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Aos interessados: segue artigo autorizado para ampla divulgação. Revista Pátio, maio de 2018. Editora Art Med.

Baseado na experiência clínica/educacional, com referências psicanalíticas e de autores que pensam a


contemporaneidade, tais como Bauman, Zizek, Sennett, Recalcati, Harari, Harris e Ken Loach em seu filme "Eu,
Daniel Blake".

Link do filme: https://www.youtube.com/watch?v=129PJIj-q6E

Bases de um novo livro.

A ADOLESCÊNCIA EM TEMPOS LÍQUIDOS


Carlos Alberto de Mattos Ferreira

 Atualmente, observaram-se mudanças significativas na demanda clínica dentro  da faixa etária que abrange a
chamada adolescência, especialmente entre o período compreendido entre doze (12) e dezoito (18) anos.
Gradualmente, com o advento da revolução digital, diversos sintomas como depressões e transtornos de ansiedades
passaram a ser observados com uma frequência incomum se comparados há uma década. Nada que já não seja tema
recorrente na mídia e preocupante para os profissionais de saúde e educação. Diante dos desafios colocados frente a
uma nova forma de sintomatologia complexa em relação às gerações anteriores, tornou-se necessário buscar dentro e
fora do campo da psicanálise instrumentos necessários para situar as razões de tão profunda perturbação neurótica
com um grau de identificação coletiva muito acentuada. Afinal, qual a influência das mudanças sociais e em que
dimensão estão produzindo tal alteração sintomática nas novas formas de subjetivação da adolescência? 

A busca para essas respostas não é simples, pois as mudanças produzidas pela influência das relações virtuais e das
redes sociais implicam em novas formas de subjetivação muito inovadoras sob uma série de perspectivas das teorias
sociais. E que não estão restritas somente aos jovens mas afetando toda a sociedade, desde a infância até os mais
idosos.

Inicialmente, dentro da própria psicanálise vem sendo feito um esforço de revisão bibliográfica sobre adolescência
em autores de diversas correntes teóricas. Inicialmente, pode-se afirmar que não há registros de descrições
sintomatológicas vinculadas às depressões e transtornos de ansiedade com a importância e a dimensão com que se
apresenta nos dias atuais. Por outro lado, as bases teóricas clássicas em Freud, Lacan e Winnicott se mantêm como
uma importante referência para a orientação do trabalho clínico neste campo.

Tornou-se necessário ingressar no campo dos estudos sociais que discutem a noção de subjetividade e construção
sócio-cultural-econômica. Dentre os mais importantes, iniciou-se com os importantes estudos de Zizek sobre a
posição do sujeito diante da influência da ideologia como constituída pela fantasia, em seu papel primordial de dar
um sentido ao Real.  Base fundamental para pensar a posição do sujeito diante dos novos tempos, principalmente com
o advento quase divino da burocracia da qual nos tornamos cada vez mais reféns. Recentemente, o filme “Eu, Daniel
Blake” nos apresentou o conflito de um homem idoso em sua luta pelo atendimento na saúde e por sua aposentadoria,
que não conseguia resolver sua demanda por estar as voltas com um sistema informatizado e impessoal que
obstaculizava suas tentativas em dar uma solução para seu seguro-saúde. A burocracia se apresenta como uma
experiência traumática, e seu caráter divino advêm por ter se tornada todo-poderosa, onipresente e invisível. 

Por outro lado, as chamadas novas organizações familiares se constituem numa dinâmica imaginária que se move de
forma altamente dinâmica. Não somente no plano dos novos relacionamentos e laços, mas, principalmente pela
observação de certa ruptura na disponibilidade de tempo e convivência entre pais e filhos. Os pais passaram a ser
culpabilizados por tamanha ausência. Mas algo aconteceu para que essa mudança ocorresse.

Outro importante autor contemporâneo, estudioso das relações socioeconômicas e subjetivas foi muito importante
para compreender a entrada da perspectiva da flexibilização do trabalho na formação do caráter do homem
contemporâneo e da implicação dessas mudanças na qualidade das relações dos sujeitos com seus trabalhos, seus
laços de amizade e os laços familiares. Na linguagem de Richard Sennett, trata-se de uma corrosão do caráter,
produzindo novas formas de subjetividades, de relações com o produto do trabalho e a utilização do tempo em função
de novos desafios e metas por produtividade. A sociedade foi afetada devido à instauração de uma dedicação ao
trabalho que rompeu com o tempo regular que envolvia o trabalhador e seu emprego. Nos dias atuais, não há limites
para um tempo/horário determinado, cuja perspectiva contribuía com o tempo para a família e os amigos.
Aparentemente, mais fluido, o flexível tornou o cidadão refém de uma demanda sem fim. E as famílias se ressentiram
dessa ausência demandada por uma exigência social altamente competitiva e produtivista. 

Com esses dois autores, já é possível perceber os desafios do homem contemporâneo para ressiginifcar uma realidade
que afeta sua posição diante do mundo e de si mesmo. Transformação tão profunda que descentra os sujeitos de tal
forma que suas referências passam a ser mutantes a cada dia.
  
E com a referência explicita no título, os trabalhos de Baumann apontam para a profundidade da miríade de afetações
produzidas pela compreensão dos processos que envolvem a sociedade líquida em detrimento de uma experiência
estável das gerações pré-redes sociais. A cultura das metas e do desempenho pode inscrever nos sujeitos, muitas
vezes, a imagem do ser fracassado sem que ele perceba ser uma vítima de um modelo que visa a uniformizar os
comportamentos.

Alguns outros autores também contribuem para ajudar nas análises dessas mudanças e seus efeitos na sociedade e,
mais especificamente, na adolescência. Destacam-se, em especial, os estudos de Harari sobre as transformações do
homem na história da humanidade e o efeito da religião do consumismo, como ele o chama, nos dias atuais.
Na ausência de utopias coletivas e de valores humanistas, associados a uma sociedade extremamente competitiva,
emerge uma falta de sentido existencial. Sentimentos como a tristeza, por exemplo, não podem ser compartilhados
por poder revelar fragilidade e, por consequência, fracasso. O estudo de Harris sobre a perda da vivência dos jovens
sobre a experiência da “ausência” para quem nasceu e vive num mundo hiperconectado, também contribui nesta
reflexão sobre como a experiência do vazio existencial, do silêncio interno e do exercício da contemplação são
vividos, muitas vezes, com muito sofrimento.

Esses autores contribuem de forma muito construtiva as mudanças que vem ocorrendo na sociedade contemporânea
na constituição de novas subjetividades. 

Em relação a psicanálise, Freud sempre nos lembrava de que a teoria é muito importante, mas não impede que as
coisas sejam como são. E parece-nos que as mudanças pedem um novo caminho de compreensão à luz das bases
clássicas de Freud, Lacan e também de Winnicott.  Os desafios da clínica contemporânea diante do chamado mal do
século XXI, a depressão, encontram novos desafios diante do sofrimento psíquico, da transformação de certos
padecimentos da condição humana em doenças de caráter psiquiátrico e, principalmente, pela ação corrosiva dos
novos modos do viver afetando a relação dos sujeitos com a “realidade”. Sucumbindo, muitas vezes,  pela
inadequação aos modelos que subjugam o comportamento ideal à “religião do consumo e do desempenho”. 

No Brasil, dentre os autores psicanalíticos contemporâneos, deve-se citar a contribuição de Contardo Calligaris sobre
o processo da adolescência. Para efeito objetivo deste resumo, chama atenção a perspectiva que o adolescente, em seu
processo de identificação, buscar realizar, muitas vezes,  o desejo inconsciente dos pais. E essa é a minha primeira
hipótese para pensar sobre as razões do mal-estar contemporâneo dos jovens.

Considere-se que vivemos num momento em que há uma profunda insatisfação dos adultos com os modelos vigentes.
Se os jovens buscam realizar esse desejo inconsciente de pais que desejariam viver outro modelo de realização
profissional e pessoal, qual seria a atitude diante da realidade desses jovens?  Fica a impressão de que não há com que
se contrapor ou a se seguir. Diante de tal vazio existencial, em que o consumo, a competitividade e a insegurança
ocupam o lugar do sofrimento psíquico, resta aos jovens esse modelo com o qual não querem se identificar, com uma
busca de um lugar que escapa desse vazio vivido pelos adultos. E, ao que me parece, caem em estados de ansiedade e
depressão diante dos desafios impostos por uma sociedade que nem seus pais conseguem suportar.

Recalcati situa essa falta de referência paterna emergente na sociedade contemporânea como geradora da função
orientadora dos ideais da vida individual e coletiva. E talvez, esse seja um bom motivo para explicar os apegos
fanáticos a ideias coletivos tão presentes em diversas sociedades.

Outra observação clínica que me parece cada vez mais clara diante das dinâmicas sociais e familiares diz respeito ao
processo edípico revivido na adolescência. Com certo apuro e análise de inúmeros casos de depressões entre
adolescentes foi possível perceber um componente estrutural que se repete. Há, cada vez mais, uma dificuldade dos
jovens se contraporem aos pais, como um dos elementos básicos da condição adolescente, e permanecendo na
posição infantil de submissão aos desejos destes. Com a dificuldade de se livrar das amarras do olhar familiar sobre
sua condição infantil, deprimem, porque se sentem incapazes de separar dessa condição prolongada da infância, e
ainda tendo que lidar com as pressões que a sexualidade impõe a todos.

E como é que essa trama se revela? Por meio do prolongamento da adolescência dos adultos e da condição narcísica
dos pais em aceitar o crescimento dos seus filhos. De uma forma geral, os pais se colocam como parceiros de
confidências amorosas, de cumplicidade de programas compartilhados e de medo do seu próprio envelhecimento, em
ultima análise. O prolongamento da condição infantil na adolescência culpabiliza o jovem diante de se contrapor a
alguém que busca preencher todos os buracos e, ao invés de criar amadurecimento, promove estados melancólicos
por meio de inibição e introspecção. De uma forma geral, os quadros depressivos da adolescência se aproximam
dessas duas observações clínicas. Incluindo, nestes, muitas das depressões de jovens adultos e que se expressam pela
dificuldade da perda dessa condição infantil.

Da clínica social à subjetiva, caminha-se numa busca de entender como as questões “são o que são” nesses tempos de
profundas transformações sociais. E estes são alguns dos apontamentos que se percorre nessa estrada em que se é
sujeito e objeto dessa mudança, além de localizar qual o lugar do analista nessas intervenções.

A clínica do adolescente dos tempos líquidos parece ser uma terminologia interessante para situar a experiência da
clínica psicanalítica contemporânea.  E este é um desafio a ser enfrentado e que pode trazer “luzes” tanto para as
famílias como para a escola. 

Bibliografia:
BAUMAN, Zygmunt. O Mal Estar na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
_______________ . 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
_______________. Sobre Educação e Juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.
FREUD, Sigmund. Tres ensayos de teoría sexual (1905). In: Obras completas, vol. VII. 
                                  Buenos Aires: Amorrortu, 2005.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens.  Uma Breve História da Humanidade. Porto Alegre:L & PM Editores,  
                                 2017.
HARRIS, Michael. The End o fAbsence. Reclaiming What We´ve Lost in a World of Constant 
                            Connection. New York: Current, 2015.
SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter. O Desaparecimento das Virtudes com o Novo 
                           Capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2012.
RECALCATI, Massimo – El Complejo de Telémaco. Padres e Hijos Tras el Ocaso del Progenitor.  
                            Barcelona: Editorial Anagrama, 2014.
ZIZEK, Slavoj. Eles Não Sabem o que Fazem. O Sublime Objeto da Ideologia. Rio de Janeiro:             
                             Jorge Zahar Editor, 1992.
__________. Bem Vindo ao Deserto do Real. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2003.
__________. A Visão em Paralaxe. Rio de Janeiro: Boitempo, 2012.

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