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(Relvas, A.P., 1984. O ciclo vital da família. Perspetiva sistémica.

Edições Afrontamento)
CAPÍTULO V

FAMÍLIA COM FILHOS ADOLESCENTES

«Filhos criados, sarilhos dobrados».


Provérbio Popular

A necessidade de definição de um novo equilíbrio entre o individual, o


familiar e também o social constitui-se como aspeto determinante do evoluir da
família nesta etapa do ciclo vital, assinalada pela adolescência dos elementos mais
jovens. E note-se desde já que isto não diz só respeito ao adolescente, mas tem a
ver com todos os membros da família e, obviamente, com o sistema como um todo.
Mais do que em qualquer outra etapa é imperioso o alargamento dos espaços
individuais no seio da família, sem que isso conduza ao esboroamento do próprio
espaço grupal que, apesar de redefinido, deve ser reforçado na sua coesão.
Este movimento e a sua necessidade torna-se compreensível, uma vez que as
funções/tarefas específicas desta etapa equivalem, por assim dizer, ao clímax das
duas funções globais e primordiais do próprio sistema familiar, as quais são, como
vimos, a socialização e a individualização dos seus elementos. E, insistindo, não só
dos mais jovens: o que é tradicionalmente assinalado como papel da família junto
dos adolescentes, ou seja, ajudar os indivíduos até aí dependentes a prepararem-se
(1) para a autonomia e (2) para assumirem papéis adultos de carácter social,
relacional, afetivo e laboral, só poderá ser desempenhado com sucesso se houver
por parte dos restantes membros da família, e particularmente dos pais, uma
correlativa (re)afirmação individual.
Retomando os objetivos dessas funções compreende-se, portanto, como
também nesta fase, e de forma acrescida em relação à precedente, o contexto social
envolvente tem um peso importante na forma como as famílias (e cada família em
particular) vivem, elaboram, e ultrapassam este momento do seu desenvolvimento.
Um dos aspetos em que essa influência se faz sentir diz respeito às imagens e
expetativas criadas, bem como aos condicionalismos e exigências formuladas em
relação à Adolescência, aos adolescentes e suas famílias.

MITOLOGIA E CONFLITO DE EXPECTATIVAS

Há já algum tempo, em resposta a um convite para participar com uma


comunicação numa das incontáveis reuniões científicas atualmente promovidas
com o objetivo de refletir sobre a temática da adolescência1, comecei por pedir às

1
Comunicação «Adolescência e Condutas de Risco», apresentada em Coimbra, 27 e 28 de Maio de

1
pessoas presentes que, sem «pensar muito», «disparassem» algumas palavras que
lhes ocorressem por associação com a palavra-indutora projetada num écran e que
era, precisamente, adolescência. Desse público, essencialmente formado por
professores e profissionais de instituições de apoio médico-psicossocial
vocacionadas para intervir junto de camadas populacionais mais jovens, como
médicos de família, psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, surgiu a seguinte
lista de palavras pela ordem em que são aqui reproduzidas: crise, aventura, viragem,
marginalidade, afirmação, inquietação, conflito, identidade e irreverência. Um
conjunto de palavras que à partida nada diz, mas que enquadrado no contexto das
imagens sobre a adolescência presentes na cultura ocidental, pode adquirir um
significado importante, ainda mais sendo proveniente de um grupo de pessoas
informadas e interessadas na temática, com uma prática profissional que as conduz
ao contacto e relação direta com adolescentes.

Se há etapa do desenvolvimento humano que, neste final do século XX,


dificilmente possa ser encarada de forma desapaixonada ela é, sem dúvida, a
adolescência. «Fenómeno» relativamente recente na história do desenvolvimento
psicossocial do ser humano e, mais ainda, na história do seu estudo e compreensão,
a desconfiança/fascínio que provoca nos «não-adolescentes» é bastante antiga,
considerando que é contemporânea da sua criação e descoberta pela sociedade. Dos
estudiosos do comportamento ao cidadão comum, dos políticos aos profissionais
dos media, todos «discursam» sobre e para os adolescentes. Mitologia da
adolescência, que quotidianamente interfere na realidade sociopolítica atual, surge,
tal como aconteceu no grupo de profissionais anteriormente referido, clivada em
expectativas e valores a priori muito positivos ou muito negativos, algumas vezes
antagónicos, mas sempre impeditivos do predomínio da indiferença.
Facilmente identificada com uma imagem de rebeldia e rejeição dos valores
instituídos, a adolescência é frequentemente associada a um conjunto de
expectativas negativas em que sobressai, por exemplo, o consumo de drogas, a
violência, ou a falta de respeito pelas gerações mais velhas e pelas instituições,
traduzida no nosso país, num passado recente, pela infeliz expressão «geração
rasca». Esquece-se o outro lado da questão: esquece-se, como nos dizia há pouco
um adolescente, que «nem sempre será assim, uma vez que há muitas situações em
que são os "velhos" que não nos respeitam... querem que façamos tudo o que acham
certo e, por exemplo, nas "bichas" do supermercado quase exigem que lhes demos
o nosso lugar só porque são mais velhos. Acabam por ser eles os mal-educados!».
Por outro lado, e por paradoxal que pareça, é esse mesmo atributo de rebeldia, de
inconformismo, que provoca alguma «inveja» e permite depositar nesses «nossos
herdeiros do amanhã» alguma esperança de mudança para a construção de um
futuro diferente. E, nesse sentido, todos os querem seus aliados e apontam as suas
características de generosidade e energia.
O mundo dos «não-adolescentes», que neles deposita, assim, as mais
contraditórias expectativas, interpela-os, de modo mais ou menos consciente, ora
com atitudes paternalistas de quem já viu muito e tudo sabe, ora com uma atitude
de reverência pela irreverência e capacidade de correr riscos que os caracteriza.
Consequentemente, faz-lhes exigências, elas próprias contraditórias: «Há que ter
capacidade para decidir o futuro que querem ter», mas «não têm o direito de decidir
sobre o sistema de ensino»; «há que ser maduro e responsável», mas «não se pode

1992. nas Jornadas sobre a Adolescência. promovidas pelo CEPD, Programa Stop-Sida e Projecto
Vida.

2
dialogar com eles, não sabem o que querem, não têm uma noção adequada das
realidades»; «são os homens de amanhã, o futuro do país», mas «não podem exigir
condições para as quais não contribuem, há que aceitar o que a sociedade lhes pode
oferecer». Prisioneiros destas injunções os adolescentes procuram encontrar as
terceiras vias de resposta, que nalgumas vezes assumem carácter marginal ou
patológico - «se sou e não sou, o que fazer?» - e tentam ser não sendo, estar na
comunidade não estando, através, por exemplo, da violência. Desse mundo de «não-
adolescentes» fazem parte os outros elementos da família no seio da qual o agora
adolescente foi crescendo e com a qual, na melhor das hipóteses, convive ou, na
pior, coabita. E assim, os familiares e particularmente os pais são os primeiros a
sentir e quantas vezes a expressar nas relações com os filhos (mesmo que de tal não
se apercebam) a dupla conotação desta etapa desenvolvimental: «Se não fosses tu,
teríamos uma vida calma e descansada» e «és a nossa razão de viver, é por ti que
tanto trabalhamos!».
Em termos de sentimentos negativos, junta-se ao medo suscitado pelas
recordações da sua própria adolescência, o temor do consumo excessivo de álcool,
da toxicodependência, da violência, de algum modo justificado e reforçado pela
sensação de impotência face à determinação do filho (ou à falta dela, diriam alguns
pais...). Em termos de sentimentos positivos, à recordação das lutas por ideais então
vividos junta-se a admiração pela coragem e energia, sentido de justiça e capacidade
de luta com que enfrentam os desafios e dificuldades que se lhes deparam. Paredes-
meias vivem então, nos pais, a necessidade e o desejo de controlo do adolescente,
expresso por vezes na repressão, e o projeto da sua «libertação» a curto prazo, que
pode revelar-se num «virar das costas» ou numa responsabilização excessiva e
precoce. Atitudes extremas fundamentalmente evidenciadas em caso de
dificuldades.
Neste jogo de motivações contraditórias não há vítimas nem culpados, até
porque os «já» adultos e em particular as famílias e os pais, estão eles próprios
sujeitos a injunções do mesmo tipo. A imagem de que os pais de hoje não dialogam
o suficiente com os filhos, criando entre ambos uma barreira de silêncio, porque
vivem concentrados no stress quotidiano e na necessidade de «fazer dinheiro», é
confrontada com outra que requer cada vez mais o seu empenhamento em termos
de competitividade, parcialmente justificada, precisamente, pela necessidade de
criar as condições económicas necessárias à educação e proteção dos filhos (hoje
em dia também cada vez mais exigente e prolongada no tempo).
A sociedade aponta-os como responsáveis, e até certo ponto bem, pelo evoluir
dos seus descendentes, ao que contrapõe a imagem de pais impotentes ou
permissivos e demitidos das suas funções educativas, afirmando-se, mesmo, que
«os pais têm os adolescentes que merecem». E o direito à busca do amor ao longo
da vida é-lhes negado muitas vezes em nome do amor aos filhos: o divórcio e o
recasamento é uma das razões apontadas como causa das dificuldades «desta
juventude». Mas não sem que se apontem, também, os jovens como causadores de
todo o mal-estar familiar atual: «Se não fossem os filhos...», «se não tivessem um
filho toxicodependente seriam uma família feliz, um exemplo da família ideal…».

Numa sociedade onde esta facilidade e simplismo do causalismo linear e


redutor resulta num «bombardeamento» das famílias (adolescentes incluídos) com
mensagens ambíguas e paradoxais, é fácil eleger como imagem dominante o
conflito.
Apesar de tudo o que foi dito, há que reconhecer aqui que o conflito

3
corresponde, de facto, a um aspeto sempre presente nesta etapa e que é afinal
maturante e indispensável à sua boa evolução. A pedra-de-toque para que funcione
como tal, apesar das dificuldades e sofrimento que inevitavelmente o acompanham,
reside na forma como é gerido por todos os seus protagonistas e na sua consequente
elaboração e integração.
A «fórmula mágica», se é que existe, é indicada por Minuchin através desta
metáfora: há que caminhar no meio da estrada apesar dos riscos que isso implica!
Tentando avançar na equidistância dos sentimentos, motivações e pedidos extremos
surge o respeito pelas diferenças e pela individualidade de cada um. Por outro lado,
há que não esquecer que paralelamente ao conflito do adolescente com os outros
(pais, professores, outros familiares, habitualmente designado por conflito de
gerações), existe o que ele desperta entre os outros e, não menos importante, o seu
próprio conflito.

TRANSFORMAÇÃO DA DINÂMICA E ESTRUTURA FAMILIARES

Se não se pode perceber a adolescência sem falar da sociedade e da família,


não é menos verdade que não se pode compreender o que se passa na família sem
pensar um pouco sobre o que acontece com o adolescente.
O dilema social e parental, acabado de referir, encontra nele um paralelismo
notável: lado a lado, em permanente disputa e alternância, convivem a necessidade
de dependência e de independência; a insegurança e a coragem e entrega absolutas;
o desejo de suporte, de proteção e a vontade inadiável de ir embora, de pertencer a
si próprio e ao mundo. Um otimismo e entusiasmo inabaláveis alternam com
momentos de depressão e aborrecimento; as horas em que se sente velho alternam
com as horas em que parece ter meia dúzia de anos e, então, que pouco sentido faz
dizer-lhe: «comporta-te de acordo com a idade que tens»... O corpo transforma-se
e o adolescente ora se sente «grande», seguro e atraente, ora não se reconhece: tem
dificuldades de relação com o corpo próprio, não sabe o que vestir, alternando um
desleixo evidente com preocupações exageradas sobre o seu aspeto e toilette, dá
pontapés e encontrões em tudo parecendo que «não cabe» no espaço. A sexualidade
desperta com força e com características novas, surgem interesses que parecem
despropositada e exageradamente investidos (a música, o futebol, a dança, por
exemplo).
Por isso, ora avança ora recua, no caminho da autonomia e no processo de
separação, no estabelecimento de relações amorosas extrafamiliares, no
desenvolvimento de relações de suporte, solidariedade e competição com os seus
pares e iguais, com o grupo de amigos. O pequeno texto que a seguir transcrevemos,
da autoria de um adolescente de catorze anos, expressa essa inquietação e dúvida
permanente, correspondente ao turbilhão de interesses e emoções.

«EU, Adolescente...
Em meu entender a adolescência é uma altura da vida muito bonita mas também das mais
difíceis.
Tenho muitos mais problemas agora na escola do que quando era mais novo. Esta é a
iniciação ao tempo de adulto: começamos a guardar as nossas economias, a contá-las. É uma das
grandes complicações que eu, adolescente, tenho.
De manhã, quando acordo, só penso «para que é que a escola nos tira da cama?...»; mas
não há nada a fazer, tenho que me levantar e ir para lá! Depois é escolher a roupa que é sempre
outra complicação; se a camisa não liga com as calças, se o blusão não liga com a camisa, enfim,
uma confusão... e tudo para ficar o mais bonito possível. É uma fase completamente maluca. Com
o penteado é a mesma coisa: fica-se imenso tempo a ver se a «pala» está bem-feita, se se está

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muito bem penteadinho, enfim, é uma onda de grande vaidade.
Uma das coisas que me atrai mais é a música, principalmente a música rock (quase tanto
como o futebol). Esta é uma época da vida em que se vive a música!
Mas será que, na roupa, no penteado, na escolha da música, estamos realmente a ser nós
próprios ou é-se uma pessoa completamente diferente querendo, apenas, que os outros gostem de
nós? Não devia ser assim, mas há casos em que uma pessoa gosta de outra, não pela maneira como
ela é, mas só pela maneira como se veste, como se penteia, como se apresenta. Eu, normalmente,
tento ser Eu e nada mais, mas, por vezes, sinto que faço coisas para agradar aos outros, coisas que
por mim só nunca faria.
A adolescência é uma idade de conflitos mas penso que para mim, e até agora, foi a melhor
altura de toda a minha vida».

Qualquer que seja o sentido do movimento efetuado, todos os pequenos


passos são igualmente sérios, importantes e vividos intensamente pelo adolescente.
O namoro, por hipótese, não pode por isso ser levado a brincar pelos adultos que o
rodeiam, porque mesmo que o próprio o defina como uma «curtição» tem que como
tal ser respeitado: nunca se pode menosprezar ou transformar em objeto de
desvalorização do sentir do adolescente, que assim seria atingido na sua dignidade
e capacidade afetiva de investimento, concretamente de amar (como acontece
muitas vezes através de «piadas» constantes ou proibições exageradas e
despropositadas). Como também não pode ser «gozado» quando vem pedir à mãe
que o ajude a pentear-se, que lhe escolha a roupa que vai vestir ou, até, que lhe dê
«miminho»; nem sequer ser criticado ou chantageado quando repele
agressivamente as tentativas de demonstração de apoio e carinho da «mesma» mãe.
A seriedade referida não significa, contudo, que tais episódios tenham que ser
encarados rigidamente e com o sentido soturno e dramático que a reflexão anterior
pode deixar pressupor. O sentido de humor de jovens e adultos, aliado ao prazer de
viver novas e diferentes emoções e situações interativas, permite uma alegria e
leveza que, a maior parte das vezes, são respeitosos e importantes elementos de
comunicação e compreensão mútuas. Seriedade significa, tão só, que eles têm para
o adolescente um valor que o adulto não pode rejeitar ou escamotear, mas antes
poderá tentar avaliar e respeitar.
Se esta atitude é igualmente válida em relação a qualquer adolescente,
também é sabido que a adolescência é um processo com fases diferenciadas que
implicam uma variabilidade na forma e tipo de interações, bem como nas
prioridades de investimento. Um indivíduo de dezassete anos não tem, agora,
interesses, inseguranças e comportamentos iguais aos que teve aos quinze, e é
necessariamente diferente de qualquer outro com a mesma idade, mesmo que sejam
gémeos. O predomínio da «normalização», que só muito dificilmente cabe no
contexto da compreensão do ser humano em desenvolvimento, torna-se nesta fase
e mais do que nunca, redutor e perigosamente anulador do respeito pelo individual.

Os movimentos de mudança coevolutivos são necessários e notórios em todos


os membros da família e no sistema na sua globalidade, pelo que o sistema passa
por uma adaptação estrutural que permite a continuidade funcional e
organizacional. No Dicionário de Terapias Familiares Sistémicas diz-se que a
adolescência, «entre a infância e a idade adulta, se caracteriza por um processo de
maturação que dá ao indivíduo a possibilidade de adquirir o conjunto de elementos
que lhe permitem autonomizar-se em relação à sua família de origem. Estes
elementos são de ordem psicológica, económica, profissional e cultural. Para o
sistema familiar a partida dos filhos é a fase mais longa e mais difícil do seu ciclo
vital, já que deve ser mantido um equilíbrio entre as exigências do sistema e as
aspirações individuais de cada membro da família» (Bénoit et al., 1988, p. 3).
5
Este equilíbrio não se refere somente aos adolescentes, como já afirmámos
anteriormente. Retomando os diversos esquemas classificativos das etapas do ciclo
de vida da família indicados no Capítulo I, verifica-se que, consensualmente em
relação a este período, os autores apresentam como tarefa do sistema familiar
facilitar o equilíbrio entre liberdade e responsabilidade, em interação com a
comunidade e com a criação de interesses pós-parentais. Isto implica a
renegociação das relações pais-filhos e a recentração na vida conjugal e profissional
por parte dos pais. A «autonomização» do par parental/conjugal em relação aos
filhos (a redefinição afetiva e funcional da parentalidade) é, assim, tão importante
quanto a inversa.

Crise em etapa de passagem?

Apesar de toda a ênfase posta no capítulo inicial sobre o valor semântico de


crise, muito preciso no contexto teórico-epistemológico concreto em que nos
situamos, é importante sublinhar o carácter radical de transição desta etapa não só
enquanto passagem de um estado a outro, mas fundamentalmente enquanto trajeto.
Com valor diferente duma reestruturação consequente a uma entrada ou saída
concreta de um elemento do sistema (como é o caso de um nascimento ou uma
morte), nesta etapa conclui-se o processo de uma lenta maturação que prepara a
saída do(s) filho(s) do sistema: eles adquirem nesse trajeto as competências que lhes
facultam uma mudança de estado psicossocial (de criança para adulto) e a família
nuclear prepara-se para «regressar», de algum modo, a uma fase aparentemente
ultrapassada há já longo tempo (a primeira do ciclo vital, de constituição de casal) 2.
A família nuclear, depois deste período, recentra-se de novo na conjugalidade,
redefinida em função da meia-idade dos elementos do casal e do abandono do
predomínio da parentalidade. É neste contexto que se frisa a noção de adaptação
estrutural, em que o conceito de transformação adquire contornos mais visíveis e
palpáveis3.

Esta fase marca, portanto, o «fim» de um outro ciclo incluído no próprio ciclo
de vida da família, iniciado com o nascimento do primeiro filho, e ao longo do qual
se foi invertendo o sentido de fecho funcional do sistema em relação ao meio, para
uma abertura progressiva que se aprofunda com a entrada dos filhos na escola e que
culmina com a sua adolescência. Pode então falar-se mesmo de dois ciclos de vida
da família: o que decorre na presença física dos filhos e o que se processa na sua

2
Como indicámos no Capítulo II, o casal ao longo da sua relação passa também por diferentes fases,
em que está em permanente reavaliação. Nessa evolução, a saída dos filhos de casa reveste-se de um
valor particular, uma vez que a parentalidade deixa de funcionar como «espaço de tréguas» na
conjugalidade, enquanto a possibilidade de desvio (triangulação) diminui drasticamente.
3
O conceito de transformação, explicitado no Capítulo I a propósito da mudança nos sistemas,
refere-se à emergência de um novo padrão funcional e relacional na auto-organização familiar.

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ausência física. De forma global, a adolescência dos filhos marca também na família
outra passagem ou transição de ciclo.
No sentido de reforçar a opção de caracterizar esta etapa como passagem, está
não só o facto de que esta atribuição está muito mais próxima do que se passa com
o adolescente e a família em termos psicossociais, como a existência em termos
semânticos da conotação negativa da associação «crise-da-adolescência», a todos
os títulos redutora do essencial deste processo.

Transformação

Em termos dinâmicos e estruturais a primeira palavra-chave desta etapa é,


como seria de esperar, flexibilidade; a segunda é continuidade. A flexibilização em
termos de limites (que são, afinal, normas ou regras familiares) é exigida pelo «vai-
e-vem» do adolescente entre interior/exterior do sistema e pelos avanços e recuos
na autonomia por ele protagonizados; deste modo há necessidade ora de «apertar»,
ora de «afrouxar» esses limites.
A nível da sua reorganização prossegue-se com o movimento iniciado na fase
anterior; de facto, as diferenças entre as duas etapas são essencialmente qualitativas,
uma vez que a mudança prossegue no sentido já indiciado e anunciado. Talvez este
aspeto possa explicar porque há autores que não as distinguem e justifique o
aparente nonsense de outros que a classificam como «período estável» (stable
stage), ou, ainda, o paradoxo de uma frase caracterizadora da adolescência que
lemos algures: «nada de novo, tudo de novo». Em termos dos elementos que
compõem a família há estabilidade, não há entradas ou saídas: o «Nada de novo»
poderá ir mais longe referindo-se à manutenção do sentido dos movimentos já
iniciados, enquanto o «tudo de novo» se pode reportar à diferença qualitativa desses
movimentos e respetivo processo, bem como ao seu outcome.
Clarificando o que acontece em termos estruturais: a redefinição de limites
prossegue, no reforço da diferenciação intra-sistémica e da abertura do sistema ao
exterior, acabando por se tomar qualitativamente diferente no sentido em que a
renegociação funcional que lhe subjaz vai conduzir a uma nova definição dos filhos
no interior da família, bem como dos papéis parentais que lhe deverão ser
correlativos. No final desta etapa, o subsistema parental não tem mais como função
o controlo e a educação das gerações mais novas, restando-lhe uma função de
suporte basicamente relacional e afetivo, enquanto o subsistema filial deixa de estar
colocado numa posição de dependência hierárquica.

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Congruentemente há uma «desvalorização» (insistimos funcional) destes dois
subsistemas na vida familiar e a já citada recentralização no subsistema conjugal,
que assim fica mais livre para o renovar da relação, mas também mais sujeito a ter
que se confrontar diretamente com as suas dificuldades particulares. Por outro lado,
cada um dos elementos que constituem estes subsistemas ficarão ainda mais livres
para investimentos individuais, profissionais e outros.

É interessante notar como, à semelhança do que é afirmado por alguns autores


da psicologia do desenvolvimento individual em relação à adolescência quando a
caracterizam como um segundo nascimento (nascimento para a vida adulta),
também na família e em termos estruturais há como que um segundo nascimento,
na medida em que se regressa ao início da vida do sistema, pelo menos em termos
dos elementos que a compõem: é o reinício de ciclo de que falávamos.
Se a mudança, ou seja, a transformação do valor funcional desses dois
subsistemas se torna demasiado ameaçadora para a família, a fim de a evitar, pode
ocorrer a sua rigidificação, com recurso a triangulações (e.g., pai-mãe-filho) ou
coligações (e.g., mãe e filho contra o pai).
Este aspeto ajuda a compreender algumas das mais frequentes patologias
associadas à adolescência. É sabido que a família com um filho toxicodependente
apresenta tipicamente, a nível estrutural, características desse tipo: casal/par
parental desentendido, cujo conflito é negado e desviado através da focalização no
filho-sintoma ou da sua aliança com um dos progenitores (habitualmente a mãe);
por outro lado, a presença do problema exige a manutenção de um subsistema
hierarquicamente superior e com autoridade reforçada.

Independência, autonomia e identidade

Com o advento da maturação sexual, de novas e mais complexas capacidades


cognitivas e físicas, os filhos iniciam o processo que os faz quebrar a dependência
infantil e os conduz ao mundo social extra-familiar. Para eles significa buscar a
autonomia, aventurar-se fora da matriz familiar, sem, no entanto, cortar
abruptamente com os laços familiares e o suporte que eles lhes fornecem. Para os
pais significa um abrandamento progressivo do controlo exercido sobre os filhos e
o aumento correlativo da flexibilidade das normas familiares face à sua crescente
independência.
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Independência e autonomia são conceitos interligados e omnipresentes. Por
independência, e em termos absolutos, entende-se a capacidade que o indivíduo
possui para satisfazer as suas próprias necessidades básicas, necessidades até aí
satisfeitas por aqueles de quem se é dependente (neste caso os pais ou outros adultos
com funções parentais). Implica a assunção da responsabilização individual pelos
assuntos e opções próprias. Em termos familiares a aquisição da independência
inclui o ajustamento de sentimentos e comportamentos dos diversos membros da
família, uma vez que não se restringe à emancipação aos níveis económico e físico,
mas também se refere à afetividade e à capacidade de assumir valores, juízos e
decisões próprios. Por outro lado, a independência é, ainda, parcialmente definida
pelas expectativas culturais e da comunidade em que os indivíduos e as famílias se
inserem; o facto de se ir passar ou não os fins-de-semana à casa paterna numa fase
«pós-dependência» pode ter muito que ver com o meio sociocultural de origem.
Por autonomia entende-se a aspiração fundamental do indivíduo em
«conseguir obter a sua independência e o controlo de si próprio, necessariamente
limitados por ligações naturais, pela impossibilidade de uma "diferenciação de si"
total e absoluta (Bowen) e por outros factos da vida» (Bénoit et al., 1988, p. 26).
Porque é um conceito radicalmente relacional, pode falar-se em autonomia
adquirida ou criada pelo indivíduo (ou sistema) em qualquer idade da vida ou
situação em que esteja implicado. A consciencialização da relatividade da
autonomia é fulcral: nunca se é completamente autónomo e o indivíduo ou o sistema
inserido no meio auto-organiza-se em função do grau de responsabilidade que pode
assumir.
Parece assim mais difícil atingir o que poderíamos chamar uma «autonomia
de valores» (Sprinthall & Collins, 1988, p. 225-271) (formulação de juízos e
opiniões como resultado de um pensamento «independente» que não significa,
necessariamente, pensar de modo totalmente diferente dos outros, mesmo dos pais)
do que uma autonomia física e económica. Os pais desempenham um papel
importante no processo de aquisição deste tipo de autonomia pelo adolescente,
permitindo-lhe não só a expressão das suas opiniões, sem abdicarem das suas
próprias ideias e valores (aspeto extraordinariamente relevante), como também
facilitando-lhe o que se pode considerar o «treino» desta capacidade, encorajando-
o a que o faça e estimulando-o a considerar aspetos adicionais e pontos de vista
alternativos para as situações. Envolvendo os filhos em discussões construtivas e
respeitando as suas opiniões, mostram-lhes de modo concreto e positivo, o valor da
diferença e do respeito mútuo, sem «sermões» ou conselhos que pouco valem e que,
como diz o provérbio, são «a única coisa que se dá de graça».

Um conjunto de investigações conduzido sobre as diferenças de estilos


educativos dos pais em função da classe social e no que se refere a esse treino
identificam dois padrões distintos e opostos de comportamento no que diz respeito
ao seu papel na transição dos filhos para a autonomia:

1) Famílias onde é rapidamente concedido grande grau de autonomia no que


se refere ao exterior (por exemplo não se questiona onde vai com os amigos ou
com o gasta o seu dinheiro), enquanto em casa se espera e exige que o adolescente
se conforme aos desejos paternos; classes dos níveis mais baixos;
2) Famílias em que sucede exatamente o contrário, restringindo-se o grau de
autonomia em relação ao exterior, enquanto dentro de casa é dada toda a atenção às

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opiniões, juízos e decisões do adolescente, sendo este inclusivamente estimulado a
participar nas tomadas de decisão familiares; classes dos níveis mais elevados.

No primeiro caso observa-se que a influência da família deriva da coerção;


no segundo, há alguma restrição e insegurança na aplicação de competências sociais
no exterior, embora sejam famílias que proporcionam melhor aprendizagem do que
as primeiras. O desejável, em termos de treino da autonomia, seria a combinação
dos dois padrões, isto é, fomentar a autonomia dentro e fora de casa, embora sem
permissividade.

Tal como acontece noutros temas, Robin Skinner é exemplar na resposta a


John Cleese que o questiona sobre a ajuda que os pais podem dar aos filhos neste
sentido: «Podem encorajar os seus interesses e atividades fora de casa. E em casa
podem oferecer-lhe um espaço onde eles possam exercer a sua liberdade sem
constrangimentos desnecessários - o quarto de dormir, por exemplo. Cada
adolescente declara mais ou menos a sua independência transformando o seu quarto
num local completamente diferente do resto da casa. E isso está correto. Mas nas
áreas comuns, que têm que partilhar com os pais e os irmãos, é importante que
aqueles insistam num comportamento razoavelmente social: deixar o quarto de
banho arrumado para quem vier a seguir, ajudar nas tarefas de casa, etc.» (Skinner
& Cleese, 1990, p. 260-261).
Esta afirmação de Skinner recorda-nos a história de um adolescente, que, para
experimentar o computador novo, aproveitou para escrever o seguinte aviso/pedido
num cartaz que colou na porta do quarto: «P. f. Não Incomodar! Obrigado». Com
efeito, alguns pais em relação aos filhos adolescentes «esquecem» o que não é mais
do que uma regra de elementar boa educação, e não fazem o que seria minimamente
de esperar como sinal de respeito pela privacidade dos outros: bater à porta do
quarto antes de entrarem. Quantas vezes isso acontece mesmo quando exigem (e
muito bem) que o inverso aconteça, ou seja, que o filho não entre no quarto dos pais
sem antes anunciar que o vai fazer. É nestes pequenos nadas do quotidiano que os
pais podem respeitar, fazer-se respeitar e auxiliar na construção de uma autonomia
desejável e muitas vezes desejada.
Frequentemente existe, de facto, um consenso alargado entre pais e filhos
sobre a necessidade da aquisição da autonomia e delimitação de espaços próprios.
O desacordo e o conflito surgem em relação ao que ambas as partes consideram as
áreas de decisão pessoal em oposição às comuns, bem como sobre a forma e timing
da flexibilização do controlo parental. Aprofundaremos mais tarde este aspeto ao
analisar a evolução das relações pais-filhos, particularmente no que diz respeito às
questões de regulação do poder e da autoridade.

Independência e autonomia, não como forma de rutura ou isolamento em


relação à família, mas antes como autorresponsabilização e afirmação de si,
inclusive no seu seio, interligam-se na possibilidade de realização da grande tarefa
do adolescente analisada em termos psicossociais mais latos, isto é, na aquisição da
identidade. Segundo E. Erikson (1972), um dos autores de referência no estudo da
adolescência, a aquisição da identidade consiste na integração de todas as
identificações numa única identificação, ou seja, na determinação de um papel e
lugar no mundo (definição do self). A sociedade está organizada de modo a
conceder ao adolescente este espaço de tempo, como uma fase de experimentação
das tarefas do mundo adulto (moratória psicossocial: namoro/casamento;

10
estudo/mundo laboral e profissional; etc.). Ao permitir a lenta progressão para a
identidade adulta e madura, retarda, afinal, o «pagamento da dívida» face à geração
precedente.
Na atualidade, o alargamento deste tempo de espera, através por exemplo do
prolongamento dos estudos e consequente diferimento da independência financeira
e laboral, associado a uma falta de perspetiva e confiança em termos de futuro, faz
com que a tarefa da família se complexifique num recrudescimento de dificuldades,
uma vez que há uma inversão do que seria esperável neste processo. A
independência física e económica, que deveria funcionar como uma base para o
definitivo estabelecimento de uma autonomia sócio-afetiva, ou pelo menos ser-lhe
contemporânea, é cada vez mais tardia, não sendo raro que a segunda se processe
mais rapidamente do que a primeira: o indivíduo já definiu a sua independência
psicológica, embora ainda seja dependente economicamente da família. E o bom
senso e inteligência levantam-lhe a questão: «Como posso viver de acordo com os
meus próprios modelos se ainda são os meus pais que me sustentam, me alimentam,
dão a roupa e a casa?». Mesmo antes desta realidade, a sua expectativa («o mais
provável é acabar o curso e não conseguir um emprego!») interfere nas vivências
individuais e familiares. Como afirmava um adolescente, por acaso até bom aluno,
«talvez não fosse má ideia perder um ou dois anos! Afinal acaba-se o curso e o que
é que uma pessoa vai fazer? Pedir dinheiro aos pais para viver " numa" de não fazer
nada? Pelo menos assim os pais têm obrigação de continuar a pagar os estudos e
nós de estudar! De outro modo, arriscamo-nos a ser colecionadores de cursos». A
nova definição de um outro papel, não só na comunidade mas também na família,
fica assim entravada.

Este aspeto assume novo valor quando se sabe que não é só o adolescente que
caminha em busca de uma identidade e autonomia, mas que também os pais se
defrontam com um processo semelhante de redescoberta ou redefinição da
identidade e autonomia individual e de casal. Durante os longos anos em que
ocuparam o seu tempo, centrando-se quase em exclusividade no «tomar conta» dos
filhos, não tiveram consciência, muitas vezes, de que essa dedicação tinha como
objetivo último prepará-los para a saída de casa, e de repente, face à sua autonomia
crescente, dão-se conta que, como diz Daniel Sampaio (1994), o fizeram para que
«os filhos deixem de pertencer aos pais», já que, em termos da relação mútua, esse
é o valor da sua autonomia.

Este sentimento, misto de abandono/tarefa concluída, é agravado por fontes


de stress complementares desta fase, conhecida vulgarmente como «crise da meia-
idade». Há que equacionar o que se pretende dos últimos anos da vida.

11
Os pais dos adolescentes enfrentam conflitos e dificuldades num processo de
(re)afirmação da identidade semelhante ao dos filhos, embora de modo diverso. Não
raramente sentem-se pressionados por uma carreira profissional frustrante ou
demasiadamente absorvente. Vivem desiludidos com um casamento estéril, ou no
qual já se apagou a chama, quando se olha aquele homem ou mulher com quem se
vive e não se reconhece o indivíduo por quem há muito tempo atrás se estava
apaixonado. Sentem-se confusos, indecisos e culpabilizados face à geração
precedente (dos próprios pais) que agora faz um movimento de reaproximação
baseado na necessidade de apoio e proteção. Esta pressão que lhes exige tempo e
dispêndio de energias suplementares, pode contribuir para as dificuldades de
negociação junto do adolescente, apontadas como falta de diálogo, de paciência, de
atenção, em suma, como uma certa negligência parental com entrega dos filhos a
terceiros: escola, grupo de amigos, etc.
Neste contexto de obstáculos surgem os «desvios», o tornear das situações
pela impossibilidade de as enfrentar ou a centração numa área específica dessas
dificuldades: arranja-se um cão em que se investe como se fosse um filho, ou tem-
se mesmo mais uma criança, que nasceu por descuido não se sabe bem como.
Investe-se a «200%» na profissão, porque é necessário chegar ao topo da carreira e
não há tempo para mais nada. Surgem as relações extraconjugais mais duradouras
e significativas que espantam os amigos porque são estabelecidas com alguém tão
parecido com o que era o cônjuge. Crescem a quantidade de doenças e as idas aos
médicos, centra-se o quotidiano na preservação da saúde como único bem que
individualmente restou. Outras vezes, de modo mais consistente e como resolução
eventualmente mais saudável dos conflitos, surgem os divórcios ou a possibilidade
de renovar a relação de casal (para o qual agora há mais disponibilidade).
Descobrem-se novas potencialidades e interesses na vida em que é possível investir
de forma mais madura.
O problema da mulher que não trabalhava fora de casa, e que na sequência da
saída dos filhos ficava sem qualquer objetivo de vida ou ocupação, não foi, como
se vê, anulado com a inversão da situação e estatuto das mulheres. Em qualquer dos
casos, se o emprego pode ajudar a resolver uma das dificuldades, não deve ser
encarado como o meio de evitamento de outros conflitos, nem pode ser impeditivo
da busca de renovados objetivos de independência, autonomia e identidade.

Como aponta V. Satir, a adolescência dos filhos pode ser o motor para a
entrada de uma lufada de ar fresco na vida dos pais e mesmo de toda a família,
através de um processo equivalente de autonomização entre pais e filhos que
implica perdas e ganhos de ambos os lados.
Não há que negar as grandes diferenças entre gerações existentes no seio da
família, fundamentais, aliás, para o desenvolvimento e progressão contínua do
sistema familiar através da sua aceitação e da negociação que provocam. Mas nem
os adolescentes são «monstros» incontroláveis ou, ao contrário, «uns coitadinhos»,
nem os pais são as suas vítimas ou carrascos, nem sequer os seus «construtores».
Também não há que negar que entre ambos existem grandes semelhanças:
para além do facto de que quando se belisca um adolescente ele sente dor tal como
o adulto, grande parte das manifestações de violência no adolescente correspondem
à necessidade de esconder temores e inseguranças, tal como no adulto. A grande
dificuldade dos pais em reconhecerem, aceitarem e enfrentarem os sinais de
possível alcoolismo ou toxicodependência nos filhos corresponde a uma das
características relacionais destas patologias, isto é, a mecanismos de fuga e

12
evitamento do conflito. Se o adolescente faz uma caminhada no sentido da
independência e autonomia, existe o recíproco por parte dos pais que têm que
reconstruir a sua independência em relação ao exercício da parentalidade.
Mesmo em termos de valores e objetivos, essas diferenças não são tão
rigorosamente marcadas quanto se imagina, sendo certo que, até para melhor
responder às tarefas deste período, pais e filhos sobrevalorizam as diferenças e
subestimam as semelhanças.

Cats in the Cradle4, interpretada pelos barulhentos e inconformados ídolos


dos atuais adolescentes, os Ugly Kid Joe, toca-nos ao revelar o sentido desta
transitoriedade geracional

………………………
My son turned up just the other day
said: «Thanks for the ball! Dad come on, let's play!
Can you teach me throw?»
I said: «Not today! I've got a lot to do»
He said: «That's o.k.!» He walked away and
smiled as he said: «You know, I'm going to be
like him! You know I'm going to be like him!»

Cats in the cradle and the silver spoon


little boy, blue and the man on the moon
«When you are coming home, son
don't know when we'll get together then
you know we'll have a good time, then»

Well, he carne from college just the other day


he was so much a man I just had to say:
«I'm proud of you! Can you sit for a while?»
and he shook his hand and said with a smile:
«What a feeling like, dad, it is to borrow the car keys.
See you later! Can I have them, please?»

Long since retired and my son was now moved away


I called him just the other day:
…………………………………
And as I hang up the phone
it occurred to me he'd grown just like me.
My boy was just like me.

AS RELAÇÕES PAIS-FILHOS

A mudança nas relações pais-filhos, em termos de uma reorganização da


interação, surge, então, como uma das tarefas desta etapa: há um sentimento de
rejeição por parte dos pais, mas também aqui há que analisar o processo que dá
origem a tal imagem. O que se verifica é uma evolução da relação num movimento

4
Cats in the cradle conta a história de um pai que fala da evolução da sua relação com o filho:
primeiro este pede-lhe para jogarem à bola mas o pai tem muito que fazer... não pode ser nesse dia.
O filho pensa, então, que quando crescer irá ser tal e qual como o pai! No refrão, o pai afirma como
vai ser bom estarem juntos, quando o filho vier para casa. Mas o filho cresceu e chega a casa vindo
da Universidade; tem pressa em sair e pede as chaves do carro emprestadas ao pai, que orgulhoso
do filho que tem, gostaria que ele se sentasse um pouco ao pé de si... Não há tempo! Novamente o
refrão. Depois, o tempo avança, o pai está reformado e quando telefona ao filho repara em algo que
ainda não tinha pensado: «Ele cresceu e ficou tal e qual como eu»!

13
de separação faseado e progressivo. Pepitone (citado em Alarcão, 1986) aponta três
fases: na primeira existe ainda grande dependência face aos pais como fonte direta
de satisfação de necessidades; na segunda os pais (e os adultos e amigos em geral)
começam a ser investidos e avaliados também em função das suas características e,
na terceira, são desinvestidos como elementos nutrientes e autoritários para serem
investidos numa relação de igual para igual.
Na mesma linha, outros estudos sobre a perceção/compreensão que os filhos
têm sobre a natureza das suas relações com os pais apontam para resultados que
confirmam e clarificam os anteriores. No seu processo de crescimento, os
adolescentes passam por diversos níveis de compreensão da natureza da sua relação
com os pais até atingir o último e mais avançado: depois de os pais serem vistos
como fontes de satisfação de necessidades, a que os filhos correspondem com
gratificação da parentalidade (guidance, counselor and need-satisfier), passa-se ao
nível em que pais e filhos mostram tolerância e respeito mútuo e em que os
adolescentes começam a reconhecer que, tal como eles, também os pais tem
necessidades, para finalmente (na fase terminal da adolescência, início da fase
adulta), se considerar que as relações mudam em função das circunstâncias,
capacidades, e necessidades de cada mudança (Selman, 1980).
Este evoluir progressivo é encontrado, de novo, num estudo de Eurico de
Figueiredo (1985) sobre o conflito de gerações, feito no nosso país com um grupo
de indivíduos dos dez aos dezanove anos, em que se analisam três movimentos
conflituais: autonomia/dependência, obediência/desobediência e
idealização/desidealização. Mostra que há uma tendência, constante e progressiva
com a idade, no sentido da valorização da autonomia, desobediência e
desidealização dos pais. Isto pode ser traduzido (e sentido) pelos pais como perda
de amor, autoridade e admiração por parte dos filhos. Quando tal acontece, numa
idade em que, como vimos, ao nível de outros investimentos sociais e afetivos se
exercem sobre os pais pressões de toda a ordem, pode concorrer para que sintam
um decréscimo da autoestima.
O que, no entanto, parece estar em jogo é a transição feita neste período pelos
adolescentes, e na qual os pais são cada vez menos encarados como autoridades em
todas as matérias sabendo virtualmente tudo (processo de desidealização), à medida
que aqueles se vão considerando competentes em certos domínios e logo com
capacidade para tomarem decisões. A crença crescente do adolescente de que tem
mais conhecimento sobre determinada situação do que os pais, traduz-se na
resistência em aceitar os seus avisos e instruções, ou mesmo na rejeição ativa que
faz desses conselhos e pode sobregeneralizar-se, de tal modo, que este não acredita
na competência efetiva dos pais em nenhum domínio, mesmo quando de facto a
possuem.
A convicção «os pais são os maiores, sabem tudo» evolui para uma outra, «sei
tudo»; só posteriormente a relativização dos diferentes saberes pode ser aceite. Este
é um fator que ajuda a explicar o aumento progressivo da desobediência encontrado
por Eurico de Figueiredo. Caricaturalmente pode dizer-se que a desidealização dos
pais é acompanhada por uma idealização de si próprio. No evoluir adolescente
passa-se de uma fase de idealização dos pais, a outra de idealização do adolescente
para finalmente se atingir o equilíbrio da relativização.

14
A idealização do adolescente por si próprio é tão necessária quanto o foi a
que fez em relação aos pais, para que adquira confiança nas próprias capacidades
que assim serão testadas e sujeitas à prova da experimentação. Por isso o correr
riscos desnecessários (na perspetiva dos pais, em função da sua própria
experiência), a revolta e a desobediência não são dramas nem tragédias quando
encarados pelos pais como sinais de crescimento e pelo próprio como afirmação
das suas capacidades; a paciência e calma de ambos os lados é importante porque
se trata de um processo de experimentação longo no tempo e não substituível pela
racionalização. Também é de notar que paciência não significa, por parte dos pais,
«deixar correr» ou estar menos atento, uma vez que a outra vertente da construção
da confiança é o estabelecimento de limites e normas, nunca rígidos mas bastante
firmes, como veremos um pouco à frente quando se referir o jogo do equilíbrio do
poder/autoridade.

Conflito

É fundamentalmente neste contexto que se situa o mais consensual «rótulo»


das dificuldades desta etapa, ou seja, o famoso conflito de gerações. Parece mais do
que claro que ele é necessário e inevitável para que o adolescente prossiga no
caminho da aquisição da identidade e da construção da autonomia, facilitando até,
de algum modo, a independência parental.
O conflito reflete o embate entre os pontos de referência definidos pela
família (e cada um dos seus componentes) que incluem, obviamente, a forma como
foram integradas pelo sistema as normas e valores sociais e culturais, e as regras
que a geração mais nova vai construindo e os valores por que vai optando. Na
diferença, no desacordo de opiniões e nas diferentes visões do mundo, vai-se
construindo a autonomia e identidade dos adolescentes. Sem esse contraponto, sem
a presença de linhas e normas firmes estes não o podem fazer com segurança, já
que é a definição de limites imposta pela própria família que lhes permite a primeira
avaliação da justeza e correção das suas próprias convicções, para depois partir com
elas para o exterior (onde também necessitam de outras fontes de suporte como, por
exemplo, o grupo de iguais).
Não havendo dentro da família com o que se confrontar não haveria conflito,
mas também não haveria possibilidade de crescimento saudável porque, ou os
adultos ou os adolescentes ou ambos, entrariam no jogo do «como se». Isto é o que
aliás acontece nos sistemas em que ameaça sentida face à mudança é demasiado
forte e, por isso, em vez da flexibilização relacional e da aceitação e gestão do
conflito, surge a tentativa da sua anulação pela via da rigidez, expressa quer na

15
permissividade absoluta quer na repressão extrema.

Alguns estudos interessantes em relação aos efeitos dos estilos educativos5


dos pais em diferentes culturas (concretamente a dinamarquesa, estilo
predominantemente democrático e a norte-americana, predominantemente
autoritário) e subculturas (em função de diferenças étnicas e de classe social)
mostram precisamente que onde há maior discussão e maior partilha na tomada de
decisões, constata-se a existência, por parte dos filhos, de maior inconformismo,
sentimento de independência e liberdade, maior autoestima e a predominância de
um locus de controlo interno. Observou-se também uma maior consonância entre
as atitudes e comportamentos destes adolescentes e as expectativas parentais
(resultados encontrados na cultura dinamarquesa e classes média-alta e alta).
Verificou-se, ainda, que o estilo educativo permissivo resulta numa escalada de
comportamentos, nomeadamente de rejeição parental e de carácter antissocial, que
escapam totalmente ao controlo dos pais, pais (cf. Kandel e Lesser (1972) e Psathas
(1957), citados em Sprinthall & Collins, 1988).
Neste contexto não resistimos à tentação de, novamente, citar R. Skinner pela
capacidade que revela em comunicar, de modo simples e claro, a complexidade
desta questão, no que corresponde a uma síntese do nosso pensamento: «Se os pais
aceitarem que a luta é necessária para o bem dos filhos, traçam-lhes linhas firmes e
oferecem-lhes algo contra que lutar. É claro que devem ajustar as linhas de vez em
quando, pois à medida que as crianças vão crescendo e se tornam independentes é
bom que lhes seja dado mais espaço. Mas é importante que os pais não se prendam
aos pormenores da luta e que pensem que nem todas as discussões se resolvem no
momento. Não devem preocupar-se por pensarem que estão a agir mal, nem devem
tentar desesperadamente endireitar as coisas. Se eles se adaptarem às necessidades
dos mais novos, se tentarem agradar-lhes e fazê-los felizes não só se sentirão cada
vez mais desorientados como não estarão a dar a resposta adequada à situação. O
essencial de todo este processo é que o adolescente está à procura de qualquer coisa
contra que lutar. E se os pais estiverem constantemente a ceder, o adolescente tem
que procurar desesperadamente um comportamento que provoque uma reação, o
que faz com que o conflito cresça até os pais marcarem uma posição ou até o filho
deitar fogo à casa. (...) todos os pais devem gostar de saber que a existência de um
certo conflito é normal, pois normalmente esse conflito apanha-os de surpresa. (...)
podem ser levados a adotar uma atitude firme se compreenderem que (...) é sempre
necessário» (Skinner & Cleese, 1990, p. 261-262).

Já vimos que o conflito nesta fase não se limita ao que se circunscreve às


relações entre adolescente(s) e adulto(s): pais/filhos, alunos/professores,
associações juvenis/instituições do sistema cultural e sociopolítico.
Em termos da dinâmica familiar as suas manifestações centram-se nalguns
conflitos-base: controlo vs. liberdade; responsabilidade parental vs.
responsabilidade partilhada; valores sociais vs. valores académicos; mobilidade vs.

5
Os estilos educativos autoritário, democrático e laissez faire ou permissivo são definidos a partir
do estudo clássico, conduzido em 1939 por Lewin, Lippitt e White, sobre os efeitos dos
diferentes estilos de liderança no comportamento dos grupos: no primeiro não há possibilidade
de discussão das normas, o líder tem uma atitude ditatorial; no segundo o líder orienta o
grupo mas delega e facilita a discussão das normas; no terceiro o grupo fica entregue a si próprio
sem qualquer tipo de orientação por parte do líder.

16
estabilidade; mudança e comunicação aberta, incluindo a crítica desassombrada vs.
sossego e quietude; dedicação a ideais vs. desencanto e vidas descomprometidas.
Se é verdade que essas manifestações se mantêm localizadas na relação pais-
adolescentes, o seu eco faz-se sentir em cada um dos progenitores, conduzindo-os,
eventualmente, ao confronto com outros conflitos que já pouco têm que ver com os
filhos, mas que marcam fortemente a dinâmica relacional da família. É o reativar
dos próprios conflitos pessoais, ou a tomada de consciência dos que envolvem
outros indivíduos significativos, que podem vir a refletir-se, ou não, no conflito
pais-filhos.

É nesse sentido que, na obra atrás citada, Daniel Sampaio afirma que se põem,
então, em causa «falsos equilíbrios familiares», obtidos até aí à custa de cedências,
mentiras e ao pouco poder da geração mais nova. Embora se incluam aqui, as
eventuais dificuldades do casal não são as únicas a ter em conta neste contexto:
valores transformados em mito familiar, como a unidade a qualquer preço ou a
impossibilidade de desacordo entre membros da família podem ser postos em causa,
não só pelo posicionamento do adolescente como também pelo tal «eco» que o
conflito desperta nos outros em termos de autoafirmação e autonomia. O conflito
facilita, então, «a revisão» total da vida familiar, necessária neste período de fim de
ciclo.

Poder/autoridade

Toda a problemática do conflito na relação pais-filhos é atravessada pela


regulação do poder dos seus protagonistas. Torna-se então importante esclarecer o
que se entende por poder. Não se tratando de uma característica absoluta do(s)
indivíduo(s), é encarado numa dimensão relativa ao sujeito e ao tema ou situação
sobre o qual este exercita o seu poder. Na perspetiva das relações familiares, o poder
pode ser definido como «a influência relativa de cada membro da família na
prossecução duma actividade» (Bénoit et al., 1988, p. 533). Deve ser avaliado
sobretudo a nível de processo e não tanto a nível do seu resultado, considerando
cada situação em termos de hierarquia e funcionalidade; tem que ser correlacionado
com a adaptabilidade do sistema e varia no tempo e no espaço. Ao ser exercido
aparece quase sempre sob a qualidade emergente da autoridade.
A firmeza que anteriormente afirmámos ser importante no caminho para a
autonomia implica que os pais não se possam demitir da sua autoridade parental,
tendo que aprender a regulá-la e a conduzi-la a níveis de flexibilidade que facilitem
a sua diminuição progressiva. Digamos que o grau de autonomia concedido deverá
oscilar, em função das situações e dos temas nelas envolvidos, entre um limiar
máximo que impeça a colisão da autoridade parental com a dignidade do

17
adolescente, com a sua necessidade de afirmação, autoestima e confiança pessoal
crescentes, e um limiar mínimo de controlo que possibilite o suporte e segurança de
que ele também necessita.

Para que os pais atuem dentro dos limites desta zona de manobra é então
importante que o exercício de autoridade e a firmeza de convicções não sejam
confundidos com excesso de controlo ou repressão. Poderão pedir
responsabilidades aos filhos pelos seus atos, sem que isso signifique menos respeito
por eles ou o não reconhecimento de uma vontade e capacidade de decisão próprias
em construção.
O que há que banir da relação são frases do tipo «é assim porque eu mando»
ou «que sabes tu da vida para não aceitares o que te digo». Em sua substituição
poderão afirmar: «É assim, porque cheguei à conclusão que era a melhor hipótese;
diz-me quais são os teus argumentos para achares que há melhor solução e podemos
analisar as alternativas» ou «fala-me das tuas experiências e diz-me por que motivo,
na tua opinião, não tenho razão». Essa negociação e o efetivo cumprimento dos
compromissos daí resultantes é importante para o estabelecimento de uma
confiança mútua entre pais e filhos. Se ficou acordado, sem outras condições, que
o pai empresta o carro às quartas-feiras não pode fazer depender a entrega das
chaves do comportamento do filho no fim-de-semana anterior. Antes de firmar os
compromissos é necessário que ambas as partes ponderem bem se têm hipóteses de
os cumprir; caso contrário não se devem comprometer, sendo preferível continuar
com a negociação.
Conceder mais ou menos autonomia com a partilha ou redistribuição de poder
que isso implica não é, realmente, linear ou constante em relação aos sujeitos e às
situações, e frequentemente é aqui, e não tanto no facto de dar mais ou menos
independência, que se situa o desacordo e a incompreensão entre pais e filhos.
J. Smetana (1987, citado em Sprinthall & Collins, 1988) conduziu uma
investigação na qual procurou determinar como é que pais e adolescentes definem
as respetivas áreas de poder e autoridade. Considerou três domínios de
comportamento, um dizendo respeito a «convenções» (comportamentos julgados
na base do acordo mútuo, como por exemplo informar os pais sobre onde se vai,
cumprimento de tarefas combinadas), outro referente a «atos morais» (julgados na
base do respeito por princípios universais, como não tirar dinheiro aos pais, não
dispor da propriedade familiar), e outro considerado «pessoal» (julgado na base da
discriminação individual, como dormir até tarde no fim-de-semana ou decidir sobre
a quantidade de alimentação). Considerou, ainda, uma área de comportamentos
mistos de escolha pessoal e convencionais (o tipo de roupas que se usa, a arrumação
do quarto).
Verificou que pais e filhos estão de acordo quanto à legitimidade do exercício

18
da autoridade parental sobre temas convencionais e morais.
Em relação aos domínios pessoal e misto os pais apresentam mais tendência
para os considerar assuntos convencionais e, portanto, sob a sua jurisdição,
enquanto os filhos o consideram mais de âmbito pessoal e, portanto, dependentes
da sua própria vontade e capacidade de decisão. Há desacordo entre pais e filhos
sobre o que deve estar, ou não, dependente da autoridade parental, quando os
assuntos são percebidos por ambos como estando colocados em diferentes
categorias sociais. Quando não há coincidência na definição das áreas de poder
relativo, aparece a incompreensão e o conflito.

Contudo, o desacordo entre pais e filhos é salutar se motivador de


comunicações claras e contextuadas e quando a manutenção do diálogo não tem
como último e único objetivo o consenso de pontos de vista, mas sim mostrar que
o desacordo, em vez de fatalidade, é enriquecedor da relação. A resultante desse
tipo de diálogo dá expressão concreta à flexibilização da autoridade: haverá
situações e ocasiões em que as opiniões do adolescente são consideradas pelos pais
como adequadas ou aceitáveis e outras em que acontecerá o contrário e os pais não
alterarão a ordem ou indicação dada, particularmente quando as posições dos filhos
colidem com o bem-estar e convicção profunda da família.
De qualquer modo, mesmo neste diálogo, há que estar atento e impedir que a
luta e confronto de opiniões se transforme numa outra em que o que está em causa
é o poder enquanto domínio da relação, o que conduziria a uma escalada simétrica
em que o conteúdo em discussão se tornaria irrelevante. O que está em causa não
são os prós e os contras da ida hoje à noite à discoteca, mas quem tem a última
palavra na tomada de decisão e, por conseguinte, quem ganhou mais esta batalha
(«se vais, sou derrotado e por isso não te deixo ir» ou «se não vou, sou derrotado e
por isso tenho que ir» e a ida à discoteca, em si, deixou de ser importante). As
mensagens de poder trocadas entre pais e filhos comportam muitas vezes, mais ou
menos implicitamente, uma metamensagem que diz: um deles será vencedor e o
outro ficará vencido. Não se pode negar a «luta», nem que nela há vencedores e
vencidos, mas há que tentar que não seja esse aspeto o motor da relação, admitir
que umas vezes se perde e outras se ganha e, fundamentalmente, há que recolocar
a negociação sobre os conteúdos e situações em análise. Este poderá ser um truque
para colocar ambos os contendores na posição de ganhadores.
No seu livro, Daniel Sampaio (1994) apresenta algumas situações do
quotidiano atual que, expressando alguns dos conteúdos mais frequentes nesta luta,
podem conduzir ao tipo de conflitos a que nos referíamos. Elas são, como o autor
as classifica, «momentos decisivos» na aplicação da lei da regulação do equilíbrio
das relações pais-filhos. Acordar ou deixar dormir e, porque não, oferecer um
despertador? Faltar ou não às aulas e o seu valor ou a necessidade de saber distinguir
uma falta esporádica de faltas sistemáticas. Refeições em família ou a «síndroma
das bandejas»; a possibilidade de manutenção de um espaço (ainda) comum, de
preferência sem TV. Discotecas e saídas à noite: sim ou não? Sozinhos ou
acompanhados? A atribuição a cada geração do seu espaço/tempo próprio. Férias,
com ou sem a família; eventualmente, nem sempre com ela, nem sempre sem ela.
Namoros, até que ponto interferir? Mostrar sempre respeito pelo amor
extrafamiliar. Aceitar ou não a mentira; esta é algo a eliminar, se não se quer saber
demais. Exageros até que ponto? Futebol e concertos ou a necessidade de
investimentos exagerados.
Tudo isto são exemplos dos tais comportamentos mistos de

19
convenção/decisão pessoal que pais e adolescentes têm tendência a classificar
diferentemente e em relação aos quais encaram de forma discordante o jogo da
autoridade.

A diferença entre pais e filhos é garante de coevolução se, nos momentos mais
difíceis e dolorosos que a luta provoca, não houver a escalada que se referiu ou,
pelo contrário, a tentativa da sua anulação quer pela transformação dos pais em
simples amigos e companheiros dos filhos, quer pela adultomorfização precoce
destes últimos que assim não têm tempo de beneficiar dessa diferença.
Principalmente, não têm tempo de correr os riscos inerentes às múltiplas
experimentações que têm que levar a cabo.
Quando se diz que os pais em vez de controladores rigorosos devem ser guias
úteis, firmes e coerentes não significa que o seu papel seja dar «conselhos» aos
filhos que muito provavelmente não os aceitam quando não os pediram. A
afirmação frequente de que «tudo o que faço e te digo é para o teu bem», o que até
é verdade, não impede que se reconheça que «de boas intenções está o inferno
cheio», e que o adolescente responda «no que me podes ajudar é a que eu, por mim,
descubra o que poderá ser o meu bem».
Neste jogo da aceitação da diferença é forçoso admitir que ela existe dentro
da própria fratria e que a criação de espaços individuais entre os irmãos é tão
importante como entre as gerações. Por isso a diferença não deverá ser entendida
só em termos etários, mas também em termos de interesses, valores e opções
individuais que não poderão ser nunca anulados em nome de uma justiça familiar
no mínimo cega, se não perversa. O irmão que, contrariamente à irmã, não gosta de
sair à noite, não poderá ser forçado a fazê-lo só porque na família se entende que os
filhos devem ter iguais oportunidades de saídas e vice-versa.

Parafraseando Daniel Sampaio, a presença dos pais junto dos filhos é tão ou
mais importante nesta etapa do que na infância, uma vez que «o seu papel agora é
o de estar atentos, de mobilizar sem dirigir, de apoiar nos fracassos e incentivar nos
êxitos, em suma, estar com eles e respeitar cada vez mais a sua individualização»
(1994, p. 42). Neste contexto faz, então, muito sentido a velha máxima dos
Alcoólicos Anónimos: «Que eu possa ter capacidade para aceitar o que não se pode
mudar, coragem para mudar o que é preciso e sabedoria para reconhecer a
diferença».

CONTEXTOS

Relativamente à dinâmica estrutural e relacional desta etapa foi apontado o


culminar do movimento de abertura do sistema familiar ao exterior. Verdadeira
transação com a sociedade, assenta num jogo de entrada/saída de valores, normas e
interesses, transportados pelos filhos e respeitantes às experiências vividas na
escola, com os amigos e respetivas famílias, que reforçam o confronto com o que
se poderia chamar a «cultura adolescente»6. O papel da escola e do grupo de iguais
tem, sem sombra de dúvida, enorme importância no evoluir desta etapa da vida
familiar pelo que não se poderia deixar de lhe fazer uma referência particular.

6
Cultura é aqui entendida no sentido de código, tal como ficou definido no capítulo anterior.

20
A escola

Se bem que o essencial da relação família-escola não se altere agora em


relação ao que ficou explicitamente referido no capítulo anterior, o papel desta
última vê-se reforçado quando o elemento go-between é adolescente. Observam-se
algumas nuances que vão colorir de forma particular esta relação, atendendo
basicamente às características próprias do adolescente e que, ao estar menos atento,
podem resultar num agravamento das implicações da comunicação indireta e
ambígua entre os dois sistemas e, por consequência, num avolumar das dificuldades
desta etapa.
A escola, pela sua caracterização, objetivos e tarefas específicas, converte-se,
por excelência, no espaço número dois de luta pela autonomia adolescente (isto se
considerarmos a família o número um). O conflito de gerações tem aqui uma
expressão importante, tendo como protagonistas o(s) professor(es) e o(s) aluno(s).
Tal como em relação aos pais, o reconhecimento da autoridade deixa de estar tão
ligado às características pessoais e de personalidade do adulto/professor, como
acontecia nos níveis etários mais baixos, e prende-se mais com a avaliação feita
sobre as suas competências em matéria de ensino.
Vários estudos mostram que se as qualidades humanas e relacionais dos
professores são importantes para os estudantes em geral, independentemente do seu
nível etário, as qualidades de ensino são especialmente valorizadas pelos alunos do
ensino secundário; o que eles pedem aos professores é que «ensinem bem». A este
propósito vale a pena referir· o comentário de um adolescente de quinze anos, aluno
do 10º ano, a respeito de uma das professoras: «Ela é simpática, pois é, e daí? Não
é capaz de ensinar nada! Não faz como os outros que preparam as aulas: vai ao livro
e diz de forma confusa o que lá está; para se perceber qualquer coisa temos que
chegar a casa e ler para entender o que ela queria explicar. Durante uma aula parece
que não consegue concluir uma frase: se temos uma dúvida volta atrás ao livro lê,
gagueja e termina dizendo "...pronto, deve ser isto!". Dá-me cá um abalo que seja
simpática... Pessoas simpáticas há muitas, mesmo fora da escola!». Mas o que é
interessante notar é que, para além disso, os adolescentes valorizam a capacidade
que o professor tem para manter a disciplina na sala de aula (o que não espanta se
pensarmos que corresponde à firmeza exigida aos pais).

A hierarquização dos fatores, para que se seja considerado pelos alunos


adolescentes como «um bom professor», foi assim ordenada por Taylor a partir das
suas investigações: 1) qualidade de ensino; 2) manutenção da disciplina; 3) traços
de personalidade do professor. Também em Portugal foram encontrados resultados
idênticos, podendo afirmar-se que os alunos dividem os professores em duas
grandes categorias: aqueles que se fazem respeitar e os que não se fazem respeitar,
sendo ainda de salientar que são os alunos considerados mais indisciplinados que
mais exigem do professor a manutenção da ordem7. Como acontece com a família,
também o adulto na escola deve procurar o exercício equilibrado da autoridade,
dentro dos mesmos limiares apontados para os pais.
Na continuidade do que referimos anteriormente sobre relação entre o «treino
da autonomia» por parte dos pais e os diferentes estilos educativos da família,
assinale-se, num parêntesis, uma referência feita por Teresa Estrela (1994) que
7
Um conjunto de investigações que apontam neste sentido, e no qual se inclui a de Taylor, é referido
em Teresa Estrela, 1994.

21
adquire, neste contexto, um valor assinalável: há um desajuste entre o estilo
educativo de algumas famílias e o da própria escola em termos do que é definido
pelo seu código, e particularmente ao nível legislativo. Os filhos de famílias das
classes sociais onde predomina, dentro de casa, um estilo autoritário (vulgarmente
personalizado na figura do pai), por oposição a um estilo permissivo (laissez-faire)
em relação ao exterior terão mais dificuldades de integração na escola onde há o
predomínio de uma autoridade não coerciva, tendente para o estilo democrático, e
onde se verifica uma crescente feminilização do corpo docente. Ficam assim
colocados no paradoxo da simultaneidade de dois códigos, bastante diferenciados
no que diz respeito à intervenção direta do adulto em termos de aplicação da
autoridade, o que é complexificado pelo facto de a família se demitir da sua própria
autoridade em relação ao exterior: «Se és indisciplinado na aula o problema não é
nosso, é do professor!».
Na sequência disto surgem os postais sem resposta, as reuniões onde os pais,
sujeito/objeto particular das convocatórias, não aparecem e o posterior sentimento
de impotência por parte do professor que não consegue que «estes pais assumam as
suas responsabilidades», quando aqueles, afinal, não as entendem como suas. E o
insucesso escolar, em consonância com o crescendo dos abandonos, do desinteresse
e da desmotivação por parte de todos os elementos do triângulo, cresce também.
Conclui-se, assim, que se a continuidade temporal do treino da autonomia é
importante para o adolescente, a continuidade de valores e normas dos contextos
em que se vai desenvolvendo não o é menos.

Tal como fazem em casa com os pais, os adolescentes «testam» os professores


em termos de autoridade: «Nos primeiros dias de aulas abusamos da paciência deles
para ver o que fazem. Mas com o professor de Inglês já se sabe com o que contamos.
Ele avisou e a sério: cinco minutos de confusão no início da aula e depois acabou,
não admite desatinos; não vale a pena insistir que ele sabe bem o que faz», foi o
comentário ouvido a um aluno do 9º ano. A indisciplina pode ser considerada uma
das componentes do conflito de gerações na escola: os alunos buscam, necessitam,
quase exigem firmeza e competência por parte dos professores (como o fazem,
afinal, com os adultos em geral), sem que isso signifique que aceitem ser menos
respeitados por eles.
Vejam-se algumas «revoltas» estudantis onde o crescente e, note-se, quase
rígido sentido de justiça dos jovens é nota dominante. Recordemos a luta contra as
provas globais no ensino secundário (cujo auge foi atingido quase no final do ano
letivo de 1993/94) e, independentemente de tudo o resto, as suas afirmações: «Não
é justo que não tenhamos sido bem informados e a tempo; não somos cobaias para
experiências». Ou em casos mais pontuais: «o horário é péssimo e ilegal; não temos
tempo nem sequer para estudar quanto mais para fazer outras coisas que também
são importantes». E faz-se uma manifestação junto do Conselho Diretivo em que
se exige a revisão e reformulação do horário. Ainda outro exemplo: «Se o Conselho
Directivo não aceita a mudança de horário que propomos, por que havemos de
aceitar a que eles querem só para facilitar a vida de um professor? A verdade é que
a nossa proposta é viável e até está de acordo com o que os professores dizem ser
correto em termos de higiene, pois sem essa mudança vamos para as aulas depois
do Desporto sem tomar banho». E surge o inevitável abaixo-assinado...
Das lutas mais generalizadas às mais pontuais, não se trata da contestação
pela contestação ou de chantagem, como muitas vezes são encaradas pelos adultos
estas manifestações. Trata-se antes de um aviso-pedido em que a análise do «para

22
quê» é mais útil em termos da busca de solução do que a descoberta do «porquê»:
«Adultos que tanto dizem que sabem, para vos respeitarmos, façam-se respeitar e
respeitem-nos!».

Contudo, tanto para a família como para o adolescente, a escola, como


instituição, assume um valor que ultrapassa o conflito de gerações: representa o
obrigatório, o não-voluntário, a «tirania» do social e respetivo sistema.
Particularmente, no que diz respeito ao jovem, convenhamos que a escola comporta
uma dimensão algo paradoxal: a componente associada à rigidez das normas colide
com os esforços feitos no seu seio para que o indivíduo aprenda a utilizar de modo
responsável a vontade própria. E não só na escola, mas também em casa, aparecem
as manifestações que correspondem a essa dupla valência: «Nunca alguém me
perguntou se quero ir para a escola, mas obrigam-me a levantar de madrugada, o
que detesto, para ir para lá»; «nunca alguém se interessou em saber se é com estes
colegas que eu quero estar e trabalhar».
É certo que este fator contraditório, quando bem elaborado e integrado, é
importantíssimo no desenvolvimento do adolescente, particularmente em termos da
sua socialização. Faculta-lhe a aprendizagem de que há convenções sociais que
colocam limites ao exercício da liberdade individual de cada um, facto que até é
bem aceite pelos adolescentes, como tivemos oportunidade de ver nalguns estudos
citados anteriormente, se também no meio familiar existir uma continuidade na
educação para a autonomia.

Repetimos: neste sentido o papel da escola é insubstituível, mas se e só


quando contribui para essa integração, ou seja, quando a coerência com este
objetivo e as contrapartidas em termos de benefícios relacionais e sobretudo
intelectuais lhe são claramente apresentados e, mais do que isso, podem ser
profundamente vivenciados, confirmando o valor e o bom senso desta opção social
e comunitária. A escola tem assim enormes responsabilidades em relação às quais
não se pode demitir, ou não pode, simplesmente, transferir para outros: basicamente
existe para ensinar, mostrando o valor e utilidade do que ensina.
Nesta perspetiva, o insucesso escolar, em sentido lato e não só em termos de
notas/avaliação dos alunos face à possibilidade de progressão, pode ser
equacionado não só como o insucesso dos alunos ou das suas famílias, mas também
o da própria escola. Não obstante, a progressão escolar individual do adolescente
tem na vivência familiar repercussões a que importa dedicar algum espaço de
reflexão: as notas e a dedicação à «causa académica» são enfatizadas, em algumas
famílias, como o essencial deste período, quando de facto não o são e refletem
apenas uma das vertentes de um processo. Quando há a sobrevalorização deste
aspeto, em certas circunstâncias acompanhada de expectativas demasiado elevadas
em relação à performance escolar, podem surgir dificuldades acrescidas. As
«notas» podem ser utilizadas indevidamente como moeda de troca de todo um outro
conjunto de comportamentos que tem a sua razão de ser independentemente dos
resultados escolares: «podes ... se»; «posso ... quando»; «exijo que ... se». Noutros
casos podem converter-se no «bode expiatório» das dificuldades relacionais quando
se tornam no único tema de discussão/diálogo entre pais e filhos, constituindo-se,
até, como justificativa permanente para a aplicação da autoridade parental («não te
deixo sair com os amigos porque tens que estudar», e outras explicações sempre
equivalentes). Isto é contraproducente na capacidade de investimento do
adolescente nas atividades escolares, pelo valor de conflito que congregam em si

23
mesmas e pela anulação do prazer eventualmente sentido na relação com o
conhecimento.
Há ainda a hipótese de que tal centralização nas atividades académicas se
torne impeditiva de um olhar atento sobre o indivíduo na sua globalidade, o que faz
com que as suas outras necessidades sejam descuradas e surjam as «surpresas» que
ninguém consegue explicar («foi sempre tão bom aluno, quem poderia imaginar
que se drogava?»). A aprendizagem escolar não pode ser reduzida à performance
obtida e a escola não é, por certo, só um espaço de aprendizagem escolarizada mas
também um importante espaço relacional. Tendo uma função importantíssima na
preparação do indivíduo para a vida adulta não tem, contudo, o seu exclusivo, pelo
que tem que ser equacionada na dimensão relativa que ocupa na vida dos
adolescentes e suas famílias.

O grupo de iguais

O grupo de iguais é outro dos contextos relevantes no evoluir adolescente.


Tal como não se pode falar de adolescência sem falar da família, também não tem
sentido fazê-lo sem abordar o tema do grupo. O grupo de iguais proporciona parte
da segurança e ligação emocional de que o adolescente necessita. Poder-se-ia pensar
que é à família que em primeira análise cabe essa função. Também, mas nunca o
poderá fazer de forma completa, porque não pode dar a resposta que nesse sentido
é dada pelo grupo. É face à separação da família que aquele se assume como
reassegurante porque mais neutro e mais aberto - é por opção ou mesmo seleção
que qualquer um entra e se mantém no grupo.
O indivíduo necessita de um suporte securizante no exterior da família e é
isso que o grupo lhe pode fornecer. Para o adolescente é importante um contexto
relacional onde se possa afirmar e que o possa confirmar sem jogos de hierarquias
ou «cegueiras» afetivas. A questão que um jovem de catorze anos dirigia à mãe é
significativa em relação ao que afirmamos: «Achas que, se não fosses minha mãe,
continuarias a pensar que sou um rapaz interessante com quem se pode gostar de
estar e conversar?». A este tipo de inquietações o grupo, pela sua natureza, dá
respostas «honestas» e em que o indivíduo pode, quase sem reservas, acreditar.

Sendo uma força de suporte e segurança individual o grupo é também uma


força de socialização. Funcionando nessa perspetiva de modo análogo ao
subsistema fraternal, ele permite a competição, a solidariedade, mas igualmente a
definição de limites e normas na relação com os parceiros, com a isenção e não-
interferência hierárquica que a condição extrafamiliar lhe proporciona.
Psicólogos, sociólogos, etólogos estão de acordo neste ponto: a quantidade e
qualidade das interações entre iguais favorecem o desenvolvimento de
competências afetivas, sociais, cognitivas e intelectuais, bem como a aquisição de
papéis, normas e valores sociais. Isto é compreensível na medida em que os iguais
desafiam o indivíduo no que diz respeito à sua conceção pessoal e «impessoal» do
mundo; conduzem à aceitação do compromisso social e, através da experimentação
de pontos de vista alternativos, permitem o treino e aquisição de conceitos como
juízo moral, capacidade de tomada de decisão e de comunicação. Da teoria da
aprendizagem social sabe-se, ainda, que os iguais funcionam como modelos na
aquisição de novas formas de comportamento e que uma vez estabelecido o
repertório de competências sociais (social skills) permitem a regulação de

24
comportamentos grupais aceitáveis e normativos, até porque não se pode esquecer
que os iguais se defrontam com necessidades e dificuldades semelhantes8. Na
síntese apresentada por Birren e colab. (1981), a principal função do grupo de iguais
na adolescência centra-se em três aspetos: 1) facilitar a separação em relação à
família, permitindo aprender a pensar e experimentar com segurança valores não
necessariamente presentes ou aceitáveis na família; 2) favorecer a aquisição de um
certo grau de conformismo face às normas (o que é muito difícil de fazer perante o
adulto) e a distinção entre limites pessoais e sociais ou convencionais; 3) permitir
o desenvolvimento de um autoconceito positivo, reassegurando o indivíduo de que
a sua aceitação foi merecida e não oferecida (earned not granted). No grupo, o
adolescente tem ainda possibilidades de experimentar e desenvolver as suas
capacidades de liderança, testando até os papéis desempenhados e o
posicionamento ocupado na fratria (em princípio os filhos únicos e mais velhos têm
mais facilidade em desenvolver essa potencialidade) (Birren et al., 1981).
Quem são, então, os iguais que constituem estes grupos e como se organizam?
Na seleção dos amigos há também uma evolução concordante com o
desenvolvimento dos sujeitos: primeiramente a idade, o viver perto ou ser colega
na escola apresentam-se como fatores importantes de agregação. Mais tarde, tal
como acontece na avaliação dos adultos, as competências e características
individuais revelam-se mais pertinentes. De qualquer modo, o fator semelhança,
por exemplo em termos de interesses, idades, e mesmo classe social, parece manter-
se, embora com menos peso, em todo o período adolescencial (e até
posteriormente).

O posicionamento da família face ao grupo merece alguma reflexão: como


vimos, este é de algum modo seu rival e pode reforçar o sentimento de rejeição
familiar. Por outro lado, os pais, particularmente, sentem perante o grupo uma falta
de controlo, eventualmente até maior do que em relação à escola. Contudo, no
desempenho da sua tarefa de facilitar a autonomização do filho é forçoso, embora
nem sempre fácil, que permitam a sua integração e participação no grupo de iguais.
A melhor forma de lidar com esta questão é, em princípio, seguir o que é desejável
em termos gerais quanto à aceitação/regulação dos movimentos de independência
dos filhos.
É fácil compreender que a forma concreta como esse processo é regulado se
prende com a ênfase colocada no maior controlo externo ou interno. Assim, tal
como é frequentemente referido na literatura, encontram-se dois tipos de grupos de
iguais bem diferenciados neste aspeto:

1) Os grupos mais formais, de certa maneira controlados pela família, no


sentido em que têm a sua «benção», são compostos por filhos de amigos ou
conhecidos, são bem-recebidos e por vezes é-lhes mesmo oferecido em casa
da família um espaço próprio (famílias que põem a tónica no controlo dos
filhos no exterior).
2) Os mais informais que resultam da seleção de membros feita na escola, na
vizinhança, no futebol, no ballet, etc. e que são claramente «grupos da rua».

Em circunstâncias favoráveis, com o desenvolvimento dos sujeitos e a própria


evolução dos grupos, os dois tipos passam a coexistir ou tornam-se mistos. Noutros
8
Estas referências ao papel do grupo na adolescência, com detalhe de investigações e contributos
de autores como Piaget ou Bandura são apresentadas em Norris e Kenneth (1984).

25
casos, a distinção prevalece e particularmente os grupos informais, de rua, são
muitas vezes considerados pela família como os principais responsáveis pelas
dificuldades relacionais existentes. Transformados em «bodes expiatórios», numa
ótica redutora e linear, os problemas surgem porque «a culpa é dos amigos».

A família pode encarar o grupo como um aliado no processo de crescimento


dos filhos ou como terceiro indesejável, com quem é mais fácil surgirem
triangulações rígidas e inadequadas, porque se situa no seu exterior, o que provoca
no adolescente conflitos de lealdade por vezes dramáticos e de difícil resolução. A
desconfiança nos grupos nunca é resolvida através da repressão, mesmo quando se
justifica nos casos em que, para cumprirem as três funções anteriormente focadas,
os grupos se convertem em verdadeiros gangs, com uma cultura marginal e valores
totalmente opostos aos da família e da sociedade e aos quais é feita a acomodação
do indivíduo. Em qualquer hipótese, a restrição coerciva à participação no grupo
será fator favorável ao reforço da sua influência perante o adolescente.
Tal como em relação às restantes áreas de facilitação de construção da
autonomia, é importante que os pais tomem consciência do valor positivo e
insubstituível do grupo no desenvolvimento do adolescente, para assim melhor
regularem a sua autoridade nesse domínio. Contudo, o temor perante a influência
do grupo dificilmente será anulado9: a família sente essa influência, os
comportamentos do adolescente demonstram-na, as investigações confirmam-na. O
desvio progressivo de influência da família para o grupo (e dos adultos para os
iguais em geral), que se observa com o aumento da idade, é explicável em função
do maior contacto quotidiano e temporal e da sua principal função (reassegurar no
exterior da família). Mas as investigações também mostram que na maioria das
vezes a pressão do grupo não contraria os valores parentais, pelo contrário reflete-
os embora não os duplique10.
Aceitar e integrar o valor e papel do grupo com a flexibilidade e atenção
requeridas em tudo o que diz respeito à autonomização crescente da geração mais
nova é, também, uma tarefa importante da família nesta etapa do seu
desenvolvimento.

Contextualizando...

Os adolescentes de hoje não o são da mesma forma que o foram os seus pais.
Se a dinâmica interna e familiar segue os mesmos movimentos, os contextos
envolventes são diferentes e os desafios, exigências e fontes de suporte são outros.
Ser adolescente em 1996 não é o mesmo que ser adolescente em 1976 ou 56, até
porque a própria família globalmente e como contexto de interação também mudou.
A escola e o seu código evoluíram, a sociedade no seu conjunto alterou as suas
normas de conduta e principalmente a hierarquização dos seus valores. A regra
básica para que os adultos percebam o adolescente não pode ser recordar a própria

9
Tal como a entendemos, influência é diferente de poder: refere-se à capacidade de conseguir obter,
por parte de um sujeito, determinados atos ou comportamentos (ou ainda o domínio da interação)
independentemente de uma definição estatutária ou hierárquica.
10
Estas investigações ou a referência às suas conclusões encontram-se em autores de orientações
tão diversas como, por exemplo, e só para indicar os já citados, Birren (1981), Satir (1991), Sampaio
(1994), Skinner e Cleese (1990), apontando a aproximação entre valores familiares e do grupo de
iguais para níveis de 80%-90% de casos.

26
adolescência.
A tentação é, no entanto, grande. Se não se pode banir da relação a sua
revivescência e o eco que provoca em cada adulto, ter presente esta ideia pode
ajudar a evitar a contaminação e o desperdício de energia na busca de falsas
soluções.

No final desta etapa os pais estão de certo modo preparados para a saída dos
filhos de casa. Ajudaram os filhos na sua própria preparação. Mas resta muitas
vezes uma sensação de frustração: depois de todos estes anos não os conhecem tão
bem quanto gostariam ou antes imaginavam e, finalmente, só veem neles os reflexos
dos cuidados que lhes dispensaram. Talvez se possa afirmar, ainda bem! É uma
dolorosa mas saudável sensação que exprime o respeito pela regra número um na
concessão de autonomia: não é possível desvendar completamente o que se passa
na «cabeça e no coração» de outro alguém, mesmo que seja nosso filho. O respeito
pelo direito à intimidade é inalienável em relação a qualquer ser humano e, em
particular, aos que nos são afetivamente mais próximos.
Feita esta «descoberta», é-se capaz de aceitar o filho «quase» adulto como
alguém maduro, capaz, independente e autónomo com quem se pode estabelecer
relações muito positivas mas de igual para igual, o que, se tal ainda fosse possível,
faria crescer o amor que se lhe dedica... É a alegria de ver nascer um «outro» filho!

Apontamento (quase) à margem

O leitor que tem tido a paciência de ler este livro sequencialmente desde o
Capítulo I poderá neste momento sentir alguma estranheza: nem um caso clínico ...
Não foi distração, descuido ou falta de material! Propositadamente optámos por
ilustrar as nossas ideias com frases soltas e expressões facilmente ouvidas, quando
conversamos com um qualquer indivíduo «adjetivado» como adolescente ou com
elementos da sua família.
A adolescência é por definição um dos períodos da vida em que a distinção
entre o normal e o patológico se torna mais difícil. Sabe-se, por outro lado, que esta
fase se associa ao desencadear de um conjunto de quadros patológicos que levam
alguns manuais a referirem explicitamente as «patologias da adolescência»: a
esquizofrenia e a anorexia mental, são dois exemplos. Patologias de carácter mais
radicalmente psicossocial, como a toxicodependência ou certos tipos de
delinquência, surgem francamente associadas a este período. Não pretendemos
negar ou escamotear tal evidência. A nossa opção teve como objetivo salientar a
outra vertente do problema: as angústias e dificuldades desta etapa estão sempre
presentes em quem passa por ela, e na grande maioria dos casos o seu valor é,
simplesmente, de transição.
Terminamos onde começámos, falando de mitologias e expectativas.
Dramatizar o crescimento, patologizar o normal e «normalizar» o adolescente como
«anormal» face aos mais novos ou aos mais idosos, nada trará de benéfico para o
próprio nem para com quem ele lida. É necessário que os pais, outros familiares,
professores e adultos que diariamente convivem com o adolescente estejam atentos
e não neguem qualquer eventual desorganização psicológica que requeira
intervenção especializada. Mas se, como diria Satir, confiarem no jovem e,
seguindo a indicação de Skinner, viverem as suas vidas normalmente, verificarão
que não o encaram como «um problema» e não se confrontarão com um adolescente

27
problemático. Por isso, preferimos falar simplesmente de adolescentes e famílias
com adolescentes.

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