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RESUMO
ABSTRACT
This article is basically a transcription of a lecture given at the Seminar Youth and the Present
Times (Seminário Juventude e Atualidade), promoted by CASA Foundation (Fundação Centro de
Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) on December 2007. Our objective at that time was
to present the phenomenological methodology as an approach to understand and to clarify the
questions that adolescents experience in a more or less explicit manner in our days. In order to
explore some of these questions – which, at times, even their subjects are not fully aware of – we
will make a brief visit to the history of the psychology of adolescence, a discipline which certainly
houses relevant theoretical questions.
1. APRESENTANDO A QUESTÃO
Durante boa parte do século 20, a adolescência foi vista por muitos como período
de tempestade e tensão, e os conflitos que os jovens de sociedades ocidentais viviam – e
ainda vivem – foram universalizados. Entretanto, seus questionamentos, suas buscas por
novos valores e um novo estilo de vida foram desqualificados, pois tudo não passaria de
uma fase da vida caracterizada por desequilíbrio emocional, que, por sua vez, seria gerado
por transformações endócrinas associadas à chegada da puberdade. Esta perspectiva
1
Professor do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro
da Associação Brasileira de Daseinsanalyse (ABD). edufreire10@gmail.com
atraiu não apenas setores mais conservadores e organicistas da Psicologia – os
constitucionalistas, por exemplo – como também aqueles que procuravam pensar os
acontecimentos humanos de forma estritamente psicológica.
Ao final de 1928, a antropóloga Margaret Mead (1901-1978) descreverá uma
adolescência bem diferente daquela a que estávamos acostumados. Em Samoa, no
Pacífico Sul, a entrada nesta fase da vida não era acompanhada por grandes conflitos ou
dúvidas: constituía-se em uma passagem tranquila e harmoniosa. Mead não viu
adolescentes revoltados com seus pais ou a sociedade. Ao contrário, nos fala de um
processo de socialização e aprendizagem contínuo, em que o jovem jamais aprenderia
algo que, posteriormente, não fosse absolutamente necessário e compatível com o mundo
adulto. Ela destaca a continuidade no processo de aprendizagem e socialização como
principal fator para um início de juventude livre do fenômeno tempestade e tensão em
Samoa, nos anos 1920 (MEAD, 1972).
Em outras palavras, o relatado é que uma criança samoana jamais aprenderia algo
como uma crença, um valor que servisse apenas para viver no mundo infantil. O que era
aprendido na infância deveria, também, valer para os adultos. Segundo Mead (1972), não
havia incompatibilidade alguma entre o mundo infantil e adulto. Por exemplo, histórias
que servem apenas para as crianças, nas quais adultos não acreditam (Papai Noel, fadas
etc.), não existiam em Samoa. Assim, mais tarde, as crianças não descobririam que boa
parte daquilo em que acreditaram e viveram na infância não era verdade.
Os estudos de Mead mostraram que um jovem adolescente, em virtude de como
fora educado, não veria seu mundo infantil destruído como precondição para adentrar a
realidade adulta. As diferenças entre o mundo infantil e o adulto, de acordo com Mead,
diriam respeito ao nível de complexidade das tarefas solicitadas a uma criança e a um
adulto. Dessa maneira, a antropóloga sugeriu que tempestade e tensão era o modo
específico dos jovens urbanos e ocidentais adolescerem (MEAD, 1972). Em termos
gerais, esta é a abordagem “culturalista”.
O debate entre constitucionalistas e culturalistas nunca cessou, mas ganhou
contornos mais dramáticos quando o antropólogo australiano Derek Freeman2 publicou
Margareth Mead and Samoa, em 1980, após a morte da antropóloga. Nele questiona o
retrato que Mead traçou dos samoanos quase 60 anos antes. Entrevistando os mesmos
sujeitos da pesquisa da antropóloga, Freeman obtém informações bem diferentes. Por
2
Sobre Freeman, ver: <https://www.nytimes.com/2001/08/05/world/derek-freeman-who-challenged-
margaret-mead-on-samoa-dies-at-84.html>.
exemplo: uma mulher, aos 16 anos de idade, falou para Mead que, quando uma jovem
samoana se sentia atraída sexualmente por um rapaz, podia livremente, sem culpa, fazer
sexo com ele; com cerca de 70 anos, afirmou para Freeman que isso não era verdadeiro,
que havia contado esta e outras histórias para a antropóloga por querer impressioná-la,
percebendo que ela gostava de ouvi-las.
Esta polêmica segue sem data para acabar. Talvez possamos afirmar que boa parte
das discussões teóricas da Psicologia continua crescendo exatamente na fronteira situada
entre as disciplinas que fundam estas duas tendências: ciências biológicas e sociais. Se,
por um lado, não podemos mais afirmar impunemente que a adolescência é uma fase de
vida incondicionalmente marcada pela turbulência emocional, por outro, consideramos
muito pouco afirmar que se trata de um ‘fenômeno sociocultural’.
Afinal, qual fase da vida humana não é um fenômeno sociocultural? Por acaso, a
infância ou a chamada terceira idade seria ‘menos socioculturais’ do que a adolescência?
Além disso, resta a questão do que fazer e de como entender os jovens urbanos de hoje,
que, frequentemente, mostram sinais dessa turbulência emocional, dessa vida
tempestuosa e tensa, questionando o status quo, a autoridade paterna e, assim, exibindo
uma rebeldia típica da adolescência descrita em textos clássicos.
A compreensão do sentido desses fenômenos por meio do caminho
fenomenológico e existencial é nossa meta. Para esta abordagem, qualquer ato humano é
motivado, e, por isso, não pode ser pensado fora de uma tríplice articulação entre futuro,
passado e presente. O tempo é questão essencial para nossa abordagem.
2. A IMPORTÂNCIA DO TEMPO
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Não estamos afirmando que crianças desconhecem a morte. Elas, geralmente, possuem alguma referência
acerca da morte, porém, da mesma forma que seu futuro, aparece como algo distante. A delicada questão
da criança ante a perda de um ente querido foge aos nossos objetivos aqui.
impacto sobre ele, determinando crises e atitudes, em especial, aquelas que,
aparentemente, negam a finitude humana como, por exemplo, a exposição excessiva a
riscos. Devemos considerar boa parte do que o adolescente faz ou deixa de fazer como
um conjunto de esforços realizados na direção de recuperar o equilíbrio perdido com a
chegada do futuro.
A fenomenologia-existencial afirma que as coisas simplesmente são, e o ser
humano existe. Com isso, enfatiza a diferença entre ser coisa e ser humano. A coisa não
é afetada por seu próprio ser; ‘ela nem está aí com seu ser’, e, portanto, não se preocupa
com ele, pois, simplesmente, está aí.
O ser humano, por sua vez, nunca é indiferente a si mesmo, sempre é atingido por
sua condição, sempre se comporta em relação a si, na medida em que nunca é indiferente
ao próprio ser. Jamais está como as coisas, pronto e acabado. Temos de cuidar do nosso
ser, sempre incompleto, sempre a exigir atitude, sempre nos preocupando.
Por isso, a fenomenologia designa a condição humana com o termo existência.
Mas o que significa existência para a Fenomenologia? Heidegger (2006) afirma, no
parágrafo 9 de Ser e tempo, que o ser humano existe, na medida em que possui seu ser
em jogo. Em outras palavras, nosso ser é uma tarefa. Para nós, o adolescente é aquele que
foi apresentado à condição humana de existir, o que não significa que a criança não exista.
Ela existe, mas, graças ao contágio do instantâneo, pode ignorar boa parte da incerteza
contida em seu existir. Nesse sentido, diremos que o adolescente, terá de assimilar essas
descobertas à sua condição humana. A partir de então, é atingido pelo fato de não ser uma
realidade acabada: seu ser não está pronto, ao contrário, requererá constante cuidado, e
tudo sendo de sua própria conta.
Neste sentido, afirmaremos que o adolescente se descobre não semelhante a uma
tarefa, mas uma tarefa. Não pode, como na infância, deixar-se tomar pela plenitude do
presente imediato, constante, e no jogo, brincando, resolver sua vida. Talvez possamos
dizer que, a partir daí, não bastará simplesmente ser: terá de ser.
Com isso, pretendemos assinalar o caráter de ônus que nossa condição assumirá.
Devemos lembrar que esse futuro se mostrará originariamente inóspito e ameaçador, pois
o final da história não contempla o herói com nada, ou melhor, ele será contemplado com
o próprio nada. A condição humana chegará ao jovem adolescente em sua incompletude,
inacabamento e finitude.
É importante salientarmos que este processo não será, necessariamente, vivido
com consciência pelo adolescente. Ao afirmarmos que é atingido pelo futuro, não
queremos dizer que possui clareza acerca desse acontecimento. Ao contrário, essa
expansão na vida de nossos adolescentes faz com que, frequentemente, se sintam
desorientados, como “[...] sempre algo estranho em sua própria casa (LEÃO, 1977,
p.41)”.
Esta é a crise que o adolescente vive no mundo contemporâneo: ter de dar conta
do próprio futuro em uma sociedade complexa, onde muitas são as possibilidades –
inclusive de fracasso –, e estar diante da morte sem uma cosmogonia4 que restitua sentido
à existência humana. O jovem, de ora em diante, tem de possuir futuro e morte; a própria
condição – ser mortal – lhe é entregue.
Será que nosso mundo atual, com todo desenvolvimento técnico e científico,
oferece caminhos que facilitem o enfrentamento com toda essa responsabilidade? Esse
confronto não seria mais fácil em uma cultura onde o futuro aparecesse ‘garantido’ pela
tradição? Se o relato de Mead (1972) é verdadeiro, talvez possamos compreendê-lo como
descrição de uma situação humana em que o futuro chega sob a garantia de que ‘tudo está
do jeito que deve ser’, e que, portanto, não necessitamos nos preocupar: não há problemas
que a tradição não resolva. A condição dos jovens contemporâneos é tal, que este ter de
ser cai sobre eles como tarefa onerosa, dever para o qual, com frequência não se sentem
à altura, pois a experiência de uma ordem maior não pertence ao nosso tempo.
Nosso adolescente terá de pavimentar sua condição, pois, a partir de agora, será
experimentada como adversa. Devemos salientar, mais uma vez, que não foi a condição
humana que mudou, foi o jovem que se transformou por ter sido apresentado à sua
condição mais própria, a de alguém que existe. Este, portanto, é o segundo sentido daquilo
que entendemos por adolescência nos tempos atuais5: tornar a condição humana, recém-
descoberta, suportável. Como nosso jovem procederá para pavimentar sua realidade e,
assim, torná-la menos áspera?
Os adolescentes fantasiam muito, andam em grupo, possuem uma relação especial
com seus ídolos, frequentemente apaixonam-se de forma tão intensa que desejam até
morrer e, também com frequência, usam drogas. Qual o sentido disso tudo? É
relativamente comum encontrarmos jovens com fantasias extremamente idealizadas
4
Mito cosmogônico, uma noção da História das Religiões, é uma narrativa passada em um tempo
imemorial, que, ao contar uma ocorrência, explica a origem desse fato em nossa vida como algo necessário
e, portanto, aceitável. Dessa maneira, dá sentido a um acontecimento, mesmo que, aparentemente, seja
trágico. Para mais esclarecimentos, ver Eliade (1972).
5
Não pretendemos afirmar que esta seja uma característica universal. Possivelmente, em uma sociedade
onde mitos cosmogônicos vigoram, essa tarefa não recai apenas sobre os ombros do jovem, pois a
cosmogonia torna a condição humana mais aceitável.
sobre seu futuro. Essas fantasias são importantes na medida em que têm como finalidade
promover uma espécie de autoconvencimento: o jovem, ao defrontar-se com sua condição
humana, precisará se convencer de que seu futuro – isto é, a própria condição – não é tão
adverso e difícil. A morte, por exemplo, será ‘enviada para bem longe da vida’, vista
como algo que, ‘quem sabe, um dia ocorrerá, mas daqui a tantos anos que, por ora, não
devemos nos preocupar com ela’. A fantasia, intensa nesta fase, proporcionará a possível
tranquilidade relativa ao futuro, tão necessária ao desenvolvimento humano. Sem dúvida,
em alguns casos veremos fenômenos exacerbados, que exigem atenção e cuidados.
Outro fenômeno, que também marca a chegada da adolescência, é a importância
atribuída, pelo jovem, ao chamado grupo dos iguais (os pares) e a seus ídolos. Essas duas
situações devem ser vistas como fatores que permitem ao adolescente acreditar na
viabilidade de si, severamente atingida pela ‘chegada do futuro’. O ídolo, alguém que
enfrentou com sucesso os desafios humanos, será uma espécie de arauto para o
adolescente, informando e confirmando sua viabilidade. O grupo dos iguais possui esta
mesma função, e, por isso, temos grupos de jovens em que vigora certa homogeneidade
comportamental.
Para compreendermos um pouco das paixões juvenis – e, quem sabe, das adultas
– assim como o fascínio que algumas drogas exercem sobre a juventude, devemos lembrar
que o adolescente perdeu, ao sair da infância, uma espécie de eternidade, então garantida
pelo contágio do instantâneo. A intensa experiência amorosa e o uso de drogas, de modos
diferentes e com distintas consequências, recolocarão o jovem perto daquela realidade
sem tempo, recuperando uma possível eternidade. Sabe-se que muitas drogas
proporcionam experiências desta ordem, o que torna especialmente delicada a relação do
adolescente com as drogas, pois ainda se encontra suscetível à possibilidade de abolir o
tempo das exigências da vida, retornando ao tempo de sua infância. Encontra-se, aí, o
risco de ficar aprisionado no uso de drogas.
Em síntese, o que denominamos adolescência é, de um lado, o jovem sendo
lançado naquilo que foi sua condição mais própria desde sempre: o que somos jamais se
esgota no presente, sempre se dirige ao futuro. Propomos que a adolescência que
conhecemos em nossos dias, com suas crises características, seja pensada como o
resultado dos esforços que o jovem faz para tornar sua condição mais suportável. Como
já dito, o jovem, ao descobrir a adversidade de nossa condição humana, necessitará de
recursos que a tornem menos ameaçadora, mais controlada e tranquila.
A grande questão adolescente nas sociedades urbanas atuais é como tornar
possível um projeto de sentido para a vida. Esta tarefa torna-se mais difícil para jovens
que vivem num mundo não mais irrigado pela perspectiva de sentido que um mito
cosmogônico pode gerar. Cosmogonia, como diz a palavra, significa a origem de um
estado de coisas, de uma ordenação da vida humana. O mito cosmogônico tem, por
função, restituir o sentido do viver em momentos de crise, quando tudo tende ao colapso.
Finalizando, gostaríamos de deixar claro que estas observações finais não
pretendem sugerir qualquer coisa parecida com uma ‘volta a mitos cosmogônicos’, mas,
sim, oferecer elementos fenomenológicos e existenciais para refletirmos sobre o que
acontece com nossos jovens.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS