscrito.
Khunu Rinpoche não foi apenas um grande yogue, mas também um reconhecido erudito em sânscrito.

305
de pássaros. Correspondem às bodhisattvas femininas na mandala pacífica,
representando a pureza natural dos objetos dos oito tipos de consciência.

No leste está Simhamukha, a de Cabeça de Leão. Seu corpo é do mesmo


castanho-escuro ou púrpura do heruka central, indicando sua qualidade colérica. Ela
representa o campo objetivo da consciência original, a esfera da realidade do
dharmadhatu. Seus dois braços estão cruzados sobre seus seios; ela carrega um
cadáver em sua boca e sacode sua juba flamejante, simbolizando seu completo
domínio sobre o samsara.

No sul está Vyaghrimukha, a de Cabeça de Tigre. Ela é vermelha, com seus dois
braços cruzados e apontando para baixo. Ela rosna e franze o cenho, e seus olhos fitam
de maneira penetrante de modo a pacificar o samsara. Ela representa os objetos da
consciência mental.

No oeste está a negra Shrigalamukha, a de Cabeça de Chacal. Shrigala significa


primariamente “chacal” em sânscrito, mas o texto tibetano diz que ela tem a cabeça
de uma raposa. São animais razoavelmente semelhantes, ambos sendo encontrados
buscando carniça em locais como os solos sepulcrais. Ela representa os conteúdos da
mente nublada ou aflita. Brande uma lâmina em sua mão direita, com a qual fatia os
intestinos, coração e pulmões que segura em sua mão esquerda. Em seguida os devora
e lambe o sangue, simbolizando a purificação natural dos venenos.

No norte está a azul-escura Shvanamukha, a de Cabeça de Cão, representando os


objetos do tato. Mais uma vez a descrição tibetana está em desacordo com seu nome
sânscrito, dando a ela uma cabeça de lobo. De qualquer forma, significaria um cão
selvagem, caçador de carniça dos solos sepulcrais, muito parecido com seu antecessor
lupino. Ela está esquartejando um cadáver e segurando-o junto à sua boca com ambas
as mãos, e seus olhos fitam aguçadamente, de forma a penetrar o samsara até sua
maior profundeza.

No sudeste está a amarelo-clara Gridhramukha, a de Cabeça de Abutre,


representando os objetos da visão. Ela carrega um cadáver humano em seu ombro e
um esqueleto em sua mão. As cem homenagens acrescenta que ela está extraindo as
entranhas para poder cortar fora os três venenos em sua raiz.

No sudoeste está a vermelho-escura Kankamukha, a de Cabeça de Garça,


representando os objetos do olfato. Aqui o texto tibetano diz que ela tem a cabeça de
um “pássaro do solo sepulcral”, o que parece significar algum tipo de ave de rapina, tal
como um milhafre ou um falcão. Ela joga uma pele humana esfolada sobre o ombro
para simbolizar sua aceitação do samsara como puro.

No noroeste está a negra Kakamukha, a de Cabeça de Corvo, representando os


objetos do paladar. Ela segura uma espada na mão direita e uma taça de crânio com

306
sangue na esquerda, e ao mesmo tempo devora um coração e pulmões. Comer os
órgãos internos e beber o sangue simboliza a liberação dos venenos.

No nordeste está a azul-escura Ulumukha, a de Cabeça de Coruja, representando


o som, o objeto da audição. Ela segura um vajra em sua mão direita e uma espada na
esquerda, comendo ao mesmo tempo. Em uma visão alternativa, As cem homenagens
a descreve segurando uma taça de crânio e um gancho de ferro de modo a arrancar
fora as falsas visões do samsara.

As deidades que apareceram até agora compõem a mandala interior de nossa


natureza intrinsecamente pura — os skandhas, os sentidos e a consciência. Essa
mandala é protegida por quatro dakinis que guardam os portões internos. Elas são
transformações das mesmas guardiãs femininas dos portais que apareceram
anteriormente, mas desta vez são ainda mais ferozes e possuem cabeças de animais.
Em suas mãos direitas, seguram seus próprios utensílios característicos com os quais
desempenham suas funções, e em suas mãos esquerdas seguram taças de crânio com
sangue para demonstrar sua natureza colérica.

A prática do dharma afirma que elas fecham as portas para os quatro tipos de
nascimento e abrem as portas para as quatro atividades vajra. As cem homenagens as
interpreta como incorporando os quatro estados imensuráveis da mente. Elas mantêm
vigilância sobre as fronteiras da mandala, de forma que cada aspecto do
relacionamento com o mundo externo seja pleno de compaixão, alegria pelos outros e
equanimidade. Essas emoções altruístas são a base da vida espiritual; sem elas, é
impossível realizar as quatro atividades ou escapar do renascimento.

No portal leste está a forma branca, de cabeça de cavalo de Ankusha, o Deva


com um Gancho118. Em sua mão direita ela segura um gancho de ferro, o gancho que
se usa para domar elefantes, e em sua esquerda uma taça de crânio com sangue.
Representa a compaixão ilimitada que puxa os seres viventes para fora dos seis reinos
do samsara, e desempenha o trabalho espiritual de pacificar o sofrimento e curar as
doenças causadas pelos cinco venenos.

No portal sul está a forma amarela, de cabeça de porco da Pasha, o Deva com
um Laço, segurando um laço e uma taça de crânio com sangue. Ela representa a
bondade amorosa infinita, laçando e atando as visões equivocadas que impede os
seres viventes de compreenderem a verdade. Desempenha a atividade de enriquecer e
incrementar as qualidades da iluminação.

No portal oeste está a forma vermelha, de cabeça de leão de Shrinkhala, o Deva


com uma Corrente, segurando uma corrente de ferro e uma taça de crânio com
118
Algumas versões a chamam de “cabeça de tigre”, o que seguimos no Livro tibetano dos mortos.
Entretanto, a maioria das matrizes parecem mostrar “cabeça de cavalo”. É fácil confundi-las em tibetano
(rta gdong e stag gdong), tanto na forma escrita quanto na falada.

307
sangue. Ela acorrenta o veneno da ignorância e, com alegria ilimitada, rejubila-se com
o despertar de todos os seres. Desempenha o trabalho espiritual de magnetizar ou
atrair tudo o que é necessário e subjugar tudo que é prejudicial.

No portal norte está a forma verde, de cabeça de serpente de Ghanta, o Deva


com um Sino, segurando um sino e uma taça de crânio com sangue. Ela representa a
equanimidade ilimitada e é imparcial em relação a todos os seres, e toca o seu sino
bem alto para subjugar todos os pensamentos dos cinco venenos. Também libera a
energia aprisionada dos venenos pela atividade compassiva da destruição.

Depois dessas guardiãs, para completar a apresentação inteira, uma comitiva


externa conhecida como as 28 damas ou yoguines se agrupa ao redor da periferia da
mandala. Elas representam muitos aspectos diferentes de nossas características,
funções e atividades, originando-se comumente dos venenos, mas agora brotando
diretamente como expressões espontâneas da energia desperta. Nenhum canto de
nosso ser é deixado sem ser iluminado e estimulado pela explosão da compaixão
colérica. Elas “surgem espontaneamente da energia criativa das imagens auto-
existentes dos herukas coléricos”.

Ao contrário dos grupos anteriores de deidades femininas, os nomes dessas


yoguines é dado somente em tibetano, mas é possível identificá-las em sânscrito com
grande margem de acerto119. Quase todas podem ser encontradas entre grupos
similares nos principais tantras budistas, e a maioria delas também pode ser
encontrada entre as 64 yoguines da tradição hindu, cujos templos eram centro
ecumênicos de culto tântrico120. Muitas delas são consortes de importantes deuses
hindus, e é interessante que, embora essas deusas sejam com frequência mais bem
conhecidas por seus próprios nomes, aqui elas são identificadas somente pela forma
feminina do nome do deus. Isso parece conectá-las com lendas nas quais se
manifestam como a força ativa do princípio representado pela deidade masculina,
sempre com o propósito de derrotar algum aspecto do mal. As mais conhecidas delas
são as “sete mães”, que também são mencionadas no Guhyasamaja Tantra, entre
outros, e seis das quais aparecem aqui. No hinduísmo são chamadas de o shakti — o
poder ou energia — de seus consortes, e embora esse termo não seja usado no
budismo em geral, ele se adequa perfeitamente com a função das dakinis neste
contexto.

119
A lista de 28 yoguines no Guhyagarbha Tantra não coincide inteiramente com a lista dada aqui. Ela,
também, fornece os nomes apenas em tibetano; metade são os mesmos, enquanto alguns poucos mais
aparecem sob nomes alternativos, mas do resto não se pode afirmar definitivamente que
correspondam. Nessa tradução, Gyurme Dorje fornece seus nomes em sânscrito, obtidos de seus
mantras. O comentário descreve todas elas como as consortes de vários deuses hindus maiores e
menores. Entretanto, muitas destas identificações são bastante questionáveis e não concordam com as
fontes hindus, portanto não fiz uso delas aqui.
120
Ver H. C. Das, Tantricism: A Study of the Yogini Cult, Nova Déli, Sterling, 1981.

308
Do ponto de vista do budismo, a crença em qualquer deidade como existente
fora de nós e tendo poder sobre nós é falsa e enganosa. Seu culto é materialismo
espiritual, o desejo de ganhar alguma coisa a partir da atividade religiosa em vez de
compreender a natureza da mente. Entretanto, uma vez que tenhamos compreendido
nossa natureza derradeira vazia e a das deidades, os princípios, as forças que elas
representam são transformados em instrumentos do dharma. Dessa maneira, muitas
deidades da tradição hindu ortodoxa, assim como as deidades locais indianas e
tibetanas menos conhecidas, foram assimiladas pelo vajrayana, como parece ser o
caso com essas yoguines.

Algumas delas portam emblemas tais como o vajra, a roda, o lótus e a jarra,
simbolizando suas qualidades iluminadas. Algumas carregam armas como porretes,
lanças e lâminas para destruir os venenos e cortar através da insensibilidade da
percepção. Algumas bebem sangue e comem carne crua para simbolizar a aceitação e
a transmutação imparcial. As cabeças de animais selvagens mostram seu perfeito
controle sobre a energia bruta, seu destemor e poder, sem tramas e sem hesitação. As
cabeças de aves de rapina mostram que elas esquadrinham com olhos que tudo veem
os menores obstáculos e as tendências maléficas de modo a devorá-las. Elas nos
convidam a experimentar a vida completamente, sem contenções, com total
consciência.

Elas emergem de dentro do cérebro da pessoa nos quatro pontos cardeais. As


cem homenagens identificam esses quatro grupos com as quatro atividades vajra. São
descritas todas as yoguines como possuindo o atributo característico de suas
respectivas famílias — o vajra, a joia, o lótus, ou o vajra duplo — assim como os
emblemas listados a seguir. Também é fornecido um esquema de cores levemente
diferente: as yoguines têm as cores dadas aqui em um lado de seus corpos, enquanto
do outro lado, todas aquelas do leste são brancas, todas do sul são amarelas, todas do
oeste são vermelhas e todas do norte são verdes (ver Figura 6). Ambos os esquemas
de cores podem ser encontrados em pinturas do bardo, ou os quatro grupos podem
estar pintados somente com as cores básicas do branco, amarelo, vermelho e verde
(ver Figuras 4 e 7).

Primeiro, as seis yoguines do leste aparecem, desempenhando a atividade da


pacificação. Rakshasi, a Demônio Feminina, é de uma castanho-avermelhada e tem a
cabeça de um iaque. Segura um vajra, ou alternativamente, uma taça de crânio. Ela
personifica a crueldade e a violência sedenta de sangue transmutada na indestrutível
mente desperta.

Em seguida vem a laranja Brahmi (ou Brahmani) Consorte de Brahma, que


representa o poder da criação universal. Ela é mais conhecida como Sarasvati, a deusa
da sabedoria, da arte e da fala. Tem a cabeça de uma serpente e segura um lótus, o
emblema de Brahma da criatividade e do nascimento. A serpente rege as águas da

309
existência da qual o lótus surge. No budismo, Brahma é louvado como possuidor de
poderes divinos de fala e, apropriadamente, o lótus também está ligado à fala, já que é
o emblema de Amitabha, que personifica a fala dos budas.

Mahadevi, o Grande Deusa, é verde-escuro e tem a cabeça de um leopardo.


Todos os grandes felinos simbolizam o destemor e a ferocidade, mas o leopardo em
particular representa a energia feminina. Mahadevi é a Consorte de Shiva Mahadeva, o
Grande Deus, o princípio cósmico da dissolução e da reabsorção. Ela porta o tridente,
um de seus emblemas característicos, representando o poder do yoga e o controle
sobre os três nadis. Ele perfura os três venenos da paixão, agressão e ilusão.

A próxima yoguine pode ser identificada como Vaishnavi, a Consorte de Vishnu,


que é o poder todo penetrante da preservação. Ela não é realmente chamada de
Vaishnavi no texto, mas sua identidade parece clara. A palavra tibetana é incomum e
parece significar ganância ou desejo; pode talvez se referir à fome pela existência que
está por trás do princípio da preservação121. Tem a cabeça de um mangusto, um
animal que é frequentemente retratado acompanhando o deus da riqueza e
vomitando joias de sua boca; isso pode refletir seu papel como deusa da fortuna e
prosperidade, no qual ela é mais conhecida como Lakshmi. Ela é azul, a cor de Vishnu,
segura uma roda ou disco, sua arma milagrosa, em sua mão. Com sua extremidade
afiada como uma lâmina, ela gira em direção ao centro das hostes inimigas e as corta
em pedaços. Em sua forma pacífica, a roda torna-se o símbolo do dharma do Buda,
espalhando-se em todas as direções.

Kaumari, a Donzela, é a consorte de Kumara, o Jovem, o filho guerreiro de Shiva


que nasceu para derrotar um poderoso demônio maligno. É vermelha e tem a cabeça
de uma hiena. Em tibetano, a mesma palavra pode significar um urso amarelo ou
branco. Ela brande uma lança curta, a arma de Kumara, que sempre acerta seu alvo
quando é arremessada contra o inimigo, e em seguida retorna às suas mãos. Ela
simboliza o penetrar através das falsas visões com uma percepção focada.

Indrani (ou Aindri), Consorte de Indra, é branca e tem a cabeça de um urso


pardo. Seu marido, Indra, é o poderoso regente dos deuses. Juntos, eles presidem o
reino dos deuses, com seu vasto poder, a gratificação de todos os desejos e ilusões de
imortalidade. Ela desfaz essas ilusões empunhando um pedaço de entranhas,
simbolizando a transitoriedade da existência.

121
No Livro tibetano dos mortos, lhe demos o nome de Lobha, mas Trungpa Rinpoche não estava certo
de sua identidade. O equivalente tibetano é gtogs ’dod, uma palavra incomum, que ele traduziu como
“ganância”. Evans-Wentz a chama de a Deusa da Curiosidade, evidentemente de uma variante tibetana
lida a partir de rtogs ’dod. No Guhyagarbha Tantra, é listada como ‘jugs red mo (Vaishnavi), enquanto
no comentário é chamada rtogs ‘dod. Lauf (Secret Doctrines, p. 151) a lista como Vaishnavi, embora eu
não tenha certeza de qual texto ele usa como base para isso.

310
No sul da mandala, as seis yoguines que desempenham a atividade de
enriquecer aparecem. Vajra, a Adamantina, personifica tudo o que o próprio vajra
representa. Tem a cabeça de um porco, simbolizando a transmutação da ignorância e
da ilusão em um despertar brilhante e indestrutível. Ela é amarela na cor e traz uma
lâmina em sua mão. A forma tradicional da lâmina é a de uma arma curva
extremamente afiada, que corta os erros e as corrupções que obscurecem a face de
nossa verdadeira natureza.

Shanti, Paz, é vermelha e segura uma jarra em sua mão. Ela tem a cabeça de um
monstro aquático, mostrando que superou completamente a turbulência do oceano
do samsara e o transformou em tranquilidade. A jarra contém a água da vida e
concede saúde e longevidade.

Amrita, o Elixir da Imortalidade, personifica o tesouro mais precioso dos deuses.


Seu verdadeiro significado é a essência da sabedoria e do conhecimento que outorga a
vida espiritual. Ela tem a cabeça de um escorpião, a mais venenosa e mortal das
criaturas, mostrando que ela transmuta morte em vida. Sua cor é vermelha e ela
segura um lótus em sua mão, sugerindo tanto vida quanto transmutação.

Chandra, Lua, é a forma feminina do deus da lua. A lua é masculina na tradição


indiana e simboliza o néctar da bem-aventurança. A yoguine tem a cabeça de um
falcão, a ave de rapina de olhos aguçados que ataca subitamente suas vítimas e com
rapidez destrói as forças negativas. Ela é branca como a lua, e segura o vajra da mente
desperta indestrutível.

Danda é Aquela que Porta um Porrete. Na iconografia hindu, o porrete ou bastão


é particularmente associado com Yama, o deus da morte, portanto talvez neste
contexto Danda personifique o instrumento de justiça de Yama. Tem a cabeça de um
chacal ou uma raposa, animais que caçam e buscam carniça nos solos sepulcrais. Ela é
verde-escura e brande seu porrete em sua mão.

Outra Rakshasi, Demônio Feminino, amarelo-escura na cor, completa as


yoguines do sul. Tem a cabeça de um tigre e segura uma taça de crânio com sangue,
simbolizando a transmutação de sua natureza demoníaca e sedenta de sangue.

No oeste da mandala, as seis yoguines que desempenham a atividade de


magnetização aparecem. Primeiro vem Bhaksini, a Devoradora. Ela é verde-escura e
carrega um porrete em sua mão. Tem a cabeça de um abutre, o pássaro que come
carcaças e paira sobre cenários de carnificina esperando que a morte forneça sua fonte
de alimento. Com sua arma, ela derruba as forças malignas e em seguida as devora.

Rati, Prazer, na tradição hindu é a consorte de Kama, o deus do amor. É


vermelha da cor da paixão e tem cabeça de cavalo. O cavalo representa a força da vida
e a vitalidade e também está ligado com a paixão, já que a deidade colérica de cabeça

311
de cavalo, Hayagriva, é uma manifestação de Amitabha. Ela carrega o tronco de um
cadáver humano para simbolizar a transmutação da existência comum baseada no
desejo da experiência de grande bem-aventurança através da compreensão do vazio.

Mahabala, A de Grande Força, aparece em seguida. É branca e tem a cabeça de


um garuda, o mais poderoso de todos os pássaros. Carrega um porrete ou bastão para
subjugar as forças maléficas.

Uma terceira Rakshasi, Demônio Feminino, vermelha na cor e com uma cabeça
de cão, se segue. Como um caçador de carniça, o cão era considerado um animal
impuro e poluidor. Ela segura o vajra de indestrutível pureza em uma mão e golpeia
violentamente com uma lâmina na outra, cortando para sempre os impedimentos e as
impurezas.

Kama, Luxúria, é a forma feminina do nome do deus do amor. É vermelha como


Rati e tem a cabeça de uma poupa, um pássaro elegante de crista, associado com a
primavera e o surgimento do desejo. Ela atira uma flecha de um arco. Esse é o
emblema típico de Kama, assim como o Cupido no Ocidente, mirando as flechas do
amor no coração de todos os seres viventes. No budismo, o arco simboliza a sabedoria
e o vazio, enquanto as flechas simbolizam os meios habilidosos e a compaixão. Aqui
Kama pode ser vista como combinando as duas tradições em um belo símbolo de
transmutação da paixão em compaixão.

Vasuraksha é a Protetora da Riqueza. Ela é verde-escura e tem a cabeça de um


veado. Veados representam gentileza e bondade e, no budismo antigo, eram usados
como símbolo do dharma porque estiveram presentes aos primeiros ensinamentos do
Buda. Ela pode ser uma deidade guardiã, ou pode talvez ser prometida como a
consorte de Kubera, o deus da riqueza. Segura uma jarra de tesouro cheia de riquezas
inesgotáveis.

No norte da mandala, as seis yoguines que desempenham a atividade de


destruição aparecem. Vayavi, Consorte de Vayu, o deus do vento, aparece primeiro.
Ela é azul e tem a cabeça de um lobo. Agita um estandarte no vento, representando
prana, a força da vida. É a energia que controla o ir-e-vir da vida.

Nari, a Mulher, personifica a feminilidade. Ela é vermelha, com a cabeça de uma


cabra montesa ou íbex, e segura uma estaca pontuda e afiada para empalar as forças
malignas.

Varahi, a Porca, é a consorte de Varaha, o Javali, um dos dez avatares de Vishnu.


Ela é preta e tem a cabeça de um porco, simbolizando a transmutação da ignorância.
Carrega uma laçada de presas, ou com presas em cada ponta, para segurar bem forte
as mentes dos seres viventes no reino da consciência.

312
Uma segunda Vajra, a Adamantina, aparece com a cabeça de um corvo ou uma
gralha. Ela é vermelha e brande o cadáver de uma criança, simbolizando que o sentido
de ego renasce a cada momento e é imediatamente liberado para o despertar.

Mahanasa, Aquela que Tem um Grande Nariz, aparece com a cabeça de um


elefante122. A cabeça do elefante representa o domínio da maior força da mente. Ela é
verde-escura na cor. Carrega um cadáver humano adulto em sua mão e bebe seu
sangue, simbolizando a liberação do ego plenamente desenvolvido.

Por último vem Varuni, Consorte de Varuna, o deus da água. Ela é azul, tem a
cabeça de uma serpente e segura um ninho de cobras em sua mão. As deidades
serpentes são sempre associadas com a água; controlam os rios, oceanos e chuvas, e
protegem o meio ambiente. Com seu ninho de cobras, ela laça e aprisiona o poder dos
venenos.

Depois dessas 24 yoguines dos quatro pontos cardeais, as quatro yoguines finais
emergem para guardar os portais exteriores da mandala, portando os emblemas
comuns aos guardiães dos portais. No portal leste está a Vajra Branca, com a cabeça
de um cuco, segurando um gancho de ferro. No sul está a Vajra Amarela, com a cabeça
de um bode, segurando uma laçada. No oeste, está a Vajra Vermelha, com a cabeça de
um leão, segurando uma corrente de ferro. No norte, está a Vajra Verde, com a cabeça
de uma serpente, segurando um sino. Elas protegem as fronteiras mais afastadas da
experiência do bardo do dharmata, o estado no qual vemos a realidade face a face. Por
meio das quatro atividades vajra, elas nos liberam de todos os laços da ilusão e
bloqueiam as portas para os quatro tipos de nascimento, de modo que não vaguemos
mais em direção ao bardo do vir a ser.

Algumas tradições acrescentam dois estágios posteriores ao bardo do dharmata;


eles não estão incluídos em Liberação através da audição, mas são algumas vezes
ilustrados em pinturas do bardo (ver Figura 4, parte central inferior). Do umbigo,
emergem as cinco dakinis das cinco famílias. Elas estão em poses de dança como os
vidyadharas, nuas, segurando facas curvas e taças de crânio com sangue em suas
mãos. Já que surgem do centro do umbigo, a morada de Ratnasambhava, elas
representam as qualidades iluminadas das cinco famílias. Finalmente, do local secreto,
vem o grande heruka colérico Vajrakila (ou Vajrakilaya). Ele personifica a atividade de
todos os budas e é uma das deidades mais poderosas da tradição Ningma, que supera
todos os impedimentos para a prática espiritual. Ele é azul-escuro, abraçando sua
consorte azul-clara, e sua aparência é semelhante à dos outros herukas. Com seu par
de mãos superior, segura um vajra de nove pontas na direita e arremessa chamas da

122
No Livro tibetano dos mortos, nós a chamamos Mahahastini, Grande Elefante, mas é mais provável
que ela seja Mahanasa (uma tradução literal de seu nome tibetano), listada entre as dakinis do
Chakrasamvara Tantra. No Guhyagarbha Tantra, Gyurme Dorje dá a ela o nome sânscrito de Bhujana,
que mais uma vez significa “elefante”.

313
esquerda. Com seu par inferior, segura um vajra de cinco pontas e um cajado tântrico.
Com seu par de braços principal, envolve o corpo de sua parceira e rola entre suas
mãos o kila a partir do qual recebe seu nome. Trata-se de uma lâmina de três lados,
originalmente um prego ou uma estaca, porém mais semelhante a uma adaga, que
perfura ao mesmo tempo a paixão, a agressão e a ilusão.

Todas as visões que surgem durante o bardo do dharmata são as expressões


espontâneas e naturais de nossa mente desperta, que não é nada mais do que o
inseparável vazio e a luminosidade. Como o texto explica, nossa consciência se
manifesta à nossa frente; ela aparece de si própria para si própria por meio de seu
próprio poder iluminador, apenas para que possa se reconhecer e se auto liberar.
Nosso estado de escravidão no samsara não é realmente nada além de não-
reconhecimento; nós o perpetuamos todo o tempo. O bardo do dharmata é uma
tremenda oportunidade porque apresenta a realidade de forma clara e despida.
Liberação é simplesmente ver as coisas como realmente são. Assim que enxergamos a
essência da consciência em tudo à nossa volta, somos instantaneamente libertados de
toda a ilusão do samsara. “Reconhecimento e liberação são simultâneos.”

Mas, se somos incapazes de reconhecer, nossa confusão e nosso terror irão nos
fazer perceber essas formas radiantes de nossa própria mente como demônios.
Deixando-nos levar para bem mais distante da consciência original não dual da base do
ser, começamos a nos sentir muito mais separados e vulneráveis, enquanto eles
parecem mais externos e reais.

Ó filho de família desperta, o dharmakaya se origina do aspecto do


vazio na forma das deidades pacíficas. Reconheça-o. O sambhogakaya se
origina do aspecto da claridade na forma das deidades coléricas, portanto
reconheça-o. Quando as 58 deidades bebedoras de sangue emergem de
dentro do seu cérebro e aparecem à sua frente, se você entender que o
que quer que apareça está brilhando a partir da radiância intrínseca de sua
consciência, irá despertar imediatamente, inseparável das imagens das
deidades bebedoras de sangue. Ó filho de família desperta, se não as
reconhecer dessa forma, verá todas as deidades bebedoras de sangue
como senhores da morte e terá medo delas. Você ficará petrificado e
desmaiará de terror. Suas alucinações se transformarão em demônios e
você vagará pelo samsara.

Todas as deidades coléricas serão transformadas na forma feroz de Yama, o


Senhor da Morte, também conhecido como o Rei do Dharma, e todas as deidades

314
pacíficas serão transformadas em Mahakala, um protetor do dharma extremamente
poderoso. Agora não podemos mais perceber as visões como seres despertos, mas
somente como demoníacos, maus e ameaçadores. Sentimos que eles querem nos
atacar, nos machucar ou até mesmo nos matar. Começamos a solidificar o espaço,
cristalizando as aparências de nossa própria mente em projeções e em seguida
permitindo-nos acreditar nelas e ser completamente enganados por elas. Nos
movemos para fora da experiência do bardo do dharmata para o bardo da existência.

Ó filho de família desperta, quando visões desse tipo aparecerem,


não tenha medo. Você possui um corpo mental de impressões kármicas,
portanto mesmo que seja morto e cortado em pedaços, não pode morrer.
Você é realmente a forma natural do vazio, portanto não há necessidade
de temer nenhum mal. Mesmo os próprios senhores da morte se originam
da radiância interior intrínseca de sua consciência; eles não têm substância
sólida. O vazio não pode causar dano ao vazio. Tenha confiança em que as
deidades externas pacíficas e coléricas, os herukas bebedores de sangue,
as deidades com cabeças de animais, as luzes do arco-íris, e as
aterrorizantes formas dos senhores da morte não existem realmente; eles
apenas se originam da energia criativa inerente de sua consciência. Se
entender isso, todo o medo será liberado em seu estado natural e,
fundindo-se inseparavelmente, você se tornará desperto.

A instrução nos lembra mais uma vez que todas essas visões terríveis são de fato
nossa deidade escolhida, nossa natureza desperta. Poderíamos convocar essa deidade
ou aquele guru para nos ajudar a compreender que elas não são nossos inimigos e que
não existe nada a temer. A prece-aspiração neste estágio é muito mais longa do que os
versos anteriores. Ela convoca particularmente Avalokiteshvara, o Senhor de Grande
Compaixão (ver Figura 8). As seis sílabas de seu mantra, OM MA NI PAD ME HUM, se
relacionam com os seis reinos da existência. Elas são visualizadas nas cores dos budas
dos seis reinos, que são a presença viva da compaixão tomando forma dentro de cada
reino, e que apareceram anteriormente entre as visões pacíficas do bardo. OM é
branco e representa o reino dos deuses; MA é verde e representa o reino dos deuses
ciumentos; NI é amarelo e representa o reino humano; PAD (pronunciado pe em
tibetano) é azul e representa o reino animal; ME é vermelho e representa o reino dos
fantasmas famintos; e HUM é preto e representa o reino do inferno. Meditando no
mantra dessa maneira, podemos despertar o poder da compaixão dentro de nós e
dirigi-lo para todos os seres viventes, enquanto ao mesmo tempo transmutamos os
venenos que levam ao renascimento nos seis reinos. Assim como a natureza de tudo o
que vemos é a forma da deidade, também tudo o que ouvimos é realmente a vibração

315
subjacente sagrada do mantra. O rugir ensurdecedor do trovão cósmico e os gritos
violentos, ameaçadores, dos demônios no bardo, todos se tornam o som libertador
das seis sílabas, transformando nossa percepção de tal forma que reconhecemos a
verdadeira natureza das visões.

Quando, através das intensas impressões kármicas vago no samsara,


No caminho luminoso de abandonar projeções de medo e de terror
Possam os abençoados, pacíficos e coléricos, ir à minha frente,
As damas coléricas do espaço atrás de mim,
Ajudem-me a cruzar a passagem perigosa do bardo
E levem-me ao perfeito estado desperto.
Separado dos entes queridos, vagando sozinho,
Agora quando as formas vazias da auto-exibição aparecem
Possam os budas enviar o poder de sua compaixão
De forma que o medo e o terror do bardo não surjam.
Quando as cinco luzes claras do conhecimento brilharem
Destemidamente possa eu me reconhecer.
Quando as formas dos seres pacíficos e coléricos aparecerem
Destemido e confiante possa eu reconhecer o bardo.
Quando eu sofrer por meio do poder do mau karma
Possa minha deidade escolhida remover todo o sofrimento.
Quando o som natural do dharmata rugir como mil trovões
Possa tudo se tornar o som das seis sílabas.
Quando eu seguir meu karma sem um refúgio
Possa o Grande Senhor da Compaixão ser o meu refúgio.
Quando eu sofrer os resultados das impressões kármicas
Possam o samadhi da bem-aventurança e da luminosidade surgirem
Possam os cinco elementos não se erguerem como inimigos,
Possa eu ver os reinos dos cinco budas.

Esta seção do texto conclui repetindo mais uma vez a importância vital da prática
durante a vida e o grande benefício de mesmo simplesmente ouvir esse ensinamento.
Isso mostra que a maioria das pessoas estão assustadas e confusas na hora da morte,
quer estejam habituadas a meditar ou não, e precisam da ajuda dessa orientação
através do bardo. Então, se elas praticaram enquanto estavam vivas, aquelas que
reconheceram a natureza da mente e conquistaram estabilidade em sua compreensão
estarão muito fortes quando a luminosidade da morte aparecer, e assim atingirão a
liberação. Aquelas que ganharam experiência no yoga da deidade estarão muito fortes

316
quando as visões das deidades pacíficas e coléricas aparecerem, portanto elas também
reconhecerão e serão liberadas.

Ele é chamado Grande liberação através da audição porque simplesmente ouvi-


lo é suficiente. Mesmo as pessoas que cometeram os cinco pecados mortais podem
ser liberadas ao ouvi-lo, portanto grande é o poder desse ensinamento. Ao mostrar
exatamente como reconhecer a natureza desperta das visões, ele corta através de
tudo o que normalmente nos obstrui e penetra direto na essência de nosso verdadeiro
eu, não importando quais possam ser as circunstâncias. Como diz a frase final desta
seção: “Ele extrai a essência de todo o dharma.” Qualquer que seja a prática que
tenhamos usado durante a vida, esse ensinamento vai direto ao seu âmago.

No bardo, não somos restringidos pelas limitações do corpo físico, e se diz que a
inteligência é nove vezes mais clara. Portanto, mesmo que só tenhamos ouvido esse
ensinamento uma vez, sem entendê-lo naquele momento, no bardo é possível lembrá-
lo exatamente, palavra por palavra, e apreender seu significado instantaneamente.
“Portanto, ele deveria ser ensinado a todo mundo durante suas vidas, deveria ser lido
ao pé da cama de todos os que estão doentes, deveria ser lido ao lado do corpo de
todos os mortos, deveria ser espalhado por toda parte.”

Mas tudo isso depende do poder das conexões e do adhishthana. Nunca


teríamos tido nem uma chance de ouvi-lo ou de lê-lo, se não houvéssemos feito
previamente algum movimento em direção a ele e estabelecido alguma ligação.
Gradualmente, por muitas vidas, nosso entendimento e resposta a ele cresce, de tal
maneira que, subitamente, uma única palavra pode ser suficiente para reavivar nosso
conhecimento inato. Nunca devemos esquecer que, junto com o mal que
indubitavelmente fazemos e com os resultados kármicos que criamos continuamente
para nós mesmos, também perpetramos uma vasta quantidade de coisas boas durante
nossas vidas e plantamos incontáveis sementes de potencialidade positiva.

Encontrar-se com ele é de grande boa sorte. Ele é difícil de ser


encontrado, exceto por aqueles que purificaram os véus obscuros e
desenvolveram a bondade. Mesmo se a pessoa se encontra com ele, é
difícil assimilá-lo. Quando a pessoa o escuta, é liberada simplesmente por
não desacreditar; portanto, ele deveria ser tratado como o bem mais
precioso. Ele extrai a essência de todo o dharma.

317
Capítulo Quinze

Na Porta do Útero

DEPOIS DE DESMAIAR DE TERROR frente às visões das deidades coléricas, a


consciência da pessoa falecida acorda para a existência como um ser do bardo com um
corpo mental sutil, portanto esse período é chamado o bardo da existência ou o bardo
do vir a ser. Ele dura até que a pessoa falecida entre na próxima vida, seja através da
concepção ou do nascimento espontâneo. Esse é o bardo em seu sentido original, a
transição entre morte e renascimento. É chamado de o bardo da existência porque o
sentido do eu e do outro, do corpo e do mundo externo, são todos trazidos à
existência pela mente por meio do poder do desejo e do apego. A existência no
budismo sempre implica dualidade; ela é marcada pelas três características de
impermanência, sofrimento e não-ser.

O bardo da existência corresponde ao que a maioria das pessoas pensam do


estado de pós-morte, quando nossa vida passada é recapitulada e nossa futura é
decidida. Ele é dominado pela lei do karma; aqui, as consequências de nossos
pensamentos, palavras e atos tomam forma frente aos nossos olhos. É um estado
extremamente volátil e fluido, descrito como pleno de terror e sofrimento. Nossas
percepções e o ambiente ao nosso redor estão continuamente mudando, à medida
que os efeitos das ações passadas vêm à superfície, como as memórias distorcidas dos
eventos do dia anterior durante um sonho. Como diz o texto: “É pelo seu próprio
karma que você está sofrendo assim, portanto não pode culpar ninguém mais.”

A instrução para esse estágio, “o claro lembrete do bardo da existência”, deveria


ser lida em voz alta a partir do décimo dia após a morte. Vários períodos de tempo são
mencionados nesta seção, e não são inteiramente consistentes, mas deveríamos nos
lembrar que nosso conceito de tempo não se aplica realmente ao bardo, e o que
acontece nele depende inteiramente do estado espiritual e do karma da pessoa
falecida. Dizem-nos que esse bardo dura em geral 21 dias, mas isso pode ser qualquer
coisa entre uma e sete semanas. De acordo com outros comentaristas, ele pode
ocasionalmente continuar por muitos meses ou mesmo anos. A cada sete dias, a
pessoa passa muito rapidamente pela experiência de morte, pelas visões do bardo do
dharmata e pelo despertar de novo no bardo da existência.

318
Isso pode ser comparado à nossa vida presente, na qual a sequência de se
dissolver, entrar em um espaço de infinitas potencialidades e emergir mais uma vez
acontece continuamente em muitas escalas de tempo diferentes. A consciência de
vigília se dissolve quando adormecemos, passamos muitas horas no que consideramos
ser a inconsciência, e em seguida retornamos ao estado de vigília. Dentro daquele
período inconsciente, os sonhos surgem, se dissolvem e surgem novamente. Na vida
em vigília, um sentimento dominante se desfaz e deixa uma lacuna de incerteza até
que outra emoção o substitua. E durante todo o tempo, pensamentos e sentimentos
efêmeros vêm e vão; um estado mental morre, existe um momento de abertura, em
seguida um outro estado mental nasce. Se pudermos nos acostumar a ver todo esse
processo como um jogo da ilusão, isso irá nos ajudar a evitar o apego à oportunidade
de renascimento quando estamos no bardo da existência.

Quando a consciência emerge do estado de luminosidade, experimentamos


instantaneamente as três visões da luz em ordem inversa — preta, vermelha e
branca—e os oitenta instintos básicos da ilusão, paixão e agressão tornam-se ativados
na corrente mental. Ao mesmo tempo, as formas sutis dos elementos surgem: a
energia do ar emerge do espaço, o fogo do ar, a água do fogo e a terra da água. A
reaparição desses fenômenos sutis cria o corpo mental do bardo, determinado pelas
impressões kármicas ou tendências da consciência original. Esse ser do bardo é
conhecido como gandharva, um tipo especial de fantasma faminto. Não estamos na
verdade em nenhum dos seis reinos neste ponto, mas se permanecermos por um
tempo muito longo sem encontrar um novo renascimento, podemos nos tornar
fantasmas famintos em pleno desenvolvimento. Gandharvas são conhecidos como
comedores de aromas, porque vivem do aroma dos alimentos. Mas só podem obter
sustento de alimento que tenha sido dedicado a eles, portanto sem isso, sentem
anseios de fome como se tivessem corpos de carne e osso. O livro descreve sua
natureza em grande detalhe ao citar e comentar um verso tradicional:

Tendo a forma física de existências passadas e futuras,123


Completa com todos os sentidos, movendo-se sem obstrução,
Possuindo poderes milagrosos resultantes do karma,
Sendo vistos pelo puro olho divino e por aqueles de natureza afim.

As impressões kármicas que formam o corpo do bardo são impressões deixadas


na consciência original, que criam padrões que tendem a certos hábitos de existência,
de características, de ambientes e assim por diante. De início, as memórias da vida

123
Esta linha pode ser traduzida e interpretada de diversas maneiras; eu a traduzi de acordo com a
explicação que segue o texto. Uma interpretação tradicional diferente pode ser encontrada em Lati e
Hopkins, Death, Intermediate State and Rebirth, p. 55.

319
anterior são muito fortes e as tendências daquela vida ainda prevalecem, portanto
sentimos que ainda possuímos nosso antigo corpo. Gradualmente, a conexão se desfaz
e as tendências que estão nos empurrando em direção a uma nova existência
predominam. Quando isso acontece, começamos a sentir que já habitamos o corpo de
nossa próxima vida. Quando o verso fala de uma forma física, está se referindo aos
corpos de nossas vidas passadas e futuras, não ao corpo do bardo; o corpo que
experimentamos no bardo é puramente mental e imaterial, mas parece
absolutamente real, por isso estamos constantemente com medo de sermos feridos
ou mortos.

Entretanto, essa forma tem diferenças significativas de nossos corpos reais,


passados e futuros. Ela é perfeita, como um corpo ideal da era dourada, e brilha com
sua própria luz. Já que é imaterial, não deixa pegadas, não projeta sombras e não
produz reflexos. Não existe nenhuma incapacidade física, nenhuma deterioração dos
sentidos ou deficiência mental. A inteligência está “nove vezes mais clara”, uma
expressão que significa “absolutamente clara”. Temos poderes paranormais, tais como
clarividência, a habilidade de passar através dos objetos sólidos e a habilidade para
chegar instantaneamente aonde quer que desejemos, apenas pensando nisso. Existem
só dois lugares aonde não podemos ir. Um é o útero de nossa futura mãe, o que
significaria que entramos em nossa próxima vida no samsara. O outro é o assento
vajra, o lugar onde o Buda sentou em meditação e onde ele despertou, o que simboliza
a conquista da iluminação e significaria que entramos no nirvana. Os poderes
sobrenaturais que possuímos são explicados como sendo simplesmente o resultado
temporário do karma, e não conquistas espirituais genuínas realizadas através da
meditação. Somos advertidos de que eles não são adequados e não deveriam nos
distrair, mas ao mesmo tempo são úteis porque nos possibilitam ouvir e aplicar as
instruções.

Um dos poderes adquiridos em níveis mais avançados de meditação é o olho


puro divino, ou olho dos deuses, que pode perceber seres viventes em todos os seis
reinos, assim como no bardo. É dessa maneira que mestres consumados são capazes
de ver e se comunicar com a pessoa falecida, embora isso só seja possível se eles se
concentrarem em ver e se sua meditação não for perturbada. O texto distingue isso da
visão sobrenatural que pertence ao estado do bardo, pela qual seres do mesmo tipo
que vão renascer no mesmo reino são capazes de ver uns aos outros. Todas essas
habilidades são sinais de que a pessoa está morta e vagando pelo bardo da existência;
elas são explicadas em detalhes, de tal modo que a pessoa falecida irá reconhecê-los e
entender o que está acontecendo.

De início, os mortos não percebem que estão mortos; sentem que ainda
possuem seus antigos corpos e não conseguem entender por que seus antigos amigos
e parentes os estão ignorando. Tentam desesperadamente se comunicar, vagando sem

320
destino em frustração e desespero. O sofrimento causado por essa rejeição é uma
grande agonia, “como a dor de um peixe rolando na areia quente”. Todas as emoções
por que a pessoa falecida passa são traduzidas em experiências físicas extremamente
vívidas:

Ó filho de família desperta, soprado pelo vento inquieto do karma, sua


mente, sem apoio, cavalga indefesa o cavalo do prana como uma pena
carregada pelo ar, balançando e flutuando... todo o tempo haverá uma
neblina cinza como a luz pálida de uma madrugada de outono, nem dia
nem noite... o furacão do karma turbilhonando com violência,
absolutamente aterrador e insuportável, irá empurrá-lo por trás. Não
tenha medo dele; ele é a sua própria alucinação confusa. À sua frente está
a escuridão densa, absolutamente aterradora e insuportável, gelando o seu
próprio sangue com gritos de “atacar!" e “matar!" Não tenha medo dela.
Aqueles que fizeram muito mal verão hordas de demônios comedores de
carne como resultado de seu karma, brandindo armas, emitindo gritos de
guerra, gritando "matar!" e “atacar!” Você sentirá que está sendo caçado
por animais selvagens e perseguido por exércitos através da neve, da
chuva, de tempestades e escuridão. Ouvirá sons de montanhas
desmoronando, de lagos inundando, de fogo se espalhando e de ventos
ferozes surgindo. Em terror, você fugirá para onde puder, mas será cortado
pelos três abismos à sua frente — branco, vermelho e preto. Eles são
profundos e pavorosos, e você estará a ponto de cair em um deles. Ó filho
de família desperta, eles não são realmente abismos; são agressão, paixão
e ilusão. Reconheça isso agora como o bardo da existência e chame pelo
nome do Senhor da Grande Compaixão.

No bardo anterior, nossa verdadeira natureza foi revelada em seu estado básico
de pureza através das formas auto manifestadas das deidades, mas agora nossa
natureza confusa se manifesta por melo de aparições demoníacas surgindo do karma.
À medida que os elementos retornam, se manifestam externamente sob formas
ameaçadoras, nas palavras do verso que foi citado no Capítulo Cinco, "como inimigos".
A terra se transforma em montanhas desmoronando sobre nós, a água se torna uma
grande inundação que nos leva de roldão para longe, o fogo vocifera em toda a nossa
volta e nos chamusca, e o ar é um vento violento que nos fustiga incansavelmente.
Paixão, agressão e ilusão jazem em espera, como abismos traiçoeiros que se abrem
embaixo de nossos pés. Todos os nossos demônios interiores, o resultado kármico do
mal que fizemos e da dor que causamos, perseguem-nos com fúria vingadora. Essas

321
experiências são todas a auto-exibição natural de nossa própria mente e não devemos
ter medo delas, mas também somos advertidos contra o apego às aparências ilusórias
resultantes do karma positivo e contra uma atitude de apatia em relação às aparições
neutras:

Aqueles que desenvolveram a bondade, foram virtuosos e praticaram o


dharma sinceramente se encontrarão com todo o tipo de desfrute perfeito
e experimentarão todo o tipo de perfeita bem-aventurança e felicidade.
Aqueles que foram insensíveis e indiferentes, que não fizeram nem bem
nem mal, não experimentarão nem prazer nem dor, mas somente
insensibilidade e indiferença surgirão. O que quer que aconteça, ó filho de
família desperta, qualquer felicidade e qualquer objeto de desejo que
surjam dessa forma, não seja atraído por eles ou os deseje. Ofereça-os ao
guru e às três joias. Abandone o apego e o anseio de seu coração. E se a
experiência da indiferença sem prazer ou dor se manifestar, repouse sua
mente no estado do mahamudra, livre tanto da meditação quanto da
distração. Isso é muito importante.

Já que todo mundo sem dúvida desempenhou ações boas, más e neutras, a
consciência da pessoa falecida é jogada para todos os lados pelo vento do karma entre
essas várias experiências. Embora a mente desincorporada tenha poderes paranormais
e possa ir aonde quiser, ela é incapaz de sossegar por um só instante e anseia por
encontrar abrigo e descansar. Finalmente, ela percebe que morreu. Quando essa
percepção surgir, “seu coração irá subitamente ficar vazio e frio, e você sentirá dor
intensa, ilimitada”.

Então a consciência falecida irá vagar por todo lugar procurando por um corpo;
ela pode até tentar retornar ao seu antigo corpo, mas é muito tarde.

Mesmo se você tentar entrar em seu próprio cadáver repetidas vezes, o


inverno o terá congelado ou o verão o terá apodrecido, ou sua família o
terá cremado ou enterrado em um túmulo, ou dado aos pássaros e aos
animais selvagens, porque um longo tempo se passou no bardo do
dharmata, portanto você não encontrará lugar onde possa reentrar. Seu
coração irá desfalecer, e você sentirá que está sendo espremido entre
todas as rochas e a terra pedregosa. Esse tipo de sofrimento é o bardo da
existência. Mesmo se procurar por um corpo, não encontrará nada a não

322
ser sofrimento, portanto corte fora esse seu anseio por um corpo e
permaneça no estado onde nada precisa ser feito, sem distração.

Existe ainda uma oportunidade de se atingir a liberação nesse ponto, seja através
do poder da fé e da devoção, de meditar na forma da deidade escolhida, ou de
permanecer na meditação imperturbada sem forma. Durante esse bardo, os hábitos
formados pela prática da pessoa durante a vida e a conexão com o seu guru, o canal do
adhishthana, são extremamente importantes. Praticantes de vajrayana que ganharam
experiência suficiente em suas práticas de yoga da deidade transformarão o corpo do
bardo na forma da sua deidade escolhida e ou irão para uma terra pura ou renascerão
como um yogue ou yoguine consumados, de forma a completar o caminho e
estabilizar seu reconhecimento da luminosidade.

Se não a reconhecermos e continuarmos a ser arrastados ao longo do bardo,


precisaremos em seguida encarar o julgamento de Yama, o Senhor da Morte. Ele é
uma figura aterrorizante, demoníaca, grande e negro, algumas vezes aparecendo com
a cabeça de um touro ou um búfalo feroz, assistido por seus servos, que também são
chamados de senhores da morte. Representa a voz de nossa verdadeira consciência, o
conhecimento mais profundo de todas as nossas intenções e motivos secretos, até
quando os dissimulamos para nós mesmos. Nossos aspectos positivos e negativos são
personificados como bons e maus espíritos nascidos dentro de nós. Eles contam pilhas
de seixos brancos e pretos representando cada uma de nossas ações boas ou más. Por
causa do medo, apresentamos desculpas e mentimos para o Senhor da Morte, mas
isso não adianta; ele segura o espelho do karma, no qual tudo o que fizemos durante
nossas vidas é mostrado plena e claramente. A instrução lembra-nos que não devemos
ter medo, porque até isso provém de nossas próprias mentes. Entramos em pânico e
mentimos porque acreditamos na realidade externa desses eventos, e quando nos
confrontamos com a verdade sobre nós mesmos no espelho do karma, nossa culpa nos
faz sentir que merecemos ser punidos.

Então o Senhor da Morte amarrará uma corda ao redor do seu


pescoço e o arrastará para longe; cortará sua cabeça, arrancará seu
coração, puxará suas entranhas, devorará seu cérebro, beberá seu sangue
e roerá seus ossos. Mesmo assim você não poderá morrer, portanto
embora seu corpo tenha sido cortado em pedaços, você se recuperará. Ser
cortado repetidas vezes provoca extrema dor, portanto não tenha medo
quando os seixos brancos forem contados, não minta e não tema o Senhor
da Morte. Já que possui um corpo mental, não pode morrer, mesmo que

323
seja assassinado e despedaçado. Você é na realidade a forma natural do
vazio, portanto não há necessidade de medo. Esses senhores da morte,
também, são a forma natural do vazio, sua própria auto-exibição confusa.
Você é um corpo mental vazio, de impressões kármicas. Vazio não pode
danificar vazio; aquilo que não tem características não pode prejudicar
aquilo que não tem características. O Senhor da Morte, os bons e os maus
espíritos, o demônio com cabeça de touro e assim por diante não possuem
realidade externa além da sua auto-exibição confusa, portanto reconheça
isso. Neste exato momento, reconheça tudo como o bardo.

Agora o texto fornece uma linda instrução sobre simplesmente olhar para
natureza das coisas como elas são e permanecer naquele estado espontâneo. Ele é
expressado em termos dos três kayas: a essência vazia, a expressão luminosa e a
manifestação desobstruída, unidas no quarto, o svabhavikakaya, que é a totalidade da
nossa natureza essencial:

Medite no samadhi do mahamudra, o grande símbolo. Se você não sabe como


meditar, olhe atentamente para a essência de quem é dentro de você que sente medo,
e verá uma essência vazia onde coisa alguma existe. Isso é o dharmakaya. Mas esse
vazio não é em branco. A essência vazia do seu medo é uma consciência clara e
plenamente desperta. Essa é a mente do sambhogakaya. Vazio e claridade são
inseparáveis um do outro: a claridade é a essência do vazio e o vazio é a essência da
claridade. Agora, a consciência da claridade e do vazio indivisíveis retorna ao
despojamento e habita dentro de si própria no estado incriado. Esse é o
svabhavikakaya. E agora sua energia criativa inerente se manifesta por toda parte sem
obstrução. Esse é o nirmanakaya compassivo. Ó filho de família desperta, olhe nessa
direção sem distração. Assim que você o reconhecer, o despertar completo nos quatro
kayas é certo. Não se distraia. Essa é a fronteira onde os budas e os seres conscientes
são separados. Diz-se desse tempo:

Em um único momento, a diferença se faz,


Em um único momento, perfeito despertar.

324
O caminho do reconhecimento é a visão final, o mais elevado ensinamento. Não
existe nada para mudar em nossa natureza, nada a acrescentar ou a tirar;
reconhecimento é tudo que é necessário. A única diferença entre os budas e os seres
conscientes é que seres conscientes não sabem que são budas.

Essa é a última chance de atingir a liberação antes de começarmos a ser atraídos


em direção ao renascimento, quando se torna cada vez mais difícil escapar da roda do
samsara. Portanto, nesse momento, “é muito importante fazer mais um esforço” para
ajudar a pessoa falecida. Até aproximadamente a metade do caminho do bardo do
tornar-se, ainda os sentimos conectados com nossos antigos corpos e casas. Com o
poder da clarividência, somos capazes de ver e ouvir tudo o que está acontecendo e
olhar dentro da mente das pessoas que deixamos para trás. Essa é uma situação de
grande perigo, porque as reações emocionais são extremamente poderosas no bardo.
Embora o futuro local de renascimento já tenha sido determinado por nossas
tendências kármicas, uma súbita explosão de raiva ou de apego nesse momento
poderia alterar dramaticamente nossa direção.

Por exemplo, podemos subitamente sentir saudades da riqueza e das posses que
fomos forçados a abandonar, ou podemos ficar ressentidos pela ideia de outros
desfrutarem delas. Talvez elas estejam sendo mal utilizadas ou dada a nossos inimigos.
Então somos propelidos para baixo, em direção ao reino do inferno por meio da raiva,
ou em direção ao reino dos fantasmas famintos por meio do apego. Para evitar que
isso aconteça, deveríamos abandonar todos os pensamentos possessivos e fazer
mentalmente uma oferenda de tudo o que um dia foi nosso.

Durante o tempo em que estamos vagando no bardo, nossos amigos e nossa


família estão conduzindo ritos funerários para nós. Pode ser que estejam executando
rituais inadequados que não ajudam a criar uma boa atmosfera. Em algumas
sociedades, sacrifícios animais podem ser feitos; isso irá nos fazer ficar violentos e
irritados, seja através da repulsa ou através da participação emocional no ato de
matar. Mesmo quando os rituais corretos são feitos por pessoas qualificadas, estamos
extremamente sensíveis a quaisquer erros que sejam cometidos. Podemos ler a mente
dos participantes e ver a sua desatenção, as suas dúvidas, seus pensamentos sobre nós
e seus motivos ocultos para estarem ali presentes. Isso nos fará sentir enganados e
traídos, e nos desesperaremos e perderemos a fé. Para neutralizar esses sentimentos,
devemos nos lembrar de que tudo o que vemos é a nossa própria percepção
distorcida, “como ver as falhas de nosso próprio rosto refletidas em um espelho”.
Devemos tentar despertar a visão sagrada, sabendo que em sua pura natureza
essencial, nossos amigos são a comunidade do sangha, suas palavras são o dharma
sagrado, e seus pensamentos são a sabedoria do Buda. Ver a situação dessa maneira
na verdade transforma ações comuns, humanas e falíveis em ações puras que nos
serão de grande benefício.

325
Mesmo se tivermos causado muito mal durante nossas vidas e estivermos nos
dirigindo para reinos inferiores, se virmos que nossos mestres e amigos espirituais
estão desempenhando rituais para nós com fé e devoção genuínas, a alegria e gratidão
que sentirmos fará com que nos dirijamos para reinos mais elevados. Portanto, mais
uma vez o princípio da visão sagrada é extremamente importante. A pessoa falecida é
instruída a repetir parte da prece que concluiu o bardo do dharmata. E deveria repetir
muitas vezes, com absoluta convicção de que é verdadeira, e não falsa:

Separado dos amigos queridos, vagando sozinho,


Agora quando as formas vazias da auto-exibição aparecem
Possam os budas enviar o poder de sua compaixão
De forma que o medo e o terror do bardo não apareçam.
Quando eu sofrer por meio do poder do mau karma
Possa minha deidade escolhida remover todo o sofrimento.
Quando o som natural do dharmata rugir como mil trovões
Possa tudo se tornar o som das seis sílabas.
Quando eu seguir o meu karma sem um refúgio
Possa o Senhor da Grande Compaixão ser o meu refúgio.
Quando eu sofrer o resultado das impressões kármicas
Possa o samadhi da bem-aventurança e da luminosidade surgir.

Por volta da metade do caminho do bardo da existência, ou depois de quatro


dias e meio de acordo com o texto, a conexão com nossas vidas anteriores começa a se
desfazer e nos sentimos crescentemente atraídos para a próxima vida. As cores dos
seis reinos irão brilhar, suaves e convidativas: a luz branca do reino dos deuses, a luz
vermelha do reino dos deuses ciumentos, a luz azul do reino humano, a luz verde do
reino animal e a luz fumacenta do reino do inferno. A luz do reino no qual vamos
renascer brilha mais forte.

A coisa mais importante agora é evitar ser atraído para qualquer um dos seis
reinos. Ainda existe uma chance de despertar naquilo que é chamado um reino
nirmanakaya puro, um nível mais elevado de existência em que continuaremos a
progredir ao longo dos estágios finais do caminho. As luzes coloridas representam os
estados mentais que criam os reinos do samsara. Elas aparecem à nossa frente vindas
de dentro de nossa própria mente. Nos seduzem com toda a força de nossas
tendências kármicas, nossas reações habituais e nosso impulso instintivo para retornar
ao nosso antigo estilo de vida. Podemos sentir essa atração magnética quando somos
puxados em uma determinada direção por nossas emoções, embora ao mesmo tempo

326
sintamos a possibilidade de permanecer em um estado de equanimidade e abertura,
em vez de sermos conduzidos pelo hábito. Mesmo na meditação podemos
subitamente nos sentirmos nostálgicos por antigas atitudes, e uma saudade perversa
pode surgir para que voltemos a ser comuns e a ver as coisas de uma maneira comum.
Isso é igual ao brilho dessas luzes ilusórias em nossa mente.

A instrução fornecida nesse ponto está prestes a transformar nossa percepção


dos seis reinos por meio da prática da visão sagrada. Se tivermos praticado
previamente o yoga de uma deidade, deveríamos meditar nas luzes coloridas como
sendo aquela deidade, ou, se não temos uma prática específica, como sendo
Avalokiteshvara. Imaginamos intensamente, com todo o nosso ser, que o que quer que
estejamos vendo não é nada além da presença compassiva da deidade. E a essência da
deidade é o vazio: vazio e aparência são indivisíveis, fluindo incessantemente de um
para o outro, emergindo e se dissolvendo — até que transcendemos a distinção entre
real e irreal, e o conceito de um ego separado perde o significado.

Ó filho de família desperta, neste momento a instrução é absolutamente


essencial: seja qual for a luz que brilhe, medite nela como sendo o Senhor
da Grande Compaixão. Medite no pensamento de que, quando a luz surgir,
ela é o Senhor da Grande Compaixão. Esse é o ponto mais profundo e
essencial; isso é muito importante e evitará o renascimento.
Medite por um longo tempo em qualquer que seja a sua deidade
escolhida, como sendo uma visão sem qualquer natureza real por si, como
uma ilusão. Isso é chamado o corpo ilusório puro. Em seguida, deixe a
deidade desaparecer nas fronteiras interiores e permaneça por um tempo
no estado de vazio e claridade, onde não existe apego nem mais nada.
Medite novamente na deidade, e em seguida de novo na luminosidade.
Medite assim alternadamente, depois deixe que até mesmo sua
consciência desapareça de seus limites exteriores e mergulhe para dentro.
Onde quer que haja espaço, há consciência; e onde quer que haja
consciência, há o dharmakaya. Permaneça silenciosamente na ausência de
ego e na simplicidade do dharmakaya. A partir desse estado, o nascimento
será evitado e você despertará.

Aqui, a simplicidade se refere à ausência de qualquer manifestação mental; ela


significa literalmente sem expansão ou elaboração, o que Trungpa Rinpoche chamava
de as complexidades do samsara e do nirvana”. É um conceito baseado no
entendimento de que os fenômenos não possuem existência independente, mas

327
surgem da mente como auto exibições espontâneas. O dharmakaya é o estado da
onisciência não dual, no qual a consciência luminosa sabe tudo por si só, por meio de
sua própria luz. Não existe apego ao ego como sujeito e nenhum fenômeno existindo
separadamente como objeto, Se formos capazes de permanecer nesse estado com
algum grau de estabilidade, poderemos despertar em uma terra pura em vez de
retornar ao samsara. Igualmente, na experiência diária, se pudermos permanecer em
abertura e equanimidade mesmo por um período curto de tempo, isso irá evitar que
vaguemos diretamente em direção à próxima reação emocional negativa que nos
acenar.

Com a sensação de possuir um corpo mental, o gandharva ou consciência do


bardo sente-se extremamente vulnerável e desorientado, portanto procura
desesperadamente por qualquer lugar de refúgio. É incessantemente fustigado pelo
vento do karma e continua a suportar a experiência de ser perseguido em meio à
escuridão, aos furacões, à neve e ao granizo. Ao tentar escapar, aqueles que levaram
vidas más sentem que estão fugindo para um sofrimento ainda maior, enquanto
aqueles que levaram vidas boas sentem que estão viajando em direção a um lugar de
felicidade. Finalmente, visões de homens e mulheres em união sexual aparecem. Se
um gandharva com as conexões corretas em relação a esses futuros pais estiver
presente, ele tem agora a oportunidade de se introduzir entre o esperma e o óvulo
enquanto eles se unem, e assim “entrar em um útero”.

O livro explica que existem dois métodos principais que podem ser aplicados
para evitar o renascimento: “parar a pessoa que está entrando, e fechar a porta do
útero que está prestes a ser penetrado”. O primeiro método é semelhante à instrução
que acabou de ser dada, enfatizando mais uma vez que se a pessoa não tem o poder
concedido para nenhuma deidade específica, deveria meditar em Avalokiteshvara. A
pessoa no bardo simplesmente se funde com o vazio luminoso da essência da deidade
e não prossegue mais em direção ao renascimento. Mas, se isso não funcionar,
existem cinco maneiras diferentes de fechar a porta do útero de modo que a pessoa
não possa entrar. O verso raiz do bardo da existência contém a essência das
instruções:

Agora quando o bardo da existência torna-se mais claro para mim,


Manterei minha aspiração focalizada em minha mente
E me esforçarei para prolongar o curso do karma bom.
Fecharei a porta do útero e evocarei a resistência.
Este é um tempo para força mental e visão pura,
Abandonar o ciúme e meditar no guru como pai e mãe!

328
Concentrar-se na nossa aspiração em relação ao despertar é extremamente
importante neste estágio, por causa do poder sem precedentes da mente no bardo,
portanto o que quer que pensemos é imediatamente realizado. Mesmo um
pensamento passageiro de medo pode nos desequilibrar completamente, ou um
momento de nostalgia pode nos enviar rapidamente em direção ao renascimento.
Igualmente, podemos ser liberados por um instante de reconhecimento. O efeito de
aplicar a concentração focalizada neste momento é comparável a controlar um cavalo
com uma rédea ou usar uma catapulta para disparar um míssil.

Prolongar o curso do karma bom significa reforçar continuamente a reação em


cadeia criada por pensamentos e ações positivas, estendendo-o em vez de desviá-lo
em direção ao medo, à raiva, ao apego ou a outras emoções negativas. A natureza
fundamental de todos os seres conscientes é a bondade básica, o estado de
Samantabhadra, mas por meio da ignorância cortamos a conexão com nossa origem.
Por isso, ouvir essas instruções do bardo é como remendar um duto de água colocando
um cano. Com sua ajuda, a ligação vital é restabelecida; a corrente positiva de causa e
efeito fluirá de maneira estável, sem se dispersar em outras direções, e nos levará de
volta à nossa própria perfeição natural.

O verso diz que devemos “abandonar o ciúme”. À medida que vamos nascer
como macho ou como fêmea, já possuímos a polaridade do nosso futuro gênero;
quando vemos um homem e uma mulher, nossos pais em potencial, fazendo amor, o
ciúme surge imediatamente dentro de nós. Ele é produzido a partir das emoções
fundamentais opostas de atração e repulsão. Sentimos atração, luxúria e paixão pelo
par do sexo oposto e aversão, ódio e agressão pelo do mesmo sexo. Isso é o que
impele o gandharva para o útero, entrando entre as essências masculina e feminina
dos pais, os bindus branco e vermelho. É como se a porta tivesse se aberto para nós,
convidando-nos a entrar.

Fechar a porta do útero significa realmente eliminar as condições mentais


necessárias para se entrar em um útero, através da transformação de nossa percepção
e atitude em relação ao fato. Portanto, a primeira instrução é imaginar o casal como a
personificação do guru em forma masculina e feminina. Em vez de um homem e uma
mulher comuns impulsionados pela luxúria, vemos nosso guru imerso no samadhi da
suprema bem-aventurança com sua consorte espiritual. Essa percepção pura muda
completamente nossa atitude; sentimos intensa devoção e rogamos por
ensinamentos. Como resultado, fundimo-nos com a amplidão de suas mentes
despertas em vez de sermos seduzidos pela teia do samsara.

Se isso não der certo, deveríamos meditar no casal como nossa deidade
escolhida, ou como Avalokiteshvara em união com sua consorte. Os princípios

329
masculino e feminino personificam a união inseparável de aparência e vazio,
mostrando-nos diretamente a natureza ilusória de tudo o que vemos. Deveríamos
mentalmente fazer oferendas a eles e pedir que nos concedam realizações espirituais.
Isso terá o mesmo efeito que o primeiro método.

Ambos os métodos se relacionam à prática na vida diária de tentar perceber o


que quer que surja como a expressão do guru ou da deidade. Com esse tipo de visão
sagrada, não precisamos nos emaranhar em cada situação que surja. Cada experiência
é reconhecida como uma expressão do estado desperto. Isso significa que estamos
continuamente liberando a mente para a amplidão, abandonando a atitude egoísta
que normalmente influencia todos os nossos pensamentos, palavras e ações.

Mas se ainda nos encontrarmos bem no limiar de um útero, a terceira instrução


é sobre “mandar embora a paixão e a agressão” contemplando as pavorosas
consequências de ficar sob sua influência. Conforme o gandharva penetra na união das
duas essências, experimenta um momento de bem-aventurança, em seguida perde a
consciência; essa é a morte do estado gandharva. Daquele momento em diante, a
nova vida começa. Existem muitas fontes que descrevem a formação do embrião no
útero, derivadas da antiga teoria médica indiana124. Sucessivamente, os vários pranas,
nadis e chakras aparecem, espalhando-se a partir do coração, que se forma no local
onde a consciência penetrou originalmente, entre o bindu vermelho e o bindu branco.
Dependendo do corpo sutil, o corpo físico do feto gradualmente se desenvolve,
parecendo-se primeiro com um peixe e em seguida com uma sucessão de mamíferos à
medida que cresce. Diz-se que todo o processo provoca extremo desconforto; a
existência no útero é como estar em uma prisão, e o nascimento é extremamente
doloroso.

Aqui o texto menciona o renascer no reino animal como uma possibilidade muito
real. Nesse estágio, praticantes experimentados já terão sido liberados, portanto as
instruções são dirigidas a todos os tipos de pessoas no bardo, mesmo àqueles que se
afundaram muito, e esse lembrete do sofrimento no samsara é uma advertência
poderosa contra o se entregar à paixão e à agressão.

Você abrirá seus olhos e descobrirá que voltou como um


cachorrinho. Anteriormente você foi humano, mas agora tornou-se um
cachorro, portanto vai sofrer em um canil, ou talvez em um chiqueiro, em
um formigueiro, ou em um buraco de minhoca; ou talvez possa renascer
como um jovem touro, cabrito ou carneiro. Você não pode voltar para cá;

124
Relatos do desenvolvimento do embrião podem ser encontrados, por exemplo, em Clifford, Tibetan
Buddhist Medicine and Psychiatry; Dhargyey, Kalachakra Tantra; Lati e Hopkins, Death, Intermediate
State and Rebirth.

330
irá suportar todo o tipo de sofrimento em um estado de grande ilusão e
estupidez. Girando dessa forma em torno dos seis reinos dos seres
infernais, dos fantasmas famintos e assim por diante, será atormentado
por sofrimento infindável. Não existe nada mais poderoso ou aterrorizante
do que isso.

Muitas pessoas que acreditam em reencarnação acham que é impossível


regredir do estado humano para um estado inferior, mas a visão budista tradicional é
de que circulamos pelos seis reinos repetidamente durante períodos imensos de
tempo. Nascer em um reino diferente requer uma transformação completa de toda a
nossa perspectiva. Um corpo animal pode somente manifestar a expressão natural de
uma mente animal, e isso é verdadeiro para todos os outros reinos. Portanto, afirmar
que uma pessoa acorda subitamente no corpo de um cachorrinho não significa que ela
teria uma consciência humana. De qualquer maneira, de um ponto de vista humano,
isso ainda é uma advertência vigorosa. Acima de tudo, a advertência é relevante
durante esta vida, porque mesmo agora, raramente notamos quando escorregamos
para os estados mentais do reinos inferiores. A instrução aqui é para meditar nesta
resolução:

Ai de mim, para um ser consciente de karma ruim, como eu! Embora tenha
circulado ao redor do samsara já por muitas vezes, ainda estou vagando
desse jeito como resultado da paixão e da agressão. Se eu seguir sentindo
paixão e agressão dessa forma, vagarei incessantemente no samsara e
estarei a perigo de afundar no oceano do sofrimento por um longo tempo,
portanto agora não sentirei absolutamente nenhuma paixão nem agressão.
Ai de mim, ai de mim!

Concentrar-se nessa firme resolução destruirá a precondição para entrar em um


útero, portanto a porta será fechada.

Se esse método não for bem-sucedido, a quarta técnica é meditar na irrealidade


de todas as nossas experiências. Tanto os terrores do bardo quanto o aparente refúgio
oferecido por nossos futuros pais se originam de nossa própria mente, e essa mente
por si é ilusória e não existente. Tomamos o que não é real por real, e o que não existe
por existente, e é por isso que estamos aprisionados no samsara. O texto cita as
analogias tradicionais que se aplicam a cada aspecto da vida: “Agora eles são todos

331
como sonhos, como magia, como ecos, como castelos no ar, como miragens, como
reflexos, como ilusões óticas, como a lua na água. Não são reais nem por um
momento. Certamente não são verdadeiros, mas falsos.” Essa meditação é
extremamente poderosa porque mina diretamente a crença na dualidade e no ego; a
entrada para o renascimento é automaticamente fechada, porque não existe mais
nenhum sentido de indivíduo para renascer.

O método final de fechar o útero é essencialmente uma meditação dzogchen na


luminosidade e no vazio da mente, o mais simples de todos os ensinamentos.

Ó filho de família desperta, se mesmo depois de fazer isso a porta do útero


não se fecha, agora ela deveria ser fechada pelo quinto método, meditação
na luminosidade. A meditação deve ser feita da seguinte maneira: “Tudo o
que existe é minha própria mente, e essa mente é vazia, não nascida e
desobstruída.” Conforme você contempla esse pensamento, deixe sua
mente permanecer fácil e naturalmente dentro dela mesma de sua própria
maneira, como água vertida em água, auto-abrangente, solta, aberta e
relaxada, de tal forma que sua mente não seja estragada por nada artificial.
Isso fechará definitivamente a porta do útero para todos os quatro tipos de
nascimento; com certeza. Medite nisso repetidas vezes até que ela se
feche.

Ao fornecer todas essas diferentes instruções, assim como durante o bardo do


dharmata, o texto está mostrando a multidão de possibilidades continuamente
presentes ao nosso redor como portais em potencial para o despertar. Na vida, assim
como no estado de pós-morte, nem todas as oportunidades estão disponíveis para
todos, e nem sempre somos capazes de responder a elas. Não podemos ficar no bardo
da existência para sempre, portanto se não conquistamos a liberação nem entramos
em um útero, chega um tempo em que temos de embarcar em uma nova existência.
As instruções finais dizem respeito a escolher o melhor nascimento possível. A
intenção de fornecer todos os detalhes que se seguem é para que a experiência
atordoante por que a pessoa falecida passa faça sentido, para fornecer algum tipo de
mapa para essa jornada rumo a território desconhecido, onde somos impelidos pelo
karma em direção à colheita das sementes que plantamos.

Dentro das luzes coloridas dos seis reinos, características de suas paisagens
começam a aparecer assim que nos aproximamos deles. Talvez sejamos atraídos muito
fortemente para um reino e por isso percebamos somente aquele, ou talvez vejamos
lampejos de outros reinos à medida que aspectos diferentes do nosso karma se

332
destacam. Durante todo o tempo, estamos procurando desesperadamente por algum
lugar para nos escondermos, portanto o que quer que vejamos parecerá um lugar de
refúgio. É nesse momento que deveríamos “pensar em resistência”, como diz o verso.
O livro descreve os sinais e características de cada um dos reinos, de forma que se
estivermos próximos de nascer em um deles, possamos reconhecer as indicações e
resistir à tentação de entrar em um útero.

Ao escolher um novo local de nascimento, o mais importante a fazer é considerar


as oportunidades que ele oferece para praticar o dharma. Desse ponto de vista, o
reino humano é visto como sendo o melhor de todos, mesmo melhor do que os
elevados reinos dos deuses e dos deuses ciumentos. Ele consiste em quatro regiões ou
continentes nos quatro pontos cardeais ao redor do monte Meru, o eixo do nosso
sistema de mundo, mas nem todos são igualmente adequados. Se formos renascer no
continente oriental, veremos um lago no qual gansos estão nadando. O sinal do
continente ocidental é um lago onde cavalos estão pastando, e o sinal do continente
setentrional é um lago cercado por árvores e gado. Todos eles são locais de riqueza e
felicidade, mas são muito materialistas e “o dharma não floresce lá”, portanto
deveriam ser evitados. Somente o continente meridional, que corresponde ao nosso
mundo, tem condições que apoiam o dharma. Se tivermos as qualificações kármicas
para nascer lá, veremos muitas casas luxuosas e deveríamos entrar nelas para
encontrar nossos futuros pais.

Podemos também ter visões dos outros reinos. Se formos nascer no reino dos
deuses, veremos palácios celestiais, com muitos andares e inteiramente decorados
com joias. Embora a vida dos deuses seja considerada muito fácil e prazerosa para a
busca séria do dharma, possui muitas qualidades excelentes, portanto deveríamos
entrar, se pudermos.

Os deuses ciumentos são violentos e agressivos embora partilhem a natureza dos


deuses, portanto deveríamos tentar arduamente não ser atraídos para o seu reino.
Conforme nos aproximamos dele, vemos deliciosos bosques de arvoredos e rodas de
fogo giratórias, armas mágicas que cospem chamas enquanto giram em direção a seus
alvos.

Se formos nascer como animais, tudo parecerá “como se através de um


nevoeiro". Percebemos vagamente as moradias de vários tipos de criaturas: cavernas
nas rochas, buracos no chão e frágeis abrigos de palha. Definitivamente, não
deveríamos nos dirigir para eles.

O reino dos fantasmas famintos parece escuro e sombrio. Fantasmas podem


habitar todo tipo de lugares estranhos, por exemplo, dentro de árvores ou debaixo da
terra. Portanto, as bocas negras das covas pelo chão, os troncos partidos ou qualquer

333
protuberância ou pedaço de terra pode parecer que oferece abrigo. Deveríamos
perseverar em resistir a qualquer pensamento de entrar lá.

Finalmente, os sinais do reino do Inferno são descritos. Parecerá que estivemos


viajando ao longo de uma estrada escura na qual existem moradas negras e vermelhas,
covas escuras e ilhas de escuridão densa, sombria. Podemos ter de entrar indefesos,
contra a nossa vontade, fascinados pelas canções daqueles com karma ruim, portanto
deveríamos ser extremamente cautelosos e resistir tão fortemente quanto possível.

Durante todo o tempo estaremos sendo perseguidos pelas manifestações


Ilusórias do karma, os demônios, assassinos e vingadores, bestas selvagens, escuridão,
furacões e tempestades de neve e granizo. Toda a atmosfera e assustadora, portanto
se virmos um bosque, rapidamente nos escondemos no meio dele, ou se existe uma
casa, corremos para dentro dela; podemos até cair em um buraco no chão ou nos
enrascarmos dentro das pétalas de uma flor. Em seguida tornamo-nos apegados ao
nosso esconderijo e ficamos muito assustados para sair, por isso acabamos tomando
um corpo naquele reino. “Isso é um sinal de que demônios e forças malignas estão o
obstruindo agora. Nesse momento, existe uma instrução profunda, portanto ouça e
compreenda.”

A instrução é para convocar o auxílio das deidades coléricas para proteção.


Mesmo que tenhamos sentido medo delas quando apareceram mais cedo, agora que
estamos em dificuldades tão desesperadoras, temos uma outra oportunidade de
entender seu significado profundo, como as personificações das mais poderosas
energias de nossa natureza desperta. Se tivermos meditado previamente em uma
forma colérica, o melhor é visualizá-la. Caso contrário, podemos convocar o Grande
Supremo Heruka, Hayagriva ou Vajrapani, manifestações coléricas das famílias Padma
e Vajra, cujas imagens serão mais bem conhecidas por qualquer um familiarizado com
o vajrayana. Não importa realmente que deidade é escolhida; o importante é que
deveríamos ser capazes de evocá-la na mente imediata e vividamente em uma
emergência. A deidade deveria ser imaginada “com um corpo grande e membros
volumosos, posicionando-se em uma atitude aterrorizante de cólera que esmaga todas
as forças malignas transformando-as em pó. Separado dos vingadores por esse
adhishthana e por essa compaixão, você terá o poder de escolher a porta de um útero.
Esse é o verdadeiro e profundo segredo da instrução, portanto compreenda-o bem”.

Essa meditação remove a sensação imediata e esmagadora de medo e perigo, de


modo que possamos pausar e pensar a respeito da nova vida. Das quatro maneiras
diferentes de nascer, o nascimento a partir de um útero e o nascimento a partir de um
ovo são semelhantes por resultar da união de dois pais. Acredita-se que insetos e
outros organismos primitivos são produzidos espontaneamente a partir do calor e da
umidade, por exemplo, dentro de uma pilha de estrume, que atrai os gandharvas pelo
seu cheiro. Outros seres conscientes, com seus corpos imateriais e mentais, como

334
deuses, fantasmas famintos, espíritos malignos e seres infernais, são nascidos
miraculosamente sem nenhum agente externo. Deuses do reino sem forma se
originam da conquista do samadhi. No estado volátil do bardo, é possível entrar em
reinos inferiores da existência por meio de uma súbita transformação em nossa
atitude mental, por isso deveríamos evitar permitir que aconteça. A melhor proteção é
a meditação mahamudra no vazio de qualquer coisa que apareça, mas se não
conseguirmos permanecer naquela compreensão, deveríamos simplesmente tentar
compreender a natureza ilusória de tudo e observar tudo acontecer sem se deixar
atrair. Como último recurso, deveríamos pelo menos evitar se sentir atraído por
qualquer coisa e meditar em Avalokiteshvara.

Mesmo nesse último estágio, ainda é possível efetuar a transferência para uma
terra pura a fim de completar nosso progresso no caminho. Dependendo das conexões
anteriores, ela pode ser o reino de um dos cinco budas, ou o do Guru Rinpoche ou o do
futuro Buda Maitreya, mas o ideal de muitos budistas é ir para o Reino da Bem-
Aventurança de Amitabha. A transferência é conquistada através de intensa
concentração na resolução de escapar do samsara e no anseio de ir para aquela terra
pura em particular. Assim que pensarmos na nossa terra pura escolhida com fé plena,
instantaneamente nos encontraremos lá.

Se a transferência não for bem-sucedida, então o único trajeto restante é


escolher um útero adequado para entrar, mesmo ele sendo “uma porta de útero
impura, samsárica”. É importante não ser enganado pelos próprios preconceitos sob a
influência do karma. Se temos tendências kármicas para o nascimento em uma pilha
repulsiva de estrume, ela irá parecer perfumada e atrativa. Assim como na vida, é
muito fácil pensar que um certo rumo de ação irá nos trazer felicidade, quando todo
mundo ao nosso redor pode ver que ele será desastroso, ou rejeitar uma escolha mais
difícil que é realmente para melhor. “Mesmo se a porta de um útero parece boa, não
confie nela, e mesmo se ela parece ruim, não a rejeite. O segredo verdadeiro,
profundo, essencial é entrar no estado de supremo equilíbrio no qual não existe bom
ou ruim, aceitação ou rejeição, paixão ou agressão”

Deveríamos tomar uma firme resolução de nascer em uma situação em que


possamos praticar o dharma e ser de algum benefício para todos os seres viventes.
Isso pode significar nascer em uma posição de poder e influência, seja mundana ou
espiritual, ou simplesmente como o filho de uma família religiosa cuja prática seja pura
e genuína. Então, quando encontrarmos pais adequados, deveríamos pensar no útero
da mãe como um palácio divino e entrar nele solicitando a todos os budas e
bodhisattvas por seu adhishthana. Mesmo se não pudermos administrar isso, no
mínimo deveríamos entrar em um útero com fé e confiança:

335
Ó filho de família desperta, se você não sabe como escolher a porta de um
útero e não consegue se separar da paixão e da agressão, qualquer que
seja a experiência que surja, convoque as três joias e refugie-se nelas.
Suplique pelo Senhor da Grande Compaixão. Siga com a cabeça erguida.
Abandone os apegos e anseios pelos amigos e pela família, filhos e filhas,
que deixou para trás; eles não podem ajudá-lo. Entre agora na luz azul do
reino humano ou na luz branca do reino dos deuses; entre nos palácios de
joias e nos jardins dos prazeres.

Essa é a instrução final de Liberação através da audição, que termina enfatizando


mais uma vez o grande valor e utilidade de lê-lo em voz alta para aqueles que
morreram. Com tantas instruções diferentes mostrando a natureza das experiências
do bardo, “como os degraus de uma escada”, pessoas de todos os níveis de
compreensão o reconhecerão em um estágio ou em outro, ou conquistarão um bom
renascimento no qual encontrarão um verdadeiro amigo e mestre espiritual. É fácil
alcançar e influenciar a consciência dos mortos, porque eles têm corpos mentais e não
físicos. Têm percepção paranormal, inteligência extremamente clara e o poder de
viajar instantaneamente para onde quer que queiram, portanto não importa quão
longe tenham vagado, voltarão quando forem chamados e escutarão os ensinamentos.
Essa condição responsiva da mente no bardo é comparada a flutuar um tronco de
árvore na água para transportá-lo com mais facilidade, enquanto em terra seca mesmo
cem homens não seriam capazes de movê-lo.

Liberação através da audição não deveria ser lido apenas para os mortos, mas
todos deveriam lê-lo para si próprios, ter certeza de que realmente entenderam seu
significado, e apreender seus pontos importantes com o coração, especialmente
quando a morte estiver próxima. “Este ensinamento não necessita de qualquer
prática; ele é uma instrução profunda que libera apenas pelo fato de ser vista ou
ouvida.” Agora podemos apreciar o significado dessa afirmação, que tem sido repetida
com tanta frequência. Isso não quer dizer que não precisamos realizar nenhuma
prática durante esta vida, mas que esse ensinamento, por causa de sua natureza
especial, não requer nenhum treinamento preliminar para ser efetivo. As instruções
mostram a natureza da mente tão clara e diretamente, que elas se ligam a qualquer
coisa que tenhamos praticado ou compreendido. Em adição, estão imbuídas do poder
do adhishthana fluindo para nós através da longa linhagem de seres despertos: da
própria mente do buda primordial, através do Buda Shakyamuni, o Precioso Guru
Padmakara, o descobridor Karma Lingpa, diretamente até os grandes mestres de nosso
tempo, tais com Trungpa Rinpoche, que as transmitiu de uma forma que fala aos
nossos corações. Como dizem as palavras de encerramento: Mesmo que os budas do

336
passado, do presente e do futuro procurassem, não encontrariam um ensinamento
melhor do que este.”

Em relação à vida diária, o bardo da existência representa cada novo momento


assim que ele está pronto para surgir: cada pensamento, cada ação e cada forma de
expressão que produzimos. Ele é condicionado pelo passado que por sua vez molda o
futuro. Mas a corrente de causa e efeito não é alterável; pode ser interrompida e
transformada ao se reconhecer sua natureza ilusória e ao se acessar a energia
inconcebível de nosso estado desperto natural.

Podemos mais facilmente captar o momento de vir à existência quando um


estado emocional ou atitude mental começam a se desenvolver. Ainda não estamos
comprometidos com o sentimento emergente de raiva, ciúme ou desejo, qualquer que
possa ser, e podemos ver que, se for permitido que ele se manifeste, irá causar
sofrimento. Nesse estágio, ainda pode ser possível evitá-lo e fazer uma conexão direta
com a nossa sanidade e bondade básicas. Uma das maneiras mais eficientes de se
fazer isso é lembrar de nossa deidade ou guia espiritual, qualquer que seja a tradição
que sigamos. Frequentemente, quanto mais forte a emoção, maior a oportunidade
que existe para um súbito lampejo de clareza. A energia intensa dos venenos é
transmutada em um sentimento poderoso da presença das deidades coléricas
protetoras, cortando de maneira eficaz o fluxo do karma negativo. A visão sagrada é a
prática mais importante, ver todo o ambiente como uma terra pura, e nós mesmos e
todos os outros seres que nele estão como deidades.

Podemos desejar conseguir parar o desdobramento do futuro e voltar para o


passado. Mas a cada momento o passado morre e não podemos retornar a ele, assim
como não podemos reentrar em nossos antigos corpos depois da morte. O sentido do
ego depende do apego ao passado. Vendo isso claramente e o abandonando,
podemos evitar que os erros do passado se repitam sucessivamente.

Se padrões positivos emergirem em nosso fluxo mental, poderemos nos sentir


cheios de alegria e esperança, despertando de uma maneira alegre e aguardando
ansiosamente a próxima fase de nossas vidas. Então deveríamos tentar não entrar nela
de forma cega e egoísta, mas fazer uso dela para aumentar nosso entendimento,
beneficiar os outros e partilhar mentalmente nossa alegria com todos os seres
conscientes. Se não tivermos escolha a não ser entrar em uma situação dolorosa,
podemos formular uma aspiração para levar o sofrimento de todos os seres junto com
a nossa dor.

337
Como Trungpa Rinpoche colocou, a qualidade essencial desse bardo é o limiar
entre se apegar com avidez e abandonar a esperança. A avidez significa se apegar à
solidez, à permanência, uma forma que irá nos definir e nos fazer reais; o ego quer
reforçar sua existência continuamente, recriar-se e preencher-se. Abandonar significa
relaxar na amplidão do ser, onde a peça mágica das formas acontece, como em uma
dança.

Os três tipos de experiência do bardo que encontramos quando morremos,


revelam as três dimensões do estado desperto. No momento final do bardo do morrer,
ficamos face a face com o vazio luminoso do dharmakaya, nossa natureza essencial. No
bardo do dharmata, experimentamos as visões de nossas deidades inatas, a energia
expressiva do sambhogakaya. No final do bardo da existência, tomamos uma forma
corpórea. A manifestação do nirmanakaya. De acordo com nosso grau de
reconhecimento em qualquer estágio, podemos alcançar um nível de despertar, até
que sejamos finalmente capazes de reconhecer a luminosidade básica, como o
encontro de uma mãe e um filho longamente separados.

Tudo aquilo que não é o estado desperto é o bardo; sempre estamos em um


estado de bardo, assim como os três kayas estão sempre presentes em nossas vidas.
Conforme o passado se dissolve, a mente se funde com a não- existência de tudo o que
existe, a amplidão onipresente do espaço, a totalidade da qual todos os fenômenos
surgem e para a qual retornam: o dharmakaya. No intervalo entre a desaparição de um
pensamento e o surgimento do próximo, a mente permanece no estado de claridade,
consciência luminosa vibrante com a exibição mágica da energia: o sambhogakaya. À
medida que cada novo momento de consciência surge, ele dá forma às qualidades
despertas naturais da mente e as traz à vida neste mundo, como a manifestação
contínua de corpo, fala e mente: o nirmanakaya.

O reconhecimento é a ideia fundamental de todo esse ensinamento, mas não


podemos reconhecer o que nunca conhecemos. Portanto, sua mensagem para nós
durante esta vida é conhecer todas as manifestações da mente enquanto ainda há
tempo. Toda meditação é sobre conhecer a mente: primeiro, nossas mentes
individuais e em seguida a essência da própria mente. Não existe bardo fora da mente,
não existem deuses ou demônios fora da mente, não há existência ou despertar fora
da mente. Se aprendermos a conhecer nossa mente durante esta vida,
compreenderemos que a mesma mente continua após a morte, e o que quer que
ocorra após a morte também acontece aqui e agora.

Depois do verso para o bardo da existência, os Versos raiz dos seis bardos
terminam com uma estância final, admoestando-nos para não ficar retornando ao
samsara repetidamente com nada para mostrar a ele:

338
Mente distraída sem um pensamento sobre a aproximação da morte,
Agora que o negócio sem sentido da vida está completado,
Voltar vazio de novo desta vez é altamente ilusório!
O reconhecimento é o dharma sagrado, divino, que você necessita,
Portanto, por que não praticar o dharma divino neste exato momento?
Por isso os grandes siddhas falaram:
Se você não mantiver os ensinamentos de seu guru no coração
Não será você um traidor de si próprio?

Sem a prática que torna o reconhecimento possível, é duvidoso que vejamos


realmente quaisquer das aparências que são descritas em tantos detalhes. Essas
descrições são dirigidas a pessoas que são capazes de reter algum nível de consciência
através da morte, de clarificar o que está acontecendo e lembrá-los de suas
experiências anteriores. Outros poderão talvez estar conscientes das luzes fascinantes
e das cores relampejantes, ou de tremendas ondas de som. Eles provavelmente se
sentirão fustigados pelas emoções cambiantes sem entender sua causa. Haverá
sentimentos de intensa reverência, de atração e desejo em uma direção, e ódio e
terror em outra, mas, acima de tudo, de completa perplexidade. Tudo o que o texto
descreve estará presente já que está naturalmente dentro da mente: a luminosidade
de nossa natureza essencial está lá, nossas deidades inatas estão lá, os seis reinos
estão lá, e os efeitos kármicos de nossas ações passadas estão lá, mas nós não as
perceberemos claramente ou as reconheceremos pelo que são.

Os eventos dos três bardos estão expressados aqui inteiramente nos termos da
doutrina budista e em uma grande extensão, especificamente em termos dzogchen.
Pessoas de outras tradições que são capazes de manter uma certa consciência nesse
momento podem não experimentar tudo da mesma maneira. É por isso que é tão
importante tentar entender o significado interior das imagens apresentadas aqui. Mas,
como não podemos descartar o uso da linguagem, não podemos descartar essas
formas simbólicas. Até que tenhamos realizado plenamente a última compreensão
sem forma, a realidade nua deve permanecer vestida com imagens. Dessa maneira, o
estado desperto inconcebível atua incessantemente por meio dos fenômenos mágicos
da vida, da morte e dos bardos, e de forma transparente se revela ao olho da visão
sagrada.

339
Aspiração

O firmamento ilimitado do vazio


É luminoso com luz toda penetrante,
Em céu de mente clara, livre das complexidades,
O arco-íris dos fenômenos rebrilha.

Onde nem confusão nem liberdade jamais existiram,


O pai e a mãe de tudo, Bondade Universal,
Habitam na grande bem-aventurança secreta além do pensamento
E mesmo assim revelam os milagres da atividade incessante do amor.

O que quer que o olho veja é visão sagrada,


O que quer que o ouvido escute, a voz da verdade,
Quaisquer que sejam os pensamentos que surjam na mente,
Sua própria auto consciência auto liberada.

Possam todos despertar para aquela grande perfeição!

Digitalização:
CEBB PELOTAS - RS
2017

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FIGURAS

Figura 1 - A Roda da Vida: pintura de Gonkar Gyatso, acrílico sobre tela. Todas as
ilustrações são da coleção da autora. Fotografias de Alan Tabot.

Figura 2 - Os Budas das Cinco Famílias: pintura de Gonkar Gyatso, acrílico sobre tela.

Figura 3 - Samantabhadra e Samantabhadri; pintura de Francesca Fremantle, óleo


sobre tela.

Figura 4 - As Deidades Pacíficas e Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século


XIX, artista desconhecido.

Figura 5 - Vidyadhara e Dakini; pintura de Gonkar Gyatso, aquarela sobre papel.

Figura 6 - As Deidades Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século XIX, artista
desconhecido.

Figura 7 - As Deidades Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século XVIII,


artista desconhecido.

Figura 8 - Avalokiteshvara unindo-se à consorte Jinasagara, ao centro, e rodeado pelas


suas outras manifestações, Hayagriva à direita, uma dakini colérica
vermelha à esquerda e uma mahasiddha acima. Pintura thangka tibetana,
século XIX, artista desconhecido.

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Figura 1 - A Roda da Vida: pintura de Gonkar Gyatso, acrílico sobre tela. Todas as
ilustrações são da coleção da autora. Fotografias de Alan Tabot.

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Figura 2 - Os Budas das Cinco Famílias: pintura de Gonkar Gyatso, acrílico sobre tela.

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Figura 3 - Samantabhadra e Samantabhadri; pintura de Francesca Fremantle, óleo
sobre tela.

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Figura 4 - As Deidades Pacíficas e Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século
XIX, artista desconhecido.

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Figura 5 - Vidyadhara e Dakini; pintura de Gonkar Gyatso, aquarela sobre papel.

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Figura 6 - As Deidades Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século XIX, artista
desconhecido.

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Figura 7 - As Deidades Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século XVIII,
artista desconhecido.

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Figura 8 - Avalokiteshvara unindo-se à consorte Jinasagara, ao centro, e rodeado pelas
suas outras manifestações, Hayagriva à direita, uma dakini colérica vermelha à
esquerda e uma mahasiddha acima. Pintura thangka tibetana, século XIX, artista
desconhecido.

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