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Vazio Luminoso
Para entender o clássico
Livro tibetano dos mortos
Tradução de
WALDEMAR FALCÃO
NOVA ERA
Rio de Janeiro
2005
2
Este livro é dedicado
à memória do
ea
Digitalização:
CEBB PELOTAS - RS
2017
3
Sumário
Agradecimentos ........................................................................................................................ 8
Prefácio ..................................................................................................................................... 9
PARTE I - FUNDAMENTOS ........................................................................................................... 17
Homenagem ............................................................................................................................ 18
Capítulo Um............................................................................................................................. 19
Um Livro dos Vivos ...................................................................................................................... 19
Capítulo Dois ........................................................................................................................... 34
Liberação: Desenroscando-se no Espaço .................................................................................... 34
A RODA DA VIDA ................................................................................................................. 36
1. Decadência e Morte .................................................................................................... 36
2. Nascimento ................................................................................................................. 37
3. Existência..................................................................................................................... 37
4. Apego .......................................................................................................................... 37
5. Sede ............................................................................................................................. 38
6. Sensação...................................................................................................................... 38
7. Contato ........................................................................................................................ 38
8. Seis Sentidos................................................................................................................ 39
9. Nome e Forma ............................................................................................................. 39
10. Consciência .............................................................................................................. 39
11. Condicionamento .................................................................................................... 40
12. Ignorância ................................................................................................................ 40
AS TRÊS CARACTERÍSTICAS DO SAMSARA ........................................................................... 43
Sofrimento........................................................................................................................... 43
Impermanência ................................................................................................................... 44
Não-ser ................................................................................................................................ 45
Capítulo Três ........................................................................................................................... 53
Audição: o Poder da Transmissão ............................................................................................... 53
Capítulo Quatro ....................................................................................................................... 62
Bardo: a Experiência do Agora .................................................................................................... 62
O BARDO DESTA VIDA ......................................................................................................... 64
O BARDO DA MEDITAÇÃO ................................................................................................... 67
4
O BARDO DO SONHO .......................................................................................................... 70
O BARDO DO MORRER ........................................................................................................ 71
O BARDO DO DHARMATA ................................................................................................... 72
O BARDO DA EXISTÊNCIA .................................................................................................... 73
Capítulo Cinco ......................................................................................................................... 77
O Arco-Íris dos Elementos ........................................................................................................... 77
TERRA .................................................................................................................................. 79
ÁGUA ................................................................................................................................... 81
FOGO ................................................................................................................................... 84
AR ........................................................................................................................................ 86
ESPAÇO ................................................................................................................................ 89
OS CINCO DEVAS ................................................................................................................. 90
Capítulo Seis ............................................................................................................................ 95
O Processo de Cinco Etapas do Ego ............................................................................................ 95
FORMA ................................................................................................................................ 99
SENTIMENTO ..................................................................................................................... 101
PERCEPÇÃO ....................................................................................................................... 102
CONDICIONAMENTO ......................................................................................................... 103
CONSCIÊNCIA .................................................................................................................... 107
Capítulo Sete ......................................................................................................................... 111
A Exibição do Estado Desperto ................................................................................................. 111
AKSHOBHYA....................................................................................................................... 116
RATNASAMBHAVA ............................................................................................................ 119
AMITABHA ......................................................................................................................... 123
AMOGHASIDDHI ................................................................................................................ 127
VAIROCHANA..................................................................................................................... 130
Capítulo Oito ......................................................................................................................... 137
Seis Estilos de Aprisionamento ................................................................................................. 137
O REINO DOS SERES INFERNAIS ........................................................................................ 141
O REINO DOS FANTASMAS FAMINTOS ............................................................................. 145
O REINO DOS ANIMAIS ...................................................................................................... 150
O REINO DOS SERES HUMANOS ........................................................................................ 153
O REINO DOS DEUSES CIUMENTOS................................................................................... 157
O REINO DOS DEUSES........................................................................................................ 160
5
Capítulo Nove ........................................................................................................................ 166
O Padrão Tríplice do Caminho................................................................................................... 166
O TRIKAYA ......................................................................................................................... 166
DHARMAKAYA ................................................................................................................... 168
SAMBHOGAKAYA .............................................................................................................. 170
NIRMANAKAYA .................................................................................................................. 171
CORPO, FALA E MENTE...................................................................................................... 172
CORPO ............................................................................................................................... 172
FALA................................................................................................................................... 174
MENTE ............................................................................................................................... 175
OS TRÊS NÍVEIS .................................................................................................................. 176
O Nível Grosseiro............................................................................................................... 177
O Nível Sutil ....................................................................................................................... 177
O Nível Muito Sutil ............................................................................................................ 183
Capítulo Dez .......................................................................................................................... 185
A Grande Perfeição ................................................................................................................... 185
PARTE DOIS - O TEXTO .............................................................................................................. 203
Capítulo Onze ........................................................................................................................ 204
A Luminosidade da Morte ......................................................................................................... 204
Capítulo Doze ........................................................................................................................ 232
Paz Invencível ............................................................................................................................ 232
O PRIMEIRO DIA ................................................................................................................ 244
O SEGUNDO DIA ................................................................................................................ 248
O TERCEIRO DIA................................................................................................................. 252
O QUARTO DIA .................................................................................................................. 255
O QUINTO DIA ................................................................................................................... 258
O SEXTO DIA ...................................................................................................................... 261
Capítulo Treze ....................................................................................................................... 268
Louca Sabedoria ........................................................................................................................ 268
O SÉTIMO DIA .................................................................................................................... 274
Capítulo Quatorze ................................................................................................................. 284
Compaixão Colérica ................................................................................................................... 284
O OITAVO DIA .................................................................................................................... 291
O NONO DIA ...................................................................................................................... 298
6
O DÉCIMO DIA ................................................................................................................... 299
O DÉCIMO PRIMEIRO DIA .................................................................................................. 301
O DÉCIMO SEGUNDO DIA.................................................................................................. 302
Capítulo Quinze ..................................................................................................................... 318
Na Porta do Útero ..................................................................................................................... 318
Aspiração ............................................................................................................................... 340
FIGURAS ................................................................................................................................ 341
7
Agradecimentos
Existem muitos outros lamas perfeitos, assim como mestres de outras tradições,
de quem recebi muita ajuda e bondade; em particular, tive o grande privilégio de
conhecer e receber ensinamentos de diversos lamas tibetanos excepcionais da antiga
geração que não estão mais conosco na mesma forma corpórea. A todos eles eu sou
extremamente grata. Lembro-me com profunda gratidão de Sochi Sen, meu guia na
tradição Shakta, cuja vida exemplificou o genuíno espírito do tantra para além de
diferenças sectárias. Agradeço também aos muitos eruditos e tradutores cujos escritos
têm sido uma fonte tanto de informação quanto de inspiração.
8
Prefácio
Depois da invasão do Tibete pela China, Trungpa Rinpoche escapou para a Índia
em 1959 e chegou à Inglaterra em 1963. Enquanto vivia em Oxford, começou a ensinar
a alguns poucos estudantes, e em seguida mudou-se para a Escócia, onde fundou
Samye Ling, o primeiro centro budista do Reino Unido. Em 1970, foi convidado à
América do Norte, onde seus ensinamentos tiveram uma enorme resposta. Os Estados
Unidos e o Canadá permaneceram as bases de suas atividades de ensino até sua
morte, em 1987.
9
magistério, ele combinou as qualidades características de ambas as tradições.
Entretanto, por razões práticas, existem diferenças significativas entre os métodos das
duas escolas. Com seus primeiros estudantes na Inglaterra, ele ensinou primariamente
a partir da perspectiva Ningma, mas depois de sua mudança para a América, enfatizou
o estilo Kagyü de prática. Nos últimos anos, desenvolveu sua forma particular de
apresentação, conhecida como os ensinamentos Shambhala, cujos princípios básicos
descobriu como “tesouros da mente” (gongter). Os ensinamentos de Shambhala são
extraídos de antigas tradições da sabedoria tibetana e asiática, assim como do
budismo; trazem a visão sagrada dos tantras para a vida diária sem a necessidade de
qualquer filiação religiosa ou o uso de terminologia budista específica. Portanto, três
grandes rios de sua inspiração e bênçãos fluíram para o mundo, vindos do Oceano de
Dharma.
Como parte de meus estudos preliminares, tive sorte o bastante para passar seis
meses na Government Sanskrit College, em Calcutá. Enquanto estava na Índia,
encontrei diversos mestres hindus formidáveis, mas nenhum com quem eu sentisse
uma conexão pessoal muito forte. Após colação de grau, planejei retornar à Índia para
seguir meus interesses no tantra hindu, mas por uma auspiciosa coincidência, como
Trungpa Rinpoche teria dito, o professor David Snellgrove me persuadiu que o
Guhyasamaja Tantra seria um tema apropriado para minha dissertação. Isto me levou
a aprender tibetano em adição ao sânscrito e a imergir no mundo clássico do
vajrayana. Entretanto, eu não havia me dado conta de que não existia acesso algum ao
vajrayana como uma tradição autêntica e viva fora do Tibete, onde ele estava sendo
destruído rapidamente. Não foi antes do meio do caminho na minha pesquisa que
soube da existência de um mestre genuíno em meu próprio país e decidi visitá-lo.
10
Minha primeira visão de Trungpa Rinpoche foi em uma meditação de manhã
cedo em Samye Ling. O sol ainda não havia nascido e, na escuridão, a sala estava
iluminada somente pelas velas do altar, sobre o qual pendia uma reluzente thangka de
Amitabha vermelha e dourada. Então ele entrou na sala e prostrou-se três vezes em
frente ao altar, seus movimentos eram plenos de uma graça, uma dignidade e uma
consciência que eram extremamente impressionantes. Ele irradiava um senso de
profunda imobilidade e presença que eu nunca vira antes em ninguém. Durante minha
visita, ele não só me deu ajuda e inspiração para continuar a pesquisa, mas de alguma
forma, sem na verdade dizer muito, transmitiu-me uma percepção nova em relação ao
verdadeiro significado espiritual do tantra.
Cerca de um ano depois, ele se mudou para a América, e no ano seguinte fui
para lá juntar-me a ele. Em 1971, ele ministrou três seminários sobre temas
relacionados ao Livro tibetano dos mortos. Um desses temas formou a base para seu
comentário sobre nossa tradução e os outros dois foram mais tarde publicados em seu
livro Transcending Madness (Shambhala, 1992). Durante esses períodos intensivos,
seus ensinamentos produziram efeitos extraordinários nos participantes. Enquanto ele
explicava o sentido interior dos bardos e os seis reinos da existência, muitos de nós
experimentávamos um verdadeiro passeio de montanha-russa através desses vários
estados mentais, assim como os vislumbres de abertura que acompanhavam seus
extremos de tensão. As emoções vividas dos seis reinos, as qualidades iluminadas das
cinco famílias de budas, mesmo o processo de dissolução que leva à morte, e a
experiência de vazio e luminosidade tornaram-se naquele curto período de tempo
muito mais do que lindas e profundas metáforas. Eram ao mesmo tempo assustadoras
e maravilhosas — um vislumbre de uma maneira totalmente nova de olhar a vida.
11
Como Michael Hookham, Rigdzin Shikpo foi um dos primeiros estudantes
ocidentais de Trungpa Rinpoche. Ele já vinha praticando vários tipos de meditação
budista por dez anos quando eles se encontraram em 1965, portanto estava
excepcionalmente bem preparado. Rinpoche deu a ele os ensinamentos e a
transmissão da linhagem Ningma e mais tarde o autorizou a criar a Fundação
Longchen, que atualmente está sediada em Oxford e no norte do País de Gales. Em
1993, Michael completou um retiro de três anos sob a direção de Khenpo Tsultrim
Gyamtso Rinpoche e recebeu o nome de Rigdzin Shikpo, pelo qual é atualmente
conhecido.
A ideia de escrever este livro vinha crescendo lentamente havia um longo tempo.
Desde a publicação do Livro tibetano dos mortos, as mesmas perguntas têm sido feitas
a mim muitas e muitas vezes. Essas perguntas dizem respeito principalmente ao
significado das visões das deidades que surgem após a morte e a razão para um
sistema de simbolismo tão elaborado. Existem também muitas perguntas sobre
reencarnação e a significação dos seis reinos da existência nos quais a pessoa pode
renascer. Minha ideia original era produzir um trabalho relativamente curto, centrado
na iconografia e no simbolismo das deidades, mas logo se tornou claro que, de forma a
fazer isso de maneira adequada, elas precisariam estar relacionadas com os conceitos
básicos do budismo.
12
tornou mais livre e menos literal, embora também tenha descoberto alguns equívocos
que tive a oportunidade de retificar. Como as citações incluídas aqui são muito
extensas, não é realmente necessário se referir a uma tradução completa do Livro
tibetano dos mortos mas se os leitores desejarem fazê-lo, não deverá ser difícil seguir
as explicações com qualquer das traduções existentes.
Trungpa Rinpoche era diferente dos lamas tibetanos, porque falava um inglês
excelente e apreciava grandemente os desafios da tradução. Era muito aberto a
sugestões, mas também tinha pontos de vista firmes em certos assuntos. Por exemplo,
ele queria evitar qualquer alusão de teísmo ou teosofia, e estava determinado a não
usar palavras que sugerissem o sentimento de culpa e censura prevalecente em
grande parte da religião convencional, cujos efeitos ele via em seus alunos. Na
verdade, Trungpa Rinpoche criou muitos termos que mais tarde acabaram sendo
adotados por outros professores budistas e se tornaram parte da linguagem do
dharma, especialmente na América. Entretanto, esses foram momentos muito iniciais
na transmissão do vajrayana para o Ocidente, e, com uma noção tardia, sinto que nem
todas as nossas decisões na tradução de 1975 passaram no teste do tempo.
Especialmente na área dos textos dzogchen, houve algumas excelentes traduções nos
anos subsequentes, por meio das quais diversos de seus termos básicos tornaram-se
amplamente aceitos em inglês. Embora de certa forma todo o ensinamento de
Trungpa Rinpoche estivesse imbuído do sabor do dzogchen, ele não se aprofundou em
muitos dos seus detalhes técnicos àquela época, e eu não possuía conhecimento
suficiente para lhe fazer as perguntas necessárias enquanto estávamos trabalhando
juntos.
13
letras maiúsculas iniciais, que atribuía a uma atitude teísta1. Sentia que isso produzia
uma falsa impressão ao valorizar conceitos que deveriam ser apresentados como
simples, acessíveis e despretensiosos. Queria passar adiante a ideia de que a
iluminação não é nada demais — é nosso estado natural. Os leitores que não estejam
acostumados com seu estilo podem ficar surpresos ao encontrar palavras tais como
dharma e bodhisattva sem maiúsculas. Até mesmo buda é escrito em minúsculas,
exceto quando se refere a um buda específico, como o Buda Shakyamuni. (Nem o
sânscrito nem o tibetano possuem letras maiúsculas, portanto é difícil dizer quando
uma palavra é um nome próprio, um título ou um epíteto.) Palavras tais como Ningma,
Zen e assim por diante são nomes de escolas ou tradições específicas, portanto são
tratadas como nomes próprios autênticos. Mas os três yanas, tantra, mahamudra e
dzogchen são estágios do caminho ou estilos de prática, portanto não são colocados
em maiúsculas. Nisso eu segui as linhas mestras de Trungpa Rinpoche, com algumas
poucas exceções. Decidi usar maiúsculas para as cinco famílias de budas (Buda, Vajra,
Ratna, Padma e Karma), tratando-as simplesmente como se fossem nomes de família
para evitar confusão com os significados alternativos de buda, vajra e karma. Sou
muito grata a Larry Mermelstein, do Comitê de Tradução Nalanda, por esclarecer esses
pontos, trazendo sua longa experiência de trabalho com Trungpa Rinpoche neste
campo.
Como este não é um trabalho acadêmico, decidi um pouco contrariada não usar
as transliterações aceitas, com diacríticos, de termos sânscritos. Esse sistema é
obviamente preferível para aqueles que já o conhecem e fornece o único guia
confiável para a pronúncia correta; mas pode também ser uma verdadeira barreira
para aqueles que não o compreendem, demandando bastante esforço para seu
entendimento. Existe um problema diferente com o tibetano, porque a transliteração
correta geralmente cria dificuldades ainda maiores na pronúncia. Quando os termos
tibetanos ocorrem neste livro, forneço versões fonéticas aproximadas, com a
pronúncia completa entre parênteses ou nas notas finais. Uma ajuda para a pronúncia
1
Na tradução para a língua portuguesa, optamos por manter os critérios da grafia de certos termos em
minúscula, bem como o uso de palavras em sânscrito e tibetano adotado por Francesca Fremantle. (N.
do E.)
14
do sânscrito é imaginar que se está falando italiano, especialmente no que diz respeito
às vogais, que são fortes e acentuadas. Outro ponto a se notar é que, tanto em
sânscrito quanto em tibetano, th é pronunciado como t seguido de rr. Da mesma
forma, ph não é o equivalente ao f, mas a um p seguido de rr.
15
lógica, onde a terminologia técnica é inteiramente apropriada. Entretanto, isso afeta
apenas uma área muito pequena; não se aplica na maioria dos casos, e especialmente
não à literatura tântrica.
Acima de tudo, tradução é uma arte. Como tradutores, devemos lembrar sempre
que as mesmas palavras que nos dão tanto trabalho ao tentar encontrar seu
significado não são termos técnicos, mas são usadas em poesia, canções espontâneas
e liturgias, cujo propósito é inspirar e estimular a imaginação. Tristemente, algumas
vezes é impossível encontrar uma solução que seja ao mesmo tempo precisa e
estética, mas deveríamos tentar, tanto quanto possível, reter o espírito do original. Ao
lado da profundidade e da beleza de textos como o Livro tibetano dos mortos, estou
plenamente consciente de que meu próprio trabalho é desajeitado e confuso, e
desculpo-me por seus defeitos. Entretanto, sinto que fui abençoada com tremenda
boa sorte por ser capaz de produzir este livro. Ele me deu muita alegria ao escrevê-lo,
espero que ele possa trazer alegria e benefícios a todos que o lerem.
16
PARTE I - FUNDAMENTOS
17
Homenagem
18
Capítulo Um
A primeira pergunta que temos de nos fazer é se ele deveria realmente ser
chamado de o Livro tibetano dos mortos. Provavelmente a maior parte das pessoas
que o leram, em qualquer de suas traduções, está ciente de que esse não é o seu título
original, mas um nome dado por W. Y. Evans-Wentz, o compilador e editor de sua
primeira tradução para o inglês.2 Esse título foi escolhido por causa da aparente
similaridade do tema com o Livro egípcio dos mortos, que era extremamente popular
naquela época, e também provou ser extremamente eficaz do ponto de vista da
publicidade. Faz parte da natureza humana sentir uma fascinação pela morte e uma
intensa curiosidade sobre o que acontecerá depois, portanto um nome como esse é
excelente para atrair a atenção dos leitores. É muito provável que se Evans-Wentz o
tivesse apresentado ao mundo ocidental como a Grande libertação através da audição
durante o estado intermediário não teria atraído tanto interesse. Trungpa Rinpoche
2
Traduções para o idioma inglês atualmente disponíveis: W. Y. Evans-Wentz, The Tibetan Book of the
Dead, Londres, Oxford University Press, 1927; Francesca Fremantle e Chögyam Trungpa, The Tibetan
Book of the Dead, Berkeley, Shambhala Publications, 1975; Robert A. F. Thurman, The Tibetan Book of
lhe Dead, Bantam (EUA) e Aquarian Thorsons (Reino Unido), 1994; Stephen Hodge com Martin Boord,
The Illustrated Tibetan Book of the Dead, Londres, Thorsons, 1999.
19
não gostava particularmente do novo título, mas nós continuamos a usá-lo na nossa
tradução porque já era muito conhecido.
Chamá-lo de o Livro tibetano dos mortos no fim das contas não é inteiramente
inadequado, o texto é inegavelmente dirigido àqueles que estão próximos da morte ou
que acabaram de morrer, e é lido em voz alta para guiá-los. Em um outro sentido, nós
que nos consideramos vivos poderíamos na verdade sermos chamados de mortos.
Somos os adormecidos, vivendo nossas vidas em um sonho — um sonho que irá
continuar depois da morte, e em seguida vida após vida, até que despertemos
verdadeiramente.
Neste livro, entretanto, irei me referir a ele pelo seu curto título tibetano:
Liberação através da audição. Isso porque uso alguns dos outros textos associados a
ele, portanto me parece mais consistente e apropriado dar-lhe seu nome verdadeiro
junto com esses textos. Além disso, minha intenção não é tratá-lo como um livro dos
mortos no sentido habitual da palavra. Exceto de forma incidental, sua aplicação no
cuidado com os mortos e preparação para a morte, ou seu uso em rituais para a
morte, não será discutida em nenhum momento.3 Ao contrário, será apresentado
como um livro para os vivos: um livro para o viver, sobre esta vida. As ideias, as visões,
as percepções que contém não podem ter nenhuma significação genuína e efetiva
para nós, se as abordarmos somente como descrições do que acontece depois da
morte, e se não entendermos que elas se aplicam a nós aqui e agora na vida diária.
3
Isso foi observado por Trungpa Rinpoche no final de seu comentário à nossa tradução do Livro
tibetano dos mortos, págs. 27-29, e em Chögyam Trungpa, The Heart of the Buddha, Boston, Shambhala,
1991, Capítulo 9 “Acknowleging Death”. Sogyal Rimpoche, The Tibetan Book of Living and Dying,
Londres, Rider and Harper San Francisco, 1992, cobrem todos os aspectos da prática budista da vida e
da morte, com referência particular aos bardos e ao Livro tibetano dos mortos. Ver também Bokar
Rinpoche, Death and the Art of Dying in Tibetan Buddhism, San Francisco, Clear-Point Press, 1993.
4
The Tibetan Book of Dead, pág. 1.
20
O que quer que nos aconteça depois da morte é simplesmente uma continuação
do que está acontecendo agora nesta vida, embora se manifeste de maneiras
inesperadas, como diz o texto: “Samsara se reverte, e tudo aparece como luzes e
imagens.” Não somos catapultados para um mundo completamente diferente, apenas
percebemos o mundo de uma forma diferente. Tudo que o texto descreve pode ser
entendido simbolicamente em termos desta vida. Aprender a perceber o mundo dessa
maneira é parte do processo de transformação do budismo vajrayana, e o praticante
que seguir adiante ao longo do caminho será capaz de experimentar tudo isso
diretamente através da meditação. Mas é somente nesta vida que temos a
oportunidade de nos prepararmos. Depois da morte, sem a influência lastreadora do
corpo físico, os eventos nos surpreenderão em tal velocidade e intensidade que não
haverá chance de parar e meditar. Para que seja útil, a meditação deve se tornar parte
da nossa natureza mais interior. É por isso que este é um livro dos vivos assim como
um livro dos mortos.
Tratá-lo como um livro dos vivos não quer dizer negar que é também
literalmente sobre a morte, nem sugerir que não pode ajudar os mortos e o ato de
morrer. Essa interpretação não diminui de maneira alguma a importância de
contemplar a certeza da morte ou diminui sua enorme significação. Meditar sobre a
morte, sobre a natureza efêmera da vida e sobre as consequências inevitáveis de
nossas ações permanece sendo fundamental ao longo de todo o caminho budista. Não
existe aqui a intenção de atenuar o conceito do renascimento nos seis reinos do
samsara como sendo uma alegoria, ou reduzir a visão das deidades, que são a
presença viva do estado desperto, a arquétipos psicológicos. Ao contrário, ser capaz de
vê-los todos em termos desta vida dá a eles uma relevância imediata e os resgata do
perigo de se tornarem meras fantasias. Lendo Liberação através da audição com essa
atitude pode fornecer tremenda motivação e inspiração para a prática.
21
Algumas vezes as pessoas perguntam: “Os budistas acreditam realmente nisso
tudo?” A resposta imediata deve ser que apenas uma pequena minoria aceita a
totalidade desse relato tão particular, mas que muitos mais provavelmente aceitam o
princípio por trás disso, se não todos os detalhes. As linhas gerais dos ensinamentos
que dizem respeito à morte a dissolução dos elementos do corpo seguida pelo
renascimento de acordo com as ações prévias da pessoa — são aceitas por todas as
escolas do budismo. Mas a existência de um período de transição entre a morte e o
renascimento não é sustentada por todos, e existem ideias diferentes sobre a sua
natureza. Liberação através da audição nos apresenta descrições elaboradas de todos
estes processos, que não são encontrados de forma tão completa em nenhuma outra
tradição.
O Buda certamente possuía aquele dom supremo dos maiores mestres, para
transmitir a verdade simplesmente pela sua presença e para elevar a mente de seus
discípulos a um estado de percepção intuitiva, no qual as dúvidas e perguntas se
tornavam irrelevantes. O calor e a radiância da sua personalidade, que é
22
absolutamente distinta de todas as histórias sobre sua vida, devem ter demonstrado
melhor do que quaisquer palavras sua abordagem totalmente positiva do sentido da
vida e da morte. Infelizmente, seu silêncio deixou-se aberto para ser interpretado de
modo bastante negativo, enquanto suas declarações positivas parecem ter sido
ignoradas ou atenuadas, sendo o budismo algumas vezes falsamente apresentado
como antagônico ao mundo, agnóstico e até mesmo niilista. Em contraste a essa
impressão equivocada do ensinamento original, formas mais recentes de budismo
podem parecer ir em direção ao extremo oposto e não são aceitas como genuínas por
seguidores de algumas tradições budistas.
23
Por volta do primeiro século antes de Cristo, um novo movimento estava se
desenvolvendo, que começou a produzir suas próprias escrituras distintas, os sutras.
Tradicionalmente, acredita-se que foram ensinados pelo Buda durante sua vida, mas já
que as pessoas ainda não estavam prontas para ouvi-las, foram confiadas às deidades
serpentes e a outros seres semidivinos até que o tempo fosse propício. Os seguidores
desse movimento se referiam a ele como mahayana, “o grande caminho”. Em
contraste, chamaram a tradição antiga de hinayana, o que, deve-se admitir, significava
inferior. Essa discriminação apoiava-se principalmente em sua atitude diferente em
relação à liberação. Por um lado, certas ordens hinayana parecem ter se concentrado
em um conceito negativo do nirvana como extinção, com a crença de que ele só
poderia ser atingido por uma pessoa e para essa pessoa. Por outro lado, o mahayana
era baseado num senso de inter-relacionamento de toda a existência e a aspiração de
levar cada ser individual à iluminação, vista como um estado positivo. Muitas tradições
diferentes com visões e práticas largamente divergentes, desde a devoção da escola
Terra Pura à meditação característica do Zen, emergiram da expansão do mahayana
através da Ásia.
Esse é o significado histórico dos três yanas, que não pode ser totalmente
desconsiderado, mas que pode ser bastante enganoso. Será especialmente enganoso
se tentarmos rotular as escolas budistas existentes, como o Zen, Theravada ou o
próprio budismo tibetano como pertencendo a um ou outro yana, com base em suas
origens históricas. Os praticantes do Theravada contemporâneo compreensivelmente
recusam a ideia de seu caminho ser considerado inferior. Além disso, hinayana contém
todos os ensinamentos fundamentais, e não é possível que os budistas mahayana
pretendessem depreciar as próprias palavras do Buda. Eles estavam reagindo apenas
ao que percebiam como uma interpretação estreita de seus ensinamentos da parte de
certos grupos naquela época. Se olharmos para esses ensinamentos da forma como
estão registrados nas escrituras páli, podemos encontrar muitas passagens que apoiam
5
Guhyasamaja Tantra, Capitulo 5. Adaptado de minha tese de doutorado não publicada, SOAS,
Universidade de Londres, 1971.
24
a evolução que levou ao mahayana e ao vajrayana. Além disso, as mudanças
ocorreram muito gradualmente e em geral incorporavam, em vez de removerem, o
que quer que já existisse. Na verdade, todos os três yanas floresceram juntos na Índia
até a destruição final dos monastérios pelos invasores islâmicos no século XIII,
resultando no fato de que o budismo não seria mais capaz de sobreviver na terra de
sua origem.
Mas existe uma outra maneira de se olhar os três yanas. O budismo do Tibete,
embora seja mencionado como simplesmente budismo tântrico, na verdade contém
todos os três yanas. Trungpa Rinpoche e outros mestres da sua tradição tratam-nos
como estágios no progresso espiritual: diferentes atitudes psicológicas frente ao
caminho, todas igualmente válidas e necessárias.
A jornada começa com hinayana, que não é visto como inferior, mas como a
preparação para e a fundação dos outros yanas. Trungpa Rinpoche o chamava de o
caminho estreito. Ele o descrevia como o caminho onde começamos a nos tornar
amigos de nós mesmos e aprendemos a não ser um aborrecimento para nós mesmos e
para os outros. Aqui, a ênfase está em trabalhar na direção de nosso despertar, em vez
do despertar de todos os seres viventes. Ele é baseado em uma atitude de honestidade
e humildade. Percebemos que precisamos de ajuda e sentimos que devemos fazer algo
a respeito de nossos próprios problemas, antes mesmo que possamos pensar em
ajudar os outros. É um caminho de simplicidade e renúncia. Nesse estágio, as atrações
e tentações da vida mundana são vistas como obstáculos a serem evitados, e existem
muitas regras de conduta para ajudar a guiar nosso comportamento. Sendo a base de
todo o caminho, ele nunca é abandonado, mas constrói-se sobre ele como a fundação
de uma casa. As práticas de meditação desse estágio são aquelas de tranquilidade
(shamatha em sânscrito), que é a prática da obediência para domar e acalmar a
mente, e percepção (vipashyana em sânscrito) da natureza da existência que leva à
descoberta do altruísmo.
25
perfeição do reino espiritual é expressa em termos de tudo que há de melhor neste
mundo, e portanto a linguagem do mahayana é plena de imagens de esplendor real,
riquezas, prazeres sensuais e a beleza da natureza. Ele enfatiza o ideal do bodhisattva,
um ser desperto que escolhe não habitar na paz do nirvana, mas agir em benefício de
todos os seres. Nesse estágio, os praticantes assumem o voto do bodhisattva, um
compromisso de servir a todos os seres e não descansar até que cada um tenha
despertado. Começamos a perceber que a natureza de buda já existe dentro de nós,
portanto se torna possível abandonar a ambição espiritual e a ideia de conquista. Os
prazeres sensuais não são mais vistos como obstáculos em si próprios; eles podem ser
purificados e apreciados por meio de sua oferta aos outros. O caminho se torna uma
celebração, um grande banquete de alegria para o qual convocamos todos os seres
viventes como nossos convidados.
6
Hevajra Tantra 1, ix. 19. Adaptado da tradução por David Snellgrove, The Hevajra Tantra, Londres,
Oxford University Press, 1959.
26
Embora o desenvolvimento dos três yanas pareça perfeitamente natural em
retrospecto (pelo menos do ponto de vista do mahayana), o texto contém histórias
que mostram o quão revolucionárias algumas dessas ideias eram. Nos sutras, relata-se
que muitos discípulos do hinayana abandonaram a assembleia e recusaram-se a ouvir
os ensinamentos mahayana, e quando o vajrayana foi exposto nos tantras, até os
bodhisattvas desfaleceram de medo e tiveram de ser revividos pelos raios de luz
emanados do coração de todos os budas.
27
todo o caminho budista. Inspirador como ele é por si só, sua mensagem é passível de
ser distorcida, se não houver algum conhecimento dos fundamentos sobre os quais o
vajrayana é construído. É impossível entender textos tântricos sem um conhecimento
desses fundamentos, e mais impossível ainda se engajar em práticas tântricas que
possam ser significativas sem uma genuína experiência dos princípios básicos do
budismo, que são essencialmente o desenvolvimento do altruísmo e da compaixão.
Como disse Trungpa Rinpoche: “Tentar praticar vajrayana sem compaixão é como
nadar em chumbo derretido — é mortal.”7
________
7
Chögyam Trungpa, Journey Without Goal, Boulder, Prajna Press, 1981, p. 5.
8
Para a história do Tibete, ver David Snellgrove e Hugh Richardson, A Cultural History of Tibet, Londres,
Weidenfeld and Nicholson, 1968. Para o budismo, com referência em particular ao Tibete, ver David
Snellgrove, Indo-Tibetan Buddhism, Londres, Serindia, 1987: e John Powers, Tibetan Buddhism, Ithaca,
Snow Lion, 1995.
28
livro. (Padmakara deve ser pronunciado com a ênfase na segunda sílaba, que tem um
som de “aa” mais longo; as outras são curtas.) De acordo com a lenda de seu
nascimento milagroso, ele foi descoberto já uma criança de oito anos de idade,
expelido do coração de um lótus no centro do lago Dhanakosha em Uddiyana, hoje
identificado com o vale Swat no norte do Paquistão. Tornou-se conhecido por seus
poderes sobrenaturais e foi expressamente convidado para o Tibete para superar
obstáculos na construção de Samye e na difusão do budismo. Muito pouco se sabe
sobre ele historicamente, mas sua influência espiritual foi enorme, e com o passar do
tempo tornou-se reverenciado como a figura mais importante no budismo tibetano.9 É
também conhecido como Guru Rinpoche, “o Precioso Mestre”, e é considerado o
segundo Buda, inseparável do próprio Buda Shakyamuni histórico, tomando forma
humana mais uma vez para ensinar os tantras. Por meio do trabalho do Guru Rinpoche
e de seus companheiros, o Tibete recebeu todas as correntes do budismo que existiam
na Índia: monásticas, leigas, filosóficas, yogues e mágicas.
29
conhecidos como terma, “tesouro”. Ele profetizou que seriam redescobertos no tempo
certo por praticantes preparados e forneceu muitas predições a respeito dos lugares,
tempos e circunstâncias de sua volta à luz. A pessoa que os encontra é chamada um
tertön, “revelador do tesouro”. Todos os tertöns têm uma ligação especial com
Padmakara, e em muitos casos são a reencarnação de seus discípulos mais próximos. A
tradição dos ensinamentos, que são ocultados até o tempo apropriado para sua
propagação, não está confinada ao Tibete, mas retorna à índia, como já vimos no caso
dos sutras mahayana sendo guardados por deidades serpentes.
O conceito de terma pode parecer incrível para nós agora; como a reencarnação,
apresenta um problema para muitas pessoas, porque parece contradizer a ciência.
Mas a ciência está apenas começando a investigar os mistérios do tempo e do espaço,
e a considerar a relação entre energia e consciência. Ainda sabemos tão pouco a
respeito das leis da natureza que o melhor mesmo é manter a mente aberta.
Entretanto, a extensão com a qual interpretamos literalmente a ocultação e a
redescoberta desses tesouros não afeta realmente a apreciação que fazemos deles. Se
um texto material é encontrado, sua real função é a de uma chave que destranca o
tesouro que está dentro da mente do tertön. Todas as genuínas expressões da verdade
se originam do estado desperto definitivo, que está sempre presente. Padmakara, em
sua personificação humana, age como um foco por meio do qual seres humanos
podem se relacionar com aquela verdade. O ponto importante é que o tertön faz uma
30
conexão direta com a natureza eternamente presente de Padmakara e dessa maneira
recebe sua inspiração.
Karma Lingpa era um praticante devotado dos tantras, conhecido por seus
poderes sobrenaturais e espirituais, e evidentemente se tornou um mestre bem-
sucedido, com um grande círculo de estudantes. Fez suas descobertas na tenra idade
de 15 anos na montanha Gampodar, que é descrita como se parecendo com uma
deidade dançante. Ele trouxe dois grandes ciclos de ensinamentos, assim como muitos
outros tesouros, da montanha. Ambos os ciclos dizem respeito às deidades pacíficas e
coléricas — as expressões do estado desperto cujas visões residem no coração do
próprio Liberação através da audição. Esse terma em particular foi selado com a
condição de que deveria ser transmitido somente a uma única pessoa durante três
gerações, então ele o deu a seu filho Nyinda Chöje. Curiosamente, diz-se que Karma
Lingpa não se encontrou com a consorte espiritual profetizada para ele, e por isso não
viveu muito.
De acordo com uma tradição relatada por Trungpa Rinpoche, Karma Lingpa
descobriu os ensinamentos após a morte de seu filho, que foi seguida de perto pela
morte de sua mulher11. Isso se encaixaria com o ponto central sobre os ensinamentos
dos termas, que essencialmente eles são extraídos dos corações de seus descobridores
sob a influência de certas condições. O tempo, o local e as circunstâncias devem ser
exatamente corretos, ou a descoberta não pode acontecer. Karma Lingpa era um
meditante consumado, e a dupla tragédia de perder sua mulher e seu filho teria sem
dúvida aberto sua mente para receber percepções profundas sobre a morte, o que o
prepararia perfeitamente para a descoberta desses ensinamentos em particular.
10
Ver Dudjom Rinpoche, The Nyingma School of Tibetan Buddhism, Boston, Wisdom Publications, 1991;
e Eva M. Dargyay, The Rise of Esoteric Buddhism in Tibet, Nova Délhi, Motilai Banarsidass, 1977.
11
Chögyam Trungpa, Transcending Madness, Boston, Shambhala, 1992, p. 10.
31
Um dos requisitos especiais para a descoberta dos termas é a inspiração do
princípio feminino, assim como teria sido necessária para a sua ocultação. A grande
maioria dos tertöns foi de homens, em geral eram acompanhados por suas esposas ou
companheiras femininas (que não precisavam necessariamente ter um relacionamento
sexual com eles). Alternativamente, alguma coisa representando a energia
complementar dos tertöns, seja masculina ou feminina, devia estar presente. Portanto,
parece muito provável que Karma Lingpa fosse casado e que sua mulher estava viva ao
tempo de suas descobertas, mesmo que elas tenham acontecido quando ele era muito
jovem.
Por outro lado, termas não são sempre tornados públicos imediatamente. As
condições podem não ser corretas; as pessoas podem não estar prontas para eles; e
instruções posteriores podem precisar ser reveladas para esclarecer seu significado.
Muitas vezes o próprio tertön tem de praticá-las por muitos anos. Portanto também é
possível que a morte da mulher e do filho de Karma Lingpa tenham ocorrido depois
que ele extraiu os ensinamentos básicos da montanha e tenham fornecido a inspiração
necessária para que ele os interpretasse e os completasse. De acordo com uma outra
tradição ainda, ele teve um filho que morreu por volta da idade de 15 anos12. Infeliz-
mente, temos muito pouca informação para prosseguir, portanto tudo isso deve
permanecer como pura especulação. De qualquer forma, ele teve pelo menos um filho
que sobreviveu, a quem ele finalmente confiou todo o ciclo. Presumivelmente, a
consorte profetizada, se ele a tivesse encontrado, teria atuado como sua parceira
tanto em práticas para prolongar sua vida quanto em outras descobertas.
Nyinda Chöje passou adiante o ensinamento para um de seus discípulos, que por
sua vez o passou para Namkha Chökyi Gyatso, depois do qual a restrição para sua
transmissão não mais se aplicou. Liberação através da audição, com seus outros textos
associados, então se espalhou amplamente, e tem permanecido muito popular a
despeito de sua natureza esotérica. Ao mesmo tempo que é usado e respeitado por
todas as escolas do budismo tibetano, ele é especialmente forte nas tradições Ningma
e Kagyü, ambas as quais foram a herança de Trungpa Rinpoche.
Para voltar à pergunta colocada no início deste capítulo, não existe de fato nem
um único título tibetano que corresponda ao Livro tibetano dos mortos13. O nome
completo dado ao ciclo total do terma é Dharma profundo de auto liberação através
da intenção dos seres pacíficos e dos coléricos, e é popularmente conhecido como os
seres pacíficos e coléricos de Karma Lingpa14.
12
Tenga Rinpoche, Transition and Liberation, Osterby, Khampa Buchverlag, 1996, p. 30.
13
Informação sobre esses textos e outros relacionados à morte pode ser encontrada em Detlef Ingo
Lauf, Secret Doctrines of the Tibetan Books of the Dead, Boulder, Shambhala, 1977.
14
Em tibetano, zab chos zhi khro dgongs pa rang grol e kar gling zhi khro.
32
Ele tem sido transmitido através dos séculos em diversas versões que contêm
números variáveis de seções e subseções, arranjadas em diferentes ordens, que vão
desde dez até 38 títulos. Esses textos individuais cobrem um amplo espectro de
assuntos, incluindo a visão dzogchen (ver Capítulo Dez), instruções de meditação,
visualizações de deidades, liturgias e orações, listas de mantras, descrição dos sinais da
morte e indicações do futuro renascimento, assim como aqueles que estão de fato
relacionados com o estado de pós-morte. O Livro tibetano dos mortos como o
conhecemos em inglês consiste em dois textos comparativamente longos sobre o
bardo do dharmata (incluindo o bardo do morrer) e o bardo da existência. (Ver
Capítulo Quatro para explicações sobre os diferentes bardos.) Eles são chamados
Grande liberação através da audição: A súplica do bardo do dharmata e Grande
liberação através da audição: A súplica salientando o bardo da existência15. Dentro dos
próprios textos, os dois combinados são chamados de Liberação através da audição no
bardo, Grande liberação através da audição, ou apenas Liberação através da
audição16, título que estarei usando ao longo deste livro.
15
Em tibetano, chos nyid bar do’i gsol’ debs thos grol chen mo e srid pa’i bar do ngo sprod gsol ’debs
thos grol chen mo.
16
Em tibetano, bar do thos grol, thos grol chen mo e thos grol.
33
Capítulo Dois
O estado de liberação é a meta final. Esse estado tem recebido muitos nomes e
tem sido descrito de muitas formas diferentes, embora seja essencialmente
inexprimível. É a nossa natureza verdadeira, inata, nosso direito de nascimento
inalienável, no entanto não o reconhecemos. Parecemos estar aprisionados em uma
condição de desconhecimento. Esse desconhecimento, ignorância ou ilusão é a causa
de todo o mal e de toda a dor, mas não é intrínseco ao nosso ser; é como nuvens
obscurecendo o céu claro, ou como poeira que se acumulou no espelho. Em vez de
possuir um conceito de pecado original, o budismo fala de uma bondade básica,
porque a natureza de buda reside dentro de nós como nossa essência oculta.
Liberação é sinônima da palavra sânscrita bhodi que significa despertar, compreender
ou iluminação, e com nirvana, que significa explosão ou extinção: a extinção da ilusão.
O Buda disse que toda a sua mensagem estava relacionada com o sofrimento e
com o fim do sofrimento. Sofremos porque não sabemos a verdadeira natureza da
realidade, e assim temos uma falsa ideia do que realmente somos. Liberação é se livrar
dessa condição de sofrimento, e o caminho para ela nos conduz através do processo
de perguntar e descobrir “quem” exatamente deve ser liberado. Descobriremos que
“quem” e “de quê” são na verdade iguais. Todo o desenvolvimento filosófico dentro
do budismo, todos os diferentes métodos de prática e todo o elaborado simbolismo do
vajrayana estão relacionados com esses dois princípios básicos: entender a natureza
do sofrimento e tornar-se livre dele. Essa é a mensagem de Liberação através da
audição, assim como de todas as escrituras budistas, e dessa forma, para viajarmos ao
longo do caminho dos bardos, precisamos começar com os ensinamentos
fundamentais.
34
O fundamento do budismo são as quatro verdades nobres proclamadas por
Shakyamuni, o Buda desta era, depois de sua iluminação: a verdade da existência do
sofrimento, a verdade da origem do sofrimento, a verdade do fim do sofrimento e a
verdade do caminho que leva ao seu fim. Sofrimento nesse caso não é apenas a dor
comum que se opõe ao prazer, mas uma sensação mais profunda e abrangente de
carência e de irrealidade, que é inerente à própria existência mundana. Sofrer está
intimamente ligado à impermanência de tudo nas nossas vidas. O Buda descreveu
todos os fenômenos mundanos como tendo três características: impermanência,
sofrimento e não-ser. Sofremos porque imaginamos aquilo que é não-ser como sendo
o ser, aquilo que é impermanente como sendo permanente, e aquilo que de um ponto
de vista final é dor como sendo prazer.
A existência com essas três características é chamada samsara que significa fluir
continuamente, seguir em frente, de um momento para o próximo momento e de uma
vida para a outra vida. Samsara não é o mundo externo real ou a própria vida, mas a
maneira como os interpretamos. Samsara é a vida como a vivemos sob a influência da
ignorância, o mundo subjetivo que cada um de nós cria para si próprio. Este mundo
contém bem e mal, alegria e dor, mas eles são relativos, não absolutos; podem ser
definidos somente em relação uns aos outros, e estão continuamente mudando para
seus opostos. Embora samsara pareça ser todo-poderosa e toda abrangente, é criada
pelo nosso próprio estado mental como um mundo de sonho, e pode ser dissolvida no
nada, como o despertar de um sonho. Quando alguém desperta para a realidade,
mesmo por um momento, o mundo não desaparece, mas é experimentado em sua
verdadeira natureza: puro, brilhante, sagrado e indestrutível.
35
paciente deve reconhecer a doença, com suas causas, seus sintomas e efeitos, antes
que a cura possa começar.
A RODA DA VIDA
O aro externo da roda da vida é dividido em 12 seções, cada uma contendo uma
pequena ilustração. Elas representam os 12 elos na corrente de causa e efeito,
conhecida como surgimento dependente ou, como Trungpa Rinpoche dizia, a reação
em cadeia samsárica. Os 12 elos podem ser vistos como estágios na evolução do ser
humano individual (ou qualquer outro ser vivente), mas ao mesmo tempo podem ser
aplicados aos estados mentais de uma pessoa, que estão continuamente surgindo, se
desenvolvendo e desaparecendo. O Buda foi inspirado a começar a sua busca quando
viu um homem doente, um velho e um cadáver sendo levado para a zona de
cremação, e percebeu a natureza universal e inescapável do sofrimento. Viu também
um asceta errante, cuja aparência de paz e de alegria interior o impressionou
profundamente: ele captou um relance de liberdade e determinou-se a atingi-la.
Começando do mesmo ponto de partida que o Buda, podemos nos remontar às causas
do sofrimento em sua raiz por meio dos 12 elos na corrente. Todos eles deveriam ser
entendidos como existindo dentro de nós de momento a momento, de tal forma que
enquanto passamos por toda essa série de imagens, estamos também observando o
nascimento, vida e morte dos estados mentais.
1. Decadência e Morte
36
morte. É frequentemente traduzida como velhice e morte, mas já que muitas pessoas
morrem jovens e não atingem a velhice, aqui se refere a todo o processo de
envelhecimento e decadência, que na verdade começa assim que nascemos. Toda a
dor, seja ela física ou mental, surge de algum aspecto de perda, destruição ou
decadência, portanto esta imagem representa todo o sofrimento da existência.
2. Nascimento
A causa real da decadência e da morte não é nossa condição física, nem doença,
nem acidente, mas a própria vida, o simples fato de se ter nascido. Seguindo o sentido
anti-horário ao redor do aro, chegamos ao segundo desenho, uma mulher dando à luz
uma criança. Embora este elo na corrente seja conhecido como nascimento, não
significa apenas o evento de nascer, mas a vida que tomou existência; abrange toda a
vida desta personificação em particular. Pode se referir ao nascimento de um ser
vivente ou à aparência física de alguma coisa no mundo exterior, ou pode ser
interpretado como o surgimento de um pensamento ou um sentimento na mente.
3. Existência
4. Apego
Por que os estados mentais surgem? Por que criamos continuamente nossa
versão do mundo de momento a momento? Por que um ser vivente entra no útero
para nascer? Quando procuramos pela causa da existência, a encontramos no apego. A
palavra para este elo na corrente significa literalmente apropriação ou pegar para si, e
é simbolizado por uma figura pegando uma fruta de uma árvore. Apego é o oposto de
doação e renúncia. Nós nos apegamos firmes a nossas opiniões, nossas visões da vida
e nossas ideias a respeito de nós mesmos; repetidamente nos apegamos ao próximo
37
pensamento, à próxima emoção, à próxima experiência; no momento da morte, nos
apegamos à próxima vida.
5. Sede
6. Sensação
7. Contato
38
e sagrada. Mas aqui, enquanto ainda estamos preocupados com os princípios mais
básicos, ela simplesmente ilustra o que acontece onde quer que exista a experiência
da dualidade e uma relação entre sujeito e objeto.
8. Seis Sentidos
9. Nome e Forma
Se os seis sentidos existem, deve haver um ser vivente em particular a quem eles
pertençam. A próxima imagem é de um barco cheio de passageiros, que é chamado
nome e forma. Nome e forma juntos constituem a pessoa individual. Forma é o
aspecto material, o barco do corpo, que nos carrega ao longo do rio da vida, enquanto
nome inclui todos os aspectos não físicos de nosso ser (os passageiros podem ser
vistos como as diferentes “personalidades” dentro de nós). Em muitas partes do
mundo, o nome de uma pessoa é considerado possuidor de uma significação mágica.
Quando recebemos um nome, recebemos uma identidade; nosso nome define quem
somos. Se pensamos no nome de alguém, automaticamente nos lembramos de sua
aparência física ou vice-versa. O corpo não pode ser separado da mente; os aspectos
físicos e não-físicos da existência surgem ambos da mesma causa e refletem um ao
outro.
10. Consciência
39
vezes esquadrinhando o mundo através das janelas de uma casa — a casa dos seis
sentidos.
11. Condicionamento
12. Ignorância
Mas por que o condicionamento surge em primeiro lugar? Como todo o processo
efetivamente começou? O Buda rastreou a causa raiz até chegar na ignorância, a
ignorância da mente a respeito de sua própria natureza desperta — o elo final e
original da corrente. Isso é o mais longe que podemos ir dentro do círculo do samsara;
isso é onde tudo começa. De fato, podemos afirmar que todo este ciclo não tem
realmente início nem fim, porque nossa própria noção de passado, presente e futuro
são parte do samsara. A ignorância é simbolizada por uma mulher velha e cega,
cambaleando por aí com a ajuda de um cajado. Trungpa Rinpoche se referia a ela
como uma avó velha. Ela deu à luz gerações de existência samsárica, proliferação e
reprodução infindáveis. Ignorância significa ignorar a verdade da realidade, fechando
os olhos da pessoa para o estado desperto. Embora a luz da realidade esteja sempre
presente, a ignorância prefere permanecer cega. A natureza dessa cegueira é acreditar
na existência de um ser separado, independente. Trungpa Rinpoche também
17
Estou tratando karma como uma palavra naturalizada inglesa por ser ela tão conhecida; palavras em
sânscrito são normalmente citadas em sua forma não flexionada, que neste caso seria karman.
40
costumava dizer que a ignorância é muito inteligente. Ela é na verdade a inteligência
do samsara, que está lutando uma batalha contínua pela sobrevivência e procurando
constantemente por maneiras de manter sua própria ilusão, seu próprio autoengano.
________
41
Em algumas representações da roda da vida, a figura de um buda é mostrada em
cada reino. No reino humano, é o Buda humano Shakyamuni; em cada um dos outros
reinos, ele aparece na forma de um de seus habitantes. Isso indica que a compaixão da
natureza desperta se estende infinitamente sem obstruções e pode se manifestar sob
qualquer forma, de maneira a se comunicar com todos os diferentes tipos de
existência, mesmo no extremo sofrimento do inferno.
A roda inteira está segura nas garras de uma figura aterrorizante; este é Yama, o
Senhor da Morte. Seu nome significa literalmente “restrição”, já que ele é a restrição
final à liberdade de todos os seres viventes. Ele não apenas representa a morte no
sentido comum, o fim da vida, mas o próprio princípio da mortalidade, que inclui
dentro de si nascimento e morte, renascimento e re-morte. Imortalidade, o estado de
nirvana sem nascimento e sem morte, repousa além do ciclo da roda da vida.
42
AS TRÊS CARACTERÍSTICAS DO SAMSARA
Sofrimento
43
primeiro tipo de sofrimento — à dor mental da perda e à dor física da doença, e
finalmente à morte.
Mas o sofrimento traz uma mensagem mais profunda ainda, ele aponta para algo
mais fundamental e sutil, além do contraste entre prazer e dor, além de tudo o que
experimentamos. Essa é a dor da mente confusa, originando-se da ignorância, a
imensa tristeza de não conhecer a realidade, de viver uma mentira no nível mais
profundo do nosso ser. Alguns budistas preferem usar termos como desconforto,
frustração ou inadequação em vez de sofrimento, mas para mim isso parece diluir seu
impacto (além de não serem termos realmente apropriados para os outros dois níveis).
Quando despertamos por um momento e temos um vislumbre do que Trungpa
Rinpoche chamava de sanidade básica, a comparação com nosso estado mental
ordinário é extremamente dolorosa, e percebemos que nossa condição habitual de
inconsciência e confusão é realmente um estado de sofrimento. Mais ainda,
percebemos que não é apenas o sofrimento de um indivíduo, mas que ele é
compartilhado por outros incontáveis seres conscientes em todos os reinos possíveis
da existência, e essa percepção desperta uma compaixão profunda. Dentro desse
penetrante sofrimento da ignorância, da dor de não estar desperto para a realidade,
repousam todas as nossas alegrias e tristezas, que vêm, e vão, surgem e passam.
Impermanência
44
Essa falta de permanência e substancialidade leva à terceira característica de
samsara, a ausência de qualquer entidade independente e permanente que possa ser
vista como o “ser”. Isso resulta muito naturalmente da impermanência. Entretanto,
mesmo quando vemos isto com clareza em nossas próprias experiências e no mundo
ao nosso redor, ainda temos uma profunda convicção de que existe alguma coisa real e
permanente dentro de nós, quase como se existisse alguém dentro de nossas cabeças
que está tendo todos esses pensamentos e experiências. Não é nada fácil para nós
entendermos verdadeiramente as implicações da impermanência e da
insubstancialidade em relação a nós mesmos. A roda da vida mostra que todos os
fenômenos são transientes e interdependentes: tudo surge de uma causa e por seu
turno se torna uma causa para a próxima manifestação surgir. Isso quer dizer que nada
pode existir em isolamento. Nós mesmos somos compostos de combinações
extremamente complexas de aparências condicionadas e momentâneas. Não importa
o quanto procuremos por alguma coisa que dure e não mude, não seremos capazes de
encontrá-la, seja dentro ou fora de nós.
Não-ser
45
história que contamos a nós mesmos de forma a fazer sentido para a nossa
experiência. Mesmo assim esse tipo de raciocínio não altera o apego emocional das
pessoas ao ser; elas ainda se comportam como se ele fosse real. A vida samsárica é
baseada em auto-centralização, não como um julgamento moral, mas no sentido mais
literal da palavra: relacionar tudo a si próprio como sendo o centro do mundo. Esse é o
ser ou ego do samsara. É o sentimento constante de “eu, mim, meu” — uma tendência
centralizadora, solidificadora.
Assim como o Buda não negava a experiência ordinária, não negava a vida após a
morte. Ao contrário, sugeria um modelo diferente do que a vida realmente era; ele
mostrava que a presunção de um ser ou de uma alma é desnecessária e, na verdade,
apenas causa problemas. Todo o sofrimento que passamos e que causamos aos outros
se origina do apego ao “eu, mim, meu”. Ele nunca falou em termos de buscar por um
ser ou essência verdadeiros, porque essa própria busca reforça o apego e leva a
possessividade egoísta a níveis mais e mais sutis.
Ao mesmo tempo, existe uma verdade profunda em nossa busca por uma
essência. Nossa essência é a potencialidade para a iluminação, tathagatagarbha em
sânscrito, o embrião do buda, muitas vezes chamado de a natureza de buda. Assim
que essa potencialidade começa a se manifestar é conhecida como bodhichitta, o
coração ou mente que desperta. De início como bodhichitta relativo, ela é a aspiração
em direção à iluminação para si e todos os seres; finalmente, como bodhichitta final, é
46
o próprio estado de estar desperto, o coração e a mente finalmente despertos. O todo
da existência não é nada mais que a natureza onipresente de buda. Ainda assim, falar
da natureza de buda, mente de buda, buda primordial e assim por diante pode mais
uma vez dar a impressão de algum tipo de substância ou entidade, quando na
realidade isso está completamente além de todos os conceitos e não pode ser descrito
por qualquer analogia. É a condição de estar desperto: o estado búdico, de despertar,
da vigília. Não pode pertencer a ninguém; não é seu ou meu, mesmo que algumas
vezes falemos vagamente dessa maneira. Realiza-se pelas pessoas individuais e se
manifesta através das pessoas individuais, no entanto não é pessoal ou individual. A
dificuldade é que não podemos evitar pensar nisso como sendo nosso, e portanto
distorcê-lo completamente. Neste ponto vamos de encontro ao aspecto prático e
emocional do que significa o ser: não é apenas um princípio abstrato, mas alguma
coisa que nos toca muito profundamente. Nós instintivamente pensamos “esta é a
minha natureza de buda” ou "este é o meu ser verdadeiro” sem abrir mão realmente
do ser limitado, pessoal.
Ainda assim, não somos apenas nada. Não desaparecemos quando entramos na
ausência de ser. Acreditar nisso seria niilismo, uma visão que o Buda condenava. Ele
disse inclusive que o niilismo era mais difícil de superar do que o extremo oposto de
acreditar em um ser eterno. Quando o ser é transcendido, a presença ainda está lá, o
mundo ainda está lá, e a experiência ainda está lá. Alguém tem de estar lá para
comunicar a verdade, para manifestar o amor e a compaixão, e para realizar atividades
iluminadas. Em alguns sutras e tantras, esse estado de ser transcendente é chamado
de o grande ser. Quando uma palavra é qualificada como grande, muitas vezes indica
que ela transcende tanto seu significado comum quanto seu oposto. Portanto o grande
ser transcende tanto o ser quanto a sua negação, e passa completamente além do
alcance de nossas concepções ordinárias de ser e não ser. É uma condição de total
paradoxo, que a mente conceitual, dualista, não consegue abranger.
O grande ser não é apenas Deus. Assim como não existe a necessidade de um ser
na existência diária, individual, também não existe a necessidade de um princípio
centralizador em uma escala cósmica. Existe simplesmente a experiência da presença
sem ser, sem necessidade de identificar um proprietário final, criador ou controlador.
Quando não existe centro fixo ou ponto de referência, a percepção se torna
onipresente, e o que quer que surja dentro dela é reconhecido “apenas como é”: o
estado mental desperto.
47
budista? As qualidades que produzem uma personalidade plenamente desenvolvida
são fundamentalmente as mesmas que são necessárias para uma prática de meditação
bem-sucedida. O budismo nos relembra de forma contínua do maravilhoso potencial e
da oportunidade única que temos como seres humanos, e que nunca devemos
denegrir a natureza humana ou se sentir envergonhados do que somos. Portanto, o
tema do desenvolvimento do ser versus o desenvolvimento espiritual depende
realmente de nossa atitude. As qualidades e funções do “ser psicológico” são neutras
por si só. Se forem baseadas naquela tendência centralizadora, que é considerada
bastante normal em muito da moderna psicologia, elas pertencem ao reino do
samsara. Se, por outro lado, elas fluem espontaneamente de um estado de abertura e
percepção, então são vistas como aspectos de bodhichitta. Do ponto de vista budista,
um buda é o único ser humano completo. A maior realização possível do potencial
humano é despertar. As mesmas características que possuímos no estado confuso são
transformadas em características iluminadas no estado desperto. Budas não poderiam
de jeito algum se manifestar sem qualidades distintas e personalidades individuais,
ainda assim, ao mesmo tempo eles nunca se afastam da natureza absoluta da unidade.
48
________
49
essência, é chamado de luminosidade. Como veremos mais adiante, luminosidade é
uma palavra-chave no Livro tibetano dos mortos.
50
habilidosos quanto pudermos a cada estágio é o que aprofunda nossa percepção do
vazio. Eles crescem juntos, se inspiram mutuamente um ao outro, são dois elementos
indispensáveis do estado desperto.
51
desperta e livre. Autoliberação é a percepção espontânea de que na verdade nunca
houve realmente nenhuma outra coisa. Liberação é tradicionalmente ilustrada pela
comparação com uma cobra se desenroscando, naturalmente e sem esforço, de seus
anéis se emaranhado. Nas palavras poéticas de Trungpa Rinpoche: “O nó da serpente
da mente conceitual se desenrosca no espaço.”18
18
Chögyam Trungpa, First Thought Best Thought, Boulder, Shambhala, 1983, p. 1.
52
Capítulo Três
19
Uma discussão muito interessante pode ser encontrada em Sleeping Dreaming and Dying, Dalai Lama,
Wisdom Publications, Boston, 1997. Ver especialmente p. 165-170.
53
construção do destino, e existem variáveis demais para se fazer predições exatas,
principalmente sobre eventos e circunstâncias exteriores. Mas nossas reações a essas
circunstâncias e o que fazemos delas são nossa inteira responsabilidade.
Karma e ser andam juntos. Do ponto de vista final, karma é tão ilusório quanto o
ser, mas já que funcionamos a partir da profundamente arraigada crença no ser,
estamos sujeitos à lei da karma. Até que um ser consciente atinja a iluminação, o
sentido de ser ainda está lá na corrente da mente, e assim o karma é produzido.
54
Karma, a corrente de causa e efeito, cria a ligação entre o passado, o presente e o
futuro, e entre a vida passada, esta vida e a próxima vida. Mesmo depois de se separar
do corpo físico, o apego do ser continua, portanto durante o período após a morte, a
consciência passada ainda se sente como sendo o mesmo “eu” que antes. O ponto
importante a compreender é que esse “eu” é sempre imaginário, estejamos pensando
sobre uma vida passada, ontem, agora, amanhã, o estado de bardo ou uma vida
futura. Se realmente compreendermos esse ponto, a questão de como a
personalidade pode existir após a morte, ou quem é que renasce, poderá parecer
menos problemática. Uma ilusão dá lugar a outra ilusão. Faz algum sentido perguntar
se são a mesma coisa? Será que podemos dizer que são diferentes? A única solução
para todos esses enigmas de vida e morte é dissipar a ilusão que os criou em primeiro
lugar.
Não existe entidade individual que continue de uma vida para outra, mas sim um
fluir contínuo de mudança. O “eu” que imaginamos ser nesta vida não é o mesmo “eu”
da vida anterior ou o “eu” que irá nascer na próxima vida. Ainda assim, esses “eus”
passado, presente e futuro estão interligados pela ilusão do ser e pelos registros
kármicos que o sustentam de vida para vida. Alguém irá nascer, cuja existência, caráter
e destino dependem de nossas ações agora. Enquanto continuarmos a acreditar no
ser, o karma e o renascimento são reais para nós. A partir do momento que o ser é
visto como não existindo, a cadeia se rompe naquele instante.
Talvez seja bastante irônico que muitas pessoas apreciem ler o Livro tibetano dos
mortos, porque ele descreve os acontecimentos incríveis que se sucedem depois da
morte e nos reafirma que teremos uma outra chance em uma vida futura, quando o
verdadeiro propósito desses ensinamentos é nos ajudar a escapar do ciclo total de
nascimento e morte. O simples fato de que alguém está passando pelo bardo significa
que ainda não atingiu a liberação e portanto está ainda sob o poder do karma. No
estado do bardo, um sentido de ser surge, ligado à corrente de causa e efeito da vida
anterior. Os registros sutis ou traços na mente criam um sentimento de ter um corpo
como o antigo, com todos os sentidos intactos, muito similar à sensação de corpo que
temos quando estamos sonhando. Nos sonhos não estamos usando nossos sentidos
físicos para ver e ouvir, mas ainda parecemos ter a experiência de ver e ouvir. O
mesmo tipo de processo acontece com os seres no bardo. Qualquer que seja o tipo de
comunicação que possa chegar até eles, eles ainda a interpretarão em termos de ver e
ouvir.
55
permanecerem calmos. Se estiverem assustados e dominados pelo pesar, discutindo
entre si por sua parte da herança, ou se desempenharem os rituais fúnebres de
maneira descuidada ou hipócrita, todas essas emoções negativas serão ampliadas na
percepção da pessoa falecida e irão causar medo, raiva e confusão. Mas, se os amigos
e parentes puderem providenciar um ambiente de calma, cordialidade e confiança,
isso irá ser repassado e será de tremenda ajuda. Trungpa Rinpoche enfatizava que isso
é realmente o melhor presente que podemos dar aos mortos.
56
Você é a forma natural do vazio, portanto nada pode machucá-lo; vazio não pode
causar dano a vazio. Dedique todos os seus pensamentos e todas as suas ações ao bem
dos outros, e resolva se tornar iluminado pelo bem de todos os seres.
Dessa forma, o que quer que a pessoa tenha praticado no passado é trazido à
lembrança pela leitura do livro. Ele afirma ainda que é “um ensinamento que ilumina
sem meditação, um ensinamento que libera apenas por ser ouvido”. Em seu prefácio
para o Livro tibetano dos mortos, Trungpa Rinpoche escreveu: “Liberação, neste caso,
significa que quem quer que entre em contato com este ensinamento — mesmo na
forma de dúvida, ou com uma mente aberta — recebe um lampejo súbito de
iluminação através do poder de transmissão contido nestes tesouros.”20
20
The Tibetan Book of Dead, p. xi.
57
relacionamento contém um elemento de adhishthana em algum sentido, seja ele
positivo ou negativo.
Embora a iluminação realmente habite dentro de nós, ela tem de aparentar que
vem de fora, por causa do apego ao ser. O ego não pode penetrar sua própria ilusão,
não pode dissolver a si próprio. Uma das dificuldades que às vezes surge para os
ocidentais em relação ao vajrayana é a suspeita de que segredos estão sendo
guardados de nós, que nós “não temos permissão” para fazer isso ou aquilo. O ponto
central aqui é que certas técnicas de meditação simplesmente não funcionam se
tentamos praticá-las por nós mesmos, agindo a partir da nossa própria vontade. Elas
podem produzir algum efeito ou até mesmo algum poder paranormal, mas não serão
capazes de transmutar confusão em sabedoria, não abrirão uma brecha na solidez do
ego. Não é que estejamos proibidos de fazer qualquer coisa, mas que,
psicologicamente, em nossas mentes, precisamos saber que recebemos permissão
autêntica e instrução correta de uma pessoa qualificada para que a prática seja efetiva.
Existe uma transmissão genuína que acontece, e para isso ocorrer uma relação de
confiança deve existir entre professor e estudante. Através do poder de adhishthana, o
guru nos fornece confiança em um nível muito profundo. Quanto maior a confiança
que temos nele ou nela, mais a nossa própria confiança irá aumentar; é realmente um
processo contínuo de se estar mais e mais receptivo a nossa natureza de buda inata.
58
nenhuma separação entre guru e discípulo. Por isso se diz que o guru nos dá de volta
aquilo que sempre foi nosso.
Liberação através da audição diz de si próprio: “Encontrar com ele é uma grande
boa sorte. Ele é difícil de encontrar, exceto por aqueles que purificaram os véus
obscurecidos e desenvolveram a bondade.” Isso quer dizer que não é qualquer um que
pode encontrá-lo por acaso. Ouvi-lo ou lê-lo definitivamente pressupõe que, nesta vida
ou em vidas passadas, tivemos alguma conexão com ele. Mesmo se apenas o pegamos
na estante de uma livraria, isso não será totalmente por acaso. As conexões que
fizemos durante todo o incomensurável curso de nossa existência são extremamente
significativas. Por meio de seu poder, sementes são lançadas, e mais uma vez por meio
de seu poder essas sementes podem dar frutos a qualquer momento. É por isso que
Trungpa Rinpoche dizia que qualquer forma de contato com esse ensinamento irá
proporcionar um súbito lampejo de iluminação; não precisamos acreditar nele, mas
alguma coisa definitivamente terá entrado em nossas mentes como resultado. Isso não
quer dizer que iremos nos tornar plenamente iluminados naquele momento. Nossa
confusão provavelmente irá nos impedir de reconhecer aquele súbito lampejo, mas ele
será despertado novamente em algum ponto do futuro. Não há dúvida, como dizem os
tantras.
________
59
A liberação através da visão é realizada ao se ver objetos terma como imagens,
pinturas, diagramas simbólicos ou textos. O texto de Liberação através da audição
pertence a essa categoria assim como à categoria de liberação através da audição,
porque, como o próprio livro diz: “É uma instrução profunda que libera apenas pelo
fato de ser vista ou ouvida." Liberação através da visão poderia também significar a
visão do Guru Rinpoche em um sonho ou visão; diz-se nos ensinamentos Ningma que
simplesmente por ver a sua face a pessoa é liberada.
60
próximos à pele. Assim como são usados durante a vida, são muitas vezes presos ao
cadáver. Textos contendo esses mantras estão incluídos na coleção de termas de
Karma Lingpa. Recomenda-se que sejam lidos em voz alta junto com Liberação através
da audição, “porque os dois combinados são como uma mandala dourada incrustada
de turquesa”.
61
Capítulo Quatro
21
Essa informação é extraída de um artigo do Sunday Times, Londres, 31 de janeiro de 1999, que incluía
um pequeno excerto do poema de trinta linhas, “Crow in the Bardo”. Os estudos do falecido Ted Hughes
estão em posse de Emory University, Atlanta, Geórgia. Outro poema que mostra seu interesse no Livro
tibetano dos mortos é “Prova na Porta do Útero”, publicado em Ted Hughes, Crow, Faber and Faber,
Londres, 1970.
62
enquanto os seis bardos tradicionais mostram como as qualidades essenciais daquela
experiência também estão presentes nos outros períodos transicionais. Refinando
ainda mais o entendimento da essência do bardo, ele pode então ser aplicado a
qualquer momento da existência. O momento presente, o agora, é um bardo contínuo,
sempre suspenso entre o passado e o futuro.
O bardo pode ter muitas implicações, dependendo de como se olhe para ele. É
um intervalo, um hiato, uma lacuna. Pode atuar como uma fronteira que divide e
separa, marcando o fim de uma coisa e o início de outra; mas também pode ser a
ligação entre as duas — pode servir como uma ponte ou um ponto de encontro que
junta e une. É uma encruzilhada, um degrau, uma transição. É um cruzamento no qual
alguém tem de decidir que caminho tomar, e é uma terra de ninguém que não
pertence nem a um lado nem ao outro. É um ponto de luz ou o ponto culminante de
uma experiência e, ao mesmo tempo, uma situação de extrema tensão capturada
entre dois opostos. É um espaço aberto, pleno de uma atmosfera de suspensão e
incerteza, nem isso nem aquilo. Em tal estado, a pessoa pode se sentir confusa e
assustada, ou pode se sentir surpreendentemente liberada e aberta a novas
possibilidades, em que tudo pode acontecer.
De acordo com essa tradição, os seis bardos são o bardo desta vida (ou
nascimento), o bardo do sonho, o bardo da meditação, o bardo do morrer, o bardo do
dharmata (ou realidade) e o bardo da existência (ou vir a ser). Outras tradições
reconhecem alguns outros adicionais, mas o princípio é o mesmo. Os bardos são
diferenciados uns dos outros dessa forma porque indicam modos de consciência
distintos, assim como o estado da consciência de vigília difere do estado da
consciência de sonho. Esses estados podem durar um período curto ou longo de
22
Transcending Madness, p. 132.
23
Transcending Madness, p. 3.
63
tempo, tão longo quanto toda uma vida, como é o caso do primeiro, e ao mesmo
tempo todos eles partilham a qualidade misteriosa e imensamente poderosa da
“intermediação”. Ou poderíamos dizer que, aprendendo a ver esses estágios da nossa
vida como bardos, podemos ter acesso a esse poder, que está sempre presente,
despercebido, em cada momento da existência.
Agora quando o bardo desta vida torna-se mais claro para mim,
Vou abandonar a preguiça, porque não há tempo a se perder na vida,
Entrarei no caminho imperturbado da audição, pensamento e meditação,
Fazendo da mente e das aparências o caminho, manifestarei o trikaya.
Agora que pela primeira vez eu obtive um corpo humano
Este não é um tempo para me demorar em desvios de distração.
24
Padmasambhava, Natural Liberation, Somerville, Wisdom Publications, 1998. O texto é traduzido por
B. Alan Wallace, com um comentário de Gyatrul Rinpoche.
25
Ver Herbert V. Guenther, The Life and Teaching of Naropa, Londres, Oxford University Press,
1963; Glenn H. Mullin, Tsongkhapa’s Six Yogas of Naropa, Ithaca, Snow Lion, 1996; e Glenn H. Mullin,
Readings on the Six Yogas of Naropa, Ithaca, Snow Lion, 1997. Para uma abordagem Ningma dos seis
yogas relacionados com os bardos, ver o capítulo final de Thinley Norbu, White Sail, Boston, Shambhala,
1992.
26
Em tibetano, bar do drug gi rtsa tshig.
64
momento ou situação que ocorra durante a vida de vigília ou como a vida de qualquer
estado mental não importa quão curto ou longo possa ser. Qualquer coisa que seja,
depois que surge e antes que desapareça, acontece dentro do bardo desta vida,
aparentando existir e ser absolutamente real.
Trungpa Rinpoche disse que este estado tem base na velocidade, o ímpeto de
manter as coisas acontecendo. Se girarmos uma tocha com bastante velocidade no ar,
ela parece ser um círculo de fogo sólido. Se um avião perde velocidade, ele irá estolar
e cair. Nesse caso, a velocidade é necessária para manter a ilusão do que somos; ela
nos mantém acreditando na solidez e na permanência de nossa existência individual e
do mundo exterior. A essência ou ponto culminante desse bardo é dada quando uma
lacuna ocorre subitamente; nossa velocidade falha por um momento e a continuidade
é quebrada. Naquele exato instante, existe a possibilidade de se enxergar através da
ilusão, mas isso pode muito bem parecer assustador, como cair do céu no espaço
vazio.
Segundo, a pessoa deveria pensar com cuidado a respeito do que ouviu, formular
perguntas para clarificar seu significado e testá-lo de novo através de sua própria
experiência. Em seguida, deveria refletir profundamente sobre os ensinamentos e
relembrá-los com tanta frequência quanto seja possível, de forma que penetrem
inteiramente em sua mente. O budismo tem grande respeito pelo intelecto e acredita
que ele deve ser treinado e usado de maneira adequada, como uma ferramenta para
sua própria transcendência. As várias visões apresentadas pela filosofia budista nunca
são puramente teóricas. Pretendem guiar o pensamento da pessoa para a estrutura
correta da experiência de meditação. Todos esses ensinamentos e práticas algumas
vezes parecem extremamente complicados, mas isso se deve apenas à complexidade
das nossas mentes condicionadas. Por vidas incontáveis, temos vivido sob a influência
da ignorância, e agora não é fácil limpar todas as obstruções para compreender ou
para atingir todas as camadas de confusão profundamente escondidas. Por meio do
65
pensamento cuidadoso e do raciocínio, podemos nos convencer do que é verdadeiro e
ganhar confiança no caminho.
Finalmente, o que tem sido ouvido e pensado a respeito deve ser posto em
prática através da meditação. Isso é mais do que contemplação dos ensinamentos ou
do que seu entendimento intelectual. Nesse ponto, o aspecto conceitual e racional da
mente deve desaparecer, permitindo um avanço na direção da experiência direta,
intuitiva. Meditação significa trabalhar de forma direta com a mente e as energias
interiores, de acordo com qualquer técnica que a pessoa siga. Por meio desse
processo, as ilusões são dissipadas, a corrente de causa e efeito kármica é
interrompida, e a mente é transformada. A meditação realiza uma mudança efetiva no
modo de consciência da pessoa, e por isso é considerada um bardo em si, o bardo da
meditação acontecendo dentro do bardo desta vida.
66
O BARDO DA MEDITAÇÃO
67
judaísmo, cristianismo e islã substituíram essas deidades por um Deus supremo, mas
como vimos (ver Capítulo Dois) o budismo considera isso ainda uma resposta ao
sentido de ser. As deidades do estado desperto são sinônimas dos budas; são a
presença viva da iluminação em todos os seus vários aspectos e funções. Cada uma
incorpora e enfatiza algum aspecto especial do estado de buda, ainda assim cada uma
é completa e perfeita por si só. A deidade escolhida como o foco da prática de alguém
representa o despertar total, a essência de todas as deidades; é a forma meditada da
própria natureza desperta do praticante, sua divindade inata. No Livro tibetano dos
mortos mantivemos o termo tibetano yidam, mas aqui eu a chamo de “a deidade
escolhida” do equivalente sânscrito ishtadevata.
68
yogue ou yoguine toma a forma de sua deidade escolhida, que é conhecida como o
corpo ilusório. Finalmente, a pessoa medita que o corpo ilusório se manifesta em uma
forma física, à medida que ela retorna à vida comum. O estágio de conclusão leva a
pessoa através de um processo semelhante ao da sequência da morte, o estado de
pós-morte e renascimento, uma sequência que também ocorre no sono, sonho e
despertar. Praticando-o primeiro na meditação e depois no sono, a pessoa aprende
como transformar a própria morte em um meio de liberação. Somente através deste
bardo da meditação a pessoa adquire habilidades para implementar as instruções para
todos os outros bardos.
69
simplesmente no estado ilimitado de abertura e claridade da verdadeira natureza da
mente, experimentando tudo exatamente como é.
O BARDO DO SONHO
O bardo do sonho inclui tanto o sonhar quanto o sono sem sonhos. Dura do
momento em que adormecemos até o momento de acordar novamente. Quando
adormecemos, passamos por um processo análogo ao da morte, à medida que as
percepções da consciência desperta se dissolvem e desaparecem. Consideramos isso
cair em um estado de inconsciência, mas na verdade a mente está se colocando em
seu estado mais profundo e natural, que somos incapazes de reconhecer como tal por
causa de nossa confusão.
70
embora possa ocorrer naturalmente sob certas circunstâncias. O outro é o treino nos
yogas do estágio de conclusão e de sua aplicação aqui. À medida que adormecemos,
reconhecemos e retemos a percepção do estado de luminosidade, e em seguida
transformamos a experiência do sonho no corpo ilusório da prática. Isso é
particularmente recomendado para se ganhar confiança de que seremos capazes de
aplicar as mesmas técnicas na hora da morte.
O BARDO DO MORRER
71
Entrarei imperturbado na clara essência das instruções
E me transferirei para o espaço da autoconsciência inata,
E enquanto deixo este corpo condicionado de carne e sangue
Saberei que ele é uma ilusão transitória.
O BARDO DO DHARMATA
72
Este bardo nos leva ao coração de Liberação através da audição, as visões das
deidades pacíficas e coléricas. Dharmata é o estado natural da verdadeira natureza de
todos os fenômenos, a qualidade essencial da realidade. O bardo do dharmata é a
brecha que ocorre quando um pensamento desapareceu, mas o outro ainda não
começou a surgir em seu lugar. A mente está mergulhada em sua própria essência
natural de vazio luminoso, que é idêntica à natureza de todos os fenômenos, e as
deidades pacíficas e coléricas aparecem como manifestações naturais da realidade
definitiva.
A forma como essas visões são descritas é similar àquela do yoga das deidades.
Essas imagens nunca são acidentais ou arbitrárias. As deidades, com suas cores,
atributos e tudo o mais, revelam as diferentes qualidades de nossa natureza desperta,
e ao mesmo tempo cada uma se relaciona a um aspecto do samsara. A natureza
ilusória da vida comum é chamada de percepção impura porque surge da ignorância e
é dominada pela paixão, pela agressão e pela ilusão, enquanto a aparência das
deidades é pura percepção, pura visão; Trungpa Rinpoche costumava chamá-la visão
sagrada ou perspectiva sagrada. Trabalhar com essas imagens ajuda-nos a fazer
conexões entre a vida comum e o estado desperto, e mostra-nos que, na realidade, os
dois são indivisíveis.
O BARDO DA EXISTÊNCIA
73
Abandonar o ciúme e meditar no guru como pai e mãe.
________
Todos os seis bardos têm qualidades ou sabores diferentes, quer pensemos neles
como estados específicos que duram períodos definidos de tempo, ou como a essência
desses estados ocorrendo durante nossa vida diária. Trungpa Rinpoche os relacionava
74
aos seis reinos do samsara, um tema que será mais explorado no Capítulo Oito. Como
os bardos, os seis reinos representam modos de consciência, embora de uma forma
um pouco diferente. Assim como se referem às seis possíveis condições de
renascimento, podem ser vistos como descrições dos vários estados mentais em que
existimos: animalesco, divino, infernal e assim por diante. Presentemente, nascemos
na forma humana, portanto no sentido comum estamos experimentando o bardo
desta vida no reino humano, mas dentro desse estado básico experimentamos
psicológica e continuamente todos os outros reinos e todos os outros bardos. Quando
a energia característica de qualquer que seja o reino em que estamos se torna
especialmente intensa, ela vai em um crescendo que possui a natureza de um bardo:
“É a personificação da experiência total de cada diferente reino.”27
As experiências dos seis reinos e dos seis bardos não existem por si só; elas
surgem do espaço aberto da natureza primordial da mente. Luminosidade é o aspecto
da mente que dá surgimento a todas essas aparências: é o ambiente que as cerca, do
qual emergem e no qual se dissolvem. Está sempre presente, como o sol no céu,
escondido por trás das nuvens. Nesse momento, por causa da ignorância da nossa
natureza real, experimentamos tudo como as manifestações confusas do samsara. O
sentido de ser cria uma sensação de solidez, como a aparente solidez das nuvens
escondendo a face do sol, mas em certos momentos abre-se uma brecha através da
qual podemos receber um vislumbre da luz da realidade.
27
Transcending Madness, p. 62.
75
discípulos através de um súbito irromper de raiva ou alguma outra ação totalmente
inesperada. Existem muitas histórias desse tipo na literatura tântrica, tal como quando
o grande siddha Tilopa atingiu seu discípulo Naropa no rosto com seu sapato.28
Mesmo na vida comum, brechas desse tipo podem ocorrer. Pode acontecer
quando estamos em um estado de completa exaustão, sentindo que não aguentamos
mais, e a ponto de pular a fronteira em direção à loucura. Ou pode surgir no auge de
uma emoção extrema, quando nossa energia emocional atinge seu pico, e não
sabemos mais o que estamos fazendo ou o que causou tudo isso. De repente, o tempo
parece parar e nos sentimos calmos e desprendidos, suspensos em um estado de
absoluta imobilidade. Por um momento, entramos em uma dimensão diferente de ser,
mas sem treino é impossível estabilizar essas experiências e se aproveitar da
oportunidade que representam. Ser capaz de reconhecer e usar tais momentos de
elevada intensidade requer o fundamento firme de uma mente calma e estável e uma
confiança em nossa sanidade básica e na bondade de nossa própria natureza.
Todas as instruções ligadas aos seis bardos lidam basicamente com o permitir
que aquela brecha se abra, minando nossa crença no mundo comum que tomamos
como certo, e em seguida abandonando-se no espaço além dele. A experiência do
bardo é uma porta aberta para o despertar que está sempre presente. Nas palavras de
Trungpa Rinpoche: “O bardo é uma maneira muito prática de olhar para a nossa
vida.”29
28
A vida de Naropa é relatada em Guenther, The Life and Teaching of Naropa, e em Chögyam Trungpa,
Illusion’s Game, Boston, Shambhala, 1994.
29
Transcending Madness, p. 187.
76
Capítulo Cinco
Os elementos e tudo que é composto por eles existem em três níveis, chamados
o grosseiro, o sutil e o secreto. Esse princípio trino universal é discutido mais
detalhadamente no Capítulo Nove.
77
comida e de nossos corpos é feita de água. Possuímos o fogo no calor do corpo e
captamos o ar com a respiração, enquanto o espaço nos rodeia e nos penetra até o
âmago de nossa estrutura atômica.
Todas as substâncias materiais possuem uma natureza sutil que molda a sua
forma externa. Sistemas médicos tradicionais e complementares fazem uso das
qualidades elementais sutis das plantas e dos minerais na cura. Essas qualidades agem
através de suas similaridades com os elementos sutis dos seres humanos. Nossos
estados fisiológicos, psicológicos e espirituais desempenham um papel na condição de
nossa saúde, e todas essas diferentes dimensões estão ligadas pela teoria dos cinco
elementos.
78
TERRA
A terra dá tanto aos seres viventes quanto aos objetos inanimados o seu molde e
a sua forma. Como todos os elementos, a terra está sujeita à impermanência, mas
muda tão lentamente que produz uma ilusão de permanência. Montanhas e rochas
parecem durar para sempre, e mesmo nossos corpos parecem mais ou menos os
mesmos dia a dia, por isso ficamos acostumados a pensar que eles não mudam. A terra
é nosso lar, nosso ambiente familiar, o chão sólido no qual podemos caminhar e nos
sentir seguros. A terra é uma casa de tesouros, a fonte de toda riqueza, uma mina de
ouro e pedras preciosas.
Dentro do corpo humano, o elemento terra fornece a carne e os ossos. Ela nos
dá forma, estrutura e força. Sustenta e contém os outros elementos dentro de nós. A
terra fornece o alimento que supre nossos corpos. O que quer que comamos, seja
mineral, vegetal ou animal, é uma transformação da terra. Ela pode sustentar todos os
tipos de ataques e convulsões, e suporta sem reclamar qualquer peso que se coloque
sobre ela. Nas danças clássicas da Índia, o dançarino sempre começa tocando o chão
em uma saudação para agradecer à Deusa Terra por atuar como chão para sua dança.
Mas a terra não é apenas o chão real no qual caminhamos; o tantra vê toda a vida
como uma dança ou uma peça, portanto o elemento sutil da terra se torna o chão da
dança de toda a nossa existência. Dentro da mente também, a terra é a origem de
tudo que surge; por causa dessa qualidade, a mente tem a capacidade inerente de agir
como uma base e um chão.
79
é densa ou uma opinião é justa, todas compartilham o elemento terra. A terra é a base
da prática espiritual; na meditação retornamos para casa, para nós mesmos, aterrados
na realidade.
Se estamos sem contato com nosso próprio elemento terra natural, isso pode se
tornar opressivo e restritivo. Podemos nos sentir como se estivéssemos pesados e
cercados por todos os lados, ou até mesmo que estamos sendo enterrados vivos. A
terra parece estar em toda a nossa volta, sufocando-nos, em vez de permanecer sob
nossos pés, que é o lugar dela. Então precisamos retornar ao chão firme de nosso ser e
estabelecer nossas próprias fundações interiores para recuperarmos força e
estabilidade.
80
chão firme de onde começar, não haveria saltos da imaginação nem aventuras em
direção ao espaço interior.
Cada um dos elementos possui um símbolo que incorpora sua essência em uma
forma abstrata, geométrica. A forma simbólica da terra é um quadrado, e sua cor é
amarela. O quadrado expressa completude, solidez e imobilidade, ela forma a pedra
fundamental do mundo dos elementos. Amarelo é a cor da argila e da areia, nossos
materiais básicos de construção. É também a cor do precioso ouro e dos grãos prontos
para a colheita, ele transmite um sentimento da riqueza e da maturidade da terra.
Todas essas qualidades são exploradas em maior detalhe no Capítulo Sete, em
conexão com as cinco famílias dos budas.
ÁGUA
81
tendem a mantê-los separados. A cola deve estar úmida e pegajosa para unir duas
superfícies, mas quando endurece, elas se tornam uma só, sólida como a terra. A água
é inconsútil; ela flui em uma corrente contínua, inquebrável. Ao contrário da matéria
sólida, duas gotas de água irão se fundir de forma indistinta. O que quer que seja
líquido e fluido, literal ou metaforicamente, é uma manifestação desse elemento.
Estamos cercados por todos os lados pela água dos oceanos, lagos e rios; sobre
nós, a água cai como chuva dos céus; e sob nós, brota do solo nas fontes. Mas o
elemento água também aparece como óleo, leite, seiva e suco; como qualquer coisa
que verte, pinga ou flui; como vinho e néctar. Tudo o que bebemos é um presente do
elemento da água. É a água que torna a terra fértil, e na água, a vida começa.
A água permeia todo o nosso corpo assim como permeia o mundo exterior.
Habita dentro de nós na forma de todos os nossos fluidos corporais; linfa, pus, catarro,
fluidos sexuais, suor e, o mais importante, sangue, o próprio símbolo potente da vida.
A qualidade inerente da água é responsável pelo sentido do paladar e de seus objetos,
a variedade dos sabores. É a liquidez da saliva que nos permite saborear, e o fluido na
comida que carrega o seu sabor. No reino da mente, a qualidade sutil da água confere
fluidez e adaptabilidade. A mente é uma corrente de experiências, mudando
continuamente e ainda assim nunca quebrando sua continuidade. É muitas vezes
comparada a um rio, fluindo eternamente, ou ao oceano, profundo e vasto.
A água não possui uma forma própria; preenche o que quer que a contenha,
adaptando-se a qualquer forma. Enquanto não for contida, continua sempre em
movimento, escorrendo através da menor das rachaduras, fluindo para baixo,
procurando pelo ponto mais baixo em que possa repousar. Ela doa sua qualidade
fluida e elástica a tudo em que se infiltre. Um galho que esteja seco e quebradiço pode
facilmente ser partido, mas um que esteja cheio de umidade é flexível e resistente.
A água suaviza e afrouxa o que quer que esteja duro e fixo. Limpa e purifica,
eliminando a sujeira e lavando-a em seu fluir incessante. Borrifar com água santificada
é um ritual universal de purificação. A água nos resfria e refresca quando estamos
encalorados e cansados. No passado, em muitos países do Oriente, os convidados
eram recebidos com água para lavar seus pés assim como com água para beber, e
essas duas oferendas ainda são uma parte importante do ritual budista. No Ocidente,
esses hábitos podem ter sido substituídos pelo gesto de mostrar aos convidados o
caminho para o banheiro e sugerir a ingestão de chá, café ou álcool, mas de qualquer
forma esses gestos de hospitalidade ainda representam as oferendas sagradas do
elemento da água.
82
afeição que mantém as pessoas unidas nos relacionamentos. Quando a água está em
perfeito equilíbrio com os outros elementos em uma pessoa, pode produzir um poder
reflexivo na personalidade e uma qualidade espiritual de profundidade e
tranquilidade. Estar na presença de tais pessoas pode nos fazer sentir como se
estivéssemos olhando para um lago profundo e claro que reflete nossa verdadeira
natureza, e ouvir suas palavras é como beber néctar puro, doce e refrescante. A água
suaviza a rigidez da terra, mas ao mesmo tempo precisa das qualidades da terra para
apoiá-la e dar-lhe forma. O elemento água na psicologia pessoal faz com que seja
possível mover-se para a frente e adaptar-se facilmente às circunstâncias cambiantes.
Quando está concentrada e canalizada, a água tem uma tremenda força. Seu
poder é suave, mas persistente, e no tempo certo, pode consumir a pedra mais dura.
Grandes pesos podem ser transportados pela água com muito menos esforço do que
sobre a terra seca. Essa característica ajuda as pessoas a carregar seus fardos mais
levemente e a persistir firme e calmamente, superando obstáculos, assim como um rio
flui sem resistência em direção ao mar.
83
Pacificar é um caminho de liberação tranquilo, permitindo que pensamentos e
emoções se dissolvam na abertura da mente vazia de tal forma que nenhum resultado
kármico os sigam para criar sofrimento.
FOGO
Nos humanos, o elemento fogo fornece o calor do corpo, tão vital, que é quase
sinônimo da própria vida. Sem calor nos sentimos infelizes, distantes e sem vida,
mortalmente frios, frios como o túmulo. Qualquer sensação de temperatura, seja ela
quente ou fria, vem da qualidade do fogo. O fogo é o alquimista entre os grandes
elementos. Com sua função de transmutação, ele rege a digestão e o metabolismo.
Externamente, consome formas grosseiras de matéria, transformando-as em vapor e
gás, calor e luz. Ele cozinha nossa comida e em seguida, internamente, transmuta o
84
alimento nas células vivas dos nossos corpos. O elemento fogo sutil dentro de nós
transmuta nosso alimento mental e espiritual: todas as sensações, impressões, ideias e
emoções que recebemos através dos sentidos e da mente.
O fogo queima as impurezas, não apenas lavando-as como faz a água, mas
consumindo-as completamente. Ao mesmo tempo, ele tempera, refina e fortalece. O
fogo permanece no centro entre os elementos mais densos e os mais leves — entre as
naturezas tangíveis e substanciais da terra e da água e a insubstancialidade do ar e do
espaço. Ele surge da matéria sólida e desaparece em direção ao nada. É o antigo
mensageiro dos deuses, a ligação entre o humano e o divino. Na Índia, oferendas
rituais são feitas através de Agni, o deus do fogo, que as devora e transporta suas
essências para o reino sutil das deidades.
A qualidade do fogo pode ser expressa através da raiva apaixonada assim como
do desejo apaixonado. Uma pessoa pode arder furiosamente com raiva, ter um
temperamento ardente ou se tornar incandescente de fúria. Mas o fogo está sempre
associado a um sentimento positivo de relacionamento. Mesmo no caso de ódio, ele
sugere um tipo de ódio engajado, quente e inflamado ao invés de uma rejeição fria,
gelada. As chamas tocam tudo aquilo que esteja a seu alcance, e seu calor e sua luz
atraem seres viventes em sua direção, embora elas possam facilmente destruir aquilo
que atraem. São insaciáveis, como a natureza apegada da ambição e da luxúria. Uma
personalidade fogosa irá trazer uma paixão intensa e consumidora para cada emoção.
Sem o calor suficiente do sol, a vida desapareceria da Terra. Sem o fogo interior,
os corpos viventes não poderiam se manter vivos. Sem o elemento fogo suficiente no
coração, nossas naturezas permaneceriam semiadormecidas, como se estivessem
hibernando na terra fria e pesada. Sem o fogo, a água fluente do sentimento e da
receptividade se torna congelada. Perdemos entusiasmo, esperança e aspiração, e
nossos pensamentos não podem mais se movimentar para cima como chamas em
direção ao céu.
Os três males básicos da paixão, agressão e ilusão são todos simbolizados por
fogos furiosos. Na arte tântrica, tanto as deidades coléricas quanto as deidades
85
passionais e sedutoras dançam dentro de um círculo de chamas, simbolizando a
energia pura e essencial de suas naturezas. Por causa de seu potencial destrutivo, o
fogo é também um protetor, por isso os meditantes visualizam-se cercados por uma
parede protetora feita do fogo ardente da sabedoria.
O fogo não poderia existir sem a terra e o ar; ele se alimenta de ambos,
necessitando tanto de combustível quanto de oxigênio para existir. Deve ser contido
pela terra, confinado em um coração ou em um forno, de tal forma que seu poder
possa ser concentrado e posto em uso. Se ficar muito baixo, precisa ser abanado com
ar, e se ficar muito alto, precisa ser abrandado com água refrescante e calmante.
Enquanto arde, suas chamas desaparecem em direção ao espaço vazio, seu lar final.
AR
86
correntes termais. Em um dia ventoso, sentimos a presença do ar ao redor de nossos
corpos enquanto forçamos nossa passagem ou somos empurrados por sua força
contra nossas costas.
87
Respirar não se refere apenas ao ar que inalamos e exalamos. A palavra sânscrita
para respiração é prana, que significa não apenas a respiração comum, mas a própria
vida. É a força da vida, energia vital e espírito. Prana está sempre em movimento,
como um cavalo inquieto; o cavalo é um símbolo antigo tanto de prana quanto de
vento. A mobilidade do ar torna possível o movimento dentro da mente e do corpo;
não apenas o movimento da respiração, mas também o movimento dos membros, a
circulação do sangue, as mensagens dos sentidos, as instruções do cérebro e a
transferência de percepção de uma parte do corpo para outra. Como uma qualidade
fundamental da mente, o ar é o seu movimento contínuo, sua mutabilidade e
atividade.
Se existe um excesso de ar, mas sem o fogo da paixão para aquecê-lo, a atividade
se torna fria, mecânica, destituída de vida e de significado. Mas se existe muito pouco
ar, então o fogo não pode queimar de jeito algum, a água se tornará estagnada, e a
terra se tornará pesada, como massa que não cresce. Sem movimento e um sentido de
liberdade, as pessoas se afundam na melancolia, tornam-se fechadas em si próprias e
param de reagir ou sentir emoções.
88
ondulante ou árvores cheias de folhas balançando ao vento, então poderemos ver que
o verde é de fato apropriado para ser o sinal visível do inquieto e invisível elemento do
ar.
ESPAÇO
89
infinita e eternamente. Mas a consciência não é limitada pela mente apenas. Todas as
células do nosso corpo e todas as partículas através do universo possuem seu próprio
tipo de inteligência, por meio da qual continuam a existir em sua forma particular e a
levar adiante sua função específica.
O espaço contém todos os elementos dentro de si, e ainda assim está além de
todas as características. Ele é inteligência pura, brilhante, abertura completa e
percepção de tudo que se vê. Quando está obscurecido, experimentamos confusão,
estupidez e ignorância; tornamo-nos seres fechados, limitados.
Terra, água, fogo e ar não podem existir sem espaço, mas eles também são
necessários para sua manifestação. O espaço se expressa por meio da dança dos
elementos. Se eles não estiverem todos funcionando adequadamente dentro de uma
personalidade, se existe muita qualidade de espaço, a pessoa irá perder o contato com
a realidade, se sentir flutuando no espaço, perdida em um reino de ilusão. Mas quando
existe carência de espaço a pessoa se sente apinhada, oprimida e claustrofóbica.
A cor simbólica do espaço é azul; o azul de um céu claro, luminoso. O espaço não
tem uma cor própria, mas quando fitamos sua profundidade infinita, o percebemos
como azul. Azul é a cor do mistério e da espiritualidade; é associado com o paraíso, e
por isso sempre transmitiu ideias de paz, felicidade, beleza e perfeição. Mas a
insondável profundidade do azul pode também acarretar uma ameaça e um sentido de
medo. Ao olhar fixamente para o espaço, as pessoas às vezes sentem que podem cair
da borda do mundo e despencar para sempre naquele vasto vazio. É o medo
fundamental da morte, o terror de perder o sentido do ser, o que confrontamos
quando olhamos para a face do elemento do espaço.
OS CINCO DEVAS
90
finalmente tudo que é composto por eles — nossos corpos e nosso mundo — irá
morrer. Mas o carcereiro da prisão é nossa própria mente, incapaz de ver além de suas
aparências superficiais e entendê-los como realmente são.
30
Thinley Norbu, Magic Dance, Nova York, Jewel, 1981, é uma celebração da natureza das cinco dakinis,
assim como outros tópicos a partir do ponto de vista de um yogue Ningma.
31
Chögyam Trungpa, The Sadhana of Mahamudra. Não disponível comercialmente.
91
Mamaki é o deva da água. A mesma prática de meditação diz a respeito dele: "A
água que flui aqui é a Buda Mamaki, que é o lago da sabedoria espelhada, clara e pura,
como se o céu tivesse derretido.” O nome Mamaki quer dizer “meu”, não no sentido
de possessividade, mas de afeição e de pertencer a alguém. Ela olha para todos os
seres como sendo seus, e pertence a cada um deles. Isso se relaciona com a qualidade
emocional da água; ela expressa a claridade e a pureza do coração quando o aspecto
confuso do sentimento foi clarificado e sua sensibilidade inata é revelada. Quando
captamos um vislumbre do estado de percepção de Mamaki, sentimos empatia com
todos os seres; podemos entrar em suas mentes e corações assim como uma gota de
água se funde com outras gotas. Mamaki é a mãe amorosa que trata todos os seres
conscientes, sem exceção, como seus próprios filhos. Ela se infiltra em todo lugar, nos
rodeia, é a água da vida.
92
princípio feminino do espaço e do vazio, a matriz criativa do todo da existência. Como
o seu elemento, é impossível de capturar ou definir com palavras; não pode ser
descrita em linguagem humana. Sua natureza é a imensidão, a expansividade e a
abertura, onipresente e que tudo permeia. Ele reina no centro da mandala e faz nascer
todos os elementos.
Nós somos feitos dos cinco elementos e somos inteiramente dependentes deles,
portanto quando começam a se desintegrar no momento da morte, significa que nosso
mundo comum está chegando ao fim. Se os tomarmos como reais, pode parecer que
eles se voltaram contra nós e estão destruindo nossa própria existência. Mas, se
entendermos a natureza dos cinco devas, veremos que não existe nada a temer e nada
que possa ser destruído. Um dos conjuntos de versos conectados com Liberação
através da audição chamado a Prece-aspiração para libertação da perigosa passagem
do bardo32, diz:
32
Em tibetano, bar do ’phrang sgrol kyi smon lam.
93
Possa eu ver o reino do buda amarelo.
Possam os elementos do fogo não se levantarem como inimigos,
Possa eu ver o reino do buda vermelho.
Possam os elementos do ar não se levantarem como inimigos,
Possa eu ver o reino do buda verde.
Possa o arco-íris dos elementos não se levantarem como inimigos,
Possa eu ver os reinos de todos os budas.
Esse verso não é apenas uma prece, mas uma aspiração ou resolução; ele
pretende ser uma forma de nos inspirar e influenciar nosso estado mental, em vez de
ser uma solicitação. Ele nos incita a penetrar através de nossa percepção dos
elementos materiais como sendo reais e sólidos, seja em suas manifestações criativas
ou destrutivas, e a reconhecer sua essência vazia. Se houver um sentido muito forte de
autopreservação na corrente da mente, então nos agarraremos rapidamente à
realidade aparente e temeremos sua dissolução. Mas, já que somos naturalmente
compostos dos cinco elementos, sem dúvida também possuímos a natureza inerente
dos cinco devas e o potencial para despertar dentro do seu estado de ser e de
consciência.
94
Capítulo Seis
A palavra dharma tem o sentido básico de manter e apoiar. Seu uso primário é
para transmitir as ideias de lei, religião e dever que preservam a sociedade humana e
são preservados por ela em uma relação recíproca. Em um nível pessoal, significa o
papel especial na vida que cada ser vivente nasceu para realizar — a verdade interior
da pessoa, a lei pela qual alguém vive. Pode também significar a natureza inerente da
qualidade de qualquer coisa, a lei que determina exatamente o que cada coisa é e faz.
Assim como o dharma de um rei é reinar, o dharma do fogo é queimar. Nesse sentido,
existem inúmeros dharmas, as leis fundamentais de tudo o que existe. Entre eles,
certos elementos físicos e psicológicos em particular foram identificados no budismo
como estando na raiz de nossa maneira de perceber o mundo.
95
não é ignorado, mas é sempre tratado como indivisivelmente ligado com o mundo
interior da consciência. Portanto, na análise budista, ele é representado por somente
cinco dharmas: o campo dos cinco sentidos. Todos os fenômenos materiais são
definidos pelo fato de que podem ser vistos, ouvidos, farejados, saboreados ou
tocados. Se não fossem perceptíveis pelos sentidos, não saberíamos nada sobre eles, e
o que quer que venhamos a conhecer chega até nós somente por meio dos sentidos.
Todos os outros dharmas estão envolvidos com os processos de percepção e
consciência, e com estados psicológicos. Esses estados mentais condicionam a maneira
pela qual experimentamos o mundo, de tal forma que mente e corpo, interior e
exterior, nunca podem ser separados. O sistema de dharmas descreve a existência,
não de uma forma teórica, mas como ela é realmente vivida por seres conscientes de
momento a momento.
96
“componente”, o que dá a impressão de entidades separadas em vez de elementos
interativos e interdependentes de um processo. Eles não são tanto do que somos
feitos, mas sim como funcionamos.
97
inteiro. Essa compreensão quebra a barreira da dualidade do ser e do outro, e estimula
o amor e a compaixão por todos os seres viventes, que estão sofrendo
desnecessariamente por causa de sua confusão a respeito da existência. Não é mais
necessário para o meditante se concentrar em identificar os dharmas separados como
um antídoto para o sentido de ego. Ao contrário, com pelo menos uma experiência
básica de sua ausência, existe mais ênfase em entender o processo pelo qual nossa
experiência de vida baseada no ego é continuamente construída e mantida pelos cinco
skandhas, e em ser vista através de sua aparente realidade.
33
Ver Shenpen Hookham, The Buddha Within, Albany, SUNY, 1991
98
particular com um dos cinco grandes elementos. Isso significa que existe uma conexão
entre os cinco devas (que são a essência dos elementos) e os cinco budas (que são a
essência dos skandhas), mas eles nem sempre se correspondem da maneira que se
esperaria. Esse aspecto, também, é deixado para mais tarde (ver Capítulos Nove e
Doze), quando seus inter-relacionamentos às vezes complexos irão fazer mais sentido.
FORMA
99
alguém não deseja mais permanecer comprometido com um voto, deve ser dado de
volta pelo que o recebeu, não simplesmente ser negligenciado e esquecido. Pragas são
igualmente poderosas e, se não são realizadas, devem ser devidamente reinvocadas e
dispensadas, como lixo tóxico, ou continuarão a fazer mal.
100
SENTIMENTO
Esses sentimentos não são emoções plenamente desenvolvidas; são tão básicos
que são quase inconscientes, embora estejam se manifestando todo o tempo,
formando o pano de fundo de pensamentos e ações. Se olharmos com cuidado,
podemos ver como nossa ligação automática ou nosso desagrado pelas pessoas,
situações e ideias nos influenciam continuamente. Depois do primeiro skandha, o
sentir é um passo adiante no desenvolvimento da dualidade, que fortalece o sentido
do ego em relação ao ambiente que o rodeia. A distinção entre sujeito e objeto parece
imediatamente mais real e válida. Mesmo em um nível tão simples, sentimentos são
muito importantes para nós; parecem provar nossa existência. Porque temos uma
reação ao mundo exterior, devemos ser reais e o mundo deve ser real.
Instintivamente, queremos nos apegar às sensações prazerosas e evitar as
desagradáveis, portanto apego e aversão começam a crescer. Descobrimos que o ego
pode usar qualquer tipo de sentimento, mesmo a dor, para reforçar o sentido de sua
própria importância. Essa é a forma de apego mais arraigada: não é apenas uma busca
pela felicidade, mas apego à nossa própria identidade.
101
o Nascido como uma Joia. Sua família é chamada Ratna, a joia preciosa da nossa
natureza desperta. Ratnasambhava não precisa reagir com apego ou aversão de forma
a se afirmar ou ser afirmado de sua própria existência; ele possui completa confiança
no valor e na riqueza do sentir genuíno, portanto pode se dar ao luxo de ser equitativo
e imparcial com todos.
PERCEPÇÃO
Quando olhamos para algo indistinto e não podemos muito bem definir o que é,
existe um momento de incerteza e de confusão; embora possamos ver o objeto
fisicamente, nossa percepção dele é incompleta. Forçamos os olhos para vê-lo mais
claramente, e, uma vez que percebamos o que ele é, nossa visão na verdade parece
melhorar; agora sabemos o que devemos estar vendo, portanto somos capazes de
percebê-lo adequadamente. Isso é um exemplo de como a percepção trabalha como
parte de uma experiência completa. A memória está ligada com a percepção, mas
neste caso o objeto está dentro da mente; a percepção toma nota do objeto e se
lembra dele. Sentimos como se estivéssemos vivendo no passado quando nos
lembramos, mas a memória em si está na verdade no presente; sempre é um novo
momento de percepção, literalmente um “re-conhecer”.
102
conhecimento. E assim como as chamas se dissolvem no ar tênue, as percepções
parecem reais, no entanto não se pode pegá-las nem contê-las. A percepção é
comparável a uma miragem, quando um viajante sedento vê um lago no deserto, mas
é apenas uma ilusão criada pela mente a partir de um intenso desejo por água.
CONDICIONAMENTO
34
Chögyam Trungpa, Glimpses of Abhidharma, Boston, Shambhala, 1975.
103
portanto criando as diferenças entre as pessoas. Estão intimamente conectados com o
caráter: com a ajuda deste skandha, o ego se expande para se tornar uma
personalidade em pleno desenvolvimento.
A coisa mais significativa sobre esses estados mentais particulares é que eles
levam à ação, que é o significado literal de karma. Podem ser vistos coletivamente
como impulsos motivadores, porque colocam em movimento a corrente kármica de
causa e efeito. São como os motores dirigindo o mecanismo do karma. Todas as
atividades do corpo, fala e mente — nossos feitos, palavras e pensamentos
manifestados —, surgem deste skandha. São gatilhos kármicos. A palavra samskara
transmite as ideias de construção e conclusão: ela completa o processo de reagir e
perceber, e constrói a versão de cada pessoa da realidade. Também cria um sentido de
artificialidade; é uma alteração do estado natural da mente.
Para o nosso propósito aqui, será suficiente entender essa definição geral de
condicionamento, mas alguns leitores podem estar interessados em olhar a tradicional
lista de fatores em maiores detalhes. Alguns são sempre encontrados juntos, enquanto
outros são mutuamente excludentes. Eles aparecem e desaparecem de momento a
momento, formando continuamente novas combinações.
104
com seu objeto. Contato é o equivalente ao primeiro skandha, forma, que é o contato
da faculdade dos sentidos com o campo dos sentidos. Em seguida vêm sentimento e
percepção, equivalentes ao segundo e terceiro skandhas, que já foram descritos.
Embora estejam contidos dentro deste skandha, são também tratados como skandhas
separados por si só, porque marcam estágios tão significativos no desenvolvimento da
experiência total.
105
preguiça; ausência de cuidado; inabilidade para aplicar sua compreensão à vida,
resultante da falta de cuidado; inércia mental; inquietação mental; e desordem.
106
inseparável sabedoria e compaixão. Isso é energia pura, dinâmica, não mais distorcida
por ignorância e não mais dando origem a nenhuma outra ilusão.
CONSCIÊNCIA
A consciência possui oito aspectos. Os seis primeiros operam através dos seis
sentidos. Todos os skandhas são interdependentes, e a consciência os permeia a
todos; nenhum deles poderia funcionar sem a presença da consciência, portanto ela já
é inerente mesmo no primeiro, o skandha da forma. Forma é a simples existência dos
sentidos e seus objetos; a consciência os traz à vida, por assim dizer. De sua parte, a
consciência se apoia em todos os outros skandhas para poder operar. Não é uma
entidade fixa nem algum estado abstrato de pura consciência, mas um processo
impermanente, mutável, dinâmico. Os seis primeiros aspectos deste skandha são a
consciência da visão, a consciência da audição, a consciência do olfato, a consciência
do paladar, a consciência do tato e a consciência da mente. Esta última é equivalente à
mente racional. Ela coordena a informação dos outros sentidos e experimenta
pensamentos e sentimentos. Tudo que chega através dos sentidos vindo de fora e
todas as ideias e emoções que surgem de dentro chegam a nós como imagens mentais
e servem como objetos da consciência mental. Esses seis primeiros tipos de
consciência estão no nível da vida em vigília.
107
desperto. Essa ignorância permeia a consciência dos seis sentidos, de tal forma que
todas as nossas percepções são imediatamente influenciadas pela confusão. Essa
mente nublada é o nível dos sonhos, das memórias, das imagens subconscientes e da
confusa corrente subterrânea dos pensamentos. Age também como ligação entre as
primeiras seis consciências e a oitava, que é a consciência original, ou “o armazém dos
pontos de referência”, como Trungpa Rinpoche a chamava. A sétima consciência olha
em ambas as direções. Ela manda mensagens dos sentidos e da faculdade mental para
serem mantidos nos bancos de memória do armazém, e as traz de volta para a
superfície quando quer que sejam necessárias na vida em vigília. Fornece acesso à
vasta biblioteca de informação que cada um de nós possui, que está em constante
processamento e utilização enquanto seguimos em nossas vidas diárias.
A oitava consciência é a base das outras sete. Ela guarda os registros deixados
pelas experiências passadas, que em retorno tornam-se as sementes das experiências
futuras. Mas é difusa e indiferenciada; nem mesmo é dependente deste corpo e desta
vida em particular. É potencialmente um sentido de ser, mas não um indivíduo
plenamente formado. Carrega a continuidade dos efeitos kármicos de uma vida para a
próxima, e cria um corpo mental durante o bardo entre a morte e o renascimento. De
algumas formas, corresponde ao nosso conceito de mente inconsciente, mas é
entretanto chamada de consciência porque está sempre presente e potencialmente
consciente, mesmo em coma ou em sono profundo. Onde quer que haja mente,
haverá consciência, os dois termos são usados de forma intercambiável. Mente ou
consciência está muito intimamente ligada com prana, a força da vida; é equivalente à
própria vida, porque ainda estamos vivos, enquanto o prana e a mente ainda não
deixaram o corpo, mesmo quando estamos aparentemente “inconscientes”. Através
da meditação, torna-se finalmente possível penetrar nesse nível e transformar a
consciência comum (vijnana) em conhecimento puro e não-dual (jnana).
108
Mas consciência é exatamente igual a um show de mágicas: quando olhamos
com cuidado, nada está lá e nada realmente aconteceu. Existe apenas uma peça
mágica de aparências, uma dança entre um observador imaginário e um fenômeno
imaginado. Outra analogia é uma bola de cristal, clara e transparente por si só, mas
aparentando assumir todas as várias cores que a rodeiam.
A natureza essencial dos skandhas é o vazio; eles não possuem realidade própria.
Isso significa que quando meditamos no vazio, podemos nos libertar das atividades e
características grosseiras dos skandhas e interromper o incansável fluir de causa e
efeito que eles criam constantemente. Paramos de nos apegar à nossa ideia habitual
de nós mesmos e relaxamos na amplidão e na claridade do espaço. Quando as
escrituras falam dos budas e bodhisattvas entrando em estado de samadhi e
transmitindo ensinamentos, como no Sutra do coração, eles estão descrevendo
estados de meditação que são acessíveis aos seres humanos. É possível para nós
109
olharmos para o interior de nossa própria natureza verdadeira assim como
Avalokiteshvara o fez.
O que ele viu foi vazio não apenas como uma condição negativa, mas como uma
positiva. O vácuo natural e espontaneamente se manifesta como o universo, com
todos os seus fenômenos maravilhosos e variados. A existência pode não ser real no
sentido que temos sempre imaginado, mas é real em um sentido muito mais
maravilhoso, como o jogo do despertar. Tudo no universo está contido dentro dos
cinco skandhas, e toda expressão de iluminação está contida dentro da natureza dos
cinco budas. O vazio é inseparável da luminosidade, o poder criativo da mente
desperta, e portanto a essência pura dos skandhas aparece como luz radiante
brilhando a partir do coração dos budas.
Os skandhas por si só são neutros: não são algo de que tenhamos que nos
envergonhar ou tentar suprimir. Em qualquer caso, é impossível se livrar deles.
Enquanto estivermos vivos, possuímos os cinco skandhas, mas porque os possuímos
temos também a natureza dos cinco budas. É simplesmente um processo natural.
Enquanto existir um corpo para receber impressões dos sentidos, haverá sentimento,
depois percepção e em seguida elaboração de pensamentos sobre o que foi percebido.
Essas elaborações dão surgimento a um ciclo interminável de pensamentos e ações
subsequentes, de tal forma que nos recriamos continuamente de momento a
momento. A prática da meditação possibilita que nos tornemos desemaranhados do
processo como um todo, e paremos de os identificar e nos envolver com ele. Podemos
simplesmente observar o que quer que surja na mente sem nos sentirmos orgulhosos
dos bons estados mentais ou deprimidos pelos maus. Na meditação, simplesmente
lidamos com a energia básica dos skandhas, que é liberada para se manifestar como
padrões de consciência em vez de confusão. Não precisamos temer a perda de nossos
“eus” transitórios e ilusórios. Mesmo um homem ou mulher plenamente desperto
ainda possui um sentido de identidade pessoal e em geral irradia uma personalidade
muito poderosa.
110
Capítulo Sete
111
frases têm sido apresentadas por tradutores recentemente, mas não acho qualquer
uma delas satisfatória. Tanto em sânscrito quanto em tibetano elas são palavras muito
simples e comuns, e são com frequência usadas em poesia, portanto sinto que não é
apropriado traduzi-las com termos mais obscuros que introduzem um tom muito
diferente.
Prajna é definido como o estado mental que conhece o vazio. É uma atitude e
uma maneira de ser que resultam da experiência direta do vazio e do não-ser,
portanto a ênfase aqui é mais no aspecto da sabedoria do que no do conhecimento.
Ele possui elementos de discernimento e percepção, e é simbolizado por uma espada
afiada que corta através da dúvida e da ilusão. É uma das seis perfeições ou virtudes
transcendentes. Prajnaparamita, a Perfeição da Sabedoria, é o princípio feminino da
iluminação, a mãe dos budas; ela dá nascimento ao estado de vigilância, cuja natureza
verdadeira é jnana.
112
As cinco jnanas são cinco maneiras de conhecer a realidade, cada uma revelando
um ponto de vista iluminado diferente. Elas se complementam entre si e juntas
formam um todo perfeito. Não podem ser isoladas umas das outras e, fiéis ao princípio
da interpenetração, que já vimos com os cinco elementos, cada uma contém todas as
cinco dentro de si. Não são apenas atributos que os budas possuem; elas são a
natureza fundamental dos budas. Brilham como a luz das cinco cores: branco, amarelo,
vermelho, verde e azul Já vimos que os cinco skandhas e os cinco elementos são, em
sua essência pura, os cinco budas masculinos e os cinco budas femininos. Agora
encontraremos muitas outras categorias em grupos de cinco que correspondem a elas,
e veremos como seus estilos característicos aparecem, tanto no mundo confuso do
samsara como no reino iluminado.
Já que o todo da existência, tudo sem exceção, surge do estado desperto, tudo é
em última instância uma expressão dos cinco budas e partilha suas características.
Portanto, tudo pertence à família de um dos cinco budas. Seres humanos, todas as
outras criaturas viventes, objetos inanimados, lugares, eventos, atividades, ideias
abstratas, emoções, o que quer que seja imaginado, tudo tem uma afinidade particular
com uma ou mais das famílias. Diz-se na realidade que existe apenas uma família: o
estado final de despertar ao qual todos os seres conscientes pertencem. Mas então,
por causa das diferentes características dos seres, pode-se dizer que existem três
famílias, ou cinco, ou uma centena; se alguém analisa isso ainda mais, existem
incontáveis famílias, tantas quanto o número de todos os seres conscientes que
existem. Todos os tantras mais elevados do vajrayana usam o sistema das cinco
famílias, que cria o padrão típico de mandala com um centro e os quatro pontos
cardeais.
Todo o significado e propósito das cinco famílias é nos acordar para a natureza
de buda inerente em nós, por meio de nossa própria natureza humana. Não apenas
possuímos todas as boas qualidades do coração desperto, podemos até transformar
nossas falhas e tendências negativas em aspectos da iluminação. Na verdade, de
113
acordo com o tantra, o único caminho pelo qual podemos atingir o conhecimento dos
budas é usando a energia dos cinco venenos. Tornar-se familiar com o sistema das
famílias pode nos ajudar a fazer conexões entre os reinos da confusão e da
consciência, à medida que vamos percebendo que cada aspecto do corpo, da mente e
do ambiente é em essência uma expressão dos cinco princípios da natureza de buda.
A mandala é muito mais do que uma imagem pintada ou visualizada para ser
usada na meditação; é um princípio que se aplica a todas as áreas da vida. O conceito
de mandala é muito simples, é algo com o qual estamos muito familiarizados quando
utilizamos palavras como círculo ou esfera, metaforicamente. Falamos do círculo da
família e do círculo de amigos seguidores; esferas de interesse, atividade e influência;
as esferas mental e física; e assim por diante. Em termos budistas, nosso ambiente,
nossos corpos e nossas mentes são todos mandalas. Podemos pensar em uma
mandala em qualquer escala, por exemplo, as mandalas da casa, da vizinhança, do país
ou de toda a raça humana. Qualquer área de relacionamento constitui uma mandala.
Quando pensamos em qualquer grupo de pessoas, coisas ou mesmo conceitos em
relação a um foco central, isso pode ser expressado em termos de uma mandala. Cada
um de nós ocupa o centro de nossa mandala pessoal de amigos, família, colegas e de
35
Chögyam Trungpa, Orderly Chaos, Boston, Shambhala, 1991, lida particularmente com o princípio da
mandala. Ensinamentos tanto sobre o princípio da mandala e sobre as cinco famílias são encontrados
em muitos dos seus livros.
114
fato todo mundo com quem já estivemos em contato. Ao mesmo tempo, somos cada
um parte de inumeráveis outras mandalas: padrões de relacionamento nos quais
existe um fluir incessante de energia e comunicação, indo e vindo, entre o centro e a
periferia. A mandala do guru e os discípulos é particularmente importante no
vajrayana. Esses padrões de relacionamento, conforme ocorrem na vida diária, são
imprevisíveis e desordenados. Algumas vezes funcionam e outras não, mas em geral
não temos muito controle sobre eles ou muita consciência do que está realmente
acontecendo dentro deles. A mandala das deidades, por outro lado, surge de um
estado de perfeição e harmonia naturais, refletido no arranjo formal das pinturas e
estruturas da mandala.
115
virtudes iluminadas, tais como sabedoria e compaixão. Atividade é a forma como cada
coisa efetivamente funciona; os budas desempenham ações iluminadas por meio das
quatro atividades indestrutíveis.
AKSHOBHYA
116
aparências que surgem dentro dele; elas não existem em nenhum outro lugar, porque
não existe lugar fora do espelho. Esse tipo de conhecimento percebe tudo com
precisão e claridade; não julga nem compara, não sente apego ou aversão. É como
assistir a uma peça. No grande espelho, a peça da existência é desempenhada sem
início e sem fim; é colorida, intensa e real; percepções e experiências são nitidamente
reais e vivas, embora nunca tenham surgido. O conhecimento do espelho é a
compreensão do vazio e da aparência simultâneos. Refulge como um raio de pura luz
branca ou azul vinda do coração de Akshobhya.
Contudo, a superfície de nosso claro espelho da mente está coberta com poeira
e sujeira, obscurecida pela ignorância. A ignorância básica se desenvolve na forma de
cinco venenos. No caso da família Vajra, o veneno característico é a agressão, que
cresce a partir da reação negativa instintiva de rejeição e cresce para se tornar um
enorme complexo de sentimentos hostis tais como ódio, raiva, fúria, malícia, inimizade
e violência. Fundamentalmente, é uma força de separação, o instinto para afirmar sua
própria identidade defendendo as fronteiras entre o ser e o outro. A agressão só pode
existir porque tomamos como reais as aparições sempre mutáveis no espelho, sem
perceber que nossa natureza intrínseca não é tocada por elas. O conhecimento do
espelho mostra-nos que na verdade não existe nada para se lutar contra e nada do que
precisemos nos defender.
Neste ponto, pode ser de ajuda lembrarmo-nos que emoções intensas somente
são venenos se forem usadas a serviço do ego. Isso acontece quando elas são egoístas
e prejudiciais, quando protegem o ser pequeno, limitado e dividido e o separam dos
outros. Emoções são simplesmente expressões de energia: podem ser venenos ou
alimento e remédio. A energia da raiva pode ser extremamente positiva, como
117
veremos em um capítulo posterior ao encontrarmos as deidades coléricas. Sua cólera é
algumas vezes chamada de raiva sem ódio; é dirigida para o mal e a ignorância, e para
o sofrimento que eles causam, mas é inteiramente livre de ódio pessoal contra seres
viventes.
118
evoluem para estados mentais dos infernos frio e quente. Embora a água pareça
etérea e sem peso, é na verdade extremamente pesada; qualquer coisa que seja
molhada imediatamente se torna mais pesada; essa é a natureza impassível de
Akshobhya. Mesmo se a superfície do oceano for fustigada por ondas violentas, as
profundezas não podem ser perturbadas: esse é o ser imperturbável de Akshobhya. A
água sempre flui na direção do ponto mais baixo que consegue encontrar e se
estabelece lá, criando uma base de estabilidade inabalável. Quando uma grande
quantidade de água começa a se mover, ela sobrepuja tudo que estiver em seu
caminho: é impossível de ser parada e é invencível.
A cor da família Vajra pode ser branca ou azul. Branco é a cor da água: ela pode
parecer brilhante, pura e translúcida como um lago tranquilo e um intelecto claro, ou
opaca e nublada como água turbulenta e uma mente raivosa e perturbada. O próprio
Akshobhya, no entanto, é de cor azul, e muitas das deidades coléricas também são
azuis, porque incorporam a energia transmutada do ódio e da agressão.
Vajra está conectada com o inverno e com o amanhecer. A primeira luz é pálida e
clara e com um sentido de austeridade; o vento sopra do leste, amargamente frio e
cortante; a paisagem é desolada, com seus aspectos agudamente definidos, brilhantes
e cristalinos, ou brancos e quebradiços como a neve.
O símbolo da família Vajra é o próprio vajra. Ele tem cinco pontas em cada final,
que representam os budas masculinos e femininos das cinco famílias. Isso nos lembra
mais uma vez o princípio da interpenetração universal: todos os budas e todos os
aspectos do conhecimento são completos em si, e cada um contém os outros cinco.
RATNASAMBHAVA
119
chamá-lo equanimidade, e olhando para fora, igualdade. Semelhança não implica uma
mistura de opostos que se torna uma branda neutralidade ou o suavizar de diferentes
características de qualquer maneira. É uma visão do “mesmo-gosto” ou “um gosto”
universal, da essência desperta de toda a existência, de tal forma que, na verdade
final, não existe diferença entre samsara e nirvana. A natureza de buda nunca é
obstruída ou corrompida: ela é igual em todos os seres.
36
Ver “Five Styles of Creative Expression” em Chögyam Trungpa, Dharma Art, Boston, Shambhala, 1996,
p. 82.
120
abrigo e riqueza material; mostra completa equanimidade e generosidade imparcial
em relação a seus filhos.
121
riqueza ilimitada de todo o universo é reduzida ao orgulho das virtudes e das posses de
uma pessoa em particular. A arrogância surge do fato de se estar excessivamente
impressionado com suas próprias boas qualidades e desmerecer as dos outros. Por
causa da qualidade de generosidade inerente na família Ratna, uma pessoa assim pode
efetivamente desejar beneficiar os outros, mas de alguma forma acaba o fazendo de
uma maneira arrogante ou condescendente. A consciência básica da igualdade se
perdeu, distorcida para uma relação desigual entre doador e receptor. Generosidade
arrogante pode ser humilhante quando a dignidade e o amor-próprio dos outros são
esquecidos. Pessoas ricas que exibem seu dinheiro ostensivamente para todos os
lados, ou anfitriões que insistem em empurrar muita comida ou bebida em seus
convidados relutantes, são exemplos de comportamento Ratna negativo. Na esfera das
emoções também, a generosidade básica de Ratna pode se tornar um fardo em vez de
um dom; por exemplo, um amor possessivo que abafa e inibe o crescimento em vez de
acalentá-lo.
11/05 A personalidade Ratna distorcida gostaria de expandir seu próprio território para
dentro do dos outros, como se a terra estivesse tentando preencher todo o espaço. O
orgulho quer construir grandes monumentos para sua própria existência,
impressionantes e despóticos, ricamente decorados com sinais ostensivos de riqueza.
O sentido de semelhança ou igualdade, por outro lado, confia em sua própria
dignidade e presença inata, e assim não tem necessidade de impressionar os outros. O
orgulho é irritadiço e defensivo, enquanto a igualdade não se sente ameaçada por
nada e não guarda ressentimentos.
122
semelhança essencial profundamente, não importa o quanto às vezes as pessoas
possam parecer estranhas para nós, nos dá o poder da simpatia e da empatia. Reações
emocionais de gostar e desgostar começam a perder sua importância, de tal maneira
que o amor imparcial e abrangente possa brotar em seu lugar. Equanimidade interior
se desenvolve a partir da visão de que a mesma oportunidade para despertar existe
em todas as circunstâncias, sejam alegres ou tristes, prazerosas ou desagradáveis,
privilegiadas ou desfavorecidas. Essas conscientizações tornam possível que todas as
qualidades espirituais do elemento terra se manifestem. A partir de um fundamento
firme, equilibrado, com uma segurança e confiança inabaláveis, a personalidade Ratna
desperta pode atuar como uma mina inesgotável de tesouro espiritual para os outros,
sem orgulho, arrogância ou possessividade.
AMITABHA
123
desenvolver como uma personalidade dependente, querendo mais e mais, nunca
sabendo quando parar. Sua qualidade de apego intenso pode resvalar para uma
possessividade em relação tanto a pessoas quanto a coisas. Nos relacionamentos,
pessoas dominadas por Padma podem se tornar excessivamente emocionais,
sentimentais e agarradas. Alternativamente, podem ficar intoxicados com seu próprio
poder sedutor e brilhante, atraindo amantes ou seguidores apenas para abusar deles e
descartá-los, ou podem se tornar enganosos e manipuladores em suas tentativas de
controlar os outros. Enquanto a tendência de Ratna é expandir e abranger tudo, a
energia Padma magnetiza e suga tudo para si.
Desejo e apego são vistos no budismo como as forças mais poderosas que nos
mantêm vinculados ao samsara vida após vida, embora a energia que os alimenta seja
também a força impulsionadora do amor, da compaixão e do esforço em busca da
iluminação. A energia da paixão é a fonte da vida, o fogo da vida. O fogo que nos
consome é também o calor que nos dá a vida e a luz que ilumina nosso caminho. Nada
seria possível sem o desejo e a paixão. É apenas o problema básico de se agarrar a um
ser permanente que os transforma em veneno. A reflexão sobre as qualidades da
família Padma nos revela de forma excepcionalmente clara que os cinco venenos não
124
podem simplesmente ser negados, mas devem ser transmutados através do
entendimento de sua verdadeira natureza em conhecimento e sabedoria.
Combinando esses três elementos, a palavra completa pode ser usada de várias
maneiras diferentes, mas relacionadas. Primeiro, ela possui o significado de
observação e atenção. O movimento de vaivém de prati muitas vezes indica
reciprocidade, como olhar para um reflexo que nos olha de volta, ou repetição, como
contemplar um objeto repetidamente. Isso continua em seu equivalente páli,
pacchavekkhana, no qual significa “reflexão e contemplação”. A imagem de Amitabha
125
parece sugerir esta ideia: ele senta em meditação, com as mãos apoiadas juntas em
seu colo e os olhos semicerrados, enquanto ele olha profundamente para seu objeto
de contemplação e alcança uma percepção profunda com sua visão interior. Essa
imagem repete a postura de Shakyamuni sob a árvore bodhi em samadhi, antes de seu
supremo despertar.
126
inadequado, mas espero que seja um pouco melhor do que “discriminação”. Pelo
menos ela traz consigo a implicação de olhar com cuidado as coisas e prestar atenção a
detalhes individuais.
AMOGHASIDDHI
127
No quarto quadrante da mandala, na direção norte, está Amoghasiddhi, o Buda
do Sucesso Infalível. Sua família pode ser conhecida como Karma ou como Samaya.
Karma significa “ação” e samaya, “uma promessa” ou “compromisso”. O supremo
compromisso é atingir a iluminação e conduzir todos os seres para fora do sofrimento
do samsara. Combinando essas duas ideias, Amoghasiddhi representa a atividade
iluminada de todos os budas, cumprindo o compromisso deles com o despertar
universal. Assim como tem dois nomes, essa família também tem dois símbolos: um é
uma espada, que simboliza a energia dinâmica e a força penetrante; o outro é um vajra
duplo, dois vajras na forma de uma cruz, que expressam a universalidade da ação
iluminada, espalhando-se nas quatro direções. Amoghasiddhi levanta sua mão direita
com a palma para a frente, como se empurrasse o perigo para longe, em um gesto de
destemor, assim como Shakyamuni destemidamente se opôs às investidas furiosas de
Mara, completamente confiante em seu sucesso.
128
características de Karma. Mas, qualquer que seja o campo escolhido, a perspectiva da
família Karma é de ver a vida como uma chamada à ação: se a pessoa não conquista,
então não é ninguém.
129
comparando-se com os outros. Na vida espiritual, podem ser inclinados a tratar o
caminho como uma pista de corrida, com a iluminação como um prêmio a ser
conquistado no final. Podem ser impacientes e impetuosos. De início, a vida parece
ser um desafio motivador, mas finalmente pode se tornar uma luta esmagadora: a
inspiração original do que quer que seja por que estejam se esforçando fica perdida na
urgência de superar os obstáculos, e eles acabam enxergando apenas inimigos contra
quem lutar.
VAIROCHANA
130
roda com oito pontas, é o símbolo da família Buda, e é também o símbolo do próprio
budismo, o nobre caminho óctuplo.
131
tornando-se mais e mais capturado na rede que ele criou para si próprio. Para o ego,
essa teia não se parece mais com uma armadilha, mas como um casulo suave e morno,
convidativo e protetor. Embrulhado de forma segura em sua maneira habitual de
perceber a vida, a última coisa que ele quer é ser acordado e desnudado.
132
A família Buda não tem uma afiliação específica com uma estação ou uma hora
do dia. Em termos de qualidades visuais e assim por diante, ela parece neutra por ser
tão inclusiva; como Trungpa Rinpoche observou, é bastante insípida e desinteressante!
Ela incorpora a totalidade do tempo e do espaço, e forma o pano de fundo para as
manifestações mais características das outras famílias.
Os cinco modos do saber são essencialmente um, mas podemos olhar para eles
de diferentes ângulos, como as facetas de um cristal que brilha com diferentes cores,
equilibrando e complementando uma à outra. De uma certa forma, podem ser vistos
como uma progressão, embora cada um dependa da realização simultânea dos outros.
Em uma versão tântrica da iluminação do Buda, ele realizou todos os cinco em
sequência, começando com o conhecimento do espelho e culminando com o
conhecimento todo abrangente.
37
Blues, neste caso, refere-se ao estilo musical originado na América do Norte que canta a tristeza e a
solidão. (N. do T.)
133
de a natureza essencial de todas as coisas ser o vazio, o conhecimento equalizador é
inerente no conhecimento do espelho; e pelo fato de todas as coisas surgirem desse
vazio, o conhecimento investigador também surge simultaneamente. Vazio e
aparência não podem ser separados; unidade e multiplicidade não podem ser
separadas; semelhança e diferença não podem ser separadas.
A iluminação não pode existir para alguém só. Enquanto a pessoa sente a
separação entre o ser e os outros, não está plenamente desperta. Portanto, ensina-se
que os bodhisattvas só podem salvar todos os seres compreendendo o paradoxo que,
na verdade, não existem seres para serem salvos e ninguém para salvá-los. Ao mesmo
tempo, os bodhisattvas só podem ajudá-los por meio da compreensão de suas
naturezas individuais, assim como pela visão de suas naturezas de buda. O poder
irresistível e a eficácia da ação iluminada só podem resultar da motivação
completamente altruísta, isto é, das percepções do vazio, da igualdade e do amor,
dentro da experiência toda abrangente da realidade absoluta. Portanto, todos os cinco
aspectos do conhecimento fluem com naturalidade um em direção ao outro e são
mutuamente realizados.
134
pertencem às famílias, mas todo aspecto possível da existência. Podemos reconhecer
qualidades Vajra, Ratna, Padma, Karma e Buda em tudo ao nosso redor: nas estações,
paisagens, países, ideias, obras de arte, filmes, literatura, moda e assim por diante,
infinitamente. Não existe necessidade de nos restringirmos às conexões tradicionais;
associações de outras culturas e outros tempos podem trazer percepções inesperadas
para a natureza das famílias. O importante é não dividir tudo e todos em categorias.
Classificar pessoas e coisas dessa maneira pode facilmente se tornar um jogo
fascinante e bastante superficial. O essencial é usar essas imagens e analogias para ir
além da mente discursiva e alcançar uma percepção intuitiva da presença toda
abrangente do despertar em suas infinitas manifestações.
135
posição diferente na mandala. Teoricamente, qualquer um dos cinco pode ser
colocado no centro, que por isso envolverá uma sequência de deslocamentos.
136
Capítulo Oito
Onde existem os seis reinos? No sentido exterior, eles aludem a todas as formas
possíveis de vida consciente, divididas em seis tipos principais. Entre eles, temos
conhecimento direto apenas da vida humana e da animal. Algumas pessoas acreditam
em fantasmas, mas a existência real de seres viventes nos reinos do céu e do inferno é
provavelmente uma ideia muito estranha nos dias de hoje, para muitas pessoas no
Ocidente, embora não fosse assim no passado, e algo perfeitamente admitido no
budismo.
38
Existem muitos livros excelentes sobre mitologia hindu, que é muito vasta para ser abrangida em um
único volume. Um dos melhores trabalhos de referência é de Alain Daniélou, The Myths and Gods of
India, Vermont, Inner Traditions International, 1991 (publicado originalmente como Hindu Polytheism,
Nova York, Bollingen Foundation, 1964). Para narrativas e interpretações inspiradas sobre alguns dos
mitos, ver de Heinrich Zimmer, Myths and Symbols in Indian Art and Civilization, Nova York, Bollingen
137
Para tristeza dos apreciadores de histórias, a maioria dessas lendas não se tornou
parte da tradição budista, porque pertencem ao drama do samsara e não foram
consideradas relevantes para os ensinamentos do Buda sobre a liberação do samsara.
O sistema dos seis reinos é baseado na psicologia das várias classes de seres em vez de
se basear nas suas origens mitológicas. Mas algumas das histórias que mencionarei
neste capítulo jogam luz sobre a natureza dos reinos. No fim das contas, o Buda nunca
rejeitou sua própria herança cultural; apenas contestou certas maneiras de interpretá-
la, e seus pressupostos básicos certamente permaneceram como parte da visão de
mundo budista.
Foundation, 1946, e The King and the Corpse, Nova York, Bollingen Foundation, 1948. Uma adaptação
recente e prazerosa de uma seleção de histórias está em Roberto Calasso, Ka, Londres, Jonathan Cape,
1998. Também recomendaria todos os livros de Wendy Doniger O’Flaherty.
138
Tradicionalmente, essa interpretação dos seis reinos tem sido enfatizada como
um incentivo à prática do dharma39. Em uma cultura onde a crença na reencarnação é
aceita, a contemplação sobre o ciclo infindável de vida após vida é muito poderosa e
eficaz. Mas para aqueles de nós que não cresceram com essas ideias, como parte de
seu passado cultural, seria artificial simplesmente aceitá-las como uma questão de fé.
Precisamos chegar a uma compreensão mais profunda de seu significado interior,
antes que possamos integrá-las à nossa visão de vida. Muitos budistas ocidentais têm
dificuldades com o conceito de renascimento nos seis reinos, ou mesmo com o
renascimento por si só. Ninguém pode nos provar o que existe além da morte.
Entretanto, podemos investigar nossas mentes aqui e agora e descobrir todos os
mundos contidos nelas. Podemos descobrir o que a vida como um ser humano
realmente significa neste exato momento, e isso pode nos levar a uma crença razoável,
baseada na experiência presente, sobre o que acontece após a morte.
Trungpa Rinpoche sempre falou sobre os seis reinos como estados mentais e
enfatizou a importância de compreendê-los dessa forma, enquanto temos a
oportunidade nesta vida. Ele se referia a eles como estilos de aprisionamento, estilos
de confusão, estilos de insanidade e mundos de fantasia41. São todos estratégias para
manter o que ele chamava de jogos do ego em face à possibilidade do despertar.
Surgem a partir dos venenos, e quando permitimos que uma dessas emoções
39
Descrições tradicionais dos seis reinos podem ser encontradas em Gampopa, The Jewel Ornament of
Liberation, traduzido por H. V. Guenther, Berkeley, Shambhala, 1971, Capítulo 5, e Patrul Rinpoche, The
Words of My Perfect Teacher, Londres, Harper Collins, 1994, Capítulo 3. Ambos os livros cobrem muitos
outros aspectos do budismo.
40
John Milton, Paraíso perdido, Livro 1.
41
Ver especialmente Chögyam Trungpa, The Myth of Freedom, Boulder, Shambhala, 1976. Outros
capítulos e referências aos seis reinos podem ser encontrados em muitos de seus livros.
139
poderosas se desenvolva e tome conta de nossas vidas, encontramo-nos no reino em
particular associado a ela. 0 veneno corroendo o centro do ser que habita cada reino
se origina do medo básico de perder o ego, expresso nessas seis formas características.
Todos os reinos são baseados em apego e avidez, não nos permitindo que nos
liberemos em direção ao espaço.
As características dos seis reinos partilham muitos aspectos com aqueles das
cinco famílias. Em Liberação através da audição, os cinco budas pacíficos aparecem
sucessivamente por cinco dias, e simultaneamente, a cada dia, um caminho de luzes
coloridas leva a um dos reinos. Raios brilhantes, fascinantes, refulgem a partir do
coração dos budas, e à pessoa falecida é apresentada uma escolha entre a luz
penetrante do despertar e a luz mais suave e confortável dos caminhos de volta à
existência samsárica, criada pelos venenos. Aqui existe uma dificuldade óbvia em
relacionar um sistema sêxtuplo a um outro quíntuplo. O método tradicional é
identificar um sexto veneno, ganância, como sendo distinto da paixão. Seres infernais
são associados com a agressão, fantasmas famintos com a ganância, animais com a
ilusão, humanos com a paixão, deuses ciumentos com a inveja, e deuses com o
orgulho. Entretanto, isso não é inteiramente compatível com a mandala dos cinco
budas, e como resultado o texto propõe algumas conexões incomuns, que são
discutidas ao lidar com os reinos individualmente.
Trungpa Rinpoche também relacionava os seis reinos aos seis bardos. Seres
humanos em todos os reinos passam por todos os bardos, mas existe também uma
correspondência individual especial. Aqui os bardos são vistos como destaques da
natureza de cada reino. A experiência intermediária possui uma qualidade extrema: é
140
como se estivéssemos na borda de um rochedo escarpado, prontos para pular no
espaço, mas não temos certeza se esse pulo irá nos matar ou nos libertar. Isso
acontece sempre que a qualidade intensificada, ampliada, de uma emoção atinge o
seu pico; subitamente ela apresenta uma brecha, que é o portal do despertar.
Podemos ou seguir através dele e despertar do sonho do reino no qual estamos, ou
permanecer aprisionados em nossos padrões habituais de pensamento.
O reino dos seres infernais é o mais baixo de todos os reinos e é causado pela
agressão extrema. É o mais intenso, mais confinado e mais claustrofóbico. Todos os
venenos emocionais são viciadores; quando estamos sob o seu domínio, parecem ser
absolutamente necessários para nos manter em movimento, e fornecem uma razão
para nossa própria existência. De algumas maneiras, a agressão é o mais difícil de se
livrar, porque nos faz sentir muito fortemente que estamos com a razão. O problema é
sempre culpa de alguma outra pessoa, e parece não haver nada que possamos fazer a
não ser reagir com ódio ou raiva. Externar nossa agressividade pode nos proporcionar
um alívio de curto prazo, mas não produz de fato o resultado desejado. Queremos
destruir o mundo ao nosso redor que está nos causando tanta dor, mas em vez disso
descobrimos que o mundo é um espelho cheio de nossos próprios reflexos. Nossa
própria agressividade volta até nós de todos os ângulos, ampliada e transformada em
terríveis alucinações. Ela deságua em uma situação de extrema claustrofobia, sem
espaço para onde se abrir e sem tempo para relaxar. É por isso que, em todas as
tradições, o inferno é o mundo subterrâneo: ele jaz no mais profundo da terra,
esmagado e fechado por todos os lados, não oferecendo nenhuma esperança de
escapar.
141
Fúria abrasadora e raiva incandescente conjuram a atmosfera dos infernos
quentes. Gostaríamos de queimar o mundo inteiro com a força de nossa raiva, mas em
vez disso descobrimos que nós mesmos estamos sendo consumidos. Cheios da
necessidade de vingança, gostaríamos de aterrorizar nosso inimigo, mas em vez disso o
terror nos assombra em sonhos e mesmo nas horas em que estamos acordados.
Pessoas nesse estado mental não conseguem ver sua própria agressividade e não têm
consciência do efeito que causam nas outras; sentem que só elas estão sofrendo e que
só elas são vítimas da hostilidade dos outros. Tudo que fazem volta-se para elas com o
mesmo ódio que arde em seus corações. Mesmo os elementos juntam-se na
conspiração contra elas. A terra torna-se um ferro incandescente; a água torna-se
metal derretido; o fogo irrompe de todas as fissuras do solo; e o ar é um vento
sufocante e abrasador. Não existe saída em nenhuma direção.
No primeiro nível dos oito infernos quentes, os habitantes atacam e matam uns
aos outros incessantemente. Essa imagem é algo que podemos reconhecer na vida
humana, quando a agressão cega faz com que as pessoas ataquem com violência em
todas as direções, enxergando em todo mundo um inimigo. Nos infernos quentes
restantes, as alucinações aumentam até extremos fantásticos. Os seres de lá são
incessantemente atormentados pelo servos de Yama, o Senhor da Morte, de formas
cada vez mais horríveis. Mas esses torturadores não são criaturas exteriores
semelhantes a demônios; são as projeções da mente consumida pelo ódio. Os únicos
seres conscientes nas regiões do inferno são aqueles que lá sofrem. Quanto mais forte
o apego, mais forte o senso de projeção, de tal forma que nossa situação interior
parece ser completamente dependente das circunstâncias exteriores.
Nas descrições tradicionais, uma série de infernos vizinhos cercam o mais terrível
dos infernos quentes. Existem valas de carvão ardente, pântanos cheios de corpos em
putrefação, amplas estradas pavimentadas com navalhas afiadas, florestas cujas
árvores possuem folhas de lâminas e espinhos de metal, e rios de água fervente. A
distância, parecem fornecer uma rota de fuga dos fogos do inferno, portanto a sua
simples visão instila alegria e esperança naqueles sofredores que foram finalmente
libertados. Mas não é tão fácil se livrar da intensidade do apego que fez alguém
mergulhar em uma experiência tão extrema quanto os reinos infernais. Obrigados a
peregrinar pelos infernos vizinhos, é como se alguém fosse assombrado por pesadelos
recorrentes e fosse arremessado de volta continuamente para um estado de
sofrimento, incapaz de se libertar.
142
depressão e do desespero, raiva dirigida e aversão enraizada contra nós mesmos.
Sentimos um total autodesprezo e não podemos imaginar como jamais seríamos
capazes de mudar, porque somos e sempre fomos tão mesquinhos. Como se
estivéssemos trancados em um pilar de gelo, somos incapazes de nos comunicar ou
responder aos outros. Já que não existe senso de relacionamento, não existem
torturadores externos aqui; é um mundo de isolamento encerrado em si próprio. Os
corpos nus dos sofredores estalam e se empolam no frio intenso, produzindo a
aparência de flores de lótus vermelhas e azuis, que dão seus nomes a alguns desses
infernos. Aqui, assim como nos infernos quentes, não existe senso de espaço ou de
amplidão. A terra é como ferro congelado; a água solidificou-se em gelo; o ar corta
como uma espada. Tudo se tornou sólido, duro e cortante. Estamos cercados por
paredes de gelo, nossos próprios reflexos nos assombram e nossas vozes ecoam de
volta até nós.
Diz-se que a vida nos vários infernos dura bilhões de anos pelas medidas
humanas. A agressão cria um ambiente de total constrição no qual nos sentimos
aprisionados para sempre; perdemos toda a esperança e não podemos sequer
começar a enxergar uma saída. Para um pessoa em completa desgraça, o tempo mal
parece passar, ou talvez seja mais verdadeiro dizer que o tempo perde todo o seu
significado. Não existe mais sentido de passado ou futuro, apenas o insuportável
presente, que parece eterno. Ainda assim, o apego dos seres viventes à sua própria
identidade é tão forte que parece indestrutível. Eles desejam morrer e pôr um fim ao
143
seu tormento mas não podem; são cortados em pedaços muitas e muitas vezes, e
sempre revivem.
Mas mesmo os resultados das ações mais negativas enfim acabam. As sementes
da bondade gradualmente emergem na corrente mental, e um ser infernal pode
começar a sentir remorso ou piedade por um colega sofredor. Aquele pequeno
lampejo de compaixão é o suficiente para começar o processo que finalmente leva ao
nascimento em um reino superior.
144
O REINO DOS FANTASMAS FAMINTOS
Os “fantasmas” originais são apenas um grupo entre os muitos que habitam este
reino; seu nome sânscrito é preta, que significa simplesmente “os finados”.
Originalmente, preta se referia a um espírito de um morto cujos ritos funerários não
tinham sido desempenhados, por isso ele não podia continuar para seu destino de
renascimento ou liberação. Ele permaneceria assombrando o local de enterro ou de
cremação, esperando para receber as oferendas rituais que o libertariam. Uma
informação casual interessante joga luz sobre a natureza dos pretas a partir de uma
lenda hindu que diz respeito ao deus Brahma, que personifica a energia criativa do
desejo. Por meio de seu poder mental, ele criou a primeira fêmea, a filha nascida de
sua mente, mas imediatamente sua natureza o impeliu a sentir desejo por ela. Já que
ele personifica também a bondade, a verdade e a pureza, lutou para controlar seus
sentimentos, e os pretas nasceram do suor que escorreu de seu corpo durante esse
intenso conflito interior. Em muitas lendas, outras estranhas criaturas surgem de
maneira similar a partir do resíduo do desejo ou da raiva que, embora tenham sido
vencidos, não podem ser inteiramente destruídos; em outras palavras, eles sempre
dão origem a consequências kármicas, fantasmas que permanecem para nos
assombrar.
145
tornaram identificados com os espíritos dos mortos que procuram por um útero para
renascer. A consciência da pessoa morta durante o bardo da existência é conhecida
como um gandharva, e este reino dos fantasmas famintos está ligado ao bardo da
existência. Os gandharvas no bardo estão fora do contexto dos seis reinos, já que ainda
não renasceram, mas, se ficarem muito tempo no bardo sem entrar em um útero,
podem consequentemente se tornarem fantasmas famintos permanentes, no sentido
pleno da palavra.
Vários espíritos habitam o reino dos fantasmas famintos, incluindo a maior parte
da vasta série de seres da mitologia indiana que não são nem plenamente humanos,
animais ou divinos. Existe um grande número de espíritos espectrais, atormentados,
que assombram áreas de cremação e outros locais desolados, incluindo alguns que
entram em cadáveres e os reanimam43. Muitos deles são malévolos e deformados de
alguma maneira, constantemente criando problemas para outras criaturas viventes,
causando infortúnios, doenças ou insanidade. Alguns sofreram mortes violentas e
ainda se encontram desnorteados pela dor e pelo medo, e alguns desejam machucar
os outros em função dos ferimentos que lhes foram infligidos em vidas anteriores, tais
como espíritos femininos que tentam prejudicar crianças e mulheres grávidas.
Em seguida existe toda uma hoste de forças negativas que provocam doenças
físicas e mentais. Nos livros de medicina tibetana, são frequentemente mencionados
como demônios e levados muito a sério nos diagnósticos e no tratamento 44. Existe
sempre algum tipo de ligação kármica do passado entre essas forças negativas e suas
vítimas. Tais conexões podem ser resultado de uma energia emocional muito forte ou
de algum tipo de fixação que passa a ter vida própria, ou então podem surgir de danos
que foram causados aos outros.
43
Estes são os vetalas, sobre os quais existe uma coleção maravilhosa de histórias em sânscrito.
Algumas delas aparecem em The King and the Corpse (ver nota 38), e elas estão inteiramente traduzidas
em Sivadasa, The Five-and-Twenty Tales of the Genie, Nova Délhi, Penguin, 1995.
44
Uma excelente fonte de informação é Terry Clifford, Tibetan Buddhist Medicine and Psychiatry,
Wellingborough, Aquarian Press, 1984.
146
são obcecados com suas próprias necessidades e isso os torna mentirosos e
imprevisíveis.
Esses vários espíritos podem viver na terra, sob a superfície, no oceano ou no ar.
Embora existam muitos tipos diferentes, tradicionalmente todos são retratados como
um único tipo, uma espécie de caricatura que expressa sua natureza faminta. Possuem
bocas pequenas, pescoços longos e finos e grandes barrigas inchadas, que tanto
podem ser um sinal de fome quanto de gula. Sua inabilidade para satisfazer sua fome
se manifesta de diferentes maneiras, dependendo do fato de eles terem percepções
distorcidas do mundo externo, de sua própria condição interior, ou ambos.
147
tentar satisfazer suas próprias necessidades, de forma que não podem se permitir
sentir a dor dos outros ou incentivar o menor impulso de generosidade. O nascimento
nessa condição de existência é o resultado de extrema avareza, maldade e sovinice.
148
expulso do local onde há comida e bebida é um exemplo dessas pessoas que, no
fundo, não acreditam que merecem obter o que desejam. Ninguém na verdade os
impede, mas eles enxergam todos os tipos de obstáculos, de forma a negar a si
mesmos a oportunidade de realização.
Aqueles que não são obstruídos externamente, mas que mesmo assim são
incapazes de consumir e utilizar a alimentação, comportam-se como os fantasmas com
estômagos grandes e bocas pequenas. Adquirem e colecionam todo tipo de coisa, sem
obter nenhum benefício ou satisfação real. Para utilizar uma metáfora ligada à comida,
eles podem consumir vastas quantidades de conhecimento e informação, sem digeri-
las. Algumas vezes não saboreamos a experiência do momento presente, porque
estamos tão ansiosos por capturá-la para o futuro: um estudante atento em tomar
notas perde a essência do que está sendo dito; um turista ocupado tirando fotografias
não desfruta realmente da qualidade viva da cena. O que quer que recebamos através
de qualquer de nossos sentidos é alimento para todo o nosso ser, mas não pode nos
alimentar a menos que a ingiramos de maneira adequada e completa.
Quando a comida não realiza o seu propósito de alimentar, causa mal- estar;
essa é a situação ilustrada pela terceira categoria de fantasma faminto. Se o próprio
querer se torna mais importante, quando obtemos o que queremos, perdemos o
interesse, ou descobrimos que aquilo é inútil para nós, ou que na verdade não
queríamos aquilo: virou palha. Algumas vezes conseguimos o que queremos e
descobrimos que aquilo é um fardo pesado, como um pedaço de ferro; ou que nos
enoja e nos revolta, como pus. Se usamos mal os dons e oportunidades desta vida por
causa de ganância e maldade, podemos terminar nos sentindo desapontados,
enganados e amargos, ao ponto de queimarmos por dentro de desespero. Isso é
particularmente verdadeiro na esfera espiritual. Se seguimos um caminho com uma
atitude de apego — o que Trungpa Rinpoche chamava de materialismo espiritual —, o
que quer que aprendamos pode se tornar um obstáculo para a realização genuína.
Este reino possui afinidades tanto com a família Padma quanto com a Ratna. Em
Liberação através da audição, está ligado a Amitabha, o buda da família Padma. O
caminho que leva até ele é descrito como “produzido por paixão e maldade” e
“acumulado de intensa paixão”. Emoções tais como paixão, desejo, ganância e querer
são normalmente consideradas características de Padma. Entretanto, Trungpa
Rinpoche relaciona o reino dos fantasmas famintos à família Ratna. Dois outros textos
do mesmo ciclo de Liberação através da audição, chamados As cem homenagens e A
149
prática do dharma45, só mencionam maldade e avareza como causa de nascimento
como um fantasma faminto. Isso se encaixaria na psicologia de Ratna, já que é o outro
lado da generosidade e expansividade daquela família. Orgulho é o veneno
normalmente associado com Ratna, mas aqui, em vez de orgulho de riquezas, é um
orgulho distorcido no sentido da privação, inseparável do da pobreza. É um vazio oco,
pedindo para ser preenchido.
45
Em tibetano, brgya phyag sdig sgrib rang grol zhes bya ba bar do thos grol gyi cha lag e chos spyod
bag chags zhes bya ba bar do thos grol gyi cha lag, respectivamente.
150
distinguem o bem e o mal. Pela mesma razão, são considerados inferiores aos seres
humanos e, em termos cristãos, sem alma. A visão budista é inteiramente diferente.
Todos os seres conscientes em todos os seis reinos possuem a natureza de buda. Mas
pelo fato de sua natureza essencial estar obscurecida pela ignorância, estão
igualmente sujeitos à lei do karma, e a lei do karma é simplesmente uma questão de
causa e efeito. Já que tudo está mudando continuamente e nenhuma condição é
permanente, eles consequentemente renascerão em estados mais favoráveis. Todo ser
vivente já experimentou nascimento em todos os seis reinos repetidamente. Os reinos
dos animais, dos fantasmas famintos e dos seres infernais são chamados de reinos
inferiores, porque são formados por uma predominância de karma negativo, e são
também muito difíceis de escapar, porque esse tipo de karma forte e negativo tende a
se autoperpetuar. O tormento dos seres infernais produz ainda mais raiva e ódio, e o
sentimento de privação dos fantasmas famintos torna-os ainda mais avarentos. Da
mesma forma, o sofrimento sentido pelos animais leva-os continuamente a mais
perplexidade e confusão.
Os animais têm seu próprio tipo de inteligência, que é apropriada ao seu estado
de existência. Eles agem direta e instintivamente, sem dúvidas ou hesitações; possuem
sentidos extremamente aguçados, âmbitos de percepção que nós perdemos, e
algumas vezes o que parece ser poderes de percepção extra-sensorial; também
possuem habilidades físicas e de coordenação maravilhosas. Mas seu intelecto e poder
de raciocínio são pouco desenvolvidos. Não podem formular perguntas sobre sua
existência ou examinar suas próprias mentes. Simplesmente vivem suas vidas com
total envolvimento e absoluta absorção.
Quase toda a atividade dos animais está dirigida para a imediata satisfação de
suas necessidades. São extraordinariamente pacientes, persistentes e obstinados
nessa busca; instintivamente se beneficiam de toda oportunidade que se apresente, e
não se preocupam com as consequências para eles ou para os outros. Isso só é possível
porque lhes falta a visão de um horizonte mais amplo; o seu mundo é estreitado na
direção de sua própria sobrevivência e da propagação de sua espécie.
151
Muito do sofrimento do reino animal deriva da luta pela sobrevivência. Na
natureza, muitos animais estão continuamente ou matando ou sendo mortos. As
presas estão em constante medo de perder suas vidas; não podem relaxar por um
único momento. Os predadores se exaurem caçando, enquanto aqueles que não são
carnívoros passam todas as suas horas acordadas procurando por comida; eles estão
inteiramente à mercê do ambiente e do clima. Dessa forma, estão continuamente
reforçando seu estado de ilusão autocentrada, que os prende ao renascimento no
mesmo reino, ou criando karma de gula ou agressão, que pode finalmente levá-los ao
reino dos fantasmas famintos ou dos seres infernais. Mas, acima de tudo, os animais
sofrem nas mãos dos seres humanos. A despeito de sua força física quase sempre
maior do que a nossa, nós os caçamos, os matamos, destruímos seus hábitats, os
escravizamos, os exploramos e abusamos deles, e somos capazes de fazer tudo isso
por causa de um poder mental maior. Por causa da falta do tipo certo de inteligência,
eles se permitem ser capturados, manipulados e controlados.
152
Seres humanos são parecidos com animais, porque são facilmente controláveis
manipuláveis pela sociedade, pela religião, pela educação, pela publicidade e todos os
tipos de influências. É a parte ignorante e crédula de nossa natureza que permite que
sejamos usados dessa maneira.
153
De acordo com a antiga cosmologia indiana, raças de humanos habitavam os
quatro diferentes continentes ou mundos (literalmente, “ilhas”), situados nos pontos
cardeais ao redor do monte Meru, o eixo do nosso sistema de mundo. Nossa morada
era o continente sul, Jambudvipa, a ilha da Maçã Rosa. Originalmente, Jambudvipa
abrangia apenas a Índia ou o Sul da Ásia, mas hoje em dia significa todo o planeta
Terra.
Quando refletimos sobre o reino humano, devemos nos lembrar mais uma vez
de que estamos olhando aquilo que o distingue particularmente dos outros reinos, em
vez de descrever todo o espectro da existência humana. Como seres humanos, em um
nível psicológico, passamos continuamente através de todos os seis reinos durante o
curso de nossas vidas diárias, embora exista uma qualidade humana quintessencial
que permeia todas as nossas experiências. A correlação tradicional é com a família
Padma, embora em Liberação através da audição seja com a família Ratna. O reino
humano tem grandes afinidades com ambas, assim como o reino dos fantasmas
famintos, mas aqui existe um sabor completamente diferente daquele dos fantasmas
famintos.
É esta qualidade que dá à vida humana seu valor único na visão budista. Ela é
chamada de preciosa vida humana, porque entre os seis reinos ela oferece a melhor
oportunidade para praticar o dharma e atingir a iluminação. Aqui estamos falando
sobre a encarnação como ser humano, em vez de experimentar o reino humano como
154
um estado mental temporário. Nascemos com um anseio de descobrir o significado de
nossa existência, um desejo de atingir a perfeição e um instinto para o
relacionamento; todas essas qualidades nos permitem receber a comunicação do
dharma e abrir nossas mentes para o espaço do despertar.
Por contraste, Trungpa Rinpoche dizia a um certo ponto que “o reino humano
parece ter menos orgulho do que qualquer dos outros reinos”46. Ele explicava que
queria se referir ao orgulho da autossatisfação e da complacência. De uma maneira
geral, é uma característica humana não se acomodar sobre as conquistas feitas, não
permanecer satisfeito, mas sempre se mover em direção a alguma coisa nova. Existe
uma energia inquieta, pesquisadora na natureza humana que evita que a pessoa fique
imobilizada, e isso torna possível estar aberto a novas possibilidades e receptivo aos
ensinamentos espirituais.
46
Ver Transcending Madness, p. 244 e 253.
155
humanidade dominar a natureza em tal extensão. O termo sânscrito para orgulho é
mana, que está ligada às palavras mente e homem. O Homo sapiens evoluiu por meio
do desenvolvimento do poder mental, e essa mente, perguntando sobre tudo com
curiosidade insaciável e inventividade ilimitada, construiu a civilização da qual tanto se
orgulha. A história da raça humana realmente parece ser um drama de paixão e
orgulho entremeados.
47
Natural Liberation, p. 150.
48
Transcending Madness, p. 295.
156
e paz. Esse é um desafio supremo para as pressuposições básicas da mentalidade
humana. Sua cuia de pedinte vazia apresenta o paradoxo final, e vê-la pode
subitamente mergulhar a mente no espaço aberto do despertar.
Nessas lendas, em geral descobrimos que algum impulso de ciúme deflagra sua
agressividade, portanto o nome deuses ciumentos é bastante apropriado. Pode ser
ciúme da mulher de alguém, ou de status ou de posses, agravado pela convicção de
que todas essas coisas pertencem a eles por direito e lhes estão sendo negadas.
Algumas vezes parecem revolucionários: bons ou maus, dependendo de qual lado eles
apoiam. São retratados na roda da vida como guerreiros vestidos com armaduras e
portando armas. Possuem todas as qualidades associadas a guerreiros e heróis ao
longo da história: coragem, liderança, dinamismo e, acima de tudo, tremenda energia.
São capazes de fazer grandes benefícios assim como grandes malefícios, e seu caráter
vai de nobre e altamente civilizado até rude, impiedoso e tirânico, não muito diferente
dos ditadores em nosso mundo. São famosos por seus poderes mágicos, e se forem
157
atraídos pela religião, geralmente é com a intenção de ganharem poder. Muitas vezes
atingem níveis espirituais muito avançados por meio de práticas ascéticas, que tendem
a perseguir com ambição concentrada, como tudo o que fazem.
Outro grande tesouro que os deuses possuem e que falta aos deuses ciumentos
é o elixir da vida. Nesse caso, o ciúme parece ser plenamente justificado, já que os
deuses o ganharam através da astúcia e da fraude. A despeito de seu amor pela
verdade, muitas histórias mostram os deuses seguindo a verdade apenas literalmente,
e não em espírito. Nessa lenda em particular, os deuses planejaram erguer uma
reserva de tesouros que estavam nas profundezas do oceano cósmico, e que incluía a
árvore dos desejos e o elixir da vida (amrita ou soma). Fizeram uma trégua com os
deuses ciumentos e os persuadiram a ajudá-los a revolver o oceano, uma tarefa que
necessitava de todas as suas forças combinadas. Muitos tesouros maravilhosos
apareceram; cortesãs divinas, animais miraculosos, as cinco árvores do paraíso, armas
invencíveis e joias mágicas emergiram das águas agitadas, como manteiga originando-
se do leite. Finalmente o próprio elixir emergiu, trazido para o alto pelo médico divino,
no que os deuses ciumentos, espertos como sempre, apoderaram-se dele e quase
conseguiram roubá-lo. Mas o deus Vishnu transformou-se em uma linda e encantadora
158
mulher, a personificação da ilusão, e conseguiu enganá-los e fazê-los desistir dele.
Como resultado dessa fraude, os deuses ciumentos estão condenados a sofrer
ferimentos terríveis e a morrer em grande número durante suas batalhas, enquanto os
deuses são milagrosamente curados e vivem vidas imensamente longas, graças ao
poder do elixir.
Essa história joga uma luz interessante sobre a mentalidade dos deuses
ciumentos: como no ditado, “só porque você é paranoico, não quer dizer que não haja
alguém lhe perseguindo”. Seu ressentimento pode muito bem ter sido causado por
algum tipo de injustiça, mas é a natureza apegada do ego que produz a reação
distorcida de ciúme e inveja. Então, assim como com os outros venenos, um círculo
vicioso se cria: eles alimentam continuamente suas suspeitas e encontram mais causas
para o ressentimento, provocando uma paranoia sempre crescente.
O caminho que leva ao reino dos deuses ciumentos aparece no quinto dia, junto
com a mandala de Amoghasiddhi, senhor da família Karma. Suas características são
muito próximas da descrição da personalidade Karma. Eles sempre sentem que seus
vizinhos têm alguma coisa melhor, que a grama é sempre mais verde do outro lado da
cerca. O que quer que possuam, temem que alguém esteja planejando roubá-la, assim
como eles o fariam, portanto têm de permanecer constantemente em guarda. Estão
sempre preparados para a guerra; esse tema é ao mesmo tempo seu trabalho e sua
diversão. A diplomacia tem sido descrita como a guerra conduzida por outros meios, e
deuses ciumentos têm as qualidades dos diplomatas ou espiões, para quem qualquer
relacionamento é sempre uma oportunidade para intriga. Com seu intelecto aguçado,
imaginam que todo mundo está jogando algum jogo complicado ou engajado em
alguma conspiração. Na vida espiritual, eles são ambiciosos; sua energia os leva a
extremos, e podem com facilidade se tornar fanáticos. São intensamente competitivos,
vendo rivais em toda parte. São manipuladores e usam as pessoas para seus próprios
fins. Estão constantemente comparando sua situação com a dos outros e são rápidos
para sentir qualquer insulto, real ou imaginado.
Este reino está relacionado com o bardo desta vida, durando do nascimento até
a morte, o que também é baseado na velocidade. Uma vez que o estado mental
ganhou existência, deve ser mantido em movimento; o ímpeto emocional deve ser
159
mantido. Simplesmente estar vivo acarreta uma batalha constante contra as forças da
decadência, e a energia furiosa dos deuses ciumentos é o instinto de sobrevivência
levado a seu extremo. Portanto a brecha, a pausa em sua atividade que poderia abrir
um vislumbre de liberação para eles, é a experiência culminante de estar equilibrado
entre a velocidade intensa e a total imobilidade, ou entre ganhar e perder, e a
incerteza de saber qual é qual.
Neste reino, o buda aparece como um guerreiro, de cor verde, segurando uma
espada e um escudo, e vestido com uma armadura brilhante. Seu nome é Vemachitra,
Aquele que Usa uma Vestimenta Brilhante. Os deuses ciumentos não seriam capazes
de ouvir a mensagem de compaixão do buda; não acreditariam nos seus motivos e
desprezariam sua suavidade. Já que percebem tudo como um inimigo, a única maneira
que ele pode se comunicar com eles é em seu próprio território, cara a cara como
guerreiros. Ele não se manifesta como uma deidade colérica com uma forma terrível,
mas é invencivelmente pacífico e absolutamente poderoso. Ele apenas bloqueia todos
os ataques dos deuses ciumentos e faz com que a sua correria impetuosa pare, de tal
forma que ao confrontar o buda, eles sejam forçados a pelo menos se confrontarem
consigo mesmos.
O reino dos deuses é um reino de prazer: prazer material em seus níveis mais
inferiores e prazer espiritual em seus níveis mais elevados. É o reino mais elevado
dentro do samsara, portanto está situado no topo da roda da vida. Assim como as
ideias populares de paraíso em todas as culturas, é um lugar de prazer e perfeição, o
ideal pelo qual os seres humanos se empenham. Os deuses desfrutam de tudo que
poderiam possivelmente desejar, são altamente inteligentes e criativos, possuem
poderes mágicos e são capazes de atingir os níveis mais avançados de meditação.
Mesmo assim, estão confinados dentro do samsara e são parte do interminável ciclo
da roda da vida.
160
determinados pela experiência sensorial, indo do quase inteiramente doloroso nos
infernos até o quase inteiramente prazeroso nos paraísos. Existem seis paraísos no
mundo do desejo dos deuses, habitados por várias classes de deidades, e todos
contendo palácios mágicos, jardins de prazer magníficos e todo o tipo de perfeição e
satisfação que poderia ser imaginado.
De acordo com a mitologia, o mais inferior desses paraísos está situado nas
encostas do monte Meru e é regido pelos quatro grandes reis dos pontos cardeais.
Parece ser um tipo de paraíso bastante mundano e materialista, cujos habitantes
desfrutam de poder, grandeza, riqueza e status. Em quadros da roda da vida onde os
deuses ciumentos não recebem um reino separado daquele dos deuses, eles também
habitam essa região.
Acima dele, no topo do monte Meru, está o paraíso dos 33 deuses — uma
fórmula tradicional do antigo panteão védico, embora não inclua todas as deidades
hindus mais recentes e mais conhecidas. Esse é o paraíso descrito na roda da vida, o
protótipo do paraíso da mitologia indiana. Seu regente é Indra, uma deidade poderosa
que foi muito reverenciada durante o tempo do Buda. Ele era o deus do céu e da
tempestade, e um grande herói nas batalhas contra os deuses ciumentos. Sua arma é o
raio, a forma original do vajra. A árvore dos desejos cresce nesse paraíso, e ali são
encontrados muitos outros tesouros mágicos que emergiram do revolver do oceano.
Acima de tudo, os deuses possuem o elixir da vida, que é uma panaceia e que fornece
a longevidade. Mas isso, sua maior bênção, é ao mesmo tempo sua maior maldição.
Porque os deuses não são realmente imortais; vivem vidas inimaginavelmente mais
longas em termos humanos e não mostram sinais de envelhecimento, mas finalmente
suas vidas devem chegar a um termo. Eles não podem imaginar sua própria morte,
nunca a contemplam ou se preparam para ela, portanto quando ela chega lhes causa
extremo sofrimento.
Acima desses dois paraísos terrestres existem mais quatro outros no céu ao
redor do topo do monte Meru. O primeiro deles é caracterizado como livre de toda
luta, já que as deidades estão além do alcance dos ataques dos deuses ciumentos. O
segundo, Tushita, é um reino de completa satisfação; é onde o Buda Shakyamuni
habitava antes de seu nascimento como ser humano, e onde Maitreya, o buda do
futuro, agora espera por seu tempo de descida à Terra. No terceiro paraíso, as
deidades podem emanar magicamente tudo o que desejarem; no quarto, elas têm
apenas que desejar, e o que quer que desejem é espontaneamente produzido para
elas por outros.
161
prazer e satisfação, é difícil encontrar motivação para praticar o dharma; portanto,
desse ponto de vista, o nascimento como ser humano é considerado o melhor. Mara, o
Maldoso, que tentou o Buda às vésperas de sua iluminação, é também conhecido
como o soberano do mundo do desejo e habita seu paraíso mais elevado. Ele
representa o aspecto sedutor da espiritualidade, que é apropriado pelo ego para nos
convencer de que estamos fazendo grande progresso e nos tornando seres altamente
evoluídos.
Os mundos da forma e sem forma são níveis de existência de uma ordem bem
diferente. Aqui forma não significa materialidade, mas simplesmente aparência: as
qualidades de cor e molde. As deidades no mundo da forma não são mais dominadas
pelo desejo de prazeres sensuais e perderam seu apego às percepções grosseiras; elas
se experimentam como imateriais, portanto se diz que têm corpos sutis de luz. No
mundo sem forma, elas transcenderam o apego a todos os sentidos, exceto a mente;
são puros seres espirituais com corpos mentais que não têm forma visível. Já que são
deidades que não possuem corpos físicos, não podem passar pela morte no sentido
usual, portanto quando suas vidas imensamente longas chegam a um fim, elas
simplesmente despertam em um reino diferente ou em um outro nível do reino dos
deuses.
Todos os paraísos no mundo da forma e sem forma são regidos pelo deus
Brahma. No hinduísmo, Brahma é a personificação masculina da ausência de forma,
162
princípio absoluto, o neutro brahman, que simplesmente significa “expansão” ou
“imensidão”. Brahma e Indra (o regente dos reinos inferiores dos deuses) eram as duas
primeiras deidades ao tempo do Buda, embora mais tarde sua importância tenha
declinado. Ambos desempenharam um papel significativo na história do Buda como
representantes supremos de todos os seres humanos do universo: primeiro,
encorajando-o em seus esforços para atingir a iluminação, em seguida louvando seu
sucesso e cultuando-o com oferendas, e finalmente pedindo a ele que não
permanecesse em silêncio, mas que ensinasse o dharma. Como já vimos na conexão
com o reino dos fantasmas famintos, Brahma representa tanto a bondade suprema
quanto o princípio criativo. Está sujeito à lei do karma e é apenas um de uma série
infinita de brahmas. Seu nome em tibetano significa “o Ser Puro”, e no budismo não é
visto como o princípio criativo, mas como a personificação da verdade, da santidade e
da pureza. Brahma, com suas qualidades de excelência, foi incorporado ao budismo
para representar os níveis supremos de realização dentro do samsara.
Auto absorção é a chave para a experiência humana do reino dos deuses. Nos
níveis inferiores, o mundo do desejo, ela aparece como prazer ou como o
prolongamento do desfrute de saúde, riqueza, beleza, educação e todos os tipos de
prazeres. Muitas das aspirações normais dos seres humanos poderiam ser
consideradas expressões do reino dos deuses, ou o “céu na terra”. Mas estar
psicologicamente naquele reino significa que a pessoa não está apenas desfrutando
desses prazeres, mas usando-os como um meio de manter o sentido do eu. A vida é
vista como uma busca pela felicidade e realização; quando essa busca se torna todo o
propósito da vida, ela pode facilmente se desenvolver na direção de uma preocupação
excessiva com juventude e beleza, vida saudável, auto aperfeiçoamento, crescimento
emocional e assim por diante. Sempre existe uma certa dose de autoconsciência e
auto exaltação nesses esforços. A noção de espiritualidade pode ser mencionada com
frequência, mas essa espiritualidade está realmente baseada no ego. É uma maneira
de tentar fabricar amor, luz e paz excluindo toda a escuridão e o desprazer. Tudo isso é
muito semelhante ao quadro das qualidades distorcidas da família Buda, que é ligada
49
The Tibetan Book of Dead, p. 10.
163
ao reino animal. Mas a ignorância e o engano dos deuses é extremamente inteligente,
sofisticada e criativa, ao contrário da mentalidade confusa e subdesenvolvida dos
animais. Os deuses são o expoente supremo da ilusão, construindo castelos no ar, mas
se tornaram extasiados com sua própria criação mágica e estão convencidos de que
tudo é real e permanente.
O sentimento de ser imortal é uma característica divina muito poderosa que nós,
como seres humanos, trazemos dentro de nós secretamente a maior parte do tempo.
Repetidas vezes, grandes mestres têm nos relembrado que somente uma consciência
da inevitabilidade da morte pode nos despertar da complacência. E correspondendo
ao nosso sentimento de imortalidade durante a vida, existe um anseio pela eternidade
após a morte: paraíso eterno, paz eterna ou mesmo não-existência eterna. Como
Trungpa Rinpoche disse ao discutir este reino: “O sonho final do ego é a eternidade,
particularmente quando a eternidade se apresenta como a experiência da
meditação.”50
Nos reinos mais elevados dos deuses, os mundos da forma e sem forma,
tornamo-nos inteiramente absorvidos nos estados de meditação, portanto o sentido
do ser torna-se muito mais sutil, enganoso e perigoso. É natural, do ponto de vista do
ego, que uma vez que tenhamos alcançado lugar tão maravilhoso, queiramos ficar nele
para sempre. Mas se não tivermos a visão do vasto vazio e não consigamos nos
dissolver no espaço aberto da meditação, sempre haverá a pequena voz do ego
pensando: “Eu estou experimentando esta consciência, esta paz, esta bem-
aventurança.”
Não sem surpresa, o reino dos deuses está ligado com o bardo da meditação.
Todas as práticas de meditação em qualquer nível podem ser feitas com uma atitude
ou de desapego ou de apego. No samadhi genuíno, o mais profundo estado de
meditação, existe uma completa absorção não dual, portanto aquele eu se dissolve;
50
Transcending Madness, p. 60.
164
mas com os deuses, a própria experiência da absorção se torna um objeto de apego e
um meio de autopreservação. A brecha que ocorre aqui é o contraste entre o
prolongamento de nossa experiência, a solidificação, e uma súbita dúvida simultânea,
um lampejo de abertura. Não estamos certos se estamos próximos a nos tornar
iluminados ou na verdade enlouquecendo. No ponto culminante dessa intensa
ambiguidade, poderíamos pular através dela para o estado desperto ou recair no
transe divino, “a conquista última e absoluta do atordoamento, as profundezas da
ignorância”51, como Trungpa Rinpoche a chamou.
O buda que aparece no reino dos deuses é chamado Shatakratu, um dos nomes
de Indra; significa Executor de Cem Sacrifícios, uma pessoa santa e muito respeitada.
Ele é branco na cor, como o Buda Vairochana, e toca um instrumento de cordas. Como
os deuses estão tão imersos no prazer, este buda fala a eles em uma linguagem que
irão ouvir, a linguagem da música. Música é a mais efêmera das artes; o som flui do
silêncio e retorna novamente ao silêncio quase tão rápido quanto surgiu; os momentos
de silêncio são tão essenciais quanto os momentos de som. A música está mudando
constantemente, o movimento é a sua própria existência: é o perfeito ensinamento
sobre a impermanência para os deuses, que são tão apegados à imortalidade e à
eternidade.
51
The Myth of Freedom, p. 26.
165
Capítulo Nove
O TRIKAYA
166
emanação”. Kaya significa “corpo” em sânscrito, tanto literal quanto metaforicamente,
como em inglês. Já que são termos muito significativos cujos equivalentes em inglês
não parecem tão adequados, vou seguir a prática de Trungpa Rinpoche em manter as
palavras sânscritas e me referir a eles como os três kayas, ou coletivamente como o
trikaya.
Trikaya é singular porque os três kayas são uma unidade indivisível, três
dimensões da totalidade. O sambhogakaya e o nirmanakaya juntos são conhecidos
como o rupakaya, o “corpo da forma”, distintos do dharmakaya, que é o vazio sem
forma. Como diz o Sutra do coração: “Forma é vazio e vazio é forma”; forma e vazio
são inseparáveis e não podem ser entendidos isolados um do outro. Os dois aspectos
do rupakaya são os níveis nos quais a mente de um ser desperto se manifesta de forma
a beneficiar outras pessoas. Dharmakaya representa a realização do próprio propósito
de uma pessoa de atingir a iluminação, enquanto sambhogakaya e nirmanakaya
existem para realizar o propósito dos outros.
A última linha se refere à unidade indivisível dos três kayas, que é chamada de
svabhavikakaya, o “corpo da natureza intrínseca”. A totalidade dos “três completos
em um” é a natureza de nossa própria mente; forma a estrutura do nosso ser e o
padrão no qual operamos. O trikaya é uma expressão de como as coisas realmente
são, inerentemente puras e perfeitas, mas sob a influência da ignorância o
experimentamos como os três aspectos da existência comum. Ele corresponde tanto
ao nosso corpo, fala e mente comuns quanto aos nossos níveis grosseiro, sutil e muito
sutil. Também experimentamos os três kayas de uma maneira confusa durante os três
estados de consciência por que passamos toda noite e todo dia: em sono profundo,
entramos no dharmakaya; o sonhar corresponde ao sambhogakaya; e o estado de
vigília é o nirmanakaya.
167
entra na culminação do bardo do morrer, é o dharmakaya. A aparição radiante das
deidades pacíficas e coléricas, aparecendo durante o bardo do dharmata, é o
sambhogakaya. Tomar a forma de um ser vivente no bardo da existência é o
nirmanakaya. Nesses momentos, a pessoa nos bardos tem a oportunidade de realizá-
los, reconhecendo-os pelo que realmente são.
DHARMAKAYA
52
Os ensinamentos de Trungpa Rinpoche no trikaya como o caminho, exemplificados na vida de
Padmasambhava, podem ser encontrados em Chögyam Trungpa, Crazy Wisdom, Boston, Shambhala,
1991.
168
a essência de toda a existência. Está sempre presente como a base da existência, sua
dimensão secreta, invisível.
O verso afirma que “nada jamais existe” no dharmakaya, mas isso não é uma
afirmação niilista; vai além dos conceitos ordinários tanto de existência quanto de não-
existência. Trungpa Rinpoche o descrevia como “um sentido de fertilidade” e “vazio
grávido”. De maneira que para alguma coisa existir, deve haver também um sentido de
sua não-existência, um sentido de ausência antes que se torne presente. Antes de as
palavras serem ditas ou os pensamentos surgirem na mente, deve haver um espaço no
qual eles não foram falados ou pensados; mesmo assim, como de fato se manifestam,
em um sentido já estão ali. Tudo já está realizado; causa e efeito são simultâneos. A
experiência do dharmakaya como parte de vida é o reconhecimento dessa totalidade,
uma atitude de abertura sem expectativa, vendo tudo como realmente é, em vez de
como gostaríamos que fosse. É o pensamento positivo total, que é precisamente o
significado do dharmakaya buda Samantabhadra: bom de todas as maneiras, em todos
os tempos e em todos os lugares.
169
SAMBHOGAKAYA
A luz se irradia do vazio do dharmakaya como as cinco cores dos cinco tipos de
conhecimento. Ela aparece em nuvens de arco-íris brilhantes, em círculos reluzentes,
em pontos cintilantes e raios de luz deslumbrantes. Em seguida as cinco cores se
cristalizam na forma dos cinco budas e de todas as outras deidades da mandala. Essas
formas divinas não são corpos de carne e osso, mas feitas inteiramente de luz; surgem
da luz e se dissolvem de volta na luz. É o reino da visão sagrada retratado na arte
tântrica e trazido para a vida de forma vívida na meditação. O sambhogakaya é a ponte
entre o vazio e a forma: o vazio se exibindo como forma, a forma se revelando como
vazio.
170
Existe uma sensação de destemor, diversão e descoberta contínua: um convite para
tomar parte na dança da vida. Esse é o significado do simbolismo no vajrayana — não
premeditado ou imposto, mas simbolismo natural que é inerente em tudo. Seu único
propósito é nos despertar. As deidades não são nada além do estado desperto, nosso
próprio estado desperto. O simbolismo natural, auto-existente do mundo, sempre
aponta na direção do despertar.
NIRMANAKAYA
171
No vajrayana, o guru é sempre visto como nirmanakaya. Não importa se ele ou
ela foi reconhecido como um tulku, em outras palavras, como tendo uma ligação em
particular com alguma figura do passado. Aprender a ver o buda no guru é o primeiro
passo para ver todos os seres como buda. Todos nós somos efetivamente
nirmanakaya, mas não o percebemos. O sentido de viver o princípio do nirmanakaya
acontece por meio da aplicação das técnicas de meditação na vida diária: meditação
em ação. Com essa atitude, qualquer situação é possível de ser trabalhada, o que quer
que façamos é apropriado, e todas as nossas atividades geram frutos. Todo o ambiente
se torna nosso amigo em vez de nosso inimigo, de tal forma que nos sentimos
completamente em casa no mundo.
Todo ser vivente também consiste em uma estrutura tríplice que reflete o
trikaya. Esses três aspectos são o corpo, a fala e a mente, conhecidos como as três
portas. O karma é criado através da instigação das três portas: nossos atos, palavras e
pensamentos. Quando eles são transformados em instrumentos de consciência, em
vez de confusão, tornam-se o corpo vajra, a fala vajra e a mente vajra, três portas para
o despertar. Uma pessoa desperta ainda tem corpo, fala e mente individual, mas não
se identifica mais com o ego. A mente vajra é inseparavelmente una com a mente de
buda, o dharmakaya. A fala vajra é sempre a comunicação do dharma, o
sambhogakaya. O corpo vajra é a forma autêntica do buda, o nirmanakaya.
CORPO
172
durante a vida e nos apegamos à existência mesmo após a morte. Por meio da prática
do cuidado, chegamos a perceber que ele é impermanente e não é o eu. Ainda assim,
essa percepção não diminui o corpo de maneira alguma; ao contrário, ela nos fornece
uma nova apreciação de sua verdadeira função. Com a consciência, as impressões dos
sentidos se tornam mais intensas, os movimentos mais graciosos e dignificados, e as
ações, mais habilidosas e eficazes. Tornamo-nos naturalmente mais sensíveis e
compreensivos em relação ao ambiente em nível físico, o que faz a ligação com os
níveis de fala e mente, como nos comunicamos e como pensamos a respeito do
mundo. Do ponto de vista egoísta, o corpo parece nos isolar e nos afastar dos outros; a
parede da pele nos divide da atmosfera ao nosso redor e nos fecha em nossas conchas
isoladas. Mas de um ponto de vista desperto o corpo é o meio de nos estendermos e
tocarmos os outros; ele é o instrumento através do qual desempenhamos as
atividades do nirmanakaya.
Corpo vajra significa um corpo que é perfeito e indestrutível. Não sendo nenhum
sonho egoísta de imortalidade pessoal, paradoxalmente, ele brota da consciência da
irrealidade do corpo. Todo o universo material, tanto o corpo quanto o seu ambiente,
aparece espontaneamente do vazio a cada instante; não tem solidez ou
substancialidade; é indestrutível porque não existe nada que possa ser destruído.
Como Trungpa Rinpoche o expressou: “As coisas estão lá porque não estão lá — de
outra forma elas não poderiam existir”.54
54
Journey Without Goal, p. 72.
173
FALA
A palavra é poder criativo, o poder do mantra. Todas as línguas são sagradas, não
apenas o sânscrito, e qualquer palavra ou som pode ser percebido como um mantra.
Se simplesmente escutarmos sem expectativas, ouvindo o vazio por trás do som,
podemos nos tornar sensíveis à sua qualidade interior e à mensagem que ele carrega.
É a música do não-ser e do despertar. O poeta Milarepa é muitas vezes retratado com
uma mão em concha junto à sua orelha, escutando intencionalmente suas próprias
músicas à medida que surgem de seu vazio e silêncio. Toda fala pode se tornar a
poesia do dharma quando ela flui daquele sentido de espaço.
174
as ações iluminadas da deidade. Como as formas visualizadas, o som do mantra se
dissolve de volta para o vazio ao final da meditação. Utilizando essa prática,
aprendemos a experimentar tudo o que dizemos e tudo o que ouvimos como mantra,
ressoando ainda vazio como um eco.
MENTE
175
da mente, mexericos subconscientes, ou a contínua tagarelice de fundo e os comentários
constantes dos pensamentos, são completamente eliminados. A mente está completamente
aberta. Essa experiência vajra da mente cria uma celebração contínua ao lidar com a vida de
forma direta e simples. No nível vajra da mente, toda situação acontece muito simplesmente,
por si só, e a mente se relaciona com o que quer que surja de maneira muito simples.55
OS TRÊS NÍVEIS
Uma outra maneira na qual o padrão triplo opera é em três níveis ou graus de
densidade, com os quais já nos encontramos na relação com os cinco grandes
elementos. Eles impregnam a totalidade do ambiente e se aplicam aos seres viventes.
No contexto da vida humana, são conhecidos como o corpo e a mente grosseiros, sutis
e muito sutis. O corpo significa simplesmente o aspecto da forma, enquanto a mente é
a consciência correspondente. A fala, o seu potencial comunicativo, está subentendida
embora não seja mencionada neste contexto. Deveríamos nos lembrar que os três
aspectos são indivisíveis; é apenas no nível grosseiro da nossa existência comum que
eles parecem ser distintos e separados.
55
Journey Without Goal, p. 75.
176
O Nível Grosseiro
O Nível Sutil
O próprio corpo sutil é triplo, consistindo em nadi, prana e bindu 56. Cada um
desses importantes termos tem diversos significados, dependendo do contexto,
portanto prefiro manter as palavras sânscritas para eles. Nadi é análogo ao aspecto da
forma ou corpo do princípio triplo, prana a energia ou fala, e bindu à essência ou
mente. Nadi significa literalmente um "tubo” ou “canal”; a mesma palavra é usada em
trabalhos médicos para nomear veias e artérias, mas neste contexto, eles não são
56
Em tibetano, rtsa, rlung e thig le, respectivamente.
177
físicos e não podem ser percebidos pelos sentidos comuns. Formam uma rede que cria
a estrutura básica do corpo sutil. São imaginados como sendo tubos luminosos e ocos
através dos quais a energia vital flui, assim como o sangue flui através das veias. Esse
movimento ou corrente é prana, que pode significar “respiração”, “espírito", "energia”
ou “vida”, e é inseparável da mente. Bindu, literalmente um “ponto” ou uma “gota”, é
a essência criativa da mente, e é carregado pelo prana como um cavaleiro em um
cavalo ao longo dos caminhos dos nadis.
Os detalhes do corpo sutil variam de acordo com a tradição que a pessoa segue e
com a prática específica na qual está engajada. Teoricamente, é descrito e
representado como uma estrutura definida como a do corpo grosseiro, mas na prática
é muito mais ilusório. Isso não quer dizer que é puramente imaginário. Ele é, como o
nome sugere, sutil: somente para ser entendido por meio da intuição e da experiência
direta. Em um sentido, os nadis não existem como uma estrutura pronta, mas são
criados conforme o prana flui ao longo deles; são o padrão do fluxo de prana, como o
traçado do voo de um pássaro no céu, ou o canal formado por um peixe enquanto ele
desliza através da água. Os vários sistemas tântricos contém muitos nomes e
descrições diferentes dos nadis, os diferentes tipos de prana, e os bindus, que diferem
muito uns dos outros. Em relação à Liberação através da audição, só precisamos ter
um quadro amplo do corpo sutil, que será de grande ajuda no entendimento do
processo da morte. Mais detalhes precisos serão mais bem compreendidos vindos de
um guru no contexto de uma prática em particular.
Formando o eixo do corpo sutil está o nadi central. Em sua plena extensão, ele
vai de um ponto na fronte entre as sobrancelhas até o chakra coronário no topo da
cabeça, e em seguida direto até os órgãos genitais. Ele é chamado madhyama, o “do
meio”, ou avadhuti, o “eliminador”, porque elimina a dualidade entre sujeito e objeto.
Quando o prana e a mente são conduzidos para o nadi central através da prática da
yoga, a pessoa alcança percepções crescentes de vazio e bem-aventurança. A
consciência comum dualista (vijnana) se transforma em conhecimento desperto
(jnana), por isso ele também é conhecido como o nadi do conhecimento (jnananadi).
57
Os nomes tibetanos para os principais nadis são dbu ma (madhyama), kun ’dar ma (avadhuti), rkyang
ma (lalana) e ro ma (rasana).
178
pouco comum encontrar essa distinção. São associados com diversos outros pares de
polaridades complementares, tais como sol e lua, sabedoria e método, vermelho e
branco, masculino e feminino, inalação e exalação, atração e aversão. De novo,
quaisquer desses pares podem estar invertidos, portanto grupos de correspondência
completamente diferentes podem ser encontrados entre os ensinamentos de várias
tradições. O significado subjacente dos nadis esquerdo e direito é que eles apontam
para nossa dualidade fundamental, e seu significado básico não é afetado por que lado
ele é visto, se é vermelho ou branco, masculino ou feminino.
Além de significar a energia sutil em geral, prana recebe diferentes nomes para
indicar seus cinco modos principais de operação no corpo. Todos contêm a mesma
raiz, significando “respiração”, com prefixos que mostram a natureza específica de seu
movimento. Falando no sentido estrito, o equivalente tibetano (rlung) não é uma
tradução de prana, mas de vayu, que significa “ar” ou “vento”, o mesmo que o
elemento. Isso explica por que traduções do tibetano muitas vezes falam dos ventos
do corpo sutil. Vayu provavelmente pretende se referir à movimentação real do prana
através dos nadis, mas são muitas vezes considerados sinônimos em sânscrito. Como
prana se tornou muito conhecido em inglês, acho que é preferível continuar a usá-lo.
Vayu é também algumas vezes adicionado aos nomes das cinco energias: existe o
próprio prana, ou pranavayu, que é chamada a energia sustentadora da vida; em
seguida a energia penetrante; a energia ascendente; a energia uniforme; e a energia
179
descendente58. Elas não chegam a ser energias diferentes, mas uma mesma energia
desempenhando diferentes funções. Existem ainda muitos outros aspectos de prana,
cada um preenchendo sua própria função especial, que são identificados para os
propósitos de certas meditações e na prática médica.
58
Em sânscrito e tibetano, estes são pranavayu (sro ’dzin rlung), vyanavayu (khyah byed rlung),
udanavayu (gyen rgyu rlung), samanavayu (mnyam rgyu rlung) e apanavayu (thur sel rlung).
180
O quarto chakra está no umbigo e é a morada de Ratnasambhava. Está marcado
com a sílaba amarela SVA. A energia que funciona aqui é a energia uniforme. Ela
circula em torno dos órgãos internos regulando o sistema digestivo e mantendo todas
as funções vitais em equilíbrio. Também faz circular o calor interior do corpo, e seu
nome alternativo em tibetano é “igual ao fogo”, embora o fogo não seja seu elemento.
Seu elemento é a terra, porque a terra está associada a Ratnasambhava.
Como foi mostrado no Capítulo Sete, os budas das cinco famílias incorporam os
princípios transcendentes do corpo, fala, mente, qualidade e atividade. Os cinco
chakras são experimentados como pontos focais destes princípios: corpo na cabeça,
fala na garganta, mente no coração, qualidade no umbigo e atividade no local secreto.
Meditando nos chakras como as mandalas dos budas, suas energias são despertadas e
transformadas nos cinco budas que habitam dentro de nós. O significado dos cinco
chakras é também universal; deveríamos não só identificá-los em nós, mas também
experimentá-los no ambiente. Como já vimos, corpo, fala e mente dizem respeito ao
princípio triplo da forma, energia e inteligência presentes através do universo. A
qualidade se relaciona com o reconhecimento das qualidades da iluminação em tudo
ao nosso redor e à percepção do mundo inteiro como a terra pura do buda. Atividade
é meditação em ação, um sentido do desempenho espontâneo das atividades
iluminadas que ocorrem como uma função natural da vida.
181
todos os sinais de respeito. Nosso sentido de identidade individual como seres
corpóreos, junto com os níveis grosseiros de consciência que dependem das funções
mentais do cérebro, é considerado presente na cabeça. A cabeça é o foco da
experiência de personificação. Conforme o meditante se baseia mais e mais na
consciência não conceitual, sem as correntes subterrâneas de pensamentos, as
perturbações emocionais e as distrações sensoriais, a mente no sentido da consciência
e da visão interior é sentida crescentemente como habitando o chakra do coração, o
ponto central do corpo sutil.
Chakras, nadis, pranas e bindus são visualizados apenas à medida que são
necessários para os propósitos de alguma prática específica. Na transferência de
consciência, por exemplo, o nadi central pode começar no chakra do coração ou do
umbigo e não se estender mais para baixo. Em certas meditações, os cinco budas
podem ser colocados em diferentes chakras, da mesma forma como trocam de lugar
no círculo da mandala. Na yoga da deidade, a visualização dos chakras muitas vezes é
extremamente detalhada, com diferentes deidades e mantras em cada pétala dos
lótus. Todos os detalhes de cores, número de pétalas, sílabas e assim por diante
182
variam de prática para prática, portanto é impossível fornecer uma contagem do corpo
sutil que se aplique a todas as situações.
O bindu indestrutível é eterno e imutável. Continua de vida para vida, sem início
e sem fim. É a natureza básica de nossa mente e a essência da vida, uma continuidade
de consciência luminosa. Ele é bodhichitta, o coração-mente desperto, e é
tathagatagarbha, a natureza de buda intrínseca que todos nós possuímos, mas não
percebemos.
183
profunda ou completa quanto a da morte, porque nem todo o prana se dissolveu; uma
parte permanece circulando através do corpo para mantê-lo vivo e respirando.
184
Capítulo Dez
A Grande Perfeição
Primeiro de tudo, em vez dos três yanas descritos no Capítulo Um, o caminho é
dividido em nove yanas59. Os primeiros dois são chamados o shravakayana (o caminho
do ouvinte) e pratyekabuddhayana (o caminho do buda solitário); eles correspondem
ao nível do hinayana. O terceiro é o bodhisattvayana (o caminho do bodhisattva),
equivalente ao mahayana. Os outros seis caem no domínio do vajrayana. Tanto na
antiga quanto na nova tradição os tantras são divididos em categorias de exterior e
interior. Eles partilham as três classes dos tantras exteriores ou inferiores, que são
conhecidos como kriya (ação ritual), charya (conduta ou modo de vida) e yoga (união).
Na tradição Ningma, essas categorias de tantra formam os próximos três yanas. Na
terminologia Ningma, a classe charya é também conhecida como ubhaya (de ambos os
tipos) porque faz a ponte entre os outros dois yanas. As novas tradições (Kagyü, Sakya
e Geluk) têm apenas uma categoria de tantra interior ou superior: anuttarayoga (yoga
mais elevado); a esta classe pertencem os conhecidos tantras, tais como Guhyasamaja
Chakrasamvara, Hevajra e Kalachakra. A tradição Ningma divide a classe do tantra
interior em seus três yanas finais: mahayoga (grande yoga), anuyoga (yoga adicional) e
atiyoga (yoga transcendente).
59
Para os ensinamentos de Trungpa Rinpoche sobre os nove yanas, ver Chögyam Trungpa, The Lion’s
Roar, Boston, Shambhala, 1992. Para Ningma e dzogchen em geral, ver Dudjom Rinpoche; The Nyingma
School of Tibetan Buddhism, Patrul Rinpoche, The Words of My Perfect Teacher; e Longchen Rabjam, The
Practice of Dzogchen, traduzido por Tulku Thondup, Ithaca, Snow Lion, 1989.
185
significa “a grande perfeição”. Ele é organizado em três seções de mente, espaço e
instruções especiais60, que expõem a visão dzogchen e os meios práticos de realizá-la.
60
Em tibetano, sems sde, klong sde e man ngag sde, respectivamente.
61
Alguns textos tibetanos fornecem o termo mahasanti na versão sânscrita de seus títulos, e o grande
erudito Ningmapa Rongzom Pandita (séculos XI e XII) propôs que sua leitura deveria ser mahasandhi,
significando “grande união”. Namkhai Norbu sugere que mahasanti é uma forma Prakrit, ou dialeto, e
não precisa ser corrigido. Neste caso, ele significaria “grande paz”. Poderia se esperar encontrar
mahasampanna, que é fornecido como o equivalente sânscrito no Tibetan-English Dictionary de Sarat
Chandra Das, mas sem citar uma fonte. Para mais informações, ver John Myrdhin Reynolds, The Golden
Letters, Ithaca, Snow Lion, 1996, p. 264-265. Este livro contém excelentes seções sobre as origens, a
visão e a prática do dzogchen, assim como traduções de alguns dos textos básicos mais importantes.
186
práticas dos dois outros tantras interiores, mahayoga e anuyoga, são usadas, com base
no fundamento preparatório dos yanas precedentes. Alguns mestres dzogchen
apoiam-se somente na atiyoga, que contém seus métodos próprios de estabilizar e
aprofundar a realização da pessoa, mas isso requer qualidades excepcionais tanto no
mestre quanto nos alunos, assim como uma forte conexão kármica com esse caminho
em particular.
Em sânscrito, vidya deriva de um significado raiz que quer dizer “ver”, e é uma
das muitas palavras usadas para conhecimento; cobre todas as artes e ciências,
qualquer ramo do aprendizado que tenha uma aplicação prática, e principalmente o
conhecimento mágico e secreto dos mantras. Algumas vezes se refere ao próprio
mantra: conhecimento que se torna palavra, conhecimento que é poder, um
encantamento mágico no sentido mais genuíno. Vidya como mantra é uma afirmação
da verdade que tem o poder inerente de se tornar verdadeira, ou melhor, de revelar o
verdadeiro e desconhecido estado das coisas que está sempre presente. Esse tipo de
62
O termo original é awareness, normalmente traduzido como “percepção” ou “consciência” (N. do T.)
187
conhecimento não é magia mundana, mas magia espiritual que transmuta confusão
em sabedoria. Em seu nível mais elevado, percebemos que os seres conscientes
sempre estiveram despertos, portanto nenhuma transformação foi realmente
necessária ou realmente aconteceu de maneira alguma. Conhecimento mágico ou
consciência é simplesmente a visão nua e direta daquilo que é. Embora tenha ido
muito além da dualidade do conhecedor e do conhecido, vidya, como é utilizada na
linguagem do dzogchen, reteve seu sentido original de experiência prática, em
primeira mão.
63
Guhyasamaja Tantra, Capítulo 2.
188
enquanto pretendia significar um conceito extremamente sutil que seria mais bem
transmitido por “luminosidade”. Os dois termos, luminosidade e claridade, em geral
não são diferenciados e são traduzidos pela mesma palavra em inglês, de tal forma que
encontramos “luz clara”, “luminosidade” ou “claridade” para ambos64. Eles certamente
são muito próximos, já que claridade aqui não é apenas clara e transparente, mas
também brilhante e luminosa: o potencial iluminador da mente. No Livro tibetano dos
mortos, usamos somente luminosidade, mas ao olhar o texto muito cuidadosamente
com isso em mente, é evidente que há uma distinção entre eles e portanto agora
parece melhor fazer essa distinção nas passagens revisadas da tradução que se segue
na Parte Dois.
Espaço é um outro conceito básico. Ele não se refere ao conceito comum e físico
do espaço, mas ao espaço da mente. Trungpa Rinpoche disse uma vez que o espaço é a
versão budista de Deus. Em seu comentário sobre o Livro tibetano dos mortos,
escreveu que este é um “Livro sobre o Espaço”. Espaço não é diferente de mente, mas
fornece uma perspectiva diferente; é o ambiente da mente, inseparável da consciência
da mente. Em vez de falar em termos de mente universal ou cósmica, que poderia
facilmente ser interpretado como algum tipo de noção vagamente teísta, existe o
espaço vasto, ilimitado e aberto que não pode ser personificado ou deificado de
nenhuma forma. Não se pode rezar para ele; não se pode agradá-lo ou se irritar com
ele; não se pode acreditar ou desacreditar dele. Ele simplesmente está, a base
primordial de tudo. Pelo fato de ser completamente aberto e infinito, é impossível se
acomodar nele ou se tornar fixado nele. Essa absoluta ausência de pensamento
64
Luminosidade é ’od gsal em tibetano e prabhasvara em sânscrito; claridade é gsal ba em tibetano e
svaccha (com outras alternativas possíveis) em sânscrito. Já existe um problema potencial na tradução
do tibetano, porque teoricamente ambas as palavras podem ser abreviadas em certas circunstâncias
para gsal. Entretanto, me parece que elas são geralmente distintas, e certamente o são em Liberação
através da audição. Quando eu estava trabalhando neste texto com Trungpa Rinpoche, não gostava da
distinção e portanto não o indaguei a respeito; ele usava somente “luminosidade” naquela época. Em
contraste, Rigdzin Shikpo prefere usar somente “claridade” e me diz que Trungpa Rinpoche também a
preferia quando eles estavam trabalhando juntos na década de 1960.
65
Transcending Madness, p. 290.
66
Transcending Madness, p. 254.
67
Transcending Madness, p. 299.
189
conceitual, fabricação ou esforço é a qualidade particular do dzogchen ou atiyoga. O
prefixo ati significa “extrema” “transcendente”, “além”. Quanto mais longe formos,
nunca poderemos chegar ao fundo espaço, ele está sempre além.
Vajrasattva então explica que mesmo o corpo vajra, a fala vajra e a mente vajra
dos seres iluminados são assim. Tudo existe no espaço, mas já que o espaço em si não
existe em nenhum dos três mundos — o mundo do desejo, o mundo da forma ou o
mundo sem forma — nada nunca realmente surgiu. O tantra continua:
190
admiração e assombro. Contemplando suas próprias mentes, a morada da
natureza última da realidade, eles permaneceram silentes.68
Em seguida, existe a palavra dhatu (em tibetano dbyings), que no budismo tem o
significado de espaço como uma extensão de seu significado primário: um
componente fundamental. Aqui ela transmite a ideia da vasta extensão do vazio, da
amplidão e da insubstancialidade. Ela é muitas vezes combinada com outras palavras.
Akashadhatu pressupõe a natureza infinita do espaço. Jnanadhatu é a esfera ilimitada
do conhecimento primordial, assim como a inseparável unidade do conhecimento e do
espaço. Vajradhatu é a dimensão da natureza vajra indestrutível, onde nada pode ser
destruído precisamente por causa de seu vazio essencial. Dharmadhatu é aquilo que
contém todos os dharmas: o reino de todos os fenômenos, o espaço todo abrangente;
ele pode também se referir à mente, que é naturalmente vazia como o espaço e
mesmo assim é a fonte de toda a experiência.
O espaço de um long não tem centro e não tem fronteiras. Estamos no meio do
espaço, e somos o próprio espaço. É uma extensão ilimitada de amplidão,
incessantemente dando origem ao fluir dinâmico das aparências. Diferentes tipos de
long são descritos no dzogchen, onde ele forma o tema de toda uma seção de
ensinamentos. Ele pode estar pleno de energias aparecendo vividamente como a luz
das cinco cores, ou pode estar totalmente além de qualquer tipo de percepção ou
experiência, além mesmo do conceito de energia.
68
Guhyasamaja Tantra, Capítulo 15.
69
Nos dicionários, a tradução sânscrita é geralmente fornecida como urmi, “onda”. No livro de Tulku
Thondup Rinpoche, Hidden Teachings of Tibet, Londres, Wisdom Publications, 1986, p. 268, é fornecida
no glossário como abhyantara, "interior”, mas em outros lugares traduzida como "grande firmamento”.
191
Combinando essas várias maneiras de olhar o espaço em uma única palavra em
inglês, Trungpa Rinpoche fez disso a pedra angular de seu ensinamento. Ele escreveu
no comentário ao Livro tibetano dos mortos: “O espaço contém nascimento e morte; o
espaço cria o ambiente no qual se comportar, respirar e agir, ele é o ambiente
fundamental que fornece a inspiração para este livro.”70
O espaço é vazio e luminosidade: vazio luminoso. Porque ele é vazio, nada existe,
ainda assim por ser luminoso, tudo surge a partir dele. Como Trungpa Rinpoche
afirmou, o dharmakaya surge desnecessariamente do espaço infinito. Aqui não existe
nem samsara nem nirvana, nem eu nem outro, nem budas nem seres conscientes. Esse
estado é conhecido como a pureza primordial porque não é manchado nem
obscurecido por insinuação de confusão ou pensamento dualista; ele é a natureza pura
e original de toda a existência, que sempre se encontra no centro de todos fenômenos
aparentes.
70
The Tibetan Book of Dead, p. 1.
192
A Dakini Amarela dança majestosamente, formando a terra sólida e as montanhas
altaneiras. As cinco luzes do conhecimento perpassam o todo da existência; nada se
encontra fora delas. A realidade última do dharmadhatu é refletida no espelho claro; a
igualdade transcendente perpassa as qualidades únicas de cada coisa separada; o
amor surge espontaneamente e a ação iluminada é automaticamente concluída.
Não existe uma razão pela qual tudo isso deveria acontecer. Também não é visto
como mau ou vergonhoso, como algum tipo de pecado original; é simplesmente como
as coisas são. E também não é a história de alguma coisa que aconteceu uma única vez
há muito tempo. O desenvolvimento do ego a partir da consciência está acontecendo a
cada momento. No fim das contas, não é realmente possível solidificar o espaço; toda
a ilusão elaborada está sendo criada continuamente e se dissolvendo de novo. O
espaço básico da nossa natureza está sempre presente. Como Liberação através da
audição nos lembra, Samantabhadra e Samantabhadri são a essência da nossa própria
mente. A descoberta do espaço é o propósito final da meditação, dos primeiros
estágios de acalmar a mente inquieta até a conquista final do dzogchen, a grande
perfeição.
193
solidez, existirá também a possibilidade de relaxamento e dissolução. Esse
relaxamento não é um estado de passividade e inação, mas de consciência clara e
precisa, livre da interferência da mente confusa. A energia que surge dessa noção de
espaço é desobstruída, sem os preconceitos e limitações que a mente impõe. A ação
se torna espontânea, livre de hesitação e dúvida: Trungpa Rinpoche costumava dizer:
“Apenas faça!” Essa atitude de simplesmente relaxar e se basear no espaço de sua
natureza básica é particularmente forte no dzogchen. Toda a abordagem de Trungpa
Rinpoche ao dharma era baseada nela; qualquer que fosse o tipo de prática que ele
estivesse ensinando, sempre estava impregnada pelo sabor do dzogchen, ou ati, como
ele normalmente o chamava.
O estágio final, sobrepujar, significa cruzar sobre o topo ou passar por cima;
poderia ser pensado como atingir o ponto mais alto ou mesmo passar além do cume
da realização. Experiências visionárias de luz manifestam-se espontaneamente a partir
do firmamento da pureza primordial: arco-íris fascinantes e raios de luz, correntes
dançantes de luz, círculos das cinco cores e esferas de luz, nos quais todas as deidades
pacíficas e coléricas aparecem. Isso é chamado presença espontânea ou realização
espontânea. Não existe mais qualquer necessidade de meditar; essas visões não são
71
Na grafia tibetana, khregs chod e thod rgal, respectivamente.
194
objetos de meditação, mas as aparições naturais da própria realidade, de nossa
própria natureza, emergindo de dentro e tornando-se visíveis ao olhar.
72
Em tibetano, rig pa ngo sprod gcer mthong rang grol. Uma tradução completa disto está incluída em
The Tibetan Book of Dead de Thurman e The Tibetan Book of the Great Liberation de Evans-Wentz. John
Myrdhin Reynolds, em Self-Liberation through Seeing with Naked Awareness, Nova York, Station Hill
Press, 1989, apresenta o texto tibetano, a tradução e o comentário. Eu, agradecidamente, tenho feito
uso deste texto para os meus próprios excertos traduzidos, à medida que ele não está incluído em
nenhuma das coleções do kar gling zhi khro às quais tenho acesso.
195
caminhos dentro do budismo levam ao mesmo fim, o reconhecimento da natureza
verdadeira da mente:
Maravilhoso!
Uma mente abrange todo o samsara e o nirvana.
É a própria natureza da pessoa desde o início,
no entanto não é reconhecida.
Sua claridade e consciência fluem incessantemente,
no entanto não é encontrada face a face.
Raiando sem obstrução por toda parte, sua realidade não é captada.
De tal forma que este si próprio possa reconhecer a si próprio,
Todas as inconcebíveis 84 mil portas para o dharma
São ensinadas pelos budas do passado, do presente e do futuro.
Os budas não ensinaram nada
Exceto a realização desse si próprio.
196
contraproducentes. No sentido último, não há realmente nada a fazer e nada a mudar.
No entanto começamos a ter dúvidas e sentimos que somos incapazes de conquistar
qualquer coisa. Desesperamo-nos em chegar a lugar algum, quando realmente não há
nenhum lugar para ir. Esse paradoxo é enfatizado com uma série de perguntas para
nos chocar e fazer ver o absurdo de toda a situação:
197
claridade, sua própria consciência. Essas qualidades não são criadas por ninguém, não
vêm de nenhum outro lugar e não precisam ser alcançadas ou aperfeiçoadas de
nenhuma forma. É por isso que com frequência encontramos traduções como
“natural”, “inerente” ou “intrínseco”. Entretanto, existe mais do que isso. No uso
comum, autoconhecimento implica conhecimento de suas condições interiores, como
sendo diferente do conhecimento do mundo exterior; mas aqui, o que quer que a
pessoa saiba, perceba ou experimente, é reconhecido como estando dentro da mente,
e portanto é autoconhecimento (rang shes). O que quer que a mente experimente está
experimentando a si própria. A claridade da mente faz com que as aparências surjam e
se tornem visíveis; isso é chamado auto-claridade ou auto iluminação (rang gsal). Os
fenômenos que surgem são a própria mente, embora pareçam ser externos; são
conhecidos como auto-aparência ou auto-exibição (rang snang). Autoconsciência (rang
rig) em particular se refere ao conhecer fundamental, inato da realidade. Ela é a
consciência da inseparabilidade do vazio e das aparências; a mente estando consciente
de suas próprias criações, do jogo entre o observador e o observado, e ao mesmo
tempo estando consciente dessa consciência. Dzogchen também utiliza o significativo
termo autoliberação (rang grol), que discutimos no Capítulo Dois. Tudo que parece nos
prender e nos iludir vem da nossa própria percepção equivocada; a mente construiu
sua própria prisão e sua própria teia de enganos. Portanto, assim que a verdadeira
natureza da mente é realizada, ela é vista como tendo sempre estado essencialmente
livre; naquele instante, ela se libera por seu próprio poder. O texto nos exorta a olhar
cuidadosamente para nossa própria mente e se assegurar de que ela é de fato
verdadeira:
Para entender todo esse conceito, não basta pensar ou sentir que nada é real ou
que está tudo na mente; é preciso uma percepção genuína da essência do que a mente
é realmente. É por isso que os ensinamentos sobre o vazio e o não-ser são fortemente
198
enfatizados antes de qualquer outra coisa. A própria mente fundamental, a fonte de
toda essa exibição, não é a “minha mente” ou a “sua mente” no sentido limitado e
egocêntrico. Toda a ilusão do que e do outro outro acontece dentro da mente, que
abrange a ambos. Mas enquanto ainda acreditarmos em um eu separado e um mundo
lá fora, a ilusão é certamente real em seus próprios termos. Dizer que tudo é mente a
partir daquele ponto de vista seria loucura. Os praticantes dzogchen são conhecidos
por serem extremamente práticos e realistas. Longchenpa, um grande mestre do
século XIV, iria rir das pessoas que sustentam visões filosóficas idealistas, dizendo que
é claro que o mundo externo é real! Com a realização da autoconsciência, tudo é visto
como sendo real de uma maneira inteiramente diferente, como a expressão da
natureza desperta. Entre essas duas visões da vida, existe o período de transmutação,
cheio de paradoxos e ambiguidades. Precisamos estabelecer, por meio da experiência
pessoal direta, os diferentes estágios de percepção que levam ao estado último.
Como é estranho que ele seja desconhecido, embora esteja presente em toda
parte!
Como é estranho esperar por um fruto diferente, outro que não esse!
Como é estranho procurá-lo em outro lugar, embora ele esteja em si próprio!
Maravilhoso!
Isso, consciente no momento presente, claro, embora insubstancial,
199
Apenas isso é a culminação de todas as visões!
Isso, sem objeto de pensamento, todo abrangente, embora livre de tudo,
Apenas isso é a culminação de toda a meditação!
Isso, que é chamado de natural, mundano e relaxado,
Apenas isso é a culminação de toda conduta!
Isso, não buscado, espontaneamente existente desde o início de tudo,
Apenas isso é a culminação de toda fruição!
Atingir a iluminação pode parecer não ser mesmo nada de especial; aqueles que
a atingiram parecem viver de uma maneira completamente comum e mundana, sem
mesmo meditar, sem nenhum sentido de ter conquistado algo. O estado ideal de ser
de um praticante dzogchen é totalmente natural; combina consciência focada com
relaxamento sem esforço. Desse ponto de vista, toda a meditação é inventada e todas
as práticas são artificiais. Tentar atingir a liberação por meio delas é como uma cobra
se enroscando em nós cada vez mais apertados, em vez de se desenroscar sem
esforço no espaço. A pessoa deveria simplesmente se apoiar natural e
espontaneamente na natureza básica da mente. Existe uma história sobre um lama
chamado Zurchungpa que ilustra o estado contínuo de consciência focada que isso
requer. Ele estava sendo questionado por um estudante de uma tradição diferente que
perguntou: “No dzogchen, a meditação não é considerada a coisa mais importante?”
Zurchungpa respondeu: “O que há para se meditar a respeito?” Então o estudante
perguntou: “Bem, você nunca medita?” Ao que Zurchungpa respondeu: “O que é que
existe possa jamais me perturbar?”
Já que não existe nada sobre o que meditar, não meditar em nada mesmo,
Já que não existe nada pelo que ser perturbado, estável em obsequiosidade,
Olhe de maneira desapegada para o estado de não-meditação e não-
perturbação.
Autoconsciência, autoconhecer, auto-iluminar, brilha claramente:
Essa própria alvorada é chamada de a mente desperta.
200
expressão da natureza luminosa e vazia de nossa mente, então não seremos levados
por nenhuma aparência, por mais impressionante ou aterrorizante que ela possa ser.
O texto continua:
Não existe nenhuma aparência que não seja conhecida como originada da
mente,
Qualquer aparência que surja é a própria mente, desobstruída.
Embora ela surja, como a água e as ondas do oceano,
Já que elas não são duas, isso é libertado na natureza da mente.
201
Mesmo que não possamos perceber aquela essência no presente, simplesmente
sabendo a respeito dela e tendo fé nela fazem uma enorme diferença. Esses
maravilhosos ensinamentos são como o sol em um dia nublado: podemos ter completa
confiança que o sol está sempre por trás das nuvens. A visão dzogchen pode impregnar
subitamente todo o caminho, qualquer que seja a prática na qual estejamos engajados
e em qualquer estágio que tenhamos atingido. O texto conclui com este último
conselho:
202
PARTE DOIS - O TEXTO
203
Capítulo Onze
A Luminosidade da Morte
TODAS AS IDEIAS BÁSICAS que estão por trás de Liberação através da audição
foram apresentadas na Parte Um, portanto agora podemos olhar o texto em detalhe à
luz desses princípios. Ele abre com um verso de louvor e devoção ao trikaya, o ser
triplo do estado desperto.
Essa invocação prepara a cena para todo o ensinamento que está para se seguir.
Embora lide com a morte, a eventualidade mais temida de toda a nossa existência,
com as aterrorizantes aparições do período após a morte, e com as perturbadoras
possibilidades de renascimento, tudo está plenamente impregnado pelo amor e pela
compaixão infinitos do estado desperto. O Buda Amithaba, que preside a família
Padma (Lótus), incorpora o princípio da compaixão, expresso como luz radiante
ilimitada. É o aspecto da iluminação ao qual podemos nos conectar com mais
facilidade, especialmente em momentos de desgaste e raiva. Por causa disso, um
amplo número de práticas relacionadas à morte se desenvolveram no contexto da
devoção a Amitabha. Sua própria terra pura é conhecida como Sukhavati, a Bem-
Aventurada (em tibetano dewachen), é e a meta de muitos budistas mahayanas após a
morte. Outras práticas para se adquirir longevidade estão centradas em Amitabha na
forma levemente diferente de Amitayus, cujo nome significa Vida Infinita em vez de
Luz Infinita. Embora seja muito legítimo desejar prolongar a vida humana, o significado
interior de tais práticas é na verdade para atingir o estado de consciência que
transcende o próprio conceito de nascimento e morte.
204
costumeiro, para indicar sua unidade com o princípio de Amitabha. O dharmakaya é o
aspecto mais elevado e informe do guru. Já que é a essência mais profunda de todos
os seres, é o guru no seu sentido último, a luz infinita habitando o coração de todos os
seres.
A última linha: “Homenagem aos gurus, os três kayas”, pode ser considerada,
como já foi descrito, referindo-se a cada um dos três kayas alternadamente como o
guru. Também poderia ser considerado de uma forma levemente diferente para
significar homenagem a todos os gurus do passado, presente e futuro, especialmente
às grandes figuras desta linhagem em particular, assim como ao mestre espiritual da
pessoa aqui e agora, já que são todos vistos como manifestações do trikaya completo.
O guru é a personificação do dharmakaya, sambhogakaya e nirmanakaya. Como vimos
no Capítulo Nove, os três kayas são aspectos do caminho, que é realmente o todo da
vida diária. Trungpa Rinpoche descreveu a vida e o ensinamento de Padmakara como a
expressão viva do trikaya: o sentido de totalidade e de espacialidade do dharmakaya, a
energia e o jogo do sambhogakaya e a atividade prática do nirmanakaya. O princípio
do trikaya também se encontra no centro de Liberação através da audição, que
estamos prestes a explorar.
73
Trungpa Rinpoche, The Sadhana of Mahamudra.
205
Liberação através da audição toma como seu assunto principal três dos seis
estados tradicionais do bardo: o bardo do morrer, o bardo do dharmata e o bardo da
existência74. Seu propósito real é a orientação durante os estágios posteriores da
experiência pós-morte; a primeira seção, que lida com o bardo do morrer é muito
breve. Também parece menos clara que o resto do texto, como se fosse esperado que
o leitor tivesse a capacidade de preencher as lacunas com informações adicionais.
Existem de fato numerosos outros ensinamentos relacionados ao processo de morrer
e a diferentes maneiras de se preparar para a morte. Em particular, um seguidor desta
tradição estaria familiarizado com Auto liberação através de sinais e presságios da
morte75, um outro texto do mesmo ciclo de termas.
74
Além do Transcending Madness de Trungpa Rinpoche e seu comentário sobre O livro tibetano dos
mortos, extensa informação sobre estes três bardos pode ser encontrada nos seguintes livros: de Tsele
Natsok Rangdrol, The Mirror of Mindfulness, Boston, Shambhala, 1989, e seu comentário, de Chökyi
Nyima Rinpoche, The Bardo Guidebook, Hong Kong e Katmandu, Rangjung Yeshe Publications, 1991; de
Lama Lodö, Bardo Teachings, Ithaca, Snow Lion, 1982; de Bokar Rinpoche, Death and the Art of Dying,
São Francisco, ClearPoint Press, 1983; de Tenga Rinpoche, Transition and Liberation, de D. I. Lauf, Secret
Doctrines of the Tibetan Books of the Dead. Capítulos sobre os três bardos também estão incluídos em
The Tibetan Book of Living and Dying, de Sogyal Rinpoche; Repeating the Words of the Buddha,
Katmandu, Rangjung Yeshe Publications, 1991 e Rainbow Painting, Rangjung Yeshe Publications, 1995,
ambos de Tulku Urgyan Rinpoche; The Dharma, Albany, SUNY, 1986, Secret Buddhism, São Francisco,
ClearPoint Press, 1995, e Luminous Mind, Boston, Wisdom, 1997, todos de Kalu Rinpoche; The Small
Golden Key, 1997 e White Sail, Boston, Shambhala, 1992, ambos de Thinley Norbu; Enlightened Journey,
de Tulku Thondup, Boston, Shambhala, 1995.
75
Em tibetano, ’chi ltas mtshan ma rang grol. Glenn Mullin traduziu este texto junto com oito outros
relacionados ao tema da morte. Ver Glenn Mullin, Death and Dying: The Tibetan Tradition, Boston,
Arkana, 1986.
206
mental, nosso estado mental durante os últimos momentos antes da morte é
particularmente importante para decidir a direção que nosso futuro irá tomar.
207
A morte ocorre quando uma doença fatal ou acidente destrói a força ou quando
o ímpeto kármico que determina nossa expectativa de vida natural se exaure. Morrer é
descrito como um processo de dissolução, desde o mais denso e o mais pesado até o
mais fino e o mais sutil nível do nossos ser. Primeiro, existe a dissolução exterior dos
quatro elementos que compõem o corpo físico — terra, água, fogo e ar — e em
seguida a dissolução interior de nossos estados mentais. Essencialmente, o que
acontece na morte é que toda a nossa energia vital ou prana retorna à sua fonte: essa
energia é reabsorvida pelo nadi central e em seguida pelo bindu indestrutível no
centro do coração. Uma maneira de definir a morte é a separação dos corpos
grosseiro e sutil. Conforme o processo de reabsorção acontece, o corpo sutil não é
mais capaz de manter o funcionamento do corpo físico grosseiro. Um a um, os cinco
pranas primários e secundários se recolhem, os nós dos chakras se desfazem e os
elementos se dissolvem; como resultado, as funções corporais e os sentidos começam
a falhar.
208
dualidade. Então não há problema algum, porque a dualidade é vista a partir de um
ponto de vista perfeitamente claro e aberto no qual não existe conflito; existe uma
visão tremendamente abrangente da unidade.”76 Ou, como está dito em Autoliberação
através da visão nua:
Todo o processo pode ser observado pelas mudanças exteriores que acontecem
no corpo e também por sensações interiores experimentadas pela pessoa moribunda.
Conforme ela se torna crescentemente desconectada do mundo externo, a consciência
dos estados internos aumenta. Durante esse Período, existem também sinais secretos
sob a forma de aparições de luz dentro da mente — chamadas de secretas porque a
maioria das pessoas sequer repara nelas, mas são extremamente significativas para o
meditante treinado. Indicam que enquanto os níveis mais grosseiros do ser se
dissolvem, os níveis mais sutis se tornam manifestos, até que por fim a essência mais
sutil é revelada. Esses sinais são lampejos confusos de luminosidade, a natureza básica
da mente, tornando-se mais e mais claros conforme as camadas de densidade se
dissolvem. Existem muitos sinais diferentes que podem aparecer tanto na morte
quanto durante a yoga que reproduz o processo de morte; a lista tradicional de oito
sinais fornecida aqui inclui apenas os mais conhecidos.
76
The Tibetan Book of Dead, p. 3.
209
em particular, mas é de muita ajuda tornar-se acostumado ao padrão geral de eventos
de forma a se preparar e diminuir o medo de morrer.
A terra é associada com o skandha da forma, que fornece a base para nosso
sentido da existência material. À medida que seu poder declina, tudo parece instável;
começamos a perder nosso chão e apoio; todo o nosso mundo está desaparecendo
sob nossos pés. Mentalmente também, existe uma sensação de afundamento; a
pessoa moribunda sente-se deprimida, desnorteada e esmagada pelo peso. É possível
se ter um antegozo dessa sensação durante a vida; existe uma sensação de se estar
perdendo contato com a realidade, como se a pessoa estivesse entrando em um
processo que poderia finalmente levar a uma completa desintegração. Como Trungpa
210
Rinpoche o colocava: “A qualidade tangível da lógica física viva torna-se vaga.” Todas
as descrições do que acontece na morte são relevantes para nós aqui e agora, se
observarmos cuidadosamente a experiência.
O leitor poderá notar uma inconsistência aqui: no Capítulo Sete, vimos que a
terra está conectada a Ratnasambhava, que habita o chakra do umbigo, enquanto a
forma e o conhecimento do espelho pertencem a Akshobhya, que habita o coração.
Mas neste caso a conexão acontece através dos budas femininos, os devas. Os cinco
devas são a essência dos cinco elementos, embora os budas masculinos também
possuam suas próprias associações independentes com os elementos. O deva Buda-
Lochana é a essência da terra, e ele, como veremos no próximo capítulo, é a consorte
de Akshobhya. Aqui é como se o deva, como o elemento da terra, assumisse certos
atributos de seu consorte.
211
arrastada por uma inundação. Fluidos podem ser descarregados pelos orifícios
corpóreos, então quando a energia de água diminui, os constituintes líquidos do corpo
começam a secar e a pele se torna ressecada. O sistema circulatório de sangue e linfa
diminui. A boca, a língua e o nariz secam, e a pessoa moribunda sente muita sede.
Nesse estágio, o sentido da audição começa a degenerar; sons externos não podem
mais ser distinguidos claramente, e o zumbido baixo interno, que é algumas vezes
escutado nos ouvidos, não está mais presente.
O sinal secreto que aparece aos olhos da mente conforme a energia da água se
funde com a energia do fogo é algo como uma fumaça que parece rodopiar ao redor
da pessoa. Isso também é uma visão parcial da luminosidade da mente, ainda
enevoada e obscurecida.
212
podemos nem mesmo reconhecer mais os entes queridos. Tentamos nos conectar com
“a temperatura abrasadora do amor e do ódio”, mas suas chamas diminuem cada vez
mais. Existe uma sensação de grande confusão, da mente tornando-se alternadamente
clara e obscura, e de crescente desligamento desta vida. O sinal secreto de que o fogo
se dissolveu no ar é a aparição de luzes faiscantes a toda a volta, como vaga-lumes ou
fagulhas vermelhas se elevando do fogo.
213
vez maior com a nossa natureza espiritual luminosa. De início, assim que passamos
pelos estágios de dissolução, ela aparece somente como uma miragem, oscilante e
ilusória, velada pelo apego ao mundo físico. Em seguia torna-se uma fumaça
enevoada, ainda vaga e indistinta. Depois, começamos a perceber fagulhas flamejantes
emergindo da fumaça, pontos cintilantes de luz que nos levam mais perto, até que
finalmente eles se fundem em uma única chama.
Nesse momento a pessoa moribunda pode ter visões de vários tipos; são
reconfortantes ou perturbadoras, depende das ações prévias da pessoa e dos
pensamentos que predominam em sua mente. Aqueles que levaram vidas violentas
podem sentir que estão cercados por figuras assustadoras e vingativas, enquanto
aqueles que levaram vidas bondosas são recebidos por rostos amistosos. Pessoas
religiosas podem ver deidades, anjos ou seus mestres espirituais vindo ao encontro
delas.
214
fundamentais77. Não são todos expressões de agressão, paixão e ilusão de uma forma
óbvia, mas podem ser mais bem descritos como as energias básicas de rejeição,
atração e indiferença, indo desde aqueles que são mais grosseiros, mais dualistas e
que necessitam de um grande nível de energia, até aqueles que são mais sutis, menos
dualistas e necessitam de menos energia. De acordo com algumas tradições, os oitenta
instintos se dissolvem juntos no início do processo interior, mas de acordo com os
ensinamentos Ningma, se dissolvem em três estágios. A mente da pessoa moribunda é
permeada alternadamente por um sentido de brancura, vermelhidão e escuridão: sua
própria luminosidade vislumbrada como se fosse através de filtros tingidos pelas cores
dos três venenos.
Primeiro, todo o prana que entrou na parte superior do avadhuti se move para
baixo em direção ao coração, e com ele o bindu branco recebido do pai desce da coroa
da cabeça. Ao mesmo tempo, os 33 instintos surgidos da agressão também se
dissolvem. A mente é preenchida com uma luz branca brilhante, como um céu claro
inundado com a luz da lua. Alguns textos também mencionam uma série de sinais
adicionais semelhantes àqueles que apareceram mais cedo, neste caso, uma miragem
ou fumaça.
Em seguida, todo o prana que entrou na parte inferior do avadhuti sobe para o
coração, junto com o bindu vermelho feminino recebido da mãe. De acordo com
diferentes tradições, diz-se que o bindu vermelho habita o chakra do umbigo, em um
ponto de quatro dedos de largura abaixo do umbigo, ou no local secreto nos órgãos
genitais. Os quarenta instintos surgidos da paixão se dissolvem. A mente é preenchida
com irradiação vermelha, como o céu no nascente ou no poente, e também pode
haver um sinal como fagulhas ou vaga-lumes.
Não é completamente certo qual dos dois bindus, com suas associações de luzes
coloridas, irá se mover para o chakra do coração primeiro. Algumas vezes eles estão
invertidos, dependendo da constituição do indivíduo. Diversos relatos têm o vermelho
como primeiro e em seguida o branco, mas na prática da yoga parece ser mais comum
experimentar o branco primeiro. Mais uma vez, algumas tradições associam a paixão
com a fase branca e a agressão com a vermelha. Algumas fontes sugerem que a
respiração exterior pode não ter cessado inteiramente e as visões das figuras de boas-
vindas podem ser vistas nesse momento; outros afirmam que mesmo no estágio final
ainda pode ser possível para a pessoa moribunda reviver sob circunstâncias
excepcionais. Os tibetanos acreditam que essa é a explicação para certas experiências
de quase-morte, tais como encontrar entes queridos ou ver uma luz brilhante, mas
eles são bastante definitivos em relação ao fato de que não é possível retornar à vida
depois de atingir o estado final de luminosidade.
77
Em sânscrito, prakriti, significando “natural, original, primário”; em tibetano, rang bzhin rtog pa ou
rang bzhin kun rtog, significando “pensamento ou conceito natural”.
215
Depois disso, os bindus masculino e feminino se unem no coração, incluindo
entre eles o bindu indestrutível que reside lá, os estados emocionais sutis
remanescentes, os sete instintos relacionados à ilusão, desaparecem. A mente é
dominada por um sentimento de escuridão, a luz negra. Ela é descrita como sendo
parecida com o crepúsculo ou um eclipse do sol— um tipo de luz oculta, uma
escuridão brilhante. Pode também haver um sinal semelhante à chama de uma
lâmpada obscurecida por uma lanterna de vidro enfumaçado.
Uma vez que os bindus tenham se unido no chakra do coração, não existe mais
possibilidade de se reviver. A consciência se dissolve no espaço, e todas as
características mentais e emocionais específicas que constituíram o indivíduo são
reabsorvidas. Para a maioria dos seres viventes, a dissolução final da consciência
significa a perda de sua identidade, portanto, eles sentem que estão sendo
aniquilados; a experiência de escuridão se assemelha à extinção. Existe uma sensação
de se estar caindo em uma escuridão densa e total, e eles perdem a consciência.
78
The Tibetan Book of Dead, p. 4-5
216
Embora a pessoa aparente estar morta externamente, ainda permanece uma
“respiração interior” ou uma “pulsação interior”, como o texto a chama, até que o
prana finalmente deixa o corpo. A pessoa permanece ou em um estado de
reconhecimento ou de inconsciência por um período de tempo que depende do
indivíduo e das circunstâncias. Para a maioria das pessoas, pode ser apenas alguns
segundos, enquanto praticantes avançados são capazes de permanecer no estado de
luminosidade por diversos dias ou mesmo semanas. A morte de fato só ocorre quando
os bindus vermelho e branco se separam novamente, liberando o bindu indestrutível
que se encontra encerrado entre eles. Eles continuam a viajar para os extremos
opostos do avadhuti e emergem sob a forma de uma gota avermelhada de fluido das
narinas e uma gota esbranquiçada do órgão sexual. Essa é a indicação de que a morte
finalmente aconteceu. O próprio bindu indestrutível, a entidade da mente e do prana
muito sutil e indivisível, deixa o corpo por um dos nove ou dez pontos possíveis de
saída. Se a pessoa moribunda realiza a transferência para uma terra pura, ele viaja
direto para cima do avadhuti e emerge através do brahmarandhra, a “abertura de
Brahma”, no chakra coronário. Mas em todos os outros casos ele escapa do avadhuti
para um dos dois nadis e, finalmente, emerge pelo nariz, pela boca, pelos olhos, pelos
ouvidos, pelo ânus, pelo órgão sexual, pelo umbigo ou pela fronte (dois pontos na
fronte são algumas vezes distinguidos: entre os olhos e acima da linha do cabelo).
Essas diferentes saídas indicam o reino para o qual a pessoa está destinada a renascer
pela força de seu karma.
79
Mais detalhes sobre as práticas de yoga e sua relação com os bardos podem ser encontrados em
Highest Yoga Tantra, de Daniel Cozort, Ithaca, Snow Lion, 1986; Death, Intermediate State and Rebirth in
Tibetan Buddhism, de Lati Rinbochay e Jeffrey Hopkins, Londres, Rider, 1979; Kalachakra Tantra, de
Geshe Ngawang Dhargyey, Dharamsala, Library of Tibetan Works and Archives, 1994.
217
tudo é experimentado como uma expressão da deidade, o jogo da mente desperta.
Durante o estágio de conclusão, a visão das coisas como elas realmente são é de fato
realizada e se torna uma realidade viva.
218
como é dito nos versos-raiz. Durante as experiências de morte, bardo e renascimento,
somos apresentados à oportunidade de despertar nas esferas correspondentes de
iluminação; é por isso que é tão importante entender o princípio do trikaya em relação
à Liberação através da audição.
O texto começa por afirmar que ele é “o meio de liberação no bardo para
praticantes de capacidades medianas”. Primeiro, eles devem ter recebido as instruções
práticas, orais, sobre reconhecer e permanecer na natureza final e verdadeira da
realidade. Isso não pode ser aprendido em livros, mas deve ser mostrado diretamente
pelo guru ao estudante em um encontro de mentes, uma transmissão plena do poder
da presença desperta. Quando a morte chega, os praticantes com as mais altas
capacidades, que conquistaram profundidade e estabilidade suficientes em sua
prática, não necessitarão de nenhuma assistência, mas irão simplesmente fundir suas
consciências com o dharmakaya. O verso raiz para o bardo do morrer descreve assim a
melhor maneira de morrer:
Os seis reinos da existência são criados pela mente. Por mais duro que possa ser
aceitar, sempre nos encontramos vivendo em circunstâncias que se amoldam aos
padrões kármicos da corrente mental. Criamos nosso próprio mundo com nossas
80
Frequentemente conhecido por seu nome tibetano, powa ('pho ba); em sânscrito é samkranti. Para
ensinamentos Ningma sobre transferência, ver Patrul Rinpoche, The Words of My Perfect Teacher, Parte
Três, e Thinley Norbu, White Sail.
219
próprias projeções por meio de percepções e pensamentos. Não vemos isso porque,
no nível grosseiro, a dualidade é irresistivelmente poderosa: sentimos que a mente e o
corpo são separados, o eu e os outros são separados, e o indivíduo e seu ambiente são
separados. Mas, à medida que a consciência dos níveis mais sutis aumenta, a unidade
de mente e corpo e a inter-relação dos mundos interior e exterior tornam-se mais
aparentes. No nível muito sutil, não existe nenhuma distinção: a mente e o corpo são
um, e essa unidade abrange o todo da existência.
220
completamente, seus elementos grosseiros se dissolvendo totalmente na luz do arco-
íris. Entretanto, diz-se que muitos grandes mestres que foram capazes disso
escolheram desempenhar externamente uma forma mais convencional de
transferência, de maneira a demonstrá-la para seus alunos, e deixar para trás seus
corpos e as relíquias que permanecem depois da cremação como uma fonte de
bênçãos.
Se a pessoa tem apenas capacidades medianas, como diz o texto, deveria tentar
a transferência para o dharmakaya quando a luminosidade aparece no final do bardo
do morrer. Se não obtiver sucesso, ainda existe a possibilidade de realizar a
transferência para o sambhogakaya durante o bardo do dharmata ou para o
nirmanakaya durante o bardo da existência. Indicar essas três oportunidades é o
propósito principal em Liberação através da audição.
221
conquistado confiança e mostrado alguns indícios de sucesso; na hora da morte, ele é
colocado em funcionamento. O uso de imagens e o intenso sentimento de devoção
são auxílios poderosos para a transformação de nosso estado mental; precisamos
acreditar que podemos, e de fato entrar na presença de Amitabha através do poder de
seu amor. Se este pensamento é forte o suficiente durante os últimos momentos antes
da morte, ele corta através da corrente kármica de causa e efeito que, de outra forma,
nos impeliria em direção ao renascimento em um dos seis reinos do samsara.
Para que essa prática obtenha sucesso, a pessoa deve ter completa confiança em
Amitabha e em seu mestre; deve ser genuína e forte o suficiente para manter a mente
focada sem nenhum traço de dúvida ou perturbação. Esse tipo de fé muito simples e
direta na verdade faz a ligação com a atitude dzogchen de que tudo já está realizado e
perfeito. Não existe absolutamente nenhum sentido do seu próprio esforço ou de sua
própria realização. Entretanto, nesse caso, ainda existe uma percepção da dualidade; a
iluminação é vista como sendo externa a si na pessoa de Amitabha, por quem a pessoa
sente total gratidão e devoção. Ainda assim, existe uma intuição subjacente de
unidade e de nossa própria natureza desperta. Embora falemos de seres conscientes
necessitando serem salvos e dos budas os salvando, é sempre importante lembrar que
no budismo não existe diferença essencial ou distância entre o salvador e o salvado.
222
dirigida para “todos os tipos de pessoas comuns que receberam ensinamento, mas,
embora sejam inteligentes, não reconheçam, ou reconheceram, mas não se tornaram
acostumadas à meditação”.
Instruções detalhadas são dadas para a leitura do texto. Se possível, ele deveria
ser lido pelo principal guru da pessoa moribunda, ou então por um irmão ou irmã de
dharma, significando aqueles que partilharam ensinamentos e iniciações. Entretanto,
se tal pessoa não puder ser encontrada, alguém que pertença à mesma linhagem de
transmissão pode fazer a leitura. Se nenhum deles estiver disponível, a leitura deve ser
feita por alguém que saiba ler em voz alta de forma clara e precisa. O leitor deverá ser
alguém que a pessoa moribunda ame e acredite. Na hora da morte, quando se está
naturalmente confuso e assustado, é particularmente importante não provocar
sentimentos negativos, tais como antipatia e suspeita. Também é importante haver
uma atmosfera calma e positiva e, por essa razão, a família deveria ser mantida
afastada para que seu pesar e sua ansiedade não causem nenhuma perturbação.
Oferendas devem ser feitas em um espírito de generosidade desapegada, não apenas
de forma material, mas também imaginando oferendas ilimitadas preenchendo todo o
universo. Isso cria o estado mental correto para o abandono final da existência
samsárica.
A leitura pode até ser feita na ausência da pessoa moribunda ou falecida, “Se o
corpo não está presente, alguém deveria sentar-se na cama ou na cadeira do falecido,
e, proclamando o poder da verdade, invocar sua consciência, imaginando que ele ou
ela está sentado à sua frente ouvindo, e ler em voz alta.”
A transferência não deve ser tentada muito cedo, já que isso seria o equivalente
a cometer suicídio. O melhor momento é quando a respiração está prestes a parar,
antes que os estágios finais de dissolução tenham acontecido. Mas, se a transferência
não é realizada nesse estágio, as instruções para o bardo do morrer devem ser
ministradas. Como o texto explica, assim que a respiração parou, todo o prana é
223
absorvido pelo avadhuti e a «luminosidade livre das complexidades brilha claramente
na consciência”. É um momento decisivo, porque é nesse ponto que a maioria das
pessoas desfalece em direção à inconsciência. Antes que isso ocorra, o mestre ou
amigo deve preparar a pessoa dizendo:
81
Lama Lodö, Bardo Teachings, e Bokar Rinpoche, Death and the Art of Dying.
224
não deixe que seus pensamentos divaguem.” Então ele ou ela é lembrado a adotar a
atitude de bodhichitta, o coração e a mente despertos, e a meditar desta forma:
82
Chögyam Trungpa, The Heart of the Buddha, Boston, Shambhala, 1991, p. 168. Muitos dos livros de
Trungpa Rinpoche contêm referências ao mahamudra, mas ver especialmente Illusion’s Game.
225
pessoa moribunda aspira a fazer. O corpo do bardo do mahamudra é um corpo
puramente ilusório no qual a aparência e o vazio coexistem simultaneamente,
conhecido como dois-em-um83. Esse corpo pode tomar qualquer forma que seja
apropriada de maneira a ajudar os seres viventes.
83
Em sânscrito, yuganaddha; em tibetano, zung ‘jug. Este termo tão importante é muitas vezes
traduzido como “união” ou “unidade”, que sinto que são muito genéricos e podem ser usados para
muitas outras palavras. “Conjunção” pode ser aceitável, especialmente tendo em mente seu significado
alquímico. Outras traduções úteis incluem “Ser unitivo” (Guenther), “integração” (Thurman),
“coalescência” (Dorje e Kapstein), e “ambos-de-uma-vez” (Hookham), mas prefiro o “dois-em-um” de
Snellgrove. O termo sânscrito significa literalmente “unidos em um par”. Ele implica a coexistência
simultânea de dois elementos distintos e iguais, em vez de eles se fundirem e se dissolverem. Assim
como se refere à aparição e à desaparição, é frequentemente utilizado para a experiência de bem-
aventurança e do vazio ou para a compreensão de que as verdades relativa e absoluta não são
separadas.
226
falando sobre o seu movimento, enquanto mais adiante é chamado de mente ou
consciência, enfatizando o seu aspecto de consciência. De forma a conseguir a
transferência, o prana deve ir direto para cima através do brahmarandhra, portanto
em muitas práticas existem instruções para bloquear todas as outras saídas com
mantras. Aqui, aquele que auxilia a pessoa moribunda é instruído a pressionar as
“artérias do sono” no pescoço, que irá evitar que o prana retorne aos nadis direito e
esquerdo.
Essa instrução deve ser repetida três ou sete vezes. Por meio dela, “primeiro, a
pessoa é lembrada daquilo que o guru já salientou; segundo, a pessoa reconhece sua
própria consciência nua como luminosidade; e terceiro, tendo reconhecido a si
própria, a pessoa se torna inseparavelmente unida com o dharmakaya e é certo de ser
liberada”.
A verdadeira natureza da mente, “sua própria consciência nua”, não é nada mais
do que o estado primordial de iluminação. E esse estado primordial é a união
227
indivisível dos princípios masculino e feminino Samantabhadra e Samantabhadri — a
Bondade Universal, sem princípio e sem fim. É a descoberta final de nossa própria
bondade básica. É a nossa consciência original que nunca se extraviou do estado
desperto.
228
ela é certa. O terceiro pensamento é a contemplação do karma, a inevitabilidade de
causa efeito. O que quer que pensemos, digamos ou façamos coloca em movimento
uma cadeia de consequências da qual não podemos escapar, seja nesta vida ou na
próxima. O quarto pensamento é a contemplação das falhas do samsara e o
sofrimento inerente na situação. Olhando para a origem do sofrimento, reconhecemos
que ele brota da ganância, do ódio e da ilusão do ego, agarrado à existência individual.
Estranho como possa parecer, embora o ego apegado seja realmente nada a não
ser causa de tristeza, é extremamente difícil abandoná-lo. Podemos esperar que, no
momento da morte, seria um tremendo alívio se ver livre de tal fardo e se dissolver na
luz da realidade. Ao contrário, é uma perspectiva aterrorizante, porque ainda existe a
ilusão de alguém ali esperando sobreviver. Mas iluminação significa a morte do ego; a
pessoa que quer se tornar iluminada não estará mais lá. Como Trungpa Rinpoche
costumava dizer: “Você não pode assistir ao seu próprio funeral!” A essência de todas
as afirmações do bardo está relacionada com esse paradoxo, manifestando-se em
várias situações: a tensão entre tentar ficar por ali e assistir ao que está acontecendo
ou se abandonar completamente ao desconhecido, ao inconcebível.
Mas existem muitas outras maneiras nas quais todo o processo de morrer é
comparado com diversos níveis diferentes nas experiências desta vida. Entre os seis
bardos, a característica do bardo do morrer é o processo de dissolução. Ele possui uma
qualidade emocional particular de pavor e pânico frente à desintegração de tudo o que
somos e à perda de tudo o que sabemos. Esse mesmo sentimento pode ocorrer
sempre que passarmos por algum choque inesperado ou recebermos notícias
229
devastadoras; por exemplo, se estivermos envolvidos em um acidente, se ouvimos a
respeito da morte súbita de alguém que amamos, ou se nos dizem que temos uma
doença séria. Isso causa uma sensação terrível de afundamento, como se o chão
estivesse se abrindo sob nossos pés. Quando nosso mundo desaba, podemos ser
tomados por uma fraqueza, sentirmo-nos mal e desmaiar, ficar sem fôlego como se
estivéssemos sufocando, ou nos sentirmos frios por dentro, exatamente como é
descrito durante a dissolução dos elementos. A todo custo, desejamos que
pudéssemos recuar ao momento anterior e manter o mundo exatamente como ele
costumava ser. Mas quanto mais nos apegarmos, pior fica. Abandonar-se é o único
remédio. Aqui mais uma vez, as atitudes desenvolvidas durante a prática fornecerão a
motivação e a presença de espírito para lembrar e aplicar o que quer que já tenhamos
aprendido.
Mesmo assim não podemos evitar o abandono, porque a morte ocorre a cada
momento. O processo de dissolução do grosseiro para o sutil, seguido pela evolução
inversa do sutil para o grosseiro, está acontecendo dentro de nós todo o tempo.
Ocasionalmente podemos ser capazes de captar um lampejo fugaz dele, quando
adormecemos ou acordamos de um sonho, mas quase sempre estamos
completamente ignorantes das bases sutis da consciência e permanecemos totalmente
identificados com suas manifestações superficiais. Conforme cada momento de
consciência passa, dá origem ao seguinte, portanto o fluxo incessante do samsara
segue em frente. Mas esse ciclo de nascimento e morte acontece dentro da amplidão
do espaço. Subjacente a todas as aparências que surgem e passam está o dharmata, a
natureza verdadeira dos fenômenos, que é ‘‘aberta e vazia como o espaço”. Se nos
abandonamos em direção ao espaço assim que cada pensamento, emoção e
experiência morrem, então a reação kármica em cadeia é interrompida. Existe sempre
uma brecha — um bardo — entre o cessar de um momento e o surgimento do
230
próximo, em que a luminosidade pode ser reconhecida e o estado desperto é visto
como estando sempre presente e todo abrangente.
231
Capítulo Doze
Paz Invencível
232
Liberação através da audição trata-se da mente de alguém que acabou de morrer, mas
se o aplicarmos a nós mesmos aqui e agora, ela está acontecendo dentro de nossa
própria mente. Dentro de cada um de nós existe aquela essência muito sutil que
permanece para sempre no estado primordial e, simultaneamente, existe também a
queda em direção à confusão.
84
Em sânscrito, anabhoga; em tibetano, Ihun grub.
233
Se a pessoa falecida não reconheceu a luminosidade quando esta raiou ao final
do bardo do morrer, pode permanecer em um estado de inconsciência por um período
que vai desde um simples momento, até quatro dias e meio; em média, dura o tempo
que se leva para fazer uma refeição. Em seguida, o prana escapa do corpo e a
consciência torna-se clara de novo. Imediatamente ao acordar do estado de
inconsciência, as tendências sutis para a dualidade e um sentido de ego são reativados.
Em um lampejo, a pessoa falecida passa pela experiência das três luzes e da reaparição
dos elementos sutis em ordem inversa, criando um corpo mental que pode ver e ouvir,
tal como em um sonho.
234
“Dever-se-ia chamar o nome da pessoa morta três vezes e repetir as instruções
anteriores para indicar a luminosidade.”
Aqueles que não estavam praticando nada do yoga da deidade são instruídos a
meditar em Avalokiteshvara, o Senhor da Grande Compaixão. Avalokiteshvara é a
emanação bodhisattva de Amitabha; é a presença viva e ativa do amor e da compaixão
no mundo. Por causa de seus votos para liberar todos os seres conscientes, ele é a
deidade natural e universal escolhida e disponível para todos; nenhum poder ou
ensinamento especial é necessário para se meditar nele e aspirar a entrar em seu reino
puro.
Por meio desses três métodos, a pessoa falecida tem uma outra chance de entrar
nos reinos do dharmakaya, sambhogakaya e nirmanakaya durante o bardo do
dharmata. “Assim como a luz do sol supera a escuridão, também o poder do karma é
superado pela luminosidade do caminho, e a liberação é atingida.” Como o texto se
repete mais uma vez, depois de praticamente cada instrução, não há dúvida de que os
que não a reconheceram anteriormente o farão agora por lhes estar sendo mostrado
dessa maneira, e é impossível que não sejam liberados. Da mesma forma, ele ressalta
a necessidade de se ler as instruções em voz alta pelo bem daqueles que não eram
hábeis o suficiente na meditação para chegar ao reconhecimento sem ajuda ou pelos
que possam estar confusos em função de doença grave, ou cujas mentes possam estar
nubladas pelo efeitos kármicos de compromissos rompidos.
235
Dessa maneira a pessoa é liberada ao reconhecer a luminosidade do
segundo bardo, mesmo se não reconheceu a luminosidade básica. Mas se
mesmo isso não a libera, então se diz que existe o terceiro bardo: depois
que o bardo do dharmata apareceu, as confusas alucinações kármicas do
terceiro bardo irão aparecer. Portanto, nessa hora, é muito importante que
a grande indicação do bardo do dharmata seja lida, porque é
extremamente poderosa e de grande ajuda.
236
Abandonarei todas as projeções de medo e terror,
Reconhecerei tudo o que surgir como a auto-exibição da consciência
E saberei que é da natureza visionária do bardo.
Quando chegar o tempo de atingir o ponto crucial
Não tema a auto-exibição dos seres pacíficos e coléricos!
237
do medo de perder seu próprio ego e se tornar absorvido nas visões do estado
desperto: “Aquele súbito vislumbre de ausência de ego traz uma espécie de abalo.” 86
Esses fenômenos são aterrorizantes porque são muito brutos e intensos. Não são
como sons, luzes e cores comuns; são pura energia, expressando as qualidades sutis
dos cinco elementos. A consciência no bardo não está mais protegida pela solidez da
carne e dos ossos, nem limitada pela lentidão dos sentidos físicos. É como se a pessoa
tivesse mergulhado completamente nua em um redemoinho de sensações. É
impossível se afirmar se elas vêm de dentro ou de fora. Trungpa Rinpoche discute a
natureza das visões do bardo em seu comentário, relacionando-as com as meditações
da prática especial do bardo em retiro, que é conduzida em total escuridão. Ele afirma
que o que ocorre não é exatamente visão, percepção ou experiência, porque isso
envolve uma relação dualista. Aqui não há observador ou experimentador, nenhuma
maneira de separar as aparições de si próprio e fazer delas objetos, ou de olhar a
própria experiência de forma a entendê-la. Ele destaca que esse mesmo princípio de
percepção direta e não dual é o ponto-chave para entender o simbolismo da arte e da
meditação tântricas. Retornaremos ao assunto do simbolismo no próximo capítulo.
86
The Tibetan Book of Dead, p. 15.
238
O problema ocorre porque tendemos a pensar no ego individual comum como
sendo o projetor. Mas as deidades são a manifestação de nossa própria natureza
original e desperta, que transcende a individualidade. São realidades universais.
Quando os elementos grosseiros e os skandhas se dissolvem, as deidades inatas são
reveladas. Estão naturalmente presentes, sem qualquer esforço de nossa parte. Isso é
chamado existência espontânea ou presença espontânea. As deidades não são apenas
psicológicas, nem são criadas pela meditação. São a nossa natureza verdadeira, mas
em virtude de incontáveis vidas vagando no samsara perdemos de vista essa natureza.
Elas não são símbolos de ideias abstratas, mas a própria realidade. São a presença viva
da iluminação, não ideais de iluminação. São o que somos realmente, mas são muito
mais reais do que nós no nosso presente estado.
87
The Tibetan Book of Dead, p. 12.
239
Mãe que dá à luz todos os budas dos três tempos,
Branca como o cristal puro e sem máculas do dharmadhatu,
Alegremente abraçando o pai com grande bem-aventurança,
Homenagem a Samantabhadri, a grande mãe.
240
O significado de sua união sexual é tão importante quanto seus significados
individuais. Ilustra graficamente a absoluta inseparabilidade e interdependência dos
dois elementos complementares do estado desperto. Mas, acima de tudo, é uma união
extática que produz bem-aventurança. Bem-aventurança é a própria essência da
iluminação; é o acordar do ser inteiro da pessoa em direção à experiência
transcendente da sensibilidade. Ela é chamada de a grande bem-aventurança que não
se escoa: é inexaurível, não é afetada por nenhuma circunstância externa e nunca se
dispersa nas emoções comuns dos cinco venenos. Quer as deidades em união sejam
pacíficas ou coléricas, a expressão em seus rostos e a atitude de seus corpos revelam a
bem-aventurança que os permeia totalmente.
88
A mandala das cem deidades pacíficas e coléricas se origina no ciclo Mayajala (Rede de ilusão mágica)
de tantras Ningma, cujo texto básico é o Guhyagarbha Tantra (Tantra da essência secreta). Tradução
com comentários de Gyurme Dorje em sua tese de doutorado inédita: A Critical Edition of the
Guhyagarbha-tantra, SOAS, Universidade de Londres, 1988. Enquanto as deidades mais importantes são
as mesmas, alguns dos detalhes de sua iconografia e as figuras menores na mandala diferem daquelas
de Liberação através da audição e seus textos associados. Ver também Herbert Guenther, Matrix of
Mystery, Boulder, Shambhala, 1984.
241
O texto nos diz que “samsara é invertido e tudo aparece como luzes e imagens”.
Comumente, tudo dentro da nossa experiência inteira é construído e condicionado
pelos cinco elementos, pelos cinco skandhas e pelos cinco venenos. Mas durante o
bardo do dharmata o samsara é invertido: a experiência comum é virada de trás para a
frente, de dentro para fora e de cabeça para baixo. Em vez de perceber somente o
aspecto grosseiro e externo das coisas, experimentamos sua essência pura, original,
vinda de dentro. Nossos próprios elementos se manifestam como os devas, nossos
skandhas como os budas, e os cinco venenos são transformados nos cinco tipos de
conhecimento desperto.
As deidades das cinco famílias aparecem em suas próprias terras puras ou reinos,
que são o ambiente ou campo do estado desperto. Assim como os seis reinos do
samsara são produzidos a partir da mente, da mesma maneira são as terras puras. Por
89
The Tibetan Book of Dead, p. 13.
242
causa da tendência humana de rotular e categorizar para poder entender,
diferenciamos aquele campo infinito e todo penetrante como as terras puras dos
diferentes budas. Também podemos percebê-las com a visão sagrada e criá-las através
de atividades iluminadas. Mas, já que não nos reconhecemos e aos outros seres
viventes como deidades, não reconhecemos as terras puras ao nosso redor. Em vez
disso, interpretamos equivocadamente a experiência de vida como os seis reinos do
samsara. Portanto, durante o bardo, nossas tendências para criar os mundos de sonho
dos seis reinos também se manifestam, aparecendo como caminhos convidativos de
luz colorida.
243
Mesmo dentro da tradição Ningma existem diversos relatos levemente
diferentes desse bardo. Neles, algumas das deidades podem aparecer com outras
cores e atributos, que podem ser encontradas refletidas nas pinturas da mandala do
bardo. (Ver Figura 4, em que as deidades pacíficas estão arrumadas fora do círculo
central que contém as deidades coléricas.) Em adição às descrições dadas em
Liberação através da audição, fiz uso dos dois textos anteriormente mencionados, As
cem homenagens e A prática do dharma.
O PRIMEIRO DIA
244
partícula da existência em todas as direções. Ele está unido com o deva
Akashadhatvishvari, a Rainha do Espaço. Ela é branca como ele, a cor da lua, enquanto
ele é da cor de um búzio. Cada um deles segura um sino na mão esquerda. Ele
representa o princípio feminino de vazio e sabedoria e é sempre seguro na mão
esquerda. Em sua mão direita, cada um segura uma roda, o símbolo de sua família.
Com seus oito raios irradiando nas direções primária e intermediária, ela representa a
universalidade; é a roda do dharma, cujos oito raios significam o caminho óctuplo
nobre do Buda, e é também um outro símbolo de soberania.
Os tronos de todos os cinco budas são formados por lótus, sobre os quais está
um disco da lua apoiado em um disco do sol. O lótus é um símbolo da pureza
primordial da iluminação brotando do pântano lamacento do samsara. Ele também
simboliza o princípio feminino, que dá à luz todas as manifestações da iluminação.
Sentar ou ficar de pé sobre um lótus indica que as deidades não abandonaram o
samsara pela paz do nirvana; elas entram no mundo, mas não são corrompidas por ele.
Já que a lua é prateada ou branca, a cor do sêmen, ela representa o princípio
masculino da compaixão e dos meios habilidosos. O sol é dourado ou vermelho, a cor
do sangue menstrual, representando o princípio feminino da sabedoria e do vazio.
Com algumas exceções, as deidades pacíficas estão sentadas na lua e as deidades
coléricas no sol. Em geral, ambos os discos são imaginados como estando presentes,
embora somente o mais alto seja de fato visível.
90
Para um livro abrangente e lindamente ilustrado sobre iconografia e seus significados, incluindo
muitos dos atributos das deidades pacíficas e coléricas, ver Robert Beer, The Encyclopedia of Tibetan
Symbols and Motifs, Londres, Serindia Publications, 1999.
245
turquesa. Usar um animal como assento ou como veículo significa que, por um lado, a
pessoa superou e transmutou completamente os aspectos negativos de seu
comportamento instintivo, e por outro lado, conquistou e integrou suas características
positivas. Os tronos animais também representam certos atributos iluminados
possuídos por todos os budas; o leão representa os quatro tipos de destemor através
dos quais as forças maléficas dos quatro maras são superadas.
91
Journey Without Goal, p. 111.
246
Quando, por causa de intensa ilusão, vago no samsara,
No caminho luminoso do conhecimento todo abrangente
Possa o abençoado Vairochana ir à minha frente,
Grande mãe, a Rainha do Espaço, atrás de mim,
Livra-me da passagem perigosa do bardo
E leva-me ao estado desperto perfeito.
247
O SEGUNDO DIA
Uma outra ligação inesperada é fornecida por sua consorte, Buda-Lochana, que é
o deva da terra. Ela também se adapta à cor de Akshobhya, tornando-se o azul do
lápis-lazúli. Em relação aos skandhas, a terra corresponde à forma, e a água, ao
248
sentimento, embora no sistema das cinco famílias que estamos usando aqui,
Akshobhya combina com ambos, a forma e a água. Esse cruzamento de atributos foi
mencionado na dissolução dos elementos, mas não foi discutido em nenhum detalhe,
porque a união dos budas masculinos e os devas ainda não havia sido explicada. Agora
podemos ver como a combinação das qualidades da terra e da água acontece através
da união de Akshobhya com Lochana. Terra e água necessitam um do outro. Nesse
caso, a terra (o deva) fornece as circunstâncias que apoiam e contêm a água (o buda).
Como Trungpa Rinpoche ressaltou em seu comentário, o nome dela significa o Olho de
Buda, portanto ela é o olho do despertar através do qual as características sólidas e
estáveis do Akshobhya encontram um escoadouro. Ela “abre, ela fornece a saída ou
ativação da coisa inteira, o elemento da comunicação”.
Cada um dos pares segura um sino na mão esquerda e um vajra de cinco pontas
na direita. As cinco pontas de cada lado do vajra representam os cinco budas
masculinos e femininos, portanto mais uma vez somos lembrados do princípio da
totalidade inerente em cada uma das famílias.
249
Os oito bodhisattvas femininos são algumas vezes conhecidos como deusas de
oferenda ou puja devas. Representam a transmutação dos objetos das oito qualidades
de consciência. Isso significa que tudo que se origina nos campos dos sentidos,
incluindo a mente, seja bom ou ruim, agradável ou desagradável, alegre ou triste, é
oferecido ao estado desperto e torna-se uma inspiração para despertar. O feminino
sempre simboliza o vazio. Em sua forma exterior, esses oito devas exibem vários tipos
de desfrute sensorial, mas interiormente incorporam seu vazio essencial. Sem o
princípio da transmutação, tudo o que experimentamos simplesmente perpetua o
samsara. Alimentos e bebidas e todos os outros prazeres sensuais alimentam apenas o
nosso corpo e a nossa mente grosseiros, portanto no fim das contas, eles conduzem à
morte. Mas ao oferecê-los aos budas, o que significa desfrutá-los com a consciência de
nosso estado desperto inato, eles podem ser transmutados em amrita, o elixir da
imortalidade.
À frente do par central de deidades, está Lasya, Dança. Seu nome faz referência
ao tipo feminino gracioso da dança indiana, em contraste com o estilo masculino mais
vigoroso. Nas palavras de Trungpa Rinpoche, ela “exibe a beleza e a dignidade do
corpo... a majestade e a sedução do princípio feminino”92. Ela representa a pureza
básica de tudo que apareça como objeto da visão, e oferece isso aos olhos de todos os
92
The Tibetan Book of Dead, p. 18.
250
budas. É da cor da pedra da lua. Traz um sino em sua mão esquerda, e em sua mão
direita está um espelho, o símbolo da forma.
As instruções apelam para que a consciência da pessoa falecida não olhe para o
caminho da luz suave e enfumaçada. “Se você for atraído por ela, irá cair em direção
ao inferno e afundar no pântano lamacento de sofrimento insuportável, do qual não
existe jamais nenhuma saída.” Em vez disso, a pessoa deveria despertar intensa
devoção em relação à luz branca brilhante.
251
Quando, por causa de intensa agressão, vago no samsara,
No caminho luminoso do conhecimento do espelho
Possa o abençoado Vajrasattva ir à minha frente,
Grande mãe Buda-Lochana atrás de mim,
Livra-me da passagem perigosa do bardo
E leva-me ao estado desperto perfeito.
Agora podemos ver mais claramente como esses “dias” nos apresentam uma
sucessão de visões da vida à luz das cinco famílias. Todas as famílias são completas em
si, portanto nada é deixado de fora. Não é que apenas os aspectos Vajra da experiência
estejam presentes no segundo dia, enquanto todo o resto é eliminado da descrição,
mas mais como se naquele momento víssemos todo o nosso mundo através dos
aspectos de Vajra. Tudo está impregnado com o brilho, a clareza e a precisão do modo
Vajra de percepção. Os objetos dos sentidos, originando-se do skandha da forma, são
claros como cristal e vívidos, aparecendo como na nova luz da alvorada. A mente é
aguçada e clara, com a inteligência de Vajra assemelhada ao diamante. Ao mesmo
tempo, existe um senso de firmeza e solidez que vem da natureza de Akshobhya,
ampliada pelas qualidades da terra de Lochana. Existe também a atividade compassiva
dos bodhisattvas e a transmutação da forma e da visão pelos devas. Todos eles
existem de forma inerente dentro de nós. Estão continuamente sendo manifestados
como a atividade de nossa própria mente. De momento a momento, temos a escolha
de ou aceitar o mundo de nossa forma inconsciente habitual, influenciados por
tendências habituais para a negatividade e a agressividade, ou de despertar e ver este
mundo de forma renovada, através da visão desperta do Buda-Lochana.
O TERCEIRO DIA
252
do sul. Seu corpo é amarelo na cor e ele segura uma joia realizadora de
desejos em sua mão. Ele está sentado em um trono de excelentes cavalos,
abraçando a mãe Mamaki. Os dois bodhisattvas masculinos, Akashagarbha
e Samantabhadra, e as duas bodhisattvas femininas, Mala e Dhupa, os
rodeiam. Portanto, seis imagens do estado desperto irão aparecer vindas
do espaço de arco-íris, raios e luz. A luz amarela do skandha do sentimento
em sua pureza básica, o conhecimento equalizador, amarelo brilhante,
enfeitado com esferas de luz, tão claras e brilhantes que os olhos não
conseguem tolerar, virão em sua direção do coração de Ratnasambhava
em união com sua consorte, e penetrarão no seu coração de tal forma que
seus olhos não conseguirão olhar para ela. Ao mesmo tempo, a suave luz
azul do reino humano irá também perfurar seu coração, lado a lado com a
luz do conhecimento.
Seu trono é apoiado por cavalos. Na antiga Índia, cavalos eram a propriedade
mais estimada da casta regente e da casta guerreira, portanto sua presença contribui
para a atmosfera geral de orgulho, riqueza e nobreza que caracteriza a família Ratna. O
cavalo representa a realização das quatro bases da habilidade miraculosa, que são
como as suas quatro pernas, com sua velocidade e resistência mágicas.
253
À frente está Mala, Guirlanda. É de um amarelo-açafrão, segurando uma
guirlanda e um sino. Com gestos graciosos, oferece suas guirlandas, tecida com flores
da terra, como adornos para os budas. Representa os conceitos de todos os
fenômenos, os objetos da consciência mental.
Atrás está Dhupa, Incenso. É de uma cor amarela, como a joia simbólica da
família Ratna. Personifica os objetos do sentido do olfato, e segura uma tigela de
incenso com a qual oferece o desfrute do aroma. A fragrância do seu incenso permeia
a atmosfera, enchendo todo o ambiente com bondade e frescor.
254
Este é o caminho convidativo da luz das impressões kármicas acumuladas
pelo seu intenso orgulho. Se for atraído por ela, irá cair no reino humano e
experimentar nascimento, velhice, morte e sofrimento, e nunca escapará
do pântano lamacento do samsara. É um obstáculo que bloqueia o
caminho da liberação, portanto não olhe para ele, mas abandone o
orgulho.
O QUARTO DIA
O texto nos assegura que a liberação é certa quando entramos neste caminho,
mas pode haver aqueles que ainda são incapazes de reconhecê-lo por causa dos
efeitos maléficos de suas ações passadas. Em seguida, a família Padma irá aparecer,
porque desejo e paixão impedem-nos de enxergar a verdadeira natureza de nossa
mente.
255
da luz do arco-íris. A luz vermelha do skandha da perfeição em sua pureza
básica, o conhecimento investigador, vermelho brilhante, ornamentado
com esferas de luz, claro e brilhante, nítido e fascinante, irá penetrar direto
em seu coração vindo do coração de Amitabha em união com sua consorte,
de tal forma que seus olhos não a suportarão. Não tenha medo dela. Ao
mesmo tempo, a suave luz amarela dos fantasmas famintos também irá
brilhar, lado a lado com a luz do conhecimento. Não desfrute dela,
abandone o desejo e o anseio.
A família Padma de Amitabha aparece do elemento fogo. Tudo que esteja ligado
com essa família expressa a transmutação da paixão, a raiz do samsara, em compaixão,
a atividade da iluminação. O fogo simboliza a ambos e é a força transmutadora que
transforma um no outro. Amitabha é de cor cobre, enquanto Pandaravasini é como um
cristal de fogo. Sua vestimenta branca, de onde ela tira seu nome, é tecida de um
material limpo pelo fogo. Eles seguram sinos e lótus vermelhos em suas mãos. O lótus
cresce com suas raízes cravadas na lama e no lodo, mas sua flor surge acima da água
imaculada e impoluta; ele se alimenta do rico adubo dos venenos e os transmuta em
iluminação.
Ao lado do casal central está Avalokiteshvara, o Senhor que Olha para Baixo.
Embora todos os bodhisattvas incorporem a atividade compassiva, ele é o princípio da
compaixão. Onde quer que encontremos amor espontâneo e altruísta entre seres
viventes, teremos uma manifestação de Avalokiteshvara. É de cor coral, segurando um
sino e um lótus vermelho, a flor da compaixão. Representa a consciência corporal, o
sentido do tato.
256
ajudar os outros e ser ajudado são ilusão, porque todos os seres já estão despertos na
esfera da verdade última. É de cor escarlate, segurando um sino em sua mão esquerda.
Em sua mão direita, As cem homenagens afirmam que ele segura um lótus, enquanto
A prática do dharma dá a ele uma espada: esse é seu atributo habitual, a espada da
sabedoria que corta através dos nós da confusão e da dúvida, mas os dois são
frequentemente combinados, como uma espada apoiada sobre um lótus. Ele
representa a consciência mental.
À sua frente está Gita, Canção. É da cor da flor do hibisco vermelho. Toca um
instrumento de cordas, que originalmente teria sido o instrumento indiano vina, mas
nas pinturas tibetanas se parece mais com um violão. O violão parece ser uma imagem
apropriada para usar no Ocidente. Ela toca nele para acompanhar suas canções de
oferendas para os budas, representando os objetos do sentido da audição.
Atrás está Aloka, Luz. É da cor de um lótus vermelho, e segura uma lâmpada de
brilho forte, oferecendo luz para todos os budas. Ela purifica o conceito do futuro e
todos os pensamentos, planos, esperanças e medos relacionados a ele.
257
Possa o abençoado Amitabha ir à minha frente,
Grande mãe Pandaravasini atrás de mim,
Livra-me da passagem perigosa do bardo
E leva-me ao perfeito estado desperto.
O QUINTO DIA
Ó filho de família desperta, escute sem distração. No quinto dia, a luz verde
do elemento do ar purificado irá brilhar. Então, o abençoado
Amoghasiddhi, o senhor acompanhado por seu círculo, irá aparecer à sua
frente vindo do Reino das Ações Acumuladas verde do norte. Seu corpo é
verde na cor, e ele segura um vajra duplo em sua mão. Está sentado em um
trono de pássaros kinnara voando pelo céu, abraçando a mãe Samaya-
Tara. Os dois bodhisattvas masculinos, Vajrapani
Sarvanivaranavishkambhin, e as duas bodhisattvas femininas, Gandha e
Naivedya, os rodeiam. Portanto, seis imagens do estado desperto
aparecerão vindas do espaço da luz do arco-íris. A luz verde do skandha do
condicionamento em sua pureza básica, o conhecimento executor das
ações, verde brilhante, claro e refulgente, vivo e aterrorizante,
258
ornamentado com esferas de luz, irá penetrar direto em seu coração vindo
do coração de Amoghasiddhi em união com sua consorte, de tal forma que
seus olhos não podem suportar olhar para ele. É a energia criativa natural
do conhecimento originando-se de sua própria consciência, portanto
permaneça sem ação no supremo estado de equanimidade no qual não
existe nem perto nem distante, nem amor nem ódio, e você não terá medo
dele. Ao mesmo tempo, a luz vermelha suave dos deuses ciumentos,
causada pela inveja, irá também brilhar sobre você, junto com a luz do
conhecimento. Medite, de tal forma que não sinta atração nem aversão
por ela. Mas, se sua mente for fraca, então simplesmente não desfrute
dela.
Da luz verde do elemento ar, a família Karma aparece em último das cinco. Ela
representa a atividade perfeita; incorpora a energia ou habilidade que executa e põe
em ação as qualidades de todas as famílias. A mãe da família e consorte de
Amoghasiddhi é Tara, a mais amada de todas as deidades femininas. É a personificação
feminina da ação compassiva. Primeiramente é a essência do elemento ar, embora
tenha muitas formas diferentes e possa aparecer em qualquer das cinco famílias. Aqui
ela é nomeada especificamente Samaya-Tara para marcar seu relacionamento com a
família Karma ou Samaya. Amoghasiddhi é turquesa, enquanto Samaya-Tara é da cor
de uma esmeralda. Eles seguram sinos e vajras duplos: vajras na forma de uma cruz,
simbolizando atividade que não pode ser obstruída em todas as quatro direções.
Seu trono é carregado no ar por kinnaras, criaturas que são metade pássaro e
metade humano. Na mitologia indiana, kinnaras são músicos celestiais semelhantes
aos gandharvas, algumas vezes aparecendo como metade pássaro e outras como
metade cavalo. Aqui eles representam a execução das quatro atividades indestrutíveis,
e demonstram a energia e a velocidade da família Karma, viajando instantaneamente
através do espaço. Em pinturas, eles têm faces, corpos e braços humanos com pés,
asas e caudas de pássaro; dois ou quatro deles estão colocados sob o trono, tocando
uma variedade de instrumentos musicais tais como de cordas, flautas e címbalos93. Em
seu comentário, Trungpa Rinpoche descreve esse pássaro, chamado shang-shang em
tibetano, como um tipo de garuda. O trono de Amoghasiddhi é algumas vezes
considerado apoiado por garudas, embora kinnaras sejam vistos com mais frequência.
Garudas comem serpentes e têm uma aparência muito feroz, com chifres, garras e
bicos de ferro. São descritos no Capítulo Quatorze, em uma mandala na qual apoiam o
trono das deidades coléricas.
93
Estas estranhas criaturas podem ser vistas claramente em muitas pinturas tibetanas antigas. Por
exemplo, ver Steven M. Kossak e Jane Casey Singer, Sacred Visions, Nova York, The Metropolitan
Museum of Art, 1998, Ilustrações 4, 23c, 25 e 36c, esta última também mostrando um garuda sobre a
cabeça de Amoghasiddhi.
259
À direta do casal está Sarvanivaranavishkambhin, Removedor de Todos os
Obstáculos. É verde, segurando um sino na mão esquerda e um livro na direita. O livro
representa o ensino do dharma, que mostra como superar todas as dificuldades e
obstáculos à liberação. Ele personifica a consciência original.
À esquerda está Vajrapani, Aquele que Traz um Vajra em sua Mão. É de cor
esmeralda, segurando um sino e um vajra. Como seu nome sugere, ele normalmente
pertence à família Vajra, e é mais comum ser visto como uma deidade protetora
colérica. Aqui, o seu Vajra simboliza energia e atividade, portanto ele está igualmente
confortável na família Karma. Representa a consciência mental afligida, ou mente
nublada. Mesmo este aspecto da consciência é pura em seu estado natural e não
precisa ser rejeitado.
À frente está Gandha, Fragrância. Ela é descrita tanto como sendo verde quanto
da cor do lótus azul. Segura um búzio cheio de perfume extraído de essências
preciosas para untar o corpo dos budas. Em geral, a oferenda de perfumes simboliza o
sentido do tato, porque óleos e cremes perfumados sempre foram usados na Índia
para massagem e para aliviar a pele no calor. Mas aqui o tato está ausente da lista, e
se diz que Gandha purifica os pensamentos do momento presente.
260
equanimidade, no qual não sintamos nem medo da luz brilhante nem atração pela luz
suave, mas se isso for muito difícil deveríamos pelo menos tentar não desfrutar do
caminho de nossas reações habituais, e portanto evitar de ser sugado para dentro dele
completamente.
O SEXTO DIA
Se a pessoa falecida não foi capaz de fazer uma conexão com nenhuma das cinco
famílias individualmente, no sexto dia todas elas irão aparecer ao mesmo tempo.
261
As deidades das cinco famílias aparecem exatamente como antes, cada uma em
seu próprio círculo de luz cercado por arco-íris das cinco cores, arranjados em uma
vasta mandala. Vairochana e a Rainha do Espaço estão no centro, Akshobhya-
Vajrasattva com Buda-Lochana e as outras deidades Vajra no leste, Ratnasambhava
com Mamaki e as deidades Ratna no sul, Amitabha com Pandaravasini e as deidades
Padma no oeste, e Amoghasiddhi com Samaya-Tara e as deidades Karma no norte. A
mandala possui quatro portais, cada um protegido por um par de guardiães masculinos
e femininos. Os budas dos seis reinos do samsara também aparecem, e sentados acima
de todos eles estão Samantabhadra e Samantabhadri, o pai e a mãe de todos os budas.
Isso compõe a mandala inteira das 42 deidades pacíficas.
Embora ela seja a mandala pacífica, os guardiães dos portais aparecem na forma
colérica para poderem desempenhar suas funções. Eles estão lá para proteger o
espaço sagrado da visão pura. Eles nos acordam e protegem nossa consciência das
influências negativas e da fuga para distrações de qualquer tipo. Estão cercados por
chamas, abraçando um ao outro em união sexual e pisoteando o cadáver do ego.
Existem diversos grupos de quatro que podem ser simbolicamente ligados a eles.
Em As cem homenagens, os guardiães masculinos são descritos como purificando as
quatro visões falsas, que não são tanto visões filosóficas, mas perspectivas instintivas
da vida que obstruem nosso entendimento e nossa prática do dharma. Primeiro, existe
a crença na permanência, no sentimento de que duramos para sempre. Segundo, há a
crença oposta na extinção, de que quando morremos não existe mais nada. Terceiro,
há a crença na existência do ego como uma essência permanente e independente. E
quarto, existe a crença nas características pelas quais as coisas podem ser definidas e
fixadas como permanentes e independentes. Em outros sistemas, essas visões são
algumas vezes associadas com as quatro guardiãs femininas.
262
Trungpa Rinpoche relacionava os guardiães masculinos com as quatro atividades
iluminadas indestrutíveis, que são quatro estilos de liberação. Estes foram explicados
no capítulo sobre os elementos e também são muitas vezes associados com os devas e
as guardiãs femininas. Vijaya representa a atividade de pacificação, que vence
completamente a agressividade e acalma as negatividades da mente e do corpo. Ele
resume o que Trungpa Rinpoche chamou de paz invencível, a qualidade irresistível e
vitoriosa da paz do estado desperto. Ankusha segura um anzol de ferro para nos trazer
para perto. Nas palavras de Trungpa Rinpoche, a função do seu anzol é “capturá-lo
como um peixe se você tentar fugir”95. Representa a compaixão imensurável.
95
The Tibetan Book of Dead, pág. 23.
96
The Tibetan Book of Dead, p. 23.
263
Gantha segura um sino, que ela toca alto para silenciar nossos protestos e gritos de
medo. Representa o estado imensurável de equanimidade.
Juntos, esses oito guardiães dos portais nos mostram de maneira convincente
que não existe escapatória da natureza verdadeira de nossa mente, nosso estado
desperto inato. A mandala está preenchida com os princípios das cinco famílias,
abrangendo a pureza primordial de cada aspecto do nosso ser. Se formos incapazes de
reconhecê-la, e nos agarrarmos à ilusão do ego, não escapamos de verdade da luz
brilhante do conhecimento, apenas criamos um esconderijo temporário entre os
mundos de fantasia dos seis reinos do samsara. Mas mesmo lá não podemos
permanecer escondidos, porque os budas que vêm salvar seres conscientes nos seis
reinos estão também presentes nesta mandala. No mesmo contexto, os seis budas são
todos considerados manifestações da Avalokiteshvara, o Senhor da Compaixão. Aonde
quer que possamos ir, a compaixão da iluminação irá nos alcançar.
No reino dos deuses, Avalokiteshvara aparece como Indra Shatakratu, Indra dos
Cem Sacrifícios, o líder dos deuses no antigo panteão védico. Ele é branco e purifica o
veneno do orgulho. Toca o instrumento de cordas, encantando aqueles que estão
intoxicados com o prazer e ensinando a impermanência através da música do dharma.
No reino humano, ele nasce como o Shakyamuni, o Buda histórico. Aqui na terra,
age como um peregrino sem lar, segurando uma cuia de esmolas e um cajado de
mendigo, ensinando através de seu exemplo de renúncia. É amarelo na cor e purifica a
paixão.
No reino animal, ele tem o nome de Dhruvasimha, Leão Inabalável, já que o leão
é o rei dos animais. É azul e purifica a ilusão. Traz com ele um livro para iluminar a
ignorância da mentalidade animal.
Para aqueles que habitam o inferno, ele é Dharmaraja, o Rei do Dharma. É preto
na cor e purifica a agressividade. Carrega vasos de água refrescante e de fogo
abrasador para libertar os seres conscientes além do sofrimento dos infernos quente e
gelado.
264
Acima de todos eles está o princípio da bondade universal, Samantabhadra e
Samantabhadri em união. Toda a exibição do estado desperto está aberta à nossa
frente. As instruções nos lembram mais uma vez a sua real natureza:
A aparição dessas quatro luzes significa que temos o potencial para manifestar
todas as qualidades do conhecimento primordial. Mas, porque sua manifestação ainda
não foi plenamente realizada, a luz verde do conhecimento executor das ações não
brilha junto com as outras. O quinto aspecto do conhecimento é a realização efetiva
dos outros quatro. É chamado de a energia criativa do conhecimento, indicando a
potência e a habilidade de expressar o estado desperto plena e completamente.
265
Ó filho de família desperta; estas também se originaram da energia criativa
de sua consciência, não vieram de nenhum outro lugar. Portanto, não
fiquem apegados a elas e não as temam, mas permaneçam relaxados em
um estado livre de pensamentos. Nesse estado, todas as imagens e raios
de luz se dissolverão em você, e você se tornará iluminado. Ó filho de
família desperta, a luz verde do conhecimento executor das ações não
aparece, porque a energia criativa do conhecimento de sua consciência
não é perfeita.
Ao mesmo tempo, os raios de luz suaves e foscos que levam aos seis reinos do
samsara, incluindo o dos animais, que não havia aparecido antes, brilharão juntos. São
a luz branca do reino dos deuses, a luz vermelha do reino dos deuses ciumentos, a luz
azul do reino humano, a luz verde do reino animal, a luz amarela do reino dos
fantasmas famintos e a luz enfumaçada do reino do inferno. Se formos atraídos para
qualquer uma delas, nasceremos ali. Para evitar isso, deveríamos nos lembrar da
prece-aspiração:
266
serão liberados pelo poder da devoção intensa, e aqueles de menor inteligência
atingirão a iluminação através da passagem de Vajrasattva.
267
Capítulo Treze
Louca Sabedoria
97
Para ver um par de thangkas mostrando as deidades pacíficas e coléricas, no qual os vidyadharas
estão divididos entre elas, ver W. Essen e T. Thingo, Die Götter des Himalaya, Munique, Prestel-Verlag,
1989, Vol. 1, Ilustrações 119 e 120. Para um exemplo em que elas estão incluídas entre as deidades
coléricas, ver Detlef Ingo Lauf, Tibetan Sacred Art, Berkeley, Shambhala, 1976, Ilustração 6.
268
realização e seu método de ensino. Eles são cientistas, artistas, guerreiros e amantes,
mas acima de tudo são mágicos. Vidya é particularmente associado com o
conhecimento de mantra: som como o poder comunicativo e criativo do estado
desperto; os vidyadharas são mestres do mantra. Trungpa Rinpoche diz em seu
comentário: “Eles representam a forma divina do guru tântrico, possuindo poder sobre
os aspectos mágicos do universo.”98
98
The Tibetan Book of Dead, p. 24.
99
Um livro excelente sobre o princípio dakini é o de Judith Simmer-Brown, Dakini’s Warm Breath,
Boston, Shambhala, 2001.
269
simbolismo, que é tão importante para a compreensão de Liberação através da
audição. Existem dois aspectos do simbolismo no vajrayana, a iconografia das deidades
e o simbolismo natural da vida diária, que estão intimamente ligados. Agora que já
exploramos um pouco das imagens tradicionais associadas com as deidades pacíficas, a
visão dos vidyadharas nos dá uma boa oportunidade de olhar mais de perto o
significado e a função desse simbolismo.
Não é um simbolismo no seu sentido mais comum, no qual uma coisa representa
outra, normalmente um conceito abstrato. Aqui, como disse Trungpa Rinpoche, “a
própria coisa é seu próprio símbolo”100. Ele estava falando do nível de realização do
mahamudra, que traduziu como “o grande símbolo”, mas suas palavras se aplicam a
todo o simbolismo tântrico. Tem a ver com a percepção direta, ver as coisas como elas
de fato são. Dharma não é uma teoria ou um sistema de crenças imposto à realidade,
portanto não precisamos de símbolos para apontar para alguma outra coisa. Dharma é
a descoberta do significado inerente no mundo assim como ele é; tudo já revela a
mensagem do Buda. De acordo com Trungpa Rinpoche: “O universo está
constantemente tentando nos alcançar para dizer ou ensinar alguma coisa, mas nós o
estamos rejeitando o tempo todo.”101 Somente precisamos abrir nossos olhos e
mentes, e o caminho para fazer isso é através da meditação. O que não significa
necessariamente meditação sobre as deidades, que vem mais tarde, mas primeiro e
mais importante a meditação do abandono, que nos permite experimentar nosso
mundo mais completamente, com maior claridade e precisão.
Blake alegava que sempre via com “uma visão dupla”, percebendo a natureza
espiritual das coisas com seu olho interno, ao mesmo tempo que seu olho externo via
sua aparência física. Sua abordagem da vida era tremendamente próxima do tantra em
muitas maneiras, embora pareça que permaneceu um sentido de dualismo em sua
visão fundamental, um conflito entre espírito e matéria.
100
Illusion’s Game, p. 116.
101
Dharma Art, p. 35.
102
William Blake. O casamento do céu e do inferno.
270
O simbolismo do vajrayana é baseado no significado final do vazio, que, como diz
o Sutra do coração, não é outro senão a forma. É um processo de mão dupla: forma é
vazio e vazio é forma, e não existe oposição entre eles.
103
Dharma Art, p. 47.
104
Dharma Art, p. 43.
105
The Myth of Freedom, p. 156.
271
uma terra pura, e todos os seres conscientes dentro dele são deidades. Mas o
simbolismo não é apenas visual; inclui todos os sentidos. Tudo o que ouvimos e tudo o
que dizemos é o som do mantra das deidades e quaisquer pensamentos e sentimentos
que surjam de dentro de nossa mente são a expressão da mente desperta da deidade.
Aqui, o simbolismo é uma chave para a transmutação. Todavia, ao mesmo tempo a
mandala já está completamente presente e perfeitamente concluída. Dessa
perspectiva, o simbolismo é simplesmente uma afirmação da realidade e um método
de reconhecimento direto.
Eventos, também, são simbólicos. Tudo o que nos acontece carrega uma
mensagem que pode ser interpretada em termos das deidades. Por exemplo, existem
vários protetores do dharma, como guardiães dos portais que apareceram
anteriormente. Se tivermos um acidente ou um choque súbito, pode ser uma
advertência deles de que estamos nos desviando do caminho de alguma maneira. Ou
podemos receber sinais para nos incutir confiança de que estamos no caminho certo.
Não é uma questão de elaborar tais eventos intelectualmente, e não existe uma
abordagem automática para interpretá-los. O simbolismo passa ao largo da mente
racional. Precisamos desenvolver a sensibilidade, de modo que haja um
reconhecimento imediato, intuitivo, da mensagem. À medida que nos tornamos
106
Dharma Art, p. 36.
272
gradualmente acostumados à linguagem simbólica deles, podemos aprender a confiar
na orientação inata das deidades.
107
Em tibetano, ye shes ’chol ba, uma expressão utilizada particularmente em dzogchen.
273
porque são usadas como termos técnicos importantes, mas na prática eles se
sobrepõem e se fundem. Expressam diferentes sabores de uma realidade. A louca
sabedoria tem a inteligência penetrante da consciência, assim como a qualidade
transcendente de “ir além” da perfeição da sabedoria (prajnaparamita). Ela é o
conhecimento desperto, primordial, a partir de uma perspectiva tântrica, transmitindo
um sentido de êxtase e intoxicação, de estar embriagado com o néctar do
conhecimento e em fulgor com a bem-aventurança do estado desperto. É essa própria
qualidade de selvageria e loucura que funciona como combustível para a energia mais
intensa da compaixão, estimulando a determinação e a confiança para fazer
absolutamente qualquer coisa, a fim de remover o sofrimento da existência nos seis
reinos e despertar toda a vida para a glória de seu estado original. Diz-se
tradicionalmente de Padmakara que ele subjuga o que quer que precise ser subjugado,
destrói o que quer que precise ser destruído, e cuida de tudo que precise de seu
cuidado.
O SÉTIMO DIA
274
A visão dos vidyadharas aparece para a pessoa falecida porque ele ou ela não
reconheceu as deidades pacíficas durante os seis dias anteriores, e por isso não foi
liberada. O livro diz que isso pode acontecer no caso de pessoas desafortunadas o
suficiente para não terem conexões kármicas com o dharma, ou porque nasceram em
locais incivilizados onde ele não é ensinado, ou porque não tiveram interesse ou pouca
oportunidade de praticá-lo. Outra situação que poderia fazer com que as pessoas não
as reconhecessem é quando deixaram seus compromissos samaya degenerar. Samaya
é a promessa sagrada feita entre guru e discípulo no nível tântrico que cria um vínculo
inescapável. Não é algo com que se possa comprometer de forma leve ou entrar por
engano. Não cumprir esse compromisso significa que a pessoa não está vivendo de
acordo com seu potencial de iluminação. Quanto mais próxima a pessoa tenha
chegado da magia do vajrayana, mais a pessoa se machuca ao rejeitá-lo ou abusar
dele, e por isso se torna inevitavelmente mais e mais confusa e perdida no samsara.
Ambas as classes de pessoa — aquelas que não tiveram contato com o dharma e as
que o abandonaram de livre e espontânea vontade — correm o perigo de serem
arrastadas para baixo, em direção ao reino animal, que é dominado pela ignorância e
pela ilusão. Portanto agora o caminho da suave luz verde que leva àquele reino
também aparece, junto com os vidyadharas e as dakinis, as personificações do
conhecimento, da sabedoria e da consciência total.
275
Dakini Vermelha. Eles dançam com facas curvas e taças de crânio cheias de
sangue, acenando e fitando o céu.
Do norte da mandala, ele que é chamado de o Vidyadhara
Espontaneamente Existente irá aparecer. É verde, sua expressão é ao
mesmo tempo irada e sorridente, e ele abraça a mãe, a Dakini Verde. Eles
dançam com facas curvas e taças de crânio cheias de sangue, acenando e
fitando o céu.
Aos cinco vidyadharas são dados nomes que correspondem aos níveis de
despertar, em vez de nomes próprios. Eles aparecem à nossa frente porque são as
manifestações de nosso potencial inato, convocando-nos a reconhecê-los e a nos
fundirmos com eles. O Vidyadhara Estabelecido nos Estágios representa a realização
dos dez estágios do caminho bodhisattva no mahayana, enquanto os outros quatro
representam níveis de realização de acordo com o sistema mahayoga Ningma, que
também abrange os dez estágios a partir de uma perspectiva diferente.
As cinco dakinis, também, não têm nomes e são identificadas somente por suas
cores. Como o princípio feminino, elas representam a amplidão e a criatividade do
estado desperto. A conquista da realização é sempre inseparável da ausência de ego.
Elas são o céu ilimitado da inspiração no qual os poderes milagrosos e as atividades
mágicas dos vidyadharas acontecem. Podemos também relacioná-las aos cinco
elementos, que formam a matriz de onde todos os fenômenos surgem.
276
portanto podemos ter esperado encontrá-lo no centro da mandala. Entretanto, já que
ele é branco, é uma transformação de Vairochana e pertence à família Buda, que é
com frequência colocada no leste em vez de no centro. O leste é a direção da
pacificação e da remoção do sofrimento, que parece particularmente apropriada para
o vidyadhara que incorpora o espírito do caminho bodhisattva.
277
pessoa torna-se interiormente idêntica à deidade, o corpo mahamudra de aparência e
vazio indivisíveis. Tal corpo pode aparecer em qualquer lugar, em qualquer forma, e
emana numerosas outras formas para levar adiante atividades iluminadas. Por
exemplo, existem muitos relatos na literatura indiana e tibetana de grandes mestres se
manifestando como deidades para seus discípulos, tanto a distância e enquanto
permanecem presentes em sua forma habitual. O Vidyadhara Mahamudra,
aparecendo no oeste, é uma transformação de Amitabha. Ele e a Dakini Vermelha
incorporam o poder de comunicação da família Padma para atrair e influenciar os
seres viventes.
278
Além dos vidyadharas, incontáveis multidões de dakinis aparecerão:
dakinis dos oito grandes solos sepulcrais, dakinis das quatro famílias,
dakinis dos três níveis, dakinis das dez direções, dakinis dos 24 locais de
peregrinação, guerreiros e serventes masculinos e femininos, e todos os
protetores masculinos e femininos do dharma. Usando os seis ornamentos
de ossos; carregando tambores, trompetes feitos de fêmur, tambores de
crânios, estandartes feitos da pele esfolada de crianças, pálios e fitas de
pele humana, e incenso feito de carne humana; tocando incontáveis tipos
diferentes de instrumentos musicais — eles preenchem todas as regiões do
universo. Aglomerados bem próximos uns dos outros, sacudindo-se e
balançando-se para frente e para trás, vão fazer todos os instrumentos
vibrar com música a fim de se rachar a cabeça de alguém. Executando
várias danças, vão convidar os que mantiveram seus compromissos samaya
e punir aqueles que os deixaram se degenerarem.
Assim como antes, essas deidades aparecem no céu à nossa frente, mas elas só
podem fazê-lo porque são parte da nossa natureza inerente. Os locais de moradia das
várias classes de dakinis são locações externas, mas também correspondem a partes
do corpo tanto no nível grosseiro quanto no nível sutil. Essas dakinis, guerreiros,
serventes e protetores são todos expressões de nossa fala e energia vital, de nossa
natureza emocional e comunicativa. São a essência da energia criativa e destrutiva;
não vêm para nos convidar polidamente, mas com danças e canções selvagens,
clamando com urgência para atrair nossa atenção. Guerreiro ou herói, é um outro
termo genérico para as deidades em suas manifestações apaixonadas ou coléricas, e é
bastante usado como a contraparte masculina de dakini, embora tenha também uma
forma feminina, e em ambas as formas também se refiram a yogues e yoguines
humanos. Ela nos lembra que o caminho espiritual é um esforço contínuo contra a
ilusão e o egoísmo, e que precisamos de coragem e energia para segui-lo. Muitos dos
protetores do dharma eram originalmente deidades não-budistas e espíritos locais que
foram dominados, e prometeram ajudar e proteger o ensinamento a todos que o
seguissem. Representam os aspectos da nossa natureza que foram desviados do
interesse pela verdade e o bem-estar dos outros. Podem algumas vezes ser ferozes e
cruéis; são a nossa verdadeira consciência e irão usar quaisquer meios necessários
para evitar que nos desencaminhemos.
279
no mundo ocidental, embora sejam muito mais perturbadores e assustadores.
Provavelmente eram ainda mais temíveis muitos séculos atrás quando esses
ensinamentos surgiram. Naquela época, eram locais desolados, situados fora das áreas
habitadas, na fronteira com alguma floresta ou deserto. Podemos imaginar a cena:
ossos e crânios espalhados pelo chão, a fumaça e o fedor de carne queimada
enchendo o ar, cães selvagens e hienas que vagam rosnando enquanto fuçam as
brasas e cinzas das piras funerais, corvos que bicam as entranhas de cadáveres
semiqueimados, e abutres que sobrevoam em círculos. Tigres, leões ou outros animais
selvagens vagueiam e rugem nas florestas próximas. Os corpos de criminosos
executados pendem balançando dos galhos das árvores, enquanto serpentes
venenosas deslizam para dentro e para fora de buracos entre as raízes. Ainda mais
aterrorizadora é a presença de demônios que habitam os cadáveres e fantasmas que
continuam a assombrar os restos de seus antigos corpos até que sejam libertados por
oferendas rituais.
Apesar disso, são os lugares que yogues e yoguines escolhem para viver, por
muitas razões. Eles ficam isolados e completamente abandonados à noite, assim
ninguém os perturba. Vivendo lá, estão cara a cara com a realidade da morte e
superam muitos obstáculos ao progresso espiritual, tais como apego, medo, repulsa,
orgulho e a superioridade da casta. Podem encontrar seres poderosos do outro mundo
ou grandes mestres, e especialmente as dakinis, que adoram habitar solos sepulcrais.
Algumas vezes a própria vida força essa consciência em nós. Quando estamos
próximos da doença, da morte ou do perigo, quando nos sentimos subitamente
expostos e vulneráveis, ou quando existe muita dor e horror para suportar, entramos
no solo sepulcral. É um estado mental no qual podemos facilmente nos desequilibrar;
280
sentimos que estamos vivendo no limite, e tudo se aglomera sobre nós, clamando com
exigências. Nesses momentos, podemos estar particularmente abertos a ouvir as vozes
desses mensageiros enigmáticos. Mas em nosso estado de medo e confusão não
estamos certos se eles vão nos ajudar ou nos prejudicar, e não sabemos se
acreditamos neles ou não. A única solução é relaxar e deixar-se levar pela dança da
vida e da morte que está acontecendo o tempo todo. A luz refulgente do
conhecimento brilha a partir do coração dos vidyadharas, convidando-nos a nos fundir
com eles, enquanto simultaneamente a luz opaca da ignorância tenta-nos a nos retirar
em direção a um comportamento instintivo, automático, a virar as costas, nos enroscar
e ir dormir.
281
me firme com seus ganchos de compaixão e puxem-me rapidamente para
o puro Reino dos Viajantes do Céu.” Com intensa concentração diga esta
prece-aspiração:
A luz das cinco cores combinada é a luz das nossas impressões ou tendências
kármicas fundamentais purificadas, formadas pelo efeito das ações passadas, que
permanecem na consciência original. São comparadas a traços de perfume
impregnando a consciência. Essas impressões formam padrões de tendências que nos
predispõem para uma circunstância em particular e para características físicas e
mentais específicas. Aqui são descritas como "purificadas no espaço". Assim como os
cinco skandhas foram revelados em seu estado básico naturalmente puro como os
cinco aspectos do conhecimento, também as impressões kármicas retornam à sua
pureza original no espaço do dharmadhatu. Em vez de dar origem a mais ignorância,
elas refulgem como a luz do conhecimento primordial, que é então chamado de o
conhecimento nascido conosco, nosso conhecimento natural, inato. Ele pode também
ser interpretado como o conhecimento nascido junto com a ignorância ou
conhecimento nascido simultaneamente. O estado desperto e o estado confuso estão
sempre presentes ao mesmo tempo dentro de nós; continuamente os produzimos
juntos.
282
na ignorância ou despertar no conhecimento, de nos abrirmos para a luz brilhante ou
seguirmos o caminho da luz indistinta. Nas palavras de Trungpa Rinpoche; “Esse
simbolismo do Livro tibetano dos mortos é muito profundo para as nossas situações
reais da vida diária. Ele não precisa se referir somente à experiência de pós-morte.
Talvez a experiência de pós-morte apenas tipifique o tipo de situação na qual as
escolhas são mais iluminadoras ou estimulantes e mais imediatas.”108
108
Glimpses of Abhidharma, p. 101-102.
283
Capítulo Quatorze
Compaixão Colérica
Agora, se a pessoa não passou por esse tipo de ensinamento, nem mesmo
um oceano de erudição será de utilidade. Nessas circunstâncias, mesmo
grandes mestres de filosofia e eruditos que observaram as regras
284
monásticas ficam confusos e não reconhecem, por isso seguem vagando no
samsara. Isso é ainda mais verdadeiro para as pessoas comuns; fugindo de
seu medo, terror e pânico, elas caem nos reinos inferiores e sofrem seus
tormentos. Mas yogues e yoguines que praticaram seus mantras secretos,
mesmo se forem os mais inferiores dos inferiores, reconhecerão os
bebedores de sangue como suas próprias deidades escolhidas assim que as
verem, como se estivessem encontrando velhos amigos. Assim irão confiar
nelas e, fundindo-se inseparavelmente com elas, tornar-se-ão despertos. O
ponto essencial é que no reino humano eles meditaram claramente sobre
essas formas bebedoras de sangue, fizeram oferendas e as louvaram, e
mesmo se apenas olharam para suas imagens pintadas ou esculpidas irão
reconhecê-las quando elas aparecerem e conquistarão a liberação.
285
As deidades coléricas são parte de nossa natureza, assim como as deidades
pacíficas. Estão dentro de nós, contudo aparecem para nós externamente. São
transpessoais; não pertencem ao ego individual, mas à nossa natureza não dual.
Portanto, podemos interpretá-las e tentar entendê-las de ambos os pontos de vista, de
dentro e de fora.
286
está relacionado com a transmutação, mas de uma maneira que revela a essência
desperta como primordialmente presente, apenas aguardando reconhecimento. Aqui
o processo real de transmutação é expresso de uma maneira muito mais aberta e
direta. Mesmo as ações mais maldosas de que os seres humanos são capazes se
originam da energia que é pura em sua natureza básica, e essa energia deve ser
liberada; é isso que o simbolismo das deidades coléricas expressa. Portanto, elas não
são a sombra, mas a energia pura que transcende o dualismo de luz e escuridão.
Caminhos espirituais que tentem suprimir toda a negatividade ou que finjam que ela
não existe não permitem que seus seguidores experimentem e reconheçam essa
energia, que mesmo assim está latente dentro deles.
O que quer que apareça no bardo é uma versão mais dramática, nua e crua do
que acontece durante a vida. As deidades coléricas usam a tática de choque; o tempo
para a persuasão gentil já passou. Na vida comum, é muito difícil para nós aceitar
situações assustadoras ou estressantes como oportunidades para o despertar. É difícil
manter a consciência sob todas as circunstâncias, ver a natureza de buda em cada ser
vivente, aceitar coisas que desgostamos com equanimidade, reagir calmamente à
287
agressão e mostrar compaixão pelos nossos inimigos. Essas são algumas das situações
nas quais podemos reconhecer as deidades coléricas em um sentido geral. Mas
sempre que falemos de deidades, precisamos nos lembrar que elas são realmente as
nossas próprias qualidades, nossos poderes e funções despertos em potencial.
Trazemo-las à existência como presenças vivas em nossas vidas através de receber
adhishthana e por meio da prática do yoga delas.
O texto diz que os melhores yogues e yoguines tântricos, aqueles que estão
acima da média, serão liberados no momento em que pararem de respirar, enquanto
outros praticantes perfeitos do mahamudra e do dzogchen irão reconhecer a
luminosidade no bardo do morrer. Para eles, a leitura do texto é desnecessária, mas
para todos os outros é extremamente necessária e de grande ajuda. Ele reaviva a
memória de qualquer ensinamento semelhante que tenham recebido, qualquer
prática que tenham feito ou qualquer realização que tenham conquistado no passado,
de tal maneira que o que estiver acontecendo no bardo torna-se familiar, e eles são
capazes de reconhecer que o que quer que apareça é simplesmente suas próprias
auto-exibições. Ou, se não puderem reconhecê-lo, pelo menos sementes são plantadas
para o futuro na consciência da pessoa falecida, levando a um melhor renascimento,
de tal forma que mais e mais ligações são estabelecidas. As sementes que são
plantadas, combinadas com outras circunstâncias, podem dar frutos inesperadamente,
dando a impressão de não ter havido nenhum esforço ou preparação prévia, mas
sempre existe uma causa oculta na corrente mental. Essa criação de conexões é o
segredo do grande poder de Liberação através da audição, como o próprio texto
explica:
288
dharmata, quando as deidades pacíficas e coléricas aparecem, alcançarão o
sambhogakaya. Se a reconhecerem durante o bardo da existência,
alcançarão o nirmanakaya e nascerão em uma situação melhor, onde se
encontrarão com este ensinamento. Já que o resultado das ações continua
na vida seguinte, esta Grande liberação através da audição é um
ensinamento que ilumina sem meditação, que libera apenas por ser
ouvido, que conduz grandes pecadores ao caminho secreto, que rompe a
ignorância em um único momento, um ensinamento profundo que dá a
iluminação perfeita e instantânea, portanto os seres conscientes a quem
ele alcançou não podem mais ir para existências inferiores. Tanto este
quanto Liberação através da vestimenta devem ser lidos em voz alta,
porque os dois combinados são como uma mandala dourada incrustada
com turquesa.109
109
Isto se refere a um outro texto do mesmo ciclo terma: Liberation through Wearing, the Self-
Liberation of the Skandhas. Em tibetano, btags grol phung po rang grol. Consiste fundamentalmente nos
mantras das cem deidades pacíficas e coléricas.
110
A forma mais antiga dessa lenda ocorre no Sarvatathagatatattvasamgraha e está citada em
Snellgrove, Indo-Tibetan Buddhism, p. 134-141. Uma forma mais recente pode ser encontrada em Yeshe
Tsogyal, The Life and Liberation of Padmasambhava, Cantos 5 e 6. Rudra, significando uivante ou
rugidor, era um nome utilizado nos Vedas para muitas deidades e princípios, tais como o vento e a
respiração. Era também o nome mais antigo da deidade que mais tarde se desenvolveu como Shiva, o
Auspicioso, um dos mais importantes deuses do hinduísmo mais recente. A crença em tal deidade como
um ser externo real vai diretamente contra a ideia central do budismo, portanto como Mahadeva, o
Grande Deus, ele era visto como a personificação de visões equivocadas que impedem o despertar. Para
ser justo, isso é mais a percepção budista da crença hindu do que hinduísmo genuíno, especialmente no
que diz respeito ao tantra. Ao mesmo tempo, ele tinha uma outra imagem, bem diferente. Desde os
primeiros dias Rudra-Shiva era um forasteiro dentro do panteão ortodoxo, o mais espiritual de todos,
que penetrava mais profundamente além da natureza samsárica dos deuses. Ele representa o princípio
289
Essencialmente, é uma alegoria sobre a perversão dos ensinamentos tântricos, e em
particular da abordagem dzogchen da espontaneidade. Muitas eras cósmicas atrás, um
certo praticante desses ensinamentos, que são intemporais e aparecem em todas as
eras, fez uma interpretação equivocada deles, achando que deveria ir e fazer o que
quisesse. Ele acreditava que seguir um estilo de vida natural e espontâneo,
satisfazendo cada desejo e cada impulso, o levaria à liberação, mas não compreendeu
que a espontaneidade deve ser baseada na realização da verdadeira natureza da
mente. Portanto, em vez de transmutar os cinco venenos, entregou-se a eles, e em vez
de cortar através da ilusão do ego, o fortaleceu e o inflou. Como resultado, depois de
sua morte, sofreu durante eras incontáveis nos reinos inferiores, até que finalmente
renasceu como um monstro, um rakshasa canibal chamado Rudra. Nessa forma,
acumulou enorme poder e aterrorizou todo o universo. Depois de falhar ao tentar
convertê-lo por meios pacíficos, os budas decidiram que ele devia ser parado através
da força e emanaram a manifestação colérica dos herukas para derrotá-lo. Por meio de
sua subjugação, Rudra foi liberado e se tornou um protetor do dharma como
Mahakala, o Grande Ser Negro. Como um sinal de sua vitória, os herukas assumiram
sua forma demoníaca, completa com todos os seus atributos. Exteriormente, essa
aparência horrorosa representa a mais extrema personificação do egoísmo, mas
internamente cada aspecto dele expressa a transmutação e a liberação do ego.
da dissolução, que externamente é visto como destruição, mas internamente é o retorno da consciência
ao seu estado primordial de conhecimento verdadeiro. Ele é o Senhor do Yoga, o protótipo do yogue
tântrico, e veio a representar a consciência liberada. Portanto, como uma figura simbólica, pode ter sido
visto como o maior rival e ameaça ao vajrayana, em um tempo em que as duas tradições tântricas
estavam se desenvolvendo em um relacionamento muito próximo uma da outra. Entretanto, a lenda
budista não tem absolutamente nenhuma semelhança com qualquer das lendas hindus de Rudra ou
Shiva. Ele realmente partilha alguns traços iconográficos com os herukas — a lua em seu cabelo, o colar
de crânios, a pele de tigre ao redor de sua cintura, a cinza aplicada em seu corpo e as serpentes
enroscadas em seus membros —, mas não possui asas ou a forma feia de um rakshasa.
111
Em sânscrito, mahottara heruka; em tibetano, che mchog heruka.
290
vermelho escuro ao púrpura, castanho-avermelhado ou marrom. A Dama Colérica do
Espaço112 é descrita como sendo azul-escura. Entretanto, em pinturas, às vezes eles
têm a mesma cor, ou castanho-avermelhado ou azul, com a parceira feminina em um
tom um pouco mais claro que o seu par masculino. Diversas versões levemente
diferentes dos ensinamentos do bardo existem dentro da tradição Ningma, e existem
até diferentes descrições das deidades entre os textos desse ciclo terma.
O OITAVO DIA
112
Em sânscrito, krodhadhatvishvari; em tibetano, khro mo dbyings phyug.
113
The Lion's Roar, p. 202.
291
face direita é branca; sua face esquerda, vermelha; e sua face central,
castanho-avermelhada. Seu corpo refulge como uma montanha de luz,
seus nove olhos olham para os seus com uma expressão aterrorizante, suas
sobrancelhas lembram lampejos de raios e seus dentes brilham como o
cobre.
Ele ri alto com gritos de “a-la-la!” e “ha-hee-ee”, e emite sons sibilantes
altos de “shoo-oo!”. Seu cabelo vermelho-dourado ergue-se para o alto
rebrilhando em chamas, suas cabeças são coroadas com crânios secos e
com o sol e a lua, seu corpo é adornado com serpentes negras e cabeças
recentemente cortadas. Com suas seis mãos, ele segura uma roda na
primeira à direita, um machado na do meio e uma espada na última; um
sino na primeira à esquerda, uma relha de arado na do meio e uma taça de
crânio na última. A mãe, a Dama Colérica Buda, abraça o corpo do pai. Ela
segura seu pescoço com sua mão direita, e com a esquerda segura uma
taça de crânio com sangue em direção à sua boca. Ele produz sons altos
estalando os lábios com seu palato e sons de grunhidos como o roncar do
trovão. O fogo do conhecimento flameja dos pêlos de seu corpo, que são
uma massa de vajras flamejantes. Ele senta-se em um trono carregado no
ar por garudas, com um par de pernas dobrado e o outro esticado.
Não tenha medo dele, não fique aterrorizado, não fique petrificado.
Reconheça-o como a forma de sua própria consciência. Ele é a sua deidade
escolhida, portanto não tema. Ele é na verdade o próprio Vairochana
abençoado em união com a mãe, portanto não tenha medo.
Reconhecimento e liberação são simultâneos.
114
Exceto por uma forma testemunhada de Mahakala como “Senhor da Tenda”; ver Nebesky-
Wojkowitz, Oracles and Demons of Tibet, Graz, Akademische Druck-u, Verlagsanstalt, 1975, p. 51. Isso
também pode ser uma imagem Ningma.
292
nunca deveriam ser imaginados como substanciais; seus corpos são feitos
inteiramente de luz — eles são “a forma vazia”.
Os herukas das cinco famílias que aparecem durante o bardo têm cada um três
cabeças, seis braços e quatro pernas. Em geral, seja nas deidades pacíficas ou nas
coléricas, a posse de muitos membros evidencia a multiplicidade e a universalidade de
seus poderes, enquanto significados simbólicos específicos podem também se aplicar
em cada caso em particular. Existem com frequência diversas interpretações
diferentes das quais apenas poucas podem ser dadas aqui. Não há conflitos entre essas
várias interpretações, mas deveriam todas ser mantidas na mente ao mesmo tempo.
Juntas, constroem um retrato da transformação completa da confusão, negatividade e
maldade no estado desperto.
293
Os herukas têm um terceiro olho em suas testas; seus três olhos significam que
eles veem e sabem tudo do passado, presente e futuro e dos três mundos do desejo,
da forma e da ausência de forma. Seus rostos são untados com unguentos feitos de
três substâncias do solo sepulcral: cinzas, sangue e gordura derretida, simbolizando os
três kayas. Eles exibem seus quatro caninos, semelhantes à lua crescente, com
determinação para subjugar os quatro maras. Franzem os rostos de maneira
ameaçadora, de tal forma que suas sobrancelhas contraídas ondulem como raios
cruzando o céu escuro de suas testas. Seus cabelos se erguem como chamas,
expressando a energia irrestrita de sua natureza colérica e a reversão das tendências
samsáricas. A lua dos meios habilidosos e o sol da sabedoria brilham em seus cabelos.
Suas asas de garuda indestrutível se abrem amplas, simbolizando a realização de todos
os objetivos.
Como os budas pacíficos, os herukas usam uma coroa de cinco pontas, mas
agora ela é adornada com crânios, simbolizando a liberação dos cinco venenos
transformados no conhecimento das cinco famílias. Isso mostra que os venenos não
precisam ser abandonados nem destruídos, mas podem ser exibidos como adornos,
uma vez que sua energia seja usada corretamente. Estão ornados com um longo colar
que pende com cinquenta cabeças cortadas. As cabeças podem ser interpretadas
como os cinquenta caracteres do alfabeto sânscrito, os sons primordiais vibrando no
centro de toda a existência, ou como os 51 ou 52 fatores no skandha do
condicionamento, purificados em seu estado natural. Algumas vezes uma guirlanda de
ombro com cabeças em putrefação é incluída nos adornos dos herukas. Os três tipos
de crânio — secos, decadentes e frescos — representam o passado, o presente e o
futuro. A guirlanda longa pode também conter todas as três enfileiradas em uma corda
de intestinos, simbolizando a impermanência e a insubstancialidade dos fenômenos.
294
ilusão, a pele humana com a paixão, a pele de tigre com o orgulho, o colar de cabeças
com a inveja e os ornamentos de cobras com a agressão.
Eles se sentam em tronos de lótus, lua e sol, com o sol sendo o ponto mais
elevado. Suas pernas estão abertas, com as direitas dobradas e as esquerdas esticadas
em uma postura heróica de dança derivada da posição de um arqueiro, pisoteando
cadáveres que jazem sob seus pés. Os cadáveres representam os aspectos masculinos
e femininos de Rudra, o ego personificado, nas formas de vários deuses e deusas
designados para cada uma das cinco famílias.
Os tronos dos herukas são apoiados por garudas voadores, enfatizando seu
dinamismo e sua atividade onipresente de destruir o mal. O garuda se parece com uma
águia com braços e torso humano, e com garras, bico e chifres de ferro meteorítico. De
acordo com a mitologia indiana, o Garuda original era um pássaro divino que rompia a
casca do ovo já plenamente desenvolvido, seu corpo dourado tão brilhante quanto o
fogo, suas asas cobrindo o céu. Tanto no hinduísmo quanto no budismo ele é uma
figura muito poderosa e, particularmente na tradição Ningma, tornou-se um símbolo
da realização espontânea do despertar. É corajoso e invencível, e viaja
instantaneamente através do espaço. Personifica a energia e a determinação do
meditante, que leva a pessoa ao pico da realização em duas asas vajra indestrutíveis,
da sabedoria e dos meios habilidosos, vazio e compaixão. É o inimigo das serpentes,
aqui representando qualquer tipo de negatividade e veneno, e é mostrado devorando-
as com seu bico. Seus olhos rebrilham com luz, buscando-as em todas as direções. Ele
é adornado com uma joia realizadora de desejos em sua cabeça, que verte o que quer
que seja necessário para a obtenção do sucesso na prática do dharma.
295
Nessa peça, demonstram os nove estados ou sentimentos (navarasa) da estética
indiana: erótico, heróico, repulsivo, humorístico, colérico, temível, compassivo,
assombroso e pacífico115. A interpretação budista difere levemente do original (que foi
primeiramente formulado para a dança), no sentido que o bailarino geralmente
representa os sentimentos de repugnância, medo e assombro, enquanto os herukas
provocam as mesmas reações nos outros por meio de sua conduta. Também, nesse
contexto, os nove sentimentos são agrupados em atributos de corpo, fala e mente.
Com seus corpos, os herukas são graciosos, sensuais e sedutores, expressando a
transmutação da paixão; mostram a energia, o poder e a coragem dos heróis
guerreiros, expressando a transmutação da agressão; e possuem a aparência repulsiva,
terrível dos rakshasas, com caninos à mostra, carrancas coléricas e olhos revirados,
expressando a transmutação da ilusão. Com sua fala, riem alto com diferentes tons e
sentimentos no gargalhar; gritam ameaças violentas e comandos de grande
ferocidade, mantras coléricos; e emitem guinchos altos e aterrorizantes, rugindo e
bramindo como trovões e raios. Seu estado mental é pleno de compaixão em relação a
todos os seres; assombroso, extraordinário e afrontoso, para dominar os seres
recalcitrantes; e eternamente pacífico, já que nunca se apartam da natureza imutável
do dharmadhatu.
As damas coléricas têm três olhos e expressões ferozes, mas em outros aspectos
possuem uma forma física normal. Seu único rosto representa a equidade, ou sabor
único, de todos os fenômenos na verdade final. Seus dois braços simbolizam a
sabedoria e os meios habilidosos trabalhando juntos em equilíbrio e harmonia. Sua
pose dançarina, intimamente entrelaçada ao redor do corpo de seu consorte, significa
que a sabedoria nunca está separada dos meios habilidosos. Elas saltam em direção ao
abraço dos herukas com abandono extático, e a atitude total de ambos os parceiros
irradia o desfrute ardente de sua bem-aventurança.
A aparência delas não é descrita em detalhes nos textos do bardo, mas em geral
as consortes coléricas femininas estão nuas, exceto por uma saia de pele de leopardo
simbolizando o destemor. Elas usam a coroa de crânios e os ornamentos de ossos sem
o unguento do solo sepulcral que simboliza a sabedoria, porque elas próprias são a
personificação da sabedoria. Podem também trazer uma guirlanda de crânios e outros
adornos de joias.
115
Como os nove sentimentos são tão importantes nas artes da índia, pode ser de ajuda listá-los em
sânscrito com seus equivalentes tibetanos (nyams gud): erótico (shringara, sgeg pa); heróico (vira, dpa’
ba); repulsão/repulsivo (bibhatsa, mi sdug pa); humorístico (hasya, dgod pa), colérico (raudra, drag
shul); temível/assustador (bhayanaka, ‘jigs su rung ba); compassivo (karuna, snying rje);
assombroso/maravilhoso (adbhuta, rngams pa); e pacífico (shanta, zhi ba). Em outros contextos
tântricos, eles podem ser interpretados diferentemente; por exemplo, ver Alex Wayman, Yoga of the
Guhyasamajatantra, Nova Délhi, Motilal Banarsidass, 1977, p. 327-328. Para referências de fontes, ver
Herbert V. Guenther, Matrix of Mystery, Boulder, Shambhala, 1984, pág. 271, notas 16 e 17.
296
O Heruka Buda e a Dama Colérica Buda são transformações de Vairochana e
Akashadhatvishvari, que são suas essências pacíficas fundamentais. Nessa forma
furiosa, simbolizam a transmutação total da energia que está por trás da ignorância e
da auto-ilusão. Essa energia, em seu estado puro e natural, é o conhecimento todo
abrangente da realidade, a liberação em direção à ilimitada amplitude do
dharmadhatu. Em virtude de sua natureza colérica, seus corpos não são brancos, mas
da cor castanho-avermelhada do Grande Supremo Heruka, que não aparece no texto,
mas é a origem dos cinco herukas.
Com seu par de braços principal, o heruka envolve a cintura da dama colérica,
segurando os mesmos atributos de suas contrapartidas pacíficas: em sua mão direita,
uma roda, o símbolo da família Buda, e em sua mão esquerda, um sino, que toca o
som do vazio. Em suas mãos que sobram, ele carrega um machado, uma espada, um
arado e uma taça feita de crânio. O machado corta a árvore da existência mundana e
racha ao meio a solidez da crença no ego, mas é também um machado de batalha
usado como arma de guerra contra as forças malignas. O arado revolve as causas do
sofrimento e evita o plantio de sementes kármicas negativas. Esses dois utensílios são
seguros em mãos opostas, e juntos representam o poder sobre a causa e o efeito
kármicos. A espada é o atributo universal de um guerreiro; com sua lâmina afiada, ela
destrói os cinco venenos, e é também um símbolo da consolidação dos poderes
espirituais. A palavra utilizada aqui para a taça feita de crânio pretende significar um
recipiente para comida, bebida e oferendas; é utilizada por yogues tântricos como um
lembrete contínuo da impermanência de tudo na vida. Na mão esquerda, representa
sabedoria. Como um atributo dos herukas, ela é cheia com o sangue de Mara, o
sangue da vida do samsara, transmutado como o elixir do conhecimento.
A dama colérica é da mesma cor do heruka, mas em um tom mais claro. Ela se
apóia em sua perna direita, tendo sua perna esquerda enroscada em torno da cintura
dele. Com seu braço direito, ela envolve o pescoço dele, e em sua mão direita também
traz uma roda, que está oculta pela cabeça dele. Em sua mão esquerda, traz um cálice
feito de crânio cheio de sangue humano, que segura em frente à boca de seu parceiro
para que ele o beba. Nesse contexto de oferecer o sangue da vida do samsara para o
princípio do despertar, ele é conhecido pela expressão cifrada de um búzio vermelho,
porque os búzios são usados com frequência como recipientes para oferendas.
297
masculina, que no corpo sutil se origina no chakra coronário. O sangue contido no
crânio é da cor vermelha da essência feminina e representa o princípio feminino do
vazio. Portanto a mãe, que simboliza os objetos da experiência, apresenta a unidade
da bem-aventurança e do vazio ao pai, que é a consciência que experimenta. Consumir
o sangue significa transmutá-lo completamente e é a atividade da compaixão, que
somente é possível em conjunto com a sabedoria do vazio. Ao mesmo tempo, o casal
simboliza a união desses dois princípios em todos os seus vários significados. Em As
cem homenagens, os devas coléricos são chamados de damas do espaço das cinco
famílias; são o espaço, a amplidão e o altruísmo no qual a energia desobstruída dos
herukas flui.
O NONO DIA
298
com a esquerda segura uma taça feita de crânio com sangue junto à sua
boca.
Não tenha medo dele, não fique aterrorizado, não fique petrificado.
Reconheça-o como a forma de sua própria consciência. Ele é a sua própria
deidade escolhida, portanto não tema. Ele é realmente o próprio
abençoado Vajrasattva em união com a mãe, portanto sinta devoção e
saudade. Reconhecimento e liberação são simultâneos.
O DÉCIMO DIA
299
um cajado tântrico na do meio e um bastão na última; um sino na primeira
à esquerda, uma taça feita de crânio na do meio e um tridente na última. A
mãe, a Dama Colérica Ratna, abraça o corpo do pai. Ela envolve o pescoço
dele com a sua mão direita, e com a sua mão esquerda segura uma taça de
crânio com sangue junto à boca dele.
Não tenha medo dele, não fique aterrorizado, não fique petrificado.
Reconheça-o como a forma de sua própria consciência. Ele é a sua própria
deidade escolhida, portanto não tema. Ele é na verdade o próprio
Ratnasambhava em união com a mãe, portanto sinta devoção por eles.
Reconhecimento e liberação são simultâneos.
O tridente era um símbolo budista muito antigo para as três joias: o Buda, os
ensinamentos do dharma e a comunidade (sangha). Suas três pontas podem
representar qualquer número das tríades que são encontradas no budismo. Nesse
contexto, ele é visto particularmente como uma arma que destrói os três venenos da
paixão, agressão e ilusão com um único golpe. Também simboliza a manifestação dos
três kayas; a perfeição de corpo, fala e mente; e a posse do controle sobre o fluxo de
prana nos três nadis. O bastão é uma arma com a qual se bate, esmaga e pulveriza as
forças perniciosas e obstrutivas.
300
mahayana e vajrayana. Muitas vezes ele é encimado por um tridente, cujas pontas
representam os três nadis principais. O cajado inteiro pode também simbolizar o nadi
central, com o vajra duplo, a jarra e as três cabeças formando os cinco chakras
principais. Sua posse indica o controle do corpo sutil. Quando ele é empunhado por
uma única figura na dobra do braço esquerdo, representa o consorte, seja masculino
ou feminino. Aqui é seguro na mão direita do meio do heruka e é um símbolo dos
meios habilidosos, enquanto a mão esquerda oposta segura a taça de crânio da
sabedoria.
301
mas desta vez ela é especificamente descrita como estando cheia de sangue até a
borda, talvez para enfatizar a conexão do sangue com o desejo — o desejo que
impulsiona e anima o samsara. O pequeno tambor é seguro por uma curta alça de
madeira; ele ressoa com a voz agradável do dharma. O bastão é um outro tipo de
porrete; embora o texto não especifique isso, nas pinturas das deidades do bardo, ele
sempre parece ser representado com um crânio sorridente no topo, de tal forma que é
ao mesmo tempo uma arma e um símbolo da morte e da transmutação.
302
os objetivos. Em seu aspecto pacífico, Amoghasiddhi segura um vajra duplo, mas aqui
o heruka brande uma espada, o símbolo alternativo da família Karma, e aquele que é
mais apropriado para a manifestação colérica. Com ela, ele corta através das dúvidas,
dos obstáculos e limitações de todos os tipos. Todos os outros utensílios que ele
carrega já foram descritos, junto com as suas funções. A Dama Colérica Karma é verde-
clara, e ela porta uma espada e uma taça de crânio com sangue.
O texto nos lembra que por mais aterrorizantes que as deidades coléricas
possam parecer, assim que sua verdadeira natureza é mostrada, é fácil reconhecê-las e
ser liberado. É igual a uma situação na qual estivéssemos aterrorizados por um leão
empalhado, pensando que é real, mas assim que alguém nos mostra que é apenas uma
imitação, todos os nossos medos se evaporam. Quando reconhecemos os herukas
como nossa deidade escolhida, a experiência pessoal da luminosidade que tivemos
anteriormente na meditação se funde com a luminosidade auto-existente do bardo,
como uma criança correndo para os braços de sua mãe: “Aparecendo de si própria
para si própria, de forma a liberar a si própria, como ao encontrar um velho amigo, a
autoconsciência auto-iluminada é auto liberada"
303
sânscrito transliterado para a escrita tibetana. Em algumas das matrizes tibetanas, o
nome gauri foi mudado para keuri, portanto em algumas traduções elas são chamadas
de as oito keurimas. Gauri é um dos muitos nomes do princípio feminino no
hinduísmo. Significa branco, brilhante ou dourado, e designa seu aspecto mais pacífico
como a linda e jovem mulher de Shiva. Mas aqui ela é adotada como uma deusa
budista colérica e está acompanhada por uma coleção igualmente inesperada de
espíritos maléficos, párias e criminosos. Eles unificam todos os tipos de contradições:
beleza com horror, pureza com impureza, o mais elevado com o mais baixo, vida com
morte. Demonstram claramente a natureza paradoxal do princípio das dakinis,
utilizando as mesmas coisas que nos aprisionam no samsara para nos libertar.
No leste está Gauri, a Branca. Ela representa a consciência original. Segura uma
taça de crânio com sangue em sua mão esquerda, e na direita brande um cadáver de
bebê como se fosse um porrete, mostrando que ela subjuga os pensamentos dualistas
do samsara. O corpo sem vida é um símbolo do estado mental original, não dualista, e
já que é o cadáver de um bebê, significa que ele nunca cresceu para o mundo do ego e
do outro.
No sul está a amarela Chauri, a Ladra. Ela representa a consciência mental, que
agarra e rouba tudo o que se aproxime da sua esfera. Nos tantras, se diz que
deveríamos roubar o tesouro da iluminação dos budas; ela transforma o ato de roubar,
de tal forma que ele conduza não ao sofrimento, mas ao despertar. Ela atira uma
flecha a partir de um arco — o arco da sabedoria lançando a flecha dos meios
habilidosos.
No oeste está Pramoha, Paixão. Vermelha como a cor da paixão, ela é a mulher
sedutora que arma as ciladas com suas artes da ilusão. Representa a consciência da
mente aflita na qual os cinco venenos operam. Agita um estandarte feito com a pele
de um monstro aquático sobre sua cabeça. O makara, ou monstro aquático, é uma
criatura mitológica baseada no crocodilo e combinada com características de diversos
outros animais. No hinduísmo, ele é um emblema de Kama, o deus da luxúria,
enquanto no budismo, é um símbolo do samsara, que por sua vez é muitas vezes
comparado a um rio ou um oceano. Pramoha o eleva bem alto como um estandarte da
vitória, para demonstrar que o samsara não é abandonado ou rejeitado, mas aceito
como realmente é.
116
A correspondência dos oito gauris e das oito pishachis com as consciências e seus campos é extraída
de Tulku Thondup, Enlightened Living, Boston, Shambhala, 1990, p. 134-135, notas 16 e 17.
304
No norte está a negra Vetali, a Vampira. Este é um espírito horripilante que
assombra os solos sepulcrais e entra e anima os cadáveres. Representa a consciência
do corpo ou tato. Ela dá vida ao cadáver da existência, que é essencialmente vazio,
sem ego e insubstancial. Segura um vajra e uma taça de crânio com sangue,
simbolizando o estado indestrutível e imutável da realidade, que transcende a
existência e a não-existência.
Depois das oito mães, o grupo de oito pishachis aparece117. Elas eram
originalmente seres demoníacos, cujos nomes podem se originar ou de seus hábitos de
comer carne ou das cores variadas de suas cabeças e corpos. As quatro nos pontos
cardeais têm cabeças de animais e as quatro nas direções intermediárias têm cabeças
117
Em tibetano, phra men ma, pronunciado tramenma. Embora eu não o tenha encontrado em
dicionários, foi-me dito pelo falecido Khunu Rinpoche em 1975 que pishachi é o equivalente sânscrito.
Khunu Rinpoche não foi apenas um grande yogue, mas também um reconhecido erudito em sânscrito.
305
de pássaros. Correspondem às bodhisattvas femininas na mandala pacífica,
representando a pureza natural dos objetos dos oito tipos de consciência.
No sul está Vyaghrimukha, a de Cabeça de Tigre. Ela é vermelha, com seus dois
braços cruzados e apontando para baixo. Ela rosna e franze o cenho, e seus olhos fitam
de maneira penetrante de modo a pacificar o samsara. Ela representa os objetos da
consciência mental.
306
sangue na esquerda, e ao mesmo tempo devora um coração e pulmões. Comer os
órgãos internos e beber o sangue simboliza a liberação dos venenos.
A prática do dharma afirma que elas fecham as portas para os quatro tipos de
nascimento e abrem as portas para as quatro atividades vajra. As cem homenagens as
interpreta como incorporando os quatro estados imensuráveis da mente. Elas mantêm
vigilância sobre as fronteiras da mandala, de forma que cada aspecto do
relacionamento com o mundo externo seja pleno de compaixão, alegria pelos outros e
equanimidade. Essas emoções altruístas são a base da vida espiritual; sem elas, é
impossível realizar as quatro atividades ou escapar do renascimento.
No portal sul está a forma amarela, de cabeça de porco da Pasha, o Deva com
um Laço, segurando um laço e uma taça de crânio com sangue. Ela representa a
bondade amorosa infinita, laçando e atando as visões equivocadas que impede os
seres viventes de compreenderem a verdade. Desempenha a atividade de enriquecer e
incrementar as qualidades da iluminação.
307
sangue. Ela acorrenta o veneno da ignorância e, com alegria ilimitada, rejubila-se com
o despertar de todos os seres. Desempenha o trabalho espiritual de magnetizar ou
atrair tudo o que é necessário e subjugar tudo que é prejudicial.
119
A lista de 28 yoguines no Guhyagarbha Tantra não coincide inteiramente com a lista dada aqui. Ela,
também, fornece os nomes apenas em tibetano; metade são os mesmos, enquanto alguns poucos mais
aparecem sob nomes alternativos, mas do resto não se pode afirmar definitivamente que
correspondam. Nessa tradução, Gyurme Dorje fornece seus nomes em sânscrito, obtidos de seus
mantras. O comentário descreve todas elas como as consortes de vários deuses hindus maiores e
menores. Entretanto, muitas destas identificações são bastante questionáveis e não concordam com as
fontes hindus, portanto não fiz uso delas aqui.
120
Ver H. C. Das, Tantricism: A Study of the Yogini Cult, Nova Déli, Sterling, 1981.
308
Do ponto de vista do budismo, a crença em qualquer deidade como existente
fora de nós e tendo poder sobre nós é falsa e enganosa. Seu culto é materialismo
espiritual, o desejo de ganhar alguma coisa a partir da atividade religiosa em vez de
compreender a natureza da mente. Entretanto, uma vez que tenhamos compreendido
nossa natureza derradeira vazia e a das deidades, os princípios, as forças que elas
representam são transformados em instrumentos do dharma. Dessa maneira, muitas
deidades da tradição hindu ortodoxa, assim como as deidades locais indianas e
tibetanas menos conhecidas, foram assimiladas pelo vajrayana, como parece ser o
caso com essas yoguines.
Algumas delas portam emblemas tais como o vajra, a roda, o lótus e a jarra,
simbolizando suas qualidades iluminadas. Algumas carregam armas como porretes,
lanças e lâminas para destruir os venenos e cortar através da insensibilidade da
percepção. Algumas bebem sangue e comem carne crua para simbolizar a aceitação e
a transmutação imparcial. As cabeças de animais selvagens mostram seu perfeito
controle sobre a energia bruta, seu destemor e poder, sem tramas e sem hesitação. As
cabeças de aves de rapina mostram que elas esquadrinham com olhos que tudo veem
os menores obstáculos e as tendências maléficas de modo a devorá-las. Elas nos
convidam a experimentar a vida completamente, sem contenções, com total
consciência.
309
existência da qual o lótus surge. No budismo, Brahma é louvado como possuidor de
poderes divinos de fala e, apropriadamente, o lótus também está ligado à fala, já que é
o emblema de Amitabha, que personifica a fala dos budas.
121
No Livro tibetano dos mortos, lhe demos o nome de Lobha, mas Trungpa Rinpoche não estava certo
de sua identidade. O equivalente tibetano é gtogs ’dod, uma palavra incomum, que ele traduziu como
“ganância”. Evans-Wentz a chama de a Deusa da Curiosidade, evidentemente de uma variante tibetana
lida a partir de rtogs ’dod. No Guhyagarbha Tantra, é listada como ‘jugs red mo (Vaishnavi), enquanto
no comentário é chamada rtogs ‘dod. Lauf (Secret Doctrines, p. 151) a lista como Vaishnavi, embora eu
não tenha certeza de qual texto ele usa como base para isso.
310
No sul da mandala, as seis yoguines que desempenham a atividade de
enriquecer aparecem. Vajra, a Adamantina, personifica tudo o que o próprio vajra
representa. Tem a cabeça de um porco, simbolizando a transmutação da ignorância e
da ilusão em um despertar brilhante e indestrutível. Ela é amarela na cor e traz uma
lâmina em sua mão. A forma tradicional da lâmina é a de uma arma curva
extremamente afiada, que corta os erros e as corrupções que obscurecem a face de
nossa verdadeira natureza.
Shanti, Paz, é vermelha e segura uma jarra em sua mão. Ela tem a cabeça de um
monstro aquático, mostrando que superou completamente a turbulência do oceano
do samsara e o transformou em tranquilidade. A jarra contém a água da vida e
concede saúde e longevidade.
311
de cavalo, Hayagriva, é uma manifestação de Amitabha. Ela carrega o tronco de um
cadáver humano para simbolizar a transmutação da existência comum baseada no
desejo da experiência de grande bem-aventurança através da compreensão do vazio.
Uma terceira Rakshasi, Demônio Feminino, vermelha na cor e com uma cabeça
de cão, se segue. Como um caçador de carniça, o cão era considerado um animal
impuro e poluidor. Ela segura o vajra de indestrutível pureza em uma mão e golpeia
violentamente com uma lâmina na outra, cortando para sempre os impedimentos e as
impurezas.
312
Uma segunda Vajra, a Adamantina, aparece com a cabeça de um corvo ou uma
gralha. Ela é vermelha e brande o cadáver de uma criança, simbolizando que o sentido
de ego renasce a cada momento e é imediatamente liberado para o despertar.
Por último vem Varuni, Consorte de Varuna, o deus da água. Ela é azul, tem a
cabeça de uma serpente e segura um ninho de cobras em sua mão. As deidades
serpentes são sempre associadas com a água; controlam os rios, oceanos e chuvas, e
protegem o meio ambiente. Com seu ninho de cobras, ela laça e aprisiona o poder dos
venenos.
Depois dessas 24 yoguines dos quatro pontos cardeais, as quatro yoguines finais
emergem para guardar os portais exteriores da mandala, portando os emblemas
comuns aos guardiães dos portais. No portal leste está a Vajra Branca, com a cabeça
de um cuco, segurando um gancho de ferro. No sul está a Vajra Amarela, com a cabeça
de um bode, segurando uma laçada. No oeste, está a Vajra Vermelha, com a cabeça de
um leão, segurando uma corrente de ferro. No norte, está a Vajra Verde, com a cabeça
de uma serpente, segurando um sino. Elas protegem as fronteiras mais afastadas da
experiência do bardo do dharmata, o estado no qual vemos a realidade face a face. Por
meio das quatro atividades vajra, elas nos liberam de todos os laços da ilusão e
bloqueiam as portas para os quatro tipos de nascimento, de modo que não vaguemos
mais em direção ao bardo do vir a ser.
122
No Livro tibetano dos mortos, nós a chamamos Mahahastini, Grande Elefante, mas é mais provável
que ela seja Mahanasa (uma tradução literal de seu nome tibetano), listada entre as dakinis do
Chakrasamvara Tantra. No Guhyagarbha Tantra, Gyurme Dorje dá a ela o nome sânscrito de Bhujana,
que mais uma vez significa “elefante”.
313
esquerda. Com seu par inferior, segura um vajra de cinco pontas e um cajado tântrico.
Com seu par de braços principal, envolve o corpo de sua parceira e rola entre suas
mãos o kila a partir do qual recebe seu nome. Trata-se de uma lâmina de três lados,
originalmente um prego ou uma estaca, porém mais semelhante a uma adaga, que
perfura ao mesmo tempo a paixão, a agressão e a ilusão.
Mas, se somos incapazes de reconhecer, nossa confusão e nosso terror irão nos
fazer perceber essas formas radiantes de nossa própria mente como demônios.
Deixando-nos levar para bem mais distante da consciência original não dual da base do
ser, começamos a nos sentir muito mais separados e vulneráveis, enquanto eles
parecem mais externos e reais.
314
pacíficas serão transformadas em Mahakala, um protetor do dharma extremamente
poderoso. Agora não podemos mais perceber as visões como seres despertos, mas
somente como demoníacos, maus e ameaçadores. Sentimos que eles querem nos
atacar, nos machucar ou até mesmo nos matar. Começamos a solidificar o espaço,
cristalizando as aparências de nossa própria mente em projeções e em seguida
permitindo-nos acreditar nelas e ser completamente enganados por elas. Nos
movemos para fora da experiência do bardo do dharmata para o bardo da existência.
A instrução nos lembra mais uma vez que todas essas visões terríveis são de fato
nossa deidade escolhida, nossa natureza desperta. Poderíamos convocar essa deidade
ou aquele guru para nos ajudar a compreender que elas não são nossos inimigos e que
não existe nada a temer. A prece-aspiração neste estágio é muito mais longa do que os
versos anteriores. Ela convoca particularmente Avalokiteshvara, o Senhor de Grande
Compaixão (ver Figura 8). As seis sílabas de seu mantra, OM MA NI PAD ME HUM, se
relacionam com os seis reinos da existência. Elas são visualizadas nas cores dos budas
dos seis reinos, que são a presença viva da compaixão tomando forma dentro de cada
reino, e que apareceram anteriormente entre as visões pacíficas do bardo. OM é
branco e representa o reino dos deuses; MA é verde e representa o reino dos deuses
ciumentos; NI é amarelo e representa o reino humano; PAD (pronunciado pe em
tibetano) é azul e representa o reino animal; ME é vermelho e representa o reino dos
fantasmas famintos; e HUM é preto e representa o reino do inferno. Meditando no
mantra dessa maneira, podemos despertar o poder da compaixão dentro de nós e
dirigi-lo para todos os seres viventes, enquanto ao mesmo tempo transmutamos os
venenos que levam ao renascimento nos seis reinos. Assim como a natureza de tudo o
que vemos é a forma da deidade, também tudo o que ouvimos é realmente a vibração
315
subjacente sagrada do mantra. O rugir ensurdecedor do trovão cósmico e os gritos
violentos, ameaçadores, dos demônios no bardo, todos se tornam o som libertador
das seis sílabas, transformando nossa percepção de tal forma que reconhecemos a
verdadeira natureza das visões.
Esta seção do texto conclui repetindo mais uma vez a importância vital da prática
durante a vida e o grande benefício de mesmo simplesmente ouvir esse ensinamento.
Isso mostra que a maioria das pessoas estão assustadas e confusas na hora da morte,
quer estejam habituadas a meditar ou não, e precisam da ajuda dessa orientação
através do bardo. Então, se elas praticaram enquanto estavam vivas, aquelas que
reconheceram a natureza da mente e conquistaram estabilidade em sua compreensão
estarão muito fortes quando a luminosidade da morte aparecer, e assim atingirão a
liberação. Aquelas que ganharam experiência no yoga da deidade estarão muito fortes
316
quando as visões das deidades pacíficas e coléricas aparecerem, portanto elas também
reconhecerão e serão liberadas.
No bardo, não somos restringidos pelas limitações do corpo físico, e se diz que a
inteligência é nove vezes mais clara. Portanto, mesmo que só tenhamos ouvido esse
ensinamento uma vez, sem entendê-lo naquele momento, no bardo é possível lembrá-
lo exatamente, palavra por palavra, e apreender seu significado instantaneamente.
“Portanto, ele deveria ser ensinado a todo mundo durante suas vidas, deveria ser lido
ao pé da cama de todos os que estão doentes, deveria ser lido ao lado do corpo de
todos os mortos, deveria ser espalhado por toda parte.”
317
Capítulo Quinze
Na Porta do Útero
318
Isso pode ser comparado à nossa vida presente, na qual a sequência de se
dissolver, entrar em um espaço de infinitas potencialidades e emergir mais uma vez
acontece continuamente em muitas escalas de tempo diferentes. A consciência de
vigília se dissolve quando adormecemos, passamos muitas horas no que consideramos
ser a inconsciência, e em seguida retornamos ao estado de vigília. Dentro daquele
período inconsciente, os sonhos surgem, se dissolvem e surgem novamente. Na vida
em vigília, um sentimento dominante se desfaz e deixa uma lacuna de incerteza até
que outra emoção o substitua. E durante todo o tempo, pensamentos e sentimentos
efêmeros vêm e vão; um estado mental morre, existe um momento de abertura, em
seguida um outro estado mental nasce. Se pudermos nos acostumar a ver todo esse
processo como um jogo da ilusão, isso irá nos ajudar a evitar o apego à oportunidade
de renascimento quando estamos no bardo da existência.
123
Esta linha pode ser traduzida e interpretada de diversas maneiras; eu a traduzi de acordo com a
explicação que segue o texto. Uma interpretação tradicional diferente pode ser encontrada em Lati e
Hopkins, Death, Intermediate State and Rebirth, p. 55.
319
anterior são muito fortes e as tendências daquela vida ainda prevalecem, portanto
sentimos que ainda possuímos nosso antigo corpo. Gradualmente, a conexão se desfaz
e as tendências que estão nos empurrando em direção a uma nova existência
predominam. Quando isso acontece, começamos a sentir que já habitamos o corpo de
nossa próxima vida. Quando o verso fala de uma forma física, está se referindo aos
corpos de nossas vidas passadas e futuras, não ao corpo do bardo; o corpo que
experimentamos no bardo é puramente mental e imaterial, mas parece
absolutamente real, por isso estamos constantemente com medo de sermos feridos
ou mortos.
De início, os mortos não percebem que estão mortos; sentem que ainda
possuem seus antigos corpos e não conseguem entender por que seus antigos amigos
e parentes os estão ignorando. Tentam desesperadamente se comunicar, vagando sem
320
destino em frustração e desespero. O sofrimento causado por essa rejeição é uma
grande agonia, “como a dor de um peixe rolando na areia quente”. Todas as emoções
por que a pessoa falecida passa são traduzidas em experiências físicas extremamente
vívidas:
No bardo anterior, nossa verdadeira natureza foi revelada em seu estado básico
de pureza através das formas auto manifestadas das deidades, mas agora nossa
natureza confusa se manifesta por melo de aparições demoníacas surgindo do karma.
À medida que os elementos retornam, se manifestam externamente sob formas
ameaçadoras, nas palavras do verso que foi citado no Capítulo Cinco, "como inimigos".
A terra se transforma em montanhas desmoronando sobre nós, a água se torna uma
grande inundação que nos leva de roldão para longe, o fogo vocifera em toda a nossa
volta e nos chamusca, e o ar é um vento violento que nos fustiga incansavelmente.
Paixão, agressão e ilusão jazem em espera, como abismos traiçoeiros que se abrem
embaixo de nossos pés. Todos os nossos demônios interiores, o resultado kármico do
mal que fizemos e da dor que causamos, perseguem-nos com fúria vingadora. Essas
321
experiências são todas a auto-exibição natural de nossa própria mente e não devemos
ter medo delas, mas também somos advertidos contra o apego às aparências ilusórias
resultantes do karma positivo e contra uma atitude de apatia em relação às aparições
neutras:
Já que todo mundo sem dúvida desempenhou ações boas, más e neutras, a
consciência da pessoa falecida é jogada para todos os lados pelo vento do karma entre
essas várias experiências. Embora a mente desincorporada tenha poderes paranormais
e possa ir aonde quiser, ela é incapaz de sossegar por um só instante e anseia por
encontrar abrigo e descansar. Finalmente, ela percebe que morreu. Quando essa
percepção surgir, “seu coração irá subitamente ficar vazio e frio, e você sentirá dor
intensa, ilimitada”.
Então a consciência falecida irá vagar por todo lugar procurando por um corpo;
ela pode até tentar retornar ao seu antigo corpo, mas é muito tarde.
322
ser sofrimento, portanto corte fora esse seu anseio por um corpo e
permaneça no estado onde nada precisa ser feito, sem distração.
Existe ainda uma oportunidade de se atingir a liberação nesse ponto, seja através
do poder da fé e da devoção, de meditar na forma da deidade escolhida, ou de
permanecer na meditação imperturbada sem forma. Durante esse bardo, os hábitos
formados pela prática da pessoa durante a vida e a conexão com o seu guru, o canal do
adhishthana, são extremamente importantes. Praticantes de vajrayana que ganharam
experiência suficiente em suas práticas de yoga da deidade transformarão o corpo do
bardo na forma da sua deidade escolhida e ou irão para uma terra pura ou renascerão
como um yogue ou yoguine consumados, de forma a completar o caminho e
estabilizar seu reconhecimento da luminosidade.
323
seja assassinado e despedaçado. Você é na realidade a forma natural do
vazio, portanto não há necessidade de medo. Esses senhores da morte,
também, são a forma natural do vazio, sua própria auto-exibição confusa.
Você é um corpo mental vazio, de impressões kármicas. Vazio não pode
danificar vazio; aquilo que não tem características não pode prejudicar
aquilo que não tem características. O Senhor da Morte, os bons e os maus
espíritos, o demônio com cabeça de touro e assim por diante não possuem
realidade externa além da sua auto-exibição confusa, portanto reconheça
isso. Neste exato momento, reconheça tudo como o bardo.
Agora o texto fornece uma linda instrução sobre simplesmente olhar para
natureza das coisas como elas são e permanecer naquele estado espontâneo. Ele é
expressado em termos dos três kayas: a essência vazia, a expressão luminosa e a
manifestação desobstruída, unidas no quarto, o svabhavikakaya, que é a totalidade da
nossa natureza essencial:
324
O caminho do reconhecimento é a visão final, o mais elevado ensinamento. Não
existe nada para mudar em nossa natureza, nada a acrescentar ou a tirar;
reconhecimento é tudo que é necessário. A única diferença entre os budas e os seres
conscientes é que seres conscientes não sabem que são budas.
Por exemplo, podemos subitamente sentir saudades da riqueza e das posses que
fomos forçados a abandonar, ou podemos ficar ressentidos pela ideia de outros
desfrutarem delas. Talvez elas estejam sendo mal utilizadas ou dada a nossos inimigos.
Então somos propelidos para baixo, em direção ao reino do inferno por meio da raiva,
ou em direção ao reino dos fantasmas famintos por meio do apego. Para evitar que
isso aconteça, deveríamos abandonar todos os pensamentos possessivos e fazer
mentalmente uma oferenda de tudo o que um dia foi nosso.
325
Mesmo se tivermos causado muito mal durante nossas vidas e estivermos nos
dirigindo para reinos inferiores, se virmos que nossos mestres e amigos espirituais
estão desempenhando rituais para nós com fé e devoção genuínas, a alegria e gratidão
que sentirmos fará com que nos dirijamos para reinos mais elevados. Portanto, mais
uma vez o princípio da visão sagrada é extremamente importante. A pessoa falecida é
instruída a repetir parte da prece que concluiu o bardo do dharmata. E deveria repetir
muitas vezes, com absoluta convicção de que é verdadeira, e não falsa:
A coisa mais importante agora é evitar ser atraído para qualquer um dos seis
reinos. Ainda existe uma chance de despertar naquilo que é chamado um reino
nirmanakaya puro, um nível mais elevado de existência em que continuaremos a
progredir ao longo dos estágios finais do caminho. As luzes coloridas representam os
estados mentais que criam os reinos do samsara. Elas aparecem à nossa frente vindas
de dentro de nossa própria mente. Nos seduzem com toda a força de nossas
tendências kármicas, nossas reações habituais e nosso impulso instintivo para retornar
ao nosso antigo estilo de vida. Podemos sentir essa atração magnética quando somos
puxados em uma determinada direção por nossas emoções, embora ao mesmo tempo
326
sintamos a possibilidade de permanecer em um estado de equanimidade e abertura,
em vez de sermos conduzidos pelo hábito. Mesmo na meditação podemos
subitamente nos sentirmos nostálgicos por antigas atitudes, e uma saudade perversa
pode surgir para que voltemos a ser comuns e a ver as coisas de uma maneira comum.
Isso é igual ao brilho dessas luzes ilusórias em nossa mente.
327
surgem da mente como auto exibições espontâneas. O dharmakaya é o estado da
onisciência não dual, no qual a consciência luminosa sabe tudo por si só, por meio de
sua própria luz. Não existe apego ao ego como sujeito e nenhum fenômeno existindo
separadamente como objeto, Se formos capazes de permanecer nesse estado com
algum grau de estabilidade, poderemos despertar em uma terra pura em vez de
retornar ao samsara. Igualmente, na experiência diária, se pudermos permanecer em
abertura e equanimidade mesmo por um período curto de tempo, isso irá evitar que
vaguemos diretamente em direção à próxima reação emocional negativa que nos
acenar.
O livro explica que existem dois métodos principais que podem ser aplicados
para evitar o renascimento: “parar a pessoa que está entrando, e fechar a porta do
útero que está prestes a ser penetrado”. O primeiro método é semelhante à instrução
que acabou de ser dada, enfatizando mais uma vez que se a pessoa não tem o poder
concedido para nenhuma deidade específica, deveria meditar em Avalokiteshvara. A
pessoa no bardo simplesmente se funde com o vazio luminoso da essência da deidade
e não prossegue mais em direção ao renascimento. Mas, se isso não funcionar,
existem cinco maneiras diferentes de fechar a porta do útero de modo que a pessoa
não possa entrar. O verso raiz do bardo da existência contém a essência das
instruções:
328
Concentrar-se na nossa aspiração em relação ao despertar é extremamente
importante neste estágio, por causa do poder sem precedentes da mente no bardo,
portanto o que quer que pensemos é imediatamente realizado. Mesmo um
pensamento passageiro de medo pode nos desequilibrar completamente, ou um
momento de nostalgia pode nos enviar rapidamente em direção ao renascimento.
Igualmente, podemos ser liberados por um instante de reconhecimento. O efeito de
aplicar a concentração focalizada neste momento é comparável a controlar um cavalo
com uma rédea ou usar uma catapulta para disparar um míssil.
O verso diz que devemos “abandonar o ciúme”. À medida que vamos nascer
como macho ou como fêmea, já possuímos a polaridade do nosso futuro gênero;
quando vemos um homem e uma mulher, nossos pais em potencial, fazendo amor, o
ciúme surge imediatamente dentro de nós. Ele é produzido a partir das emoções
fundamentais opostas de atração e repulsão. Sentimos atração, luxúria e paixão pelo
par do sexo oposto e aversão, ódio e agressão pelo do mesmo sexo. Isso é o que
impele o gandharva para o útero, entrando entre as essências masculina e feminina
dos pais, os bindus branco e vermelho. É como se a porta tivesse se aberto para nós,
convidando-nos a entrar.
Se isso não der certo, deveríamos meditar no casal como nossa deidade
escolhida, ou como Avalokiteshvara em união com sua consorte. Os princípios
329
masculino e feminino personificam a união inseparável de aparência e vazio,
mostrando-nos diretamente a natureza ilusória de tudo o que vemos. Deveríamos
mentalmente fazer oferendas a eles e pedir que nos concedam realizações espirituais.
Isso terá o mesmo efeito que o primeiro método.
Aqui o texto menciona o renascer no reino animal como uma possibilidade muito
real. Nesse estágio, praticantes experimentados já terão sido liberados, portanto as
instruções são dirigidas a todos os tipos de pessoas no bardo, mesmo àqueles que se
afundaram muito, e esse lembrete do sofrimento no samsara é uma advertência
poderosa contra o se entregar à paixão e à agressão.
124
Relatos do desenvolvimento do embrião podem ser encontrados, por exemplo, em Clifford, Tibetan
Buddhist Medicine and Psychiatry; Dhargyey, Kalachakra Tantra; Lati e Hopkins, Death, Intermediate
State and Rebirth.
330
irá suportar todo o tipo de sofrimento em um estado de grande ilusão e
estupidez. Girando dessa forma em torno dos seis reinos dos seres
infernais, dos fantasmas famintos e assim por diante, será atormentado
por sofrimento infindável. Não existe nada mais poderoso ou aterrorizante
do que isso.
Ai de mim, para um ser consciente de karma ruim, como eu! Embora tenha
circulado ao redor do samsara já por muitas vezes, ainda estou vagando
desse jeito como resultado da paixão e da agressão. Se eu seguir sentindo
paixão e agressão dessa forma, vagarei incessantemente no samsara e
estarei a perigo de afundar no oceano do sofrimento por um longo tempo,
portanto agora não sentirei absolutamente nenhuma paixão nem agressão.
Ai de mim, ai de mim!
331
como sonhos, como magia, como ecos, como castelos no ar, como miragens, como
reflexos, como ilusões óticas, como a lua na água. Não são reais nem por um
momento. Certamente não são verdadeiros, mas falsos.” Essa meditação é
extremamente poderosa porque mina diretamente a crença na dualidade e no ego; a
entrada para o renascimento é automaticamente fechada, porque não existe mais
nenhum sentido de indivíduo para renascer.
Dentro das luzes coloridas dos seis reinos, características de suas paisagens
começam a aparecer assim que nos aproximamos deles. Talvez sejamos atraídos muito
fortemente para um reino e por isso percebamos somente aquele, ou talvez vejamos
lampejos de outros reinos à medida que aspectos diferentes do nosso karma se
332
destacam. Durante todo o tempo, estamos procurando desesperadamente por algum
lugar para nos escondermos, portanto o que quer que vejamos parecerá um lugar de
refúgio. É nesse momento que deveríamos “pensar em resistência”, como diz o verso.
O livro descreve os sinais e características de cada um dos reinos, de forma que se
estivermos próximos de nascer em um deles, possamos reconhecer as indicações e
resistir à tentação de entrar em um útero.
Podemos também ter visões dos outros reinos. Se formos nascer no reino dos
deuses, veremos palácios celestiais, com muitos andares e inteiramente decorados
com joias. Embora a vida dos deuses seja considerada muito fácil e prazerosa para a
busca séria do dharma, possui muitas qualidades excelentes, portanto deveríamos
entrar, se pudermos.
333
protuberância ou pedaço de terra pode parecer que oferece abrigo. Deveríamos
perseverar em resistir a qualquer pensamento de entrar lá.
334
deuses, fantasmas famintos, espíritos malignos e seres infernais, são nascidos
miraculosamente sem nenhum agente externo. Deuses do reino sem forma se
originam da conquista do samadhi. No estado volátil do bardo, é possível entrar em
reinos inferiores da existência por meio de uma súbita transformação em nossa
atitude mental, por isso deveríamos evitar permitir que aconteça. A melhor proteção é
a meditação mahamudra no vazio de qualquer coisa que apareça, mas se não
conseguirmos permanecer naquela compreensão, deveríamos simplesmente tentar
compreender a natureza ilusória de tudo e observar tudo acontecer sem se deixar
atrair. Como último recurso, deveríamos pelo menos evitar se sentir atraído por
qualquer coisa e meditar em Avalokiteshvara.
Mesmo nesse último estágio, ainda é possível efetuar a transferência para uma
terra pura a fim de completar nosso progresso no caminho. Dependendo das conexões
anteriores, ela pode ser o reino de um dos cinco budas, ou o do Guru Rinpoche ou o do
futuro Buda Maitreya, mas o ideal de muitos budistas é ir para o Reino da Bem-
Aventurança de Amitabha. A transferência é conquistada através de intensa
concentração na resolução de escapar do samsara e no anseio de ir para aquela terra
pura em particular. Assim que pensarmos na nossa terra pura escolhida com fé plena,
instantaneamente nos encontraremos lá.
335
Ó filho de família desperta, se você não sabe como escolher a porta de um
útero e não consegue se separar da paixão e da agressão, qualquer que
seja a experiência que surja, convoque as três joias e refugie-se nelas.
Suplique pelo Senhor da Grande Compaixão. Siga com a cabeça erguida.
Abandone os apegos e anseios pelos amigos e pela família, filhos e filhas,
que deixou para trás; eles não podem ajudá-lo. Entre agora na luz azul do
reino humano ou na luz branca do reino dos deuses; entre nos palácios de
joias e nos jardins dos prazeres.
Liberação através da audição não deveria ser lido apenas para os mortos, mas
todos deveriam lê-lo para si próprios, ter certeza de que realmente entenderam seu
significado, e apreender seus pontos importantes com o coração, especialmente
quando a morte estiver próxima. “Este ensinamento não necessita de qualquer
prática; ele é uma instrução profunda que libera apenas pelo fato de ser vista ou
ouvida.” Agora podemos apreciar o significado dessa afirmação, que tem sido repetida
com tanta frequência. Isso não quer dizer que não precisamos realizar nenhuma
prática durante esta vida, mas que esse ensinamento, por causa de sua natureza
especial, não requer nenhum treinamento preliminar para ser efetivo. As instruções
mostram a natureza da mente tão clara e diretamente, que elas se ligam a qualquer
coisa que tenhamos praticado ou compreendido. Em adição, estão imbuídas do poder
do adhishthana fluindo para nós através da longa linhagem de seres despertos: da
própria mente do buda primordial, através do Buda Shakyamuni, o Precioso Guru
Padmakara, o descobridor Karma Lingpa, diretamente até os grandes mestres de nosso
tempo, tais com Trungpa Rinpoche, que as transmitiu de uma forma que fala aos
nossos corações. Como dizem as palavras de encerramento: Mesmo que os budas do
336
passado, do presente e do futuro procurassem, não encontrariam um ensinamento
melhor do que este.”
337
Como Trungpa Rinpoche colocou, a qualidade essencial desse bardo é o limiar
entre se apegar com avidez e abandonar a esperança. A avidez significa se apegar à
solidez, à permanência, uma forma que irá nos definir e nos fazer reais; o ego quer
reforçar sua existência continuamente, recriar-se e preencher-se. Abandonar significa
relaxar na amplidão do ser, onde a peça mágica das formas acontece, como em uma
dança.
Depois do verso para o bardo da existência, os Versos raiz dos seis bardos
terminam com uma estância final, admoestando-nos para não ficar retornando ao
samsara repetidamente com nada para mostrar a ele:
338
Mente distraída sem um pensamento sobre a aproximação da morte,
Agora que o negócio sem sentido da vida está completado,
Voltar vazio de novo desta vez é altamente ilusório!
O reconhecimento é o dharma sagrado, divino, que você necessita,
Portanto, por que não praticar o dharma divino neste exato momento?
Por isso os grandes siddhas falaram:
Se você não mantiver os ensinamentos de seu guru no coração
Não será você um traidor de si próprio?
Os eventos dos três bardos estão expressados aqui inteiramente nos termos da
doutrina budista e em uma grande extensão, especificamente em termos dzogchen.
Pessoas de outras tradições que são capazes de manter uma certa consciência nesse
momento podem não experimentar tudo da mesma maneira. É por isso que é tão
importante tentar entender o significado interior das imagens apresentadas aqui. Mas,
como não podemos descartar o uso da linguagem, não podemos descartar essas
formas simbólicas. Até que tenhamos realizado plenamente a última compreensão
sem forma, a realidade nua deve permanecer vestida com imagens. Dessa maneira, o
estado desperto inconcebível atua incessantemente por meio dos fenômenos mágicos
da vida, da morte e dos bardos, e de forma transparente se revela ao olho da visão
sagrada.
339
Aspiração
Digitalização:
CEBB PELOTAS - RS
2017
340
FIGURAS
Figura 1 - A Roda da Vida: pintura de Gonkar Gyatso, acrílico sobre tela. Todas as
ilustrações são da coleção da autora. Fotografias de Alan Tabot.
Figura 2 - Os Budas das Cinco Famílias: pintura de Gonkar Gyatso, acrílico sobre tela.
Figura 6 - As Deidades Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século XIX, artista
desconhecido.
341
Figura 1 - A Roda da Vida: pintura de Gonkar Gyatso, acrílico sobre tela. Todas as
ilustrações são da coleção da autora. Fotografias de Alan Tabot.
342
Figura 2 - Os Budas das Cinco Famílias: pintura de Gonkar Gyatso, acrílico sobre tela.
343
Figura 3 - Samantabhadra e Samantabhadri; pintura de Francesca Fremantle, óleo
sobre tela.
344
Figura 4 - As Deidades Pacíficas e Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século
XIX, artista desconhecido.
345
Figura 5 - Vidyadhara e Dakini; pintura de Gonkar Gyatso, aquarela sobre papel.
346
Figura 6 - As Deidades Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século XIX, artista
desconhecido.
347
Figura 7 - As Deidades Coléricas do Bardo; pintura thangka tibetana, século XVIII,
artista desconhecido.
348
Figura 8 - Avalokiteshvara unindo-se à consorte Jinasagara, ao centro, e rodeado pelas
suas outras manifestações, Hayagriva à direita, uma dakini colérica vermelha à
esquerda e uma mahasiddha acima. Pintura thangka tibetana, século XIX, artista
desconhecido.
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