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Benedito Nunes

O dorso do tigre

editoraa34
A viagem

que está presente em quase toda


Atravésdo motivo da viagem,
Sagarana a Primeiras estórias, Guimarães Rosa liga-se
a sua obra, de
às grandes expressões do "romance de espaço " — ao D. Quixote de
para só falarmos dos extremos dessa ia
Cervantese ao Ulisses de Joyce,
dos acontecimentos e peripécias se apre-
espécie,em que a narração
criação romanesca, intermediária
sentacomo a primeira camada da
e humano.
da descoberta do mundo natural
No D. Quixote, as andanças do Cavaleiro da Triste Figura e de
SanchoPança, tanto quanto as histórias avulsas narradas no curso da
históriaprincipal, são os múltiplos atalhos do mundo, exemplarmente
contidono espaço manchego. É nesse espaço que proezas, outrora sus-
tentadaspelo ingênuo heroísmo dos romances de cavalaria, desviam-
-separa o cômico e o grotesco, e revelam, ironicamente, a incompati-
bilidadeentre o prosaísmo do cotidiano e a ação grandiosa e nobre,
objetode mimese, na antiga epopeia. Do espaço de Dublin, onde esse
prosaísmojá domina, e que é percorrido em toda a extensão de seus
nexoshistóricos,culturais, econômicos e sociais, sai outro espaço,
universale cósmico, em que a cidade se transforma num ponto de
inserçãoda vida humana, descrita globalmente, como viagem através
de labirintos. A rota de D. Quixote, profusa de aventuras, e a de De-
dalusBloom, cheia de incidentes corriqueiros, que tomam a forma de
únicaaventura humana possível, equivalem a processos de abertura
do espaço,concomitantes ao desvendamento do mundo.
Nesse sentido, o sertão de Guimarães Rosa coloca-se no mesmo
plano da Mancha de Cervantes e da Dublin de Joyce. É o espaço que
se abre em viagem, e que a viagem converte em mundo. Sem limites
fixos,lugar que abrange todos os lugares, o sertão congrega o perto e
o longe,o que a vista alcança
e o que só a imaginação pode ver.
"Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássa-
ros." É o lugar "onde os
pastos carecem de fecho", mas é, também
"onde o pensamento da
gente se forma mais forte do que o poder do

A viagem
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lugar": a vida solta,
com
viver, algo indefinível, seus perigos, que ainda
vazio algumas não se
vezes, outras aprende em geral, de maneira ostensiva ou encoberta, a linha
tanejos, mire veja: o cheio de sagaranasegue, que se apartam e se entrecruzam, para se uni-
sertão iónerantede caminhos
que se fazem no escuro, é uma espera enorme." forças
produzindo, pela convergência de causas mínimas, im-
ao longo de Espera remdepois,
badas, de viagem ligada sucessivas e demanudaa um efeito único, que parece pré-ordenado
Riobaldo em Grande
a viagem, num previsíveis,circunstanciais,
sertão: veredas. périplo sem fim, e enc porumarazão
(logos) exterior aos atos humanos. As coisas e os ani-
tiplicam, de atos de amor Através de do encadeamento secreto
de causas, que imprime um
e ódio, de maisparticipam
das formas naturais veredas que perigosque se a sucessos casuais, e que faz da necessidade um
águas e terras, penetram cunhode necessidade
percorre os espaços que animaise vegetais a multiplicação de acasos.
formam o espaço produtosingularda
encaminhando, ora do mundo Bastariacitarmos, como ilustração disso, "O burrinho pedrez"
curso, convergem todasdesencaminhando, as veredas, ilimitado. delega, no curso de uma viagem, ao manso e im-
no movimento da divergentesem ondea Providência
de Ouros, a função de salvar da enchente, que
viagem redonda seu prestávelburrinho Sete
volta da tropa, dois dentre os vaqueiros que
Existir e viajar se confundem. interceptao caminho de
A existência de de
-se como viagem finda,
que precisa ser Riobaldo totaliza- conduziramuma boiada à estação embarque. É no ciclo da viagem
e a ação da Providência se manifesta. À custa
seu sentido. Unem-se, nessa relatada para que
se perceba queo destino se modifica
viagem, sob a forma as causas tecem e retecem os seus efeitos,
tes fios do Bem e do Mal,
que compõem 0 de relato, o deinúmeras circunstâncias,
os diferen- através de movimentos de ida e volta. São encontros e
Vivendo de momento a emaranhado da agindosempre
momento, de lugar a
lugar, sem a existência. desencontros,são equívocos aparentes, que um recuo no espaço e no
são da linha temporal e
sinuosa que liga todos
os momentoscompreen- tempotransforma em certeza, ou em certezas que a distância neutra-
lugares da existência, só e todosos
percebemos saídas e
Mas a viagem redonda, a travessia entradas, idas e liza.Assim,Lalino Salatiel, de "A volta do marido pródigo", que no
berta do mundo e de nós mesmos,
das coisas que é vindas. desejode ver outras paragens abandona a mulher, recupera-a, por
vivênciae desco-
nessa aprendizagem da meiode artimanhas, ao regressar da grande cidade. Essas tretas pro-
, a viagem-travessia que vida,emque duzemefeitosque, embora cômicos, resultam de um mecanismo de
brança, constitui o saldo imponderável se transvivena lem-
das ações, que a memória açõese circunstâncias,análogo ao que gerou, em "O burrinho pe-
Imaginação juntas recriam. "Viver —
não é)• — é muito perigoso. e a drez",o trágico final antes mencionado.
que ainda não se sabe. Por que aprender
a
Por- A viagem coincide, às vezes, com a solução próxima de um con-
mo." E diz Riobaldo ainda: "Eu atravesso viver é que é o vivermes- flitomoral e espiritual. Augusto Matraga retorna à vida, seguindo a
as coisas e no meiodatra-
vessia não vejo só estava era entretido trajetóriaincerta e indiferente de sua montaria — de novo, um bur-
na ideia dos lugaresdesaída rinhoque o leva ao reencontro com seu Joãozinho Bem-Bem,graças
e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente
quer passar um rio a nado, ao qual, cumprindo o seu fadário, a conversão esperada se realiza.
e passa; mas vai dar na outra banda e num ponto
muito maisembai- As linhas do Fado, que no processo da viagem se desenrolam,
xo, bem diverso do que em primeiro se pensou. Viver
nem não é muito maisflexíveisdo que o fatum da tragédia grega, também podem cru-
perigoso?" Só no final da narrativa, quando Riobaldo conseguefixar
zar-sedevido à intervenção inopinada e casual de terceiros. Exterio ri-
o perfil completo de sua existência relembrada, é que a travessiase za-senovamente, por intermédio desses agentes interpostos, o influxo
apresenta nitidamente: "O que existe é homem humano. Travessia". daquelarazão ou Providência, muito próxima, pelo que tem de im-
O motivo da viagem, que assim transparece na estrutura,na te- pessoale objetiva, da pronoia dos estoicos. Temos, ainda em Sagara-
mática e nas intenções morais, filosóficas e religiosas de Grandeser- na, dois exemplosde tais encontros transversaisou oblíquos: "Due-
tão: veredas, já está latente na forma dos sucessos,conflitos,aconte- Io" e "Minha gente",
cimentos trágicos ou cômicos, que servem de matéria às novelasde Na primeira novela, há dois contendores que jamais podem en-
Sagarana. Misto de acaso e necessidade, a ação dos personagensde contrar-se.Cassiano Gomes quer vingança, Turíbio Todo foge do vin-

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O dorso do tigre
A viagem
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gador. Mas por uma via transversa
a
a CassianoGomes, seu casual benfeitorgratidão do capiau
naqueles espaços do rio, de meio a meio,
já depois de morto, atinge 0 desafeto, Jururhinho de se permanecer
invenção
no dela não saltar nunca mais." O polo
Todo, sem nada mais que temer, momento dentroda canoa, para
voltava, tranquilo em que ' sempre renúncia à vida, em que a viagem, no espaço in-
reinstalar-se no seu sítio, de há muito opostodessaestranha
rápido e inesperado aqui quanto em abandonado. O desenlace águas, dentro de um tempo que se repete, fecha-se
definidoe vazio das
"Minha gente". é é o assomo de vitalidade — prenúncio da morte do
autocorreção das circunstâncias, o
amor equivocado como por sobresi mesma, patrão", que, D. Quixote "em maluca velhi-
meu
-narrador pela prima, Maria Irma, do personagem. velhode "Tarantão
para pelejar a esmo, em ritmo de farsa, parodian-
Fazenda, amiga da outra, e a quemtransfere-se à eventual ce",ganhao mundo,
esse amor parecia visitanteda rasgos dos Roldões e pares de Carlos Magno.
destinado, enquanto o de Maria Irma doantigose gloriosos
se fixa num rapaz, desdesempre Os espaços que se entreabrem,
na obra de Guimarães Rosa, são
O motivo da viagem é, no processo vindode Sertão e existência fundem-se na
ces de um jogo de xadrez, que se
da narrativa,
absorvido pelos modalidadesde travessia humana.
recomeçada — viagem que forma, deforma
desenrola
sentando uma espécie de reconfiguração ao longo da trama, figurada viagem, sempre
as coisas à lei do tempo e da causali-
paralelo. O equívoco conduz à simbólica do enredo, e transformae que, submetendo
descoberta do amor a ele dade,tudo repõe afinal nos seus justos lugares.
Não há, porém, ness
rável. Trocam-se as posições dos legítimoe perdu-
agentes, como no jogo concepçãoda vida humana, resquícios de fatalismo. O Destino, resul-
posição das pedras. Os lances do de
acaso decidem a partida,xadreza tantede ações diversas que se conjugam, não tem a eficácia de uma
guém perde e que ninguém ganha.
Mas o resultado, que quenin- forçaexterior e independente. É o desenho completo da trajetória da
casais, segundo a ordem de suas arruma
afinidades eletivas, revela-nos os vida,o diagrama do movimento da existência no tempo, cujo processo
sorte tem a secreta racionalidade que quea deavançoe recuo, por meio de atos e gestos, de que se originam efei-
Aristóteles descreveuemsua
Física: o encontro de múltiplas séries
causais que independemumas tos imprevisíveis,materializa-se nos tópicos da travessia, que abun-
das outras e convergem para o mesmo
ponto. damem Grande sertão: veredas: as passagens difíceis, os ínvios cami-
Corpo de baile não está menos do que nhos,terras prazenteiras e inóspitas, o lugar paradisíaco onde vivia
Sagarana vinculadoa essa
concepção do destino itinerante, que se Otacília(o Paracatu), a encruzilhada do Pacto, o deserto Liso do Sus-
constrói ou com lancesalea-
tórios de jogo ou com os circunlóquios de suarão,a indigênciado Sucruiu e o grande encontro com os hermó-
uma fortuna andeja.No genesno Paredão.
poema de Miguilim, "Campos gerais", a vida
nova começaparao O Destino é, em vez de fator produtivo, o resultado de forças
Menino quando a história acaba e ele parte em
viagem pelo mundo. opostas,conflitantes —--as de Deus, mansas e constantes, as do Demo,
Igualmente a união espiritual do moço e da velha, do vaqueiroLélio
com D. Rosalina, em "A estória de Lélio e Lina" completa-senape- bruscase agressivas.Mas essas forças divididas só aparentemente são
antagônicas.Viver é muito perigoso, porque não há clara delimitação
regrinação por eles iniciada no fim do conto. E é ainda umaespécie entreelas.Apenas se pode saber que "Deus é definitivamente e o De-
de peregrinação mas no plano do amor carnal, que reacendea paixão mo o contrário dele". A existência humana, imersa no jogo equívoco
de Soropita por Doralda ("Dão-Lalalão"), ao sabor das recordações, dessesdois poderes, um dos quais, o do Demo, é sempre inferior ao
que mais se avivam quanto mais Soropita se aproxima, ao cabode de Deus,participa de uma trama, que de certo modo a transcende, e
uma viagem costumeira, da mulher distante. que,no entanto, a sua atividade temporal ajuda a desenvolver.
Há também, a par de muitos périplos, andanças, partidase Che É essa atividade temporal da existência, fulcro da poiesis origi-
gadas, de Primeiras estórias, a peregrinação sem horizontes, antecipa- nária,que constitui, na obra de Guimarães Rosa, o último horizonte
ção da morte, e voluntária provação. Assim, vemos no conto "A tercei* simbólicoda viagem. Vê-se, então, que o significado final desse moti-
ra margem do rio", a peregrinação soturna, tresloucada, rio acimario vo afasta-seda ideia cristã
do homo viator, segundo o qual o homem
abaixo, do homem que vaga, à deriva, no barco onde passeiaa sua apenastransitaria no mundo, que
não corresponde nem à sua origem
loucura solitária. "Ele não tinha ido a nenhuma parte. Sóexecutava a nem ao seu verdadeiro
destino.

tigre A viagem
do 171
170 O dorso
Para Guimarães Rosa, não há, de um lado,
tro, 0 homem que 0 atravessa. Além de 0
viajante, o mundo, e, de
objeto e sujeito da travessia, em cujo homem é a ou.
processo 0 via
mundo se Grivo
poiesis originária, dessa atividade
e
mediante a
criadora, que nunca
Aviagemdo
da e soberana como no ato de nomeação é tão da
se opera a fundação do ser pela palavra, das coisas, a profun-
de que fala partir do qual
Mas foi somente em Heidegger.
a nu o motivo da travessia, focalizando-a que Guimarães
direta e Rosa
tema. A viagem passa a constituir, nesse expressamente pôs
"Cara-de-Bronze",uma das seis narrativas de Corpo de baile,
vra e da Criação Poética. Eis o sentido conto, a demandada obra de João Guimarães Rosa. É que nesse
tão, 0 Grivo, que sai mundo afora, a
da estória deste ocupaumlugar à parte na
procurar, para 0 seu Arieldo conto,a princípio
denominado de poema, o motivo da viagem, sob
-de-Bronze, "0 quem das coisas", e que patrão cara. presente, de Sagarana a Primeiras estórias, converte-se
co bem, viagem da viagem": 0 relato
lhes traz, na volta, váriasformas
como narrativa, a ela impondo uma estrutura polimórfica,
poético do que viu, emtemadiretoda
ouviue comelementoslíricos e dramáticos, em função dos quais variam o
tempointernoda estória e a amplitude da mimese. O tempo varia do
passadoao presente e se fixa na intemporalidade própria dos mitos.
Amimeseora se circunscreve a uma porção da vida comum, do coti-
diano,ora está em contato com os largos domínios do maravilhoso.
Tematizaçãodo motivo da viagem, estrutura polimórfica, hori-
zontemítico-lendário,são, pois, os aspectos marcantes que fazem des-
secontouma composição exemplar, verdadeira síntese da concepção
domundode Guimarães Rosa, onde certas possibilidades extremas de
suatécnica de ficcionista se concretizam.
A viagemapresenta-se em "Cara-de-Bronze" como Demanda da
Palavrae da Criação poética. Ela começa no Urubuquaquá, de onde,
porordemde SegisbertoJeia, o Cara-de-Bronze, senhor daquelas ter-
rasde muito gado, velho e doente, aposentado num quarto de casa-
-grande,parte um de seus vaqueiros para trazer-lhe os nomes das coi-
sas.Essevaqueiro, vitorioso nos torneios organizados por Segisberto
Jeia,é o Grivo, que aparece, menino ainda, pobre e humilhado, em
"CamposGerais". Os assuntos dos torneios que, por gosto, Cara-de-
-Bronzeordenava, eram, no dizer dos seus vaqueiros, "mariposices"
e "bobeias":assim,por exemplo, mudar os nomes dos lugares, bati-
zaraquelessem nome, perceber qualidades raras, de esquiva defini-

1
Na primeirae na segunda edição de Corpo de baile, "Cara-de-Bronze"
figuracomo poema. Já
na terceira aparece entre os contos, ao lado de "O recado
do morro", formando
este
o volume No Urubuquaquá, no Pinhém, compulsado para
trabalho.

tigre Aviagemdo
172 O dorso do Grivo 173
e das
atmosfera medieval das cortes, dos jogos
meio de um jogo especial, com tudo a romances de cavalaria, atmos-
são, ou arrancar, por Hánisso e vassalos, nos
nem rende, mas dá prazer e palavras sol suseranos
jogo que nem diverte contentamento entre
Cara-de-Bronze chamava
sutis aspectos da Natureza. algunsde os
homensmais destros nessas práticas de "imaginamento", um corte —
um Abel, um Grivo toman-
narte, um José Uéua, um Noró, e Porque uma pequena comuns do cotidiano, não
por que de tudo nessa vida", e acreditasse qui. congrega desempenhamtarefas entre os cavaleiros
sessesaber go em menti. campo, que Só
"imaginamentos".
ras, "mesmo sabendo que mentira é", pedia-lhes, para efeitode nos exercíciosde incompreensível para os de fora.
E
templação, os nomes de coisas desimportantes: doparte noção da Demanda, Segisberto Jeia, reencarnação

demanda do Santo Gral, aquilo de que neces-
SArosação das roseiras. O ensol do sol nas pedrase comoemA Artur, envia um outro a buscar
sertanejado rei Enquanto, naquele romance, é
folhas. O coqueiro coqueirando. As sombras do vermelho de seu reinado. em
sitaparaa
felicidade
cavaleiros, quem parte, ficando o rei Artur
no branqueado do azul. A baba do boi da aranha. O quea Galaaz, o melhor
dos
Rosa é o mais perfeito dos
homens
gente havia de ver se fosse galopando em garupa de ema. na estóriade Guimarães e de origem obscu-
Luaral. As estrelas. Urubus e as nuvens em alto vento: quan-
camelot, vitorioso em todas as provas,
Cara-de-Bronze, do Gral da Palavra, que há
do elas remam em voo. O virar, vazio por si, dos lugares.
de
Galaaz, quem sai na demanda ponto de con-
como
completar a existência do Patrão. Outro
A brotação das coisas. A narração de festa de rico e de ho- derenovare é a doença de Cara-de-Bronze.
ras pobrezinhas alegres em casa de gente pobre...". com os romances do ciclo do Gral objetivo da busca é res-
da Demanda do Gral, o
tato
Em algumas versões e extremamen-
O Grivo era o de melhor fala, aquele que sabia "jogar nosares devolver a juventude do Rei, enfermo
taurara saúdee
um montão de palavras, moedal", Foi ele o escolhido para ir à busca te idoso, alcançado em "Cara-de-Bronze"
do "quem das coisas" Maso único bem, finalmente relato das
volta, ao mandante do feito, é o
Quando a açâo do conto principia, os vaqueiros trabalham,sob queo Grivoentrega,na transforma-
durante o percurso: a Viagem
o sol e a chuva, na apartação do gado. Conversam sobre o Grivo,que coisasvistase imaginadas poética, que abriu os espaços do
já voltara, fazendo suposições acerca do real objetivo da viagempor daempalavras,súmula da atividade
mundo natural e humano.
ele empreendida. Aguardam que ele próprio venha narrar-lhes o que sertãoe os converteuna profusão do
travessia por entre coisas que
viu e o que trouxe. O cozinheiro de boiada Massacongo afirmaque Aviagemdo Grivo realiza-se como
— árvores, confor-
uma Noiva chegou, trazida pelo Grivo. Mas nada se sabe, a não ser vãosendonomeadas, uma a uma, detalhadamente aos
as de alto porte
que a viagem terminara. mesuasespécies,grandes e humildes desde viventes"
arbustos, cipós, ervas, capins, todos os «verdes
carrapichos,
todas as qualidades de aves,
Um vaqueiro tinha chegado, de torna-viagem, pássaros,seusvoos, gritos e hábitos, e
encon-
se passarinhocantador; mamíferos errantes, por acaso
inclusive
De uma viagem quase uma expedição, sem prazos, não
'fi
e manchas de
Sertão os bois trados,répteise batráquios, insetos, manchas de sol
precisava bem aonde, tão extenso é o Alto nuvens,Essarelação bíblica, à maneira do Génese e do Deuteronómio,
e
nessesvastos. Tudo comum e reles dito, entre garfada abrangetambémlugares e gentes — homens pelas suas profissões,
estava ala
garfada, O vaqueiro chamado Grivo. Agora, ele mulheresvelhasa rezar, cafuas, fazendas e fazendolas, o descomer da
seus
moçando no quarto, com o Patrão, maneira de relatar
quarto,
acontecidos. 1.-10 fazendeiro patrão não saía do umas
erupção,
nem recebia os visitantes, porque tinha uma Segundojessie L. Weston, From Ritual to Romance, Cambridge, Cam-
feridasfeias brotadas no rosto. Seria lepra?" bridgeUniversityPress, 1920; 2a ed.: Garden City, Doubleday, 1957.

A viagem do Grivo 175


do
O dorso
174
II
fome, as doenças, as formas de miséria, meninos, e 0 da da narrativa, da
e um certo Grivo:
e mandiocais, buritis, gado e moças, das quietas emeninas, cheio de subentendidos, por
trás do qual fica a
das viagem,
ue se desenrolam, as «mexíveis" da ao Cara-de-Bronze foi contada.
que a travessia corta e que a mesma travessia une, estações da estória,que somenteajusta-se à natureza ambígua e media-
para tornar Vida da obra
festo, no relato que a prolonga e completa, o sentido Essavisão bifocal fundo a figura do Menino
personagemque tem por
meia. os nexos que ligam os diferentes momentos da que a tildoper. do Grivo, domina, sob outras ena
travessia, dos arquétipos do sagrado, que
a e enfim conhecido e que ótico, importantes,como Diadorim e Miguilim, a ficçáo de Gui.
do, através do logos poético que o recriou, só se e possui•
produzelii,sob
traz alívio ao Cara-de•Bronze,o sortilégio
for. toardesRosa, do
A missao do Grivo, obieto da demanda que o Serlendário, que
fascínio diabólico
-Bronze ordenou, foi retraçar o surto originário da velho Cara•de. no sentido oposto ao poder de
Grivomanifestase sobre Riobaldo, Unindo e congregando em di'
perar a potencialidade criadora do Verbo, O que aolinguagem,
fim
exerce
queDiadoritn de existência,o Grivo desempenha funçao mediados
vialante entrega ao velho não é a Noiva real, finalidade o exemplar círculos
ferentes cósmica, da atividade criadora e da pacifi-
da a favorda ordenaçao
ra os vaqueiros comuns, mas a imaginária, feita desses viagemPa. liga o Cara•de-Bronze às coisas, Ê ele,
reos", que as palavras saot unadas dos homens,Ê ele quem do Patrào, onde se ocultam o ma•
igualmente,o mediador entre quarto
gente comum que povoa o Uru-
ravilhoso,o secreto,o lendário, e a
"O GRIVO(a Moimeiehêgo): Eu disse ao Velho: maravilhoso, nesse conto, desabrocha num con•
noiva tem olhos gázeos„, Ele queria ouvir essas palavras, buquaquá,Assim,o
meio de descriçóes, os dados concretos
Ele, o Velho, me perguntou: 'Você viu e aprendeu textorealista,que abrange, por
e social especifica,
como é tudo, por lá?' — perguntou. com muita cordura, deuma realidade humana inicial situa, nao é um domínio
disse:
Eu
Nhor vi'. Aí, ele quis: iComo é a rede de moça O Urubuquaquá, que a descriçao
que moça noiva recebe, quando se casa?' E eu disse:— fantástico,alegórico ou onírico:
SÊuma rede grande, branca, com varandas de labirinto„, «No Urubuquaquá, Os campos do Urubuquaquál I
(Pausa.) fazenda•de-gado:a maior no meio um estado de terra.
José Proeza (surgindo do escuro): %Ara,enteio?Buscar A que fora lugar, lugares, de mato-grosso, a mata escura,
queé do valor do chio. Ali havia riqueza, dada e feita,
Acasa avarandada, assobradada, clara de cal, com bar-
Mainarte: Jogou a rede que nao tem fios. ras de madeiradura nos janelóes se marcava",
GRIVO;Nio sei. Eu quero viagem dessa viagem
Os passossubsequentesda narrativa levam-nos a tomar conhe-
Foi esse Gral das palavras da vida, que abrem a imaginação,con• cimentoda terra, da vida e dos afazeres dos homens da regiáo, bem
solam e humanizam, que Grivo trouxera. "Palavras de voz,Palavras física e moralmente, Lugar, homens e coisas, atra-
individualizados,
muito trazidas, De agora tudo sossegou, Tudo estava em ordem," vésda atitude objetivista do narrador, própria do género épico, que
A Viagem tem, pois, dois sentidos, duas versóes; o conto divide- evocaos acontecimentos,aparecem no passado do "foi" e do "era ,
-se em dois focos concêntricos que se movem um em funçãodo ou- situadosnum plano de realidade concreta, Assim: "Eram dias de de-
zembro,em meia manha, com chuva e nuvens, dependurada no ar
tro: o da narrativa propriamente dita, como unidade literáriamaior, paracair". Ou entio; "Na coberta ainda havia poeira do
Fa- ,
que é a estória da Demanda, descrevendo o ambiente a terra,a Comoestescitados, muitos outros entrechos narrativos, disseminados
ao cuidar do gado
zenda, os homens, os seus trabalhos, o que dizem portodo o conto, funcionam como amarras, ligando o maravilhoso
umcer-
e contando-nos o que se passou nesse Urubuquaquá entre

A viagem do Grivo
O dorso do tigre 177
à realidade ambiental. Mas nem essa realid
ade
maravilhoso, que se infiltra por vários pontos, é dominante, que ele se distancia de todos os gestos, excla-
em vários E é pela Viagem aboios, incidentes, desejos, pequenas neces-
conversas,gritos,
A passagem do plano da realidade concreta acompanham a atividade coletiva, matéria da comédia
-se por gradações insensíveis, de cortes rápidos ao sidades,que diálog os dos vaqueiros, comentando a aventura do Gri-
no tronco da faz. nos
trutura geral, grandes expressa compreender.
não podem
máticos e pequenos momentos líricos. Nos vo,que recua, pois, à condição de essencial liberdade gozada
dramáticos,entrechos
um dos dra O Grivo
tográfico, a ação, com épicos, a que Hegel se referiu. É a liberdade própria das
gens, é trazida para 0 presente;o narrador, então, os seus pelosheróis ainda não sujeitas às condições do mundo civil, e
dependência dos diálogos e das marcações
persona.
desaparece épocasprimitivas, tempo depois, no ambiente idealizado da poe-
teatrais, nain muito
breves. As partes líricas são as trovas do violeiro, ora longas quereaparece, do Grivo com a Natureza são idílicas. Quando
relações
lar do Cara-de-Bronze, pago para cantar e tocar, menestrel siaidílica.As
sua empreitada, ingressa novamente no círculo do tra-
sa, louvando o Buriti, o Boi e a Moça. como umno alpendreda eleretornade narrar, durante os que-fazeres de uma apartação de
balho,maspara
musical, as Trovas interferem nos outros momentos, Essa narrativa é uma interrupção do traba-
épicose gado,as suasaventuras.
ticos, fazendo com que o tempo passado dos primeiros cotidiano e dando um outro sentido à comédia
lho,neutralizandoo
do tempo Presente dos segundos. Essa aproximação se aproxime dosvaqueiros.Por outro
lado, os enxertos líricos, relativos ao Buriti,
poético da narrativa, criando condições para que se reforçao clima aoBoie à Moça ou Noiva,
emprestam à dialogação o ritmo de pas-
produzao a louvação da Moça, o descante da
-tempo" do mito. toril.Paracompletar esse quadro,
O efeito total, resultante das múltiplas interações
quese Noivade tão longetrazida, introduzem, no conjunto assim formado,
cessam no desenvolvimento da estória, comumente populares,
alcançadopelas o tom dos romanceiros
epopeias míticas e pelos relatos sagrados, é a
impressão da intempora- Há diálogos,como o que a seguir reproduzimos, que são en-
lidade de tudo o que se passa. Torna-se a Viagem, em trechosdramáticos autónomos.
"Cara-de-Bron-
ze", como o tempo para Platão, a imagem moventedo queé
eterno "O Vaqueiro Abel. — O Grivo, ele era rico de muitos
As variações do tempo e da mimese em "Cara-de-Bronze",
den- sofrimentos sofridos passados, uai.
tro de uma estrutura polimórfica, da qual participam elementos
nar- O Vaqueiro José Uéua. —— O Velho ensinou.
rativos, dramáticos e líricos, produzem a impressãode intemporali-
O Vaqueiro Mainarte. — O que o Grivo forte dizia:
dade dos relatos mitopoéticos. O real e o lendário, o passadoe opre-
sente, as coisas vistas e as imaginadas, aí se entrelaçame seharmo- — Dererê, serra minha!
nizam numa diversidade de planos e de intenções que imprimem ao
conto as diferentes nuanças da epopeia, do auto pastoril, do romancei- Moimeichêgo.— Só isso? Só?
ro e da comédia. O VaqueiroMainarte. Pois só. Dererê, serra mi-
Como nas epopeias antigas, a empresa do Grivoé umaaçãoao nha...
mesmo tempo valorosa e livre, levada a bom termo, coma fortaleza, O VaqueiroTadeu. — A bem, ele agora voltou, ele
a decisão e o desembaraço dos heróis sobranceiros das Sagas,Esse está ai, de oxalá. A gente vai saber as coisas todas
plano da ação nobre, valorosa e gratuita, que visa apenasà contem-
plação do mundo, está separado daquele outro, do trabalhocotidia• A marcaçãoteatral que vem, logo após, entre parênteses — "(Au-
e comuns
no dos vaqueiros, que corresponde ao das ações vulgares osva-
mentaa monotonia da conversa, de vez em quando interrompida para
Dentre o comentáriode incidentes na apartação.)"
próprias da comédia, na acepção aristotélica do termo. éaVla-
define a unidade e a
autonomiadessemomento dramático, prolongado ainda nos peque-
sua ocupação
queiros é o Grivo o único que não trabalha. A

A viagem do Grivo
O dorso do 179
nos e rápidos diálogos, em notas de pé de
incidentes, mas em contraponto com as página, que é vazado no estilo ca-
tratam outro corpo tipográfico,
no corpo gráfico princtpal do texto: "Buriti modas do o do Ulisses, de Joyce (a conversa
de Dedalus-
me disse ade dotde depois no solilóquio de Bloom).
nio qu,s me dar" etc. Finalmente, para só us,/c ' esta, cozinha,prolongada
exame, a autude é restaurada, econsiderarmos Grivo pôde ver? com que pessoas de
a narração afora muitas, o O joão-correia. As três-
A ana.sorte. O joão-curto.
O narrador, entretanto, quebra esse Eque eletopou? a cada per.
obietivismo,
estória para refleur sobre o seu desenvolvimento: inter
ferindo e com grande número de variantes,
tia gun a nomenclaturaregional,
"Narrará o Grivo só por metades? Para deixar bem clara a natureza do processo, rela-
juros o segredo dos lugares, de certas Tem ele de e vegetais. das questões propostas ao Grivo:
sigo o segredo seu; tem. Carece. E é coisas? Guardar r a a maioria
difícil de se
rastro tão longo. Para o descobrir, não letrear carrapichinhos que querem
haverá E os carrapichos, os
possíveis
. Seguindo-se da gente? [...l E os arbustos, as plantinhas,
vir na roupa
dessa árvore 1...1"• a graça ervas? [...l — E os capins, os capins bonitos,
os cipós,as e os cavalos pastam? — Dos verdes
Dando a entender o que o Grivo que os boizinhos por chuva e sol, pelejando no seu luga-
silenciou,
contar aos outros, a interferência reflexiva do 0 que ele viventes,cada um, aves do céu e de passarinhim
qualidades de
tema do conto. É um jogo irânico da estória autor põeà Pode rim? Outras
com 0 seu prova 0
sentido que pia e canta"
"Eu sei que esta narração é muito, indagações com o das que
muito ruim Compare-seo estilo catequético dessas
se contar e se ouvir, dificulto sa; difícil:
como burro para LeopoldBloomformula:
"Sozinho, que sentiu Bloom? O frio do espa-
noso. Alguns dela não vão gostar, quereriam no are- de graus abaixo do ponto de congelamento ou
sa a um final. Mas -—também a gente vive chegar depres- çointerstelar,milhares
de Farenheit, centígrado ou de Réaumur: as admo-
é espreitando e querendo que chegue o termo
sempre somente o zeroabsoluto
incipientes da aurora próxima 1...1"."Que objetos homotéticos,
da Ilições
que saem logo por um fim, nunca chegam morte?Os no consolo da lareira? [...l". "Que con-
ao Riachodo outrosqueo castiçal,estavam
Vento. Eles, não animo ninguém nesse [...l". "Que outros objetos relativos a
engano; essespo- tinhaabertaa primeira gaveta?
dem, e é melhor, dar volta para trás." Rudolph Bloom havia na segunda gaveta? [...1".3 No caso de Ulisses,
porém,a sofisticação, tanto nas perguntas como nas respostas, ex-
O sentido da estória foge ao narrador; ela se teriorizaa volumosa estratificação social, cultural e filosófica na vida
completará
inde- que o romance retrata,
pendentemente dele, nos horizontes longínquos e vagos, ondea interiordos indivíduos, analisa e parodia. Mais
do Grivo se projeta miticamente: "Esta estória se segueé viagem simplese maisdireto do que o questionário joyceano, o de Guimarães
olhandomais
longe. Mais longe do que o fim; mais perto". Rosa,na estóriado Grivo, é adequado ao sertão, meio rudimentar,
Há dois outros recursos, a que particularmente se deve nãourbano,e ao sertanejo, com seus dotes de poeta ingênuo; mas
o proces- possui,tanto quanto o outro, significado e alcance cósmicos. A aber-
so de projeção mitopoética, a partir da experiência sensível,que
ainda turado espaço,o conhecimento do mundo, a aparição de coisas com
mais singulariza a estrutura de "Cara-de-Bronze": o interrogatóriodo
Grivo e o uso, comum à ensaística, de glosas, notas e citaçõesmargi- seusnomes,que nasceme tomam forma, durante a viagem-narração,
nais, que complementam, enriquecem e autentificam o texto.
3James Joyce, Ulisses, tradução
O inquérito, rememorativo e minucioso, que figuraemapêndi- de António Houaiss, Rio de Janeiro, Civi-
lizaçãoBrasileira, 1966.

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que reconstitui a atividade
des linhas, exposto e reforçadopoética originária
Da atividade poética, comono inquérito do G . transferência do papado para Avinhão, a metamor-
vida, que com o curso da Demanda das aludindoà puxado por um Grifo, no momento em que
ticas do Buriti, do Boi e da
viagem se confunde, padi0avras õ' do carro de Beatriz,
árvore do Bem e do Mal: "Segura como uma rocha
sam o âmbito regional.
Noiva. Sao surgem
as perto da sentada por cima uma desver-
símbolos
Equivalentessimbólicos ela da em alto monte, apareceu-me
desce
ção vital criadora, pertencem locais, for(l para um lado e para outro".5
do ve que coloca meretriz, voltando os olhos
à família dos Ilhada
grandes versos, em conjunto, sobrepõem a imagem de Beatriz,
0 pelas Citaçõesda Os cinco
to, de Platão e dos Upanishads, metamorfose que Dante presencia, à da prostituta Nho-
-Bronze" o papel dos adendos,
que têm naDivina comédia ambíguana
economia pelo Grivo:
em rinhá,vista
cionados linhas atrás, registrando notas de pé de Páginade
os incidentes
riantes que o leitor, ad libitu,n,
pode dispensar da apartação. "Mesmo no caminho, meando terras de bons matos,
As citações de versos de Dante ou com a moça Nhorinhá ela com um cha-
e Goethe acrescentaorr se encontrara maciamente, de três tamanhos, de
das ligações da viagem do Grivo revelam-nos péu de palha-de-buriti,
com o substrato as uma fita vermelha, com laço, rodeando a
tras viagens: a do poeta florentino
em busca de míticode largurana aba, e
sentada,
ela vinha num carro-de-bois
que obteve, por entre as mágicas Beatriz, copa.De harmamaxa:
provocadas por Mefistófeles, Helena transfigurações do mundo puxadopor duas juntas, vinha para as festas, ia se putear,
rediviva. os moça Nhorinhá era linda — feito
mas, bem como as expressões platônicas trechos conformeprofissão. A
noiva nua, toda pratas-e-ouros — e para ele sorriu, com os
e desses
todos citados em notas de pé de página, os excertos dos espiava em redor, e não recebeu avi-
poético sobressalente, que pode, sem prolongam, como olhos da vida. Mas ele
prejuízo, ser omitido num — não teve os pontos do buzo, de perder ou
o fluxo da narrativa. Irónico mais uma so das coisas
vez, consegue pelo ganhar.Ele seguiu seu caminho avã, que era de roteiro;
à custa desse recurso, uma pauta suplementar
ao texto, Rosa' deixoupara trás o que assim asinha podia bem-colher.
a fabulação mítica e sugerindo a irradiante enriquecendo sangue...) Deixou, para depois
universalidade Essaeu olhei com o meu
tos simbólicos locais — o Buriti, o Boi, a Moça dos "
formoso se arrepender.

no mito em que o sentido do conto se totaliza: a quesecristalizam
dade da vida, como síntese da abertura poética do perenidade ea uni- A meretriz Nhorinhá tem os olhos lascivos da vida com que sorri
mundo,consumada
através da Viagem, e que o noivado ideal do Grivo parao Grivo. Imagem do amor carnal, dos prazeres fáceis (confirma-
O espírito com que Guimarães Rosa utilizaos representa. -oumadas duas expressões platônicas, também citadas6 que reforçam
textos
do poeta que assimila e emprega a seu modo o que outroscitadoséo o sentidoda passagem),Nhorinhá, que vinha sentada no carro puxado
ram e disseram, e não o do erudito, poetasvi-
que se atém a interpretações porduas juntas de bois, e que era linda — "feito noiva nua, toda pra-
li. " — é uma paródia da perfeita Beatriz celestial, abrigada
tas-e-ouros
terais. Dois dos cinco versos extraídos da Divina comédiasubsidiam
o encontro do Grivo com a prostituta Nhorinhá. Sãoaqueles deencontroao peito do grifo, animal mutável, de dupla natureza.
doCanto Nhorinhátraz um chapéu de palha-de-buriti, figuração da árvore da
XIII do Inferno, em que Pietro delle Vigne, encontradoporDanteno vida,dessaárvore, já "despida de folhas e de flores", ao pé da qual
círculo dos suicidas, refere-se à Inveja como "a meretriz,mortecomum Beatrizde Dante se deteve.
e vícios das cortes, que não desvia nunca os olhos lascivosdopalácio
de César".4 Os três outros, do Canto XXXII,do Purgatório, descre s "Sicura,quasi rocca in alto monte/ seder sovr'esso una puttana sciolta/
m'apparve con le ciglia intorno pronte". Dante, Obras completas, vols. 3 e 5, São
Paulo,Editora das Américas, 1957.
4 "La meretrice che mai dall'ospizio/ di Cesare non torse li occhiputti,morte
comune, delle corti vizio" 6 "Hai prókheiroi hédonái" (os prazeres fáceis), Platão.

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