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Espacialidade

O Dzogchen Radical do Coração-Vajra

O Tesouro Precioso do Dharmadhatu de


Longchenpa

Tradução e Comentário de
Keith Dowman

Adaptado ao português por


Kadag Lundrub (Marcos Paulo)

Edição Revisada 2014


Dzogchen Now! Livros
© 2012 e 2014 por Keith Dowman

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida de
qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotografia,
gravação ou qualquer sistema de armazenamento ou recuperação de informação ou
tecnologias agora conhecidas ou desenvolvidas posteriormente sem permissão por
escrito do editor.

Publicado por
Dzogchen Now! Livros
KeithDowman@gmail.com

Primeira edição publicada em 2013


pela Vajra Publications, Kathmandu, Nepal

Para informações digitais, visite: www.keithdowman.net

ISBN 978-1497340862

Design da capa de James Moore e Martin Fernandez Cufre


Conjunto de fontes no Livro Antiqua
Dedicado a todos os seres sencientes
para que possam realizar a grande perfeição
em toda a sua clareza, liberdade e compaixão.
Página de Restrição Ilimitada

A visão apresentada nas páginas seguintes é ilimitada, infinita e universal. Só pode


trazer benefícios para os seres humanos – mas para alguns se exige proteção. A fim de
otimizar o benefício, os seguintes preceitos devem ser observados.

Para Praticantes do Darma Vajrayana: Se você estiver comprometido formal ou


informalmente com um caminho gradual do Dzogchen, por favor, não leia este texto
sem a recomendação do seu mentor. Um bom preceito a seguir é: "Não leia a menos que
você esteja prestes a praticá-lo!”

Para os Acadêmicos: A discussão intelectual deste material é antitética e


contraproducente ao seu fim declarado. Por favor, esteja ciente de que o estudo analítico
e comparativo é proporcional ao uso do Alcorão como papel higiênico – a alienação é
inevitável. Esteja ciente!

Para os Tagarelas do Dzogchen: Você não se encaixa nem na categoria acadêmica nem
na dos praticantes: você saberá que é um tagarela quando se encontrar conversando ou
escrevendo sobre isso (na web) com pessoas de motivação intelectual semelhante que
querem esclarecer suas dúvidas intelectualmente em vez de existencialmente. Para você,
esse material é um veneno de ação lenta.

Para os curiosos: Se você encontrar este texto em formato impresso, seria sensato
envolvê-lo e colocá-lo em um local inacessível acima do nível de sua cabeça e lembrar-
se dele como a eflorescência mágica do coração. Se você o tiver em formato digital,
exclua-o com uma oração: OM AH HUNG!
Conteúdo

Prefácio

Introdução

Espacialidade

Prólogo

Canto Um: Espacialidade

Canto Dois: Campos Búdicos

Canto Três: O Símile para a Mente Luminosa

Canto Quatro: Mente Luminosa

Canto Cinco: Não-Causalidade e Não-Esforço

Canto Seis: Inclusividade

Canto Sete: Espontaneidade

Canto Oito: Não-Dualidade

Canto Nove: Resolução

Canto Dez: Visão

Canto Onze: Pureza

Canto Doze: Liberação

Canto Treze: Buda

Conclusão
Apêndices

1 Lista de Símiles e Metáforas

2 Glossário do Dzogchen Radical

3 Uma Concordância Tibetano-Português

Índice

Outras Leituras do Dzogchen Radical


Prefácio à Edição Revisada

Eu aproveitei a oportunidade oferecida pela publicação na América para editar o texto


novamente. A passagem do tempo trouxe novos insights e novas preferências de
palavras. Eu também editei algumas frases e sentimentos que causaram ofensa aos
crentes nas abordagens budistas suposicionais. Nós mudamos a imagem da capa (NT:
eu mantive a capa da edição antiga por me parecer mais sugestiva) e aumentamos o
tamanho da fonte. Ao todo, esta edição revisada constitui uma atualização.

Keith Dowman, 2014

Prefácio à edição de Catmandu

Esta tradução pode parecer para alguns leitores uma obra finalizada da composição
portuguesa que reflete o original tibetano de Longchenpa. Isto está longe da verdade. O
Tesouro do Dharmadhatu de Longchenpa é uma obra-prima da revelação mística e
poética e exige uma mente de luminosidade semelhante para trazê-lo ao português. As
principais obras de Longchenpa compreendem apenas uma fração das obras-primas
místicas do Budismo Tibetano que requerem uma tradução com um tom de ressonância
e estatura de evocação semelhante à versão da Bíblia do Rei Jaime. Precisamos que
Longchenpas ocidentais reescrevam essa experiência mística perene em uma linguagem
autêntica que soe verdadeira da primeira à última palavra. Nós eliminamos muito do
jargão inglês cansado que foi originalmente elaborado para traduzir os sutras e shastras
do Mahayana, mas ainda temos um longo caminho a percorrer antes que os textos do
Dzogchen brilhem na grande tradição da poesia inglesa-portuguesa e da T.S. Eliot ou
Jack Kerouac – e é a poesia que importa tanto quanto ou mais do que o conteúdo
filosófico. Os acadêmicos são necessários e úteis, mas nossa maior esperança para os
textos do Dzogchen reside nos poetas-iogues, mesmo que isso implique expandir o
alcance da transmissão para incluir um público muito mais amplo.

Essa abordagem vicia a linhagem de alguma forma? Permite que professores charlatães
ou psicopatas inescrupulosos antecipem o círculo fechado dos detentores de linhagem
do Dzogchen em um mercado suscetível e crédulo da nova era? E os imitadores do
Dzogchen da nova era que obtiveram seus conhecimentos de livros e estudos? Deveriam
ser acolhidos como adeptos do Dzogchen nativos, auto-realizados e não-dualistas? A
"linhagem" no Dzogchen é sinônimo de "a base do ser", mas é a sine qua non (sem a
qual não) para outros professores não-duais? E então a questão do samaya: devemos
aceitar que, subsequentemente à experiência iniciática, até que um aluno tenha
assimilado e se familiarizado com a visão, o sigilo – ou pelo menos a discrição – pode
ser extremamente valioso como uma proteção contra o desperdício de energia e a
priorização nociva e convencional. No entanto, uma vez que o ensinamento do coração
é sempre auto-secreto, a disseminação da visão do Dzogchen e a celebração do grande
significado da não-meditação não precisam ser delimitados pelo voto pessoal de segredo
do professor. Devido à má apresentação, alguns receptores da visão podem achar seus
egos inflados por ela; mas, para a maioria dos receptores, a visão é destruidora-de-ego e
mina e resolve o intelecto manipulativo e dualizante.

Esta é outra tradução alternativa do texto seminal do Dzogchen Chas dbyings mdzod,
que é a obra-prima do mestre tibetano Longchenpa. A primeira publicação deste
trabalho, em 2001, sob o título O Tesouro Precioso do Espaço Básico, ainda pode se
revelar como um ponto de virada na história do Dzogchen no Ocidente. Um grupo de
praticantes do Dzogchen ocidental, que não haviam absorvido o Dzogchen em seu lar
oriental, traduziram e publicaram a suprema obra clássica do Dzogchen sob os auspícios
de um rigzin-lama e com a ajuda de khempos eruditos, mas inspirados essencialmente
por sua própria compreensão existencial. O Dzogchen foi assim recuperado pelas
pessoas que precisam dele dos cuidadores que não podem mais usá-lo no contexto
cultural em que ele evoluiu. Certamente devemos esperar que o Dzogchen conserve um
profundo lugar sagrado dentro da consciência tibetana, mas nossa principal aspiração é
que o Dzogchen crie raízes no Ocidente e cure os profundos conflitos que o dualismo
judaico-cristão criou na consciência meta-estrutural do Povo do Livro. Para que isso
ocorra, o significado supracultural do Dzogchen deve ser elevado pelo seu próprio
esforço existencial fora de seu isolamento monástico e cultismo enfeitado para clara luz
do dia, onde pode ser abraçado pelas correntes existenciais e literárias que estão abertas
para uma visão não-dual do mundo. Esta tradução tenta mover a exposição literária do
Dzogchen nessa direção.

O Dzogchen deve saltar das academias para as vidas das pessoas no solo que aspiram
vivê-lo, ou melhor, que estão lutando para vivê-lo como se estivessem por trás de um
vidro escuro, sem o benefício do ensinamento do coração. Governado agora por um
grupo elitista de linguistas e editoras sectárias e comerciais de um lado e grupos de
praticantes esotéricos secretos doutro, o Dzogchen corre o risco de se perder em um
impenetrável labirinto sectário. A história religiosa do Tibete tinha sua própria lógica
político-religiosa que baniu o Dzogchen para um status secreto e clandestino; as
necessidades do Ocidente certamente exigem um resultado bem diferente.

Uma obra de Longchenpa como esta, permite a possibilidade de que os cientistas, os


sumos sacerdotes de uma sociedade pós-cristã, particularmente os físicos, possam
reconhecer o ápice do pensamento budista como um corolário próprio. Os textos do
dzogchen e os comentários ocidentais deveriam ser acessíveis aos psicólogos –
particularmente psiquiatras cognitivos e psicólogos da Gestalt –, aos físicos,
particularmente físicos de partículas e quânticos, e aos filósofos. Da Ásia Oriental, o
Zen, o Ch'an e o Taoísmo criaram uma onda profunda de atitudes e vibrações espaçosas
e inseminantes que inundam o pensamento de muitas disciplinas ocidentais – o
Dzogchen está pronto para coroar essa tendência. Uma afirmação semelhante poderia
ser feita sobre a influência do Advaita Vedanta e do Shivaísmo da Caxemira no
Ocidente; mas o Dzogchen eclipsará sua influência devido à amplitude de sua visão, a
racionalidade e o alcance de seu misticismo, a lucidez e clareza de seus textos e as
profundas raízes e vitalidade de sua tradição.
Não somente os acadêmicos deveriam ser liberados e absolvidos de seu monopólio
sobre a exposição do Dzogchen, mas o conservadorismo dos detentores tibetanos da
tradição também deveria ser submetido a um descanso. Como conservadores da tradição
Vajrayana em geral, e do Dzogchen em particular, os rigzins e tulkus tibetanos não
podem ser superados. Nem mesmo o holocausto da Revolução Cultural chinesa pôde
destruir o que eles preservaram nas escrituras e na transmissão oral por mais de mil e
duzentos anos. Agora, em ambiente exilado, o pensamento nacionalista limitado pode
derrotar o propósito de seu darma quando pessoas não-tibetanas famintas pelo
significado vital do não-dualismo precisam tão urgentemente da transmissão. Isso
pressupõe que a mentalidade do Dzogchen é a solução para resolver os problemas
ecológicos, políticos e econômicos do mundo. Seria realmente trágico se o Dzogchen
permanecesse como um privilégio exclusivo daqueles com direito de primogenitura e,
assim, permitir que ele perecesse dentro da morte inevitável da cultura religiosa tibetana
nativa. O que os consumidores ocidentais do Dzogchen exigem dos lamas tibetanos são
as qualidades que o Dzogchen abraça – desapego, abertura, espontaneidade, bondade e
um companheirismo solidário inclusivo. Com condescendência, egoísmo ou
protetividade mesquinha, ou uma atitude de negócio aquisitivo, o broto no galho
provavelmente murchará antes que a primavera apareça. Semelhante ao protecionismo
econômico, o isolacionismo espiritual é contraproducente, como atirar no próprio pé.
Como uma explicação para isso, eu reflito que meus próprios gurus raízes, embora
sustentem uma frente genuína do tradicionalismo, em minha percepção eram
infinitamente flexíveis, abundantemente generosos e graciosamente solidários – mas
isso foi em um momento anterior, mais humilhante e mais auspicioso.

Em conclusão, parabenizamos Richard Barron por suas traduções inovadoras dos Sete
Tesouros de Longchenpa e honramos Chagdud Tulku entre os tibetanos por sua fé rara
na compreensão e realização de seus discípulos ocidentais. Assim como um cristal uma
vez cultivado em um laboratório experimental pode, posteriormente, ser cultivado com
mais facilidade em outro laboratório distante, uma vez que um texto tenha sido aberto
por um tradutor, ele se torna imensamente mais acessível aos outros. Se o Dzogchen é o
maior presente do Tibete para a humanidade, aqueles que podem, devem trabalhar
juntos para compartilhá-lo sem restrições.

Keith Dowman
A Grande Stupa
Boudhanath, Catmandu
Losar, Cobra De Água, 2013
Introdução

Este famoso texto seminal do Dzogchen radical fornece uma declaração poética
profunda, mas simples, de como é mergulhar na matriz do agora, permitir a presença
pura e reconhecer o estado búdico. É uma declaração pessoal de um adepto iogue que,
evidentemente, passou pelas agonias da transfiguração. Certamente a magia de sua
poesia nos impressiona dessa forma e certamente este Tesouro do Dharmadhatu, o
Choyingdzo, é uma revelação pessoal da consumação do Dzogchen. Nele temos a
certeza de que, para além de todas as iogas e dhyanas do Hindustão, todo o ritual e
magia do Tibete e todas as terapias semirreligiosas da nova-era comercializadas no
Ocidente, existe uma maneira simples e atemporal de ser, de fácil acesso, não exigindo
nenhuma técnica onerosa ou estilo de vida renunciante, que pode nos dar um mínimo de
satisfação constante neste vale de lágrimas entre o nascimento e a morte.

Este magnum opus de Longchen Rabjampa é um manual do que ficou conhecido como
Dzogchen radical, assim chamado em distinção ao Dzogchen elaborado dos dias atuais.
É um texto raiz daqueles que surgiram na hierarquia da prática budista, e isso inclui a
maioria dos tibetanos que estão familiarizados com ele e a maioria dos ocidentais que
têm experiência prévia em meditação no caminho gradual. Sobretudo, é um manual para
aqueles que encontraram o Budismo nesse seu ponto ápice através da instrução daqueles
poucos lamas que promovem o Dzogchen distinto de seu contexto budista ou que
tiveram experiência pessoal e iniciática fora de qualquer estrutura institucional. Sua
clareza em apontar a grande perfeição natural é insuperável. Sua ausência de
pedantismo e didatismo e sua plenitude de dicção poética fazem dele um hino de
revelação pessoal, uma revelação nua de um buda-iogue-poeta.

A arena budista tibetana do vajrayana historicamente é dividida em uma infinidade de


maneiras. Entre as quatro escolas, por exemplo, e entre as velhas e novas propagações,
entre os praticantes monásticos e leigos, entre o xamã e o reformista, entre as províncias
central e oriental, e não menos importante, está a lacuna entre os acadêmicos
monásticos e os iogues leigos. Para apreciar esses dois extremos de estilo de vida e
atitude, compare Je Tsongkhapa, o renomado expoente literário Gelukpa da tradição
reformista monástica, com Drukpa Kunley, o sadhu budista errante (ngakpa), o
menestrel, mago, mulherengo – e um adepto e poeta do Dzogchen. Nenhum amor se
perde entre esses dois modos de exemplares espirituais, uma tendência que foi
transportada para o Ocidente, onde tanto os acadêmicos tibetanos quanto alguns
acadêmicos ocidentais em particular, despejam um desprezo militante contra seus
irmãos experiencialmente inspirados, mais demonstrativos e menos intelectuais. Os
monges que eram o alvo de suas piadas de ensino atacavam Drukpa Kunley. É claro que
os acadêmicos falam enquanto os iogues percorrem o darma, e os acadêmicos exaltam e
cultivam a própria faculdade que os iogues do Dzogchen buscam esvaziar e mitigar. A
arrogância é a consequência natural da realização intelectual, enquanto a humildade
surge automaticamente na mente do adepto através de seu estilo de vida sem mobília.
Mas, como Dudjom Rinpoche notoriamente advertiu, o adepto do Dzogchen deve estar
sempre alerta para o perigo do apego ao álcool e à fornicação.
Que os acadêmicos, bem como os adeptos-iogues, enriqueceram enormemente a cultura
tibetana é indiscutível. O que precisa ser salientado é que o auge da exposição do
Vajrayana é revelado quando a ioga como a realização existencial e a exposição literária
como poesia coincidem. Este lugar do caminho do meio, a meio caminho entre o
mosteiro e a casa-de-chung*-e-bordel, é o eremitério, nem tanto um lugar de rigorosa
disciplina ascética tampouco um lugar de liberdade espiritual. Aqui podemos encontrar
as melhores mentes analíticas e expressivas e a visão que a tudo inclui muito ampla e
profunda, incorporada na única personificação que é o buda. Saraha exaltou a tradição
na Índia; Milarepa era um buda, um tibetano do litoral do Himalaia; e outro que na
tradição do Dzogchen foi o melhor – era Longchenpa. O Tesouro do Dharmadhatu é a
mais explícita e mais perspicaz das exposições poéticas de sua própria experiência do
Dzogchen atiyoga. Ele mesmo enfatiza a natureza pessoal do que descreve. A
verdadeira experiência do Dzogchen está além da descrição e expressão; o que ele
escreve é, naturalmente, uma elaboração pessoal.

* Chung (rimando com a língua) é um vinho de cevada, trigo, arroz ou painço preparado pela
fermentação do grão cozido com o agente catalítico "pap", saturando-o com água e drenando a solução; é
um alimento, bebida e licor onipresente em todo o Grande Tibete.

Essa visão todo-inclusiva, que é a realidade do Dzogchen radical, não depende de


nenhuma cultura religiosa, embora os sacerdotes das religiões budista e bön do Tibete
tenham sido os guardiões e exemplares ocasionais dela. Por isso, lhes devemos uma
enorme dívida de gratidão, que agora está sendo paga por patronos e discípulos nos
centros de darma em todo o mundo, e uma dívida ainda maior por nos investir em sua
tradição vital aqui no Ocidente, recompensada pelo nosso reconhecimento da natureza
da mente. Mas o Dzogchen radical é, afinal, como a tradição afirma, o que sempre
soubemos. Conhecemos a inimitável verdade do ser, assim como todos os seres
humanos que escutam o núcleo profundo de seu coração e ao mesmo tempo abrem os
olhos para o que está diante de suas faces. Conhecemos isso da mesma forma que
conhecemos o pulsar do sangue em nossas veias e o toque da inspiração e expiração em
nossas narinas. A verdade do Dzogchen é o legado do ser humano. Mas o teísmo
judaico-cristão e o dualismo maniqueísta obstruíram persistentemente esse
conhecimento direto, o não-dualismo foi proscrito como herético, e a cultura cristã
nunca foi capaz de articulá-lo suficientemente para criar uma tradição linear integral,
secreta ou secular. No entanto, a realidade não-dual do Dzogchen brilha através da
literatura europeia e da poesia por outros meios. É evidente na cultura popular – ou é
mais particularmente evidente na cultura pop? – e a verdade revela que é o sangue vital
de todas as culturas. Além disso, em virtude da revolução contra-cultural dos anos 60,
na medida em que a mente comum se abriu e se tornou receptiva à explosão intensa do
Dzogchen radical, hoje temos acesso a textos como os de Longchenpa, cada um
contendo uma visão idêntica, como pixels em um holograma, que simultaneamente
refletem e irradiam visões dispares nas mentes de inúmeras pessoas ao redor do mundo.

A ioga do coração-vajra, Maha-Ati, o caminho do ápice, não faz parte do esquema


nônuplo do Budismo Nyingma progressivo e, ainda assim, infunde todos os nove
aspectos. Longchenpa o apresenta como uma visão definitivamente transcendente que
está fora da narrativa dos nove caminhos e fora do quadro convencional que inclui o
atiyoga. Ao fazê-lo, ele fornece uma justificativa para a percepção do Dzogchen
independente de seu contexto budista, uma disciplina separável e discreta. Tal
perspectiva é fundamental para a visão do Dzogchen radical; o reconhecimento da
natureza da mente baseia-se na introdução de um mestre, seja ele um rigzin-lama
budista ou bön, e independentemente de sua fé religiosa ou se de fato ele é de uma
disposição religiosa ou secular. Por outro lado, em alguns cantos dentro deste poema,
Longchenpa parece identificar a visão do ápice com o atiyoga, o nono caminho. A
distinção aqui deve ser feita entre o Dzogchen instantâneo percebido como o ponto de
partida e destino simultâneos, no qual nenhuma gradação dentro de um quadro de
espaço-tempo pode ser admitida, e o Dzogchen como um caminho mais curto –
momentâneo –, uma porta para a natureza da mente no espaço-tempo.

Em sua essência o atiyoga pode ser concebido como trekcho ou togal, as duas facetas
ligeiramente diferentes do Dzogchen. A questão se a visão do ápice é idêntica às visões
de trekcho e togal é uma daquelas perguntas falsas colocadas pelo intelecto como uma
última defesa contra a perda do ego. Se essa questão nos influencia, precisamos recuar
para a espacialidade do pensamento e permitir que a não-dualidade da não-ação se
reafirme. Se o intelecto, rejeitando essa resposta como um placebo, insiste em uma
resposta racional à pergunta "Por quê?" quando a visão do Dzogchen insiste que não há
nada a fazer, precisamos nos engajar com as técnicas de trekcho e togal?
Novamente a resposta é a "não-ação". Mas por que, então, das práticas preliminares
externas e internas e das não-meditações de trekcho e togal? Sob qual das formulações
da visão O Tesouro do Dharmadhatu poderia ser incluído? Sim, o coração-vajra é o
recurso imediato daqueles que, como o grande pássaro garuda, abrem suas asas após a
eclosão, decolam para o céu azul e nunca olham para trás. O atiyoga, por seu lado, é o
tesouro de conceitos e modalidades meta-psicológicas que são as portas todo-abertas
para uma integração fortuita. A fim de cair no entendimento autossurgido de que a
distinção entre relativo e absoluto é puramente intelectual e delusória, deve haver um
conceito, uma porta, que seja entendida como não-dual. Esse conceito, e outros que são
denominados por seus sinônimos, são entendidos como uma porta para a não-dualidade.
A experiência de atravessar a porta é como abrir uma porta para o exterior e permitir
que o ar externo se funda com o ar interno. Ao ter os olhos abertos e ao olhar, é a
experiência de ver repentinamente. Enquanto sonhamos, é o súbito reconhecimento de
que estamos sonhando. Enquanto esses exercícios e conceitos forem considerados
funções da não-ação e, assim, uma porta para o não-dual, permaneceremos no reino do
Dzogchen radical. No momento em que qualquer técnica é concebida como um método
que fornece uma causa ou condição para a realização do estado natural da mente, nós
entramos no caminho progressivo, gradualista – cultural – que é normalmente ensinado
pelos protagonistas lineares do Dzogchen moderno para aqueles que acreditam que não
podem compreender os rigorosos preceitos do Dzogchen radical.

O próprio Longchenpa está de fato sentado na cabine do coração-vajra, montado no


grande garuda, e apresentando a visão do ápice como a única perspectiva válida, mas ele
praticou todas as nove abordagens que a tradição Nyingma subscreve. Ele as chama de
"menores" ou "inferiores", porque os praticantes desses caminhos são capturados na
forma – visão, técnica de meditação e estilo de vida – dessas disciplinas e assim se
alimentam em um purgatório de limitações, onde só podem esperar a transmissão
sincrônica final. Os nove caminhos budistas são metáforas sucintas projetadas para que
as várias mentalidades encarnadas gradualmente (ou no caso do nono caminho
imediatamente) se libertem da ilusão de serem entidades separadas. Assim, eles são
apenas relativamente válidos e válidos mais particularmente quando os costumes
culturais e a tradição budista moldam a cultura, especialmente no contexto tântrico onde
o estilo de vida, cultura e meditação estão inextricavelmente emaranhados e menos
válidos onde pressupostos sobre a natureza da realidade não são derivados do
misticismo Hindu. No Ocidente, podemos peneirar o joio da cultura budista oriental até
termos uma essência da prática monástica Theravada, por exemplo, ou a moralidade do
chefe de família bodisatva, mas monastérios e monges budistas se mostram
desenquadrados em nossa cultura pós-cristã. Por essas razões, se o leitor vive enredado
em uma cultura de futebol-e-cerveja, ele não precisa se preocupar com o comentário
ocasional no texto de Longchenpa aludindo às nove abordagens inferiores. A menos que
haja timidez em face à espacialidade ou vaziez essencial da charada cultural, não
precisamos da cultura budista amável, simpática e gradualista para entrar na mandala do
Dzogchen. E por essas razões, no entanto, que a vitalidade central do budismo – o
Dzogchen – permanece sequestrada à prerrogativa de estudiosos que jogam jogos
semânticos e que se julgam superiores academicamente.

A fim de alcançar o plano onde não há escada de espiritualidade para escalar e nenhuma
pirâmide de realização meditativa para nos manter admirados, precisamos nos libertar
da noção de que podemos cair para um nível mais baixo de conhecimento existencial ou
ascender a qualquer estado mais elevado. Só então podemos relaxar na matriz todo-
abrangente do agora. Práticas baseadas na cultura produzem realizações culturais
progressivas. A natureza da mente abomina estruturas de qualquer tipo, diz
Longchenpa, mas particularmente, ele poderia acrescentar aquelas que são construídas
por meio da ambição, competição e disputa reforçando o senso do eu. Assim, é tentador
acreditar que quando Longchenpa estava vivo, no século XIV, as fases de
reconhecimento da natureza da mente para as quais os termos "trekcho" e "togal" se
referiam ainda eram aspectos da mesma prática não-causal do Dzogchen Atiyoga.
Parece que, no século XVIII, os gradualistas passaram a dominar abertamente a Escola
Nyingma, sem dúvida por serem fortemente influenciados pelo estabelecimento da
Gelukpa em Lhasa. Depois disso, trekcho e togal se tornaram os dois degraus mais altos
de uma escada do Dzogchen. Ambas as linhagens dominantes dos últimos dias que
carregam a transmissão do Dzogchen – as tradições Longchen Nyingtik e Kunzang
Gongpa Zangtal – demonstram isso. Embora o coração-vajra ainda estivesse batendo
rápido, o aspecto cultural e relativista era dominante. Aqui em O Tesouro do
Dharmadhatu, um manual do Dzogchen radical, o uso único de cada termo – trekcho e
togal – define claramente seus significados originais como aspectos de uma experiência
idêntica. Trekcho é a fase ou aspecto da resolução da dualidade onde a mente luminosa
brilha como pureza alfa, como consciência primordial. Togal é a fase ou aspecto da
mesma resolução em que a mesma mente luminosa é percebida em uma experiência
unitária de fenômenos que surgem espontaneamente. A proposição que trekcho
necessariamente precede togal apenas mostra a propensão intelectual que impõe uma
interconexão causal. Ou talvez o boato da sucessão causal tenha surgido quando trekcho
e togal se associaram a diferentes práticas no processo de desenvolvimento do
gradualismo, onde exercícios preliminares estavam ligados ao trekcho. Assim, em vez
de se relacionar como dois lados da mesma moeda, trekcho e togal fluíram um após o
outro no processo do praticante gradualista como prática e fruição básicas; como causa
e efeito.

Algumas vezes é afirmado que especificamente a prática de trekcho, desenvolve o


aspecto vazio da realidade experiencialmente, enquanto as práticas de togal
desenvolvem a forma, e na exposição do caminho progressivo essa distinção parece ser
geralmente aceita. No entanto, o intelecto que separa trekcho e togal é a mesma
faculdade que agora separa a vaziez e as aparências. É benéfico assumir que esses dois
podem ser separados de qualquer forma – existencialmente – no agora? É útil conceber
o desenvolvimento sucessivo dos pólos desse dualismo? Desenvolver um é,
naturalmente, desenvolver o outro e, de qualquer maneira, o que é essa noção de
desenvolvimento? O Dzogchen é um caminho gradual e progressivo, afinal? Pode haver
benefício em polir ou melhorar o ego? No coração-vajra, deixamos para trás todos os
conceitos de um caminho espiritual e de uma prática espiritual. De fato, o Dzogchen
radical pode ser distinguido por sua separação de todas as práticas orientadas para
objetivos e isso inclui, particularmente, as oito mais baixas das nove abordagens do
sistema Nyingma. Estritamente, o caminho do Dzogchen radical é um caminho sem
forma e, portanto, pode ser chamado de um caminho sem caminho. A experiência direta
de um campo unificado é um privilégio de uma elite – mas não de uma elite intelectual.
Pelo contrário, na medida em que nossa cultura tende a recompensar aqueles com
intelectos extremamente racionais, muito mais hoje do que no passado, uma tendência à
consagração da dialética intelectual nos cativa, e isso é impossível no Dzogchen radical,
porque as práticas de trekcho minam a causalidade. Se a arrogância intelectual levantar
sua cabeça feia, é a cabeça demoníaca do ego assumindo que há um objetivo, próximo
ou distante, que precisa ser realizado e que existe uma técnica, a prerrogativa do
intelecto superior, que pode realizá-lo.

O que é crucial neste cenário do coração-vajra? Qual é a chave para a presença pura? O
ponto crucial é o lugar onde as dualidades são resolvidas, onde a mente nunca é
distraída ou prolongada; não tem motivação e permanece em sua disposição natural,
transcendendo toda orientação a objetivos. Nesse lugar reside o reconhecimento crucial
da própria espacialidade intrínseca; repousando nela, tudo o que surge naturalmente se
abranda e desaparece, se libera tal como é, sem esforço. Emoções aflitivas, carma e
propensões habituais, e mesmo os métodos de melhoria no caminho da liberação,
surgem como uma exibição mágica ilusória da criatividade; tudo surge no agora como
uma exibição da criatividade e é reconhecido apenas como é sem qualquer modificação.
Não importa qual seja a situação, não nos envolvemos nela para melhorá-la ou para
tentar suprimi-la, pois a chave para a presença pura está descansando livremente em
nossa disposição natural. Assim, a não-ação é a chave e o ponto crucial. Na visão do
Dzogchen, a não-ação é reconhecida como não-causalidade, não-dualidade, igualdade
unitária, indivisibilidade e imediaticidade. Se obtivermos familiaridade com a essência
luminosa – a espontaneidade luminosa das coisas – através do preceito-chave do não-
empenho e da ausência de esforço, o buda no agora é o buda re-desperto. É a realidade
do inigualável coração-vajra – a essência do caminho nônuplo – que é a supermatriz
luminosa. Uma vez que a fantasmagoria é auto-liberadora, a realidade é o Dzogchen
consumado, e a espontaneidade incessante e invariável é o cerne deste excelente
conselho de Longchenpa.

O Dzogchen certamente tem uma vida independente do Budismo, mas a verdade dos
insights fundamentais de Shakyamuni muitas vezes brilha através dos preceitos do
existencialismo do Dzogchen radical. Cada estrofe do Tesouro do Dharmadhatu pode
ser considerada um preceito, ou um ninho de preceitos, e na satisfação de desembrulhá-
los, os insights budistas sútricos são renovados. Dando atenção para a duração de uma
experiência da presença pura (rigpa), por exemplo, perdida na consciência do fluxo
constante inerente à realidade natural da espontaneidade, a noção de "impermanência"
torna-se experiencial. O que parece ter alguma permanência, no entanto, persiste por um
período não só mais curto em duração do que uma fração de um nanossegundo, mas, de
fato, não possui nenhuma extensão no tempo absolutamente. Além disso, a
impermanência é evocada no adjetivo "auto-surgida" quando qualifica a "consciência
prístina". As associações indulgentes do "continuum" só são permitidas no "continuum
da opinião discursiva", por exemplo, e também no que diz respeito ao processo de
mudança constante quando os objetos se esvaziam instantaneamente, dissolvendo-se na
não-meditação. A natureza efêmera da realidade é melhor experienciada simplesmente
por habitar no agora; assim a percepção da natureza transitória da ilusão que preenche a
experiência se incendeia indelevelmente na consciência. Então, a "ausência de sinais",
uma das três portas para a liberação, central para o Budismo sútrico, é um atributo da
experiência do Dzogchen enfatizada e reiterada em trekcho – embora seja menos
enfatizada em togal, onde a descoberta de evidências da presença pura no campo visual
é primordial. Então, a "ausência de um eu" também está implícita na visão do
Dzogchen, embora raramente seja explicitamente declarada como tal, a menos que a
repetição de "aparente mas inexistente", geralmente se referindo à ilusão objetiva de
algo insubstancial, seja interpretada como uma afirmação da inexistência de qualquer eu
subjetivo. Obtemos uma impressão em todo O Tesouro do Dharmadhatu que a
testemunha de Longchenpa há muito se aposentou.

Considerando que a perspectiva da realidade apresentada pelos vários caminhos e


meditações budistas (excluindo o Dzogchen) estimula a motivação para se esforçar no
caminho da purificação moral e cognitiva, é imperativo entender que este poema não é,
de forma alguma, uma prescrição sobre a qual agir. Ele descreve "o que é" em um nível
existencial muito profundo e, assim, provoca o reconhecimento dessa "realidade".
Acreditar que o que está sendo evocado é um estado de ser superior e melhor do que o
que temos agora e, portanto, algo que deveríamos adotar, nos empenhar para e trabalhar
rumo à, é fazer do auto-abuso o propósito e a base da visão do Dzogchen. O auto-
aperfeiçoamento e a transformação são marcas registradas do tantra budista
(Vajrayana); a visão do Dzogchen, ao contrário, implica o reconhecimento reflexivo da
espacialidade do momento atemporal. A satisfação que podemos receber ao visualizar a
realidade da espacialidade e a visão não-dual, para permitir que o intelecto a transforme
em uma espécie de iguaria existencial com a qual podemos nos banquetear
ocasionalmente se fizermos o ritual correto e a oferenda litúrgica, é uma obstrução
contraproducente. Na esteira da orientação a objetivos, inevitavelmente nosso ouro é
transmutado em chumbo, ou melhor, inexoravelmente, o pó de ouro na palma da mão
escorre pelos dedos e desaparece na brisa. A visão do guru não pode se tornar uma meta
ou técnica; caso se torne obsessivo, isto reforçará a neurose que está criando a dor e a
ansiedade. Ou reconhecemos o agora fora do tempo ou nenhum reconhecimento é
possível. Ou reconhecemos a natureza da mente ou ficamos apenas com um reflexo
intelectual, uma representação ou reembalagem da percepção direta.

Por muitas e várias razões, é crucial entender que esse poema não é um tratado
filosófico. Se a filosofia é o estudo teórico do conhecimento e da existência, o
Dzogchen não é uma filosofia, uma vez que o Dzogchen é preeminentemente
experiencial. Se a filosofia é um amor pela sabedoria por si mesma, novamente isso não
é o Dzogchen, mas mais uma indulgência no reino da forma pura, onde podemos ter
prazer desinibido na apreciação de relações abstratas como na matemática ou na música.
Nesse espaço, teríamos prazer nos padrões complexos e radicais de pensamento que
criam uma rede existencial em todo o universo. O Dzogchen não é outro esquema
budista para a compreensão da mente relativa nem parte de uma metapsicologia que
pode otimizar o potencial humano ou curar a humanidade de seus males. Nem fornece
uma rota para o poder e a manipulação de outros seres, nem o poder e a tecnologia para
controlar o mundo externo. Aqueles que estudam o Dzogchen como uma disciplina
acadêmica são como filhotes temerosos olhando para a borda do ninho, conscientes de
que suas asas ainda carecem de força. Ou talvez eles se assemelhem a peixes puxados
em uma linha e tendo perdido o oceano que é seu meio natural são deixados para se
debater no fundo do barco. Tratar o Dzogchen como uma filosofia integrada ou um
objeto de estudo e análise é demonstrar ignorância em não saber que a visão do
Dzogchen é uma visão não-dual, a unidade da dicotomia sujeito/objeto; que não pode
haver dogma, doutrina ou prática definida no Dzogchen radical; que uma abordagem
analítica e intelectual adiciona areia ao tanque que deveria fornecer o combustível para
a jornada; que endurece as artérias cuja flexibilidade e elasticidade era nossa melhor
esperança de vitalidade extra. Ao contrário, o Dzogchen é uma ioga – a ioga suprema –
que fornece, simplesmente, as chaves para o ser autêntico.

Uma vez que o Dzogchen não é nem uma filosofia nem um assunto para análise ou
comparação acadêmica, podemos evitar a linguagem acadêmica e nos livrar da dicção
que o faz parecer sofisticado. Traduzir o que em tibetano é entendido como realidade
pela frase "a verdadeira natureza dos fenômenos", por exemplo, é como pegar um
pedaço mofado de cerâmica pintada arcaica de um museu e usá-la para servir vinho em
um coquetel contemporâneo. Não precisamos descartar frases dignas e pretensiosas da
história da filosofia budista para descrever a realidade de estar aqui e agora. A
alternativa, naturalmente, é criar uma nova linguagem, uma linguagem de poesia
existencial. A estrutura e o vocabulário da linguagem devem refletir a nuança de sua
mensagem – como o haiku, koan ou os dohas dos sidas. Isto não é tanto um hino de
louvor ao estilo desta tradução atual, mas sim uma declaração de intenções e um apelo
para que os tradutores do Dzogchen de uma nova geração saiam da rotina da dicção
budista clássica.

Além disso, o Dzogchen não é uma religião. Os ritos que são realizados pelas
comunidades do Dzogchen são o legado das religiões budistas ou bön, pelas quais o
Dzogchen foi transmitido. Recitação de mantra, visualização de deidades, oferenda,
louvor e oração são todos vestígios do tantra budista. Qualquer adoração e dogma ritual
praticados pelos adeptos do Dzogchen têm uma fonte estranha. O Dzogchen não pode se
tornar um assunto de religião comparada, porque não é uma religião mais do que cavar
um jardim seja uma religião, ou a manutenção de uma moto seja uma religião. O
Dzogchen é tão natural quanto o bater do coração ou respirar pelo nariz. É como andar
sobre o fio da navalha em um caminho sem caminho.

O Dzogchen é uma ioga existencial e só pode ser apreciado, criticado e compreendido


ao ser vivido, assim como o chocolate só pode ser conhecido ao ser provado. Para
aqueles leitores que já estão aninhados na realidade do Dzogchen, os treze cantos de
Longchenpa podem parecer como uma rede de pesca lançada em um barco vazio do
oceano, em vez de uma rede lançada no mar a partir de um barco repleto de pescadores.
Os peixes estão onde deveriam estar – nadando conosco em nosso mar; o barco, os
pescadores e a rede são redundantes. Para reiterar o símile tradicional simplista, por que
procurar na selva pelo elefante quando o animal está amarrado em seu estábulo? Para
aqueles que estão lendo isto na expectativa de encontrar uma resposta para a condição
da separação e da alienação, para o eterno problema do sofrimento encarnado no
samsara, e assim exercitando a mente racional analítica para desvendar o enigma da
expressão do Dzogchen, considere o presente arco-íris na dissolução do nosso corpo
elementar, onde a resolução é alcançada. Para aqueles que buscam os cantos de
Longchenpa para respirar um pouco de ar fresco, para que uma jangada de palha possa
ser usada como um bote salva-vidas, o livro deve ser jogado fora e, simplesmente
sentando-se, devemos permitir que a contemplação do Dzogchen ocorra. Longchenpa
oferece uma solução para as pessoas estranguladas por seu intelecto em uma era em que
a sociedade não tem um pingo de compaixão por aqueles de seus membros que
perderam seu senso intuitivo da unidade de todas as coisas. Sua resposta deve ser
encontrada na espacialidade da natureza do ser que é a realidade subjacente e intrínseca
do intelecto, e não no significado cooperativo de suas palavras bem ordenadas.

O sabor desta ioga existencial é expresso em verso, em treze cantos. Um canto é uma
canção e essas treze canções são como treze planetas girando em torno de um sol da
mais pura luz, enquanto as estrofes dos cantos são como as facetas de cada planeta.
Cada um dos cantos reflete um aspecto da realidade central; os títulos dos cantos são
todos sinônimos da realidade que é o sol inefável. Da mesma forma, cada uma das
estrofes dos cantos são como uma faceta de uma joia, cada uma refletindo a natureza da
mente, cada uma de uma maneira diferente. A expectativa de uma sequência de estrofes
ligadas entre si por um fio linear de significado causal, evoluindo de uma hipótese para
uma resolução, não será preenchida, e a construção de uma conexão serial de estrofe a
estrofe será contraproducente. Cada estrofe é completa em si mesma, como cada
momento da presença pura no agora. Embora cada estrofe tenha uma forma distinta,
fornecendo um ângulo ligeiramente diferente da natureza da mente, todas as estrofes são
as mesmas. Elas são todas iguais na medida em que o que é evocado é sempre
precisamente a mesma coisa. Da mesma forma, as próprias palavras, apesar de
indicarem um significado superficialmente distinto e a estrutura gramatical fornecer um
status ontológico separado, são todas idênticas na natureza da mente.

O afastamento da expectativa de um desenvolvimento gradual orientado para objetivos


para uma apreciação multifacetada do texto é paralelo à diminuição da esperança e do
medo de alcançar objetivos no futuro e sua substituição pela constatação da perfeição do
momento em toda a sua variedade multifacetada.

Treze é um número perfeito na numerologia da religião tibetana pré-budista. Cada um


dos treze cantos deste livro apresenta uma fórmula metafísica que descreve em sua
totalidade uma perspectiva sobre a realidade. Quando todo ponto de referência em
qualquer dada perspectiva é desconstruído existencialmente (pixelizado), então
construções diferenciadas, dualistas e conflitantes, juntamente com as propensões
cármicas associadas, resolvem-se como linhas horizontais de quadrados identicamente
coloridos desaparecendo em um jogo de Tetris, ou linhas verticais de cartas de naipe
semelhante desaparecendo em um jogo digital de paciência, e assim uma visão unitária
resulta. Os treze cantos, portanto, são como feitiços mágicos que evocam uma única
visão não-dual, a visão unitária do Dzogchen.

Para aqueles que necessitam de suportes analíticos para entender os cantos, se


interpretarmos os treze capítulos de acordo com uma estrutura convencional e tentarmos
perceber o desenvolvimento sequencial no texto, e em blocos de cantos semelhantes,
podemos começar com a análise do estudioso Nyoshul Lungtok. Segundo ele, os
primeiros nove cantos são a exposição da visão; o décimo canto é sobre a meditação; o
décimo primeiro sobre a conduta; o décimo segundo sobre os resultados imediatos; e o
décimo terceiro sobre os resultados finais. Evidentemente, Nyoshul Lungtok era um
acadêmico pertencente à persuasão gradualista. Novamente, se relacionarmos os treze
cantos aos quatro samayas, trekcho e togal, os primeiros cinco cantos se relacionam
com os dois primeiros samayas e trekcho, enquanto os oito cantos restantes tratam do
terceiro e quarto samayas e togal. Especificamente, o canto intitulado Espacialidade
refere-se à ausência e à abertura; o canto intitulado Espontaneidade refere-se ao terceiro
samaya; e a Inclusividade e a Não-dualidade referem-se ao quarto. O Dzogchen vê
através dos conceitos; então, essas diferenciações são úteis? Pelo menos, a maioria dos
gradualistas são unânimes em não encontrar no Tesouro do Dharmadhatu evidências
que Longchenpa estava mais endividado com qualquer uma das três séries do Dzogchen
(série da mente, matriz e preceito secreto) do que qualquer outra.

O longo comentário, talvez composto no ateliê da Montanha do Crânio Branco de


Longchenpa, fornece mais luz racional sobre O Tesouro do Dharmadhatu. Não é, no
entanto, o tipo de comentário que progride palavra por palavra, frase por frase, ou
mesmo estrofe por estrofe, elaborando o significado. Em vez disso, ele fornece uma
profunda elaboração de significado enquanto utiliza as estrofes como pinos para
pendurar inumeráveis preceitos do Dzogchen indicando a visão e a meditação. Esta
informação e instrução fornecem uma primeira linha de retirada da perspectiva imediata
para a progressiva. Assim, reduz a majestade da poesia de Longchenpa a um comentário
racional prosaico e a finalidade de seu significado às vezes a conselhos avunculares,
reduzindo a visão do ápice e a meditação da não-ação não-causal a um caminho gradual
sobre o qual meditações técnicas e simples podem nos fascinar em nosso caminho. Mas,
como sua preocupação compassiva permite no texto raiz, "Diferentes traços para
pessoas diferentes". Parece que o texto raiz era o texto original e que o comentário era a
adição posterior, em vez de o texto raiz ser um resumo mnemônico do texto original
mais longo, o que às vezes é o caso. Alguns dos cantos são curtos e mostram um tema
unitário do começo ao fim; outros são muito mais longos e as divisões indicadas no
comentário não são imediatamente evidentes como temas em mudança no tratado
original. De fato, os tópicos tratados pelo comentário às vezes são difíceis de localizar
no original, como se o comentarista estivesse tentando colocar um tema redondo em um
contexto quadrado.

Então, no que diz respeito ao sigilo: o Dzogchen é considerado secreto na tradição


Nyingma que o carrega. O consideram assim de várias maneiras. Em primeiro lugar, o
Dzogchen é secreto na medida em que algumas mentes são incapazes de compreender o
tópico, o vocabulário ou a gramática em Tibetano ou em qualquer outra língua. Em
segundo lugar, é secreto na medida em que muitas pessoas podem entender o tema e a
sintaxe, mas não conseguem apreender o significado do Dzogchen, da mesma forma que
muitas pessoas educadas não podem compreender um livro de matemática avançada.
Em terceiro lugar, é secreto porque o significado pode ser apreendido intelectualmente,
mas porque o que é descrito está além dessa mente para compreender em termos de sua
própria experiência passada ou potencial, o significado não é retido, nenhuma vantagem
se acumula e o segredo permanece trancado. Nestes três modos, o texto é auto-secreto.

Também é considerado secreto devido ao fato de alguns lamas omitirem o assunto de


textos do Dzogchen como O Tesouro do Dharmadhatu de certos grupos de pessoas. Os
lamas da tradição podem desejar manter a instrução mais privilegiada em sua própria
família ou linhagem monástica, tanto por razões religiosas egoístas, pessoais ou
altruístas como por ambas. Assim, certas qualificações são exigidas dos receptores antes
que a transmissão possa ser fornecida ou o livro possa ser lido. Os detentores da
linhagem mantêm assim o controle da literatura e da prática. Encantamentos mágicos,
maldições ou pragas ligadas a tais obras levam o medo aos corações de leitores ou
praticantes potencialmente dúbios. Notações adicionadas aos textos ameaçam terríveis
consequências se os samayas (compromissos) impostos aos iniciados forem quebrados.

Dentro da linhagem prática, uma razão prática para manter o texto em segredo é evitar
informações conceituais gerais sobre as práticas que o texto contém prejudicando o
intelecto do iogue contra a instrução de meditação personalizada transmitida em um
momento posterior e propício. Em outras palavras, uma mente vazia e não-conceitual é
preferível no receptor da instrução de meditação do Dzogchen. Meras informações
sobre os preceitos obstruem a transmissão. Da mesma forma, os textos são escondidos
de alguns iniciados porque se acredita que danos podem ser causados às suas mentes ou
ao seu processo na obtenção do nirvana. Nos últimos anos, esses textos seminais do
Dzogchen foram mantidos longe de ocidentais por uma ou mais dessas razões. Um lama
pode ter pensado, por exemplo, que os ocidentais eram simplesmente incapazes de
compreender os textos, uma concepção baseada no preconceito cultural chinês comum
de que todos os europeus eram bárbaros, idiotas ou ambos. Outra restrição foi dada pelo
medo do lama de que o material fosse roubado e publicado em outro lugar para
consumo público descontrolado. Talvez fosse para ser mal utilizado, onde o uso
indevido constituiria qualquer outro objetivo que não o apoio à meditação pessoal
guiada da maneira convencional. Infelizmente, essa restrição foi, de fato, às vezes
comprovada como válida por pesquisadores ocidentais que tomaram as instruções
"secretas" sob o pretexto do compromisso budista, mas em busca de fama e fortuna na
academia ocidental, publicaram o material sem levar em conta a sensibilidade dos
lamas. Da mesma forma, bibliotecários ou colecionadores obsessivos de textos tibetanos
extrairiam livros de lamas sob falsos pretextos. Alguns lamas tradicionalistas objetam
que seus textos sagrados sejam levados e processados na mídia ocidental secular e seu
darma santo seja assim desrespeitado, da mesma forma que alguns muçulmanos
acreditam que seu Alcorão sagrado deve ser mantido apenas nas mãos dos fiéis.

Uma importante razão histórica pela qual o sigilo foi mantido está na relação entre a
Nyingma e a escola do chapéu amarelo. Embora completamente distinto da escola
súbita do Ch'an chinês (ou zen japonês), o Dzogchen foi identificado com ele pelos
gradualistas de direita no início do debate entre os estudiosos da escola indiana
Madhyamika e os do Dzogchen tibetano, influenciado pelos chineses. Esse equívoco foi
sustentado pela Escola Kadampa e depois por seus sucessores Gelukpa. Essa
identificação do Dzogchen com a apostasia da escola "súbita", que começou no
Concílio de Lhasa no século VIII, condenou a Escola Nyingma, que carregava o
ensinamento do Dzogchen, a um status político periférico. No século XVIII, a pressão
insuportável dos Gelukpas no auge de seu poder político e militar em Lhasa pressionou
o principal lama Nyingma da época, o grande terton Gyurme Dorje em Mindroling, a
sede principal da Nyingma no Tibete Central, a um acordo com os Gelukpas. Seja qual
for o anúncio declarado "público" do acordo do Quinto Dalai Lama com Gyurme Dorje,
o efeito real foi enterrar profundamente o Dzogchen radical dentro de uma hegemonia
monástica Nyingma recém-afirmada. Nisso o dzogchen se fez disponível apenas para os
tulkus de elite e khempos muito brilhantes no final de uma longa e árdua educação
cultural budista. A antiga tradição de lamas leigos vivendo em gompas de aldeias ou em
habitações seculares com grandes santuários foi atenuada, e junto com ela a tradição
secular ngakpa. Em Kham, o Tibete Oriental, que depois se tornou a fonte principal da
atividade dármica e assim permaneceu, as grandes famílias tendiam a ter uma linhagem
paralela de transmissão de pai para filho nos grandes gompas através da convenção da
sucessão dos tulkus. A crítica virulenta e até mesmo a perseguição que os praticantes do
Dzogchen Nyingma sofreram dos Gelukpas, no entanto, foram motivos suficientes para
manter o segredo do ensinamento, apesar da prática secreta do Dzogchen dos sucessivos
Dalai Lamas. O atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso, tem tentado dar novo status e
aceitabilidade ao Dzogchen em face da recusa sem precedentes e da rejeição direta de
certas escolas Geluk.

LONGCHEN RABJAMPA (1308-1364)

Longchenpa nasceu no coração do Tibete no vale rico e fértil de Drain Yoru, no lado sul
de Tsangpo. Além dos anos de seu exílio em Bumthang, no Butão, ele passou a vida no
Tibete Central. Seu pai era o sacerdote da aldeia de Todrong, descendente de uma
linhagem eminente de Lamas Nyingma casados, que traçavam sua ascendência até a
família de Gyelwa Chokyang, um dos vinte e cinco discípulos de Padma Sambava.
Tanto seu pai quanto seu avô eram iogues-adeptos. Como um menino precoce, ele já
conseguia ler e escrever aos cinco anos de idade. Sua prática inicial concentrou-se nas
oito deidades búdicas da Nyingma, mas ele também estudou e memorizou textos do
vinaya e do prajnaparamita. Aos doze anos de idade, foi ordenado como noviço em
Samye e em sua adolescência estudou o Chakrasamvara-tantra e as seis doutrinas de
Vajravarahi, o sistema do Caminho e do Fruto (lamdre) dos Sakyas, e o Kalachakra,
entre outros.

Na idade de dezenove anos, ele foi admitido na academia-e-seminário Kadampa em


Sangphu, no vale Kyichu, que era então dominado pela Sakya e fornecia a melhor base
de erudição no Tibete. Os tantras e transmissões da Nyingma eram sua principal
preocupação, mas também, em particular, ele estudou a tradição Kagyu sob o mestre
Dzogchen, o terceiro Karmapa Rangjung Dorje, e a tradição Sakya sob o Lama Dampa
Sonam Gyeltsen. Ele era não-sectário, investigando todas as escolas contemporâneas.
No final de seu estudo em Sangphu, ele recebeu o título de Rabjampa.

Ele deixou Sangphu desencantado pela instituição acadêmica com suas lutas politicas
internas e estreiteza de visão acadêmica e tomou a vida contemplativa de um iogue sem-
teto que ele iria praticar pelo resto de sua vida. Logo no início, durante um retiro no
escuro em Gyama, ele teve uma visão de uma dakini-protetora-de-dezesseis-anos que
anunciava uma vida visionária dominada pelas dakinis, na qual o guiavam, o
abençoavam e o ensinavam.

Em 1336, aos vinte e oito anos, ele conheceu Rigzin Kumaraja (1266-1343), um iogue
portador do conhecimento que viajou pelo Tibete Central ensinando um pequeno círculo
de discípulos próximos. Longchenpa o seguiu por vários anos sofrendo privações
profundas, vivendo de ervas, com apenas um cobertor para mantê-lo aquecido.
Kumaraja, um iogue da Karma Kagyu, o discípulo do mestre Dzogchen Melong Dorje e
também um iniciado do Dzogchen Bonpo, tornou-se o guru do Dzogchen de
Longchenpa e dele recebeu todo o corpus da iniciação, transmissão e instrução do
Dzogchen. Kumaraja eventualmente nomeou-o seu sucessor linear.

Em seu trigésimo primeiro ano, Longchenpa começou a ensinar o Dzogchen Nyingtik,


em Nyiphu Shuksep, perto de Sangphu. Naquele mesmo ano, Wozer Gocha descobriu o
Khandro Nyingtik e deu a Longchenpa para examinar. No ano seguinte, enquanto dava
iniciação a oito iogues e ioguines em Gangri Tokar, perto de Shuksep, a festa do
ganachakra tornou-se uma verdadeira comunhão selvagem de participantes com dakinis
e protetores em que o preceito "a mente livre de meditação é o êxtase" tornou-se uma
experiência real. Neste ganachakra Longchenpa recebeu confirmações finais e injunções
da própria Vajravarahi especificando o Vimala Nyingtik e o Khandro Nyingtik como
seu modo de prática e ensino. Mais tarde, no mesmo mês, o próprio Padma Sambava,
acompanhado por seu séquito, apareceu do sudoeste e foi visto desaparecer em
Longchenpa. Naquela noite, enquanto Longchenpa fazia a oferenda interna, Padma
Sambava apareceu com Vimalamitra à sua direita e Vajravarahi à sua esquerda com
dakinis tocando trombetas de fêmur na frente, enquanto atrás havia uma multidão de
iogues e dakinis cantando e dançando. Durante essas duas experiências visionárias, a
Dakini Vajravarahi esclareceu sua mente e confirmou sua presença constante.

Logo depois, Longchenpa começou a escrever, e sua produção foi tão imensa que é
difícil de acreditar. Ele era o editor das obras de seus muitos discípulos, obras baseadas
em seu ensino oral? Mais tarde, colecionadores e editores de seu trabalho incluíram os
volumes dos muitos grandes iogues do Dzogchen que floresceram naquela época? Ele
certamente escreveu sob diferentes nomes, tantos que um inventário completo não foi
feito. Os Sete Tesouros eram suas maiores obras, e O Tesouro do Dharmadhatu era a
maior das sete.

Em seus quarenta anos, ele se tornou um eremita eminente e foi em seu principal
eremitério, Gangri Tokar, que ele escreveu a maior parte de suas obras. Mas ele tinha
outros interesses além de sua composição de prosa, poesia kavya e revelações de
tesouros. Em 1349, ele restaurou o antigo templo de Zhai Lhakhang e reergueu seus
pilares inscritos. Ele reconstruiu a stupa de Shantarakshita em Hepori e conservou o
crânio do abade. Em seus últimos anos, ele gerou três filhos de mulheres diferentes e
um de seus filhos, Chodak Zangpo, escreveu uma biografia de seu pai. Ele se tornou um
preceptor dos Drigungpas, o antigo poder do Tibete Central, e provocou a ira de Situ
Jangchub Gyeltsen, o chefe do crescente poder da Karma Kagyu. Depois de escapar
milagrosamente de uma tentativa de assassinato, em 1354 ele se exilou em Bumthang,
no Butão. Mais tarde, ele retornou ao Tibete Central e se reconciliou com Situ, mas
morreu pouco depois em Chimphu em 1364, aos cinquenta e seis anos de idade.

Agradecimentos

Reconheço a dívida crucial que tenho com todos aqueles que estão próximos e distantes,
Guru e Dakini, cristãos e budistas, indianos e tibetanos, beatniks e hippies, que me
mostraram a natureza da mente.

Por Keith Dowman


O Tesouro Precioso do Dharmadhatu

Chos dbyings rin po che mdzod

de Longchen Rabjampa

Prólogo

Introdução

A mente luminosa, sua clara luz e sua espontaneidade, são os tópicos deste poema, e
essa realidade é toda e sempre conhecida apenas no agora, além das categorias de
passado, presente e futuro. Nós nunca podemos conhecer nada, exceto no agora. A
percepção direta fornece o único conhecimento digno desse nome. O agora é o espaço
da experiência direta e imediata e esse espaço é chamado "a matriz do agora". Tudo o
que é conhecido é conhecido na matriz do agora. Esse conhecimento inclui a realidade
do Dzogchen e o samsara e o nirvana, tudo isso é experienciado como o agora. Em
cantos sucessivos, Longchenpa descreve o agora como a espacialidade, e depois como
os campos búdicos, e depois como a mente luminosa. O agora é evocado em e como o
não-esforço e a não-causalidade, como a inclusividade e a espontaneidade, e em e como
a não-dualidade. O agora é apresentado como resolução e como a visão do guru, como
pureza e liberação, e finalmente o aqui e agora é revelado como buda.

O espaço do agora é chamado "a matriz" (Tib: klong) e esta palavra aparecerá centenas
de vezes no poema de Longchenpa. Tudo ocorre na matriz do agora. Tudo o que
sabemos conhecemos na matriz do agora. Nada nem existe nem não existe fora da
matriz do agora. A matriz do agora é outra maneira de dizer nosso "ser". Em seu
prólogo, Longchenpa identifica a cognição da matriz do agora como a "perspectiva do
ápice", o “coração-vajra” e “o estado natural do ser”. É a “clara luz”; é a
"espontaneidade". Está presente sem ação ou esforço. É, na frase convencional, "uma
vasta extensão".

A experiência direta do aqui e agora é representada antropomorficamente como o Buda


Kuntuzangpo, Samantabhadra, o Buda Todo-Bom. Apenas reconhecendo-o, prestando
homenagem a ele, como a espontaneidade da clara luz da mente luminosa, recebemos a
transmissão do Dzogchen da Espacialidade. Assim, a transmissão é recebida pelo
reconhecimento do agora como a espacialidade da disposição natural da mente. Esta é a
realidade totalmente boa que Longchenpa evoca neste prólogo e nos treze cantos
seguintes.

PRÓLOGO

Homenagem ao Glorioso Kuntuzangpo, Sri Samantabhadra,


Homenagem ao Buda Todo-Bom.’

Homenagem à espontaneidade prístina,


A clara luz da mente luminosa,
A incrível realidade desse universo fantástico
Um tesouro da consciência autossurgida no agora,
E a fonte de tudo, samsara e nirvana.
Homenagem a esse espaço imóvel da simplicidade.

Esta matriz da abordagem do ápice,


O pico orbitado pelo sol e pela lua,
Esta matriz do coração-vajra,
A clara luz da espontaneidade,
Esta matriz está naturalmente disposta
Sem esforço ou prática:
Ouça enquanto eu descrevo esta incrível investidura do agora.
Canto Um: Espacialidade

Introdução

"Espacialidade"i é o título deste poema e o primeiro canto trata a espacialidade. Se este


texto é uma introdução experiencial à natureza da mente, ele aponta repetidamente para
a espacialidade. Se a verdadeira natureza de todas as coisas – a realidade – deve ser
caracterizada, então a espacialidade é a palavra que melhor se adapta à experiência.
Assim, nesse primeiro canto, o adepto do Dzogchen torna sua experiência radical
absolutamente clara: a realidade é a matriz da espacialidade em que todas as aparências
surgem, mas nunca se tornam outra coisa senão a igualdade que é sua fonte. No jargão
budista Mahayana, tudo surge na vacuidade e nunca deixa de ser a vacuidade, então a
vacuidade é tudo o que temos. Na linguagem do Dzogchen, a espacialidade é como a
vacuidade, e na maneira Dzogchen de ver as coisas, uma vez que a vacuidade nunca se
separa da forma, o mesmo acontece com a espacialidade. Tudo é espacialidade total e
nada mais; mas tudo surge na espacialidade e apesar de todos os fenômenos que o
"tudo" denomina nunca poderem se cristalizar ou serem rotulados como coisas
concretas, eles não podem ser negados. Eles são melhor descritos como "aparição" ou
"ilusão". Nosso intelecto – a mente relativa comum – tende a transformar essas formas
arejadas e amorfas em coisas concretas – para reificá-las. Não apenas isso, mas as
localiza no tempo, de modo que, durante uma sucessão de momentos, elas possam
parecer estar em movimento e, portanto, efêmeras em sua constante mudança. Na
realidade, na vasta matriz do agora, em um momento atemporal, tudo está imóvel, e,
portanto, diz-se que a extensão onipresente da espacialidade autoconsciente é imutável.

: A tradução literal de “spaciousness” seria algo como “espaciosidade” ou “espaçosidade”,


i NT

mas preferi traduzir como “espacialidade” que me pareceu mais sugestivo em apontar o Espaço
Aberto da Consciência.

Não é suficiente calcular a ausência de qualquer existência substancial dedutivamente; é


imperativo que nós a percebamos existencialmente. Essa percepção não deve ser
instigada como uma alternativa à crença na existência dentro ou fora da pele; pelo
contrário, tal entendimento surge apenas quando deixamos de lado todas as crenças
absolutamente, incluindo a crença em Deus, deuses, o Buda e a possibilidade de atingir
qualquer objetivo espiritual, como o nirvana. Tal desconstrução pode ser efetuada
inicialmente – talvez quando primeiro abordarmos o budismo filosófico ou suposicional
– pelo intelecto, mas logo se torna claro que o intelecto só pode nos colocar à porta do
entendimento e que a realização existencial é o produto de uma faculdade intuitiva que
reside dentro da própria consciência. A experiência que essa faculdade intuitiva fornece
é o que Longchenpa expressa nesse poema.

Parece que Longchenpa vai seguir a estrutura piramidal convencional de tais textos,
começando num ápice, que é como o próprio coração-vajra, a totalidade que a tudo
inclui, a essência do coração, e se espalhando em cantos subsequentes para descrever
suas ramificações cada vez mais elaboradas. Nem tanto. Cada canto mantém a mesma
intensidade e integridade holística; cada canto é uma porta aberta para a natureza da
mente; cada canto descreve um rótulo separado da ultimidade, um rótulo da mente
luminosa da espontaneidade que é o agora, e o primeiro e mais importante desses
rótulos é a "espacialidade".

ESPACIALIDADE

"Samsara e nirvana nunca se movem de sua espacialidade intrínseca."

Tudo surge na vasta matriz da espontaneidade


E a espontaneidade é a base de tudo;
Mas sendo vazia em essência, nunca se cristalizando,
Apesar de aparecer como tudo, a base não é nada.

Samsara e nirvana surgem como espontaneidade na matriz do trikaya,i


No entanto, eles nunca podem se mexer de sua espacialidade intrínseca,
Pois esses são os campos bem-aventurados da realidade.

A natureza da mente é uma supermatriz imutável como o céu,


Uma matriz de exibição variável, emanação mágica compassiva –
Tudo é a ornamentação da espacialidade, e nada mais.
É a criatividade da mente luminosa, pulsando para fora e para dentro,
Não sendo nada, ainda aparecendo como tudo,
Pinta emanações mágicas incríveis e magníficas.

Exterior e interior, e as dimensões material e espiritual,


São os ornamentos da espacialidade que surgem como a roda da forma
sublime;
Todos os sons e fala, tudo que vibra,
São ornamentos da espacialidade que surgem em essência como a vibração
sublime;
Todo movimento de pensamento, e todo não-pensamento inconcebível,
São ornamentos da espacialidade surgindo como a roda da mente
sublime.

Os seis tipos de seres míticos,ii além disso, com quatro tipos de nascimento,iii
Nunca podem se desviar um milímetro da espacialidade de sua realidade,
E os seis camposiv da percepção sensorial dualista do universo,
Aparecendo em sua própria espacialidade, como a ilusão mágica,
não existem verdadeiramente;
Sem base, vividamente aparente, mas vazio no agora, supremamente
espaçoso,
Com clareza natural, eles aparecem como decoração de sua espacialidade
intrínseca.
_____________________________
i
As três dimensões do ser; os três corpos búdicos.
ii
Os reinos míticos de deuses, homens, demônios, fantasmas famintos,
animais e seres do inferno.
iii
Útero, ovo, umidade e nascimento milagroso.
iv
Os cinco campos sensoriais externos e o campo mental.

Seja qual for a percepção que surge nesta vasta espacialidade,


Em sua igualdade contínua, é o darmakaya da mente luminosa;
Disposta no agora, vazia em si mesma, imutável e não-sublimante,
Como a consciência autossurgida no agora, a própria realidade,
Sem esforço, passivamente, ela faz parte da única matriz bem-aventurada.

Em sua clareza intrínseca imutável é o sambogakaya,


E por mais que se manifeste ele é a espontaneidade,
Não-elaborado e puro em sua igualdade incessante.

Qualquer que seja a forma da exibição distinta e multifacetada,


Sua realidade é a emanação autossurgida, a projeção mágica,
E nunca se desvia da não-ação do Todo-Bom.

Na mente luminosa à prova de falhas


O trikaya não-fabricado já está aperfeiçoado;
Não se mexendo da espacialidade, sua espontaneidade descompromissada,
A atividade búdica nos campos búdicosi já está aperfeiçoada;
A matriz da espontaneidade sublime alvorece no agora,
A diversidade da multiplicidade universalii está aperfeiçoado no agora.

Este campo da espontaneidade inalterável e não-sublimante no agora,


Esta é a realidade visível da espacialidade intrínseca,
Conhecimento não-cristalizante que surge para ornamentar essa espacialidade;
Já chegou, nada a fazer, sem qualquer prática,
Como o sol no céu – essa é uma incrível e soberba realidade.
__________________________
i
Sku dang ye shes. Veja Glossário: Buda nos campos búdicos.
ii
Tshogs chen.

Aqui nesta espacialidade uterina,


Na espontaneidade do agora,
O samsara é todo bom enquanto o nirvana também é bom
Nesta matriz totalmente boa no agora,
Nem o samsara nem o nirvana existem.
As aparências são todas boas
Enquanto a vacuidade também é boa
Nesta matriz totalmente boa no agora,
Nem a aparência nem a vacuidade existem.
A vida é todo boa, enquanto sentimentos bons e ruins também são bons
Nesta matriz totalmente boa, nem a vida nem os sentimentos existem.
O eu e o outro são ambos bons
Enquanto aceitação e rejeição também são boas
Nesta matriz totalmente boa, nenhum eu e outro,
Nenhuma afirmação ou negação é possível.

Na delusão nós reificamos o que não é verdadeiramente existente e o


rotulamos.
Por que é que tão prontamente apomos atributos ao samsara e ao nirvana,
Quando sua natureza é como um sonho, sem base e evanescente?

Tudo é bom, é a espontaneidade magnífica,


E a ilusão nunca tendo existido no passado,
Tampouco existe no presente ou no futuro,
A "vida" é apenas um rótulo, o paradoxo do ser e do não-ser é resolvido.
Ninguém nunca foi iludido em nenhum lugar no passado,
Ninguém está iludido agora e ninguém será iludido no futuro:
Essa é a visão da pureza primordial do passado, presente e futuro.i

Quando a ilusão é inexistente, a não-ilusão não pode existir,


E, espontaneamente no agora, a presença pura está bem aqui;
Visto que nunca houve liberação, não há liberação agora, e nunca haverá,
"Nirvana" é um mero rótulo e ninguém jamais conheceu a liberação;
Não pode haver liberação, porque a opressão não pode existir no agora.
E sendo pura como o céu, nada pode ser restrito ou localizado: essa é a
visão alfa-pura da liberação última.
i
Gsum Srid: passado, presente e futuro.

Em suma, na espontaneidade desta vasta espacialidade uterina,


O que parece ser samsara ou nirvana é uma exibição da criatividade,
Que em seu início não é nem samsara nem nirvana.
Além disso, não importa o sonho que surge na criatividade do sono,
Ele é, na verdade, uma ausência, um repouso feliz na presença natural,
Suavemente espaçado na vasta e incessante igualdade!
Canto Dois: Campos Búdicos

Introdução

Com a realização da cognição intrínseca à consciência, toda percepção é descrita como


decoração ou adorno de sua espacialidade inerente. Mas dizer que as formas de
percepção são pré-ditadas sobre essa espacialidade é inventar uma espacialidade como
uma entidade ou substância separada e distinta, e no canto anterior isso se mostrou
conclusivamente impossível. O modo de ser como buda e sua consciência é uma
unidade todo-abrangente. O estado búdico não está separado do campo e a consciência é
um campo autoconsciente que inclui o estado búdico – portanto, o "campo búdico". Isso
é o mesmo que dizer que o campo búdico está consciente de si mesmo e que a pessoa
que está sendo consciente está incluída nele sem se reconhecer como uma identidade
separada. É como dizer que todos os seres sencientes são parte de um vasto panorama
unitário, compartilhando sua igualdade, sua clara luz e sua consciência no agora.

O campo búdico se manifesta quando a testemunha de um evento não está separada da


consciência, da consciência primordial, da consciência no agora. Na medida em que
nenhuma testemunha levanta a cabeça, nenhuma objetividade pertence ao momento do
agora. O agora é o crisol do evento. Assim, um campo búdico não é como um jardim
mágico em uma lenda persa onde os frutos joiosos estão pendurados em ramos de ouro
numa árvore que cresce em uma paisagem de pedras semipreciosas. Em vez disso, nada
é visto lá, a não ser a igualdade, a uniformidade, a mesmidade de percepção, como em
uma percepção incipiente, uma percepção antes de o intelecto categorizar e rotular,
filtrar e projetar. O nível de integração implícito aqui, o nível de unidade, é utilmente
comparado ao nível de pixelização numa tela de computador. Por trás das letras do
texto, atrás das linhas e cores das imagens, estão os pixels. Se os pixels são desfocados,
em vez de um campo de pontos brancos, vemos campos de espaçosidade. O texto ou as
imagens não são distintos do campo pixelado, da espacialidade. Mas isso é um mero
símile para a unidade do dharmadhatu com as formas variadas que surgem dentro dele,
o campo unificado do único grande-pixel, a única esfera suprema.

Não devemos pensar que os campos búdicos realmente existem em algum lugar. Eles
não têm localização; são indeterminados e incertos, como um iogue peripatético e sem-
teto. Este canto menciona os campos búdicos apenas uma vez, e depois apenas como um
contraponto aos seis reinos míticos do samsara e para afirmar que tanto os campos
búdicos quanto os reinos samsáricos têm sua base na espacialidade. Os campos búdicos
no contexto do Dzogchen são idênticos à realidade tríplice do trikaya, que compreende
as três dimensões do ser que são inerentes à disposição natural, à espacialidade da
realidade. Nós não podemos alcançar os campos búdicos por planejamento ou por
prática. Não podemos chegar lá por plano, intenção ou aspiração. Os campos búdicos
não existem verdadeiramente, então como podemos alcançá-los? Um campo búdico é
um lampejo de clara luz da presença pura que ilumina espontaneamente um
nanossegundo de consciência de um dos campos sensoriais que constituem a
supermatriz do aqui e agora. Ela ocorre de maneira a tornar esse instante de consciência
uma experiência unitária da espacialidade, onde a forma e a consciência são um
inseparável e inefável golpe ou explosão de clareza. O campo búdico é uma insinuação
da forma e da consciência como uma experiência unitária da espacialidade.

Os seis reinos míticos do samsara são, em última análise, campos búdicos. Os reinos
dos deuses, demônios, seres humanos, fantasmas famintos, animais e habitantes do
inferno, fundados na espacialidade da matriz do agora e, portanto, puros em sua própria
natureza, são assimilados espontaneamente à presença pura e não podem escapar de sua
consciência unitária, a consciência primordial no agora. O que pode ser visto como
entidades substanciais distintas existentes "lá fora" e então como projeções do intelecto
e invenções da mente, são agora percebidas como o visionamento de nossa face
original, aparições luminosas de deleite. Desconstruídos, reduzidos a meras cores e
formas em um oceano pixelizado, os seres dos seis reinos e seus ambientes são
percebidos como budas e campos búdicos.

Na medida em que um campo búdico é uma experiência não-dual da espacialidade,


somente um campo búdico é cognoscível, e isso está além do intelecto para
compreender e além da diferenciação e classificação. Então, por que no Dzogchen se
diz que há um número incalculável de campos búdicos, e por que inumeráveis campos
búdicos são nomeados individualmente no Budismo Vajrayana e Mahayana? O número
incalculável de campos búdicos refere-se ao número incalculável de momentos da
experiência temporal que podem ser reconhecidos como momentos atemporais da
experiência do dharmadhatu. Os nomes que são dados a alguns momentos referem-se ao
buda representando uma cor particular ou função mental, uma deidade búdica que
representa um aspecto da totalidade (a atividade física, energética, mental, ou potencial,
por exemplo). Ou pode ser o nome do bodisatva que guarda um campo sensorial, a
consorte-búdica que representa um dos grandes elementos, ou uma dakini-búdica que
representa um aspecto complementar do buda com o qual ela se associa. Mas estes
campos búdicos, como Dewachen de Amitaba, Shambala de Kalachakra, Montanha Cor
de Cobre de Padma Sambava e assim por diante, quando não são realidades existenciais,
são imagens conceituais projetadas para fornecer inspiração ou motivação, cenouras
para acenar diante do nariz dos iniciados para incitá-los a se esforçar mais ao longo do
extenso caminho gradual do budismo progressivo.

CAMPOS BÚDICOS

“Nossos campos de percepção são campos búdicos”.

A espacialidade que é a espontaneidade prístina


Permeia tudo, se juntando ao exterior e interior;
Não tem limites, em cima ou embaixo, e está além da direção.
A presença pura é clara como o céu e é não-espacial e não-dual;
A vasta matriz em si, está além do pensamento pulsante e da imagem.

A ilusão mágica que emana dentro desta espacialidade não-nascida,


Totalmente indeterminada, sem qualquer definição,
Não pode ser denominada como alguma coisa
Pois não tem substância ou atributo.
Na medida em que sua natureza como-o-céu preenche o espaço-tempo,
É a espontaneidade não-nascida –
Nenhum antes ou depois, nenhum começo ou fim.

A natureza de todo o samsara e nirvana é essa mente luminosa,


A espontaneidade não-manifesta, não-produzida e indeterminada,
Vindo do nada e indo a lugar nenhum;
A matriz da mente luminosa não indica passado nem futuro,
Pois é invariável em sua uniformidade todo-penetrante.

A realidade, assim como ela é, sem começo, meio ou fim,


Uma uniformidade todo-penetrante, é como-o-céu em natureza:
Sem começo nem fim, ela substitui o tempo linear;
Sem originação ou cessação, não pode ter substância
nem atributo;
É invariável, então não pode ser denominada como qualquer "coisa";
Não pode ser induzida ou praticada, então nada deve ser feito;
E é sem massa ou volume, é a base da talidade.

Inimaginável e inatacável, é a matriz da igualdade;


Uma vez que a igualdade é a realidade de todas as coisas,
Tudo necessariamente repousa na matriz da igualdade;
Esta mente luminosa é uma singularidade onde tudo é igual,
E uma vez que sua uniformidade onipresente é como o espaço não-manifesto,
Dentro dessa gama de igualdade, não pode haver intervenção.

Esta fortaleza da espontaneidade não-temporal e onipresente,


Esta fortaleza da vasta matriz do agora, sem cima, embaixo ou meio,
Esta fortaleza do darmakaya não-nascido, imparcialmente todo-acomodador,
Esta fortaleza do precioso segredo que é a imutável espontaneidade –
Esta fortaleza do agora, a galáxia inteira, samsara e nirvana,
Esta é a totalidade, o único denominador.

Sobre uma fundação zero-dimensional e todo-penetrante,


Fica o palácio da mente luminosa, samsara e nirvana idênticos;
Em seu pináculo maravilhosamente elevado está a vasta matriz da realidade,
O centro de um panorama unidimensional incriado,
Uma porta todo-aberta para a liberdade do esforço graduado.

Dentro desse palácio repleto de riquezas espontaneamente acumuladas,


O rei Consciência Autossurgida assume seu trono;
Suas projeções pulsantes, emanações de sua consciência prístina,
Servem como ministros que governam seu domínio;
A santa rainha Absorção Meditativa Inata atende
Com a Espontânea Visão do Guru, seus descendentes e seus servos,
Tudo centrado na matriz do puro prazer da clareza intrínseca e não-conceitual.

Dentro dessa ainda, o plenário inefável,


O rei domina todas as aparências manifestas e potenciais
E o imenso domínio da vasta espacialidade é dele.

Vivendo nessa terra, tudo é o darmakaya:


Nunca se desviando de nossa unitária consciência autossurgida no agora,
Aproveitando o incriado agora, além de se esforçar e praticar,
Englobado pela única esfera que não tem bordas solidas,
Assim como somos, estamos centrados nessa matriz indiferenciada e
todo-inclusiva.

Uma vez que os seis reinos míticos e mesmo os campos búdicos


Não brilham em nenhum lugar, mas nessa realidade como-o-céu,
Nessa mente luminosa inerentemente clara, eles são de um só sabor,
E o samsara e o nirvana são naturalmente assimilados à presença pura.

Neste tesouro da espacialidade existencial, a fonte universal,


O nirvana, não-procurado, é a espontaneidade constante do agora;
Então, tomando o darmakaya como imutável,
Como não-referencial e todo-investido,
As visões internas e externas, todas as formas de vida, são o sambogakaya
E o nirmanakaya é como um reflexo que ocorre naturalmente.
Então, toda experiência necessariamente ornamentando os três kayas,
É a exibição física, energética e mental vazia,
E os inúmeros campos búdicos, da mesma forma, sem exceção,
Todos surgem da mesma fonte, a natureza da mente, a matriz do trikaya.

O conteúdo do samsara, os seis reinos e seus habitantes


Também são certamente meros reflexos dentro da espacialidade intrínseca;
Toda a fantasmagoria da vida e da morte, prazer e dor,
Como uma exibição aparicional, abundam na matriz da mente em si;
Aparentes, mas insubstanciais e, portanto, verdadeiramente inexistentes,
Ocorrem através de circunstâncias adventícias,
Como a umidade se condensando em nuvens;
Nem existentes nem inexistentes, além dos extremos determinados,
Está tudo incluído na única esfera onde nada é elaborado.

A natureza da mente, a mente luminosa essencial,


Pura como o céu, livre de nascimento e morte, prazer e dor,
Não-afetada pela materialidade, é indiferente ao samsara e ao nirvana;
Não pode ser indicada como uma "coisa"
Pois é uma vasta matriz como-o-céu;
Imutável e incapaz de sublimação,
É a espontaneidade genuína;
O estado búdico reside no coração-vajra que é a clara luz,
Onde tudo são campos de êxtase autossurgido,
Tudo é a igualdade incessante dessa luz suprema.
Canto Três: O Símile para a Mente Luminosa

Introdução

Se em algum momento de nossas vidas mergulharmos nossas mentes nas escrituras ou


comentários Mahayana, então provavelmente vamos precisar atualizar nossas
associações com a mente-bodi, com a bodichita e de fato com a arvore-bodi e bodi-isto
e bodi-aquilo. Em relação à realidade, – que significa a realidade não-dual do Dzogchen
– bodi é uma palavra que evoca a própria natureza da mente, como é experimentada na
discreta fatia não-temporal e não-espacial da percepção do agora. Do ponto de vista do
iogue urbano, aquele que está percebendo, aquele que é parte do campo búdico, toda
experiência é conhecida como a mente luminosa, a mente-bodi, a bodichita, o aqui e
agora. A bodichita foi originalmente usada no Budismo Mahayana para designar a
mente de Buda; não se destinava ao sentido da experiência do Dzogchen do aqui e
agora, mas como a mente iluminada que o bodisatva buscava realizar por meio da
atividade virtuosa e livre de pensamento. Tornou-se a palavra-chave na série da mente
luminosa dos preceitos do atiyoga e como a primeira e básica perspectiva do Dzogchen.
Embora a mente luminosa já seja apresentada no terceiro canto, deve ser lembrado que
Longchenpa foi além da tripla classificação do atiyoga (mente, matriz e preceito
secreto) em sua apresentação do coração-vajra.

A natureza da mente-bodi luminosa é frequentemente descrita como "atemporal", e o


conceito de "mente atemporal" deveria evocar um estado que está além dos parâmetros
temporais do passado, presente e futuro. Mas o perigo é que em nossas mentes
condicionadas nesta era pós-cristã, "atemporal" é entendido como eterno, uma constante
sem começo ou fim, e permanecendo presos em um pântano de conceitos corremos o
risco de cair na cova do eternalismo. Essa areia movediça do intelecto ameaça todos nós
que, agora mesmo, no final do século XX, sacudiram as suposições cristãs ingênuas e
subdesenvolvidas sobre a natureza do ser e a natureza da mente. O antídoto tanto ao
mal-estar intelectual quanto à indiferença existencial que caracteriza as atitudes
contemporâneas é um fortalecimento do sentido do agora, e essa força é fornecida pelo
apontamento da natureza da mente, que é sempre uma introdução à consciência no
agora.

Essa exposição do núcleo do coração-vajra permanece presa ao intelecto, a não ser que
possamos desconstruir – experimentalmente através da não-meditação, em vez de
intelectualmente com o pensamento discursivo – os conceitos que o compõem, e libertar
o que frases como "espacialidade intrínseca", "igualdade incessante", e, acima de tudo,
a "espontaneidade" estão apontando. "Atemporal", "primordial", "original" e "prístino"
são todos sinônimos de alfa-puro, a palavra-chave que qualifica a modalidade de
trekcho, e o único lar da pureza-alfa é o aqui-e-agora, que está sempre conosco,
constantemente empurrando o estado natural do ser para a luz do dia, para nunca ser
negado, sendo inevitável ele é o crisol de todo o nosso conhecimento.

O símile do pixel holográfico estava fora do quadro cultural de Longchenpa – ele está
bem dentro do nosso. Enquanto "a esfera última", "a única esfera" do Dzogchen, o
"thig-le" do tantra-yoga e anuyoga, e o "ovo cósmico" da metafísica da nova era, fala
conosco, a única célula de um holograma em que todo o holograma está contido, o
microcosmo no qual o macrocosmo está contido, através do qual o macrocosmo e o
microcosmo são equalizados, é uma imagem mais poderosa. Uma imagem que está
ainda mais perto de nós, evidente para um usuário de telefone celular infantil (ou
geriátrico), é o pixel invisível da tela de LCD, ou o pixel subliminar de uma impressão
fotográfica. Embora esse pixel não contenha a propensão de regenerar o todo da parte,
um único pixel em si, de natureza idêntica a todos os outros pixels no centímetro
quadrado da tela ou da impressão, entretanto, carrega uma informação separada e única
que torna o próprio pixel único. A palavra "pixel", portanto, é um excelente equivalente
potencial da palavra thig-le (tibetano) e bindu (sânscrito) como usado no Dzogchen e
um excelente símile para a mente luminosa, a mente iluminada – a natureza da mente –,
para a própria realidade.

O SÍMILE PARA A MENTE LUMINOSA

“Tudo se uni na mente luminosa.”

Uma vez que a mente luminosa não exclui absolutamente nada,


então toda experiência é da natureza da mente luminosa.

O símile para a mente luminosa é "como o céu".


Porque essa mente não tem causa e não pode ser objetificada
Ela não tem localização, é inefável e além da ideação,
Então "a espacialidade do céu" é uma metáfora adequada.
Se a metáfora não denota nada específico,
Como isso poderia evocar algo definido?
Entenda que o céu é uma metáfora para a pureza natural.

O que é evocado é a presença intrínseca [como-o-céu] da mente luminosa,


Incapaz de verbalização, desafiando a ilustração e a descrição;
Tal é a vasta matriz da clareza intrínseca, a clara luz imóvel,
A espontaneidade não-elaborada sem status ou dimensão –
É o darmakaya, o centro todo-aberto do coração luminoso.

Ela se evidencia pelo o que quer que surja como criatividade,


Em seu ponto inicial sem base ou criador;
O que surge, sendo um mero rótulo,
Desaparece na espacialidade quando identificado.
Assimilada na igualdade virginal indiferenciada,
Livre da dualidade perceptiva, ela é a matriz da uniformidade espaçada.

Esta realidade zero-dimensional da consciência autossurgida no agora,


Revelada por analogia – similitude, evocação e evidência bem definidas,
A própria essência indicada por esses três lindos raios celestes,i
Assimila tudo sem diferenciação ou exclusão.
No espaço uterino dessa vasta extensão de igualdade,
No agora, tudo é sempre o mesmo,
Sem distinção temporal ou qualitativa:ii
Essa é a visão de Samantabadra Vajrasatva.

A mente luminosa é como o núcleo solar:


Sua natureza é a clara luz, para sempre incomposta;
Nada pode velar sua espontaneidade translúcida,
E como a realidade não-pensada, a variação elaborada é impossível.

O darmakaya como vaziez, o sambogakaya como clareza


E o nirmanakaya como brilho constituem o trikaya,
Que está além da unidade e da diferenciação,
E uma vez que no agora seu potencial é forjado na espontaneidade,
Defeitos e falhas obscurecedoras não podem ocultá-lo;
Sua identidade é imutável e atemporal
Saturando budas e seres sencientes igualmente,
Idêntico como a "mente luminosa autossurgida".

A criatividade dessa mente luminosa ocorre como qualquer coisa,


Como pensamento ou não-pensamento,iii como manifestação ou potencial,
Tão diversa e variada quanto as percepções dos seres vivos!

As coisas aparecem, mas nunca se cristalizam:


Tudo é como uma miragem, um sonho e um eco,
Como uma aparição, um reflexo na água ou castelos no céu.
Como uma alucinação, as coisas são claramente aparentes,
Mas elas não existem verdadeiramente.
_____________________________
i
Gzer chen gsum: dpe don rtags: similitude, evocação e evidência.
ii
O texto raiz tem "sem distinção entre passado, presente e futuro".
iii
O comentário fornece rtogs dang mi rtogs (realizado ou não-realizado).

Conheça toda a experiência como não possuindo raiz ou base,


Uma mera aparência adventícia,
Apenas uma ocorrência efêmera, circunstancial e eventual.

Na natureza espontânea da mente luminosa,


Na exibição não-cristalizada, samsara e nirvana emanam magicamente,
Para serem assimilados simultaneamente em sua espacialidade:
Saiba que a exibição não se afasta de sua perfeição natural e original.
Aqui e agora tudo se encontra dentro da extensão da mente luminosa:
Perfeita em sua unidade, perfeita em sua inclusividade que a tudo inclui,
Tudo perfeito em sua realidade natural e não-elaborada,
Como a perfeição, ela é a consciência autossurgida no agora.

Uma vez que a mente luminosa não é nem visível nem invisível,
Nem externa nem interna, nem o samsara nem o nirvana podem existir
concretamente,
No entanto, em virtude de sua criatividade dinâmica, a miríade de exibição,
As dimensões materiais e espirituais, o samsara e o nirvana, brilham.

Formas que em seu início são essencialmente vazias,


Não-nascidas, mas parecendo nascer,
Aparecem, mas absolutamente nada foi criado;
Nada se cristaliza, embora possa parecer fazê-lo,
E essa ilusão não-cristalizada é a forma da vaziez.
Mesmo em sua aparente estabilidade, nada de real subsiste,
Pois o que quer que apareça é sem base e imutável,
E por mais que apareça, ela nunca pode ser substanciada,
E por isso ela é rotulada simplesmente como “insubstancial”.

Uma vez que as aparências aparecem por si mesmas na criatividade,


Diz-se simbolicamente que são “sincrônicas”;
Surgindo na criatividade, no exato momento da criação,
Não se pode dizer que algum surgimento ou não-surgimento ocorre,
nem tempo nem espaço,
Então, "criatividade" é uma mera palavra-símbolo que não designa nada;
Uma vez que nada nem se altera nem se sublima,
Como isso pode se mover um milímetro da mente luminosa?
Canto Quatro: Mente Luminosa

Introdução

Hoje em dia os físicos propõem que os constituintes do reino subatômico podem ser
concebidos como ondas ou partículas e que, de acordo com a perspectiva escolhida pelo
percebedor, as condições experimentais permanecem inalteradas, as partículas agem de
acordo com sua natureza preconcebida como ondas ou partículas. Da mesma forma, em
nossas vidas cotidianas, somos o que pensamos que somos. Se acreditamos que somos
entidades separadas, ilhas ou bolhas de um ser discreto, separados dos ambientes
material e espiritual, então podemos descrever melhor a nossa experiência em termos
dos seis reinos míticos do samsara ou nos termos de algum quadro psicológico analítico
semelhante. Talvez devêssemos acrescentar um codicilo admitindo que escapar da
prisão representada por qualquer um destes quadros é uma possibilidade distinta – e que
tal fuga poderia ser chamada de "nirvana". Se, por outro lado, estivermos cientes de que
nada de substancial existe em qualquer lugar e a assim chamada realidade sensorial não
é mais do que uma ilusão comum e que a natureza da mente, a mente búdica, é inerente
a todo momento de consciência, então estaremos nos conduzindo para a experiência da
grande perfeição. Os conceitos em si, o sistema de crenças, na verdade não induzirão a
experiência da realidade, porque os conceitos são todos iguais em seu status como a
exibição da criatividade da mente luminosa. No entanto, na medida em que o Dzogchen
é uma declaração do estado natural do ser, a aceitação intelectual disto permite a
possibilidade de seu reconhecimento – as palavras são portas para a base do ser.

“Bodi” no Dzogchen radical pode ser traduzido como "elevado", de modo que bodichita
é a “mente elevada”, com suas conotações de mente elevada e um espaço mental
desperto para seu potencial ilimitado, infundido com um espírito de compaixão
desenfreada e um senso de realização espontânea infinita. "Bodichita" é muitas vezes
traduzida como "mente desperta", mas o despertar implica um processo temporal de
elevar o adepto de um estado de sono e ignorância. A visão do Dzogchen radical insiste
que sempre estivemos despertos, mas que simplesmente falhamos em reconhecer isso.
O sol ainda está brilhando, mesmo que as nuvens o encubram. A diferença nessas
perspectivas pode parecer pequena; mas todo poder enfraquecedor que podermos aplicar
ao intelecto pode nos auxiliar a sustentar nossa identidade com a natureza da mente.

Com ênfase na consciência e na visão e meditação, em vez de causa e resultado, a


exposição do Dzogchen tem uma tendência a diminuir a conotação de compaixão que a
mente-bodi traz consigo devido à sua longa permanência no reino do bodisatva. A
"compaixão" no Dzogchen implica os quatro estados mentais ilimitados: bondade
amorosa, alegria empática, resposta compassiva e equanimidade, porque esses quatro
sentimentos são a resposta natural ao sofrimento dos seres que surgem em sua
consciência espontânea. Nossa própria felicidade se manifesta como essas qualidades
ilimitadas da mente-bodi. A "compaixão" é as seis perfeições da sabedoria:
generosidade, moralidade, paciência, perseverança, concentração e meditação. A
natureza da mente, a mente-bodi, busca naturalmente o benefício tanto para si como
para os outros, e essas atividades do bodisatva surgem espontaneamente, sem
compulsão ou esforço, fora da mente luminosa. Finalmente, a "compaixão" é o que
conduz à iluminação de todos os seres e na medida em que os meios e as chaves para
esse reconhecimento final estão além da compreensão intelectual, não há movimento
de corpo, fala e mente que seja excluído da possível indução desse benefício.

A NATUREZA DA MENTE LUMINOSA

“A mente luminosa é todo-inclusiva.”

A mente luminosa não é a aparência – ela vai além da aparência;


Não é simplesmente a vaziez – ela vai além da vaziez;
Não é verdadeiramente existente – ela não tem atributo concreto;
Não é inexistente – ela permeia todo o samsara e o nirvana.
Nem "é" nem "não é", sua igualdade incessante é a espacialidade prístina,
E sendo sem raiz, base ou substância, ela é não-espacial e não-temporal.

A presença pura, indestrutível, é a matriz luminosa;


A espacialidade como-o-céu, inalterável e imutável, enche o agora;
Como a consciência autossurgida no agora, incomensurável no agora,
Não-nascida e incessante, ela está contida na única esfera;
Sendo indeterminada e todo-abrangente, ela é zero dimensional.

O núcleo do coração-vajra, imóvel, é uma igualdade ininterrupta ,


Uma espacialidade todo-penetrante, nem realizável nem não-realizável –
Este não é um domínio que pode ser descrito em palavras.
Um insight que brota como a presença intrínseca de cada campo,
O adepto, livre da elaboração discursiva, vocal e mental,
Convencido de que todo o campo da experiência é inefável,
Não entretendo nem a meditação nem qualquer objeto de meditação,
Não precisa eliminar o pensamento deprimido ou exaltado.

Na realidade do empoderamento do seri no agora,


Onde os conceitos de eu e outro não nos governam,
Os três reinosii em si mesmos são campos búdicos da igualdade.
_____________________________
i
Spyi blugs: o empoderamento por libação como na investidura de um príncipe
indiano.
ii Khams gsum: reinos sensuais, estéticos (da forma) e sem forma.

Os vitoriosos de todos os tempos são a pureza auto-visonada,


E tudo participando indiscriminadamente dessa totalidade
Nem um pingo de qualquer coisa deve ser alcançado em outro lugar.
Toda experiência que resplandece na vasta matriz da natureza da mente,
Não se move nem ligeiramente para fora da igualdade real.

Sem dentro ou fora, sem pulsação perturbadora,


A mente luminosa como a fonte dissipa a escuridão dos extremos
E sem a necessidade de fazer qualquer coisa, impede qualquer desvio.

A percepção estroboscópica das pessoas não-realizadas no mundo mundano


E a consciência das formas sublimes no agora que é o buda puro,
Ambas surgem dentro da criatividade da presença pura
Como a exibição não-congelada permeada pela espacialidade como-o-céu.
Na medida em que pode haver realização dessa espacialidade, ou sua ausência,
A realização permite a percepção pura do buda feliz,
Enquanto a não-realização fornece as propensões dualistas ignorantes
Que se manifestam variadamente, mas, mesmo assim, nunca se afastam
da espacialidade.

A mente luminosa é a condição real de tudo,


E os atributos são não-cristalizantes, não importa qual seja sua variação,
Ela é evidente como a espacialidade pura da realidade inerentemente clara,
Sem nitidez ou obscuridade,ii como a presença pura irrestrita.
Esta matriz espaçosa autossurgida é a consciência translúcidaiii no agora,

É a clara luz desvelada, sem qualquer dentro ou fora;


A presença intrínseca é, portanto, um maravilhoso espelho da mente,iv
E a espacialidade intrínseca é uma joia preciosa que realiza desejos.
Uma vez que tudo ocorre naturalmente sem qualquer busca,
A consciência autossurgida no agora é a fonte gloriosa da realização.
_____________________________
i
Char nub rnyog pa; também spro'dus pa.
ii
Dbye bsal (gsal) med pa: sem diferenciação ou exclusão; “sem nitidez
ou obscuridade” é uma interpretação de togal.
iii
Zang thal.
iv
Um espelho holográfico.

Quaisquer que sejam as qualidades transcendentes inumeráveis que


possam ser previstas
Todas surgem da espacialidade como a espacialidade
E todas surgem como meios hábeis sublimes e não-cristalizados;
Como a espacialidade não-nascida tudo é espontaneamente aperfeiçoado,
Todas as coisas materiais são transfiguradas pela vaziez da matriz luminosa,
A vaziez é adornada pela presença intrínseca da matriz luminosa.

Na mente luminosa, no agora,


Não há dualidade entre aparência e vaziez
E nesse desapego não-dual e não-convencional a ilusão mágica aparece;
A espacialidade não-nascida, desprovida de perspectiva temporal,
Permanece uma matriz imutável, indivisível e incomposta;
E o buda de todos os momentos como a consciência da presença pura,
Uma matriz luminosa de presença intrínseca saturando a percepção dualista,
Sem dentro ou fora, a realidade é uma espontaneidade espaçosa.
Canto Cinco: Não-Causalidade e Não-Esforço

Introdução

Uma linha no comentário de Longchenpa atinge o cerne de nossa ignorância:


"Pensamos que nossa consciência foi obscurecida e que precisamos purificar os
obscurecimentos e achamos que precisamos desenvolver qualidades iluminadas". Essa
linha define nossa confusão. Quando as nuvens cobrem o sol, dizemos: "O sol não está
brilhando". O sol certamente está brilhando e nunca deixa de brilhar. Da mesma forma,
quando estamos fixados em nossa ignorância, nossa consciência continua a brilhar.
Nossa ignorância também requer a luz da consciência para ser identificada como
ignorância; nossa dor requer que a luz da mente brilhe dentro dela para que
reconheçamos nosso sofrimento. Assim, é um erro em nossa apreensão defender o
cultivo do potencial búdico. O potencial búdico, como a consciência primordial, está
sempre-presente e perceptível – se ao menos parássemos de tentar localizá-lo e cultivá-
lo. Está presente na consciência não-dual e fundamental; o esforço intelectual dualista o
obscurece. Se pudermos intuir a verdade desse argumento, então, isso por si só é
suficiente para nos permitir cair naturalmente na não-meditação e não-ação. Este
sofisma pode simplesmente reafirmar o velho ditado de que um copo meio cheio é
sempre preferível a um copo meio vazio, mas tal entendimento é suficiente para
transformar a mente em torno do assento profundo da consciência (metanoia) e se
concentrar em sua consciência espaçosa em vez de sua suposta ignorância e delusão.
Assim, somos perpetuamente lembrados de nossa intuição da natureza da mente, que
constitui o primeiro preceito essencial do primeiro portador humano da linhagem, Garab
Dorje.

"Fluxo", "continuum" e "continuidade" não são termos que podemos aplicar à


experiência não-dual da dimensão zero. Embora o "fluxo" seja uma excelente metáfora
para uma experiência, se estamos realmente imersos nela, toda aparente distinção entre
o exterior e o interior tendo desaparecido, deixando-nos com uma impressão
esmagadora de um todo unitário, ela carrega inevitavelmente a conotação de espaço-
tempo. Da mesma forma, embora o "continuum" possa descrever bem a experiência do
fluxo mental do pensamento e da percepção sensorial, ele é um sinônimo de tempo.
Olhando de fora, no quadro do espaço-tempo dualístico, há uma continuidade óbvia e
auto-evidente da experiência não-dual do conhecedor subjetivo; mas dentro do próprio
adepto, ele não tem qualquer noção de tempo. Assim, a noção de continuidade é tão
estranha à não-dualidade quanto a ideia de uma série infinita de eventos momentâneos,
mesmo que esses momentos de experiência não tenham extensão no tempo. Talvez o
paradoxo de um fluxo interminável de fatias atemporais de experiência seja a melhor
maneira de expressar a anulação do espaço-tempo.

A expressão "dimensão zero" transmite a ambiência do lugar de ausência do espaço-


tempo, um lugar não-temporal e não-espacial. Esta é a realidade inefável do estado
natural do ser. É a base do ser, o fundamento de todas as aparências, que
necessariamente participam da mesma realidade. É preeminentemente, porém, a
consciência autossurgida, que é a espontaneidade atemporal e autocognitiva. Essa não-
dualidade talvez seja melhor expressa no meio tibetano do pergaminho pintado como
um campo búdico ou terra pura. No Dzogchen, todos os campos búdicos e terras puras
são os mesmos, mas no Vajrayana os campos búdicos são caracterizados pelos
diferentes budas que os povoam. O adi-buda como Kuntuzangpo, as deidades búdicas
como Vajra Kilaya, ou o buda nirmanakaya como Padma Sambava, podem dominar, e
qualquer um desses campos búdicos provavelmente mostrará uma representação tripla,
permitindo as três dimensões da natureza do ser como aspectos separados da dimensão
zero.

O intelecto pode ser definido primeiro como a articulação linguística, implicando uma
estrutura que se expressa em termos de um sujeito e um objeto, "eu" e "você", "fora" e
"dentro" e um vasto estoque de dualismos incluindo "prazer" e "dor", "bom" e "mau" e
aderindo a "certo" e "errado". Tal agenda implica uma extensão tridimensional do
espaço e suas dez direções. A suposição da causalidade ligando um momento de sua
estrutura a outro fornece outra dimensão intratável, a saber, o tempo. Dessa forma, o
espaço-tempo é uma criação do intelecto e tudo no espaço-tempo é, portanto, a
criatividade da mente.

Para o tibetano médio, o darma é a cultura religiosa vajrayana dos mosteiros. Para o
seguidor comprometido de Guru Rinpoche, o guru raiz do Dzogchen radical, o darma é
a manifestação da natureza de sua mente. Em outras palavras, as formas da experiência
momentânea tomam formas culturais budistas porque o tibetano médio tem estado
mergulhado na cultura Vajrayana desde o nascimento e imerso na meditação desde sua
experiência iniciática. Sentado, ele gira as contas do seu mala, por exemplo; dando um
passeio, ele circumambula a stupa; ao ler um livro é provavelmente uma escritura;
pintando uma imagem é um pergaminho pintado (tanka); evacuando suas entranhas, ele
faz uma oferenda aos fantasmas famintos, e assim por diante. No Ocidente, nosso darma
é fundado na cultura cristã, judaica ou pós-judaico-cristã, e independentemente do grau
em que nos imergimos na tradição religiosa budista tibetana, nosso darma ainda é
basicamente ocidental em tecido, textura e forma. Com essa perspectiva, então, se todos
os aspectos culturalmente específicos são extraídos do darma, o que resta? Resta,
certamente, apenas uma experiência nua e separada de qualquer modalidade formal; é a
infraestrutura do nosso ser, que é chamada de trikaya, as três dimensões ou modos de
ser.

Por essa razão, a palavra darma é aqui traduzida como "experiência" não-específica. Se
o darma é entendido como qualquer tipo específico de prática budista, então essa prática
é uma prática temporal, vestindo a realidade nua de Kuntuzangpo. Neste Dzogchen, as
formas budistas do darma, o darma culturalmente específico, têm o mesmo status
ontológico de qualquer prática religiosa cristã, por exemplo, ou qualquer norma cultural
pós-cristã, como dirigir um carro, assistir a um vídeo ou fazer compras. O que
Longchenpa está apresentando nesta obra é algo além da forma cultural ou atividade
habitual pessoal do corpo, fala ou mente. Ele está apontando para o sol, ainda que ele se
esconda atrás das nuvens.

O Dzogchen mais radical sustenta que a prática espiritual orientada para objetivos com
a liberação do samsara como alvo não é apenas fútil, mas que, se isso existir,
eventualmente se anulará – se isso já não for um hábito, não precisamos começar a
praticá-lo. Em um modo de pensar menos radical, mas ainda quase progressivo, a
prática espiritual é considerada uma atividade mecânica sem um benefício último, que
pode, no entanto, ser exercida como um comportamento culturalmente válido, que
implica qualidades socialmente benéficas. A escola progressista dos últimos dias
acredita que, se o estado natural não for realizado aqui e agora, então os exercícios
espirituais irão acelerar o dia em que o estado da não-ação será realizado. Em outras
palavras, se a aspiração for forte o suficiente, se a prática for suficientemente rigorosa,
se o amor ao guru for todo-abrangente, os fatores causais podem induzir um estado não-
causal ou acausal, e essa técnica meditativa pode induzir um estado não-dual. Não
apenas isso, mas no caminho progressivo, acredita-se que a técnica meditativa pode
eventualmente produzir um estado mais próximo da disposição natural do ser e que,
portanto, o estado fortuito da não-ação é mais provável de ocorrer. Pode-se dizer que
algum tipo de ação especial induz a não-ação. Enquanto a natureza da mente não pode
ser alcançada através de qualquer causa ou condição, sustenta-se que certas condições
podem realmente causá-la. É claro, pode ser que a prática espiritual eventualmente leve
ao reconhecimento de sua própria futilidade, caso em que o Dzogchen progressivo é
validado. Mas tal caminho envolve enganar um iniciado na crença de que a promessa de
sucesso em alcançar o objetivo ideal implica em falha do método técnico explicito.
Além disso, a extensão de um caminho até o seu destino, onde o impulso que dirige um
buscador espiritual a ser eventualmente e inteiramente apropriado não pode ser
estimado – o caminho pode durar para sempre.

Uma palavra que hesitamos em usar para descrever o estado mental que compreendeu a
natureza não-causal e não-motivada da mente é “sem objetivo”. É um comentário infeliz
sobre a cultura ocidental pós-cristã, que um estado sem objetivo deve ser entendido
como um estado de ausência de mente e que tanto a "ausência de objetivo" quanto a
"ausência de mente" são geralmente usados pejorativamente. Se somos sem objetivo,
não temos meta e, se não temos meta, estamos sentados em perfeito contentamento, da
mesma maneira que um tolo, um bufão, um idiota – no entanto, tal ausência de objetivo
na mente do adepto permite uma reação espontânea que é compassiva e totalmente
conectada. A ausência de objetivo, tomada literalmente, é um sinônimo próximo de não-
causalidade e não-esforço e pode incluir ambos. É claro que é impossível estar livre da
causalidade sem ter abandonado o esforço e vice-versa. A ausência de objetivo nos
coloca na espacialidade não-localizável que é a base do ser, onde a espontaneidade
emana sua ilusão mágica. A ausência de objetivo pode ser o título deste canto.

Longchenpa evoca o caminho tântrico para ilustrar a ineficácia de suas técnicas em


induzir a grande perfeição. As dificuldades comprovadas de enxertar estilos de vida
tântricos em modalidades sociais cristãs ou pós-cristãs na sociedade ocidental é um
comentário contemporâneo e, portanto, talvez um comentário mais revelador sobre
essas técnicas. Se a técnica tântrica não viajar através das fronteiras culturais, se os
parâmetros rígidos da sociedade ocidental não permitirem a expressão do compromisso
samaya que exige que a consciência nua tenha prioridade sobre as normas sociais, se
tais técnicas são funcionais ou não é irrelevante. O estilo de vida tântrico ascético está
em declínio na Índia e no Nepal, onde até agora prosperou em um meio social laxista e
não-discriminativo; da mesma forma, o método ritual tântrico não pode se sustentar em
uma sociedade urbana quase ocidental na Ásia.

NÃO-ESFORÇO E NÃO-CAUSALIDADE
"Indo além do esforço e da causalidade."

Na natureza da mente, a mente luminosa,


Não há visão ou meditação e nenhum treinamento disciplinar,
Nenhuma meta para alcançar, nenhum estágio ou caminho para percorrer
Nenhuma mandala para criar, nenhuma recitação de mantra,
Nenhum estágio criativo ou de realização para praticar,
Nenhum empoderamento para receber e nenhum samaya para proteger.
Na realidade pura que é a espontaneidade do agora
Somos livres de práticas progressivas e orientadas para um objetivo.

No entanto, a natureza dessas práticas é a mente luminosa,


Pois o sol está sempre brilhando na espacialidade
Independentemente das nuvens veladoras e adventícias.

As dez técnicas orientadas para objetivosi são ensinadas,


Em resposta à possível delusão da criatividade,
Como antídotos para aqueles cativados pelo progresso gradual.
Não é ensinado aos adeptos com experiência genuína,
Para aqueles que conhecem a realidade do coração vajra do atiyoga.

Para atrair pessoas orientadas por um objetivo que se esforçam em um


caminho gradual
Em direção a espacialidade prístina da realidade,
As abordagens dos discípulos, eremitas e bodisatvas,ii
Os três veículos inferiores são ensinados em sucessão;
As abordagens kriya-tantra, upa-tantra e ioga-tantra,
Os três veículos medianos se seguem automaticamente.

E finalmente mahayoga, anuyoga e atiyoga,


As três abordagens superiores são imanentemente evidentes;
Através da porta das abordagens causais progressivas
Os seres afortunados são trazidos à tripla luminosidade.iii

A ultimidade de todas as abordagens, no entanto, é o coração-vajra,


Aquele maravilhoso e sublime segredo que todos nós compartilhamos,
O ápice que é a clara luz imutável e suprema,
Celebrada como a revelação do coração luminoso.
_____________________________
i
Rang bzhin bcu, os dez constituintes tântricos: visão, meditação, conduta,
objetivo, estágios e caminhos, mandala, mantra, estágio de realização,
empoderamento e samaya.
ii
As abordagens do shravaka, pratiekabuda e bodisatva.
iii
Byang chub gsum: os três níveis de esplendor.

Gradualistas com esforço moral e discriminativo


Tentam extinguir propensões que se manifestam como mente e eventos
mentais
Isso, naturalmente, já surge como uma exibição criativa brilhante:
Eles aspiram purificar a mente que já é uma consciência prístina.
A visão suprema não recorre ao esforço discriminativo,
Pois, na realidade, o encontro direto com a essência é inevitável –
A consciência autossurgida é a natureza da mente luminosa.
É desnecessário procurá-la desesperadamente longe demais.
Simplesmente fique em você mesmo. Você não a encontrará em nenhum
outro lugar.

Nós sabemos que a própria realidade que é como o sol,


Fica para sempre em seu estado natural de clara luz todo-abrangente;
Acreditando em sua tentativa de iluminar a escuridão
Outros tentam imitar o sol primordial iluminador:
A visão causal é bem diferente da visão suprema.

Hoje alguns dinossauros, se orgulhando de sua atiyoga,


Acreditam que o pensamento sofisticado é a mente luminosa.
Esses tolos estão perdidos em um poço escuro
Auto-exilados da grande perfeição natural.
Ignorantes da criatividade e da exibição da mente luminosa,
Como é possível que eles conheçam a mente luminosa?

Aqui, sabemos que a mente luminosa alfa-pura


A verdadeira realidade que é a espacialidade última,
Além do pensamento e da fala, é um insight perfeito;
Nós a conhecemos como inerentemente imóvel, a clara luz intrínseca,
Que no agora é livre de toda elaboração discursiva.
É o que entendemos por "essência", análoga ao núcleo solar;
Sua criatividade não se cristaliza, é a presença pura incessante,
Transparente e ilimitada
Livre de pensamento conceitual e crítico,
Brilhando com clareza constante, livre da percepção dualista.

A presença pura da criatividade implica funções intelectuais,


Incluindo a percepção dualista e suas múltiplas propensões:
Os cinco objetos dos sentidos, as reificações em um campo inexistente,
E as cinco emoções aflitivas,i afetam um eu que não tem identidade,
E todas as percepções delusórias do universo externo e do ser interno.
Se falharmos em perceber que o samsara delusório também emerge da criatividade,
Por engano ficamos presos na aparência perceptiva reificada.

Com a percepção de que a supermatriz da realidade


Não vem de lugar nenhum, não vai a lugar algum e não fica em nenhuma parte,
"A visão da liberação total dos três reinos",
A transmissão de Ati, a espontaneidade do coração-vajra,
Surge na matriz da magnificente vastidão do Todo-Bom.

Dentro da essência da mente luminosa imaculada


Não há nada para ver e nenhum ato de ver,
Nada para olhar e ninguém para olhar,
Não há mente para meditar e nada para meditar sobre:
Porque a concepção e o ato são um só na espontaneidade,
Nem sequer um indicio de um objetivo, nem rumores de um destino ocorre.

Uma vez que um darma indeterminado não tem estrutura,


Nunca pode haver um caminho para um objetivo.
Uma vez que a clara luz já é uma esfera não-dual,
Nenhuma mandala precisa ser visualizada pelo pensamento pulsante,
Nenhum mantra, nenhuma recitação, nenhum empoderamento, nenhum samaya,
E nenhuma dissolução gradual no estágio de conclusão.
O buda imaculado nos campos búdicos já está presente no agora,
Não pode ser criado por concatenação causal.
Se a causalidade complexa reina, a consciência autossurgida é impedida,
Pois o que é composto está sujeito a destruição
E como isso pode ser chamado de "simples espontaneidade"?

Então, na natureza da espacialidade última,


Além da causalidade, as dez técnicas do tantra são redundantes;
Saiba que a natureza genuína da mente, sendo não-motivada,
Desarma todo pensamento discursivo crítico em proliferação.
_____________________________
i
Nyon mongs Inga: desejo, raiva, orgulho, ciúmes e estupidez
Canto Seis: Inclusividade

Introdução

Uma das grandes belezas do Dzogchen é a estupidez que é totalmente boa, outra é a
ignorância que é boa, outra é a paixão que é boa, e o melhor é a fixação intelectual do
tipo nerd que é inteiramente boa. Isso pode soar como um Dzogchen simplificado da
nova era, mas se isso for tomado literalmente, podemos perceber a inclusividade da
mente luminosa do Dzogchen. Quando tomamos isso ao pé da letra e realmente
sentimos estupidez, ficamos confiantes em nossa humanidade imperfeita. Quando a
paixão é inteiramente boa, estamos livres da culpa e da vergonha da luxúria e do ódio,
do orgulho e do ciúme, e permitindo que a emoção surja, sem restrições pelo excesso,
também a permitimos que se dissolva e desapareça na liberação espontânea. Quanto ao
nosso apego a um sistema de crença racional, sabendo que nosso próprio sistema é todo
bom, necessariamente admitimos que todos os sistemas de crenças estão igualmente
incluídos no Todo-Bom, e podemos soltar um profundo suspiro de alívio.

Em vez de cobrir a terra com couro, Dudjom Rinpoche notoriamente aconselhou o


iogue do Dzogchen a usar sandálias. Para lidar com todo o samsara e o nirvana,
precisamos tratar a raiz da mente onde todo o samsara e o nirvana podem ser resolvidos.
Se começarmos a lidar com aspectos especiais da neurose ou da personalidade, não
importa como a tarefa seja descrita, ela se tornará onerosa e infinita. Aceitando que
absolutamente nada é excluído na definição do universo como "recipiente e conteúdo",
tudo tem o mesmo valor. Tudo o que está incluído dentro da arena da inclusividade é da
natureza da mente, a igualdade que é o darmakaya. Além disso, na medida em que
admitimos "a raiz da mente", a "inclusividade" e a "igualdade", aceitamos a
responsabilidade pelo universo, a vida que o habita e cada movimento do corpo, fala ou
mente dessa vida. Aceitamos a responsabilidade pelo que aconteceu ao longo do
processo de evolução. A "inclusividade" não é simplesmente uma maneira de postular a
proposição filosófica de que toda experiência provém da mesma fonte, mas sim uma
maneira de admitir a responsabilidade pessoal por tudo o que experimentamos e,
também, toda a experiência potencial de nós mesmos e dos outros.

Em outro nível, as ramificações da inclusividade permitem um ecumenismo todo-


abrangente. Na visão do Dzogchen, a experiência última de qualquer fé – religiosa ou
secular – envolve a essência da mente e o que quer que surja dessa essência é
espontaneamente perfeito e essa perfeição espontânea abrange todo o universo, animado
e inanimado, material e espiritual, na experiência disto. Não importa qual a cor, credo
ou etnia, todos são inequivocamente iguais. Não importa qual seja o ritual, o dogma ou
o deus, todos estão unidos na espacialidade autoconsciente. O denominador comum
final dos seres humanos é a luz da mente. Tal visão é fácil para o adepto do Dzogchen
que conhece a natureza da mente; mas não serve para crentes religiosos apegados a
dogmas egoístas, como "A única maneira de fazer as coisas é o nosso caminho, porque
o nosso caminho é aprovado pelas escrituras sagradas". Os devotos de todas as religiões
são bem-vindos à sanga do Dzogchen; mas o Dzogchen é apostasia para os crentes
teístas fundamentalistas. A visão ápice do Dzogchen pode incluir os devotos de todas as
religiões, juntamente com suas crenças e atividades, mas a visão do Dzogchen não é
uma parte formal de todas as religiões. Podemos dizer que todos os caminhos levam ao
mesmo destino final, mas apenas se a visão do Dzogchen tiver sido assimilada em
algum ponto ao longo do caminho. Mesmo as técnicas que são usadas por adeptos de
outras religiões podem ser incorporadas ao deposito do Dzogchen para uma prescrição
adequada e propícia para os sofredores no mundo relativo, mas a visão e a meditação do
Dzogchen são inaceitáveis para a vasta maioria das instituições religiosas.

No caminho do ápice, não se faz distinção entre a contemplação formal e a informal, e


essa falta de distinção permite a inclusão de tudo o que é experimentado em cada
período de vinte e quatro horas na mandala do Dzogchen. Essa mandala é chamada de
"grande assembleia", que pode ser interpretada como o universo inteiro reunido como
uma oferenda, ou todo o universo, manifesto e em potencial, animado e inanimado,
material e espiritual, conteúdo e recipiente, cálice e elixir, reconhecidos como o plenário
da experiência. No entanto, isso é concebido, sua realidade é todo-inclusiva. Na prática,
essa inclusividade convida toda a experiência para a natureza da mente, de modo que
nenhuma discriminação em termos de preferência ou viés seja permitida e nenhuma
exclusão em virtude da repressão e da ignorância geradas pela dúvida e pelo medo.

Tal realidade não tem viés ou preferência moral e, no entanto, por ela ser a
conectividade total, tudo o que surge é congruente com o benefício de todos os seres
sencientes. Os forasteiros egoístas que ouviram a visão do Dzogchen, mas não a
realizaram experiencialmente, podem se enveredar em um comportamento
autodestrutivo e anti-social na crença de que o Dzogchen os aprova. Mas, na visão do
Dzogchen, existencialmente realizada, nada além da compaixão pode acontecer.

INCLUSIVIDADE

“A mente luminosa compreende uma unidade.”

Assim como toda a luz do sol é considerada a natureza do sol,


Então, toda experiência é a natureza da mente luminosa.
Identifique a espacialidade do apoio e da localização do que quer que surja,
Incluindo todo o universo impuro e delusório, manifesto ou potencial,
E tudo é permeado pela mente sem base e liberado no agora.
A realidade é assim definida como o vasto espaço da matriz do agora,
Além da delusão e da não-delusão, além do significado nominal.

Mesmo as sublimes formas auto-visionadas e os campos búdicos


E a exibição da atividade totalmente apropriada da consciência presente,
Estão contidas no espaço autossurgido que não é nem unido nem desunido;
A mente luminosa compreende todo o universo e o samsara e o nirvana,
Tudo isto sendo não-composto, uma clareza vazia, como o espaço tracejado pelo sol,
Tudo isto é a vasta, prístina e autossurgida matriz do agora.

A vasta matriz da natureza da mente, um espaço imutável como-o-céu,


Com a criatividade da mente luminosa indeterminada em sua exibição,
Governa todos os estilos de vida do samsara e do nirvana,
O único princípio da não-ação sustentando tudo.
Então nada é extremo, nada é excluído ou estranho,
Pois nada pode se desviar da realidade da mente luminosa.

Porque tudo surge como a espontaneidade unitária totalmente boa,


Como uma personificação suprema, incomparável e todo-inclusiva,
O maior dos maiores, como a espacialidade intrínseca inteiramente boa,
Como um imperador que magistralmente encarna o estado,
A totalidade do samsara e do nirvana é passivamente imóvel.

Porque todas as coisas são boas e nenhuma deixa de ser boa,


Sendo indiferenciadas, todas as coisas têm um só valor no Todo-Bom;
Porque o verdadeiro e o falso têm um só valor na espacialidade intrínseca,
Tudo é idêntico na igualdade imóvel da espontaneidade.

Tudo, sem exceção, surgem da unidade da espacialidade intrínseca,


Onde, na não-ação, nem a busca nem a prática são possíveis;
O esforço e o empenho são apenas a sua própria espacialidade intrínseca,
Então de onde poderia surgir o esforço e para o que poderia o esforço aspirar?

Nenhum lugar para ir, nenhuma visão para cultivar,


Nenhum estado para alcançar, nada estranho para assimilar;
Não vindo nem indo, a igualdade do darmakaya,
A perfeição espontânea, reside na espacialidade da única esfera.

As transmissões dos discípulos, eremitas e bodisatvas,


Transmitindo forte convicção na ausência de "eu" e "meu",
Fornecem uma visão compartilhada, não-elaborada e como-o-céu.
A transmissão do yoga supremo, o Ati, o segredo sublime,
Identifica o vasto espaço onde o eu e o outro são inseparáveis
Com a consciência autossurgida das coisas no agora,
Deixando-as exatamente como são,
Incluindo assim a visão das abordagens inferiores em sua essência suprema.

As três disciplinas do kriya-tantra, upa-tantra e ioga-tantra,


Relacionam o iogue com a deidade através da contemplação e da oferenda,
Para realizar o sidi do corpo, fala e mente imaculados.
Na transmissão do pico-vajra, o segredo soberano,
A forma, o som e a consciência, já sendo imaculados,
Compreendem a deidade do agora,
Pois o sidi do corpo, da fala e da mente imaculados já está revelado.
A visão das abordagens inferiores está contida na essência suprema.

No mahayoga, anuyoga e atiyoga, os campos das deidades yab-yum


Constituem o universo das aparências, espiritual e material,
E uma vez que a espacialidade intrínseca é inseparável
Da consciência primordial imaculada no agora,
A realidade em sua quietude é a própria consciência autossurgida.
Neste segredo mais sublime, tudo já é imaculado,
E a vasta matriz incriada do agora é um campo real de êxtase;
Nesse plenário todo-penetrante sem exterior e interior,
Nenhum esforço discriminativo e progressivo pode permanecer
E uma vez que tudo está submerso no agora,
Liberado na vasta matriz do darmakaya,
Essas visões inferiores estão reunidas no coração secreto de Ati.

Completa no um e completa na soma,


A matriz que contém toda a experiência possível
Está ela mesma contida na espontaneidade maravilhosa,
Em sua clareza intrínseca, disposta no agora.
Canto Sete: Espontaneidade

Introdução

Alguns leitores podem ter dificuldades com o uso da palavra "espontaneidade" tanto na
tradução quanto no comentário. Isto é provavelmente devido à demanda do intelecto por
consistência lógica na descrição da experiência no espaço-tempo. Como pode um fluxo
ou um continuum ser espontâneo? Resposta: não é o fluxo que é espontâneo; é todo
momento de consciência que é espontaneamente consciente. A consciência, então, é
evidenciada em uma série interminável de momentos discretos? Não, porque um
dualismo delusório da consciência subjetiva e do espaço-tempo objetivo é a estrutura da
análise, e essa dualidade não é uma descrição válida de como experimentamos o agora.
No lapso atemporal da consciência no agora, nenhuma distinção é feita entre o aspecto
subjetivo e o objetivo. Tudo o que conhecemos na consciência do agora é "a
espontaneidade". Expandir esse termo para "presença espontânea" é induzir a tendência
para reificar a espontaneidade que nunca se cristaliza em uma coisa ou em uma
presença. A "presença pura", onde a presença é a vacuidade (embora a vacuidade seja
inseparável da forma), é uma maneira alternativa de dizer "espontaneidade".

Nesse canto, Longchenpa enfatiza a inevitável coincidência da espontaneidade no agora.


A espontaneidade é o único atributo (ou um contador verbal não-atribuível) do agora, e
na medida em que o agora é a única coisa que temos, tudo o que já tivemos, e a única
coisa que o futuro trará, parece que a espontaneidade é o legado essencial da encarnação
humana e da natureza da grande perfeição. Na medida em que o agora está conosco
desde a concepção até o nosso último suspiro, a espontaneidade é a natureza do nosso
ser, ou, pelo menos, a natureza de toda a nossa experiência.

Os budistas gostam de definir a espontaneidade em termos do trikaya, os três corpos


búdicos ou as três dimensões do ser, e Longchenpa segue essa divisão analítica da
inefável e inconcebível espontaneidade – não apenas nesse canto. A maneira mais
simples e mais comum de designar os três kayas na visão do Dzogchen é definir o
darmakaya como vaziez, o sambogakaya como claridade e o nirmanakaya como brilho
ou esplendor. Longchenpa elabora o darmakaya em termos do agora. Na mente
luminosa, está a igualdade incessante da presença pura, e o relaxamento no aqui e agora
a revela. Simplesmente deixar as aparências sozinhas revela a clareza do sambogakaya.
O brilho que é o nirmanakaya é a exibição não-cristalizante, que é uma matriz
pervasiva; é uma exibição mágica de qualidades que realizam desejos e atividade
apropriada. “Permitir que o sedimento se assente revela esse aspecto.” “Assim,
considerando o darmakaya como as visões imutáveis, não-referenciadas e onipresentes,
internas e externas, todas as formas de vida são o sambogakaya e o nirmanakaya é como
um reflexo que ocorre naturalmente.”

No momento em que reconhecemos a vastidão de nosso próprio potencial, ele continua


a ser nossos padrões de hábitos e as tendências que continuarão a criar a personalidade
que informa nossa consciência e nossa experiência. No entanto, dentro dessa
experiência reside a espacialidade e a consciência que os transcende. Se nos
identificamos com os ventos cármicos sobre os quais nossos padrões de hábitos se
baseiam, então nossa atividade é "instintiva". Se nos identificarmos com a espacialidade
do momento, a cortesia fornecida de nossas propensões cármicas, então nossa atividade
será "espontânea". Se ficarmos abertamente no agora, então perdidos na consciência
não-dual, nossa experiência será a própria espontaneidade. A diferença entre
"instintivo" e "espontâneo" (como é usado aqui) é a liberdade no último do apego ao
campo objetivo que as tendências cármicas nos forneceram. A diferença é o agarrar
reificador. A própria espontaneidade como denominador da consciência não-dual indica
que a atividade perfeitamente apropriada está surgindo da natureza luminosa da mente,
livre de qualquer tendência cármica pessoal.

No uso do português moderno, o verbo "reificar" geralmente significa um movimento


positivo da noite amorfa da abstração ou da inexistência para a luz do dia, na pratica, é
onde um objeto sensorialmente perceptível pode ser nomeado e identificado. A raiz da
desagradável palavra latina "reificação" é res, a palavra latina para uma "coisa", então
reificação significa "coisificação". No Dzogchen isto implica o processo de transformar
um aspecto de uma experiência de não-dualidade em “isto” e “aquilo” ou alguma outra
coisa. Os objetos nos campos sensoriais são reificados à medida que são objetificados,
no caso de uma percepção visual, é simultâneo à aplicação de um rótulo que define uma
massa de cor nebulosa como uma forma a ser reconhecida como uma entidade "lá fora".
Essa aparente coisa externa parece separada e distinta da entidade “aqui” que a reifica,
objetifica, rotula e percebe. A mente que reifica é o intelecto que agarra os objetos lá
fora, tentando capturá-los e possuí-los, agarrando-se a eles. Mas o intelecto, a mente
funcional, pode reificar a si mesma e ser tratada como um objeto pela consciência
dualista que está no fundo desse procedimento alienador, ela assume o status de uma
entidade discreta ou de uma ilha cercada por um mar ameaçador. Dois montanhistas
escalam altos picos nas proximidades, mas estão separados por um cânion sem fundo, e
reconhecendo um no outro uma espécie similar tudo que eles podem fazer é acenar um
para o outro: a tragédia da situação humana no samsara.

A consciência dualista alienada é resolvida pelo simples reconhecimento da natureza


unitária da base do ser e das emanações ilusórias que surgem dela. A antiga dualidade
judaico-cristã do homem e de deus pode ser resolvida da mesma maneira – se pelo
menos o sacerdócio a sancionasse. Independentemente do auto-interesse e da estreiteza
do sacerdócio, essa dualidade é resolvida naqueles para quem a convenção religiosa e
linguística foi ultrapassada, porque na visão do Dzogchen a resolução é uma função
natural do ser, e a condição unitária – não-dual – é a condição natural. As emanações da
mente luminosa são denominadas "criatividade" e, como potencial criativo,
permanecem idênticas à mente luminosa da qual não podem se desviar. Mas quando a
criatividade evolui para "exibição", embora essa exibição possa ser reconhecida como
sua natureza primordial e se torne uma imagem em movimento dos campos búdicos, a
menos que o adorno seja experiencialmente entendido como inseparável da mente
luminosa da qual se originou – se for reificado – se torna um “adorno”, uma decoração
sensorial. Não importa em qual nível a percepção dualista é resolvida, ela é resolvida
em um campo de igualdade, onde a criatividade, a exibição e a ornamentação são todas
percebidas como a uniformidade de uma realidade verdadeiramente unitária.

Longchenpa toma essa exposição da espontaneidade como o momento para reforçar o


preceito da não-ação. A espontaneidade é a natureza da mente luminosa, e na medida
em que a espontaneidade proporciona incessantemente a presença pura do agora, não há
necessidade de fazer nada. Portanto, qualquer atividade projetada para facilitar ou
agilizar o reconhecimento da presença pura é contraproducente. Qualquer ação
meditativa ou ióguica é supérflua. Qualquer esforço é uma interferência num processo
inato. Não é tanto uma questão de “Se não está quebrado, não conserte”, mas mais “Se
você tentar consertar o que não está quebrado, você vai quebrar.” Nós já estamos no
destino, então não pegue o trem. Não vamos a lugar algum. Se tivermos concebido um
destino, devemos repensar isso. A ação orquestrada e o esforço nos impedem
antecipadamente. A intervenção, não importa quão benigna, é a falha. Mas cuidado com
os preceitos dogmáticos!

A própria espontaneidade é o agente que concede os desejos. Ela fornece a unidade do


samsara e do nirvana. Não interfira com a espontaneidade natural. Nem sequer olhe. Se
você precisa fingir que não está olhando, com as mãos na frente dos olhos, feche os
olhos e evite a tentação de olhar através das fendas entre os dedos. A joia que realiza
desejos é a fruição do Dzogchen.

ESPONTANEIDADE

“Dentro da mente luminosa, tudo é a espontaneidade do agora.”

A transmissão da mente luminosa ocorre como a espontaneidade natural;


É a realização imediata no cume do Monte Meru,
A modalidade existencial mais exaltada e soberana.

Quando chegamos ao cume de uma montanha imponente


Todas as terras abaixo são visíveis de imediato;
Mas lá de baixo, o ambiente no pico é desconhecido.
Da mesma forma, no coração-vajra do Maha-Ati,
Na abordagem do ápice, todos os valores são claramente aparentes,
Enquanto a partir das abordagens inferiores o pico é invisível:
É a experiência do pico que é a espontaneidade.

A espontaneidade é a joia miraculosa que realiza desejos


Que, em sua própria natureza, oferece apenas pelo pedido –
Embora não seja assim para os diletantes.
O trikaya é a espontaneidade do coração-vajra,
Pois o buda já é realizado em sua espacialidade quiescente
Sem a necessidade de qualquer esforço ou prática:
Aí reside sua grandeza.
Nas abordagens inferiores, a discriminação estressante é aplicada,
No entanto, nada é realizado por eras, exceto a neurose desesperada.

No agora, a mente luminosa,


A igualdade incessante da presença pura,
Deixada sozinha, tal como é, a realidade espaçosa e todo-aberta,
Essa é a nossa natureza do darmakaya, a igualdade de uma matriz prístina.
Presente em todos, mas reconhecida apenas por poucos afortunados:
Ao simplesmente relaxar nela, sua disposição inata é revelada.
Como a clareza natural todo-penetrante,
A espontaneidade é o sambogakaya;
Presente em todos, é a terra natal vista apenas por alguns:
Deixar sozinho o que quer que se manifeste a revela.

Como a exibição não-cristalizante


O nirmanakaya é novamente uma matriz pervasiva;
Presente em todos os lugares, brilhante, claro em seu início,
É uma exibição mágica de qualidades que realizam desejos
E atividade absolutamente apropriada,
E a matriz da presença intrínseca imaculada é assim –
Como a água quando o sedimento se assentou, a pureza natural é
revelada.

A experiência da pureza alfa não pode ser encontrada pela busca


consciente,
Pois os altos budas brilham em uma matriz autossurgida;
Não precisamos trabalhar para isso – nós já temos isso.
Sua grandeza inerente é a visão da matriz da realidade:
Não se esforce por aquilo que é a espontaneidade inescapável!

A base do agora, a base gratuita,


Essa é a base que é o coração luminoso;
Uma vez que nunca podemos nos separar de nossa própria natureza
Não podemos nos mover da presença pura da matriz da clara luz!

A razão pela qual tudo é aperfeiçoado simplesmente a deixando ser


Reside no mestre indomável que é a consciência quíntupla –
A perfeição física, energética, mental, qualitativa e ativa, todas as cinco –
Tudo isto é o buda original, a espontaneidade da vasta matriz primordial.
Não procure em qualquer lugar – o buda já está bem aqui!

O darmakaya luminoso do buda, além disso,


Não pode ser outra coisa senão a igualdade imutável;
E uma vez que ele é a espontaneidade deste próprio espaço autossurgido,
Não procure por isso! Não o pratique! Deixe de lado a ambição espiritual!

Uma vez que a consciência autossurgida dos seres sencientes no agora


Permanece como a espontaneidade no darmakaya não-elaborado e
não-procurado,
Sem recusa ou aprovação, entre nesta espacialidade!
No núcleo que é a igualdade imóvel, não-pensada e onipresente,
A vasta matriz, a base do ser, fornece um significado inato.

Como o buda imutável e sempre-presente nos campos búdicos,


Somos instantânea e inatamente empoderados como um buda;
O universo é espontaneamente liberado e perfeito no agora,
Então não se esforce para fazer alterações – tudo já é perfeito,
Tudo se desdobrando como a espontaneidade suprema que a tudo realiza.
Canto Oito: Não-Dualidade

Introdução

No início do século XXI, na nova era, a palavra "não-dual" é um termo da moda. Este é
um chamado de despertar para a Igreja Cristã, mas também anuncia novos horizontes na
teoria e prática psicológica. No Dzogchen, "não-dual" implica a percepção não-dual. A
percepção não-dual implica uma unidade inseparável da mente subjetiva, "o
conhecedor", e o campo objetivo, ou o que é conhecido. Tal unidade de sujeito e objeto
implica a ausência de qualquer testemunha no processo perceptivo. Nenhum "eu"
controla qualquer dada situação e o "eu" não é nem sequer uma testemunha passiva de
eventos mentais. Isso, por sua vez, implica uma mente livre de pensamentos, porque o
pensamento precisa ser testemunhado como consciente na consciência dualista da mente
relativa comum. A consciência não-dual, portanto, é algo completamente além da nossa
capacidade de verbalizar ou expressar seja de que forma for. Assim, o não-dual é
inefável. Poderíamos deixá-lo lá, como fazem as escolas não-duais mais rigorosas, mas
o Dzogchen, ao assumir total rigor não-dual na experiência da não-meditação, no
método do atiyoga, permite o reconhecimento da natureza não-dual da mente por meio
de um conceito, uma entrada do dual para o não-dual.

A principal associação verbal com a não-dualidade nesse contexto do Dzogchen é a


espontaneidade, onde a espontaneidade denota (como esclarecido no canto anterior)
uma experiência da totalidade que é livre de todas as causas e condições e, portanto,
"ocorre naturalmente". Tal experiência, claro, ocorre apenas e unicamente na matriz do
aqui e agora. Ela ocorre, então, em todo momento da experiência e a experiência em si,
é de fato a espontaneidade. A espontaneidade e a não-dualidade são os últimos pontos
de referência verbais antes que a matriz do agora nos consuma, antes da resolução final.

Experiencialmente, diz-se que a não-dualidade não tem ponto de referência. Em outras


palavras, não se pode dizer que a experiência da não-dualidade aconteceu, que tem
acontecido ou que tem a possibilidade de acontecer. Assim, a não-dualidade, como o
buda, é incognoscível. Se houvesse um ponto de referência, haveria uma testemunha
disso e sabemos que "a testemunha" é um aspecto do conhecedor subjetivo, o aspecto
interno da percepção dualista. Se qualquer ponto de referência persistir, tal como uma
chama de vela, uma personificação, um panorama visionário, uma espacialidade ou um
senso de não-dualidade em si, então ainda estaremos presos na jaula da percepção
dualista onde o eu e o outro são separados, onde aspectos subjetivo e objetivos são
reificados como entidades distintas. O “desemaranhamento” das características
específicas das aparências ainda não atingiu o lugar onde "todas as distinções são
resolvidas", onde um estado contínuo de totalidade é obtido.

Um dos antônimos de não-dualidade é a bipolaridade. Se a dualidade perceptiva é a


manifestação sensorial funcional de uma perda de consciência não-dual, então a
bipolaridade emocional é sua consequência interna. Esta dualidade emocional não é o
dualismo primário de amor-ódio, orgulho-ciúme, positivo-negativo; é a polaridade
emocional secundária e derivada da esperança e do medo, que poderia ser chamada de
sentimento. Nossos humores e pensamentos podem ser categorizados como um ou
outro, como esperança ou medo, ou em algum lugar no meio. Nossa crença na natureza
concreta ou na existência verdadeira de nossas esperanças e medos nos lança de um
pólo a outro. A crença na existência verdadeira dos fenômenos mentais é o resultado de
uma ausência de reconhecimento da natureza da mente, uma ausência de contemplação.
Nós descansamos na natureza da mente e, embora variações de humor possam ocorrer, e
cada vez menos frequentemente e menos excessivamente, nós nos identificamos com a
natureza da mente luminosa da qual elas são uma expressão criativa, e assim
permanecemos livres delas.

NÃO-DUALIDADE

“A mente luminosa é a mente não-dual.”

Na consciência autossurgida no agora


Onde tudo é a espacialidade singular,
Nosso modo de experiência é essencialmente não-dual.
Uma continuidade da percepção dualista pode surgir como a exibição criativa,
Mas enquanto as aparências da “mente luminosa” e sua imputação são não-duais.

Na presença pura luminosa que não pode ser alterada ou sublimada


Como o samsara ou o nirvana a ilusão universal aparece,
E isso não deve ser abandonado nem manipulado.
Para o adepto em quem a percepção dualista está morta,
O que está ausente, mas é aparente é um absurdo cômico.

Em sua própria ausência, a aparência brilha na variedade multifacetada;


Em sua própria ausência, a vaziez é todo penetrante;
Na ausência de dualidade perceptiva, ainda percebemos a multiplicidade;
Na ausência de substância subjacente, ainda transmigramos;
Na ausência de julgamento de valor, ainda distinguimos prazer
e dor.

Ainda olhando ao redor, os erros das pessoas são surpreendentes:


Viciados na irrealidade como verdade, eles acreditam em uma realidade
concreta;
Viciados na delusão como gratificação, eles acreditam na delusão;
Segurando o que é indeterminado como certo, eles fingem convicção;
Segurando o que não é como o que é, eles são estupidamente crédulos;
Segurando o que é válido como inútil, o que é inútil parece validado.

Com a mente preocupada com diferentes preocupações insignificantes,


Um momento de fixação inconsequente se torna um hábito
E um dia, um mês, um ano – uma vida inteira – passa despercebido.
Nós nos enganamos ao construir o não-dual como dualidade.

Quando o adepto com sua mente pura olha para dentro,


A presença pura sem um nome, sem base,
A descrição dos mendigos, a visão e a meditação são irrelevantes;
Ela é todo-aberta, solta e espaçosa, na uniformidade espaçada,
Não pode haver senso de prática espiritual,
Nenhuma distinção entre sessões e pausas na meditação,
Tudo é ilimitado, equalizado e sem interrupção.

Sem corpo, objeto ou percepção como ponto de referência,


Por causa da uniformidade da vasta extensão do céu,
Nada experimentado internamente pode ser interpretado como um eu.

Então olhando para fora para as aparências externas,


Tudo parece evanescente, frágil e transparente;
E uma vez dissociado, nenhum ponto de referência permanece.
Aparência, som e pensamento, cada sentimento, é fresco e claro,
E pensando: “Estou louco!” “Estou sonhando!” – risos!

Sem noções de amigo e inimigo, amor e ódio, próximo e distante,


Nenhuma preferência por noite ou dia, a igualdade é a totalidade,
E uma vez que o samsara é definido por atributos e pontos de referência,
ele desaparece.
Sem um pensamento sobre "o campo da consciência autossurgida",
Escapamos da gaiola da crença na dualidade moral e perceptiva.

Com essa percepção da consciência prístina não-dual


Chegamos à visão autossurgida do Todo-Bom,
O lugar sem retorno, o ponto de consumação.

Até que percebamos – experimentalmente – esse campo da igualdade


autossurgida,
Podemos verbalmente ficar obcecados com a frase "não-dualidade",
E especular confiantemente sobre o que é não-referencial,
Mas tal suposição flagrante é rude e fútil.

Então, na modalidade autossurgida, sem sublimação ou alteração,


A aspiração soberana consumada é realizada como a não-dualidade;
Os três reinos são totalmente liberados como o samsara não-dual e o nirvana,
A cidadela do darmakaya surge naturalmente dentro de nossa natureza interior,
E ele é imaculado – “Como o céu!” nós dizemos,
Embora, na verdade, ele seja incomensurável.

Enquanto nos fixarmos nisso e naquilo como coisas separadas,


Capturados pela dualidade, estamos presos numa gaiola do eu e do outro
delusórios;
Quando, pelo contrário, não fazemos distinção entre isto e aquilo,
Quando todas as distinções são niveladas e os pontos de referência
desaparecem,
Então Vajrasatva afirma a realização da não-dualidade.
Canto Nove: Resolução

Introdução

A cultura ocidental está hoje profundamente devastada pela dúvida e um sentimento de


culpa: isso é um clichê. Mas talvez os seres humanos sempre sintam e sempre se
sentiram inadequados. O negócio multibilionário da psicoterapia prospera com o
sentimento neurótico de inadequação de seus clientes, e a Igreja Cristã é reforçada pela
necessidade de absolvição das pessoas. Talvez a confusão que acompanha a crença em
Deus e a falta de fé no mistério da crucificação e ressurreição seja um resultado ou uma
causa disso. O fato de Longchenpa gastar duas vezes mais espaço no tópico da
resolução do que nos cantos anteriores talvez seja uma indicação de que a doença da
falta de fé é endêmica também no Tibete. De fato, é dito que a auto-dúvida e a culpa
(além do riso e das lágrimas) caracterizam o reino humano na roda da vida.

No Dzogchen, nós já estamos no espaço de buda nos campos búdicos, mas não sabemos
disso. A matriz do agora é a única constante em nossa existência, mas não
reconhecemos sua capacidade transfiguradora e não abandonamos os conceitos que a
obscurecem. Resolução é o que chamamos aqui do reconhecimento da função natural da
liberação. É a liberação espontânea e inevitável do que quer que surja na consciência, a
liberação na natureza da mente da qual surgiu. É de importância crucial que entendamos
que esta resolução depende da cognição do que já existe. A resolução ocorre na não-
ação. Desistir de nossas metas e de nosso estilo de vida e práticas orientadas para
objetivos, erradicar rigorosamente as prioridades de nossa agenda a serem alcançadas no
futuro e afrouxar o domínio do pensamento dedutivo e indutivo é o resultado do
relaxamento na natureza da mente e sua não-ação. A resolução da lacuna entre quem
somos e quem pensamos que somos é o resultado inevitável. Quem somos corresponde
a vasta espacialidade da consciência e da clara luz; quem pensamos que somos
corresponde aquele que busca a liberação da prisão do samsara, é um discreto e isolado
câncer da consciência, composto de sua história de conceitos reificados e delusórios
derivados da percepção dualista e então protegido pela resposta temerosa como se fosse
uma entidade substancial.

Esta resolução é a fonte da confiança que, daqui em diante, podemos apelar para
reforçar nossa convicção de que as distinções que surgem como a criatividade da mente
luminosa não são diferentes da consciência espaçosa que é sua natureza intrínseca. Em
última análise, não há nenhuma resolução, claro, porque não há nada para resolver e
ninguém para fazer a resolução. Essa resolução, ou experiência decisiva, é na verdade a
experiência da liberação da roda da vida, ou a liberação do momentâneo e suposto
objeto de apego. A noção de tal liberação só pode surgir dentro do contexto do
confinamento; se pensar na chave confirma a prisão, a confiança inabalável na realidade
de nossa liberdade, onde quer que estejamos, torna redundante qualquer recurso a um
processo de liberação ou a um conceito de liberação. Mas no nexo existencial da
probabilidade, onde temos certeza intelectual e equívoco experiencial, a confiança na
intuição de que a liberação é ideal no agora, essa liberação é autossurgida e não pode ser
iniciada ou evitada, é como uma estrela guia, ou um poço de alegria auto-satisfeita.
Além disso, esta resolução é a resolução de toda dualidade e isso implica a resolução da
prevaricação bipolar, deslizando entre um sentimento de realização extasiante e trágica
obscuridade, entre a certeza de nossa identidade com buda e o grande medo da
vacuidade.

A resolução está embutida na mente luminosa, que é a bodichita. Toda experiência,


surgindo na mente luminosa, é insubstancial, aparente mas sem existência verdadeira, e
como tal participa da natureza da mente luminosa. Portanto, nada precisa ser feito para
alcançar a resolução, a não ser uma rendição ao reconhecimento. É enganoso identificar
essa resolução como “iluminação súbita”, ou "uma experiência decisiva", como se isso
fosse uma experiência abrupta e incisiva de mudança de vida. Da mesma forma que
uma primeira experiência de satori pode de fato impactar como uma experiência súbita
de iluminação que muda nossa perspectiva para sempre, a resolução no Dzogchen pode
ser uma experiência extraordinária, uma experiência mística com efeitos de luz e som,
com felicidade dominante, não-pensamento ou clareza. Mas é preeminentemente uma
experiência zero e não-dual. Em outras palavras, é essencialmente uma experiência sem
sinais. Ela não tem nenhum ponto de referência, portanto a resolução não pode ser
identificada por nenhum sinal. Da mesma forma, a resolução não deve ser identificada
como uma “bênção”, que tem como seu principal atributo "ondas de felicidade" e que
evoca um lama como sua fonte e um devoto com fé e devoção, com corpo e mente
obedientes, como seu receptor. O perigo, então, está na reificação da resolução. Na
medida em que a tratamos como uma experiência que pode ser objetificada, nós a
perdemos; na medida em que relaxamos na não-ação da natureza da mente, nós a
protegemos.

No final deste nono canto, que talvez seja a melhor efusão verbal da realização do
Dzogchen e a mais contagiante nesta magnífica exposição, na penúltima estrofe,
Longchenpa explora o significado de seu nome. Para aqueles com conhecimento do
tibetano, a palavra klong em si é mais um preceito do que um nome, porque nas línguas
europeias não temos um termo que reproduza a realidade que a palavra denota. O
“long” é a vasta, espaçosa, não-dual, espontânea e todo-inclusiva arena do agora, onde o
agora não é um estado metafísico fantasioso, mas esse momento real da experiência –
agora mesmo! O “long” é a matriz. Essa matriz do agora fornece uma experiência
unitária em que o prazer da percepção sensorial – o aspecto objetivo – é indistinguível
da espacialidade cognitiva que é sua natureza. O prazer fornece o nome pessoal do autor
Natsok Rangdrol, a “Experiência Multifacetada Auto-Liberada”, e a vasta matriz do
agora fornece seu nome titular, Longchenpa. Aqui está uma indicação de que devemos
imaginar Longchenpa não como um ser senciente comum, mas como uma figura
transcendente de Guru igual a Kuntuzangpo. Natsok Rangdrol (ou Drimme Wozer,
como ele descreveu a si mesmo em outros colofões) é a personificação pessoal finita,
enquanto Longchenpa é o corpo impessoal da luz.

Na última estrofe, Longchenpa reforça sua incursão sem precedentes, muito pessoal e
individualista na intimidade do próximo, insinuando que uma linhagem temporal
formada por ele mesmo e pelos outros, aqueles que residem com ele na cabine do ápice
do coração-vajra, carrega esta transmissão do Dzogchen. Por favor, note que sua última
palavra neste canto seminal expressa a noção de espontaneidade.
RESOLUÇÃO

“Toda experiência é resolvida na matriz da mente luminosa.”

Dentro da matriz única que é a vasta extensão da nossa natureza,


A mente luminosa como-o-céu é o trinco do céu,i
E sua quintessência, seu verdadeiro sumo,
Esse é o insuperável, espaçoso e todo-bom coração búdico,
Em sua própria natureza quebra nosso casco confinante.
Nesta supermatriz singular, realização e não-realização,
Liberação e não-liberação são indivisíveis, a igualdade sublime.

O pássaro garuda com suas asas totalmente desenvolvidas dentro do ovo,


No momento de seu nascimento ele desliza para o céu azul,
Ofuscando os nagas,ii voando alto sobre o grande abismo.
Assim, o adepto abençoado, percebendo o coração vajra na abordagem do ápice,
Supera os veículos menores e atravessa o vazio do samsara.

Para viver na igualdade suprema que é a liberação total,


Contrária àqueles que estão no caminho do esforço orientado para um objetivo,
Valida a igualdade imutável da abordagem suprema.
Nesta matriz do darmakaya semelhante-ao-céu, tudo é bem-aventurado;
Nesta matriz do darmakaya, não há nada que permaneça não-liberado;
A realidade divulga a si mesma como as formas sublimes do coração vajra,
Enquanto o corpo gerado carmicamente é a criatividade perfeita do coração.
________________________
i
Gnam gzer: esteio, pino mestre; "uma tranca da espacialidade".
ii Klu: espíritos de serpentes subterrâneas da mãe terra.

Quando o corpo condicionado é abandonado no bardo da vida


Tudo é a presença pura apenas, de modo algum divisível;
Com o domínio dos vencedores no espaço da espontaneidade
A emanação emerge sem qualquer restrição
E toda situação é abraçada sem impedimentos.
“Montar os ventos”, sem esforço, define a carreira do adepto,
E embora, claro, isso seja incompatível nas abordagens inferiores.
O Ati aceita isso como o cerne da fruição.

O nascimento ocorre como a emanação mágica não-nascida,


Enquanto o intelecto instável se fixa em relações causais:
O ati revela a não-causalidade incondicional,
E o que é inadmissível nas abordagens inferiores
Aqui se torna o ponto crucial.

Buda e seres sencientes, a visão e a realidade são inseparáveis,


É o intelecto deludido que mantém o samsara e o nirvana separados:
O ati revela a não-dualidade
E o que é discordante nas abordagens inferiores
Aqui se torna o cerne.
Realização e não-realização são igualmente liberadas,
Acreditar na liberação através da realização nega sua igualdade:
O Ati revela a igualdade unitária
E o que é inaceitável nas abordagens inferiores
Aqui se torna o ponto crucial.

Apenas um idiota confia em um método específico de realização


Para a inefável – não-específica – realização:
O ati revela a ultimidade como indivisível
E o que é contrário às abordagens inferiores
Aqui se torna o ponto crucial.

Sendo onipresente no agora, o Dzogchen é incomensurável,


Mas é apenas para o idiota que o chama de nebuloso:
O ati mostra o imediatismo ilimitado
E o que é desagradável nas abordagens inferiores
Aqui se torna o ponto crucial.

Na única esfera, o processo linear e causal é invertido,


E a igualdade como-o-céu desfaz a esperança e o medo relacionados
aos objetivos.
É vasta, é magnífica – é a mente búdica semelhante-ao-céu!
Livre de fixações a objetivos – é a matriz da única esfera!
É a liberação no agora – quer sejamos realizados ou não!
Feliz é o iogue no caminho semelhante-ao-céu da não-ação!

Esta presença pura sem objeto do estado búdico no agora


Substitui a base delusória e o vaguear no samsara –
Ninguém pode ser deludido porque nenhum lugar de delusão existe.
Aqui tudo é a espacialidade intrínseca em uma única matriz de clareza;
Livre de tempo linear, ela é a espacialidade aberta semelhante-ao-céu,
A espontaneidade da pureza alfa do samsara disposta no agora.

Não pode haver "alcançar a liberação" ou "entrar no nirvana",


Pois o samsara e o nirvana são desconhecidos na supermatriz imutável.
E a preferência moral, esperança e medo são inimagináveis
Na base primordialmente luminosa, nesta vasta matriz.
Todas as coisas são meros rótulos na realidade inexprimível,
Portanto, nem a liberação nem a delusão podem existir
E o samsara e o nirvana já estão resolvidos.
Não faça nenhum esforço! Não tente mudar as coisas!

A presença pura não tem largura ou profundidade, não é nem alta nem baixa
E essa indeterminação sem limites impede qualquer ponto de referência;
A presença pura não tem agenda, nada para fazer e nenhum lugar para ir,
E a ausência de tempo linear e antídoto impedem a fixação por um objetivo.
Qualquer ponto de referência inventado resulta em cativeiro,
Portanto, não estabelecendo quaisquer objetivos, relaxe na totalidade!
*

Se nossa experiência é liberada ou não no agora,


Se o nosso modo de ser é puro ou não em sua natureza,
Se a natureza da mente é ou não discursivamente elaborada,
Se nos banhamos ou não na genuína disposição autêntica,
É tudo a mesma coisa.

Se vemos ou não o samsara e o nirvana como uma dualidade,


Se todo pensamento ou expressão é ou não transcendido,
Se o pensamento lógico delusório foi ou não erradicado,
Se a visão existencial foi ou não realizada,
Isso é irrelevante.

Se vivemos ou não na contemplação da realidade,


Se vivemos ou não sem discriminação,
Se vivemos ou não a perfeição natural como fruição,
Se percorremos ou não os níveis e caminhos,
Isso está fora de questão.

Se estamos livres ou não de todo obscurecimento,


Se os estágios de criação e realização foram completos ou não,
Se a liberação foi ou não alcançada como fruição,
Se vagamos ou não nos seis reinos míticos do samsara,
Não faz diferença.

Se a natureza do nosso ser é a espontaneidade ou não,


Se a afirmação e a negação dualista nos ata ou não,
Se chegamos ou não à visão última da realidade,
Se seguimos ou não os passos do nosso mestre –
Isso não importa.

Não importa o que aconteça, mesmo que o céu e a terra troquem de lugar,
Estamos completamente abertos, livremente soltos, autênticos na ausência
de base;
Sem referência, desassociados, evanescentes, randomizados,i
Sem esperança ou medo, somos desinibidos, divinamente loucos;
Visão e meditação sendo idênticas, as fixações do intelecto colapsam,
E estamos livres de pensamentos desejosos e orientados para objetivos
E nada para se esforçar ou praticar permanece.
________________________
i
Phyal ba lhug pa gzhi med zang ka ma:
Gtad med zang zing ban bun chal ma chol.

O que quer que aconteça, deixe acontecer; o que quer que se manifeste, deixe brilhar,
O que quer que surja, deixe surgir e o que quer que ocorra, apenas deixe ser;
E, além disso, o que quer que seja nada, deixe ser nada.

*
Nosso comportamento se torna imprevisivelmente variado,
Somos imediatamente empurrados para a presença pura
Onde o cálculo da verdade e da inverdade não tem parâmetros;
Sem referência, na transparência ilimitada, além da
armadilha da filosofia,
Comendo, movendo-se, dormindo, sentando, dia e noite, um continuum suave,
Vivemos na igualdade da realidade de nossa própria natureza.

Sem deuses para adorar, sem espíritos para exorcizar,


Nenhuma cultura de meditação, despretensiosos, livres e tranquilos,
Eis aqui um senhor não-afetado, sem orgulho em seu senso de totalidade,
Completamente abertos, livremente à vontade, na espontaneidade e unidade,
Sem necessidade de agir, seguros no agora, sem estresse,
Somos felizes.

A visão é sem base e a meditação não é um "estado",


Portanto, não há disciplina para seguir e nenhum objetivo para atingir;
Nenhuma preferência em qualquer lugar, todas as distinções foram niveladas,
Sem necessidade de estresse ou tensão, na dimensão zero,
Somos contentes.

Sem qualquer ambição, toda prática disciplinada termina


E, sem nada a perder, abandonamos as restrições corretivas;
Uma vez que nem algo, nem tudo, nem nada existe,
O que quer que apareça, o que quer que ocorra, já está liberado;
Uma vez que nenhuma liberação, por natureza, no agora, ou por si só, é possível,
A totalidade não-referenciada está além da resolução.

A matriz é extremamente vasta, uma supermatriz, a espacialidade do espaço,


Nesta supermatriz todo-abrangente,i uma matriz de clareza todo-saturante,
O êxtase nos invade em uma experiência unitária e não-dual,
Todas as coisas são auto-liberadas,ii e a realidade é consumada.
Espontaneidade imutável é o que mais desejo para todos nós.

Além disso, todos nós, todos aqueles que seguem o meu exemplo,
Uma vez que o agora todo-abrangente está fundido com a supermatriz,iii
Nós temos domínio no espaço do Todo-Bom.
___________________________
i
Klong chen rab 'byams: nome formal de Longchenpa.
ii
Sna tshogs rang grol: Natsok Rangdrol, um dos nomes pessoais de Longchenpa.
iii
Klong chen rab 'byams pa.
Canto Dez: Visão

Introdução

Alguns irão considerar este décimo canto sobre a visão como o coração do tratado de
Longchenpa. Certamente, se qualquer um dos treze cantos puder ser considerado uma
declaração do método, é este. Pode-se argumentar que nenhum método deve ser
perseguido no coração-vajra, exceto o reconhecimento do que já está presente. O
Atiyoga, certamente, é um método de simplesmente apontar a realidade inevitável, uma
introdução conceitual ao que é não-conceitual e além do intelecto para compreender.
Isso é precisamente o que este Tesouro do Dharmadhatu faz – “aponta” e “introduz”.
Mas nesse canto somos encorajados a reter a visão da natureza da mente e, uma vez que
a retenção implica uma extensão no tempo, essa certamente é uma atividade contínua,
uma prática. No último verso do canto, no qual Longchenpa modera seu estilo para
introduzir um tom avuncular para dar conselhos pessoais a seus alunos, ele confirma
que nada deve ser feito em atiyoga além de manter a visão – “Mantenha a fé!” Ele não
qualifica essa declaração com a afirmação sofisticada de que manter a visão nada mais é
do que relaxar no espaço da não-ação – mas ele poderia ter feito isso!

No mesmo verso no final do canto, Longchenpa enfatiza que essa visão-do-guru da


realidade é o resultado da resolução da causa e efeito, da causalidade e da afetividade
das condições secundárias. Essa afirmação pode tentar algumas pessoas a se esforçarem
em minar as suposições do espaço-tempo que informam nosso pensamento, sistemas de
crenças e linguagem. Nossa própria estrutura linguística, certamente, descreve uma
delusão dualista na qual a criatividade da mente luminosa se cristalizou como o adorno
que conhecemos como o universo animado e inanimado (embora isso possa não ser
verdade para a estrutura de todas as línguas). Como podemos reconhecer a criatividade
da mente como sua própria essência luminosa, se não extirparmos o tipo de pensamento
que liga o passado com o presente e o presente com o futuro, e no presente encaramos o
universo em termos dos quatro cardeais e as oito direções intermediárias, cima e em
baixo, existentes em um contínuo temporal? Certamente, a realidade é uma
espacialidade não-dual onde o centro e a circunferência são idênticos. A resposta para
isso está na proposição de Longchenpa, articulada no canto anterior, de que a resolução
de todo dualismo ocorre natural e espontaneamente, porque é a função natural da mente.
Essa afirmação é repetida no décimo primeiro canto tratando da liberação. Na resolução
da dualidade, a visão é natural e espontaneamente apresentada. Assim, novamente,
embora Longchenpa empregue a palavra "método" para descrever a resolução na visão-
do-guru, essa noção é apropriada?

Na penúltima linha da estrofe final deste décimo canto, numa estrofe que contém os
chamados preceitos secretos essenciais, Longchenpa evoca a noção do "terceiro
excluído". Aristóteles, um grego, formulou primeiro a lei do terceiro excluído. Ele
sustentou que, em resposta a qualquer proposição, é necessário afirmar ou negar, que a
lógica irrefutável anulava qualquer resposta "intermediária" que não afirmasse nem
negasse. Assim, por exemplo, a proposição de que "a vida é sofrimento" deve receber
um verdadeiro sim ou não, e qualquer resposta como a quádrupla negação de Nagarjuna
– nem sim, nem não, nem ambos sim e não, nem não sim nem não – era ilógica e
inaceitável. A negação quádrupla de Nagarjuna, é claro, apresenta o caso lógico para o
terceiro excluído. Aqui, a "espacialidade" pode ser experienciada existencialmente.
Assim, o terceiro excluído é o que podemos chamar no Dzogchen da realidade inefável
do aqui e agora, em sua vaziez, clareza e compaixão.

Essa visão-do-guru é a percepção direta do aqui e agora e, portanto, é uma visão não-
dual e não pode ser descrita em termos dualistas. É crucial que não consideremos que
essa visão seja uma prévia do que pretendemos alcançar no futuro, quando tivermos
“acumulado o mérito”, “purificado nosso carma”, “feito as preliminares necessárias” e
assim por diante. A visão é válida apenas no aqui e agora e somente no momento
atemporal de sua experiência.

A fim de realizar essa visão-do-guru, a visão e a meditação devem permanecer


integradas. Pode parecer, a princípio, que a visão é uma série de afirmações intelectuais
altamente abstratas descrevendo uma realidade hipotética. Mas logo essas declarações
se tornam preceitos imediatamente atualizados – os preceitos são efetivados como a
não-meditação. A visão fornece portas para o Dzogchen experiencial, e isso é a não
meditação. A grande tentação é transformar a não-meditação em uma disciplina de um
caminho progressivo, caso em que a visão e a meditação permanecem separadas. A
confiança derivada da experiência iniciática é imperativa neste momento e o apoio de
um rigzin-lama é crucial. Se pudermos manter a confiança na visão, então
descansaremos na meditação, e a visão e a meditação são a não-meditação. Se
perdermos a confiança na visão, então ficaremos presos às meditações shamata e
vipashyana no caminho gradual do aprendizado cultural tibetano.

Podemos achar surpreendente, então, que o auto-comentário de Longchenpa sobre este


décimo canto, o mais extenso e detalhado de todos, elabore os preceitos que são cruciais
no atiyoga – em trekcho e togal. Sabemos que esses preceitos são cruciais para
descobrir a não-meditação que é a chave do Maha-Ati, mas ainda assim o auto-
comentário de Longchenpa deixa um gostinho do método progressivo. O primeiro
conjunto de preceitos é chamado de os quatro modos de descansar livremente; o
segundo é chamado de os três aspectos da contemplação; e o terceiro é chamado de os
vinte e dois tópicos. Quais são esses vinte e nove tópicos que Longchenpa lista em seu
comentário? Eles podem ser considerados como vinte e nove chaves conceituais para a
experiência não-conceitual. De certa forma, são paradoxos que, em sua resolução,
produzem uma resposta transcendente. Talvez, às vezes, essa resposta possa ser
chamada de não-dual e na medida em que eles são muito semelhantes aos koans da
Rinzai-zen. Mas esses preceitos do Dzogchen devem ser resolvidos ao simplesmente
sentar, através de um relaxamento natural na natureza da mente, e não por qualquer
processo árduo de sadana. A suposição, aqui, é que o próprio conceito, implícito no
preceito, é congruente com a experiência e que a natureza da experiência é a experiência
subjacente e todo-penetrante da espacialidade que está presente no estado natural do ser.
Se, de fato, essa visão do Dzogchen descreve a realidade intrínseca de todas as nossas
vidas, então o conceito disto se torna uma porta para a sua realização.

Os preceitos de descansar livremente demonstram um paradigma do método do atiyoga.


Se tomarmos a “montanha” como exemplo, não somos exortados a fazer nada com esta
montanha, a não visualizá-la, fora ou dentro, a não identificar nossas mentes com ela, a
não cultivar suas qualidades de imobilidade, solidez, imutabilidade e assim por diante,
nem mesmo enumerar suas qualidades. Reconhecimento é a palavra-chave e isso não
deve ser considerado "uma ação" sob esta rubrica do atiyoga. Pelo contrário, é a “não-
ação”. Em seguida, considere mais um dos preceitos de descansar livremente, o
"oceano", um conceito que representa o mar eterno. Simplesmente permitindo que a
noção de "oceano" surja na mente, nós habitamos no oceano e somos tragados pelo
oceano, e o valor simbólico do oceano evoca sua clareza, unidade, quietude e vastidão.
No reconhecimento, conhecemos a espacialidade da mente luminosa. Novamente,
nenhuma ação deve ser realizada aqui, nenhum artifício ou fabricação, mas antes
estamos reconhecendo a natureza da mente que existia antes de nossa percepção e o que
é chamado do estado natural do ser.

Além disso, o "oceano" como um símbolo também pode evocar a crista de uma onda,
como a Grande Onda de Hokusai, onde a espuma do oceano parece ter se desviado do
próprio oceano, mas a separação é desmentida pelo conhecimento certo de que ela
voltará ao oceano no momento seguinte. Assim como a pintura japonesa primeiro evoca
o samsara em toda sua alienação ameaçadora, e então no instante seguinte fornece o
conhecimento reconfortante e tranquilizador de que o barco e seus ocupantes
sobreviverão, então conhecer a si mesmo como o oceano pode primeiro evocar o
samsara e depois o nirvana dentro dele e trazer essa consumação gratuita à não-
dualidade.

A estrofe no texto raiz, a terceira estrofe, à qual este exemplo do descansar livremente
está associado, enfatiza a quietude e a transparência do oceano. Isso indica um estado
mental onde nenhuma alternância entre a projeção mental de uma imagem ou objeto e o
colapso dessa imagem é possível. Externamente essa identidade ocorre no processo de
aumento e diminuição das imagens sensoriais e internamente no processo de elaboração
da percepção em correntes de pensamento e sua dissolução. Ou estes processos são
melhor descritos como "pulsações" atemporais da mente? O comentário se concentra na
experiência de um oceano imóvel com os reflexos dos planetas e estrelas brilhando
dentro dele, dando-lhe o mesmo significado que o reflexo da lua na água, que é uma das
oito analogias clássicas da realidade.

Após esta análise dos modos de descansar livremente, deve-se enfatizar que nenhum
“estado” existe para ser alcançado. Pensar que o Dzogchen é um estado a ser realizado,
imediatamente reifica o Dzogchen e enfatiza a dualidade que deve ser resolvida. Assim,
qualquer pensamento de que a presença pura é um estado como a euforia ou a
depressão, a certeza ou a dúvida, deve ser experiencialmente desconstruído no momento
de seu surgimento, assim como todo pensamento discursivo – qualquer crença – que
surja. Se a presença pura fosse um estado definível, haveria causas e condições que
afetariam esse estado, e haveria um efeito causado posteriormente por esse estado. Se a
presença pura fosse causada por certas condições, a formalização dessas condições
como técnica nos permitiria praticá-la, em um processo, em um caminho que levasse ao
destino, o objetivo, que seria um estado fixo. Esse estado iria parecer "existir
verdadeiramente" no espaço-tempo; mas uma vez que ele seria um produto da
causalidade, seria composto e, portanto, impermanente e uma parte da existência
condicionada, que é outro nome para o samsara. No reino samsárico, onde a ambição
zelosa é necessária para atingir qualquer objetivo válido, tons de inveja e rivalidade
inevitavelmente acontecem, mesmo nas mentes mais purificadas, porque a orientação
para um objetivo acompanhada de ambição é geralmente seguida de contenção. A
preocupação constante com o estágio do caminho e com o grau de realização perturbaria
a mente e, finalmente, "o estado" não poderia ser alcançado devido à preocupação de ter
ou não sido atingido. Longchenpa está convencido de que não há estado mental para ser
alcançado. Permitir o conceito de "estado" com base no fato de que é o estado da
cognição não-dual em oposição ao estado dualista da percepção é abusar do intelecto. É
como se o intelecto estivesse só esperando o pronunciamento de "um estado" para
reificá-lo e, em seguida, agarrá-lo, aderir-se a ele, defender-se e justificar-se através
dele. O pensamento e o conceito, então, precedem ou substituem a experiência real. Se o
conceito a precede, então isso é a penetração do pensamento pela consciência
primordial de dentro que permite a experiência; se o conceito foi subsequente à
experiência, então a percepção dualista já enlameou as águas.

Só de pensar: “É isso!” "Este é o estado!" então você já o perdeu, porque a presença


pura não pode ser objetificada e reduzida a um mero rótulo. Para agravar ainda mais a
situação, com nosso pronunciamento heureca, acrescentamos uma intenção de
permanecer nesse estado, pensando: “Como posso permanecer nesse estado?” e assim
conseguimos fixar o estado e sustentá-lo, então o que é estabilizado é um estado de
transe. Como é frequentemente citado, um estado de transe é a meditação dos deuses, ou
talvez um samadi dos rishis hindus, ou uma fixação do meditador budista que se perdeu.
O estado natural do ser autêntico, que é a situação em que descansamos sem fazer nada
– não abandonando nada nem adotando nada – não tem testemunha e, portanto, não
pode ser estabelecido ou recordado. A consciência autossurgida que é a realidade
daquele momento não tem atributos ou características. Então, como ela pode ser
chamada de "um estado"? E quem está lá para verificar a natureza desse estado? Quem
é a testemunha? É possível que alguém de fora possa realmente verificar o estado
mental de outra pessoa? Pode ser possível confirmar a probabilidade de um relato
insistente de alguém sobre um estado inefável, mas tal relato pode descrever apenas sua
passagem, como a cauda de um cometa que fornece evidência do corpo invisível que o
precedeu. O adepto do Dzogchen nunca pode fornecer evidências de sua consciência
não-dual; por essa simples razão ele pode ser anônimo.

Deve ser enfatizado e reiterado que, na visão, nunca pode haver distração, obstáculo ou
erro. O que chamamos de uma distração a partir de um objeto particular de foco é
definido por referência a uma fixação predeterminada, enquanto na visão a distração já
se tornou o objeto da não-meditação. Da mesma forma, embora no Vajrayana os
obstáculos e obscurecimentos possam ser tomados como o caminho, nesta visão do
Dzogchen nenhuma noção limitante como “obstáculos” e “obscurecimentos” pode
surgir. Não há metas nem funções causais pré-concebidas, então o que quer que ocorra,
perfeito como é, é a vasta espacialidade do agora. Não pode haver erro na realidade.
Tudo o que surge na visão da realidade é percebido imediatamente como perfeito em si
mesmo, e conhecido como um campo de igualdade em que nada tem maior virtude do
que qualquer outra coisa. Além disso, não pode haver erro porque não há ninguém para
definir certo e errado e ninguém para definir uma inclinação de preferir uma coisa à
outra. Não há erro porque o erro em si é a natureza da mente, uma vasta matriz de
espaço. Não há erro porque a verdade relativa e absoluta são uma só realidade; cada
momento de nossa consciência no aqui e agora demonstra isso. Somente quando o
intelecto, em seu modo de percepção dualista, separa absoluto do relativo, é que a noção
de um estado ideal de consciência distinto do momento presente pode surgir. E há o
cerne da delusão do samsara: o pensamento de que algo realizável existe, de que um
objetivo existe para ser conquistado – lá fora ou aqui dentro – um estado superior ao
que temos no agora, necessariamente exacerba a dor e a tristeza que originalmente
motivou tal pensamento. A insatisfação que motiva o desejo por melhoria acarreta um
ciclo interminável de insatisfação. Presos nesse loop eterno, sofremos na roda cíclica do
samsara de renascimento e delusão. No início de todo pensamento, antes que ele seja
apreendido, está a clareza e a vaziez do darmakaya, a espacialidade da natureza da
mente, e, neste lugar, nenhum erro ou engano pode ser cometido.

Finalmente, neste décimo capítulo tratando a visão, aqui está uma digressão sobre a
noção de reencarnação. Para o adepto do Dzogchen, no processo instantâneo de
desilusão que é toda fatia atemporal do aqui e agora, a noção de renascimento, como
todas as crenças, deve ser existencialmente desconstruída. Como cada percepção
sensorial, interna ou externa, como todo pensamento à medida que surge, a noção de
reencarnação deve ser desvendada e desdobrada, de modo que seja entendida como seu
constituinte da realidade – a espacialidade. Como tal, nós a conhecemos como a
igualdade, a mesma espacialidade como todo pensamento e, de fato, toda percepção.
Nesse conhecer, nos livramos do apego a formas de pensamento particulares e
alcançamos a faculdade de utilizar todas as crenças de acordo com as necessidades das
pessoas. Isso pode ofender alguns budistas, mas nosso apego a todas as formas de
pensamento particulares deve ser liberado, e isso inclui a noção de renascimento.

A noção de renascimento é aparentemente tão profundamente arraigada no


subcontinente indiano quanto o conceito de céu e inferno deve ter sido na Europa
medieval. No século VI a.C, na época de Buda Shakyamuni, a transmigração após a
morte era quase certamente universalmente aceita. Podemos supor que, porque a noção
de renascimento era uma suposição básica inquestionável sobre a existência, duvidar
disso era lançar-se em descrédito social e religioso. Em vez de discutir o caso em sua
pregação popular, Shakyamuni preferiu não abordar o assunto e, por essa razão, isso não
é tratado nos sermões exotéricos que mais tarde seriam consagrados nos sutras
canônicos. "Se seguirmos o caminho óctuplo nesta vida, o que quer que aconteça depois
da morte cuidará de si mesmo da melhor maneira possível", foi seu ensinamento. Se
substituirmos "siga o caminho óctuplo" por "relaxe na natureza da mente", essa é sem
duvida a atitude do Dzogchen. O renascimento é apenas outra crença obstinada, como a
crença na terra plana; como a crença em uma alma substancial e pesada; como a crença
na superioridade da raça branca; como a crença de que o sol circunda a terra; como a
crença no big bang no início dos tempos; como a crença no motor de combustão interna;
e como a crença na aerodinâmica contemporânea. Assim como é extremamente
imprudente, contudo, afirmar absolutamente a ausência de causalidade quando no
próximo momento o samsara pode reprimir e a ignorância da lei de causa e efeito nos
coloca em uma passagem perigosa, o imenso abismo do reino inferior se abre embaixo
de nós, ou, talvez, quando em um lampejo de insight, vemos que o samsara é,
indiscutivelmente, a criatividade da mente luminosa, por isso é tolice negar
inflexivelmente a possibilidade de renascimento. A continuidade do espaço-tempo nesta
vida, afinal, parece ser quebrada ocasionalmente por uma morte metafísica e um
renascimento subsequente, como a instrução do Dzogchen nos bardos – os estados
intermediários – implica. Só podemos dizer que, à luz da matriz não-dual do aqui e
agora, não pode haver renascimento, embora nas emanações imprevisíveis e variáveis
do espaço-tempo tudo e qualquer coisa seja possível.
VISÃO

“A visão-do-guru é idêntica à verdadeira realidade.”

A mente luminosa com sua natureza primordialmente pura,


A realidade invariável que não tem nada para expurgar ou abraçar,
Uma matriz semelhante-ao-céu, uma realidade que não pode ser procurada
e encontrada,
Brilha como luz estelar simplesmente ao descansarmos em sua natureza.

Os campos sensoriais não se cristalizam aqui, a mente não é reificada,


E sendo imóvel a partir da espontaneidade essencial,
Chegamos à visão-do-guru da vasta extensão do todo-bom.

Espaço cristalino, livre de alternância e pulsação,


Como um oceano pacífico, imaculado e translúcido,
Na simples e clara realidade da consciência autossurgida no agora,
Descansamos livres da esperança e do medo flutuantes.

Em um espaço pré-verbal livre de compulsões habituais,


Naturalmente disposto, não-fingido, não-elaborado e sem mácula,
Sim! Absorvido pela matriz na realidade que não tem atributo,
Nem meditação nem nada para meditar é possível.
A bipolaridade libertada torna-se a visão da realidade autossurgida.

Todos os padrões básicos de pensamento, a criatividade da presença pura,


Podem ser renunciados, mas não são eliminados;
Em sua realidade, onde não há diferenciação ou exclusão, nenhuma
distinção pode existir,
Eles podem estar presentes, mas não podem ser definitivamente estabelecidos;
Sua verdadeira realidade é conhecida simplesmente e apenas como sua
espacialidade.
Sem rejeitar o samsara, nós o vemos como a consciência autossurgida no
agora,
Visionado através da pura autenticidade como a criatividade da supermatriz.
No agora, as aparências sensoriais e a mente se nivelam como a realidade,
Onde a contemplação silenciosa ocorre em um fluxo ininterrupto.

Este é o pico vajra, a mente búdica suprema totalmente boa,


O evento mais sublime e espaçoso, tão elevado quanto o céu.
Sem diferenciação ou exclusão, a meditação suprema
Investe o agora, o maravilhoso senhor que é a espontaneidade.

No agora, a clara luz empoderadora é um contínuo,


Uma espontaneidade em que nada é expurgado ou adotado:
Tal é a visão suprema – samsara-nirvana como a espacialidade.
E esta própria supermatriz como-o-céu, imóvel e inefável,
No agora, é a disposição natural de todos os seres.

Ver as aparências como ‘outras’ que não a face original é delusão;


E a crença na meditação e no esforço moral é igualmente delusão.
A verdade da delusão é um campo de igualdade, um estado de repouso;
Mas na matriz que é imóvel e alfa-pura,
Não pode haver ação ou esforço, nem repouso nem não-repouso.

Olhando para a realidade que é a espontaneidade imutável


Com sua presença intrínseca livre de interferência intelectual,
Olhando de novo e de novo, não vemos nada –
O não-ver é a visão empoderadora da presença pura.

Na presença pura indiscriminada que não pode ser cultivada,


Perseguindo a meditação, vemos que não existe nada para meditar –
A não-meditação é a meditação empoderadora da presença pura.

No modo de ser não-dual que é livre de discriminação,


Na conduta disciplinada, vemos que nada existe para praticar –
A não-disciplina é a conduta empoderadora da presença pura.

Seguro no agora, na espontaneidade livre da esperança e do medo,


Na repetitiva realização, não vemos nenhuma realização –
A não-realização é a realização empoderadora da presença pura.

Na igualdade os objetos não são conceitualizados,


Nem a mente é reificada, a esperança e o medo tão flutuantes cessam;
Vivendo no espaço onde objeto e mente são idênticos
A realidade nunca se move da matriz,
Nada é objetificado no campo dos atributos,
E então, assim, somos empoderados.
No agora, através de sua consciência empoderadora não-dual,
A grande perfeição, inseparável do samsara e do nirvana,
Sem qualquer dar ou receber é uma uniformidade onipresente.

Matéria e espírito são os mesmos na espacialidade intrínseca,


Budas e seres sencientes são os mesmos na espacialidade intrínseca,
Absoluto e relativo são os mesmos na espacialidade intrínseca,
Pecado e virtude são os mesmos na espacialidade intrínseca,
As dez direçõesi são todas iguais na espacialidade intrínseca.
Consequentemente, tudo que surge como a exibição autossurgida,
Em seu inicio, tudo é igual, nada melhor ou pior,
Assim, qual a utilidade de antídotos positivos ou negativos?
Em sua permanência, todas as coisas são as mesmas, nada melhor ou pior,
Então deixe o que quer que surja na mente cessar em si mesmo agora!
Em sua liberação, todas as coisas são as mesmas, nada melhor ou pior,
Então, por consequência, por que fazer qualquer julgamento?
________________________
i
Direções cardeais e intermediárias, zênite e nadir.

Tudo que surge como a mente luminosa na base do ser,


Surgindo como criatividade ou exibição, tudo é indeterminado:
Surgindo igualmente indeterminado na matriz original do agora,
Embora isso possa pareça surgir sem ambiguidade,
Tudo surge como a igualdade da espacialidade intrínseca;
Mais uma vez, tudo o que existe é o mesmo em repouso na realidade,
Embora a dissimilaridade possa parecer existir
Tudo permanece na igualdade da espacialidade intrínseca;
E novamente, liberado e autossurgido na matriz da consciência primordial,
Mesmo que isso possa não parecer ser liberado,
Na verdade, é liberado na igualdade total da espacialidade.

Na presença autossurgida, tudo é igual no agora,


Surgindo ou não-surgindo
Tudo é sempre ausente na espacialidade intrínseca;
Permanecendo ou não-permanecendo
Tudo é sempre ausente na espacialidade intrínseca;
Liberado ou não-liberado
Tudo é sempre ausente na espacialidade intrínseca.

Na presença pura da igualdade imutável,


No início, surgindo espontaneamente,
Tudo é conhecido em sua espacialidade intrínseca;
À medida que permanece, permanecendo espontaneamente,
Tudo é conhecido em sua espacialidade intrínseca;
E na dissolução, dissolvendo-se espontaneamente,
Tudo é conhecido em sua espacialidade intrínseca.

Na presença pura imutável e não-elaborada,


Tudo o que surge, surge no agora,
Tudo o que permanece, permanece no agora,
Tudo o que se dissolve, é liberado no agora,
E sua natureza é como o céu.

O surgimento, permanência e liberação coincidentes são um fluxo ininterrupto –


Nenhuma interrupção no surgimento e dissolução é possível;
Em um fluxo ininterrupto, causa e efeito são inseparáveis,
E porque a causalidade é inoperante, o abismo do samsara é atravessado,
E se o abismo é atravessado, o declínio é evitado.

A matriz de Kuntuzangpo é o invariável agora;


A matriz de Vajrasatva é incapaz de alteração ou sublimação;
O simples reconhecimento da natureza do ser é rotulado “buda”.

Com essa percepção, nada a adotar ou abandonar,


Tudo é nivelado em sua realidade única –
Na Ilha de Ouro todas as coisas devem ser de ouro.

Onde não há parâmetros e nenhuma limitação,


O desvio é impossível e os véus são transparentes;
Então, na mente luminosa, nenhum queda é possível,
As três dimensões são espontâneas, sem esforço, completas
E a frase "inimaginável e inexprimível" é uma mera figura
de linguagem.

Com as aparências sensoriais desfeitas, a presença pura autossurgida


resplandece,
E sendo desvelada, sem dentro ou fora, as aparências são transparentes –
Na disposição natural genuína, tudo brilha na realidade suprema.
Relaxando nosso corpo-mente na satisfação,
Livremente à vontade, como alguém que não tem nada a perder,
Nem tenso nem frouxo, o corpo-mente descansa confortavelmente.

Não importa como nos sentimos, permanecemos na natureza da mente;


Não importa como vivemos, residimos na natureza da mente;
Não importa como nos movamos, nos movemos na natureza da mente.
Na espacialidade luminosa, o ir e vir são impossíveis –
Não há movimento na dimensão dos vitoriosos!

Tudo o que dizemos reverbera como a natureza da mente;


Tudo o que é expresso é articulado como a natureza da mente:
Na mente luminosa nenhuma expressão verbal se manifesta,
Pois o discurso dos vitoriosos é inefável.

Quaisquer que sejam as ideias que surjam, são pensadas como a natureza da
mente;
Quaisquer que sejam os conceitos que surjam, são concebidos como a natureza
da mente:
Na mente luminosa, ideias e conceitos nunca existem verdadeiramente
Pois a mente dos vitoriosos é uma mente sem pensamento.

A ausência que ocorre como qualquer coisa é o nirmanakaya;


O gozo da natureza da mente é o sambogakaya;
A ausência de qualquer base substancial é o darmakaya:
As três dimensões como a fruição compreendem a matriz da espontaneidade.

Na supermatriz espaçosa da mente luminosa


Nenhum pensamento discursivo surge;
Se a mente comum é livre dos sinais de percepção,
Essa é a visão do estado búdico holístico.

A luminosidade, em essência, como o firmamento espaçoso do céu,


Sem pensamento ou conceito, é a meditação suprema;
A luminosidade, em essência, como a abóbada espaçosa do céu,
Sem pensamento ou conceito, é a meditação suprema,

Nada além de nossa própria natureza imóvel e não-elaborada,


Sem atividade mental, nada é gerado na mente,
Essa é a realidade, naturalmente disposta, nada mudando no tempo,
A meditação suprema, onde o movimento do pensamento cessa.

O que quer que repouse nessa natureza intrínseca é a mente sagrada e


destemida;
É o estado búdico holístico, livre de todos os atributos;
É a espacialidade imóvel que equaliza todos os conceitos reificantes;
É a matriz da visão dos vitoriosos, a extensão suprema do nosso ser.
Abandonando as correntes do corpo-mente fabricado,
No relaxamento não-fingido, independentemente de quaisquer formas de
pensamento fomentantes,
Quando nos sentamos na base do ser e permanecemos nessa realidade,
Tudo é a vasta e totalmente boa matriz da visão.

Livre do estresse do dar e receber compulsivo,


Somos desinibidos, naturalmente dispostos em nosso próprio ser;
A matriz sem parâmetros é uma uniformidade onipresente e imóvel,
E todas as formas de pensamento desaparecendo por si mesmas e em si mesmas,
Essa é a visão semelhante-ao-céu de Vajrasatva.

Se somos não-distraídos da matriz autêntica da mente luminosa,


Embora nos envolvamos com o campo mental, isso também é a realidade;
Mas se essa realidade é adulterada por qualquer compulsividade,
Embora a matriz seja livre de pensamento e espaçosa como o céu,
Ficamos presos em uma gaiola de conceitos reificados.

Podemos meditar continuamente dessa maneira – mas isso não passa de


um transe,
E o transe, disse Shakyamuni, é semelhante à meditação dos deuses.
Portanto, é crucial que a mente seja não-distraída e sem motivação,
Permanecendo em sua disposição natural, transcendendo a orientação por
objetivos.

Uma vez que a consciência autossurgida no agora é zero-dimensional,


Nenhuma "coisa", "meta" ou "ideal" é indicado nela,
Pois toda elaboração mental naturalmente entrou em colapso.
Os estratagemas intelectuais e agendas racionais foram abandonados.
E assim nos familiarizamos com a extensão sublime sem base.

A única realidade holística é a consciência autossurgida no agora;


A única visão holística é livre de opiniões discursivas;
A única meditação holística não carece nem quer nada;
A única conduta holística compreende o dar e o receber não-dual;
A única fruição holística detesta a preferência moral:
Essa é a visão-do-guru autossurgida da espontaneidade.

O universo, material e espiritual, samsara e nirvana –


Toda experiência, seja qual for, é a realidade desde o princípio;
Uma vez que ela não pode se desviar da própria consciência autossurgida,
Toda experiência está disposta como a base do ser:
Essa é a visão-do-guru.

Em relação à realidade aparecendo como um campo multifacetado,


Sem se preocupar com qualquer disposição preceptiva,
Simplesmente descanse na mente naturalmente disposta e não-pulsante,
E assim permanecemos naturalmente na realidade que é a matriz da igualdade.

Em relação às formas da aparência sensorial em um campo de dualidade,


Não focando os sentidos nem deixando o olhar vaguear,
Livre de um senso de "eu" ou uma ideia de "outro",
Nós permitimos que a claridade natural brilhe em uma vasta abertura
uniformizada.

Na visão da consciência autossurgida e todo-idêntica do agora,


Quando livre de pulsação, a mente é expandida e intensificada,
Experimentando o espaço integral livre de fora, dentro e entre,
A contemplação clara e bem-aventurada, livre de elaboração discursiva,
surge.

Em relação à visão da realidade que é imóvel na base quiescente,


Não existe exterior nem interior, nem elaboração de dualidade perceptiva,
E uma vez que não há uma mente que fixa "objetos" como outros,
Nada existe para se apossar e nenhum apego à percepção,
E nenhum lugar no samsara para renascer – há apenas o céu!

Quando a mente não é concebida como um “si mesmo” no interior,


Não há nada para agarrar e nada para se apegar,
E todas as suposições habituais sobre a existência condicionada desaparecem,
E a “pessoa” para renascer no samsara desaparece.
Neste ponto, onde exterior e interior são ambos como o céu,
A experiência delusória não pode ser concebida ou imaginada,
E chegamos à visão do darmakaya.
Tocando a resolução final, com o ir e vir agora banidos,
Nós alcançamos a cidadela suprema do darmakaya,
Os campos puros da matriz todo-saturante do Todo-Bom.

Se a presença pura do agora não se afasta da base do ser,


A familiarização com ela impede que a existência condicionada se fortaleça
E o carma e o hábito que perpetuam o renascimento se esgotam;
Com a causalidade resolvida, dizemos que o samsara e o nirvana são idênticos,
E não estando nem na existência condicionada nem na cessação pacífica
Chegamos ao núcleo do coração luminoso,
Isso definitivamente não é um estado de permanência calma unidirecionadai –
É a visão da grande perfeição natural.

Quando vacilamos e perdemos a ancoragem com o espaço essencial,


A mente intelectual em ação se torna o próprio samsara,
Envolvendo a concatenação causal que impede a resolução,
E, inevitavelmente, nós caímos mais e mais.
O segredo supremo, a grande perfeição, por outro lado,
Nunca se desvia da espacialidade intrínseca
E as formas de sua criatividade naturalmente se dissolvem em sua fonte:
Essa visão é a visão da imutável igualdade.
____________________
i
Zhi gnas: meditação shamata.

Nesta visão, o esforço dirigido a um objetivo é impossível,


Então, a visão, por exemplo, não pode ser cultivada;
Porém, fora deste espaço onde centro e circunferência são unificados
A criatividade projeta sua exibição em outra dimensão,
Onde ela aparece como a variedade multifacetada do universo:
Nunca diga categoricamente que causa e efeito não existem!

A complexidade que surge da interdependência é incalculável;


Os estados da delusão samsárica e da alegria nirvânica são incalculáveis:
Uma massa de causas e condições constitui uma sublime sincronicidade.

Quando identificamos nossa natureza autêntica, nada pode ser dito;


Da mesma forma, tomando a autenticidade como o caminho, totalmente
comprometidos,
Conhecendo-a apenas em momentos de visão não-conceitual e não-imaginada,
Consumidos por ela, estamos completa e transparentemente nus.

Nesta supermatriz, emoção aflitiva, carma e hábito


Criam jogos aparicionais de ilusão mágica.
Para ficarmos livres disso, por favor, resolvamos a causalidade.
Nosso método é supremo:
Nunca, nunca se desvie da visão da realidade,
E valorize o terceiro excluído!i
Esse é o ponto crucial do meu sincero conselho.
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Kun yin kun min yin min: “Além do positivismo e do niilismo, além do ‘é’
e ‘não é’”.
Canto Onze: Pureza

Introdução

Pureza é um sinônimo próximo de vaziez. Pureza é a clareza transparente de um riacho


na montanha em movimento. Pureza é a natureza do céu e a natureza da espacialidade
de toda experiência humana. Então, o que é uma situação "pura"? Um evento "puro"?
Certamente não tem nada a ver com moralidade. Toda e qualquer experiência é tornada
pura, diz Longchenpa, pela pureza intrínseca da cognição. Ele está se referindo à
cognição que está implícita na presença pura. A pureza reside tanto na espacialidade do
aspecto objetivo da consciência quanto na espacialidade de seu aspecto interno e
subjetivo; mas esses dois aspectos são um só no conhecer experiencial do agora. Pureza
é, portanto, outra palavra para a mente luminosa.

Para imaginar esta experiência unitária pura do agora, podemos nos voltar para o togal,
ou melhor, para a realidade da unidade de trekcho e togal. Aqui a noção de um campo
“nivelado” de cor e forma ilusória, um campo no qual todas as distinções foram
removidas, ainda que mantendo um leve indício de que algo ainda pode estar lá, serve
para invocar a visão de togal. Esse campo nivelado ou uniformizado é a igualdade de
toda experiência. Da mesma forma, considere um processo de constante – momentâneo
– desdobramento do aspecto objetivo da percepção sensorial de modo que uma ilusão de
um plenum de pureza constante apareça, embora alguns vestígios do que foi desvelado
permaneçam. Certamente, esse plenum de pureza não é um vácuo espaçoso, e ainda
assim nada substancial – nem mesmo um bóson de Higgs – existe lá. O que, de fato,
permanece quando as complexidades da percepção intelectualmente informada se
desenrolam, seja essa percepção um campo objetivo aparentemente externo de
partículas subnucleares, ou um campo interno de consciência mental? Talvez os
vestígios de tais percepções possam ser melhor descritos como um campo “pixelizado”.
Assim como os pixels de uma tela LCD são a base invisível (à distância) de uma
imagem visual multicolorida, a espacialidade das aparências é revelada aos sentidos. A
resolução do senso de entidades aparentemente concretas é a parte de trekcho, enquanto
a percepção da pixelização é a parte de togal, e é claro que essas duas partes são uma só.

Este “campo pixelizado” sintetiza bem a visão de trekcho e togal. Ele descreve a visão
da totalidade da presença pura que é uma espacialidade intrínseca, mas ele fornece um
status ontológico igual ao aspecto da vacuidade e seu brilho. Esse brilho é o que às
vezes é percebido e descrito em termos de tikles e é nesse conceito que a noção de
pixels tem sua origem. Da mesma forma que os pixels compreendem uma fotografia ou
uma tela de computador, assim, em uma construção tridimensional orgânica, eles
compreendem todo o campo visual. É esse campo que é indicado em togal como a
presença pura visível. É o mesmo campo indicado em trekchö como a espacialidade
não-dual. Assim, a frase “espaçado na pixelização” pode descrever o modo de
Vajrasatva!

A “não-ação” é uma noção fundamental do Dzogchen radical que Longchenpa absteve-


se de consagrar em um canto próprio, mas mesmo assim a apresentou em todos os
cantos. Esse canto pode parecer tratar preceitos sobre meditação, mas Longchenpa, em
seu auto-comentário, o considera como uma instrução sobre a conduta. Ele lhe dá o
título, “Repousando na Conduta Não-Artificial”. A conduta não-artificial é sinônimo de
não-ação. A não-ação inclui toda conduta, toda atividade e todo comportamento. A não-
ação inclui toda e qualquer atividade que seja. Nesse caso, a não-ação é como a ilusão
de um cubo estático dentro da roda giratória de um veículo em movimento. Os preceitos
articulados neste canto, embora pareçam estar descrevendo uma atividade mental
particular, são, na verdade, o cubo estático da roda de um veículo em movimento –
todas as funções descritas são atributos da disposição natural da mente, que é alcançada
apenas ao não fazer nada. O "reconhecimento" não deve ser considerado uma ação e
suas qualidades não podem ser reificadas. Tudo é a presença pura.

Neste décimo primeiro canto, Longchenpa menciona a tendência natural ao segredo. O


segredo é a função automática da presença pura por causa de um entendimento inato de
que qualquer comentário sobre o ensinamento do coração é inevitavelmente
interpretativo – certamente qualquer processamento intelectual da experiência do aqui e
agora é interpretativo e, portanto, depreciativo – e o tom de sentimento de uma
apreciação exagerada da natureza da mente está em desacordo com a visão-do-guru. A
realização da budeidade e sua articulação simultânea estão fora da restrição contra o
segredo. A tendência do adepto de compartilhar verbalmente a experiência da natureza
da mente com aqueles que não tiveram tanta sorte se dissolve em sua origem na pureza
da presença pura.

PUREZA

“Todas as situações são puras como o céu.”

Dentro da mente luminosa unitária,


Tudo sendo igual ao céu,
A percepção dualista nos ilude
Com a existência causal e condicionada;
Apreciando essas aparências delusórias sem base
Como uma ilusão mágica
Através da percepção direta, sem cálculo,
Nenhum vestígio permanece.

Quando a raiva, desânimo, inveja, problemas, irritação,


Ansiedade, depressão, dor mental,
Medo da morte e do renascimento e assim por diante,
Acompanham uma reação negativa a eventos indesejáveis,
Reconheça isso em sua origem como uma exibição do poder criativo.
Não o rejeite nem ceda a isso, nem tente purificar ou o alterar,
Mas, antes, sem aplicar visão ou meditação,
Na totalidade uniformizada naturalmente disposta,
Livre de pensamentos e imagens pulsantes, descanse sem autoconsciência.
A matriz do céu da mente expansiva, auto-dissolvente e sem traços,
Então surge como um brilho intenso e claro de dentro.

Com a presença irrestrita que nem "é" nem "não é",


Aqui, olhamos diretamente para a aparência sensorial desfocada,
Aqui, como descansamos naturalmente no espaço inapreensível,
Aqui, o juízo de valor subliminar desaparece sem deixar rastro,
E aqui, a experiência não-fixada brota de dentro.
Isso, simplesmente, é a matriz da visão-do-guru na vastidão do agora.

Da mesma forma, quando estamos desejosos e alegremente realizados


Pelo sucesso fácil, amigos, boas notícias, prazer na riqueza,
E por lugares e vistas, esse prazer enriquece a mente com alegria.
Reconheça isto, e naturalmente disposto, descansando livremente,
A espontaneidade não-elaborada ocorre na espacialidade prístina.

Quando um estado neutro de indiferença não-afetada nos possui,


Não importa o que surja, nem agradável nem desagradável,
Reconheca-o em sua origem, sem repressão ou indulgência,
E isso cai em sua própria realidade naturalmente disposta
Onde nem diferenciação nem exclusão colidem:
E “o embotamento é liberado na sublime clara luz”.

À noite, ou sempre que o sono nos alcançar,


Deitado, naturalmente disposto, livre de pulsação mental,
As aparências brutas cessarão e com elas nosso apego.
Quando o apego ao sutil e ao mais sutil também desapareceu,
A mente como a presença pura em seu aspecto de igualdade sem-pensamento
Permanece em sua própria natureza, livre das aberrações da esperança e do medo.
Neste momento, todas as construções básicas do pensamento são liberadas em sua
espacialidade intrínseca,
E isso é descrito como "a liberação do samsara no nirvana".

Assim como no sono, na prístina supermatriz autossurgida,


A expressão criativa se dissolve na espacialidade básica essencial,
A elaboração percebida lá como a exibição cessou por si só.
Na visão-do-guru, tal é a consciência autossurgida involuntária.

Dessa forma, todos os estados mentais desejáveis, indesejáveis e neutros,


Os três venenos,i surgem na criatividade como exibição,
Emergindo da espacialidade intrínseca como espacialidade,
E uma vez que ela inclui tudo, nada é excluído,
Nada nunca se move um milímetro da espacialidade intrínseca.
Evitando antecipá-la ou manipulá-la,
O reconhecimento da espacialidade em si, e o repousar nela, é crucial.
Por isso, cessa naturalmente, desaparecendo, se libera tal como é.

Emoções aflitivas, carma e propensões habituais


Surgem como as exibições mágicas ilusórias da criatividade,
E mesmo os métodos de melhoria no caminho da liberação
Surgem como uma exibição mágica ilusória da criatividade:
Tudo surge no agora como a exibição da criatividade
E é crucial reconhecê-la sem modificá-la de qualquer forma.
Tudo é igual na postura e no andar,
É o mesmo em relação à base,
Ela transcende as circunstâncias, a complexidade e a causalidade,
E uma vez que a causalidade foi superada, descansando livremente,
Nós prezamos nossa disposição natural.

Este então é o pico da suprema abordagem secreta.


Não fale sobre isso com os de pouca perspicácia – mantenha-o altamente
secreto.
A interpretação irá distorcer o ensinamento do coração,
E uma apreciação exagerada está em desacordo com a visão.
Violadores do segredo caem eternamente nos reinos inferiores,
Então, o legado dessa abordagem secreta soberana,
Este ensinamento é recebido apenas pelos poucos destemidos afortunados.

Em suma, não importa qual situação surja


Não se envolva nela para melhorá-la ou para tentar suprimi-la,
Pois a chave é a presença pura, naturalmente disposta, descansando
livremente.
A presença pura pode ocorrer como prazer ou dor,
Mas se discriminarmos entre eles
Nós ficamos presos na existência condicionada.
________________________
i
Dug gsum: luxúria, ódio e preguiça.

Tudo o que aparece no campo sensorial é o mesmo,


É a claridade em face ao órgão sensorial;
Tudo o que surge na mente é o mesmo
É o mesmo pensamento sem traços;
A junção de cada objeto com a mente é a mesma,
É o mesmo padrão de reação dualista vinculativa;
Na verdade, em última análise, todas as percepções são a mesma,
Elas são todas sem fundamento, aparências sem base;
Todos os objetos sensoriais têm a mesma tendência
Todos eles se tornam sem vestígio em seu desdobramento;
Os estados mentais têm a mesma face original,
Uma face de espaço como sua identidade;
O objeto e a mente são não-duais – tudo é o puro espaço aberto:
Quem quer que conheça isso é o herdeiro do Todo-Bom,
O supremo bodisatva, o mais alto vidyadara.

Portanto, toda experiência, sendo igualmente ausente, é idêntica,


Sendo igualmente aparente e igualmente vazia, igualmente verdadeira e
igualmente falsa,
E assim podemos dispensar todos os antídotos, todos os esforços, todas as fixações,
É o espaço na igualdade sem objeto;
O espaço na presença maravilhosa sem-mente;
O espaço na igualdade infalível e insuperável.
Canto Doze: Liberação

Introdução

Em mentes racionais treinadas para ignorar ou rejeitar o "terceiro excluído", o humor


imperativo do verbo tende a invocar uma resposta defensiva ou entusiasta. Todos que
foram condicionados por um sistema educacional projetado para induzir a ordem,
estabelecer categorias fixas e raciocínio lógico, tendem a reagir com um extremo ou
outro. Aqueles que passaram por um campo de treinamento subsequente, onde a
resposta ponderada é substituída pela obediência instintiva, podem responder
imediatamente e sem considerar os comandos diretos. Obediência e sensibilidade moral
parecem ser mutuamente exclusivas. Então, aqui, nesta tradução e comentário, a voz
imperativa foi mantida a um mínimo, e mesmo a voz exortativa às vezes é suavizada.
Em algumas circunstâncias, no entanto, um imperativo pode funcionar como a sílaba
PHAT, como um alerta, como uma explosão que clareia a mente e liberta o espírito.
"Liberdade" é a palavra relevante aqui, pois sem esvaziar a mente, sem reconhecer a
vaziez da mente, não podemos reconhecer o processo natural de liberação que é o
equivalente a conhecer o surgimento e a dissolução simultâneos e sem vestígios do que
quer que surja na consciência.

Essa liberdade é coincidente com a não-ação. A não-ação não deve ser entendida
simplesmente como ficar quieto e permanecer imóvel por um determinado período. Não
é uma questão de manter a voz e a energia do corpo-mente em silêncio e imóvel.
Enquanto a mente estiver condicionada a alcançar metas baseadas em um conjunto de
princípios, restrições ou preceitos, e habitualmente fizer escolhas discriminatórias para
atingir esses objetivos e permanecer fiel aos princípios, quando o corpo-mente for
liberado de sua sessão formal de meditação ele automaticamente retornará à “ação”. A
evidência dessa ação será vista na constância de suas preferências e preconceitos, em
seu cultivo habitual de uma coisa e sua renúncia à outra, em seus gostos e desgostos
incorporados, em seus esforços e em sua busca. A não-ação, ao contrário, se expressa
como a espontaneidade, sem qualquer padrão ou motivação egoísta, uma resposta
involuntária e não-elaborada – ou vamos chamá-la de compaixão.

A essência desta instrução sobre a liberação é a afirmação da liberação como um reflexo


automático da criatividade da presença pura. Ao contrário de uma bolha de sabão
estourando adventiciamente no céu, ao contrário do processo de morrer, quando a
extensão do tempo de vida foi alcançada, a aparente manifestação e liberação da
criatividade são simultâneas – e, portanto, não tem extensão no tempo. Por esta razão, é
dito que "não deixa nenhum resíduo". Esta liberação momentânea – ou constante – é
imaginada como uma trajetória de voo de um pássaro no céu. No entanto, o processo
reflexivo é inibido por uma ausência de confiança nele. Em outras palavras, o
reconhecimento é necessário para que a liberação reflexiva se dê. Através da confiança
que é capaz de soltar o agarramento habitual a um objeto fixo na consciência pelo
processo sensorial, o processo reflexivo é reconhecido. Essa confiança é gerada pela
experiência de relaxamento na natureza da mente. Ela pode ser coincidente com a não-
ação e a liberação ou, talvez, continuar presente no clarão da experiência iniciática. A
confiança é fortalecida pelo efeito bola de neve, à medida que a familiarização com a
liberação reflexiva cresce.

Em suma, a função de uma mente repressora e apegada, no tempo ou através dele, é


reificar cada evento, e acreditar que o evento é real e concreto, para se envolver com ele
em um quadro positivo ou negativo e percebê-lo como sendo bom ou mal.
Concomitantemente inventando uma cadeia causal, irrefletidamente ou não, imaginando
– fabricando – uma causa primária para o evento e também um efeito primário, a causa
é o resíduo cármico de um evento anterior e o efeito é o resíduo desse evento que será
entendido como a causa de um evento futuro. Cada evento, portanto, reforça propensões
que, como uma agregação, definem nossa personalidade e destino samsárico.

O "resíduo" torna-se os tijolos e argamassa do carma com o qual uma prisão é


construída para nós em um dos seis reinos míticos. A confiança inerente à não-ação e ao
estado natural do ser que é desencadeada na não-ação nos permite reconhecer o
processo natural de liberação. Nessa liberação, propensões mentais habituais são
desenraizadas, a boca do carma desaparece como o desaparecimento do rosto de um
gato Cheshire, o impulso cármico se exaure – os ventos do carma enfraquecem, de
modo que o sofrimento implícito pelo nascimento é anulado e o corpo de luz é
facilitado.

A dúvida que o intelecto levanta na ausência de confiança gerada na experiência


iniciática é sempre ilusória. Como a primeira estrofe deste canto afirma e sucessivas
estrofes reafirmam, não há nada na realidade que não seja liberado; somente na delusão
samsárica parece que algum resíduo é deixado por eventos mentais. Com confiança na
liberação, as visões ilusórias do samsara induzidas pelo carma, são reconhecidas
primeiro como as interações lúdicas do espaço multicolorido tracejado por estrelas e,
finalmente, na consumação da realidade.

LIBERAÇÃO

"Toda experiência é liberada no agora na mente luminosa."

Toda experiência é liberada aqui e agora na mente luminosa –


Um evento não liberado é impossível.

O samsara é liberado no agora,


Liberado como pureza alfa;
O nirvana é liberado no agora,
Liberado como perfeição espontânea;
As aparências são liberadas no agora,
Liberadas em sua ausência de base;
A vida é liberada no agora
Liberada em seu coração luminoso;
A elaboração mental é liberada no agora,
Liberada em sua ausência de limites;
A ausência de forma é liberada no agora,
Liberada como potencial puro.

Os prazeres são liberados no agora,


Liberados em sua realidade equalizada;
O sofrimento é liberado no agora,
Liberado na extensão básica onipresente;
A não-paixão é liberada no agora,
Liberada no darmakaya semelhante-ao-céu;
A pureza é liberada no agora,
Liberada em sua autenticidade vazia;
A impureza é liberada no agora,
Liberada na suprema liberdade espaçosa.

Os níveis e caminhos são liberados no agora,


Liberados na ausência dos estágios de criação e realização;
Visão e meditação são liberadas no agora,
Liberadas na não-discriminação;
A conduta é liberada no agora,
Liberada no Todo-Bom;
O objetivo é liberado no agora,
Liberado na ausência de esperança e medo;
Os samayas são liberados no agora,
Liberados na realidade suprema;
A recitação é liberada no agora,
Liberada na expressão não-verbal;
A contemplação é liberada no agora,
Liberada na ausência de um campo de pensamento.

Afirmação e negação são liberadas no agora,


Liberadas no caminho do meio;
A crença dogmática é liberada no agora,
Liberada na ausência de fundamento;
A autenticidade é liberada no agora,
Liberada na ausência de preconceito;
A inautenticidade é liberada no agora,
Liberada na indeterminação;
O carma é liberado no agora,
Liberado em sua transparência;
A emoção aflitiva é liberada no agora,
Liberada no completo desinteresse;
A propensão cármica é liberada no agora,
Liberada em sua ausência de base;
O resultado cármico é liberado no agora,
Liberado na descontinuidade da experiência.

O método antidotal já está liberado


Liberado na autossuficiência,
Liberado na vasta extensão como-o-céu do dar e receber não-dual;
A catarse é liberada no agora,
Liberada na não-repressão;
A repressão é liberada no agora,
Liberada na liberdade semelhante-ao-céu;
O relaxar livremente é liberado no agora,
Liberado pela ausência de qualquer coisa para relaxar;
O descansar livremente é liberado no agora,
Liberado pela ausência de qualquer coisa trazida para descansar.

Em suma, toda percepção sensorial consciente,


E tudo o que é inconsciente ou transcendente,
Tudo já está liberado na espacialidade do agora,
Portanto, qualquer tentativa de liberar algo de novo é supérflua.

É inútil tentar se liberar!


Não tente! Não tente! Não lute ou se esforce na prática!
Não procure! Não procure! Não busque a verdade intelectual!
Não medite! Não medite! Não forje a meditação!
Não analise! Não analise! Não analise durante ou após um evento!
Não pratique! Não pratique! Não pratique o produto da esperança
e do medo!
Não rejeite! Não rejeite! Não rejeite o carma emocional!
Não acredite! Não acredite! Não acredite na religião!
Não se prenda! Não se prenda! Não enjaule sua mente!

Na ausência de um campo objetivo, tudo se igualou,


Nenhum ponto de referência discernível, nenhum objeto e nenhuma
ordem pode existir;
A base desmorona, o caminho desmorona e o objetivo desmorona,
E pensamentos de bom ou mau, desvio e erro, são inconcebíveis;
Comprometido com a equalização, consolidado no agora, com universo resolvido,
O samsara e o nirvana retornaram para a espacialidade onipresente.
As perguntas "O que é isso?" "Como é isso?" ficam sem resposta.
"O que eu posso fazer?" "Quem sou eu?" da mesma forma, são irrespondíveis!
O que podemos fazer quando todas as nossas certezas desapareceram?
Nós só podemos rir abertamente do absurdo disso.

Toda a galáxia de construções delusórias, internas e externas, colapsa


E o tempo linear derrete no agora, se auto-dissolve, desvanece no espaço;
Dias e datas desaparecem; meses, anos e éons se dissolvem;
O um e muitos desaparecem, sagrado e profano são clarificados;
A base delusória do samsara e do nirvana é clarificada em sua
espacialidade inata.
Mesmo a “espacialidade”, como uma entidade intelectualmente inventada,
se dissolve.
O que quer que tenhamos praticado, por mais que nos esforcemos, é inútil agora,
E o descaramento intelectual se exaure; que grande maravilha é o céu –
Este vagabundo sem caminho é um com o céu!

Uma vez que esta fortaleza enjoiada do céu, sem fundação,


Liberada no agora, surge espontaneamente como a visão-do-guru,
O universo tríplice é liberado como a sublimidade sem objeto.

Pessoas consensualmente atadas ao espaço-tempo delusório,


Ignorantes de sua própria natureza intrínseca se tornam corrompidos
E estupefazem a si mesmos. Tal é a delusão!
A raiz da delusão está em perceber a não-delusão como um abismo.
Deludidos ou não, pertencem a mesma matriz da mente luminosa,
E aí, no agora, nem a delusão nem a liberação ocorrem.
A reificação do que surge da mente luminosa como exibição nos aprisiona –
Tanto o confinamento quanto a liberação são não-duais, a mente e seu
campo inexistentes!
Não seja seduzido a acreditar na verdade da ficção nominal.

A presença pura é liberada pelo buda no agora –


Não a confine na armadilha da fixação por uma meta.
No agora, na matriz pura da não-objetividade,
Na matriz luminosa que é a raiz e base bem-aventurada e semelhante-ao-céu,
Como pureza alfa, o samsara não é possível.

Dentro da única esfera que não tem bordas nem cantos,


A mente deludida mantém ideias de unidade e diferenciação;
Dentro da consciência autossurgida no agora,
Que não tem causas nem condições,
O que sustenta o processo samsárico é um espírito obstrutor luminoso;
Dentro da espontaneidade ilimitada e não-espacial,
O apego a uma visão determinada é o diabo da presunção;
Dentro da vaziez não-cristalizante livre de substância e
atributo
O intelecto perverso infere presença ou ausência,
Aparência ou vaziez:
Abandone a gaiola da determinação e do viés
E conheça a espontaneidade não-espacial que é como o céu!

O que quer que surja nos seis campos sensoriais, todo som e visão,
É a clareza intrínseca da matriz indiferenciada e todo-inclusiva:
Tratemos de chegar à resolução no agora nessa matriz de igualdade.
A consciência como "espacialidade" dá origem a toda aparência na
igualdade unitária;
A consciência como "a base do ser" gera todo o potencial;
A consciência como "a matriz" libera tudo sem qualquer aplicação;
A consciência como "mente luminosa" é a fonte universal essencial:
Conheça todas as coisas como a pureza prístina como o céu.i

A consciência autossurgida é a vasta matriz básica da mente luminosa:


Imaculada – intocada pelo samsara – ela é luminosa,
Sem causa – toda potencialização como a espontaneidade – é luminosa,
E como a clara luz pura – o coração da presença intrínseca – é a mente.
Na mente luminosa, todas as coisas sem exceção, são completamente puras.

Com a realização da face original do que surge da criatividade como exibição,


Um redespertar repentino para o buda pode ocorrer;
Na ausência de realização, a consciência condicionada inconsciente surge
Em oito camposii de percepção dualista desenvolvidos a partir de uma base
genética,
E, no entanto, qualquer que seja a exibição resultante do universo,
Ela nunca pode se desviar da matriz da mente luminosa,
E, sendo imóvel a partir da matriz da mente luminosa, permanecendo na
igualdade,
O samsara e nirvana são unidos e liberados na matriz da vasta visão-
do-guru.
Na disposição natural, o samsara e o nirvana são impossíveis;
A fixação por um objetivo é impossível na disposição natural;
As cinco síndromes emocionais são impossíveis na disposição
natural;
A fragmentação e a parcialidade são impossíveis na disposição
natural;
A auto-expressão é impossível na disposição natural:
Na disposição natural, nada nunca se cristaliza.

Com a consciência autossurgida no agora, consumada na realidade


sem nome,
Não importa o que surja, sendo sem raiz, como criatividade e exibição,
Cai naturalmente, sem confinamento ou liberação, como perfeição natural.
“Liberação” ou “soltura” é o código para o “dissolver-se naturalmente sem
resíduo”
E uma vez que "tudo existe" e "nada existe" não são contraditórios,
Isso é expresso pelas palavras “liberado no agora”.
__________________________
i
A adição do comentário de ye shes, “consciência no agora” como o tema desta
estrofe faz mais sentido.
ii
Os oito campos da percepção são os campos dos cinco sentidos externos
mais os campos internos do pensamento, emoção e a base do ser.

Sem diferenciação ou exclusividade, apenas se libera na matriz da


espontaneidade!
Sem união ou separação, apenas se libera na matriz da única esfera!
Não importa o que se manifeste, isso se libera na matriz indeterminável!

Manifesto como forma – brilhando, se libera tal como é!


Audível como som – vibrando, se libera tal como é!
Perceptível como cheiro – se libera em sua própria espacialidade!
Saboreado como sabor, sentido como sensação tátil – se libera em seu próprio
espaço!
E o pensado, apreendido, infundado, sem apoio e sem raiz – sempre se libera.

Liberação na unidade – é a liberação na matriz da realidade!


A não-dualidade – é a liberação na igualdade do objeto e da mente!
Liberação autossurgida – é a liberação na matriz da consciência primordial!
Liberação espontânea – é a liberação na espacialidade pura da base!

A multiplicidade se libera – se libera como a única matriz!


A indeterminação se libera – se libera como a espontaneidade da matriz!
Tudo se libera – se libera como a matriz-coração!

A clara luz se libera – se libera na matriz estelar!


A realidade se libera – se libera na matriz do céu!
O campo objetivo se libera – se libera na matriz oceânica!
Liberação imutável – é a liberação na matriz-pico.

Liberação desde o início – é a liberação na matriz do potencial!


Liberação na totalidade – é a liberação na matriz, o buda no agora!
Liberação total, liberação no agora – é a liberação na matriz em
constante desdobramento!
Canto Treze: Buda

Introdução

“Estado Búdico” é o termo usado nos sutras budistas para descrever o objetivo no final
do caminho budista. O estado búdico é uma meta a ser realizada num futuro distante,
além do horizonte, certamente não nesta vida, e provavelmente somente depois de éons
de esforço extenuante. A entidade ligeiramente pomposa e distante, cultuada em
templos tailandeses, santuários Zen vietnamitas, gompas tibetanos e assim por diante,
em todo o mundo, incorpora um princípio transcendente de onisciência que leva as
pessoas à devoção e à oração. Este "estado búdico" santarrão da religião budista não
tem nenhuma utilidade no Dzogchen. No Dzogchen estamos muito perto da intensidade
existencial crua da consciência e compaixão; muito próximos da claridade e
espontaneidade da clara luz. Precisamos de uma palavra que expresse a iluminação
inerente ao aqui e agora. Essa palavra é simplesmente “buda”, que implica tal
intimidade que não podemos nos separar dela. Está tão perto que nenhuma distância nos
separa. O "princípio" nunca é um conceito porque no agora o buda não é objetificado ou
reificado. A raiz da palavra "buda" denota cognição, não a cognição pertencente à
consciência sensorial, mas ao ser existencial em si mesmo, que é a espacialidade
autoconsciente. "Buda" é, portanto, um sinônimo da luz da mente.

No Dzogchen, a crença de que Gautama, filho de um rico proprietário de terras no norte


da Índia, alcançou a iluminação sob a arvore bodhi em Bodhgaya é supérfluo.
Certamente, a crença em eventos que acontecem em terras passadas, presentes ou
futuras, tendem a levar à reificação do espaço-tempo. Os eventos no país indiano de
Magadha, há dois mil e quinhentos anos, são tão ilusórios quanto os eventos do século
XX, nenhum evento tendo um significado maior do que qualquer outro, na medida em
que todos os eventos são invenções mentais, insubstanciais, evanescentes, como fios da
cor de arco-íris flutuando na brisa. A crença em "eventos significativos" que ocorrem no
espaço-tempo são distrações da igualdade da bem-aventurada experiência não-dual do
aqui e agora, diz Longchenpa – embora para ele, é claro, nunca possa haver distração.
Mesmo um momento de êxtase na criatividade de eventos míticos imaginados que
trouxeram bondade insuperável para um mundo cruel, no entanto, não é a separação da
natureza da mente em que isso se manifesta.

Seguindo uma exposição da visão e meditação inseparáveis do Dzogchen, é bastante


comum encontrar um ensinamento sobre os bardos ligados a ele. A instrução sobre os
bardos é como um adendo aos preceitos do Dzogchen raiz. Já foi dito que quando as
propensões cármicas da encarnação (corpo-mente) foram clarificadas, ou uma vez
dissolvidas, somente o corpo de arco-íris permanece. Agora, o mesmo princípio é
aplicado ao modo de ser na morte e imediatamente depois dela. Aqui, o símile do
nascimento do garuda é evocado. Dizem que o grande pássaro garuda, a águia mítica do
Himalaia, amadurece completamente dentro do ovo. Quando ele é chocado e o ovo se
rompe, o garuda imediatamente abre suas asas e, do alto penhasco onde fica seu ninho
voa para o céu. Da mesma forma, quando a casca concreta da encarnação racha e se
quebra no momento da morte, como o espaço encontrando o espaço quando uma porta é
aberta, a dissolução na espacialidade autoconsciente ocorre e o buda é
sincronisticamente revelado. O símile do nascimento do garuda pode ilustrar a
ocorrência no momento da morte; mas o bardo da morte é uma metáfora da maneira de
se libertar da encarnação durante o bardo da vida. É certamente o medo que possui
pessoas ansiosas e miseráveis em face à morte, agarrando-se a palhas em sua trepidação,
o que lhes permite interpretar o ensinamento do bardo e as visões do bardo como
premonição de uma vida após a morte. Retirar essa esperança deles é como recusar um
copo de água a um moribundo, mas a bondade de fornecê-la é uma excelente desculpa
para velar o conhecimento do Dzogchen radical.

BUDA

“Livre de todo esforço e empenho,


Toda experiência na mente luminosa é buda.”

Quando ganhamos familiaridade com a essência luminosa,


A espontaneidade luminosa das coisas,
Através dos preceitos chaves do não-empenho e da ausência de esforço,
O buda no agora é o buda redesperto
E essa é a realidade do inigualável coração-vajra,
A essência do caminho nônuplo, a supermatriz luminosa.

O sol e a lua – as mandalas de clara luz – na abóboda do


céu,
Obscurecidos por nuvens espessas, são invisíveis:
Só assim, a luminosidade dentro de nós é velada.

Assim como nuvens espessas flutuando no céu podem naturalmente se dispersar,


Assim, o miasma da causalidade involuntariamente se dissolve por si mesmo,
E o coração luminoso surge por si mesmo na abóbada do céu.
Mas diferentes graus de perspicácia exigem abordagens diferentes.

Nossa face original brilha como o sol


Na matriz da espacialidade intrínseca,
Sua criatividade, sem inclinações, projetando tudo como luz,
Enchendo a terra e os oceanos com calor,
Então essa umidade surge como uma exibição de nuvens
Que parece velar nossa essência e nossa criatividade.
Uma exibição impura da essência e da criatividade
Vela a face original da realidade que é a essência do nosso coração
Cobrindo-o com um universo de aparências delusórias incalculáveis.

A energia do poder criativo dispersa os véus,


Como os raios do sol dispersando as nuvens,
E quando percebemos nossa face original,
A exibição é experimentada como ornamentação;
A delusão, liberada no agora, é agora liberada tal como se apresenta,
E a percepção deludida e o apego, sem denúncia,
Residem na paz, abrandados pela sua própria espacialidade.
As asas do grande garuda se desenvolvem dentro do ovo,
Mas envoltas pela casca elas não são aparentes
Até que o pássaro é chocado e instantaneamente voa para o céu.
Da mesma forma, a percepção dualista delusória já foi resolvida,
A espontaneidade clara da presença pura é autossurgida
Somente quando a casca do resíduo congelado se abre.
A forma sublime luminosa, em seguida, preenche o céu espaçoso,
E através do reconhecimento da face original
Somos liberados na matriz do todo-bom.

Como uma exibição ilimitada de compaixão preenchendo as dez direções,


A emanação milagrosa satisfaz as necessidades dos seres;
Enquanto o samsara durar, essa atividade altruísta floresce,
A atividade que surge da essência naturalmente estabelecida do ser
Como a exibição da compaixão imparcial de nossa criatividade
Abundantemente beneficiando os outros.

A exibição impura foi completamente colapsada,


No entanto, a emanação transformadora preenche os seres impuros
Por meio da responsividade apropriada do professor
E pela aspiração pura de pessoas de mente aberta.

Atualmente, embora existam ambientes incalculáveis,


Inúmeros seres sendo atraídos para a luminosidade,
Eles não podem se desviar da espacialidade dos professores do
darmakaya,
A consciência autossurgida é irrestrita – zero dimensional.

Ocorrendo naturalmente dentro da espacialidade como o visionamento


mais elevado,i
Uma variedade inconcebível do sambogakaya se manifesta
Para os rigzins e dakinis destemidos do décimo nível.
É como se, através da compaixão espaçosa do professor,
E a devoção e a virtude dos discípulos
A face original da mente certamente brilha como espontaneidade.
______________________
i
Stug po bkod pa, ou 'Og min, o paraíso de Akanishita.

Nesta consciência autossurgida no agora, o darmakaya,


A exibição todo-inclusiva é um lago de consciência imparcial
todo-conhecedora,
A única esfera de espacialidade prístina.

A essência do sambogakaya é a espontaneidade natural,


E as cinco famílias búdicas e os cinco modos da consciência
primordial
Como a exibição da presença pura preenchem toda a gama do céu.
A essência do nirmanakaya é a base da compaixão manifesta,
A exibição que aparece onde e como qualquer ação que for necessária,
Demonstrando assim uma atividade perfeitamente apropriada.

Esses modos de ser desafiam o esforço dirigido a um objetivo;


Eles brilham apenas no espaço do descansar livremente como a
espontaneidade do agora.
Este segredo supremo está se revelando neste momento,
E uma vez que não é possível se distanciar disso, mesmo no bardo,
Esta abordagem do ápice do coração-vajra,
É exaltada acima de todas as abordagens progressivas e graduais.
Conclusão

Esta canção do coração-vajra da realidade,


Sua natureza alfa pura como o céu,
Ocorre como uma exibição autossurgida
Que nem se transforma nem se sublima
No espaço imutável sem base.

Ela evoca a vasta supermatriz,


A igualdade onipresente do agora,
Então, sem ir a lugar algum,
No estado natural da pureza alfa,
Na liberdade irrestrita e zero-dimensional,
Podemos entrar na realidade da espontaneidade imutável.

O centro da vasta extensão semelhante-ao-céu é a nossa


preocupação,
A soberana supermatriz autossurgida,
Onde, permanecendo imóvel, tudo é liberado tal como se apresenta,
Onde alcançamos o vasto útero da espacialidade inefável.

Tal adepto semelhante-ao-céu, com sua realização certa,


Compôs este pequeno poema a partir de sua própria experiência
De acordo com a transmissão formal e as escrituras –
Os vinte e um textos da série da mente,
As três seções da série da matriz
E as quatro seções da série do preceito secreto.

Através do mérito deste trabalho que todos os seres, não excluindo nenhum,
Realize o espaço da pureza alfa, sem esforço,
E como príncipes da realidade, espontaneamente proporcionem benefício mútuo
No reino inalterável e não-sublimante de Kuntuzangpo.

Deixe o conforto, a facilidade e a prosperidade se espalharem por toda parte


E como em uma terra pura, que os desejos sejam espontaneamente realizados;
À medida que o tambor da realidade bate e a bandeira da liberdade é desfraldada,
A consciência destemida é sustentada e a revelação do Dzogchen
aumenta.

Um adepto da abordagem do ápice, Longchen Rabjampa, compôs este Tesouro do


Dharmadhatu na garganta da Montanha de Neve da Caveira Branca e agora está
completo.
Apêndices

1 Lista de símiles e metáforas

NB O texto contém trinta e sete ocorrências do adjetivo "como-o-céu" ou a frase


adjetiva “semelhante ao céu” aplicada variadamente à realidade, a espacialidade, a
matriz, a supermatriz, o darmakaya, a presença pura, a natureza da mente, o caminho, a
visão, o adepto, a ilusão, as situações e etc., a maioria das quais foi omitida nesta lista
para evitar repetição.

Canto Um

A natureza da mente é uma supermatriz imutável semelhante-ao-céu...


E os seis campos da percepção sensorial dualista do universo,
Aparecendo em sua própria espacialidade, como a ilusão mágica,
não existem verdadeiramente;
Já está aqui, não há nada a fazer, sem a necessidade de qualquer prática,
Como o sol no céu – essa é uma incrível e maravilhosa realidade.

Aqui nesta espacialidade uterina, na espontaneidade do agora,


O samsara é todo bom...

E sendo pura como o céu, nada pode ser restringido ou localizado:


Essa é a visão alfa-pura da libertação última.

Canto Dois

Como a presença pura, é clara como o céu, não espacial e não-dual;


Como a vasta matriz em si, está além do pensamento pulsante e da imagem.

Toda a fantasmagoria da vida e da morte, prazer e dor,


Como um espetáculo aparicional, é abundante na matriz da mente em si...

Aparente, mas insubstancial e, portanto, verdadeiramente inexistente,


Isso ocorre através de circunstâncias adventícias,
Como a umidade se condensando em nuvens...

A natureza da mente, a mente luminosa essencial,


Pura como o céu, livre de nascimento e morte, prazer e dor...

Dentro desse palácio repleto de riquezas espontaneamente acumuladas,


O rei Consciência Autossurgida toma seu trono;
Suas projeções pulsantes, as criações de sua consciência prístina,
Servem como ministros que governam seu domínio;
A santa rainha Absorção Meditativa Inata atende
Com a Espontânea Visão-do-Guru, seus descendentes e seus servos,
Todos centrados na matriz do puro prazer da clareza intrínseca e
não-conceitual.

Canto Três

O símile da mente luminosa é “como-o-céu”.

A mente luminosa é como o núcleo solar:


Sua natureza é a clara luz, para sempre incomposta...

As coisas aparecem, mas nunca se cristalizam:


Tudo é como uma miragem, um sonho, um eco
Como uma aparição, um reflexo na água e castelos no céu.
Como alucinações, as coisas são claramente aparentes, mas não
existem verdadeiramente.

Canto Quatro

A presença pura, indestrutível, é a matriz luminosa;


A espacialidade como-o-céu, inalterável e imutável, satura o agora...

A percepção estroboscópica não realizada das pessoas no mundo


mundano...

Canto Five

Nós sabemos que a realidade em si, como o sol,


Fica para sempre em seu estado natural de luz clara abrangente...

Canto Seis

Assim como toda a luz solar é considerada a natureza do sol,


Assim, toda experiência é a natureza da mente luminosa.

Tudo isso é clareza vazia não-composta, como espaço tracejado pelo sol,
Tudo isso é a vasta e prístina matriz autossurgida do agora.
A vasta matriz da natureza da mente, um espaço imutável como-o-céu,
Com a criatividade da mente luminosa sendo indeterminada em sua
exibição,
Governa todos os estilos de vida do samsara e do nirvana...

Como um imperador magistralmente incorporando o estado,


A totalidade do samsara e do nirvana é governada de modo imóvel.

Canto Sete

E a matriz da presença intrínseca imaculada é assim –


Como a água quando o sedimento se assentou, a pureza natural é revelada.

Canto Oito

Sem corpo, objeto ou percepção como ponto de referência,


Nossa uniformidade todo-penetrante é a mesma que a vasta extensão do céu...

A cidadela do darmakaya surge naturalmente dentro de nossa natureza interior,


E é imaculada – "Como o céu!" nós dizemos,
Embora seja realmente incomensurável.

Canto Nine

Na única esfera, o processo linear e causal é invertido,


E a igualdade como-o-céu desfaz a esperança e o medo relacionados
aos objetivos.
É vasta, é magnífica – é a mente búdica semelhante-ao-céu!
Livre de fixações a objetivos – é a matriz da única esfera!
É a liberação no agora – quer sejamos realizados ou não!
Feliz é o iogue no caminho semelhante-ao-céu da não-ação!

Canto Dez

Este é o pico-vajra, a mente búdica suprema totalmente boa,


O evento mais sublime e espaçoso, tão elevado quanto o céu.

Espaço cristalino, livre de alternância e pulsação,


Como um oceano translúcido, imóvel e imaculado...

Tudo que se dissolve é liberado no agora,


E sua natureza é como o céu.

Livremente solto, como alguém que não tem nada a perder,


Nem tenso nem frouxo, o corpo-mente descansa confortavelmente.
Embora a matriz seja livre-de-pensamento e espaçosa como o céu,
Estamos presos em uma gaiola de conceitos reificados.

Canto Onze

"Todas as situações são puras como o céu."

Dentro da mente luminosa unitária, onde tudo é igual ao céu,


A percepção dualista nos delude com uma existência causal e
condicionada...

Canto Doze

Abandone a gaiola da determinação e do viés


E conheça a espontaneidade não-espacial que é como o céu!

Conheça todas as coisas como a pureza prístina como o céu.

Canto Treze

Nossa face original brilha como o sol na matriz da espacialidade


intrínseca...

O sol e a lua – as mandalas de clara luz – na abóbada do céu,


Obscurecidos por nuvens espessas, são invisíveis;
Só assim, a luminosidade dentro de nós é velada.

Assim como nuvens espessas flutuando no céu podem se dispersar naturalmente,


Assim o miasma da causalidade involuntariamente se dissolve por si mesmo...

Versos de Conclusão

E como príncipes da realidade espontaneamente proporcionam benefício mútuo no reino


inalterável e não-sublimante de Kuntuzangpo.
2 Glossário do Dzogchen Radical

Geralmente, o texto-raiz tibetano é bem editado e confiável. Às vezes, porém, a má


caligrafia levou a erros rasteiros que foram corrigidos no comentário (por exemplo,
klong para blo no canto 9, verso 6 e verso 9). Às vezes, o comentário tem uma frase que
preferi quanto ao texto-raiz simplesmente por viés subjetivo: gnyis su med para byar
med shing (canto 10, verso 33) e rgya chad para rtag chad (canto 13, verso 6).

Onde a versificação foi necessária, eu fiz uma linha em duas. Eu adicionei asteriscos às
vezes para dividir os cantos em seções integrais, às vezes, pode parecer, muito
arbitrariamente, auxiliar a compreensão do leitor. Em alguns lugares onde o humor
imperativo do verbo parecia muito exigente, muito desafiador, eu o moderei. Eu segui a
construção tibetana com “não” para med demais para a tolerância poética.

Essas notas sobre o vocabulário do Dzogchen radical incluem as razões para a escolha
da frase em português para render uma frase tibetana específica. Elas estão organizadas
em ordem alfabética portuguesa. Frases tibetanas nesta seção também estão incluídas na
seção seguinte, 3 Uma Concordância Português-Tibetano, onde estão organizadas em
ordem alfabética tibetana.

Uniformidade todo-penetrante, phyam gdal: A palavra difícil phyam e seus


compostos permanecem sem equivalentes definitivos em português. Mais aplicável no
contexto do togal, phyam gdal indica a experiência que foi equalizada e, portanto,
constitui um espaço nivelado, um espaço uniforme informando a multiplicidade, um
espaço de complexidade desemaranhada. Assim, ele assume uma realidade na qual as
aparências foram homogeneizadas, mas de algum modo mantêm sua especificidade.
Phyam gcig é por vezes traduzido como “totalidade”. Phyam gdal também se presta à
tradução como “um campo pixelado”. Richard Barron traduziu-a como “uniformidade
infinita" (NT: podendo também ser traduzida mais literalmente como “mesmidade ou
igualdade infinita”).

Buda, sang rgyas: “Buda” nos contextos Hinayana e Mahayana é uma personificação
da não-dualidade ou de um suposto atributo da não-dualidade. Essa personificação, ou
antropomorfismo, talvez sirva a um propósito didático no budismo devocional, mas no
Dzogchen obscurece a realidade impessoal e não-dual. Eu evitei, portanto, artigos
definidos e indefinidos. "Buda" não tem atributo, nem pessoa, nem especificidade. “O
simples reconhecimento da natureza do ser é rotulado de ‘buda’” (canto 10, verso 20).

Buda nos campos búdicos, sku dang ye shes: A frase sku dang ye shes denota a
realidade do Dzogchen ao justapor dois termos não-verbais, sku significando o corpo
búdico ou a dimensionalidade búdica, ou forma sublime, e ye shes denotando a
consciência no agora, a consciência primal ou primordial, ou consciência alfa-pura ou
prístina. Colocando-os juntos cria uma frase que denota tanto a ultimidade ôntica quanto
epistêmica. "Ser imaculado e consciência no agora" é uma tradução bastante literal; aqui
eu usei “buda nos campos búdicos”, o equivalente mais poético.

Confinamento, bcings, ma grol ba: O antônimo de soltura ou liberação poderia ser


confinamento, cativeiro, atamento ou escravidão. Às vezes, traduzi bcings como
repressão.

Contemplação, ting nge dzin: Embora bsam gtan e ting nge 'dzin sejam frequentemente
intercambiáveis, a primeira é geralmente a concentração meditativa do caminho gradual
e a segunda a contemplação da não-meditação.

Percepção dualística, bzung ‘dzin: Bzung 'dzin é frequentemente traduzido como


“percepção dualista”, bzung referindo-se ao elemento objetivo e 'dzin ao conhecedor
subjetivo que agarra um objeto. O que é mantido nessa situação de percepção dualista é
automaticamente reificado e o que se agarra e se apega a qualquer objeto de percepção é
também reificado, mesmo quando isso reifica o objeto de sua percepção. A noção de
reificação, ou melhor, a noção de ausência de reificação, é vital no processo de não-
cristalização da emanação e dissolução da criatividade dentro da mente luminosa.

Essência/natureza, ngo bo, rang bzhin: Considerando que no contexto do trikaya eu


traduzi ngo bo e rang bzhin como “essência” e “natureza” respectivamente, onde ngo bo
aparece na conjunção de ye shes e rol pa, por exemplo, eu o traduzi como “natureza” e,
onde rang bzhin aponta para algo “interno”, às vezes eu o traduzi como “essencial”.

Experiência, chos: Existe um caso para reconsideração do equivalente em português de


chos nos contextos do Dzogchen. No abidarma, ou na metapsicologia budista
dominante, dharma ou chos, em seu sentido técnico, é geralmente traduzido como
“fenômeno”. “Fenômeno” é entendido como aparências externas, embora do ponto de
vista da Mente Apenas possa se referir aos fenômenos da mente e, portanto, significar
eventos internos. Em ambos os casos, “fenômeno” implica uma referência objetiva. No
Dzogchen, “fenômeno” como uma referência objetiva é o produto de uma função
delusória da mente relativa, implicando apego cármico. No Dzogchen, o que nas
abordagens inferiores, em uma visão dualista, é denominado “fenômeno” deve ser
revisto na luz unitária do dharmadhatu. A palavra em português que pode significar o
que quer que surja, ou não surja, é simplesmente “experiência”. Toda "experiência" é o
fenômeno não-dual da percepção, onde sujeito e objeto, interior e exterior e a mente e
seus objetos são uma unidade inseparável. Assim, “experiência” é um dharma e a
espacialidade intrínseca (dharmadhatu) é a natureza intrínseca de toda experiência.

Mente Luminosa, byang chub sems, bodichita: Um forte argumento pode ser
apresentado para assimilar a palavra bodichita, pela qual entendemos a mente búdica
compassiva na língua portuguesa – não possuímos equivalentes. “Mente iluminada” ou
“mente desperta” é a frase mais comumente empregada como equivalente no Vajrayana.
Mas no Vajrayana, a mente iluminada é a prerrogativa de um Buda ou Bodisatva, ao
passo que no Dzogchen é o elemento fundamental da realidade todo-abrangente. O
imperativo não-dual do Dzogchen requer um equivalente mais neutro e menos afetivo
para bodichita, e por essa razão eu escolhi mente luminosa, a mente luminosa que
substitui ou transcende a mente racional sem qualquer senso de qualidade moral. A
mente é luminosa em todas as circunstâncias, não apenas quando a mente é despertada
da delusão ou quando sua escuridão é iluminada em um caminho progressivo. Essa
bodichita – a Mente – por definição é luz, a clara luz ('od gsal) é sinônimo de rig pa.
Bodichita é a natureza da mente (sems nyid). A mente luminosa é também o único
recurso dos seres presos em um caminho causal, porque ela é a única causa e o único
efeito. A mente luminosa, no entanto, também é identificada como a bondade amorosa e
a compaixão altruísta (sem-um-eu).

Não-Ação, byar med, bya bral: Este termo nos apresenta um paradoxo semelhante a um
koan à medida que rigpa é qualificada como "imutável e inalterável" e o mesmo
paradoxo quando a realidade (chos nyid) é qualificada como “mesmidade” ou
“igualdade”. "Livre de atividade" ou "ação" pode fornecer uma pista, mas não nos dá a
oportunidade de resolver o paradoxo intuitivamente. Em O Louco Divino eu traduzi
byar med como “livre de dever” e em Perfeição Original (“Grande Garuda”) como bya
bral e “ação de forma livre”, mas estes são casos especiais e esses termos não podem
ser usados invariavelmente. Na medida em que a não-ação implica “a ação da não-
ação”, “ação não-deliberada” ou “não-direcionada” admite apenas metade da história. A
“não-ação” ou o “não-fazer” é como os tradutores taoístas convencionalmente traduzem
wu wei. A tradução literal pode não ser poética, mas é a única que funciona aqui, penso
eu, e, além disso, constitui um preceito semelhante a um koan em si mesmo.

Não-espacial e não-temporal, phyogs ris med pa: A palavra tibetana phyogs denota
espaço e espacialidade e, também, secundariamente, massa ou volume. Phyogs med, ou
a ausência de espaço, indica a dimensão zero e, assim, adjetivalmente pode ser
traduzido como “não-dimensional”, “não-espacial” ou “não-direcional”. Phyogs med
também pode significar “imparcial” ou “sem-viés” e é, portanto, sinônimo de ris med,
que, no entanto, na medida em que a discriminação e o viés implicam uma extensão no
tempo onde duas coisas podem ou não ser comparadas, significa um estado não-
temporal . Assim, phyogs ris med pa pode ser traduzido como “não-espacial e não-
temporal”.

Prístino, gdod ma'i: Em geral, traduzi gdod ma'i como “prístino” em vez do
sobrecarregado e enganoso “primordial”. Gdod nas ainda é algumas vezes
"primordialmente", no entanto. Além disso, por favor, observe que gdod nas é um
sinônimo próximo de ka dag.

Pulsação, spro bsdu: A palavra composta spro bsdu refere-se à emanação da “exibição”
(rol pa) fora da mente luminosa (ou melhor, dentro) (byang chub sems) através de seu
poder criativo (rtsal) e sua dissolução de volta nessa mente luminosa, ainda que não a
tenha deixado. A “projeção e dissolução” do pensamento (e também do sentimento e de
toda a consciência sensorial) é simultânea, e ainda assim há um momento inegável de
aparência e ao mesmo tempo um senso de espacialidade da qual ela surge (o paradoxo
da unidade entre a verdade relativa e última). É como se a mente estivesse pulsando – e,
portanto, "pulsação".

Presença pura, rig pa: Nesta tradução, usei “presença pura” como o equivalente em
português de rig pa e “consciência (primordial ou prístina) no agora” para ye shes.
“Consciência intrínseca” é um bom equivalente de rig pa, mas induz uma noção de
consciência extrínseca. Presença (da mente?) está próxima da noção de “atenção”, que
é o significado de rig pa no uso comum.
Realidade, chos nyid: Chos nyid é convencionalmente traduzido como “a verdadeira
natureza dos fenômenos”, “natureza última” ou alguma frase semelhante, nos textos do
Dzogchen. Essa frase tende a impelir o leitor para um quadro analítico do abidarma da
mente, implicando um estado dualista de consciência, quando o que é indicado é a
natureza não-dual da experiência comum do aqui e agora que é melhor simplesmente
chamada de “realidade”. Da mesma forma, no contexto do Dzogchen, chos (dharma) é
algumas vezes “experiência não-dual” em vez de “evento mental” (ou “religião” ou “o
ensinamento”).

Liberação/soltura, grol ba: A palavra tibetana grol ba é muito comumente usada e


nem sempre no contexto da libertação do ciclo de renascimento. No contexto
psicológico, ela pode ser traduzida como “liberação”, “liberar” ou “soltar”. Eu escolhi
“liberação”, onde seu significado pode ser interpretado como a liberação do trauma
reprimido, do conceito fixo ou de qualquer aspecto da mente, ou mesmo do próprio
intelecto. Eu usei "libertação" ou “soltura” como um conceito mais abrangente ou como
uma segunda escolha.

Resolução, la zla ba: Se “uma experiência decisiva”, como uma tradução alternativa,
evoca uma experiência mística de luz e som, ela pode ser enganosa para traduzir la zla
ba, que significa uma experiência indescritível, embora o “êxtase”, o não-pensamento”
e a “clareza” sejam melhor usados para denominá-la. Embora tal experiência decisiva
seja um momento para lembrar, a resolução da dualidade não é necessariamente uma
experiência com sinais.

Espaço, ngang: A linguagem tibetana requer um contexto espacial para abstrações


substantivas, uma exigência que é preenchida pela palavra ngang, que pode ser
traduzida por “estado” ou “reino”. O inglês (e o português) não precisa dessa muleta e
eu geralmente omiti a tradução de ngang, embora às vezes ela tenha sido traduzida por
“espaço”, como no uso da subcultura psicodélica. A palavra “estado”, nunca é
apropriada quando se refere a rig pa, geralmente evoca a noção de um estado fixo, um
estado de transe, uma fixação samsárica e, além disso, tende a reificar o atributo. “A
visão é sem base e a meditação não é um ‘estado’” (canto 9, verso 23).

Espacialidade, dharmadhatu, chos dbyings: A palavra em sânscrito dharmadhatu e a


tibetana chos dbyings do título deste poema, deveriam entrar na língua portuguesa, uma
vez que nenhum equivalente geralmente aceito foi cunhado. Literalmente, ela significa a
"esfera do darma", "a esfera da realidade". Eu usei “espacialidade” ou “espacialidade
intrínseca” aqui como equivalentes em português, porque no contexto do Dzogchen nós
nos esforçamos para induzir um ambiente existencial e experiencial. O “espaço básico”,
como uma opção, parece-me um atributo muito concreto que se presta facilmente à
reificação - como Longchenpa afirma, o dharmadhatu não existe realmente.

Esfera /pixel, thig le: No contexto desta explicação do dharmadhatu, como sinônimo de
dharmadhatu, a palavra thig le é traduzida como “esfera” e thig le gcig e thig le nyag
gcig, todos sinônimos, como “a única esfera” . No entanto, particularmente no contexto
de togal, thig-le pode muito bem ser traduzido como “pixel”.

Espontaneidade, lhun grub: Eu tentei manter a tradução de lhun grub como


“espontaneidade” em vez de usar a desajeitada e muitas vezes inadequada “presença
espontânea”. A palavra “espontaneidade”, no entanto, convida à confusão com o
“instintivo”, adulterando assim o significado sublime com uma significação selvagem.
No entanto, não encontrei palavra melhor do que espontaneidade para descrever a
ausência de qualquer base causal no tempo ou no espaço para a consciência de rig pa,
pois na experiência direta ela não é conhecida nem como um continuum nem como uma
série de nano-instantes. Para a frase lhun mnyam, “igualdade incessante”, tem sido
preferida a “igualdade ou mesmidade espontânea”, e geralmente a frase lhun rdzogs é
traduzida como “perfeição espontânea”.

Forma sublime, kaya, sku (trikaya, sku gsum): Nesta exposição de Longchenpa, a
palavra sku (kaya) aparece apenas na palavra sku gsum (trikaya), onde o darmakaya,
sambogakaya e o nirmanakaya são indicados. Esses três kayas são três aspectos de uma
única realidade experiencialmente indivisível e inefável do ser. A exceção está na frase
rdo rje snying po'i sku, denominando o kaya do coração-vajra, e embora “dimensão”
possa ser usada aqui, talvez “forma sublime” seja um equivalente melhor. Como um
elemento de “trikaya”, kaya pode ser traduzido como “dimensão”, mas no contexto dos
bardos e no togal é inadequado. Assim, empregar “as três dimensões” é uma maneira de
rotular aspectos da realidade unitária; a realidade é unidimensional ou zero-dimensional,
dependendo de como é abordada.

Sincronicidade, rten 'grel: Um evento sincrônico é um evento não-dual e luminoso,


livre de causa e condição; uma afinidade com a experiência da sincronicidade como
definida na psicologia junguiana, é assumida. “Sincronicidade” no contexto junguiano é
a experiência de dois ou mais eventos aparentemente e casualmente não relacionados ou
improváveis de ocorrerem juntos por acaso, mas que são experimentados como
ocorrendo juntos de uma maneira significativa.

O agora, ye, ye nas: A pequena palavra ye apimenta os textos do Dzogchen e é


frequentemente ignorada. Se ela for traduzida como “atemporal”, temos “consciência
atemporal” ou “matriz atemporal”, que permite fácil reificação. Mas “Ye!” como “Eh!”
É uma evocação onomatopeica do agora e pode ser traduzida como tal: “consciência no
agora” para ye shes e “matriz do agora” para ye klong. Ye nas é "no aqui e agora" em
vez de "primordialmente" (jurássico ou devoniano?!) ou "originalmente" (na época do
Big Bang ?!).

Trekcho e togal, 'khregs bcod dang thod rgal: Os termos trekcho ('khregs bcod) e togal
(thod rgal) aparecem uma vez em cada texto, nenhum deles usado no sentido de
estágios em um caminho do Dzogchen gradual. Em vez disso trekcho significa
identificar-se com a natureza da mente em todos os momentos e togal significa saltar
destemidamente para o momento.

Universo, galáxia (mundo dualístico) snang srid, snod bcud: Dois termos tibetanos
distintos denotam as aparências do mundo dualista. O primeiro é snang srid que pode
ser traduzido como “aparências e possibilidades” ou “inanimado e animado”. O segundo
é snod bcud, “o recipiente e o conteúdo”, “o universo inanimado e animado”,
“dimensões materiais e espirituais” ou poeticamente “o cálice e o graal”. Às vezes essas
duas frases são unidas; singularmente ou em conjunto, elas indicam nosso universo.

Visão, posição, lta ba: A palavra tibetana lta ba é sempre traduzida como “visão”,
“posição” ou “perspectiva” em conformidade com o uso convencional na filosofia
budista, onde ela se refere a uma perspectiva intelectual (darshana) sobre a realidade.
No Dzogchen, uma vez que “a visão” é também a meditação, definitivamente nenhum
elemento intelectual está contido nessa visão consumada, e a visão é não-dual,
espontânea e sempre a mesma.

Visão, dgongs pa: A palavra “visão” aparece em dois sentidos, que não devem ser
trocados. O primeiro sentido é encontrado na tradução de dgongs pa, que até essa
tradução eu traduzi como “intenção iluminada” – “intencionalidade búdica”. Tulku
Thondup me mostrou que o melhor sentido de “visão” – significando o que “vemos” no
momento como o ideal (a grande perfeição) – é o significado preciso de dgongs pa.
Onde o contexto não explica esse significado como um sinônimo de Dzogchen, eu
acrescentei a palavra descritiva “guru” a “visão”. O segundo sentido é a tradução de
snang ba, que significa “aparência” ou “visionamento”, como em snang bzhi, as quatro
visões, onde a primeira é um lampejo de dgongs pa e a última é sua realização.

Dentro de, las: Enquanto que na “emanação” tibetana só pode surgir “fora da”
espacialidade do dharmadhatu, em português podemos dizer que ela surge “dentro”
dessa espacialidade e assim adicionar uma imputação de transcendência que é
geralmente assumida em tibetano. Da mesma forma, a “exibição” surge “dentro” da
criatividade e não “fora dela”.

Sem esforço ou prática, rsol sgrub med: Rsol sgrub significa “prática com esforço” e,
portanto “empenho” e “busca”; rgyu 'bras rtsol sgrub significa “esforço direcionado a
um objetivo”. Rtsol sgrub med significa “sem esforço ou prática” e no Dzogchen
implica a ausência de qualquer conquista ou realização inerente a um objetivo.
3 Uma Concordância do Tibetano-Português

Nesta concordância, a primeira palavra em português que segue o tibetano é geralmente


o melhor equivalente em português, mas nem sempre. As palavras subsequentes são
sinônimos do primeiro, ou traduções alternativas do tibetano. As palavras entre
colchetes são traduções convencionais, alternativas ou inadequadas. Algumas das
excelentes escolhas de Richard Barron às vezes são indicadas por RB.

Este glossário inclui todas as frases tibetanas discutidas no apêndice anterior, 2 Um


Glossário do Dzogchen Radical; estas frases são indicadas por "Ver Notas: 'frase
equivalente em português'".

ka dag: alfa-puro, primordialmente puro.


kun khyab: onipresente, todo-penetrante, todo-abrangente
kun khyab gdal: todo-permeante ~ uniformidade
kun rtog: suposições habituais, padrões de pensamento [preconcepções]
kun 'dus: todo-inclusivo, reunido, unificado, incluído, subsumido
klong: matriz [extensão]
klong chen: supermatriz [vasta extensão]
klong yangs: vasta matriz
rkyen snang: circunstancial ~ adventício; aparências ~ situações
sku: forma sublime, kaya. Veja também Notas: Forma Sublime
sku gsum: trikaya, as três dimensões do ser
sku dang ye shes: buda nos campos búdicos; "ser puro imaculado e
consciência primordial do agora". Veja também Notas: Buda nos campos
búdicos
'khregs bcod: Veja Notas: Trekcho e togal

dgag sgrub: julgador; julgamento de valor; suprimir ou satisfazer,


afirmação ou negação
dgongs pa: visão, visão-do-guru [intenção iluminada RB]. Veja também
Notas: Visão
gyin 'dar: não-afetado, ingênuo [não-fingido RB]
grub pa: evidenciado, realizado, aperfeiçoado [RB assegurado]
grol ba: soltura, liberação, liberdade. Veja também Notas: Liberação/soltura
glod pa: livremente solto, relaxado [despreocupado]
glo-bur: adventício (como nuvens se condensando no céu) [circunstancial,
acaso]
dgongs pa: visão, visão-do-guru [intenção iluminada]. Veja também Notas:
Visão
'gyu' phro rtog: movimento ou proliferação de pensamento
'gro' ong med: sem ~ ir ou vir, ~ intercurso; invariável
rgya chad phyogs lhung med pa: irrestrito ou localizado, [não-fragmentado,
não-confinado]
rgya chad med: sem ~limitação, ~ parâmetros, ilimitado
rgya yan: desinibido, ilimitado, despreocupado
sgrims glod med: nem tenso nem frouxo
brgyan pa: enriquecido

ngang: Veja Notas: Espaço


ngang bzhag: em repouso ["permanecendo no estado", estado fixo]
nges med: indeterminado, incerto, imprevisível, variável
ngo sprod: introdução direta, apontamento
ngo bo: Veja Notas: Essência/natureza
dngos po'i mtshan ma: atributo concreto

car phog tu: experiência direta


cog gzhag: descansar livremente
bcings pa: atar, escravidão Veja também Notas: Confinamento
cho 'phrul: emanações mágicas
chos: Ver Notas: Experiência
chos nyid: Veja Notas: Realidade
chos dbyings: Veja Notas: Espacialidade
chig chod: imediatismo; instantaneamente [RB único]

'jur bu: compulsão habitual

nyag gcig: o único…


gnyen po: antídoto, método, método curativo
gnyug ma: genuíno, autêntico

ting nge 'dzin: Veja Notas: Contemplação


gtad med: sem referência
gtad 'dzin: orientação para um objetivo [constructo fixo RB]
btang gzhag: aceitar ou rejeitar, discriminação; expurgar ou aderir,
descartar ou adotar, indesejado ou abraçado
rtag chad: afirmação e negação, crença dogmática
rten 'grel Ver Notas: Sincronicidade
lta ba: Veja Notas: Visão, posição
brtags: imputação

tha snyad: designação convencional


thad drang du: direto, diretamente
thig le: esfera, pixel, semente de luz. Veja também Notas: Esfera/pixel
thig le nyag gcig: a única esfera
thig le chen po: a semente cósmica todo-abrangente, maha-pixel
thug phrad: encontro direto
thod rgal: Veja Notas: Trekcho e Togal

gdal ba: nivelar, equalizar, [preencher, inundar, saturar]


gdod ma'i: prístino. Veja também Notas: Prístino
gdod nas: original [primordial] [syn. ka dag]
'du' phro: pulsação (projeções), projeção e absorção alternadas [proliferação
e reabsorção] [ver também 'phro' dus, spro bsdu]
'du' bral med pa: nem fazível nem infazível, sem união ou separação
'dus pa: concentrado [incluído RB]
dran pa: pensamento, lembrança, memória

nam mkha': céu, espaço


rnal ma: genuíno
snang ba: aparência, fenômenos, visão
snang srid: Veja Notas: Universo, Galáxia (mundo dualista)
snod bcud: Veja Notas: Universo, Galáxia (mundo dualista)
spang blang: recusa ou aprovação, discriminar
spangs thob: preferência moral [renúncia e realização]
spyi blugs: empoderar, investir; empoderamento saturante e imediato
[onipresente RB]
spro bsdu: pulsação mental, flutuação [elaboração de RB]. Veja também
Notas: Pulsação
spro bsdu med: sem ~ projeção e absorção alternadas, ~ introversão e extroversão
[sem aversão ou anseio, ~ padrões de energia positivos ou negativos]
sprod: elaboração (mental) (envolvida nos quatro extremos)
sprod med: não-elaborado, simples

'pho' gyur med pa: sem alteração ou sublimação [transição ou mudança]


phyam: estável, total, uniforme [talidade, mesmidade RB]
phyam gcig: totalidade, um pixel único e todo-abrangente, denominador
comum [um estado singular da talidade RB]; [syn. thig le gcig]
phyam mnyam: nivelado, igual
phyam gdal: uma uniformidade onipresente, equalizada, senso de totalidade,
[estado de talidade infinita RB]. Veja também Notas: Uniformidade,
todo-pervasivo
phyam phyam: equalizado, igual-mesmo
phyogs dang ris med: sem tempo e espaço; não-espacial e não-temporal;
imparcial e não-preferencial
phyogs med: não-espacial, zero-dimensional; unidimensional; imparcial
phyogs yan: totalmente aberto e desabrochado; zero-dimensional; desinibido
phyogs ris med pa: Veja Notas: Não-espacial e não-temporal
phyogs lhung med pa: indefinido, indeterminado, imparcial, não-temporal e
não-espacial
phrin las: atividade perfeitamente apropriada
'phro' dus: projeções; visualizado

babs kyis: intrinsecamente, inatamente


babs gzhi: terreno gratuito
bya bral: não-ação. Veja também Notas: Não-Ação
bya rtsol: esforço, empenho e luta [esforço coordenado RB]
byang chub sems: mente luminosa, mente-bodhi. Veja também Notas:
Mente Luminosa
byar med: Veja Notas: Não-Ação
bying rgod: lassitude e agitação [laxidão RB]
'bad rtsol: involuntariamente; sem esforço
‘byung ‘jug: aberração, flutuação [ocorrência ou envolvimento em RB]
dbye ba: diferenciar, definir [para classificar RB]
dbye bsal: diferenciação ou exclusão [divisão ou exclusão RB] divisão
ou omissão, nítido ou embaçado
dbying: espacialidade, espacialidade intrínseca [espaço básico RB]

ma grol ba: Veja Notas: Confinamento


ma nges: indeterminado, incerto, imprevisível. syn. nges med
ma byas: não-modificado, não-elaborado, não-feito, não-fabricado
ma yengs: não-vacilante
mi 'gyur: imutável
mi gnas: sem lugar, não-localizado
mi rtog: não-pensado, não-conceitual
mi dmigs: inconcebível, inimaginável, não-objetivável
mi gzung: nunca uma coisa [RB não referenciada]
mi g.yo: imóvel, imobilidade
mi g.yos: não-agitado, não-desviante, mi srid impossível
dmigs bsam: pensamento crítico, imagem [quadro ou estrutura mental RB]

rtsal: criatividade, potencial [energia dinâmica RB]


rtsol sgrub: esforçar-se e praticar
rtsol sgrub med: Veja Notas: Sem Esforço ou Prática
rtsol ba med pa: pouco exigente, sem esforço

tshogs chen: grande assembléia [grande acumulação]

mtshan ma: atributos, aspectos, características


mtshan nyid: característica definidora

'dzin rtsol: orientação a um objetivo, fixação por um objetivo


[esforço reificante RB]
'dzin: reificante; apegado, fixado
'dzin zhen: agarramento, fixação

zhen pa: desejar, fixar


zhen 'dzin: fixação
zhi ba: apaziguar, dissipar, colapsar, dissolver
gzhag: disposto, estabelecido, relaxado
bzhag: permanecer

zang ka ma: autêntico, genuíno


zang thal: infinito, transparente, ilimitado
zad: resolução, exaustão, consumação
zil gnon: superar, subjugar, transfigurar
bzang ngan med: nem melhor nem pior, julgamento moral
bzung: reificante, apegado
bzung ‘dzin: Veja notas: Percepção dualista

'ub chub: assimilado [totalmente abraçado RB]


'ong' gro med: agradável e desagradável, não-variado, invariável, uniforme
'od gsal: clara luz [RB totalmente lúcido]

yan: irrestrito, livre, expandido, desenfreado, libertado, descontraído, solto,


total abandono, [syn. blo bral, 'dzin med; veja também rgya yan, rang yan,
phyogs yan]
yang dag: imaculado, justo
yangs dog med: sem parâmetros
ye: Veja Notas: O agora
ye klong: a matriz do agora
ye nas: no agora, atemporal. Veja também Notas: O agora
ye babs: disposto no agora
ye 'byams: realizado no agora, todo-difundido de instante a instante
[extensão infinita RB]
ye zin: mantendo o agora
ye shes: primordial ~ prístino ~ consciência, consciência no agora
g.yang sa: buraco negro, abismo, armadilha
rang ngo: face original
rang ngo shes pa: reconhecer a face original
rang stong: naturalmente vazio
rang dangs: radiância (brilho) natural
rang gnas: inerente
rang babs: natural ~ disposição ~ estado; naturalmente disposto,
caí naturalmente, naturalmente ~ocorrência ~eventual; estado
natural; acaso; [naturalmente estabelecido RB]
rang byung: autossurgido, [ocorrendo naturalmente]
rang mtshan: atributo
rang yan: libertado, flutuando livremente
rang rig: presença intrínseca
rang shar: surgindo naturalmente, surgindo espontaneamente
rang zhi: colapso~ cessação ~ em si mesmo
rang gzhag: deixado a si mesmo, em seu estado ~condição ~natural,
relaxado
[descanso natural RB]
rang bzhin: Veja Notas: Essência/natureza
rang bzhin babs: naturalmente disposto
rang gsal: clareza intrínseca [auto-cognição, auto-brilho, claridade natural]
rig pa: presença pura, consciência intrínseca. Veja também Notas: Presença
pura

la zla ba: resolver, atingir a finalidade [experiência decisiva RB]. Veja


também Notas: Resolução
la zlos zhig: deixar alcançar ~ resolução ~ conclusão, deixar assentar
las: Veja Notas: Dentro de
lung: transmissão, revelação
lhug pa: livremente solto
lhun grub: espontaneidade [presença espontânea RB]. Veja também
Notas: Espontaneidade
lhun mnyam: mesmidade incessante, [igualdade espontânea RB]
lhun rdzogs: perfeição espontânea, espontaneamente aperfeiçoada
lhun yangs: extensão onipresente

gshis la: autenticidade, disposição natural [estado fundamentalmente


incondicionado RB]
sang rgyas: Veja Notas: Buda

bsam gtan: absorção meditativa. Veja também Notas: Contemplação.


Outras Leituras do Dzogchen Radical

Dowman, Keith. Trans. The Great Secret of Mind. Ithaca, NY: Snow Lion, 2013.

---------. Maya Yoga, trans & comm. of Longchenpa's Comfort and Ease in
Enchantment (Sgyu ma'i ngal so). Dzogchen Now! Books, CreateSpace.com, 2014.

---------. Old Man Basking in the Sun, trans. & comm. of Longchenpa's Treasury of
Natural Perfection (Gnas lugs mdzod). Kathmandu: Vajrabooks, 2006. American
Edition published as Natural Perfection. Boston, MA: Wisdom Publications, 2010.

---------. Eye of the Storm, trans. & comm. Kathmandu: Vajrabooks, 2006. Translated
into German as Im Auge des Sturms. O.W. Barth, 2010. American edition published as
Original Perfection. Boston, MA: Wisdom Publications, 2013.

----------. Flight of the Garuda, Wisdom, Boston, 1993. Translated into German as Der
Flug des Garuda (Theseus, Zurich, 1994) and into Dutch as De Vlucht van de Garoeda
(Uitgeveru Karnak, Amsterdam, 1994).

----------.The Divine Madman: The Life and Songs of Drukpa Kunley, trans., Dzogchen
Now! Books, CreateSpace.com, 2014.

Dudjom Lingpa. Buddhahood Without Meditation. Trans. Richard Barron. Junction


City, CA: Padma Publishing, 1994.

Longchen Rabjampa. The Precious Treasury of the Basic Space of Phenomena. Trans.
Richard Barron with the Padma Translation Committee. Junction City, CA: Padma
Publishing,

----------. The Precious Treasury of the Way of Abiding. Trans. Richard Barron with the
Padma Translation Committee. Junction City, CA: Padma Publishing, 1998.

----------. A Treasure Trove of Scriptural Transmission. Trans. Richard Barron with the
Padma Translation Committee. Junction City, CA: Padma Publishing, 2001.

Low, James. Simply Being, London, Vajra Press, 1998.

Namkhai Norbu and Adriano Clemente. Dzogchen; The Self-Perfected State. London:
Arkana, 1989.

----------. The Supreme Source: The Fundamental Tantra of the Dzogchen Semde.
Ithaca, NY: Snow Lion, 1995.
Nyoshul Khenpo. Natural Great Perfection. Trans. Surya Das. Ithaca, NY: Snow Lion,
1995.

Pema Rigtsal, Tulku. The Great Secret of Mind. Trans. Keith Dowman. Ithaca, N.Y:
Snow Lion, 2012.

Reynolds J. Golden Letters. Ithaca, NY: Snow Lion, 1996.


Outros Títulos de Keith Dowman

Original Perfection: Vairotsana’s Five Early Transmissions (The Eye of the Storm)

The Great Secret of Mind: Instruction on Nonduality in Dzogchen (trans.)

Maya Yoga: Finding Comfort and Ease in Enchantment

Natural Perfection (Old Man Basking in the Sun)

The Flight of the Garuda

The Sacred Life of Tibet Power-Places of Kathmandu

Boudhanath: The Great Stupa Masters of Enchantment

The Power-Places of Central Tibet: The Pilgrims Guide

Masters of Mahamudra

Sky Dancer: The Secret Life and Songs of the Lady Yeshe Tsogyel

The Nyingma Icons

The Divine Madman: The Life and Songs of Drukpa Kunley

The Legend of the Great Stupa Calm and Clear: A Manual of Buddhist Meditation

Que todos os seres possam realizar a Grande Perfeição!


Para qualquer correção ou sugestão em relação à tradução enviem um e-mail para
kadaglundrub@gmail.com

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