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A advertência que se faz a todos
É que nossas vidas e seu fim
demonstram
Quão transitórios somos, afinal.
EVERYMAN
Para GWYN
Peço que todos dêem ouvidos
E atentem, com reverência, para esta questão,
Que como peça moral se apresenta.

CAPÍTULO I

Quarenta e duas milhas aquém de San Isidro, na grande rodovia que


cruza a Califórnia de norte a sul, há uma bifurcação conhecida há quase cem
anos como a Encruzilhada dos Rebeldes. Dessa encruzilhada parte uma
estrada municipal, que avança por quarenta e nove milhas, numa sucessão de
curvas quase em ângulos retos, até atingir a outra grande rodovia estadual
que leva de San Francisco a Los Angeles e, é claro, a Hollywood. Quem deseja
ganhar o litoral, partindo do vale, tem de tomar a estrada municipal que
começa na Encruzilhada dos Rebeldes e galgar colinas, cruzar um pequeno
deserto, terras cultivadas e um desfiladeiro entre as montanhas, para atingir a
rodovia da costa justamente no centro da cidade de San Juan de La Cruz.
A Encruzilhada dos Rebeldes é assim denominada desde 1862. Nessa
ocasião, ao que se diz, uma família de ferreiros, os Blanken, ali se estabelecera
com forja e bigorna. Os Blanken e seus genros, gente pobre, ignorante,
orgulhosa e violenta, procediam do Kentucky. Não tendo propriedades nem
bens de raiz, trouxeram consigo para a Califórnia as suas únicas posses - seus
preconceitos e seu partidarismo. Não tendo escravos, mesmo assim estavam
dispostos a dar a vida pela livre causa da escravidão. Quando a Guerra Civil
começou, os Blanken chegaram a pensar em cruzar novamente a vastidão do
Oeste, a fim de lutar pela Confederação. Mas já haviam feito a longa viagem
numa direção e o trajeto era muito extenso. Assim, foi na própria Califórnia,
onde a maioria esmagadora da população apoiava a causa do Norte, que os
Blanken segregaram da União cento e sessenta acres de terra e uma ferraria, e
declararam a Encruzilhada território confederado. Afirma-se também que eles
chegaram a cavar trincheiras e a abrir seteiras nas paredes da ferraria, para
defender aquela ilha rebelde dos odiados ianques. E os ianques locais, em sua
maioria mexicanos e alemães, irlandeses e chineses, longe de atacar os
Blanken, haviam ficado muito orgulhosos da atitude adotada por eles. Os
Blanken jamais viveram tão bem, com tanta fartura, como durante a guerra,
pois o inimigo os abastecia com galinhas, ovos e lingüiça de porco na época de
abate, já que todos concordavam em que, independentemente da causa que
defendiam, a coragem dos Blanken merecia reconhecimento. Foi assim que a
bifurcação ganhou o nome de Encruzilhada dos Rebeldes, que conserva até
hoje.
Finda a guerra, os Blanken tornaram-se ociosos e agressivos, sempre
prontos a manifestar seu ódio e suas queixas, como acontece com toda nação
derrotada e, assim, tendo-se evaporado o orgulho que suscitavam entre os
seus vizinhos durante o conflito, a gente do lugar foi aos poucos deixando de
trazer-lhes cavalos para ferrar e charruas para reparar. Finalmente, o que os
Exércitos da União não tinham logrado pela força das armas, o First Nacional
Bank de San Isidro conseguiu por meio de uma hipoteca vencida.
Agora, quase cem anos depois, resta dos Blanken apenas a lembrança
de uma gente muito orgulhosa e implicante. Nos anos que se seguiram, a terra
que lhes pertencera mudou de mãos muitas vezes, até ser finalmente
incorporada ao império de um magnata da imprensa. A velha ferraria
incendiou-se, foi reconstruída e incendiou-se novamente, e o que dela restou
foi transformado numa garagem com bombas de gasolina e, mais tarde, em
oficina-restaurante-garagem e posto de serviço. Posteriormente, converteu-se
também em estação rodoviária, quando Juan Chicoy e sua mulher compraram
as instalações e obtiveram um alvará para fazer circular um ônibus entre a
Encruzilhada dos Rebeldes e San Juan de La Cruz. Tendo os rebeldes Blanken
desaparecido da face da terra, levados pelo próprio orgulho e pela atitude
insultuosa que são os reflexos da ignorância e da indolência, ninguém mais se
lembra deles, nem de como eram. Mas a Encruzilhada dos Rebeldes é muito
conhecida e os Chicoy são muito populares.
Atrás das bombas de gasolina ficava o pequeno restaurante para
refeições ligeiras, equipado com um balcão, tamboretes fixos e três mesinhas,
para quem preferia comer em melhor estilo. Como era costume dar gorjeta a
Sra. Chicoy quando ela servia nas mesinhas, mas não quando servia no
próprio balcão, elas raramente eram usadas. Na primeira prateleira atrás do
balcão havia doces, rosquinhas, pirulitos e bolinhos; na segunda, latas de
sopa, laranjas e bananas; na terceira, caixas de flocos de milho, flocos de arroz
e outros cereais torturados.
No fim do balcão funcionava uma pequena grelha com pio ao lado, as
alavancas usadas para bombear cerveja e soda, as sorveteiras e, sobre o
balcão, entre as caixinhas de guardanapos de papel, fichas de metal para a
vitrola automática, frascos de sal, pimenta e molho de tomate; as tortas eram
colocadas sob largas redomas de plástico transparente. Todo o espaço livre
das paredes era decorado com calendários e gravuras brilhantemente
coloridas de jovens inverossímeis, de seios empinados e cintura esguia - loiras,
morenas ou ruivas, mas todas apresentando busto bem desenvolvido, de
forma que o visitante de uma outra espécie bem poderia julgar, baseado na
preocupação do artista e dos apreciadores, que a sede da procriação humana
reside nas glândulas mamárias.
Alice Chicoy, isto é, a Sra. Juan Chicoy, que trabalhava entre todas
aquelas garotas sorridentes, tinha cadeiras largas, peito chato e caminhava
pesadamente, arrastando os pés. Nem por sombra tinha ciúmes das garotas
dos calendários, nem das pequenas dos cartazes da Coca-Cola. Jamais vira
uma garota como aquelas e duvidava de que alguém já tivesse visto. Fritava
ovos e carne picada, aquecia sopa enlatada, bombeava cerveja, sondava o nível
das sorveteiras e, ao anoitecer, os pés lhe doíam tanto que ela se tornava
irritadiça, sempre com uma resposta atravessado na ponta da língua. E, à
medida que o dia avançava, seu penteado se desmanchava, os cabelos
desciam pela testa e colavam-se-lhe ao rosto úmido, para serem de início
afastados com repelões e mais tarde, quando pendiam na frente dos olhos,
com assoprões nervosos.
Ao lado do restaurante ficava a garagem, instalada na velha oficina da
ferraria, cujo forro e cujas traves do teto eram ainda escuros, cobertos pela
fuligem negra da velha forja. A garagem era o domínio que Juan Chicoy
presidia, quando não estava dirigindo o ônibus entre a Encruzilhada dos
Rebeldes e San Juan de La Cruz. Juan Chicoy era um sujeito bom e tranqüilo,
de sangue irlandês e mexicano e que dobrava a curva dos cinqüenta anos
observando o mundo com olhos muito vivos e negros, plantados no rosto
moreno e simpático sob uma basta cabeleira.
A Sra. Chicoy amava-o loucamente e também com um pouco de medo,
pois ele era homem e não há muitos homens neste mundo, como Alice Chicoy
descobrira. Não há muitos deles neste mundo, como todos nós descobrimos,
mais cedo ou mais tarde.
Na garagem, Juan Chicoy consertava câmaras de ar furados,
desobstruía tubos de gasolina, limpava o sedimento duro como diamante, que
se forma nos carburadores, colocava novos diafragmas em bombas de gasolina
agonizantes e fazia todos os outros pequenos reparos que estão muito acima
da capacidade de compreensão do motorista amador. Só não trabalhava na
oficina das dez e meia às quatro do tarde. Nesse período, dirigia o ônibus,
conduzindo para San Juan de La Cruz os passageiros que desembarcavam na
Encruzilhada dos Rebeldes dos grandes ônibus da Greyhound e trazendo de
San Juan de La Cruz os passageiros que vinham tomar, na Encruzilhada dos
Rebeldes, o ônibus da mesma emprêsa que passava às quatro e cinqüenta e
seis, rumo ao norte, ou o Greyhound que descia para o sul, às cinco e
dezessete.
Enquanto o Sr. Chicoy dirigia o ônibus, o trabalho na garagem era feito
por uma sucessão de meninotes desenvolvidos ou rapazes imaturos, que
funcionavam mais ou menos como aprendizes. Nenhum deles durava muito no
emprego. Os motoristas desprevenidos que encarregavam os rapazes de uma
limpeza no carburador jamais poderiam avaliar sua capacidade de infligir
danos ao melhor dos carburadores e, embora Juan Chicoy fosse magnífico
mecânico, seus aprendizes eram geralmente rapazolas indolentes, que
passavam o tempo, entre um reparo e outro, metendo fichas na vitrola
automática ou procurando irritar Alice Chicoy. Para esses jovens, a grande
oportunidade acenava constantemente, impelindo-os rumo ao sul, na direção
de Los Angeles e, é claro, na de Hollywood onde, com o tempo, todos os
adolescentes do mundo acabarão por congregar-se.
Atrás da garagem ficavam as duas pequenas privadas, fronteadas por
treliças, com um letreiro que dizia HOMENS e outro que dizia SENHORAS.
Atalhos separados levavam às duas privadas, um flanqueando a garagem pela
direita, o outro pela esquerda.
O que caracterizava a Encruzilhada e a tornava visível a grande
distância, por sobre os campos cultivados, eram os grandes carvalhos
brancos, que se erguiam em torno da garagem e do restaurante. Altos e
graciosos, de troncos e galhos muito negros, verde-claros durante o verão,
pretos e tristes no inverno, os carvalhos eram pontos de referência no vale
longo e plano. Não se sabe se os Blanken plantaram os carvalhos ou se,
simplesmente, decidiram estabelecer-se perto deles. A última hipótese parece
a mais fundamentada, pois os Blanken não eram gente que plantasse algo que
não se possa comer, e as árvores davam a impressão de ter mais de cem anos.
Bem poderiam ter duzentos; por outro lado, provavelmente suas raízes
estavam mergulhadas num veio d’água subterrâneo, o que teria determinado
seu rápido desenvolvimento naquela região semideserta.
No verão, as árvores projetavam sua sombra fresca em torno do posto
de serviço e assim, freqüentemente, os viajantes ali estacionavam para comer,
enquanto os motores de seus carros esfriavam. O posto de serviço era
agradável à vista, pintado de vermelho e verde; uma cerca viva de gerânios,
farta e espessa, circundava o restaurante. O cascalho branco, espalhado em
frente e em torno dos bombas de gasolina, era revolvido e irrigado diariamente.
No restaurante e na garagem imperava o sistema e a ordem. Nas prateleiras do
restaurante, por exemplo, as latas de sopa, as caixas de cereais e mesmo as
grandes laranjas eram arrumadas numa sucessão de pequenas pirâmides,
sempre com quatro unidades na base, três a seguir, duas mais em cima e uma
no topo. Do mesma forma eram arrumadas as latas de óleo lubrificante na
garagem, e as correias de ventilador pendiam de pregos cravados nos paredes,
suspensas por ordem de tamanho e tipo. Tudo muito bem arrumado. As
janelas do restaurante eram protegidas por telas de arame e a porta externa,
também entelada, batia com força após a entrada ou saída de cada freguês.
Alice Chicoy odiava moscas.
Num mundo que não compreendia muito bem e no qual não sabia como
agir, as moscas eram para ela o suplício final e maldoso que lhe era imposto.
Assim, ela as odiava com ódio cruel, e a morte de cada mosca, envenenada
pelo inseticida da bomba ou agonizando penosamente sobre o visgo do papel
pega-moscas, era para ela motivo de prazer.
Tal como Juan e sua interminável sucessão de jovens aprendizes na
garagem, Alice contratava e despedia continuamente toda uma sucessão de
moças que a auxiliavam no restaurante. Essas jovens, estabanadas,
românticas e em busca de marido - as mais bonitas geralmente partiam com
um freguês depois de alguns dias de trabalho - pareciam pouco interessadas
no serviço. Espalhavam a sujeira sobre o balcão, com trapos úmidos,
sonhavam no contemplação das revistas de cinema, suspiravam quando a
vitrola automática tocava - e a última das auxiliares contratadas pela Sra.
Chicoy tinha olhos avermelhados, vivia endefluxada e escrevia longas e
apaixonadas cartas a Clark Gable. Alice Chicoy suspeitava de que todas elas
permitiam a entrada de moscas no restaurante. Norma, sua mais recente
tentativa no capítulo das auxiliares, sentira muitas vezes o peso da língua de
Alice Chicoy, no que se referia às moscas.
A rotina matinal na Encruzilhada era invariável. A primeira claridade da
manhã, e no inverno antes dela, Alice acendia as luzes do restaurante e ligava
a máquina de café expresso (coroada por uma efígie prateada que bem
poderia, em período arqueológico futuro, ser apresentada como uma das
divindades da raça dos Amudkins, os quais precederam os Atomitas que, por
desconhecidas razões, haviam desaparecido da face da terra). O restaurante
estava aquecido e bem arrumado quando os primeiros motoristas de caminhão
estacionavam para tomar café. Depois deles chegavam os vendedores, que
deixam suas casas pela madrugada e seguem à toda para as cidades do sul, a
fim de aproveitar bem o dia. Os vendedores sempre estacionavam ao avistar os
caminhões ao lado do restaurante, pois os motoristas de caminhão são tidos
como bons conhecedores dos restaurantes de beira de estrada.
Manhã alta, começavam a chegar os automóveis dos primeiros turistas,
em busca de café e informações sobre o caminho a seguir.
Os turistas procedentes do Norte não interessavam especialmente a
jovem Norma, mas os procedentes do Sul ou aqueles que chegavam de San
Juan de La Cruz pela estrada municipal, e que poderiam proceder de
Hollywood, sempre a fascinavam. Nos quatro meses em que ali trabalhava,
Norma ficara conhecendo pessoalmente quinze pessoas que tinham estado em
Hollywood, cinco das quais haviam visitado alguns dos estúdios e duas que
haviam visto Clark Gable de perto. Inspirada pelos relatos das últimas, ela
escrevera uma carta de catorze páginas que começava assim: "Prezado Sr.
Gable" - e terminava:" amorosamente, Uma Amiga". As vezes ela sentia
arrepios de emoção, só de pensar em que o Sr. Gable poderia vir a saber que
fora ela a autora da carta.
Norma era uma jovem fiel. Que as outras, as fúteis, corressem atrás dos
novos que surgiam, dos astros do momento - os Sinatras, os Van Johnsons, os
Sonny Tufts. Mesmo durante a guerra, durante a época em que Gable não
trabalhou no cinema, Norma mantivera-se fiel a ele, aquecendo seus sonhos
com uma fotografia colorida de Gable, em traje de vôo e com dois pentes de
projéteis de metralhadora de 50 mm, pendentes dos ombros.
Ela não escondia seu desprezo por Sonny Tufts.
Apreciava homens mais adultos, com traços interessantes. As vezes,
esfregando um trapo molhado pelo balcão, com olhos sonhadores colados â
porto do restaurante, cerrava as pálpebras e sonhava um pouco. Então, no
jardim secreto de sua imaginação, Gable entrava no restaurante, parava,
surpreso ao avistá-la, entreabrindo ligeiramente os lábios e indicando, com os
olhos, que acabara de reconhecer a mulher que seria sua. E em torno deles as
moscas esvoaçavam, de um lado para o outro, impunemente.
As coisas jamais ultrapassavam esse ponto. Norma era muito tímida.
Além disso, seus conhecimentos de amor eram eminentemente teóricos. No
verdade, sua vida amorosa, até então, limitara-se a uma série de lutas
corporais travados nos assentos traseiros de automóveis, durante as quais se
empenhara a fundo em manter as roupas sobre o corpo. A força de
concentração, jamais tinha sido vencida numa dessas lutas. Estava certa de
que o Sr. Gable não somente jamais faria uma coisa dessas, como ainda
ficaria indignado se alguém tocasse no assunto perto dele.
Norma usava os vestidos baratos e laváveis vendidos pela National
Dollar Stores, embora, é claro, tivesse também um vestido de cetim para as
festas. Mas quando se presta atenção, pode-se descobrir algo de belo até
mesmo num desses vestidos baratos e laváveis. Possuía também um broche
mexicano, de prata trabalhada, representando um marco de calendário asteca,
que lhe fora legado por sua tia, pela qual Norma velara por sete meses,
embora ela desejasse realmente o casaco de pele de foca e o colar barroco de
pérolas e turquesas. Mas estes foram destinados a outro ramo da família.
Norma tinha também um colar de pequenas contas de âmbar, deixado por sua
mãe. Jamais usava o os dois ao mesmo tempo. Além dessas preciosidades,
possuía outras jóias que representavam pura loucura e que ela sabia não
serem mais que pura loucura. Bem no fundo de sua mala, guardava uma
aliança folheada a ouro e um anel de diamante gigante, tipo brasileiro, que lhe
tinham custado cinco dólares. Usava-os somente quando ia para a cama. Pela
manhã, aliança e anel voltavam para o fundo da maio. Ninguém neste mundo
tinha conhecimento da existência das duas jóias, além dela. A noite,
adormecia fazendo girar aliança e anel no anular da mão esquerda.
Os alojamentos do pessoal na Encruzilhada eram dispostos de maneira
muito simples. Diretamente atrás do restaurante havia um corredor. Uma
porta no fim do balcão dava para o dormitório-sala de estar dos Chicoy, que
continha uma coma de casal coberta por uma manta afegã, um enorme
aparelho de rádio, duas poltronas acolchoadas e uma cômoda - jogo completo
de dormitório, como se diz - e uma lâmpada de leitura, cujo quebra-luz era de
vidro fosco, esverdeado, imitando mármore. Para atingir seu quarto, Norma
tinha de passar obrigatóriamente pelo dormitório-sala de estar dos Chicoy,
uma vez que, segundo a teoria de Alice, as jovens devem estar submetidas a
certa supervisão, e não dispor de inteira liberdade de movimentos. Para ir ao
banheiro, tinha de cruzar o quarto dos Chicoy - ou sair pela janela de seu
quarto, que era o que fazia habitualmente. O quarto do aprendiz de mecânico
ficava do lado oposto do prédio, mas tinha entrada independente e ele podia
movimentar-se livremente através dela e usar o cubículo que ostentava a placa
HOMENS, atrás da garagem.
Era um belo e compacto grupo de edifícios, funcional e agradável. No
tempo dos Blanken, a Encruzilhada dos Rebeldes fora um lugar miserável,
sujo e suspeito, mas os Chicoy ali floresceram. Havia algum dinheiro no banco
e um certo grau de segurança e felicidade. Essa ilha coberta pelos grandes
carvalhos podia ser avistada a quilometros de distância. Não era preciso
consultar mapas rodoviários para localizar a Encruzilhada dos Rebeldes e a
estrada municipal que leva a San Juan de La Cruz. No grande vale, os trigais
estendiam-se para o este, até o sopé das altas montanhas, e a oeste eles
terminavam quase nos lombadas das colinas arredondadas, onde cresciam os
carvalhos selvagens, pontos escuros contra o verde da vegetação. No verão,
quando o sol amarelado ardia no céu, esturricando as colinas, a sombra
projetada pelos grandes carvalhos da Encruzilhada dos Rebeldes era uma
visão agradável, dessas que a gente não esquece. No inverno, quando as
chuvas pesadas caíam, o restaurante era um local aquecido e abrigado,
cheirando a café, feijão e torto. Na primavera, quando a relva era muito verde
nos prados e na encosta das colinas, quando as flores do campo
desabrochavam em magníficos tons de azul e ouro, quando espontavam nas
grandes árvores os brotinhos de um verde amarelado, não havia lugar mais
encantador em todo o mundo. Sua beleza não era dessas que acabam
cansando. Era das que pegam a gente pela garganta, ao amanhecer, e chegam
a produzir um prazer tão profundo que até dói na boca do estomago, quando o
sol se põe. O doce odor das flores do campo e da verde relva aceleram a
respiração de quem contempla a paisagem, produz um arfar quase sexual. E
foi nessa estação, em que tudo desabrocha e cresce, que Juan Chicoy, embora
o dia ainda não tivesse rompido, saiu de casa e caminhou para o ônibus,
iluminando o caminho com uma lanterna elétrica.
Carson Espinhudo, o aprendiz de mecânico, seguia ao seu lado,
sonolento e estonteado. As luzes do restaurante ainda estavam apagadas.
Sobre as colinas do oriente não surgira nem mesmo o alvor acinzentado
que precede a madrugada. Ainda estava tão escuro que as corujas piavam
despreocupadamente. Juan Chicoy aproximou-se do ônibus, estacionado na
frente da garagem. A luz da lanterna, ele parecia um grande balão, onde
alguém perfurara enormes janelas prateadas. Carson Espinhudo, ainda
estremunhando, seguia-o de mãos nos bolsos, tremendo, não de frio, mas por
estar meio tonto de sono.
Soprou, vinda do campo, uma brisa fresca trazendo consigo o aroma
das flores e o cheiro forte da terra, empenhada no esforço de produção da
primavera.

CAPÍTULO II

A lanterna elétrica, coberta por um quebra-luz chato, iluminava com


sua luz crua somente pernas e pés, pneumáticos e troncos das árvores, junto
ao solo.
Ela oscilava como um pêndulo e sua pequena lâmpada incandescente,
branco-azulada, quase cegava e Juan Chicoy, ao chegar à garagem, tirou uma
penca de chaves do bolso do macacão, destacou a do cadeado e abriu de par
em par as grandes portas. Depois acendeu a luz interna e desligou a lanterna.
Juan apanhou primeiro um gorro de mecânico, de tecido riscadinho,
que estava sobre o banco de trabalho. Usava macacão de zuarte, sem mangas
e com grandes botões de cobre nas alças e sobre o reforço dos bolsos laterais,
e envergava uma jaqueta de couro, escuro, com punhos e gola de lã tricotada.
Seus sapatos de trabalho eram do tipo arredondado e forte, com solas tão
grossas que até pareciam inchadas. Sob a luz da lâmpada da garagem, uma
velha cicatriz que tinha no rosto, ao lado do nariz, parecia um risco de
sombra. Correndo os dedos pela cabeça, ele ajeitou a basta cabeleira negra
sob o gorro de mecânico. Suas mãos eram curtas, largas e fortes, com dedos
espatulados e unhas achatadas pelo trabalho, aqui e ali deformadas e
enegrecidas por marteladas. O terceiro dedo da mão esquerda não tinha a
última falange e havia um pequeno cogumelo de tecido, uma protuberância de
carne, na ponta da junta amputada. A protuberância era de um tecido
brilhante e diferente do resto do dedo, como se a ponto da junta tivesse
tentado transformar-se numa unha; nesse dedo ele usava uma larga aliança
de ouro como se, já que o dedo não servia mais para o trabalho, desejasse
atribuir-lhe ao menos uma função ornamental.
Um lápis, uma régua e um medidor de pressão de ar surgiam de um
bolso do macacão. Juan fizera a barba na véspera e ao longo de seus
maxilares e no pescoço os fios que repontavam eram brancos, como o pêlo de
um velho cão de caça. Isso era mais que aparente porque o resto da barba era
negro-azulada. Seus olhos escuros eram apertados e cheios de humor, tal
como os de um homem que entrecerra os olhos quando a fumaça do cigarro os
irrita e ele não pode tirá-lo da boca. A boca de Juan era cheia e boa, uma boca
relaxada, com o lábio inferior ligeiramente avançado - não numa
demonstração de petulância, mas de bom humor e autoconfiança - e o lábio
superior bem conformado, riscado ao centro por uma profunda cicatriz, quase
branca contra o tom queimado da pele. O lábio devia ter sido profundamente
cortado havia muito tempo e a cicatriz branca parecia agora um profundo
desfiladeiro no tecido, que se erguia de ambos os lados. Suas orelhas não
eram grandes, mas acabanadas, projetando-se do crânio como duas conchas,
ou na posição em que as colocamos, com as mãos, quando desejamos ouvir
melhor alguma coisa. Juan dava a impressão de estar constantemente atento
ao que ouvia, enquanto seus olhos pareciam estar rindo do que ouvia, e
metade de sua boca desaprovando. Seus movimentos eram sempre seguros,
ainda quando não estivesse fazendo coisas que requerem segurança. Suas
mãos moviam-se rápida e precisamente, atingindo exatamente o ponto visado.
Seus dentes eram longos, com as bordas incrustadas de ouro, o que lhe
dava ao sorriso uma certa ferocidade.
Dos pregos cravados na parede, sobre a banca de trabalho, ele retirou
as ferramentas que desejava, colocando-as numa caixa chata e alongada -
chaves inglesas, alicates, várias chaves de fenda, um martelo elétrico e uma
marreta. Ao seu lado, Carson Espinhudo, ainda tonto de sono, apoiava o
cotovelo sobre a superfície oleosa da banca.
Espinhudo envergava o "sweater" remendado de um clube de
motociclismo e tinha na cabeça a coroa serrilhada de um velho chapéu de
feltro. Era um rapaz de dezessete anos, magro e de cintura fina, ombros
estreitos, nariz alongado e olhos que, muito claros pela manhã, se tornavam
pardo-esverdeados à medida que o dia avançava. Uma pelugem dourada
cobria-lhe a ponta do queixo e seu rosto era perfurado, intumescido e roído
pela acne. Entre as velhas cicatrizes, havia novas pústulas, purpurinas e
vermelhas, algumas em processo de crescimento e outras murchando. A pele
rebrilhava com os inúteis medicamentos que são vendidos aos que sofrem
desse mal.
As calças de zuarte de Espinhudo ajustavam-se como luva ao seu corpo
e eram tão longas que as barras dobradas continham mais de trinta
centímetros de tecido. Eram presas, na cintura fina, por um largo cinto de
couro, muito bem trabalhado, com larga fivela de prata entalhada, que
ostentava quatro pequenas turquesas. Espinhudo fazia o possível para manter
as mãos longe do rosto, mas quando dava por si estava coçando a área
inflamada e tinha de esforçar-se para baixá-las novamente.
Escrevia para todos os laboratórios farmacêuticos que anunciam
preparados destinados a acabar com as espinhas e consultara toda uma série
de médicos, os quais sabiam que nada poderiam fazer por ele e que
provavelmente as espinhas desapareceriam por si, dentro de alguns anos.
Contudo, prescreviam-lhe poções e ungüentos e um deles chegara a mantê-lo
numa dieta exclusiva de legumes.
Seus olhos eram longos, estreitos e enviesados para cima, como os de
um lobo sonolento e, àquela hora matinal, estavam quase totalmente cobertos
de muco. Espinhudo dormia prodigiosamente. Abandonado a si mesmo, podia
dormir quase indefinidamente. Todo o seu corpo e toda a sua alma eram
campo de batalha especialmente violenta da adolescência. Sua concupiscência
era constante e, quando não era clara e diretamente sexual, encontrava
derivativo na mais profunda das melancolias, nos sentimentos tristes e
penosos, ou num misticismo forte e indefinido. Sua mente e suas emoções
viviam como o rosto, em erupção constante, constantemente irritadas e em
carne viva. Passava por fases da mais violenta pureza, quando se sentia
assombrado ante sua própria devassidão, e tais fases eram seguidas de
períodos de langorosa melancolia, que o prostravam, passando ele então
diretamente da depressão para o sono. Tratava-se de um processo que
funcionava quase como um opiato e o mantinha entorpecido e indiferente por
longos períodos.
Naquela manhã, ele usava mocassins de couro branco e marrom, que
calçara sem meias, e seus tornozelos, sob as barras das calças de zuarte
dobradas, surgiam escuros e encardidos. Durante as fases de depressão,
Espinhudo ficava tão prostrado que nem pensava em tomar banho ou comer
regularmente. A coroa serrilhada do chapéu de feltro, que usava na cabeça,
não tinha nada de bela, mas servia para manter longe de seus olhos a basta
cabeleira loira e impedir que fosse manchada pelos respingos de óleo quando
trabalhava debaixo dos automóveis. Contemplava fixamente Juan Chicoy, com
olhar sem expressão, enquanto colocava as ferramentas na caixa e sua mente
ainda se revolvia mansamente entre as macias nuvens algodoadas do sono
quase nauseante, de tão forte.
- Apanhe a lâmpada portátil e ligue logo o fio na tomada - disse Juan. -
Vamos, Espinhudo. Animo, acorde de uma vez!
Espinhudo sacudiu-se, como um cão molhado.
- Não sei, hoje não consigo acordar direito.
- Está certo, leve a lâmpada para fora e tire também o carrinho. Temos
de trabalhar ligeiro.
Espinhudo apanhou a lâmpada portátil, protegida por uma armação de
arame em forma de cesta, e começou a desenrolar o longo fio elétrico coberto
de borracha, trançado no cabo da lâmpada. Depois ligou o soquete na tomada
perto da porta e a forte lâmpada brilhou. Juan apanhou a caixa de
ferramentas, saiu da garagem e ergueu os olhos para o céu escuro. O ar não
era mais o mesmo.
Uma leve brisa fazia tremularem as folhas mais tenras dos carvalhos e
acariciava os gerânios. Era uma brisa incerta, prenúncio de chuva. Juan já
podia cheirá-la, como cheiraria uma flor.
- Por Deus - murmurou - se ainda por cima chover...
A este, os picos das montanhas começavam a surgir, muito escuros,
contra o branco leitoso da aurora. Espinhudo saiu do garagem com a lâmpada
portátil, desenrolando o longo fio à medida que avançava.
A luz da lâmpada, as grandes árvores pareciam dançar no espaço,
refletindo o clarão em seus brotos amarelo-esverdeados. Espinhudo conduziu
a lâmpada até o ônibus e voltou para a garagem a fim de apanhar o carrinho
de mecânico, uma tábua sobre pequenas rodas de aço, que se usa para
trabalhar debaixo dos carros, e o colocou ao lado do ônibus, junto à lâmpada.
- Bem, parece que vai chover mesmo - observou.
- Aqui na Califórnia, quase todo ano chove nesta estação.
- Não estou me queixando da estação - respondeu Juan - mas com o
diferencial desmontado, os passageiros esperando e ainda por cima a terra
empapada de água...
- É bom para os pastos - afirmou Espinhudo.
Juan parou, a encará-lo. Seus olhos estreitaram-se, divertidos.
- Claro - concordou. - Claro que é bom.
Constrangido, Espinhudo baixou os olhos. Agora, iluminado pela forte
lâmpada portátil, o ônibus tinha um aspecto estranho, quase patético, pois
onde deveriam estar suas rodas traseiras havia apenas dois cavaletes de
madeira e, em lugar de repousar sobre os eixos, repousava sobre uma viga
apoiada nos cavaletes.
Era um velho ônibus, equipado com motor de quatro cilindros, de baixa
compressão, e um câmbio especial, patenteado, que lhe dava cinco marchas
para a frente, em lugar das três normais, duas reduzidas e duas à ré. Os
flancos arredondados da carroçaria, pesada e rebrilhante em sua pintura de
alumínio, não ocultavam as marcas de antigas colisões, remendos e
amolgaduras de uma longa e violenta carreira. Não raro, quando se pinta em
casa um velho automóvel, a pintura faz com que ele pareça mais obsoleto e
dilapidado do que se pudesse envelhecer honrosamente.
No interior, o ônibus também fora recondicionado. Os assentos e
encostos, originalmente de palhinha, haviam sido recobertos de oleado e,
embora feito com capricho, - serviço não era obra de profissional. Quem
entrava no ônibus sentia ainda o cheiro azêdo do oleado, mesclado ao cheiro
forte de óleo e gasolina. Era um ônibus velho, muito velho, que fizera muitas
viagens e conhecera muitas situações difíceis. Seu soalho, de tábuas de
carvalho, tinha sido gasto e polido pelos pés de varias gerações de passageiros.
Os flancos do ônibus haviam sido entortados e desentortados muitas vezes. "
As janelas não podiam ser baixadas, pois toda a carroçaria fora colocada
ligeiramente fora de esquadro. No verão, Juan retirava os vidros e, no inverno,
voltava a colocá-los.
O assento do motorista estava tão gasto que se via o conteúdo das
molas do estofamento, mas uma almofada de tecido estampado desempenhava
a dupla função de proteger o motorista e esconder as velhas molas. Suspensas
do topo do pára-brisa, pendiam as mascotes: um sapatinho de bebê - para
proteção, pois os pés incertos de um bebê requerem a constante atenção e
assistência de Deus; - uma pequenina luva de boxe - para força, potência,
segurança no volante, impulso dos pistões para fazer girar o virabrequim,
poder da pessoa como indivíduo responsável e orgulhoso. Pendia também do
pára-brisa uma bonequinha de cabeleira de penas, envolta em provocante
sarong. Isso se destinava ao prazer da carne e da vista, do nariz e dos ouvidos.
Quando o ônibus estava em movimento, as três mascotes dançavam e
giravam sobre a cabeça do motorista. No suporte centrar do pára-brisa, sobre
o topo do painel de instrumentos, havia uma pequena estatueta de metal da
Virgem de Guadalupe, pintada em cores vivas.
Os raios que se projetavam de sua cabeça eram de ouro - seu manto era
azul; os pés da imagem repousavam sobre uma lua de metal, sustentada por
querubins. Ela era a ligação de Juan Chicoy com a eternidade. Pouco tinha a
ver com a religião, no que se refere à Igreja e ao dogma, - muito com a religião
no que se relaciona com a memória e os sentimentos. A virgem morena era
para ele sua mãe e a casinha em que, falando espanhol com um leve sotaque,
ela o embalara. A mãe tomara a Virgem de Guadalupe como sua divindade
pessoal. Esquecidos tinham sido St. Patrick e Sta. Bridget e as dez mil pálidas
virgens do Norte, para dar lugar àquela morena divindade que tinha sangue
nas veias e uma estreita ligação com o povo.
Sua mãe admirava a Virgem, cujo festa se celebra no México com fogos
e foguetes e, está claro, o pai de Juan Chicoy, que era mexicano, não se
preocupava com a questão. Os foguetes tinham por finalidade festejar os
santos. Quem poderia pensar de outra forma? O tubo preso à varinha que
subia ao céu, chispando, era evidentemente o espírito ascendendo ao paraíso e
o estouro e o clarão lá em cima representavam a dramática chegada à sala do
trono celeste. Juan Chicoy, embora não fosse praticante, não se sentiria bem,
agora que tinha mais de cinqüenta anos, se tivesse de dirigir o ônibus sem a
imagem da Virgem de Guadalupe a velar por ele. Sua religião era prática.
Sob a Virgem, ficava o compartimento do porta-luvas, que continha um
revólver Smith & Wesson 45, um rolo de gaze, um vidro de iodo, um
frasquinho de sais aromáticos e um quarto de litro de uísque. Juan confiava
em que, equipado dessa forma, poderia enfrentar qualquer situação.
Sobre os pára-choques fronteiros do ônibus ainda se podia ler, com
certo esforço, a velha inscrição: “el gran poder de Jesus” (o grande poder de
Jesus). Mas a inscrição havia sido obra de um proprietário anterior. Agora se
lia sobre os pára-choques traseiros e dianteiros a simples palavra "Querida",
pintada em grossas letras. Por isso o ônibus era conhecido como "Querida",
por todos que dele faziam uso. Naquele momento, porém, estava imobilizado,
sem as rodas traseiras, com o posterior suspenso, repousando sobre a viga
colocada entre os dois cavaletes de madeira.
Juan Chicoy tinha nas mãos a nova engrenagem do pinhão e da coroa
do diferencial, que manuseava com cuidado, ajustando-lhe os dentes.
- Chegue mais perto com essa lâmpada - disse a Espinhudo, fazendo o
pinhão girar dentro da coroa. - Ainda me lembro de que uma vez coloquei uma
coroa nova num pinhão velho e o negócio arrebentou de saída.
- Os dentes velhos roncam pra burro - observou Espinhudo. - A gente
pensa até que o troço vai explodir de um momento para o outro. Que será que
arrebentou os dentes da coroa velha?
Juan ergueu a engrenagem da coroa contra a luz e fez o pinhão girar
lentamente, examinando o encaixe dos dentes das duas pecas.
- Não sei - respondeu. - Há muito coisa que ninguém sabe sobre metais
e motores. Veja a Ford. Ela fabrica cem carros, por exemplo, e dois ou três
deles não servem para nada. Não é esta ou aquela peça que não funciona bem,
o carro inteiro não presta. As molas, o motor, o bomba d'água; a correia do
ventilador, o carburador. Pouco a pouco, tudo vai quebrando e ninguém sabe
por quê. A gente pega um outro carro do mesmo modelo e pensa que é igual,
mas vai ver e não é. Tem qualquer coisa que os outros não têm. É mais
potente. É como um camarada corajoso no duro, disposto a tudo. Esse nunca
quebra, aconteça o que acontecer.
- Tive um desses - disse Espinhudo. - Um modelo A. Vendi ele. Aposto
que ainda está circulando por aí. Foi meu três anos e nunca gastei um tostão
com ele.
Juan colocou a coroa e o pinhão novos no estribo do ônibus e ergueu do
chão a velha coroa. Indicou com o dedo a área fendida, onde os dentes tinham
quebrado.
- Metal é um negócio gozado - disse. - Às vezes, parece que fica
cansado. Você sabe, lá no México, onde eu nasci, os açougueiros costumam
ter duas ou três facas de talho. Usam uma e deixam as outras cravadas na
terra. Descansa a lâmina, dizem eles. Não sei se é verdade, mas essas facas de
talho são mesmo afiadas como navalhas. Acho que ninguém entende muito de
metais, nem mesmo o pessoal que trabalha nas fundições. Vamos meter este
pinhão no diferencial. Olhe, segure a luz aqui, assim.
Juan rodou o carrinho para baixo do ônibus, estirou-se sobre a longa
tábua, deu um impulso com os pés e desapareceu sob as entranhas do
veículo.
- Segure a luz um pouco mais para a esquerda. Não, mais alto. Assim.
Agora passe as ferramentas, sim?
As mãos de Juan começaram a trabalhar ativamente e uma gota de óleo
correu-lhe rosto abaixo. Ele limpou a cara com as costas da mão.
- Trabalho chato, esse - grunhiu.
Espinhudo curvou-se para observá-lo.
- Eu podia pendurar a lâmpada naquele jumelo - sugeriu.
- Não, não adianta porque daqui a pouco preciso da luz do outro lado -
respondeu Juan.
- Tomara que ponha esse negócio em ordem ainda hoje - suspirou
Espinhudo. - Esta noite quero dormir na minha cama. Não se pode dormir
direito numa cadeira.
Juan sorriu.
- Já viu gente mais brava que os passageiros, quando tive de voltar com
o ônibus quebrado? Parecia até que eu tinha arrebentado o negócio de
propósito. Estavam tão danados que reclamaram como o diabo das tortas da
Alice. Acho que eles pensam que ela faz as tortas. Mas, afinal de contas, quem
viaja detesta qualquer contratempo.
- Pois é, mas estão lá nas nossas camas - resmungou Espinhudo. - Não
sei por que essa gente reclama tanto. Você, eu, Alice e Norma é que tivemos de
dormir nas cadeiras. E os tais Pritchards é que são os mais chatos. Mildred, a
garota, até que é boazinha, mas o velho e a velha são de amargar. Acham que
estão sendo tungados. Ele já me disse mais de cem vezes que é presidente não
sei do quê e que alguém vai ter de pagar por isso. Ultraje, foi o que ele disse. E
ele e a mulher dele estão dormindo na sua cama. Onde é que a Mildred está
dormindo? - os olhos de Espinhudo brilharam na escuridão.
- Numa das poltronas, acho - respondeu Juan. - ou com o pai e a mãe
dela, quem sabe. Aquele camarada da tal companhia de novidades ficou com a
cama de Norma.
- Fui com a cara dele - disse Espinhudo. - Não abriu a boca para
bronquear, como os outros. Disse que era melhor mesmo descansar um pouco
aqui. Não explicou com o que trabalha. Mas os tais Pritchards são de encher,
menos a Mildred. Sabe para onde vão, Sr. Chicoy? Pois vão visitar o México.
Mildred esteve estudando espanhol na escola. Vai servir de intérprete para os
velhos.
Juan colocou o pino de segurança na engrenagem e introduziu-o
cuidadosamente no lugar.
- Agora vamos tratar do diferencial.
A luz do dia clareava o céu e os picos das montanhas distantes. O
mundo em preto e cinza começava a dissolver-se e as coisas brancas e azuis
surgiam prateadas e vermelhas, embora tudo o que fosse verde escuro ainda
parecesse negro. As folhas mais tenras dos carvalhos pareciam negras e
brancas e o contorno das montanhas destacava-se duramente contra o céu.
Nuvens informes e pesadas, que rolavam incertos, começavam a colorir-se de
rosa-escuro em suas bordas orientais.
Subitamente, as luzes do restaurante brilharam e a cerca-viva de
gerânios nasceu da escuridão. Juan voltou a cabeça para olhar.
- Alice está de pé - disse ele.- O café não deve demorar. Olhe, de uma
mão aqui, sim?
Os dois trabalhavam bem em conjunto. Sabiam o que devia ser feito.
Cada qual cumpria o que lhe competia. Espinhudo deitara-se também na
borda do carrinho e dava o aperto final nas porcas do diferencial, sentindo-se
bem por estar trabalhando harmoniosamente ao lado de Juan.
Juan fazia força com a chave, para apertar uma porca de seu lado, a
chave inglesa resvalou e a cabeça da porca arrancou pele e carne das costas
de sua mão. O sangue escorreu, escuro e grosso, pela mão suja de óleo. Ele
levou-a à boca, para sugar o ferimento, e manchou os lábios de óleo.
- Machucou muito? - perguntou Espinhudo.
- Não, acho que isso é até sorte. Não se pode terminar um serviço
desses sem um pouco de sangue. Pelo menos, era o que meu pai dizia sempre.
- Juan sugou novamente o ferimento, que agora vertia menos sangue.
A luz e o calor da aurora já se filtravam sob o veículo, fazendo com que
a lâmpada elétrica perdesse algo de seu brilho.
- Só queria saber quantos vão chegar pelo Greyhound - observou
Espinhudo, falando sozinho. Então, foi possuído de um forte impulso, que
nasceu da forte afeição que nutria pelo Sr. Chicoy, naquele momento. O
pensamento era tão claro que quase o feriu. - Sr. Chicoy... - começou ele,
atrapalhando-se, num tom de quem está pedindo, de quem vai solicitar,
implorar.
Juan ficou com o braço parado no ar, aguardando o pedido, pedido de
um dia de folga, pedido de aumento, pedido de alguma coisa. Aquilo só
poderia ser um pedido. Aquilo estava implícito no tom, e para Juan equivalia a
encrenca. As encrencas sempre começam dessa forma.
Espinhudo silenciara. Não encontrava as palavras.
- Que é que você quer? - perguntou Juan, cautelosamente.
- Sr. Chicoy, não podia dar um jeito... quer dizer... não podia dar um
jeito de não me chamar de Espinhudo?
Juan retirou a chave inglesa da porca e voltou a cabeça para fitá-lo. Os
dois estavam deitados de costas, juntos, face a face. Juan tinha diante dos
olhos as velhas crateras cicatrizadas, os prenúncios das novas espinhas que
se formavam e uma grande pústula madura, amarelada, a ponto de vazar,
perto do nariz de Espinhudo. E, ao olhar, os olhos de Juan se enterneceram.
Ele sabia.
Aquilo lhe ocorreu subitamente, não podia compreender por que ainda
não havia dado pela coisa.
- Como é seu nome? - perguntou secamente.
- Ed - respondeu Espinhudo. -, Ed Carson, parente longe de Kit Carson.
Antes de aparecer esse negócio no meu rosto, eles costumavam chamar-me de
Kit, na escola. - Sua voz era calma e controlada, mas o peito arfava-lhe com
força, subindo e descendo, e o ar zumbia-lhe nas narinas.
Juan desviou os olhos, voltando o rosto para a lâmpada que ainda
ardia, suspensa da traseira do ônibus.
- OK. - disse ele - vamos levantar o bruto com os macacos. - Rolou para
o lado, saindo debaixo do veículo. - Agora, lubrifique logo isso.
Espinhudo partiu para a garagem, quase correndo, e voltou com a
pistola de lubrificação, puxando o cabo de ar comprimido. Depois meteu o
cano da pistola no orifício da engraxadeira e o ar comprimido silvou no
cartucho. A pistola matracou até a graxa começar a vazar pelo bujão. Ele
retirou o cano e rosqueou o bujão.
- Kit - disse Juan - lave as mãos e vá ver se o café já está pronto, sim?
Espinhudo seguiu para o restaurante. Junto da porta, onde se erguia
um grande carvalho, a sombra era ainda quase noturna. Ali ele parou, por um
momento, recuperando o folego. Tremia, arrepiado, como se estivesse
resfriado.
CAPÍTULO III

A luz da manhã já clareava as montanhas que se erguiam a este


quando Juan Chicoy se ergueu e sacudiu com a mão a terra das pernas e das
calças de seu macacão. O sol refulgia nas vidraças do restaurante e aquecia a
grama em torno da garagem. Sua luz destacava o rubor das flores vermelhas
do campo e, aqui e ali, o azul ferrete dos acianos.
Juan Chicoy colocou um pé no estribo do ônibus e curvou-se para
dentro. Esticando o braço, torceu a chave de contato e comprimiu o botão de
partida com as costas da mão. O motor de partida rosnou, num protesto
enferrujado, e o motor do ônibus pegou, rugindo até Juan fechar o afogador.
Com o motor em marcha lenta, ele comprimiu o pedal de embreagem com uma
mão, engatou a reduzida e soltou a embreagem. As rodas traseiras giraram
lentamente no ar e ele deu volta ao ônibus, para verificar se o diferencial
estava roncando.
Espinhudo lavava suas mãos sobre uma lata de gasolina, na garagem.
O sol aquecia uma folha de árvore parda, que o vento jogara a um canto da
porta da garagem.
Pouco depois, uma pequena mosca abandonou a folha, que lhe servira
de abrigo durante a noite, e arrastou-se lentamente sob o calor do sol da
manhã. Suas asinhas iridescentes estavam ainda pesadas e endurecidas pelo
frio da noite. A mosca esfregou suas pernas contra as asas, esfregou as pernas
e depois esfregou a cara com as patas fronteiras, sob o sol que por entre as
grossas nuvens aquecia seus fluidos. Bruscamente a mosca levantou vôo,
circulou duas vezes no ar, passou sob os carvalhos e foi bater contra a tela da
porta do restaurante, caiu para trás e zumbiu no chão, de costas. Depois se
ergueu, levantou vôo novamente e foi colocar-se no batente da porta, em
posição.
Alice Chicoy, com o corpo dolorido pela noite mal dormida numa
cadeira, chegou à porta e olhou para o ônibus. Abriu apenas uma fresta de
alguns centímetros na porta, mas a mosca aproveitou a oportunidade e voou
para dentro do restaurante. Alice avistou-a e imediatamente atacou a intrusa
com o pano de pratos que tinha na mão. A mosca esvoaçou estonteada, por
um momento, e desapareceu sob uma borda do balcão. Alice observou as
rodas traseiras do ônibus, girando lentamente no espaço, voltou à máquina de
café expresso e abriu a válvula do vapor. O fluido pardo encheu o tubo
indicador de vidro ao lado da máquina, ralo e fraco. Ela correu o pano de
pratos sobre o balcão e, ao fazê-lo, notou que, sob sua cobertura transparente
de plástico, a grande torta de coco apresentava uma larga solução de
continuidade, de bordas irregulares. Apanhando uma faca, ela ergueu a
campânula de plástico, acertou cuidadosamente as bordas cortadas e meteu
as aparas na boca. Quando a campânula já estava quase no lugar, a mosca
surgiu, voou por baixo da cobertura e precipitou-se sobre a massa
esbranquiçada da torta. Colocando-se sob uma protuberância, para não ser
avistado do alto, ela dedicou-se ao doce com
método e rapidez. Era dona de uma alta e larga montanha de torta de coco e
estava muito contente.
Espinhudo entrou, cheirando a graxa e gasolina, e sentou-se em seu
lugar do costume, num dos tamboretes.
- Muito bem - disse ele - já terminamos tudo, o ônibus está novo.
- Você e quem mais? - perguntou Alice, sarcasticamente.
- Bem, é claro que o Sr. Chicoy se encarregou da parte técnica. Gostaria
de tomar uma xícara de café e comer um pedaço de torta.
- Você já andou comendo torta de coco, antes de eu me levantar. - Alice
empurrou com as costas da mão o cabelo que lhe caía sobre os olhos. - Não
pode negar.
- Está certo, ponha na minha conto - disse Espinhudo. - Pago tudo o
que como, não pago?
- Mas por que come tanto doce? Você passa o dia tirando doces do
mostruário. Torra quase todo seu salário nisso. Você vive de doces. Aposto que
é isso que provoca essas espinhas. Por que não experimenta deixar de comer
doces por algum tempo?
Constrangido, Espinhudo baixou os olhos para as mãos. Sob suas
unhas, nos pontos que a gasolina não atingira, havia manchas escuras de
graxa.
- Os doces dão muita energia - disse ele. - Quem trabalha, precisa de
muita energia. Lá pelas três da tarde, por exemplo, quando há uma folgo no
serviço, é preciso comer alguma coisa para renovar a energia.
- Energia, uma ova - observou Alice - Você
tem tanta necessidade de alimento com energia quanto eu tenho de... - Não
pronunciou a última palavra. Tinha uma linguagem das mais profanas, mas
jamais pronunciava todas as palavras, preferia deixar a coisa pendendo no ar.
Ela encheu uma xícara de café - uma xícara grossa, de fundo chato, sem pires
- clareou a mistura com leite quente e empurrou-a para o rapaz.
Espinhudo, com os olhos colados à jovem do anúncio da Coca-Cola, que
se rebolava provocantemente sobre a vitrola automática, pos três colheres
cheias de açúcar na xícara e ficou a mexer a mistura, distraidamente, com a
colher em posição vertical.
- Queria um pedaço de torta - repetiu ele, pacientemente.
- Está certo, afinal o enterro é seu Vai ficar com a barriga como um
balão.
Espinhudo lançou um olhar ao traseiro bem conformado de Alice e
desviou rapidamente a vista. Alice apanhou novamente a faca que já usara e
cortou uma fatia da torta de coco. A fatia caiu sobre a mosca, comprimindo-o
contra o pires. Alice fez o pires deslizar pelo balcão e Espinhudo
imediatamente começou a trabalhar sobre a fatia de torta com sua colher de
café.
- O pessoal ainda não se levantou? – perguntou ele.
- Não, mas eles já estão fazendo barulho. Um deles deve ter usado toda
a água quente. Não ficou uma gota para o restaurante.
- Deve ter sido Mildred - observou Espinhudo.
- O que?
- A menina. Talvez tenha tomado banho.
Alice encarou-o.
- Olhe aqui, engula essa torta que dá energia e não comece a imaginar
besteiras.
- Não disse nada. Puxa, tem uma mosca aqui na torta!
Alice fungou.
- Ontem havia uma mosca na sua sopa. Acho que você traz moscas no
bolso.
- Não, olhe aqui. Ela ainda está esperneando.
Alice aproximou-se, para olhar.
- Pois mate a mosca! - gritou. - Esmague-a! Quer que fuja? - Apanhou
um garfo da caixa que ficava atrás do balcão, esmagou a mosca e os restos de
torta e atirou tudo na lata do lixo.
- E a minha torta? - perguntou Espinhudo.
- Não se preocupe, você ganha outra. Não sei como sempre encontra
moscas. Ninguém mais encontra mosca na comida por que só você.
- Acho que é - disse baixinho.
- O que?
- Eu disse... sorte minha - observou Espinhudo.
- Ouvi o que você disse. - Ela estava agitada e nervosa. - Cuidado com
sua língua, ou um belo dia você
sai daqui com o traseiro aceso, entendeu? Para mim, você não é mecânico
coisa nenhuma. Não passa de um moleque. Um moleque espinhudo.
Espinhudo empalidecera. Seu queixo se enterrava cada vez mais no
peito, à medida que a cólera dela redobrava. Não sabia que ela o tomava como
repositório de uma série de coisas.
- Não disse nada - murmurou. - Não se pode nem brincar?
Alice ultrapassara o ponto a partir do qual tinha acessos de fúria
histérica, durante os quais perdia o controle, destratando-se e a todos os que
estavam presentes, a menos que descarregasse a pressão rapidamente, pois
ela a sentia crescendo incontrolavelmente no seu peito e em sua garganta.
Num segundo, passou em revista toda a situação. As coisas iam mal. O ônibus
tinha de seguir.
Juan não repousara devidamente. Os passageiros podiam ouvir seus
gritos, podiam sair para ver o que estava acontecendo e Juan poderia
espancá-la. Ele já a havia espancado uma vez. Não com brutalidade, mas com
tanta precisão e eficiência que ela chegara a pensar que ia morrer. E, então,
foi possuída pelo negro temor que parecia pairar constantemente sobre seus
pensamentos - “Juan poderia deixá-la. Ele já deixara outras mulheres.
Quantas, ela não sabia, pois ele jamais falava disso, mas um homem atraente
como ele já deveria ter abandonado muitas.”
Tudo isso lhe passou pela cabeça num segundo. Alice decidiu que não
faria cenas. Engoliu a próprio ódio, controlando a pressão interna. Com
movimentos mecânicos, ergueu a campânula de plástico, cortou uma grande
fatia de torta, colocou-a num pires e foi depo-la na frente de Espinhudo.
- Todo mundo está nervoso - disse ela.
Espinhudo ergueu os olhos de suas unhas sujas. Viu as pequenas rugas da
velhice, que já desciam pelo pescoço de Alice, notou suas pálpebras superiores
pesadas e intumescidas. Viu que a pele de suas mãos tinha perdido a
consistência elástica da pele das mãos das jovens. Teve pena dela. Esquecido
pela beleza, como era, ele considerava a juventude como a única coisa deste
mundo que tem valor e assim, em sua opinião, quem perde a juventude já está
morto. Obtivera uma grande vitória naquela manhã e, quando notou a
fraqueza e a indecisão de Alice, reuniu suas forças para lograr uma segunda
vitória.
- O Sr. Chicoy disse que não vai me chamar mais de Espinhudo - disse
ele.
- E por que não?
- Bem, pedi a ele. Meu nome é Edward. Na escola eles me chamavam de
Kit, porque meu sobrenome é Carson.
- Juan está chamando você de Kit?
- Hum-hum.
Alice não compreendeu realmente do que se tratava, pois estava atenta
ao barulho lá de trás de seu quarto, barulho de passos sobre o soalho e o
murmúrio de gente que falava em voz baixa. Tomando consciência da
presença dos hóspedes, ela sentiu-se mais ligada a Espinhudo, pois ele não
era um estranho.
- Vamos ver no que vai dar isso tudo - disse ela, distraída.
O sol brilhara até aquele momento através das janelas fronteiras e da
porta entelada, desenhando retângulos luminosos nas paredes, iluminando as
caixas de temais e as pirâmides de laranjas atrás do balcão. Mas subitamente
os retângulos luminosos começaram a perder o brilho e a desaparecer. Lá de
fora veio o estrondo de um trovão e, sem mais, a chuva começou a cair. Os
primeiros pingos matracaram no telhado.
Espinhudo foi até a porta e olhou para fora. A chuva caía em cortinas,
escurecendo o campo, reverberando com força sobre o leito de concreto da
estrada. A luz úmida do sol tinha um brilho de aço. Espinhudo viu que Juan
Chicoy se refugiara dentro do ônibus, abrigando-se da chuva. As rodas
traseiras ainda rodavam no ar, lentamente. Enquanto ele olhava, Juan saltou
do ônibus e correu para o restaurante. Espinhudo manteve a
porta aberta e ele entrou correndo, mas, embora o trecho percorrido sob a
chuva fosse pequeno, o macacão de Juan ficara ensopado e seus sapatos
encharcado.
- Deus santíssimo - exclamou ele - uma verdadeira tempestade.
A cortina acinzentada de água obscureceu as colinas, refletindo uma
luz escura e metálica. As pétalas dos acianos, pesadas de água, curvavam-se
para a terra. As papoulas, arrancadas pelo revérbero dos grossos pingos,
estendiam-se pelo chão como moedas de ouro. A terra já empapada não podia
absorver mais água e pequenos riachos começavam a formar-se, correndo
para as depressões. A tempestade rugia sobre o telhado do restaurante
da Encruzilhada dos Rebeldes.
Juan Chicoy sentara-se a uma das mesinhas do restaurante e tomava
uma média clara, mastigava uma rosca e observava a tormenta pela janela.
Norma apareceu e começou a lavar os poucos pratos que estavam empilhados
na pia de aço inoxidável, atrás do balcão.
- Traga-me outra xícara de café, sim? - pediu Juan.
Ela deu volta ao balcão para servi-lo, caminhando pesadamente. A
xícara estava cheia demais. Quando ele a ergueu, um fio de café correu para o
pires. Juan apanhou um guardanapo de papel e envolveu com ele o fundo da
xícara.
- Não dormiu muito bem, não é? - perguntou ele.
Norma estava sonolenta, com o vestido amassado e mal-assentado
sobre o corpo. Observando-a, qualquer um notaria que Norma iria ter
aparência de velha muito antes de envelhecer. Sua pele era terrosa e suas
mãos pequenas e descoloridas. As erupções a que era sujeita tinham muitas,
muitas causas.
- Não dormi nada, nada mesmo - disse ela. - Cheguei a tentar dormir no
chão, mas não consegui.
- Bem, vamos ver se isso não acontece mais - observou Juan. - Eu
poderia ter chamado um carro, para levá-los a San Isidro.
- Dar a eles nossas camas! - exclamou Alice, com um muxoxo. - Ora,
como foi que você teve essa idéia? Onde mais essa gente poderia dormir nas
camas dos proprietários? Eles não têm de trabalhar hoje. Podiam muito bem
ter ficado sentados.
- Acho que isso não me ocorreu - disse Juan.
- Você não se incômoda de ver sua mulher dormindo numa cadeira -
prosseguiu Alice. - Você está sempre pronto a ceder sua cama. - Novamente,
ela sentia o ódio crescendo, lá dentro. Sabia que aquilo poderia estragar tudo e
tinha medo, mas o ódio ali estava, crescendo e fervendo dentro dela.
Uma onda pesada de chuva passou pelo telhado como se fosse uma
vassourada, deixando atrás de si o silêncio, e quase imediatamente uma outra
onda lavou o telhado. Descendo pelos beirais e pelas calhas, a água da chuva
gargarejava alto. Juan estava olhando para o chão, cismarento, um pequeno
sorriso repuxando sua boca e enviezando a cicatriz branca no lábio superior. E
isso era outra coisa que Alice temia. Ele a fizera passar a noite sentada para
observá-la. Ela sabia. Todas as relações e situações, para Alice, eram de
pessoa para pessoa e, quando ela tratava com alguém, era como se duas
pessoas gigantescas conversassem, enquanto todos os demais desapareciam.
Não havia meio termo. Quando falava com Juan, havia apenas os dois.
Quando conversava com Norma, todo mundo desaparecia, dando lugar
somente a Norma e a ela, num universo de nuvens acinzentadas. Mas Juan,
por outro lado, podia abster-se de tudo para considerar cada coisa em relação
às outras. Coisas de vários tamanhos e importância. Ele podia ver e julgar,
considerar e apreciar. Juan podia apreciar pessoas. Alice podia apenas amar,
gostar, desgostar e odiar. Ela não podia distinguir nem conceber matizes.
Olhando para Juan, ajeitou os cabelos. Uma vez por mês ela lavava
seus cabelos com uma poção, cujas qualidades misteriosas eram garantidas, e
que se destinava a conquistar e a manter um homem em servidão. O olhar de
Juan parecia distante e divertido. Isso horrorizava Alice. Ela sabia que ele a
observava, não como uma mulher furiosa cuja cólera ensombrecia o mundo,
mas como uma entre milhares de mulheres enraivecidas a serem estudadas,
inspecionadas e, sim, até mesmo gozadas.
Isso constituía para ela um horror frio e solitário. Júan toldava o seu
universo e ela sentia que não lhe toldava coisa alguma. Ele podia ver não
somente o que acontecia ao seu lado, mas podia enxergar até mesmo através
dela.
O terror que lhe inspirava a surra que uma vez ele lhe dera não se
prendia pròpriamente às pancadas - ela já apanhara antes e, longe de fazê-la
sofrer, as pancadas a excitavam e satisfaziam - mas Juan a esbofeteara como
quem afasta um inseto irritante. Não dera grande atenção a ela. Nem mesmo
ficara indignado ao bater, mas apenas irritado. Limitara-se a afastar uma
coisa barulhenta, para silenciá-la. Alice, nessa ocasião, estava apenas
procurando chamar sua atenção, usando um dos poucos expedientes que
conhecia. Agora, ela tentava novamente o mesmo expediente e sabia, pela
direção de seu olhar, que ele já a esquecera.
- Eu faço o que posso para termos um lar confortável, agradável, com
um tapete e uma colcha aveludada, e você entrega tudo a estranhos. - A voz de
Alice perdera algo da segurança. - E você deixa sua própria esposa passar a
noite numa cadeira.
Juan ergueu lentamente a cabeça.
- Norma - pediu - traga outra xícara de café, sim? Com bastante leite.
Alice fez um esforço para conter a raiva que sentia crescer e então Juan
voltou-se, lentamente, para ela. Seus olhos escuros estavam divertidos e
meigos, o olhar estava bem dirigido a ela e Alice sabia que agora ele a
observava.
- Não lhe fez mal nenhum - disse. - Isso vai fazer você apreciar melhor a
cama, esta noite.
Alice engoliu em seco, engasgada. Uma onda de calor subiu por seu
corpo. A raiva transformou-se em desejo ardente. Ela sorriu vagamente,
passando a língua pelos lábios.
- Bastardo - murmurou ela, baixinho. - Depois, tomou um hausto
profundo de ar e perguntou: - Quer uns ovos?
- Quero. Dois ovos quentes. Deixe quatro minutos na água.
- Eu sei como é que você gosta. Com toucinho?
- Não. Uma torrada e um par de rosquinhas.
Alice passou para trás do balcão.
- Só queria que saíssem logo - disse ela. - Gostaria de poder usar meu
banheiro.
- Já estão se levantando - lembrou Juan. - Daqui a pouco estarão aqui.
De fato, os passageiros já se movimentavam lá dentro. Alguém
caminhava pelo quarto. Uma porta interna foi aberta e uma mulher observou
acremente:
- Bem, creio que você podia ter batido antes de entrar, não? - E um
homem replicou: - Queira desculpar, minha senhora. A única outra saída é
pela janela.
Outra voz de homem, com um acento inconfundível de autoridade,
elevou-se sobre as outras:
- Bater é sempre uma boa idéia, meu amigo. Machucou seu pé?
- Sim.
A porta que ficava atrás do balcão foi aberta por um rapaz baixinho que
entrou no restaurante. Envergava um jaquetão; sua camisa era de tecido
pardo, do tipo preferido pelos caixeiros-viajantes e denominada "mil milhas",
pois nela a sujeira custa para aparecer. O terno era de um tecido neutro, sal-
pimenta, pela mesma razão, e ele usava uma gravata verde de crochê. Os
traços de seu rosto eram bem marcados, como os de um cãozinho, e seus
olhos também eram brilhantes e curiosos como os de um
cãozinho. Um pequeno bigode, cuidadosamente aparado, sombreava seu lábio
superior como uma taturana escura que, quando ele falava, parecia encurvar
as costas. Seus dentes eram muito alvos e regulares, com exceção dos dois
incisivos superiores centrais, obturados a ouro.
Dava a impressão de muito limpo, como se tivesse usado a escova de
cabelo para desempoeirar o terno; sua camisa tinha a aparência das que a
gente lava na pio do quarto e deixa secar sobre o mármore da cômoda, com
um peso por cima. Sua atitude e sua expressão eram de tímida confiança,
como se julgasse que estava a salvo de insultos graças a técnicas estudadas.
- Bom dia, pessoal - saudou o rapaz. - Estava pensando onde é que
vocês teriam dormido. Aposto como tiveram de dormir em cadeiras.
- Pois é, foi isso mesmo - respondeu Alice, num tom amargo.
- Não tem importância - observou Juan. - Esta noite, vamos para a
cama mais cedo.
- Consertou o ônibus? Acha que vamos poder seguir viagem, mesmo
com essa chuva?
- Oh, é claro - respondeu Juan.
O rapaz coxeou até a extremidade do balcão e sentou-se com uma
dolorosa contorção a uma das mesinhas.
Norma levou-lhe um copo d"água e os talheres, enrolados num
guardanapo de papel.
- Ovos?
- Fritos, com a gema mole, em toicinho bem frito, e torradas com
manteiga. Com manteiga... entendeu? A coisa mais difícil do mundo é
conseguir torradas com manteiga. Olhe aqui, passe manteiga nas torrados,
bastante manteiga, e deixe derreter até sumirem todos os carocinhos
amarelos, que eu lhe dou uma boa gorjeta.
Ele retirou um pé do mocassim de couro trançado, examinou-o e gemeu
de dor.
- Torceu o tornozelo? - perguntou Juan.
Mas antes de ele responder um homem de estatura média abriu a
porta, passando também para o restaurante. Poderia ser confundido com
Truman, com um vice-presidente de corporação industrial ou com um
contador regional registrado. Seus óculos de lentes sem aro eram
escantilhados. Seu terno era cinza e correto e em seu rosto havia também um
pouco de cinza. Era um homem de negócios, vestido como um deles,
parecendo ser o que era.
Em sua botoeira havia um distintivo de associação, tão pequeno que a
quatro palmos de distância não se poderia distingui-lo. O último botão de seu
colete estava fora da casa. Na verdade, esse último botão não se destinava
mesmo a abotoar. Uma fina corrente de ouro, que unia seu relógio ao
chaveiro, saía de um bolso do colete, cruzava-se numa casa central e
desaparecia no bolso do lado oposto.
- A Sra. Pritchard - disse ele em voz alta - quer ovos fritos, mal
passados se estiverem bem frescos, torradas e marmelada. E a Srta. Pritchard
quer somente suco de laranja e café. Eu quero cereais com leite, ovos fritos
virados e bem passados - não quero gema mole - torradas sem manteiga e café
a La Boston - meio-a-meio, com leite. Pode trazer tudo numa bandeja.
Alice encarou-o, enfurecida.
- É melhor virem para cá - disse ela. - Aqui não servimos refeições em
bandeja.
O Sr. Pritchard sustentou friamente seu olhar.
- Ficamos presos neste buraco - lembrou - e eu já perdi com isso um
dia de minhas férias. Se o ônibus quebrou, não tenho nada com isso. Mas
você podia pelo menos servir a refeição no quarto. Minha esposa não se sente
muito bem. Não estou acostumado a comer sentado sobre um tamborete e a
Sra. Pritchard também não.
Alice baixou a cabeça, como uma vaca furiosa que se prepara para dar
uma chifrado.
- Olhe aqui, eu preciso ir ao banheiro, lavar o rosto, mas vocês nem
pensam nos outros.
O Sr. Pritchard tocou seus óculos com a mão, nervosamente.
- Oh, compreendo. - Ele voltou-se para Juan e a luz refletiu-se em seus
óculos, convertendo-os em dois espelhos. A mão desceu para a corrente de
ouro que ia de um bolso ao outro de seu colete. Ele sacou uma pequena lima
de ouro e passou rapidamente a ponta por baixo de cada unha. Depois correu
um olhar em torno, já sem a segurança com que irrompera. O Sr. Pritchard
era um homem de negócios, presidente de uma corporação de tamanho médio.
Jamais estava só. Seus negócios eram dirigidos por grupos de homens que
agiam da mesma forma, pensavam da mesma forma e tinham até a mesma
aparência. Almoçava com homens como ele, que se reuniam em clubes
exclusivos para fechar todos os acessos a qualquer elemento ou idéia
estranha. Sua vida religiosa era também limitada à sua paróquia e à sua seita,
as quais eram também segregados e protegidas. Uma vez por semana, jogava
pôquer com homens tão semelhantes a ele que o jogo só dava margem a lucros
ou perdas insignificantes, o que os convencia de que eram excelentes
jogadores de pôquer. Onde quer que estivesse, ele não era um homem, mas
uma unidade numa corporação, uma unidade de um determinado clube, de
uma associação, de uma seita, de um partido político. Suas idéias e
pensamentos jamais eram sujeitos a qualquer crítica, já que se associava
deliberadamente aos que se assemelhavam a ele. Lia um jornal editado por e
para o seu grupo. Os livros que entravam em sua casa eram selecionados por
uma comissão que eliminava todos aqueles que pudessem irritá-lo. Odiava
nações estrangeiras e estrangeiros, porque tinha dificuldade em encontrar
nesse domínio outros que se assemelhassem a ele. Não queria destacar-se de
seu grupo. Gostaria de ascender à liderança de seu grupo e de ser admirado
por seus associados; contudo, jamais lhe ocorreria abandoná-los.
Ocasionalmente, em banquetes restritos, exclusivamente masculinos, jovens
nuas eram contratadas para dançar sobre as mesas e sentar-se sobre grandes
taças de vinho, o Sr. Pritchard perdia o fôlego de tanto dar risada e bebia o
vinho, mas quinhentos outros Pritchards estavam ao seu lado.
Mas naquela manhã, ao ouvir a rude observação de Alice sobre o
banheiro, ele correu os olhos pelo restaurante e descobriu que estava sozinho.
Ali não havia outros Srs. Pritchards. Por um momento, seu olhar pousou
sobre o rapaz vestido como caixeiro-viajante, mas ele tinha qualquer coisa de
estranho em sua aparência. Realmente, tinha na botoeira um distintivo, uma
pequenina barra azul esmaltada, com estrelas brancas, mas o Sr. Pritchard
não sabia de que associação era aquele emblema. Quando deu por si, estava
odiando intensamente a todos os que o cercavam e odiando até mesmo suas
férias. Queria voltar para o quarto e trancar a porta, mas ali estava aquela
mulher grosseira que desejava ir ao banheiro.
O Sr. Pritchard limpava rapidamente suas unhas, com a limazinha de
ouro presa à corrente do relógio.
No fundo, originalmente, o Sr. Pritchard não havia sido sempre assim.
Em certa ocasião, ele chegara mesmo a votar em Eugene Debs, mas aquilo
tinha sido há muito tempo. Agora, acontecia que os participantes de seu grupo
se vigiavam estreitamente. Qualquer infração ao código de conduta que se
impunham era em primeiro lugar notada e, a seguir, debatida. Um homem
que agia de forma diferente não era um homem merecedor de confiança e, se
persistisse, não encontraria com quem fazer seus negócios. A coloração
protetora era realmente protetora. Mas o Sr. Pritchard não era homem de levar
uma dupla vida.
Ao resignar à sua liberdade, esquecera-a completamente. Agora, para
ele, a liberdade não passava de uma das tantas loucuras da mocidade. Votara
em Eugene Debs depois de fazer sua primeira visita a um conventilho, quando
tinha vinte anos. Coisas da juventude, próprias dos adolescentes ainda em
processo de crescimento. As vezes, chegava mesmo a mencionar em seu clube
que havia votado em Debs para provar que havia sido um jovem amalucada e
que isso, tal como as espinhas dos rapazes, é coisa que faz parte do processo
geral de desenvolvimento. Mas, embora ele encontrasse justificativa e chegasse
a sorrir, quando recordava o voto que dera a Debs, estava no momento
profundamente preocupado com as atividades de sua filha Mildred.
Ela mantinha relações com indivíduos perigosos no colégio, professores
e alunos que eram tidos por vermelhos.
Antes da guerra participara do grupo que havia organizado um cordão
de boicote em torno de um navio que deveria seguir para o Japão, a fim de ser
convertido em sucata, e coletara dinheiro e medicamentos para os que o Sr.
Pritchard qualificava de vermelhos, durante a Guerra Civil na Espanha. Ele
não discutia tais assuntos com Mildred.
Ela recusava tratar com ele dessas questões. E estava firmemente
convencido de que, se todos se mantivessem quietos e controlados, ela
superaria aquela fase. Um marido e um filho poriam fim aos desvarios
políticos de Mildred.
Então, pensava ele, Mildred saberia distinguir os verdadeiros valores.
O Sr. Pritchard não se recordava muito bem de sua visita ao
conventilho. Na época, tinha vinte anos, estava embriagado, e ao acordar no
dia seguinte tinha sido dominado por um sentimento de revolta íntima e de
mágoa profunda. Não recordava mais as duas semanas seguintes, durante as
quais vivera horas de terror, aguardando o aparecimento dos primeiros
sintomas. Chegara a pensar em matar-se se eles se materializassem; matar-se,
simulando um acidente.
Agora, estava nervoso. Estava em férias, férias que, na verdade, gozava
contra a vontade. Seguia para o México que, a despeito dos cartazes da
propaganda de turismo, era para ele um país não somente sujo mas ainda
perigosamente radical. Eles haviam expropriado as empresas de petróleo; em
outros palavras, haviam roubado propriedade particular. Que diferença
haveria entre o México e a Rússia? A Rússia, para o Sr. Pritchard,
desempenhava o papel de demônio medieval, como fonte de todos os males e
terrores. Naquela manhã, estava nervoso, pois não tinha conseguido dormir
direito. Gostava de dormir em sua própria cama. Levava uma semana para
acostumar-se a outra cama e ali estava, sabendo que se condenava a passar
três semanas dormindo cada noite, praticamente, numa cama estranha, nas
quais só Deus sabia o que iria encontrar. Estava cansado e tinha a pele
irritada. A água local não era como a de Chicago, de forma que, ao barbear-se,
ele já sabia que dentro de três dias estaria com cabelos encravados no
pescoço.
Tirou o lenço do bolso superior do jaquetão, removeu os óculos sem aro
e poliu as lentes.
- Vou comunicar à minha mulher e à minha filha - disse ele. - Não
sabíamos que estávamos molestando a todos.
Norma apreciou o termo, enrolou a palavra na língua, baixinho.
Molestando. "Não pretendia molestá-lo, Sr. Gable, mas creio que deveria
saber..."
O Sr. Pritchard voltou para o quarto. Sua voz era audível, explicando a
situação, bem como as das mulheres que o interpelavam,
O caixeiro-viajante ergueu-se da mesinha e foi coxeando até o balcão,
gemendo dolorosamente a cada passo. No balcão, apanhou o açucareiro e
voltou para seu lugar, o rosto contorcido numa careta de dor.
- Não precisava, eu podia ter levado o açucareiro - disse Norma, solícita.
Ele sorriu, erguendo os olhos para ela.
- Não queria incomodá-la - explicou, corajosamente.
- Não me molestaria em nada - afirmou Norma.
Juan repousou a xícara sobre o pires. Espinhudo pediu:
- Eu queria mais uma fatia de torta de coco.
Alice cortou distraidamente uma fatia, colocou-a num pires e fez um
assentamento no bloco.
- Puxa, aqui não se come nada por conta da casa - observou
Espinhudo.
- Pois acho que aqui se come muita coisa por conta da casa, sem
conhecimento da casa - replicou Alice.
- Parece que você deu mesmo um mau jeito no pé - disse Juan ao
rapaz.
- Foi esmagado - respondeu ele - dedos esmagados. Vou lhe mostrar,
espere aí.
O Sr. Pritchard saiu do quarto e sentou-se a uma das mesinhas. O
rapaz curvou-se e tirou o mocassim. Depois tirou a meia, colocando-a
cuidadosamente ao lado do calçado.
Seu pé estava envolto em ataduras, do tornozelo aos dedos, e as
ataduras estavam empapadas de sangue rubro e fresco.
- Não precisava mostrar - disse Alice, nervosamente. Geralmente,
desmaiava ao ver sangue.
- De qualquer jeito eu tenho mesmo de trocar as ataduras - disse o
rapaz, desenrolando-as para expor o ferimento. O artelho e os dois dedos
maiores haviam sido horrivelmente esmagados, as unhas estavam negras e o
tecido em carne viva, sanguinolento.
Juan levantara-se. Espinhudo veio postar-se ao seu lado. Norma não
conseguia tirar os olhos do pé.
- Meu Deus, isso está mesmo ruim - disse Juan.
- Espere, vou buscar um pouco d"água morna para lavar a ferida. Você
deveria por uma pomada qualquer nisso aí. É capaz de infeccionar. Você pode
até perder esse pé.
Espinhudo assobiou baixinho por entre os dentes, para indicar
interesse e uma certa admiração pele qualidade do ferimento. O rapaz
observava atentamente o rosto de Juan, com os olhos brilhando de prazer e
antecipação.
- Acha que está ruim mesmo? - perguntou.
- Pode ter certeza - respondeu Juan.
- Seria melhor procurar um médico?
- Bem, se fosse comigo eu faria isso.
O rapaz riu alto, deliciado.
- Era só isso que eu queria saber - disse ele. Comprimiu a sola com o
polegar e destacou tudo - o tecido lacerado, o sangue, os dedos esmagados - e
seu pé surgiu, branco e perfeito, com os dedos intactos.
Jogando a cabeça para trás, o caixeiro-viajante deu uma gargalhada,
satisfeito.
- Bom, não é? Plástico. Um novo produto.
O Sr. Pritchard aproximara-se, uma expressão de desgosto na face.
- É o Pé Ferido Artificial Pequeno Maravilha - explicou o caixeiro-
viajante. Retirando uma caixa chata do bolso do jaquetão, ele passou-a a
Juan. - Você foi muito atencioso comigo, quero que fique com uma amostra.
Com os cumprimentos de Ernest Horton, representante da Companhia
Pequena Maravilha. - O rapaz agora
falava alto, entusiasmado. - Produzimos o artigo em três modelos - um, dois
ou três dedos esmagados. Esse que lhe dei é um de três dedos, como o que
acabou de ver. Na caixa há um rolo de ataduras e um vidrinho de sangue
artificial, para dar um aspecto terrível ao ferimento. Há também instruções
impressas sobre o uso. Antes de usar o pé pela primeira vez, é recomendável
amolecê-lo um pouco em água morna. Assim, ele se ajusta perfeitamente ao pé
e não há quem possa distinguir a diferença. Sabendo usá-lo, um camarada
pode divertir-se muito.
O Sr. Pritchard curvou-se para a frente. Já se imaginava, retirando a
meia, com um gemido, durante a reunião da diretoria de sua empresa. Poderia
fazê-lo assim que regressasse do México, depois de contar qualquer história
sobre os bandidos que encontrara.
- Quanto custa cada um? - perguntou.
- Um dólar e meio, mas eu disponho de poucos para venda no varejo -
respondeu Ernest Horton. - A produção mal dá para cobrir os pedidos que
recebemos. Em duas semanas, já vendi quarenta grosas.
- Realmente? - O Sr. Pritchard arregalou os olhos, apreciando o volume
de venda.
- Posso mostrar a você minha lista de encomendas, se não acreditar.
Nunca trabalhei com um produto novo que vendesse tão bem. A Pequena
Maravilha está ganhando os tubos.
- Qual é a margem de lucro? - perguntou o Sr. Pritchard.
- Bem, isso é uma coisa que não posso revelar, a menos que você
trabalhe com o ramo. Ética comercial, sabe como é.
O Sr. Pritchard assentiu.
- Gostaria de ficar com um deles, ao preço do varejo.
- Assim que eu acabar de comer. As minhas torradas já estão prontas? -
perguntou ele, voltando-se para Norma .
- Caprichando - respondeu Norma, constrangida, correndo para trás do
balcão e ligando o torrador.
- Sabe como é - explicou Ernest, exultante - o que ajuda a vender o
produto é a psicologia. Produzimos dedos artificiais amputados há muitos
anos, e eles são duros de colocar na praça, mas isto aqui ... é a psicologia de
descalçar seu sapato e meia. Ninguém imaginaria que você se dá a todo o
trabalho, só por brincadeira. O camarada que imaginou a coisa já ganhou um
dinheirão.
- Pois creio que você também não tem se saído mal - exclamou o Sr.
Pritchard com a voz cheia de admiração. Agora, sentia-se muito melhor.
- Não posso me queixar - respondeu Ernest. - No meu mostruário tenho
mais uma ou duas coisinhas que poderiam interessá-lo. Por enquanto, ainda
não estão à venda no varejo, mas posso fazer-lhe uma demonstração. Garanto
que vai achar graça.
- Gostaria de ficar com meia dúzia desses pés artificiais feridos - decidiu
o Sr. Pritchard.
- Todos de três dedos?
O Sr. Pritchard considerou a questão. Queria comprar a meia dúzia
para dar de presente aos amigos, mas não desejava competição. Charlie
Johnson podia representar uma pantomima muito melhor que ele. Charlie era
um cômico nato.
- Vamos fazer assim: fico com um de três dedos, três de dois e dois de
um dedo - respondeu ele. - Acho que isso será o suficiente.
Lá fora, a chuva não caía mais continuamente. Agora, entre um
aguaceiro e outro havia um intervalo, durante o qual garoava. Juan
permanecia sentado, com sua xícara de café, junto à janela. Meia rosquinha
jazia no pires, à sua frente.
- Acho que daqui a pouco a chuva vai passar - disse ele. - E será melhor
experimentar mais uma vez o diferencial, antes de partirmos.
- Creio que vou comer mais um pedaço de torta de coco - disse
Espinhudo.
- Não vai comer pedaço nenhum - respondeu Alice. - Tenho de reservar
um pouco de torta para os fregueses.
- Bem, agora eu sou um freguês, não sou?
- Eu não sei se vamos receber hoje a remessa de San Isidro - lembrou
Alice. - Tenho de manter uma reserva de torta.
No fim do balcão havia uma pequena vitrina, onde os doces e confeitos
eram arrumados como degraus de uma escada. Espinhudo desceu do
tamborete e foi postar-se à frente da vitrina. Examinou durante muito tempo
os envoltórios coloridos de doces e caramelos, antes de fazer uma escolha.
Finalmente, apanhou três barras de chocolate e colocou-as no bolso.
- Um Boby Ruth, um Love Rest e um Coconut Sweetheart - anunciou em
voz alta.
- Cada Coconut Sweetheart custa dez cents. É chocolate com nozes -
disse Norma.
- Eu sei - respondeu Espinhudo.
Alice apanhou novamente o bloco de assentamento, informando:
- Agora você ultrapassou o total de seu salário.
CAPÍTULO IV

No momento em que os Pritchard saíram do dormitório, Norma precipitou-se.


- Tenho de dar um jeito em meu cabelo e lavar-me um pouco. - Partiu
como um raio para a porta. Mas Alice estava bem atrás dela.
- Depois de mim - observou ela, friamente. Norma cruzou o dormitório
do Sr. e da Sra. Chicoy, dirigindo-se para o seu próprio quarto. Depois de
entrar, fechou a porta e, como não havia chave, girou a tramela, a fim de
garantir sua intimidade. Ela dormia numa estreita cama de campanha, que
ainda não havia sido arrumada, e contra a parede estava a mala que continha
o mostruário de Ernest Horton.
O quarto era muito estreito. Contra uma das paredes havia uma
cômoda e uma bacia; uma almofada de seda, com pingentes brilhantes, cobria
a cômoda. A almofada era escarlate e ostentava uma reprodução de dois
canhões cruzados contra um ramo de rosas vermelhas. Impresso no seda,
sobre o desenho, havia um poema chamado: "Oração de Um Soldado à Sua
Mãe".

"Em meio aos tiros, penso em ti, Mãe querida


Confio em que tuas rezas me salvarão a vida
E quando esta guerra pela vitória terminar,
Voltarei para nossa casa, para te abraçar."

Norma lançou um olhar rápido à janela, cujos vidros estavam cobertos


de gotas d’água, meteu a mão no corpinho, entre os seios, e virou a barra para
fora. Presa a um alfinete de gancho, fechado na barra, havia uma chavezinha.
Norma retirou-a do alfinete. Depois puxou sua mala de baixo da cômoda,
destrancou-a e abriu-a. Um grande retrato de Clark Gable, emoldurado em
prata e com a dedicatória "Com os meus melhores votos de felicidades - Clark
Gable", estava por cima das posses de Norma. Ela comprara o retrato, com
moldura e autógrafo, numa loja de San Isidro.
Norma meteu a mão no fundo da mala. Com os dedos, localizou logo a
caixinha que procurava. Retirou-a, abriu-a, certificou-se de que os seus anéis
estavam a salvo, fechou-a e meteu-a de novo no fundo do mala. Depois fechou
e trancou a mala, empurrou-a para o lugar, debaixo do cômoda, e tornou a
prender a chavezinha no alfinete. Erguendo-se, abriu a gaveta superior da
cômoda, retirou uma escova de cabelo e um pente e foi até a janela. Ao lado,
junto à cortina estampada em amarelo e verde, pendia um pequeno espelho
emoldurado. Norma tomou posição na frente do espelho e examinou-se.
A luz que entrava pela janela era acinzentada e banhava seu rosto. Ela
arregalou os olhos e depois sorriu, mostrando todos os dentes, sorriu com
vivacidade. Ergueu-se um pouco nos pontas dos pés, acenou para uma
imensa multidão e sorriu novamente. Passou o pente por sua cabeleira rala e
careteou quando os cabelos emaranhados resistiram. Depois retirou um lápis
gorduroso da gaveta da cômoda e passou sua ponta rombuda pelas pálidas
sobrancelhas, ressaltando o ápice das curvas, o que dava ao seu rosto uma
expressão de perplexidade. Depois começou a escovar os cabelos, dez
escovadas de um lado e dez escovadas do outro. Enquanto escovava, ergueu
uma perna, flexionando os músculos; repetiu com a outra o exercício, a fim de
desenvolver a barriga das pernas.
Tratava-se de uma ginástica de rotina, recomendada por uma estrela de
cinema que jamais em sua vida fizera qualquer exercício, mas que tinha belas
pernas.
Norma olhou mais uma vez pela janela, pois a luz acinzentada do dia
tornara-se mais fraca, de repente. Ela morreria se soubesse que alguém a
tinha visto, executando aquela dança grotesca. Somente a menor parte de
Norma era visível a olho nu. A parte maior, melhor e mais bela de Norma, jazia
muito além da vista de quem a via, reclusa e protegida.
O trinco da porta girou, estalando. Gelada, Norma ficou rígida. Somente
uma de suas mãos se movimentava, erraticamente, espalhando a tinta do
lápis de sobrancelhas sobre a testa e produzindo uma larga mancha
gordurosa. Então alguém bateu na porto. Uma batida leve, delicada. Ela
guardou a escova na cômoda, ajeitou com as mãos o vestido e foi até a porta.
Girou a tramela e entreabriu uma fresta. Viu-se frente a frente com Ernest
Horton, que a observava. O bigode cerrado do caixeiro-viajante fazia uma
curva sobre sua a boca.
- Pensei que talvez fosse melhor recolher meu mostruário - disse ele.
Norma continuou a manter aberta apenas uma fresta da porta.
- Vocês foram muito gentis - prosseguiu ele. - Não quero causar-lhes
um incomodo maior do que o que já causei.
Norma começou a relaxar lentamente o corpo, mas ainda não
recuperara por completo o fôlego. Abriu a porta e deu um passo para trás.
Ernest entrou no quarto sorrindo, meio embaraçado.
- Deveria ter feito a cama - disse ele, apanhando o lençol e o cobertor,
para dobrá-los.
- Não, não é preciso - disse Norma.
- Nem esperou pela gorjeta que lhe prometi - lembrou Ernest. - Mas,
não a perdeu. - Ele arrumou a cama rapidamente, como quem está
acostumado a arrumar a própria cama diariamente.
- Eu poderia muito bem ter feito a cama - disse Norma.
- Bem, já está feita - respondeu ele, curvando-se para a mala-
mostruário. - Dá licença de abrir minha mala? Tenho de tirar umas coisas.
- Ora, não faça cerimônia - disse ela. Seus olhos brilhavam de
curiosidade.
Ele colocou a grande mala sobre a coma, abriu a fechadura e ergueu a
tampa. A mala continha coisas maravilhosas. Continha tubos e caixinhas de
papelão, lenços que mudavam de cor. Continha charutos explosivos e bombas
que desprendem cheiro fétido. Continha porta-vozes e cornetas e
chapeuzinhos de papel para festas, bandeirolas e botões com dísticos
engraçados. Continha capas de almofadas de seda, como a que estava sobre a
cômoda. Ernest estava retirando da mala seis caixas de pés artificiais
esmagados e Norma aproximara-se para observar de perto as maravilhosas
amostras. Seus olhos deram de repente com uma série de retratos de astros de
Hollywood. Eram retratos de um tipo que jamais vira.
As gravuras eram prensadas e moldadas sobre grossas placas de
matéria plástica, de um centímetro de espessura. E apresentavam ainda outra
característica curiosa. Os retratos não pareciam planos. Um processo especial
de curvatura ou, possivelmente, a refração da luz, fazia com que as feições
parecessem moldadas, com relevo e profundidade. Os retratos davam a
impressão de ter três dimensões, e as molduras eram de vinte e cinco
centímetros por trinta.
O retrato que estava por cima era o de James Stewart, sorridente e vivo,
e do que estava por baixo. Ela só podia distinguir parte do cabelo e da testa,
mas sabia a quem pertenciam aquele cabelo e aquela testa. Seus lábios
entreabriram-se num sorriso, seus olhos brilharam. Lentamente, sua mão
desceu ao interior da mala-mostruário, empurrando James Stewart para o
lado. E Clark Gable surgiu em toda sua glória, vivo e real. Sua pose era séria e
intensa, tinha o queixo erguido, o olhar grave e atento.
Era um retrato como ela jamais vira. Norma suspirou profundamente e
tentou controlar sua respiração ofegante, para que não fosse audível. Retirou o
retrato da mala e olhou dentro dos olhos de Clark Gable, hipnotizada, de olhos
esbugalhados.
Ernest olhava para ela e notou seu interesse.
- Não é formidável? - perguntou. - É uma nova idéia. Não parece ter
mesmo profundidade, como um busto?
Norma assentiu, muda.
- Pois vou profetizar uma coisa - disse Ernest. - E pode ter a certeza de
que sei o que estou dizendo. Esse negócio vai acabar com todos os outros tipos
de retratos, vai riscá-los do mapa. É à prova de ácido, à prova de bolor, dura
para sempre, não perde as cores. É moldado e cozido dentro da moldura.
Praticamente eterno.
Os olhos de Norma estavam presos ao retrato. Quando Ernest estendeu
a mão para recolocá-lo no mostruário, os dedos de Norma cerraram-se em
torno da moldura como se fossem garras.
- Quanto custa? - sua voz saiu rouca, de um tranco só.
- É só uma amostra - disse Ernest. - É só para apresentar o produto aos
varejistas. Não é para vender. Isso é apenas uma amostra, para quem quer
fazer pedidos.
- Quanto custa? - os dedos de Norma estavam brancos, tal a força com
que agarrava a moldura. Ernest observou-a mais atentamente. Seu rosto
refletia tensão e determinação, os músculos do queixo estavam rígidos e as
narinas dilatadas pelo esforço que fazia para controlar a respiração.
- No varejo, eles vão ser vendidos por dois dólares - disse ele - mas eu
disse que ia dar a você uma boa gorjeta. Prefere ficar com o retrato, em lugar
de uma boa gorjeta?
A voz de Norma era rouca.
- Sim.
- Bem, nesse caso é seu.
A cor voltou lentamente aos dedos de Norma. Em seu olhar brilhou um
pouco de glória. Ela passou a língua sobre os lábios secos.
- Muito obrigada - exclamou. - Oh, muito obrigada, senhor! - Depois
ergueu o retrato e comprimiu aquele rosto contra o seu. O plástico não era
frio, como vidro, mas morno e macio.
- Creio que me arrumarei só com uma amostra - disse Ernest. - Olhe,
daqui vou descer para o sul. Vou passar seis semanas viajando. Acho que vou
ficar umas duas semanas em Los Angeles. Bom lugar para novidades.
Norma foi até a cômoda, com o retrato entre as mãos, abriu a gaveta,
colocou-o sob as roupas e fechou a gaveta.
- Nesse caso, creio que você irá a Hollywood.
- Ah, é claro. - Para colocar artigos do meu ramo, Hollywood ainda é
melhor que L. A. E para mim é como se estivesse de férias. Tenho muitos
amigos lá. Aproveito para descansar, passear um pouco e ainda fazer uns
negocinhos. Dois coelhos de uma cajadada. Não perco tempo. Um camarada
que serviu comigo no Exército trabalha num dos estúdios. Sempre que vou a
Hollywood saímos juntos. A última vez que fizemos uma farrinha a coisa
começou na Melrose Grotto. Fica em Melrose, pegado à RKO. E que farra! Não
lhe posso contar o que fizemos, é claro, mas nunca me diverti tanto em minha
vida. E de manhã, no fim da festa, meu amigo teve de enfrentar o batente no
estúdio, cedinho.
Norma estava atenta como um cãozinho que observa as evoluções de
um gafanhoto brincalhão.
- Esse seu amigo então trabalha num estúdio? - perguntou ela,
pretendendo manter um tom de despreocupação. - Em qual deles?
- Metro-Goldwyn-Mayer - respondeu Ernest. Estava curvado, trancando
a mala mostruário, e não podia vê-la. Não ouviu o rascar da garganta de
Norma, meio sufocada de emoção, nem o tom forçado de sua voz.
- E você pode entrar no estúdio?
- Claro. Willie sempre me arruma um passe. As vezes eu vou ao estúdio
e assisto á filmagem de uma ou duas cenas. Willie é carpinteiro de estúdio.
Trabalhava lá antes do guerra e ao voltar reassumiu. Foi meu companheiro no
Exército. Um grande camarada. E como ele conhece pequenas! Você não
imagina quantas pequenas ele conhece, nem faz idéia da lista de números de
telefone que ele tem. Um livro grosso, de capa preta, cheinho de números de
telefone. Ele já nem sabe mais de quem são alguns telefones marcados.
Ernest começava a ficar animado, ao tratar do assunto. Sentou-se na
cadeira dura que estava ao lado da cama. Deu uma risadinha, evocativa.
- Durante a guerra, Willie serviu num quartel em Santa Ana, antes de
nos conhecermos. Com o tempo, os oficiais souberam que ele tinha o caderno
de endereços e começaram a baixar em Hollywood com Willie, para que ele
arrumasse pequenas conhecidas para eles e depois disso ele obtinha licença
para deixar o quartel quando bem entendia. A coisa ia indo muito bem,
quando a companhia dele embarcou para o estrangeiro.
Uma sombra de desinteresse turvou os olhos de Norma, que nem ouvia
mais o que ele dizia. Ela arrumava o avental. Quando falou, sua voz vibrou
primeiro muito alto e depois muito baixo.
- Será que eu o molestaria se lhe pedisse um grande favor?
- Claro que não - respondeu Ernest. - Que deseja?
- Bem, se eu lhe desse uma carta e se você visitar ... bem ... o estúdio
da MGM e encontrasse o Sr. Gable, poderia entregar a carta a ele?
- Quem é o Sr. Gable?
- O Sr. Clark Gable - respondeu Norma, severamente.
- Ah, ele. Você o conhece?
- Sim - retrucou Norma, friamente. - Eu... eu sou prima dele.
- Ah, isso sim. Não há dúvida, é claro que entregarei a carta. Mas talvez
eu não vá. Por que não a envia pelo correio?
Os olhos de Norma estreitaram-se.
- Ele não recebe cartas - disse ela, com um tom de mistério na voz.
- Há uma moça, uma espécie de secretária, que recebe e queima todas
as cortas dele.
- Não! - exclamou Ernest. - E por quê?
Norma hesitou por um momento, considerando a questão.
- Eles não querem que ele receba as cartas.
- Nem mesmo dos seus parentes?
- Nem as da prima dele.
- Ele lhe disse isso?
- Disse. - Norma agora estava com os olhos vidrados e sem expressão. -
Sim, disse. Está claro que brevemente estarei com ele. Já recebi várias
propostas dos estúdios e certa vez estive a ponto de aceitar uma delas, mos o
meu primo - isto é, o Sr. Gable - disse: "Não, você ainda não tem a experiência
necessária. Você é muito jovem. Você não deve precipitar-se." Assim, estou
aqui ganhando experiência. Trabalhando num restaurante, aprende-se muito
sobre as pessoas. Eu estudo continuamente as pessoas.
Ernest voltou a observá-la, com certo ceticismo. Ele conhecia as
fantásticas histórias de empregadas de balcão que do dia para a noite se
transformam em estréias de cinema, mas Norma não tinha busto de estréia,
pensou ele, e nem as pernas. As pernas de Norma pareciam dois palitos.
Contudo, ele conhecia também duas ou três atrizes de cinema tão magras
quanto ela, tão vulgares quando estavam sem pintura que ninguém poderia
reconhecê-las na rua. Tinha lido muita coisa a respeito. E Norma, embora
fosse também uma verdadeira tábua, poderia ser devidamente equipada com
enchimento especial e, se fosse mesmo prima de Clark Gable, estava com o
futuro feito. A coisa era essa.
- Bem, não tinha pensado em pedir um passe a Willie, desta vez - disse
ele. - Já estive nos estúdios muitas vezes mas... bem, se você quiser eu peço o
passe, vou ao estúdio, localizo o Sr. Gable e entrego a ele sua carta. Mas por
que será que queimam a sua correspondência?
- Eles querem que ele se acabe de tanto trabalhar, para depois esquecê-
lo como se fosse um sapato velho - declarou Norma, apaixonadamente. Vaga
após vaga de emoção a possuía. Vivia um momento de êxtase e, ao mesmo
tempo, começava a ser tomado pelo pânico. Norma não era, uma mentirosa.
Jamais agira daquela forma. Pisava terreno dos mais perigosos e tinha
consciência disso.
Uma pergunta, uma particularidade qualquer de que Ernest estivesse a
par, bastaria para atirá-la ao caos, mas nem assim Norma podia conter-se.
- É um grande homem - disse ela - é um cavalheiro. Não gosta dos
papéis que tem de representar, porque ele não é assim. Nem mesmo o papel de
Reth Butler - ele não gostou do papel porque não é um rato e não gosta de
fazer papéis de rato.
Ernest baixara os olhos e estudava Norma através das pálpebras
semicerradas. Estava começando a compreender. O significado principiava a
tomar forma em seu cérebro. Norma era bela naquele momento, bela como
nunca mais voltaria a ser. Em sua face havia dignidade, coragem e um fluxo
de amor realmente intenso.
Ernest só poderia fazer duas coisas - dar risada ou prosseguir fingindo
que acreditava, respeitando as regras do jogo. Se houvesse mais alguém no
quarto - outro homem, por exemplo - ele provavelmente teria rido, para
proteger-se do escárnio da outra pessoa, e teria ficado envergonhado e mais
loquaz, pois ele podia ver claramente que algo de poderoso, puro e incontido
brilhava naquela mocinha. Era a mesma coisa que faz com que os crentes
passem noites a fio ajoelhados, prostrados na laje fria ante os altares. Era a
própria essência do amor que extravasava, com uma intensidade nua que
Ernest jamais observara em pessoa alguma.
- Eu levo a carta - disse ele. - Direi a ele que é da sua prima.
O medo ganhou o rosto de Norma.
- Não - pediu - prefiro surpreende-lo. Diga apenas que é de uma amiga.
Não lhe diga mais nada.
- E quando é que você pretende seguir para Hollywood, para começar a
trabalhar no cinema?
- Bem, o Sr. Gable diz que é melhor esperar mais um ano. Diz que sou
jovem e que devo ganhar experiência, estudando as pessoas. Mas já estou
ficando cansada. Às vezes, tenho vontade de voltar para minha cosa, com
aqueles - isto é, aquelas - grandes e pesados cortinas e um longo sofá, sabe
como é, e rever todas as minhas velhas amigas... Bette Davis, Ingrid Bergman,
Joan Fontaine, pois não me dou com essas outras que estão sempre se
divorciando e fazendo coisas assim. Nós nos sentamos e conversamos sobre
coisas sérias, e estudamos muito porque é assim que a gente progride e
consegue ser uma grande atriz. Muitas delas tratam mal os seus fãs, não
concedem autógrafos e coisas assim, mas nós não! A minha turma, pelo
menos. Às vezes, recebemos até as mocinhas que a gente fica conhecendo na
rua e tomamos chá com elas e conversamos com elas, e fazemos assim porque
sabemos muito bem que tudo o que nós temos depende da lealdade dos
nossos fãs. - Lá dentro, o medo ganhava terreno, mas ela não podia mais
parar. Tinha avançado demais sobre aquele terreno perigoso e corria o risco de
perder o equilíbrio a qualquer momento, mas não podia retroceder.
- Só agora é que compreendo - disse Ernest. - Então você já trabalhou
no cinema. Chegou a ser estrela?
- Sim - respondeu Norma. - Mas você não descobriria, porque trabalho
aqui sob outro nome. Só uso meu nome verdadeiro em Hollywood.
- E qual é ele?
- Não posso dizer - respondeu. -Você é a única pessoa daqui por perto
que sabe a verdade a meu respeito. Mas não contará nada a ninguém, não é?
Ernest estava comovido.
- Não - prometeu - não contarei a ninguém, já que você não quer.
- Mantenha meu segredo inviolado - disse Norma.
- Está claro que sim. Pode dar-me a carta, que eu entregarei a ele.
- Entregar o que, para quem? - perguntou Alice, da porta do quarto. -
Que fazem vocês aqui no quarto? - Seus olhos cheios de suspeita circularam
pelo aposento em busca de evidencias comprometedoras, passaram pela mala-
mostruário colocada sobre a cama, detiveram-se sobre o travesseiro,
inspecionaram as cobertas e, finalmente, chegaram a Norma. Os olhos de Alice
começaram a examiná-la por baixo, pelos pés e as pernas, perscrutaram por
um momento sua saia, mediram sua cintura e depois fixaram-se no rosto de
Norma, que pegava fogo.
Norma estava quase nauseada, de tão constrangida. Suas bochechas
eram duas manchas escarlates. Alice pos as mãos na cintura.
Ernest falou em tom conciliador.
- Eu vim retirar a minha mala e ela me pediu para levar uma carta a
um primo que tem em L. A.
- Ela não tem primo nenhum em L. A.
- Tem sim - retrucou Ernest, irritado - e eu conheço o primo dela.
Naquele momento, a raiva que crescia dentro de Alice - e que ela
contivera durante toda a manhã explodiu subitamente.
- Olhe aqui - berrou - não admito que pilantras sem moral entrem aqui
para seduzir as minhas empregadas.
- Ninguém a tocou - respondeu Ernest - ninguém encostou a mão nela.
- Ah, não? Então o que está fazendo dentro do quarto dela? Olhe, veja
só como está a cara dela. - Alice fremia, tremula de histerismo. A voz que
escapava de sua garganta era pesada, rouca, meio estrangulada. Os cabelos
caíam sobre seu rosto, os olhos cheios d’água estavam voltados para cima, sua
boca transformara-se numa linha fina, dura e cruel como a dos pugilistas que
aplicam os golpes finais a um adversário já quase inconsciente. - Não admito,
não tolero. Pensa que eu quero uma moça emprenhada aqui em casa? Pensa
que quero bastardos como você circulando aqui por dentro de casa? E nós
demos a vocês as nossas camas, os nossos quartos!
- Já lhe disse que não houve nada! - gritou Ernest. Tomado de
surpresa, ele sentia-se inerme ante aquela manifestação de loucura furiosa.
Suas negativas soavam em seus próprios ouvidos como se fossem admissões
de culpa. Não podia compreender o que a levava a agir daquela forma e a
injustiça flagrante lhe revoltava o estomago e começava a enraivecê-lo
também.
A boca de Norma estava aberta e o micróbio da histeria já começava a
contaminá-la também. Cada uma de suas inspirações dolorosas e difíceis era
seguida de um gemido sufocado. Suas mãos entrelaçadas lutavam entre si
como se cada uma quisesse destruir a outra.
Alice avançou para Norma com o punho direito fechado, não como o de
uma mulher, mas com os dedos fechados contra a palma da mão, os polegares
apertados contra as juntas dos indicadores. Babava, de língua grossa.
- Fora daqui! Suma da minha frente! Desapareça, suma na chuva,
passe para fora! - Alice prosseguiu avançando na direção de Norma e esta
recuou, dando um grito de terror.
Passos rápidos soaram no outro quarto e Juan chamou da porta.
- Alice!
Alice parou, boquiaberta, com o medo surgindo em seus olhos. Juan
cruzou lentamente o quartinho. Tinha os polegares metidos nas cavas do
macacão. Deslocava-se em direção a Alice, com os movimentos macios de um
gato. A aliança de ouro em seu dedo amputado brilhava à luz acinzentada que
se filtrava pela janela. O ódio que até então queimara Alice transformou-se em
pavor. Ela recuou, tentando escapar, passou pela cama e afastou-se dele até
colar as costas à parede. Só então parou.
- Não me bata.
Juan aproximou-se e sua mão direita movimentou-se lentamente, até
segurá-la pelo braço, logo acima do cotovelo. Olhava agora diretamente para
ela, não através dela nem além dela. Conduzindo-a gentilmente, forçou-a a dar
volta e cruzar novamente o quartinho, trancando a porta do dormitório na
cara de Norma e Ernest.
Os dois encararam a porta fechada, mal ousando respirar. Juan
conduziu Alice até a cama de casal e amparou-a delicadamente enquanto ela
caía como se estivesse vazia por dentro, os olhos pregados nele. Apanhando
um travesseiro, colocou-o sob a cabeça de Alice. Depois, com a mão esquerda,
a do dedo amputado e da aliança, acariciou-lhe a face, gentilmente.
- Pronto. daqui a pouco você estará bem - disse.
Ela cruzou os braços sobre o rosto e seus soluços escaparam meio
estrangulados, duros e secos.
- Não me bata - sussurrou ela. - Oh, por favor, não me bata.

CAPITULO V

Bernice Pritchard, sua filha Mildred e o Sr. Pritchard estavam sentados


em torno da mesinha que ficava à direita de quem entra no restaurante. O
grupo unira-se estreitamente. Os mais velhos por sentir que, de alguma forma,
estavam sendo hostilizados, e Mildred impelido pelo desejo de proteger os
outros dois. As vezes, não compreendia como seus pais haviam logrado
sobreviver num mundo mau e implacável. Para Mildred, eles eram tão
ingênuos e inermes quanto crianças pequeninas e, até certo ponto, tinha razão
no que referia à sua mãe. Mas Mildred subestimava a indestrutibilidade das
crianças, sua estabilidade e perseverança em atingir os seus fins. E Bernice
era, de certa forma, indestrutível.
Ela era bela. Seu nariz era muito reto e direito e ela usara óculos
durante tanto tempo que ficara com uma marcazinha profunda entre os olhos.
A porte superior de seu nariz tinha sido não somente afilada pela pressão
como ainda ganhara dois sinaizinhos rubros, deixados pela pressão das molas
do óculos. Seus olhos, azul-violeta, eram míopes, o que fazia com que seu
olhar parecesse meigo e profundo.
Era feminina e vaidosa, e seus vestidos tinham sempre alguma coisa do
que algum dia já fora moda. As vezes usava jabots e alfinetes antigos. Suas
saias e cintas tinham sempre um pouco de renda, um pouco de aplicações
feitas a mão, e suas golas e punhos pareciam sempre imaculados. Usava
sabonete com perfume de lavando e assim emanava sempre de sua pele, de
suas roupas e de sua bolsa, um leve odor de lavanda, bem como um outro
mais fraco, quase imperceptível, ácido, que era o seu odor natural. Tinha belos
tornozelos e pés pequenos, que calçava em sapatos finos e caros, geralmente
sapatos do tipo que tem uma presilha no tornozelo e um pequeno ornamento
na cava do peito do pé. Sua boca era descolorida e infantil, macia, boca de
quem tem caráter. Falava muito pouco, mas em seu grupo era reputada como
muito bondosa e sagaz: a primeira qualidade lhe adviera do fato de só falar
bem sobre todas as pessoas, mesmo quando se tratava de gente que não
conhecia, e a segunda por jamais opinar sobre coisa alguma que não estivesse
enquadrado nos limites dos perfumes ou de comida. Quando lhe expunham
uma idéia qualquer, ela a acolhia com um sorriso tranqüilo, como se
desculpasse as pessoas por terem idéias. Na verdade, não prestava atenção ao
que os outros diziam.
Mildred chorara mais de uma vez, de raiva, ante o sorriso tranqüilo, de
serenidade e sabedoria com que ela acolhia as tiradas políticas ou econômicas
da filha. Levara muito tempo para descobrir que sua mãe não prestava a
menor atenção a tudo que não tivesse relação direta com gente, lugares
conhecidos e coisas materiais. Por outro lado, Bernice jamais esquecia
números, cores ou preços. Podia lembrar-se precisamente de quanto pagara
pelas luvas negras de suede, há sete anos. Adorava luvas e anéis - anéis de
qualquer tipo. Tinha um número considerável de anéis, mos usava sempre, em
qualquer ocasião, seu pequeno anel de diamantes, de noivado, e sua aliança
de ouro. Esses só eram retirados na hora do banho. Ela os deixava na pia,
mergulhados no mesma mistura de água com amoníaco em que lavava os
pentes e escovas de cabelo. O amoníaco limpava os anéis e dava novo brilho
aos pequenos diamantes.
Sua vida conjugal era bastante agradável e ela apreciava o marido.
Pretendia conhecer suas fraquezas, seus hábitos e seus desejos. Sofria da
frieza sexual que é vulgarmente conhecida como capuz de freira, o que lhe
vedava o gozo de qualquer satisfação sexual; por outro lado, sofria de um
excesso de acidez que a impedia de conceber filhos, a menos que previamente
se submetesse a um processo artificial destinado a neutralizar sua acidez.
Considerava perfeitamente normais tais condições e de mau gosto qualquer
variante. Referindo-se a mulheres sensuais, ela as classificava de "mulheres
daquele tipo", considerando-as com a mesma compaixão que lhe inspiravam
os toxicômanos ou os alcoólatras.
Aceitara a princípio os impulsos sexuais do marido mas, através de
uma relutância fraca e gradual, porém constante, modelara, controlara e,
gradualmente, estrangulara os seus impulsos, de forma que estes foram
sofrendo uma redução de intensidade e freqüência cada vez mais acentuada a
ponto de ele convencer-se, finalmente, de que estava chegando a uma idade
em que tais coisas não têm mais muita importância.
Considerada sob esse e outros aspectos, era uma mulher muito forte.
Dirigia uma casa que primava pela ordem, limpeza e conforto, e preparava
refeições que eram nutritivas sem serem especialmente apetitosas. Não usava
especiarias, pois alguém lhe tinha dito, havia muito tempo, que elas têm um
efeito afrodisíaco sobre os homens. Os três - o Sr. Pritchard, Mildred e ela -
não tinham gordura sobrando no corpo, provavelmente em virtude da
insipidez das refeições que preparava. A comida que Bernice servia não
estimulava o apetite, de forma alguma.
Os amigos de Bernice tinham-na por uma criatura muito meiga, uma dos
pessoas mais desprendidas deste mundo, referindo-se a ela, não raro, como a
uma santa. Ela própria dizia freqüentemente, em tom humilde, que era muito
feliz por ter os melhores e mais leais amigos deste mundo. Adorava flores e
trabalhava no jardim assiduamente, plantando, limpando, fertilizando e
podando. Havia vasos e jarrões de flores por todas as dependências
domésticas, de forma que seus amigos sempre diziam que a casa lhes dava a
impressão de ser uma floricultura, que ela arranjava as flores com muito bom
gosto.
Não tomava remédios e freqüentemente sofria, em silêncio, de prisão de
ventre, até ser aliviada pela própria pressão interna acumulada. Nunca ficara
doente nem sofrera qualquer ferimento grave e, conseqüentemente, não tinha
a menor noção da escala de intensidade das dores.
Uma pontada de lado, uma dor de cabeça, pressão de gases no peito,
eram coisas que bastavam para que se convencesse, secretamente, de que ia
morrer. Sua convicção de que iria morrer ao dar a luz a Mildred havia sido tão
profunda que tomara providencias para facilitar tudo ao Sr. Pritchard.
Chegara a deixar uma corta dirigida a ele - para que a abrisse depois de sua
morte - na qual recomendava ao Sr. Pritchard que se casasse novamente, para
que a criança não fosse privada de carinho materno.
Posteriormente, ela queimara a carta.
Seu corpo e sua mente eram lentos e preguiçosos e, bem no fundo, ela
tinha um pouco de inveja das pessoas que, segundo pensava, gozavam todas
as coisas boas da vida, enquanto ela vivia como uma nuvem cinzenta pairando
num mundo acinzentado. Sendo fraca sua percepção, ela vivia respeitando
estritamente as convenções. A instrução é desejável. O autocontrole é
necessário. Tudo em seu lugar e a seu tempo. Viajar alarga o espírito. E tinha
sido esse axioma, em última instância, que a levara a aceitar, finalmente, a
idéia de férias no México.
Nem ela mesma sabia como havia chegado àquela conclusão. Tinha sido
um processo longo e lento, semeado de impulsos, palpites, sugestões,
incidentes, milhares de fatores, até que, finalmente, o próprio pêlo dos fatores
acumulados a levara a decidir. Na verdade, não tinha a menor vontade de
conhecer o México. Queria apenas encontrar-se com suas amigas depois de ter
estado no México. Seu marido não desejava fazer a viagem, de forma alguma.
Acabara cedendo, em benefício da família e porque esperava também que a
viagem alargasse seus horizontes. Mildred, por outro lado, queria ir, mas não
em companhia dos pais. Ela desejava conhecer estranhos, fazer novas relações
para, através delas, converter-se também numa pessoa nova e estranha.
Mildred sentia que suas reservas de emoção eram fabulosas, o que
provavelmente era verdade. Quase todos nós somos assim.
Bernice Pritchard, embora achasse graça em gente supersticiosa, era
profundamente impressionável por augúrios e sinais. O fato de o ônibus ter
quebrado logo no início da viagem amedrontara-a profundamente, pois aquele
parecia ser o primeiro de uma série de acidentes que se acumulariam
progressivamente, até arruinar-lhes toda a viagem. Por outro lado, ela
partilhava a inquietação do Sr. Pritchard. A noite, enquanto esperava que o
sono chegasse, deitada na cama de casal dos Chicoy, ouvindo os desalentados
suspiros do marido, ela observara: "Quando terminar, esta viagem vai ser para
nós uma aventura. Já estou ouvindo você falar, descrevendo a viagem. Vai ser
divertidíssimo." "Espero que sim" - respondera o Sr. Pritchard.
Havia um certo afeto entre os dois, uma relação quase fraternal. O Sr.
Pritchard considerava as deficiências femininas de sua esposa algo como
sinais característicos de uma senhora fina. Jamais se preocupara com sua
fidelidade. Inconscientemente, sabia que sua esposa não reagia normalmente
e isso sempre estava presente no fundo de seus pensamentos. Atribuía seus
sonhos maus, seu nervosismo e as dores ocasionais que sentia na porte
superior do abdome a excesso de café e falta de exercício.
Apreciava a cabeleira de sua esposa, sempre ondeada e em ordem, suas
roupas íntimas imaculadamente limpas; apreciava mais ainda os elogios de
que ela era alvo como dona de casa e mestra no arranjo ornamental de flores.
Era uma esposa dessas de que a gente se orgulha. Soubera criar uma filha de
que ele se orgulhava também; uma jovem bela e sadia.
Mildred era uma bela moça, uma jovem alta, seis centímetros mais alta
que seu pai e doze centímetros mais alta que sua mãe. Mildred herdara os
olhos azul-violeta de sua mãe, bem como sua miopia. Quando queria observar
alguma coisa claramente, era obrigada a recorrer aos óculos. Era bem
conformada, tinha pernas fortes e tornozelos bem torneados. Suas coxas e
nádegas eram firmes, bem modeladas e flexíveis, produto de muito exercício.
Jogava tênis muito bem e atuava no centro do quadro de basquetebol
de sua escola. Seus seios eram grandes, firmes e largos nas bases. Não
herdara a carência fisiológica de sua mãe e, a experiência de dois casos
amorosos consumados tinha proporcionado a Mildred grande satisfação e
desejo de estabelecer uma relação que pudesse ser constante.
O queixo de Mildred tinha a forma e a firmeza do de seu pai, mas sua
boca era cheia e macia, uma boca de quem vive sempre com um pouco de
medo. Usava óculos de aros escuros e grossos, o que lhe dava uma aparência
de estudante. Os que nunca tinham visto Mildred sem óculos ficavam sempre
surpreendidos ao encontrá-la num baile. Dançava bem, talvez com um ligeiro
excesso de precisão, mos era uma atleta consumada e talvez por isso mesmo
dançava com muita circunspecção e sem a pequena dose de abstração que é
necessária. Tinha uma ligeira tendência a dirigir o parceiro, mas essa
tendência podia ser fàcilmente anulada por um companheiro que tivesse a
necessária firmeza.
As convicções de Mildred, embora fossem também fortes, estavam
sujeitas a grandes variações. Costumava empenhar-se em causas que a
interessavam, geralmente boas causas. Era absolutamente incapaz de
compreender seu pai, porque ele sempre a confundia. Descobrira que expor-
lhe qualquer coisa que fosse lógica, razoável, inteligente, equivalia a chocar
com uma obtusidade entorpecida, uma ausência total de capacidade de
raciocínio que a horrorizavam. E justamente nesses momentos ele dizia ou
fazia alguma coisa inteligente, o que a forçava a transferir-se para o outro
lado. Precisamente quando o classificava em definitivo como a caricatura
típica de um homem de negócios, ávido de lucro, prepotente e cruel, ele punha
abaixo sua concepção e sua paz de espírito, com um pensamento ou uma ação
que demonstravam bondade e percepção.
Da vida emocional do pai nada sabia, assim como ele nada conhecia da
sua. Na verdade, pensava que os homens de meia idade não têm mais vida
emocional. Mildred, que tinha vinte e um anos, julgava que num homem de
cinqüenta todos os impulsos e desejos estão mortos e não deixava de ter certa
razão, pois nem os homens nem as mulheres são atraentes quando chegam a
essa idade. Para ela, um homem ou uma mulher que se apaixonasse aos
cinqüenta anos estaria apenas representando um papel obsceno.
Mas se havia uma barreira entre Mildred e seu pai, havia um verdadeiro
abismo entre ela e sua mãe. A mulher que não tem desejos prementes a serem
satisfeitos não tem a mais remota possibilidade de compreender a jovem que é
impelida por eles. A única tentativa feita por Mildred de partilhar com a mãe
seus êxtases intensos fora acolhida com a maior frieza, com tal incompreensão
que ela tivera de conter-se. Durante muito tempo sentira medo de deixar
transparecer seus sentimentos, julgando-se diferente, certa de que todas as
demais mulheres eram como sua mãe. Um dia, finalmente, uma instrutora de
hóquei no gelo, frescobol e arco e flecha, uma mulher grande e musculosa,
que soubera conquistar toda a confiança de Mildred, tentou seduzi-la. O
choque que ela sofreu nessa ocasião só foi anulado quando um estudante de
engenharia, de cabelos crespos e fala macia, a levou para a cama.
Agora Mildred guardava para si o que pensava, chegava às suas
próprias conclusões e aguardava a ocasião em que a morte, o casamento ou
um acidente a libertariam diz tutela de seus pais. Mas ela os amava e chegava
a ter horror de si mesma ao dar por si desejando a morte deles.
Jamais houvera entre os três uma associação estreita, embora ela
existisse formalmente. Eles se queriam e se tratavam com afeto, mas Juan e
Alice Chicoy mantinham regularmente um tipo de relação que seria
inconcebível para o Sr. ou a Sra. Pritchard. As relações mais intimas e
satisfatórias de Mildred eram travadas com pessoas cujo existência era
completamente ignorada por seus pais. Tinha de ser assim. Aquilo tinha de
ser assim.
O pai considerava depravadas as jovens que dançam nuas em festas
estritamente masculinas, de homens de negócios, mas nunca lhe ocorrera que
aqueles que participam de tais festas, que aplaudem e que pagam essas jovens
também estivessem associados com a depravação.
Uma ou duas vezes, a instâncias da esposa, ele tinha tentado advertir
Mildred em relação aos homens, com a finalidade de ensiná-la a proteger-se.
Dava a entender e acabara por convencer-se de que tinha um extenso
conhecimento das coisas deste mundo, embora sua experiência nesse terreno
fosse limitada à única visito que fizera a um conventilho, às festas
estritamente masculinas e à aquiescência seca e desinteressada de sua
esposa.
Naquela manhã, Mildred usava um suéter, saia gode e sapatos de solto
baixo, de couro claro. Os três estavam sentados à mesinha do restaurante. A
Sra. Pritchard pendurara seu casaco três quartos, de pele de raposa prateada,
no cabide que ficava acima do Sr. Pritchard. Ele sempre prestava muita
atenção àquele casaco de sua esposa, costumava ajudá-la a vesti-lo e despi-lo,
estava sempre pronto a pendurá-lo devidamente e não a jogá-lo de qualquer
forma, sobre uma cadeira. Quando © pêlo parecia amassado em algum lugar,
ele o erguia delicadamente, com a mão. Adorava aquele casaco, apreciava o
fato de ser coro, gostava de ver sua esposa dentro dele e de ouvir os
comentários que suscitava entre outras mulheres. O casaco era de uma pele
relativamente rara, sendo, em conseqüência, uma propriedade valiosa. O Sr.
Pritchard era de opinião de que o casaco devia ser devidamente tratado. Era
sempre o primeiro a sugerir que fosse guardado com cuidado, durante o verão.
Sugerira também à esposa que não levasse o casaco na viagem ao México, em
primeiro lugar porque se tratava de um país tropical e, em segundo, por causa
dos bandidos, que poderiam roubá-lo. A Sra. Pritchard sustentara que seria
melhor levar o casaco, em primeiro lugar porque eles visitariam Los Angeles e
Hollywood, onde todo mundo usa casacos de pele, e em segundo porque, de
acordo com o que ouvira dizer, as noites são muito frias na Cidade do México.
O Sr. Pritchard capitulara sem resistência; para ele, bem como para a mulher,
o casaco funcionava como um símbolo de posição social. Quem viaja com
casaco de pele e malas finas fica acomodado e recebe melhor tratamento em
qualquer lugar.
Agora, o casaco pendia ao lado do Sr. Pritchard, que correu os dedos
através do pêlo macio, batendo de leve a poeira que aderira à barra. Sentados
à mesinha, eles tinham ouvido, através da porta do dormitório dos Chicoy, os
gritos roucos de Alice, seus insultos e acusações a Norma, e aquela
manifestação de grosseria animalesca os chocara profundamente, unira-os
como nunca tinham estado unidos. Mildred acendera um cigarro, evitando o
olhar de sua mãe. Começara a fumar na frente de sua mãe havia somente seis
meses, depois de ter feito vinte e um anos. Após a primeira explosão, o
assunto não voltara a ser levantado verbalmente, mas a mãe desaprovava o
hábito mudamente, com expressão de desgosto, todas as vezes que ela acendia
um cigarro em sua frente.
A chuva parara e só se ouvia o ruído seco dos grossos pingos que caíam das
folhas dos carvalhos sobre o telhado do restaurante. A terra parecia
gordurosa, negra, saturada de água. O mato rasteiro, gordo e pesado de
umidade, fora aplastado pelo temporal e só agora começava a erguer-se
novamente, em vagas preguiçosas. A água corria pelo chão, cantando contra
as pedras, rumo às depressões do terreno. As valetas abertas ao longo da
rodovia estadual estavam cheias e, em alguns trechos, a água cobria também
o leito da estrada. De todos os lados se ouvia o murmúrio de água correndo,
água pingando. As pétalas das papoulas tinham sido arrancadas pelo
temporal e os tremoços ainda estavam tombados como as sementes, pesados e
gordos demais para erguer as cabeças.
O céu estava começando a clarear. As nuvens escuras desfaziam-se e
aqui e ali, na grande colcha de retalhos cinzentos que era o céu, surgiam
rasgões de azul. Lá em cima um vento forte soprava, jogando as nuvens umas
contra as outras, tangendo-as e misturando-os, mas sobre os campos não
ventava, o ar estava parado e havia um cheiro forte de terra revirada, de mato
molhado e de raízes expostas.
Descendo da área que ficava em frente à garagem e ao restaurante da
Encruzilhada dos Rebeldes, a água corria por valas rasas, até atingir as
valetas mais profundas que acompanhavam a rodovia. O ônibus parecia agora
muito limpo, com sua pintura de alumínio rebrilhando.
A água ainda escorria por seus flancos e o pára-brisa estava
marchetado de pingos de chuva. Dentro do restaurante a atmosfera era úmida
e pesada.
Espinhudo estava atrás do balcão, tentando ajudar um pouco, coisa
que jamais lhe havia ocorrido fazer. Nos outros empregos que tivera, ele
sempre odiara o trabalho e, automaticamente, o patrão. Mas a experiência
daquela madrugada ainda estava fresca. Ainda podia ouvir a voz de Juan,
dizendo: "Kit, lave as mãos e vá ver se o café está pronto, sim?" Jamais ouvira
palavras tão doces.
Agora, ele queria fazer alguma coisa por Juan. Preparara suco de
laranja para os Pritchard, servira café a eles e estava tentando fiscalizar a
torradeira elétrica e a frigideira dos ovos ao mesmo tempo.
- Ovos mexidos para todos nós - disse o Sr. Pritchard. - Assim fica mais
fácil. Pode deixar os meus na frigideira até ficarem bem duros e secos.
- OK. - respondeu Espinhudo A frigideira estava quente demais e os
ovos saltavam e estalavam, desprendendo um cheiro de penas de galinha
molhado, que é o que sempre acontece quando se fritam ovos com muita
pressa.
Mildred cruzara as pernas e ficara com a saia presa sob o joelho, de
forma que sua coxa deveria estar exposta no lado oposto ao de Espinhudo. Ele
queria curvar-se para observar melhor. Seus olhos brilhantes e semicerrados
lançavam espiadelas furtivas e rápidas às pernas de Mildred, ao que ele podia
ver de onde estava. Não queria que ela o surpreendesse olhando-lhe as pernas.
Planejou seus movimentos. Se ela não se movesse, ele sairia detrás do balcão
para servir os ovos, com um guardanapo no braço. Então, depois de distribuir
os pratos, daria volta à mesa, afastar-se-ia uns cinco passos e deixaria cair o
guardanapo, como por acidente. Abaixando-se de costas para apanhá-lo,
poderia olhar por baixo do braço e ver toda a perna de Mildred.
Preparou o guardanapo e mexeu os ovos, agindo depressa para
terminar tudo antes que ela se movesse. Retirou os ovos da frigideira. O
mexido estava esturricado por baixo, colado ao fundo da frigideira, de forma
que ele retirou os ovos com cuidado, para que não saíssem também pedaços
da crosta torrada. O cheiro acre de ovos queimados impregnava o restaurante.
Mildred levantou os olhos e deu com o olhar aceso de Espinhudo. Olhou para
baixo, notou que a saia estava presa e ajeitou-a. Espinhudo não perdeu um
dos seus movimentos, observando-a com o rabo dos olhos. Sabia que havia
sido apanhado em flagrante e seu rosto estava em brasa.
Fumaça negra subia do fundo da frigideira e uma nuvem azulada
pairava sobre a torradeira de pão. Juan surgiu silenciosamente, fechando a
porta do quarto e fungando.
- Deus santíssimo - disse ele - que é que você está fazendo, Kit?
- Tentando ajudar - respondeu ele, constrangido.
Juan sorriu.
- Está muito bem, mas acho que é melhor você não ajudar com os ovos.
- Juan foi até o pequeno fogão a gás, retirou a frigideira cheia de ovos
queimados, colocou-a dentro da pia e abriu a torneira. A mistura chiou e
borbulhou, por um momento, e depois entregou-se, ainda revoltada, ò água
fria.
- Kit - disse Juan - vá lá fora e tente ligar o motor. Não afogue, se ele
não pegar logo. Se mexer no afogador, a gasolina transborda no carburador.
Caso não pegue logo, tire fora o cachimbo do distribuidor e seque os
platinados. Pode ser que eles estejam molhados. Quando o motor pegar, deixe
funcionando um pouco em marcha lenta, até esquentar, depois engrene a
quarta e veja se está funcionando bem. Mas cuidado, o ônibus pode cair dos
cavaletes. Vá com calma.
Espinhudo lavou as mãos.
- Quer que eu veja antes se não vazou graxa do distribuidor?
- Quero. Você sabe o que faz. É melhor olhar mesmo. Como frio da
madrugada, a graxa fica dura como o diabo.
- Pois é, se eu engreno a marcha assim o ônibus pode cair - disse
Espinhudo. Ele já esquecera completamente as pernas de Mildred. O
tratamento que recebia de Juan o enchia de satisfação.
- Kit, acho que ninguém vai roubar o ônibus, mas fique de olho nele. -
Espinhudo riu servilmente da graçola patronal e saiu. Juan curvou-se um
pouco sobre o balcão, dirigindo-se aos passageiros. - Minha esposa não está se
sentindo bem - disse ele. - Que desejam? Mais um pouco de café?
- Sim - respondeu o Sr. Pritchard. - O rapaz estava tentando preparar
para a gente uns ovos mexidos, mas queimou tudo. Minha senhora prefere os
ovos moles e ...
- Se estiverem bem fresquinhos - aparteou a Sra. Pritchard.
- Se estiverem bem fresquinhos - prosseguiu o Sr. Pritchard. - Para
mim, bem passados.
- Eles estão frescos, pode estar certo - disse Juan.
- Ainda estão fresquinhos da geladeira.
- Creio que não poderei comer ovos que foram guardados em geladeira -
observou a Sra. Pritchard.
- Bem, são os que eu tenho aqui, não pretendo enganar vocês.
- Nesse caso, quero só uma rosca - disse a Sra. Pritchard.
- Para mim também - disse o Sr. Pritchard.
Juan olhou franca e abertamente para as pernas de Mildred, sem
esconder sua admiração. Ela ergueu os olhos para ele. Lentamente, o olhar de
Juan desprendeu-se de suas pernas e os seus olhos escuros pareciam tão
brilhantes de apreciação, tão abertamente satisfeitos, que Mildred corou um
pouco. Sentiu calor na boca do estomago. Um breve arrepio elétrico vibrou em
seu corpo.
- Oh. .. - ela desviou a vista de Juan. - Quero mais um pouco de café.
Bem, uma rosca também.
- Só há mais duas roscas - observou Juan. - Sirvo as duas e um
pãozinho salgado e vocês dividem tudo como quiserem.
O motor do ônibus rugiu lá fora, por um instante, para depois começar
a ronronar tranqüilamente, em marcha tenta.
- Bem, parece que está tudo em ordem - disse Juan.
Ernest Horton entrou silenciosamente, quase nas pontas dos pés, e
fechou a porta do dormitório dos Chicoy com o maior cuidado. Foi até onde
estava o Sr. Pritchard e colocou as seis caixas chatas à sua frente.
- Cá estão - disse ele - as seis caixas que encomendou.
O Sr. Pritchard tirou a carteira.
- Tem troco para uma de vinte?
- Não, não tenho.
- Tem troco para uma de vinte? - perguntou o Sr. Pritchard a Juan.
Juan comprimiu o botão troco da caixa registradora e ergueu a
tampinha do compartimento de notas.
- Posso arrumar duas de dez.
- Assim está bem - disse Ernest Horton. - Tenho uma de um dólar aqui
comigo. Você me deve nove dólares. - Tomou uma das notas de dez e passou a
sua de um dólar a Pritchard.
- O que é isso? - perguntou a Sra. Pritchard.
Apanhou uma das caixas, mas o marido retirou-a de sua mão.
- Não, você não vai ver - disse ele, misteriosamente.
- Mas o que há dentro delas?
- Ah, isso é comigo - respondeu ele, em tom de brincadeira. - Não se
apresse, logo você verá.
- Oh, então é uma surpresa?
- Pois é. E é melhor a menina não meter o nariz no que não é de sua
conta. - O Sr. Pritchard sempre a chamava de menina quando brincava, e ela
automaticamente aderiu ao espírito da brincadeira
- Quando é que a menina xereta vai saber o que há nas caixinhas?
- Logo, não se impaciente. Meteu as caixinhas no bolso lateral. Queria
aparecer coxeando, assim que tivesse uma oportunidade. Já concebera até
uma variação da brincadeira. Fingiria que o pé estava tão machucado que não
conseguia retirar o sapato nem a meia. Pediria a ela que tirasse a meia. Iria
fazer uma cara divertidíssima, com certeza! Tinha certeza de que ela quase
morreria de susto ao ver os dedos esmagados.
- Mas o que é, Elliott? - insistiu ela, ligeiramente irritada.
- Você descobrirá, você vai ver, minha menina.
- Sabe de uma coisa? - perguntou ele depois, voltando-se para Ernest. -
Acabo de imaginar um novo truque. Depois eu conto a você.
- Pois é - retrucou Ernest - afinal, são coisas assim que fazem o mundo
rodar. Você tem um palpite, uma idéia diferente e pronto, está feito. Não é
preciso ser nada de extraordinário. Basta uma idéia diferente, uma nova
tomada, como eles dizem em Hollywood. É disso que tudo depende. Você tem
uma boa idéia, produz uma fita que dá bom dinheiro, não digo muito, mas o
suficiente.
- Isso mesmo - exclamou o Sr. Pritchard. – Tem toda razão, é isso
mesmo.
- É uma coisa gozada esse negocio de palpites - disse Ernest, sentando-
se num tamborete e cruzando as pernas. - Engraçado, às vezes eles não dão
certo ema vez, por exemplo, tive uma idéia formidável e cheguei a pensar que
era só montar e deixar andar, que o único trabalho que teria dali em diante
seria o de contar o dinheiro ganho. Sabe como e, há por aí muita gente como
eu, ganhando o pão de cada , suponhamos mala de amostras, sempre
viajando. Pois é que um desses camaradas queira comparecer a uma
convenção, ou a um jantar de cerimônia . Nesse caso, é melhor vestir um
smoking está claro. Mas acontece que o smoking ocupa muito lugar numa
mala e é uma coisa que o sujeito só usa uma ou duas vezes, no máximo,
durante toda a viagem, Bem, foi pensando nisso que eu tive tal idéia. Olhe,
quase todos nós temos um bom terno de passeio - azul-marinho ou cinza
escuro. Um terno desses pode também ter umas lapelas postiças e um par de
frisos de seda, ajustáveis às calcas. E quando chegasse a hora, bastaria
ajustar as sedas, os frisos e pronto, o camarada estaria vestido a rigor.
Cheguei até mesmo a pensar numa bolsinha especial, a gente poderia levar as
lapelas e os frisos.
- Não me diga! - gritou o Sr. Pritchard – uma idéia maravilhosa.
- Bem, naturalmente ele me desencorajou um pouco - prosseguiu
Ernest. - Até falar com ele eu havia pensado que seria só lançar a idéia e ficar
esperando a entrada do dinheiro. Mas depois disso, voltei a pensar no caso.
Olhe, quando um camarada viaja de avião, por exemplo, tem de respeitar a
limitação de peso da bagagem. Portanto, tem direito a economizar o maior
espaço possível em sua maio. Ora, com os acessórios que imaginei, ele
disporia praticamente de dois ternos, levando apenas um. Então pensei que as
companhias que trabalham com jóias poderiam explorar a coisa. Um jogo de
botão de colarinho, abotoaduras, lapelas de seda e frisos, tudo bem arrumado
numa caixinha fina, para presente. Ainda não tentei vender a idéia. Não falei
com ninguém a respeito. Mas talvez valha a pena estudar a coisa com calma.
- Você e eu precisamos conversar, precisamos ter uma boa conversa -
disse o Sr. Pritchard. - Já patenteou a invenção?
- Bem, ainda não. Uma patente custa dinheiro e eu quero ver se há
interesse pela coisa antes de tratar de registrar os acessórios.
- Oh - exclamou o Sr. Pritchard. - Creio que tem razão. O custo da
patente, com advogados e tudo o mais, não é brincadeira. Talvez você tenha
razão. - Mudando de assunto, ele voltou-se para Juan. - Quando partimos?
- Deixe ver, o ônibus da Greyhound passa lá pelas dez. Vem com
encomendas e alguns passageiros. Podemos partir lá pelas dez e meia. Saímos
no horário. Desejam mais alguma coisa? Café?
- Sim, queremos mais umas xícaras - respondeu o Sr. Pritchard.
Juan serviu o café e olhou pela janela, observando o ônibus, cujas
rodas traseiras ainda giravam lentamente no ar. O Sr. Pritchard consultou o
relógio.
- Temos ainda uma hora - disse ele.
Um homem alto, de peito fundo, deu volta ao restaurante e entrou pela
porta da frente. O homem dormira na cama de Espinhudo. Abrindo a porta do
restaurante, ele passou por entre as mesinhas e sentou-se num tamborete. A
artrite deformara seu pescoço, forçando permanentemente sua cabeça para
baixo, contra o peito, de forma que a ponto de seu nariz apontava sempre para
o chão. Tinha bem mais de sessenta anos e suas sobrancelhas espessas
pendiam sobre os olhos, como as de um velho skye-terrier. Seu lábio superior,
profundamente marcado no centro, descia sobre os dentes superiores como a
tromba de uma anta. A ponta que encobria os incisivos parecia quase preênsil.
Seus olhos eram amarelados, de um tom dourado, o que lhe dava um aspecto
feroz.
- Não estou gostando nada disso - disse ele, sem cerimônia e sem
preâmbulo. - Já não gostei ontem, quando o ônibus quebrou, e hoje estou
gostando menos ainda.
- Pois o diferencial já está em ordem - disse Juan.
- Instalei as peças e ele está funcionando perfeitamente.
- Acho que vou cancelar minha passagem e voltar para San Isidro, no
Greyhound.
- Bem, está aí uma coisa que pode fazer.
- Tive um pressentimento - disse o velho. - Não estou gostando nada
disso. Alguma coisa me disse que não devo ir. Já tive pressentimentos assim,
mais de uma vez. Mas não liguei e todas as vezes a coisa deu em droga.
- O ônibus está em ordem - afirmou Juan, exasperado, erguendo um
pouco a voz.
- Não estou falando do ônibus - respondeu o velho. - Conheço bem esta
zona, eu nasci e fui criado aqui. A esta hora, está tudo alagado. O rio San
Isidro deve estar transbordando. Você sabe como o San Isidro sobe. Logo
depois do Pico Blanco ele entra no Lone Pine Canyon e faz uma grande volta.
Toda a região está alagada e não há uma gota d"água que não corra para o
San Isidro. A esta altura ele já deve ter transbordado.
A Sra. Pritchard começou a ficar alarmada.
- Será que é perigoso? - perguntou em voz alta.
- Ora, querida - disse o Sr. Pritchard.
- Tive um pressentimento - continuou o velho.
- A estrada velha fazia uma curva pela volta do rio, sem passar por
ponte nenhuma. Mas há uns trinta anos um tal Sr. Trask resolveu modernizar
as nossas estradas. A velha não prestava para ele. Construiu duas pontes,
uma nova estrada e que foi que ganhamos? Vinte quilômetros de estrada a
menos, só isso. Essa economia custou ao município vinte e sete mil dólares. O
Sr. Trask era um vigarista. - Voltando seu pescoço duro para o lado, com
dificuldade, ele observou os Pritchards. - Um vigarista. E estava planejando
novas obras, quando morreu, há três anos. Morreu rico. Os dois filhos dele
estão na Universidade da Califórnia, queimando o dinheiro dos contribuintes.
– O velho fez uma pausa e seu lábio superior correu de lado a lado, sobre os
longos incisivos amarelados. - As pontes não valem nada, não resistem à
menor pressão. Concreto fraco. Acho que vou mesmo cancelar minha
passagem e voltar para San Isidro.
- Ainda ontem o nível do rio estava baixo - lembrou Juan. - E não
choveu tanto assim para fazer subir o San Isidro.
- Parece até que você não conhece esse rio. Em duas horas ele pode
transbordar. Já vi o rio com mais de um quilometro de largura, carregando
vacas mortas e galinheiros. Não, eu já tive desses pressentimentos, e desta vez
não vou mesmo. E eu não sou um sujeito supersticioso.
- Pensa que o ônibus não poderá passar pela ponte?
- O que penso não interessa. O que sei é que esse Trask era um
vigarista. Deixou trinta e seis mil e quinhentos dólares. Os rapazes dele estão
na Universidade, torrando a gaita.
Juan saiu de seu posto atrás do balcão e foi até o telefone de parede.
- Alo - pediu - quero falar com o posto de serviço Breed"s, na estrada de
San Juan. Não, não sei o número. - Esperou alguns instantes, pacientemente.
- Alo? Olhe, aqui é o Chicoy, da Encruzilhada. Como é que está o rio? Ah, é?
Bem, e a ponte, como é que está? Certo. Bem, OK., logo mais passamos por aí.
- Juan desligou o telefone. – O rio está mesmo alto - explicou - mas não há
novidade com a ponte.
- O rio pode subir trinta centímetros por hora, quando cai um pé d"água
como o de hoje em Pine Canyon. Quando você chegar lá é capaz de não haver
mais ponte nenhuma.
Juan voltou-se para o velho, já meio impaciente.
- E o que quer que eu faça? Que não vá?
- Faça o que quiser. Eu só quero cancelar minha passagem e voltar
para San Isidro. Não vou procurar encrenca, eu não. Uma vez tive um
pressentimento desses, não dei atenção à coisa e acabei quebrando as duas
pernas. Não senhor, ontem já tive um sinal, quando o ônibus quebrou.
- Bem, então está cancelada a sua passagem e acabou-se - disse Juan.
- É o que quero, moço. Você não conhece essa zona como eu, que fui
criado aqui. Você não sabe o que sei sobre o Trask. Com um salário de mil e
quinhentos dólares por ano, ele conseguiu deixar trinta e seis mil e
quinhentos dólares e uma propriedade de cento e sessenta acres de terra. Não
é possível!
- Bem - disse Juan - você pode voltar no Greyhound.
- Pois é, não estou falando mal do Trask; estou apenas contando o que
aconteceu. Você pode tirar as suas conclusões. Trinta e seis mil e quinhentos
dólares!
- E se a ponte tiver caído quando chegarmos? - perguntou Ernest
Horton.
- Nós não passaremos por cima dela - respondeu Juan .
- E daí? Você dá volta e toca para cá de novo?
- Está claro. Ou passamos, ou voltamos.
O velho girou a cabeça, lançando um sorriso de triunfo a todos.
- Estão vendo só como é? Vocês vão ter de voltar e não vai haver ônibus
para San Isidro. Quanto tempo pretendem ficar aqui? Meses? Esperar que eles
construam uma ponte nova? Sabem quem é o novo supervisor de obras
públicas? Um meninote, estudante. Mal saiu do escola. Aprendeu tudo nos
livros, não tem prática nenhuma. Ele pode projetar uma ponte, não duvido,
mas construir uma, ah, isso é uma coisa muito diferente. Veremos, veremos.
Subitamente Juan riu alto, divertido.
- Engraçado - observou. - A ponte velha ainda está no lugar, firme, e
esse camarada já se preocupa com a que nem pensaram ainda em construir.
O velho voltou com dificuldade a cabeça para ele.
- Não acha que deve controlar melhor a sua língua?
Por um momento, os olhos negros de Juan avermelharam, como se
tivessem uma luz interna.
- Está bem - disse ele - eu lhe arrumo lugar no Greyhound, não se
preocupe. Não quero levá-lo nessa viagem.
- Bem, você não pode me por para fora, você dirige um veículo de
transporte público.
- OK. - cedeu Juan, desalentado. As vezes,nem sei por que mantenho
esse ônibus. Acho que vou desistir desta linha. Só me dá dor de cabeça. Então
você teve um pressentimento, não é? Bolas!
Bernice acompanhara toda a converso com a maior atenção.
- Não ligo para essas coisas - disse ela - mas dizem que agora é a
estação da seca no México. Como no outono. Ou como no verão, quando não
chove.
- Mamãe - disse Mildred - o Sr. Chicoy conhece o México. Ele nasceu lá.
- Oh, é verdade? Bem, então deve saber se agora é a estação da seca ou
não.
- Em alguns lugares - respondeu Juan. - Creio que é, nas zonas que
vocês vão visitar. Em outras, não há estação nenhuma de seca.
O Sr. Pritchard pigarreou, limpando a garganta.
- Vamos visitar cidades do México, Puebla, Cuernavaca e Tasco e depois
pretendemos dar um pulo a Acapulco e ver o vulcão de perto, se não houver
perigo.
- Não haverá - garantiu Juan.
- Conhece todos esses lugares?
- Claro.
- Então, que tal são os hotéis? Sabe como são esses agentes de
turismo... quando a gente vai fazer as reservas, tudo é maravilhoso. Os hotéis
são bons mesmo?
- Maravilhosos - Juan agora sorria. - Pode ir descansado, vão ter café
na cama diariamente.
- Oh, eu não pretendia criar dificuldades, hoje de manhã - disse o Sr.
Pritchard.
- Claro, não há nada. - Com os braços cruzados sobre o balcão, Juan
curvou-se para ele, falando confidencialmente. - Às vezes, eu mesmo fico
cheio. Não faço outra coisa senão guiar esse raio de ônibus, todo santo dia. De
vez em quando tenho vontade de sair da estrada e ir tocando para aquelas
colinas que a gente vê lá no horizonte. Soube de um comandante de ferryboot,
em Nova York, que um belo dia tomou o rumo de alto mar e nunca mais foi
visto. Talvez tenha naufragado, talvez tenha ido dar numa ilha. Não sei, mas
eu posso compreender um homem que faz uma coisa dessas.
Um grande caminhão vermelho, com reboque, reduziu a marcha na
estrada. O motorista meteu a cabeça para fora da janela da cabina. Juan
moveu as mãos rapidamente de um lado para o outro, sobre a cabeça. O
motorista engrenou uma segunda, acelerou e o caminhão sumiu na estrada,
roncando.
- Pensei que fosse entrar - disse o Sr. Pritchard.
- Esse camarada adora torta de amoras - explicou Juan. - Quando
temos, ele pára. Fiz sinal a ele, para dizer que estamos em falta.
Mildred estava observando Juan, fascinada. Havia qualquer coisa
naquele homem moreno, de olhos estranhos, que a prendia. Sentia-se atraída
por ele. Desejava despertar sua atenção, chamar toda sua atenção para ela.
Atirara para trás os ombros, abrindo o peito e erguendo os seios.
- Por que deixou o México? - perguntou ela, tirando os óculos para que,
ao responder, ele pudesse vê-la sem eles. Inclinando-se um pouco sobre a
mesa, comprimiu com os indicadores os cantos dos olhos, puxando para o
lado pele e pálpebra. Isso alterava a focalização dos olhos. Podia ver mais
claramente assim. Por outro lado, o gesto dava-lhe aos olhos, que sabia belos,
uma forma alongada e langorosa.
- Nem eu sei bem por quê - respondeu Juan.
Seu olhar quente parecia abraçá-la e acariciá-la. Mildred sentiu-se
fraca, com uma moleza adocicada na boca do estomago. "Tenho de acabar com
isso" - pensou. "É uma loucura." Rapidamente, um quadro sexual tomou
forma em sua mente.
- Lá no México - disse Juan - a menos que uma pessoa seja rica, tem de
trabalhar duramente para ganhar muito pouco. Creio que foi por isso que
deixei minha terra.
- Você fala inglês muito bem - disse Bernice Pritchard, como se
estivesse elogiando Juan.
- E por que não? Minha mãe era irlandesa. Aprendi as duas línguas ao
mesmo tempo.
- Bem, então você é cidadão mexicano? - perguntou o Sr. Pritchard.
- Creio que sim - respondeu ele. - Nunca me preocupei com isso.
- Seria bom tratar de seus papéis de naturalização.
- Por quê?
- É uma boa idéia.
- Não importa nada ao governo - respondeu Juan. - Se fizer isso, eles
podem cair em cima de mim com impostos e até convocar-me.
- Pois eu ainda acho que é uma boa idéia - insistiu o Sr. Pritchard.
Os olhos de Juan estavam brincando com Mildred, tocando-lhe os seios
e acompanhando a curva de seus quadris. Notou que ela suspirava,
afastando-se dele e endireitando o corpo na cadeira, e uma onda de ódio
queimou em Juan, lá no fundo. Não ódio forte, pois nele não havia muito ódio,
mas tinha sangue índio e da escuridão do passado vinha o ódio aos olhos
claros, aos olhos claros, aos cabelos loiros. Era um ódio mesclado com o temor
a um tipo de constituição. Durante séculos, tinha sido a gente de olhos claros
que se apoderara da melhor terra, dos melhores cavalos, das melhores
mulheres. Dentro de Juan o desafio ardeu como um relâmpago e ele sentiu
um prazer intenso ao conceber que poderia dominar a jovem, torcê-la e
ultrajá-la, se quisesse. Poderia perturbá-la, seduzi-la mentalmente e também
fisicamente, para depois jogá-la de lado. A crueldade começou a crescer nele e
Juan permitiu que ela fosse tornando corpo. Sua voz soou mais macia e mais
profunda. Quando falou, olhava para os olhos azul-violeta de Mildred.
- Embora eu não viva lá - disse ele - minha terra está em meu coração. -
Por dentro, ele riu do que acabava de dizer, mos Mildred não riu. Curvando-se
novamente sobre a mesinha, ela puxou com os dedos os cantos dos dois olhos,
para vê-lo melhor.
- Lembro muitas coisas - disse Juan. - Na praça do cidade em que nasci
havia escribas públicos, que se encarregavam de todos os negócios dos que
não sabiam ler nem escrever. Eram homens bons. Tinham de ser. Se não
fossem, o povo saberia. O povo sabe muita coisa, especialmente a gente das
colinas. E lembro-me de uma manhã, quando eu era bem pequeno e estava
sentado num banco. Havia uma festa na cidade, em homenagem a um santo.
A igreja estava cheia de flores, havia barracas de doces, uma roda-gigante e
um pequeno carrossel. A noite, o povo soltava foguetes, festejando o santo. No
parque, um índio chegou a um escriba e disse: "Quero que você escreva uma
carta para o patrão. Eu digo o que quero que você escreva e você conta tudo
com palavras boas e bonitas, para ele não pensar que sou ingrato." O homem
perguntou ao índio se a carta seria longa. "Não sei" - respondeu ele. "Pois
então vai custar um peso" - disse o homem. E o pequeno índio pagou e disse: -
Quero que diga ao meu patrão que não posso mais voltar para a aldeia nem
para o campo, porque vi coisas muito belas e tenho de ficar aqui. Diga que
sinto muito e não quero causar-lhe tristeza, nem aos meus amigos, mas não
posso voltar. Fiquei diferente e os meus amigos não me reconheceriam. Se
voltasse, viveria infeliz e inquieto. E como agora sou diferente, os meus amigos
me rejeitariam e me odiariam. Eu vi as estrelas. Diga isso a ele. E diga
também que pode dar a minha cadeira para o irmão do meu amigo e a minha
porca com os dois bacorinhos para a velha que me tratou quando eu tive
febre. Minhas panelas para o meu cunhado e diga ao patrão que Deus o
abençoe, que ele seja feliz. Digo isso tudo no corto. "
Juan fez uma pausa, notando que os lábios de Mildred estavam
entreabertos, e viu que aceitava a história como uma alegoria dirigida a ela.
- E o que aconteceu com ele? - perguntou Mildred.
- Bem, ele tinha visto o carrossel - disse Juan.
- Não podia mais sair de perto dele. Dormia ao lado da máquina e logo
seu dinheiro acabou e ele começou a passar fome; então, o proprietário
permitiu que à tomasse conta da máquina, a troco de comida. Ele não podia ir
embora. Amava o carrossel. Talvez esteja trabalhando lá até hoje. - Contando
a história, Juan convertera-se num estrangeiro. Falava até mesmo com um
ligeiro sotaque.
Mildred suspirou profundamente. O Sr. Pritchard desejava
esclarecimentos.
- Mas olhe, aqui, explique uma coisa. Ele abriu mão de sua terra, de
todas as suas propriedades e nunca mais voltou para casa, só porque viu um
carrossel?
- A terra em que trabalhava não era dele - disse Juan. - Os índios são
peões dos outros, nunca têm terra. Mas ele deu tudo quanto tinha.
Mildred olhou para seu pai. Aquele era um dos momentos em que o
considerava estúpido a ponto de nauseá-la. Por que não poderia ver o que
havia de belo na historieta? Seus olhos voltaram para Juan, para dizer-lhe,
silenciosamente, que ela compreendia e que tinha visto algo no rosto dele, algo
que não havia notado antes. Seu rosto parecia refletir um triunfo cruel e
zombeteiro, mas isso provavelmente era conseqüência de sua visão deficiente,
pensou elo. Eram os seus pobres olhos que não podiam ver claramente. Mas o
pouco que vira a tinha chocado. Olhou depressa para sua mãe e depois para
seu pai, para verificar se haviam notado alguma coisa, mas os dois
continuavam a fitar Juan, distraidamente.
Agora era seu pai que falava, lentamente, escolhendo as palavras, da
forma que sempre enfurecia Mildred...
- Posso compreender um camarada que vê pela primeira vez um
carrossel e fica embasbacado mas, afinal, um homem se acostuma com tudo.
Mesmo que tenha um palácio, por exemplo, depois de uns dias o sujeito se
acostuma com ele e quer outra coisa.
- É apenas uma história - disse Mildred, com tal rancor na voz, que seu
pai voltou para ela os olhos surpreendidos.
Mildred podia quase sentir os dedos de Juan em suas coxas. Seu corpo
vibrava de desejo, despertado e insatisfeito. Ela sentia comichões, produzidos
por seu próprio desejo, e voltava-se contra o pai, furiosa, como se ele tivesse
interrompido sua ligação com Juan. Colocando os óculos, ela olhou para Juan
e desviou a vista, depressa, pois o olhar dele estava velado, embora estivesse
olhando para todos. Ele estava gozando uma espécie de triunfo.
Além de divertir-se à custa dela, pensava que sua mãe e seu pai não
tinham entendido nada do que se passava. E subitamente o desejo de Mildred
transformou-se num nó na boca do estomago, seu estomago doeu e ela sentiu-
se nauseada. Teve a impressão de que iria vomitar.
- Sempre pensei em descer até o México - disse Ernest Horton. - Creio
que qualquer dia desses vou propor uma viagem à direção da minha firma.
Acho que posso estabelecer contatos úteis no México. Como nessas fiestas que
eles organizam lá. Vendem novidades nas fiestas, não vendem?
- Claro - respondeu Juan. - Vendem pequenos rosários, gravuras de
santos, velas e coisas assim, além de doces e sorvetes.
- Bem, se um camarada competente for para lá, a fim de trabalhar
nessa linha de produtos, é capaz de reduzir o custo de produção e vender por
preços muito mais baratos. Podemos produzir rosários estampados - e bonitos
- com esse alumínio usado pelas fábricas de panelas. E foguetes. Minha
companhia tem uma linha completa de fogos de artifícios para as grandes
ocasiões, de todos os tipos. Creio que vou escrever à matriz, tratando disso.
Juan olhou para a pilha crescente de pratos sujos sobre a pia. Voltando
a cabeça por sobre o ombro, olhou a porta do dormitório e depois deu as
costas aos passageiros e passou para o quarto. A cama de casal estava vazia.
Alice levantara-se, e a porta do banheiro estava trancado. Juan voltou ao
restaurante e começou a limpar os pratos sujos acumulados.
Agora o céu estava clareando depressa e um sol muito claro e amarelo
brilhava sobre a terra lavada. Contra a luz forte do sol, as folhas novas dos
carvalhos pareciam quase amarelas. Os verdes prados pareciam muito jovens.
Juan sorriu, um sorriso curto. Depois cortou duas fatias de pão.
- Creio que vou dar um passeiozinho - disse o Sr. Pritchard. - Não quer
vir comigo, querida? - perguntou ele à esposa. A Sra. Pritchard olhou depressa
para a porta do dormitório.
- Logo mais - disse ela, e ele compreendeu.
- Bem, espero lá fora - avisou o Sr. Pritchard.

CAPÍTULO VI

Ao ficar só no quarto, Alice permanecera durante muito tempo deitada


de costas na cama, com os braços cruzados sobre o rosto. Os soluços foram
cessando gradualmente, como os de uma criança. De onde estava, podia ouvir
vagamente a conversa e as risadas no restaurante. O interior de seu braço
ficara quente e úmido e seus olhos estavam rasos d"água. Inundava-a uma
sensação de conforto, e o afrouxamento da tensão dava-lhe a impressão de
uma rede apertada que de súbito lhe libertasse o corpo. Agora, deitada
confortavelmente, passava revista aos acontecimentos daquela manhã. Nada
nela lembrava a mulher que investira sobre Norma. Nem mesmo cogitava
ainda de procurar uma justificação para sua atitude. Pensando no caso,
chegou à conclusão de que nem chegara a suspeitar de que Norma pudesse
estar fazendo alguma coisa censurável e, ainda que estivesse, não daria a
menor importância à coisa em si. Não gostava de Norma. Não ligava a mínima
a Norma. Uma pobre diabo.
Quando ela aparecera, pedindo emprego, Alice, evidentemente, usara
sua intuição feminina como quem usa um estetoscópio, aplicando-o sobre
Norma e Juan. Não encontrando reação alguma por parte dele, registrando
pulsação normal, desinteresse e ausência de qualquer sintoma suspeito,
perdera completamente o interesse por Norma que, para ela, não passava de
um organismo destinado unicamente a servir café e lavar pratos. Não atribuía
grande importância às pessoas que não exerciam influência direta, negativa
ou positiva, sobre sua vida. E agora, deitada na grande cama de casal,
relaxada e calma, sua mente recomeçava a trabalhar e o terror voltava a
dominar-lhe os pensamentos.
Ela passou revista a toda a cena. A razão de seu pavor residia
justamente na gentileza de Juan. Ele deveria ter dado uma surra nela. Seu
desinteresse a preocupava. Talvez não ligasse mais para ela. Sabia que a
gentileza displicente é um dos primeiros sintomas do desinteresse por parte de
um homem. Tentou visualizar as Pritchard, tentou lembrar da reação de Juan
ante elas, de como as observara, o que dissera a cada uma delas.
Conhecia Juan muito bem. Seus olhos brilhavam como duas brasas
quando estava interessado. Então - e a idéia foi para ela um pequeno choque -
lembrou-se de que tinha cedido sua cama aos Pritchard. Ainda podia sentir o
perfume de lavanda nas roupas de cama. Imediatamente, Alice foi tomada de
um intenso asco e ódio por aquele perfume.
Imóvel, ela ficou ouvindo o murmúrio de conversação que se filtrava
pela porta. Juan estava servindo os passageiros. Coisa que não faria se não
estivesse interessado. Normalmente, Juan mandaria todos para o diabo e iria
trabalhar no ônibus. Alice estava cada vez mais inquieta. Tinha maltratado
Norma. Isso não era problema. Com gente do tipo de Norma basta demonstrar
a mais leve intenção de bondade e pronto, a pessoa já se derrete como um
sorvete. Uma jovem como elo, que conhecera tão pouco amor, ora, não havia
dúvida, bastaria que sentisse o cheiro de bondade no ar para se desfazer.
Alice considerava com desprezo essa fome de amor. Alice de forma
alguma se compararia com Norma. Ela era grande, ficava muito acima de
todos e todos eram pequenos perto dela, isto é, exceto Juan. Mas ele mesmo,
por outro lado, não passava de um desdobramento dela. Em primeiro lugar,
pensou Alice, agora é preciso fazer a Norma voltar a funcionar. Ela dependia
de Norma no balcão do restaurante, pois assim que Juan virasse as costas
pretendia tomar uma boa bebedeira. Quando ele voltasse, diria que tivera uma
dor de dentes daquelas, de deixar qualquer um maluco.
Não costumava fazer coisas assim com freqüência, mas agora estava
disposta. E se ia mesmo tomar uma bebedeira, o melhor era começar desde já
a adotar as devidas providencias. Juan não gostava de mulheres embriagadas.
Descruzou os braços da cabeça. Seus olhos estavam congestionados e ela
levou tempo para conseguir focalizá-los normalmente. Viu que lá fora o sol
brilhava alegremente sobre a relva verde dos campos, pintando de amarelo as
colinas que se erguiam a oeste. Um belo dia!
Alice forçou seu corpo a sair da cama e foi para o banheiro. Ali, molhou
a ponta de uma toalha de rosto em água fria e fez uma massagem no rosto,
para apagar os sinais que seus braços tinham deixado sobre as bochechas.
Depois passou com forca a toalha molhada por todo o rosto, pelo nariz e pela
testa. Uma das alças de seu porta-seios tinha arrebentado. Abrindo o decote
do vestido, ela achou o pequeno alfinete de gancho que guardava na borra e
prendeu com ele a alça rebentada. Ficou meio apertado, mas ela costuraria a
alça depois da partida de Juan. Não costuraria nada, é claro. Quando a alça
estivesse toda arrebentado, compraria um porta--seios novo.
Alice penteou os cabelos e pintou a boca. Seus olhos ainda estavam
avermelhados. Usando um conta-gotas, pingou colírio nos dois e fez uma leve
massagem nas pálpebras inchadas. Inspecionou o conjunto de sua aparência
no espelho do armarinho de remédios e passou para o dormitório. Ali, tirou o
vestido amassado e vestiu um estampado, limpo e bem passado.
Cruzando o dormitório rapidamente, bateu à porta do quartinho de
Norma. Silêncio. Bateu novamente.
Ouviu o estalar de papel amassado. Finalmente, Norma abriu a porta.
Seu olhar era de quem acaba de acordar, vazio. Tinha na mão o lápis rombudo
de sobrancelhas. Ao dar com Alice, o susto transfigurou-lhe o rosto.
- Não fiz nada de mal com aquele rapaz - explicou ela, falando
rapidamente.
Alice entrou no quarto. Sabia muito bem como lidar com as Normas,
quando necessário.
- Sei que não fez querida - disse ela. Depois abaixou os olhos, como se
estivesse envergonhada. Sabia lidar com suas empregadas.
- Bem, mas não devia ter dito aquilo tudo. E se alguém ouvisse, que
idéia iria fazer de mim? Eu não sou do tipo das que fazem coisas assim. A
única coisa que quero é ganhar minha vida em paz. - Subitamente, seus olhos
ficaram rasos de lágrimas de autopiedade.
- Sei que não devia ter feito o que fiz - disse Alice - mas é que eu fiquei
meio louca. Sabe como é, estou no meu período. Você sabe como a gente se
sente. As vezes, tenho a impressão de que vou ficar maluca.
Norma olhou-a com interesse. Era a primeira vez que Alice a tratava
com alguma bondade. Era a primeira vez que Alice considerava necessário
apelar dessa forma para Norma. Não gostava de mulheres nem de mocinhas.
Em Alice havia uma ponta de crueldade em relação a todas as mulheres e
quando viu que os olhos de Norma estavam rasos d"água ela sentiu-se
triunfante.
- Sabe como é isso - repetiu. - Eu fico meio maluca.
- Eu sei - respondeu Norma. Macios tentáculos de calor e ternura
partiam dela em todas as direções. Arfava por amor, por associação, por
algum ser humano que lhe demonstrasse afeto. - Eu sei - repetiu, sentindo-se
mais experiente e mais forte do que Alice, bem como na obrigação de protegê-
la - que era exatamente o que Alice desejava.
Alice olhava agora para o lápis de sobrancelhas na mão de Norma.
- Bem, agora é melhor você voltar ao restaurante. O Sr. Chicoy está
trabalhando sozinho e precisa de ajuda.
- Num momento estarei lá.
Alice fechou a porta e ficou escutando. Houve uma pausa silenciosa, o
ruído de madeira contra madeira e do estalido seco da gaveta da cômoda
sendo fechado cem força. Alice ajeitou com a mão os cabelos que lhe caíam
sobre a testa e caminhou silenciosamente para a porto do restaurante. Sentia-
se bem. Falando com Norma; descobrira muita coisa. Sabia agora, com
certeza, como ela se sentia. E sabia onde guardara a carta.
Alice tentara mais de uma vez abrir a mala de Norma, mas sempre
encontrara a fechadura trancada e, embora pudesse ter aberto a mala com os
dedos, se quisesse - a mala era de papelão - as marcas deixadas evidenciariam
o arrombamento. Era melhor esperar. Mais cedo ou mais tarde, se fosse
cuidadosa, Norma esqueceria de trancar a mala. Alice era esperta, mas não
sabia que Norma também era. Norma já havia trabalhado para outras Alices.
Quando Alice vasculhava as gavetas da cômoda de Norma, examinava as suas
posses e lia as cartas que Norma escrevia para a irmã, não notava as tirinhas
de papel que caíam das bordas das gavetas. Norma sempre colocava as
tirinhas de papel em posição e quando não as encontrava no lugar sabia que
alguém andara mexendo em suas coisas. Sabia também que Juan e
Espinhudo não fariam isso, de forma que só poderia ter sido Alice.
Norma não era pessoa capaz de esquecer a mala destrancada. Embora
fosse sonhadora, ela não tinha nada de estúpida. Numa caixinha vazia de
pasta de dentes, ela tinha vinte e sete dólares. Quando tivesse cinqüenta
dólares economizados, seguiria para Hollywood, obteria emprego num
restaurante e aguardaria sua chance. Os cinqüenta dólares bastariam para
pagar o aluguel de um quarto durante dois meses. Comeria no próprio
restaurante. Seus sonhos e fantasias descabeladas eram uma coisa, mas ela
era perfeitamente capaz de manter-se. Norma não era tola. Não compreendia,
é verdade, o ódio que Alice nutria por todas as mulheres. Não sabia que sua
atitude bondosa, naquela manhã, era apenas uma máscara. Mas
provavelmente descobriria tudo, a tempo de salvar-se. E embora Norma
acreditasse piamente em que somente os mais nobres e os melhores impulsos
e sentimentos encontrassem guarida em Clark Gable, ela conhecia e
desprezava os impulsos das pessoas com que tratava e com que entrava em
contacto na vida cotidiana.
Quando Espinhudo vinha bater de leve em sua janela, à noite, ela sabia
precisamente o que fazer. Trancava a veneziana. Ele não se arriscaria a forçar
a janela, pois tinha medo de que o ruído alertasse Juan, no dormitório ao
lado. Norma não era tola.
Agora, Alice estava parada junto à porta que dava para o restaurante.
Correu o indicador pelo nariz, dos dois lados, e depois abriu a porta e passou
para trás do balcão, como se nada houvesse acontecido.

CAPÍTULO VII

O grande e bonito ônibus Greyhound estava estacionado no depósito de


carga da empresa, em San Isidro. Os mecânicos abasteciam os tanques de
gasolina, examinavam o nível de óleo do motor e conferiam a pressão de ar dos
pneus, trabalhando em equipe. Todo o sistema funcionava harmoniosamente.
Um servente negro limpava o interior do ônibus, varrendo os espaços entre os
assentos, espanando as almofadas, recolhendo envoltórios de goma de mascar
e pontas de cigarro. Chegando ao fundo do ônibus ele correu os dedos por
detrás do longo assento traseiro. As vezes encontrava moedas e canivetes
caídos atrás daquele assento. Ficava com as moedas, mas entregava as coisas
encontradas ao gerente. Geralmente, quem esquece coisas no ônibus faz um
barulho dos diabos quando vem reclamá-las e não encontra nada, mas
ninguém liga para troco miúdo perdido em viagem. Certas vezes, ele chegava a
recolher dois dólares. Naquele dia encontrara duas moedas de dez cents, uma
de vinte e cinco cents e uma carteira que continha uma carta de convocação,
licença de motorista e carteira de identidade de membro do Lions Club.
Ele examinou o compartimento de notas. Continha duas notas de
cinqüenta dólares e um cheque visado de quinhentos dólares. Colocando a
carteira no bolso superior da camisa, ele tirou cuidadosamente a poeira do
assento, com seu espanador. O ritmo de sua respiração alterou-se um pouco.
Não havia problema, com o dinheiro. Podia retirá-lo e deixar a carteira atrás
do assento, para que outro servente a encontrasse em outra cidade. Deixaria o
cheque também. Cheques são muito perigosos. Mas as duas lindas notas de
cinqüenta - lindas! Sentiu um nó na garganta, o nó que iria sentir até o
momento em que pudesse retirar as duas lindas notas da carteira e colocá-la
novamente atrás do assento. Mas tinha de esperar, pois aquele rapaz idiota
estava lavando a poeira da estrada que aderira aos vidros, pelo lado de fora.
Tinha de esperar. Se fosse apanhado em flagrante, iria para o olho da rua.
Uma das barras de suas calcas de zuarte estava descosturada. Era um
bom lugar para esconder as duas pelegas de cinqüenta, antes de sair do
ônibus. Mas antes de bater o ponto, antes da hora da saída, ele ficaria doente.
Isso mesmo, ficaria doente. Bem doente, para não vir trabalhar por uma
semana. Se ficasse doente, aguardando a hora da saída, ninguém estranharia
sua ausência por alguns dias e ele não perderia o emprego. Alguém entrou no
ônibus e ele estremeceu. Era Louie, o motorista.
- Olá, George - disse ele. - Escute, não achou uma carteira? Tem aí um
camarada dizendo que perdeu a carteira.
George murmurou qualquer coisa.
- Bem, vim ver se você havia encontrado.
George voltou-se para ele, de joelhos no fundo do ônibus. - Encontrei -
suspirou.
- Ia entregar assim que terminasse o serviço.
- Ah, é? - Louie apanhou a carteira da mão de George e abriu-a. O
rapazola abobado olhava para ele, através das janelas. Louie sorriu com
comiseração para George e indicou o rapaz com os olhos.
- Uma pena, George - disse ele. - Creio que hoje a coisa não está para
nós. Duas de cinqüenta - disse ele - cá estão duas de cinqüenta. - Retirou as
duas notas e o cheque da carteira, para que o rapaz pudesse ver, lá de fora. -
Mais sorte da próxima vez, velho.
- Quem sabe... - lembrou George. - Talvez ele dê uma recompensa.
- Você fica com a metade - prometeu Louie. - Se for menos de um dólar,
fica com tudo.
Louie saiu do ônibus e foi até a sala de espera. Passou a carteira ao
caixa da companhia.
- George encontrou a carteira - disse ele. - Já vinha trazendo para cá.
Ele é um sujeito correto. - Louie sabia que o dono da carteira estava bem atrás
dele, de modo que disse ao caixa: - Se fosse eu o dono, daria a George um bom
presente. Não há nada nesse mundo que doa mais que ingratidão. Conheço
um cara que achou uma nota de mil dólares, devolveu ao dono e não recebeu
nem um muito obrigado. Sabe o que acabou fazendo? Assaltou um banco e
meteu chumbo em dois guardas. - Louie mentia facilmente, sem esforço.- O
meu ônibus desce lotado para o sul? - perguntou ao caixa.
- Lotado - respondeu o caixa. - Você tem um passageiro para a
Encruzilhada dos Rebeldes, e não vá esquecer de deixar as tortas, como fez na
semana passada. Nunca tive tanta dor de cabeça na minha vida como tive por
causa dessas cinqüenta tortas. Cá está sua carteira, moço. Quer verificar,
para ver se está tudo em ordem?
O dono da carteira deu a Louie cinco dólares, com seus agradecimentos.
Qualquer dia destes dou um dólar ao George, pensou ele. Sabia que George
não acreditaria numa recompensa de um dólar, mas que diabo! Era um
negócio sujo, em que gente limpa não se mete. Quem se mete se arrisca. Louie
era grande, com propensão à obesidade, mas vestia-se bem. Seus amigos o
chamavam de "cara de bife". Falava com facilidade, era esperto e gostava de
ser tido por turfista. Chamava os cavalos de corrida de "burrinhos" e não
perdia oportunidade de fazer um trocadilho. Gostaria de ser Bob Hope, ou,
melhor ainda, Bing Crosby.
Louie avistou George na plataforma do depósito de carga. Um súbito
impulso de generosidade dominou-o. Foi até George e passou-lhe uma nota de
um dólar.
- Filho da.... mesquinho! - exclamou. - Olhe aqui, tome o seu prêmio.
Mais de quinhentos dólares e o desgraçado só se explica em um!
George olhou Louie bem na cara, um olhar rápido, como um relâmpago
amarelado, luzindo em seus olhos. Sabia que o outro estava mentindo e sabia
que não podia fazer nada. Se Louie se ofendesse, as coisas poderiam ficar
muito mais duras para ele. E George já chegara a sentir na boca o gosto da
bebida. Chegara até mesmo a sentir-se meio tonto, na antecipação da grande
bebedeira. Se ao menos o cretino do lavador não tivesse metido o nariz na
janela...
- Obrigado - disse ele.
O rapaz continuava a trabalhar com o balde e a esponja. George
interpelou-o:
- Você acha que limpou direito essas janelas? - E Louie apoiou George
imediatamente.
- Se quiser ir para frente - disse ao rapaz - trate de fazer sua obrigação
com mais capricho. Essas janelas estão emporcalhadas. Limpe tudo outra vez.
- Você não manda em mim. Só obedeço ordens do superintendente,
entendeu?
Louie e George trocaram um olhar. Molecote atrevido. Em menos de
uma semana estaria no olho da rua, se Louie se empenhasse no caso.
Os grandes Greyhound entravam e saíam do depósito; grandes e
pesados como casas. Os motoristas estacionavam os veículos com elegância e
precisão absoluta. O depósito cheirava a óleo de lubrificação, a fumaça de
escapamento e a doces, mas um cheiro forte de desinfetante de estofamento se
sobrepunha aos demais.
Louie deu a volta ao depósito, passando para a frente da estação
rodoviária. Divisou uma moça que vinha descendo a rua. Vinha de mala na
mão. Num relance, a imaginação de Louie apossou-se dela. Um peixão! Era
uma pequena como aquela que ele desejava, viajando instalada logo atrás de
seu assento. Poderia observá-la pelo espelho retrovisor e descobrir coisas a
seu respeito. Talvez morasse numa das cidades ao longo da estrada. Muitas
das aventuras amorosas de Louie começavam assim.
A luz do sol batia por trás da pequena, de forma que ele não podia
distinguir seus traços, mas seria capaz de apostar que era bonita. Ele não
sabia como, mas tinha certeza de que ela era certinha. Poderia distingui-la
entre outras cinqüenta mulheres, todas caminhando com o sol por detrás.
Mas como podia ter certeza de que ela era bonita? Podia ver o contorno de um
belo corpo, belas pernas. Mas além disso, de uma forma sutil, aquela pequena
que se aproximava transpirava sexo.
Verificando que ela se encaminhava para o guichê de passagens, com a
mala, ele evitou olhar diretamente em sua direção. Passou para o lavatório da
estação. Aproximando-se de uma das pias, abriu a torneira, meteu as mãos na
água e passou-as pelos cabelos. Depois tirou um pequeno pente do bolso da
camisa, penteou cuidadosamente seus cabelos para trás, ajeitando com o
pente e as mãos o ângulo da nuca em que os cabelos de um lado cruzavam
com os do outro. Penteou o bigode, embora ele fosse tão curto que nem era
preciso penteá-lo. Depois ajeitou sua jaqueta de brim, apertou o cinto e fez um
pequeno esforço para encolher a barriga.
Guardando o pente no bolso, passou-se em revista ao espelho. Com as
mãos espalmadas, ajeitou o cabelo por sobre as orelhas. Voltou-se um pouco,
para ver se não havia fios soltos e se o cabelo estava bem cruzado na nuca,
sobre o colarinho. Endireitou a gravatinha borboleta negra, de laço feito, tirou
do bolso da camisa um pacotinho de Sen-San, despejou alguns fragmentos na
mão e transferiu-os para a boca. Mais uma encolhidela enérgica da barriga e
estava pronto.
Já tinha posto a mão na maçaneta de metal amarelo da porta do
lavatório quando se lembrou de que faltava verificar alguma coisa. A mão
esquerda de Louie desceu até a braguilha dos calças, certificando-se de que to
dos os botões estavam devidamente recolhidos. Ele ajeitou no rosto um sorriso
enviesado, meio de experiência, meio de ingenuidade, uma expressão de que
se valera com êxito muitos vezes. Louie lera em algum lugar que, quando se
olha diretamente nos olhos de uma pequena, sorrindo, ela sempre reage.
Deve-se não somente olhar para a Pequena como se elo fosse a coisa mais bela
deste mundo, mas sustentar o olhar até ela desviar a vista. Havia também
uma alternativa. Quem não gosta de olhar os outros diretamente nos olhos,
pode olhar para o ponto que fica precisamente entre os olhos, na base do
nariz. Quem estiver sendo olhado dessa forma tem a impressão de que o estão
olhando nos olhos, o que não acontece. Louie já tivera ocasião de comprovar
que essa era uma excelente técnica de aproximação.
Louie pensava em mulheres quase continuamente, desde que acordava
até o momento em que dormia. Gostava de ultrajá-las. Gostava de fazer com
que se apaixonassem, por ele, para depois abandoná-los. Para Louie, elas
eram porcas, como gostava de chamá-las. "Pego a minha porca - dizia ele -
você pego a sua porca e tocamos prá cidade".
Deixou o lavatório caminhando com um andar majestoso, mos teve de
recuar às pressas, ao dar com dois homens que vinham entre os bancos da
estação, carregando uma grande caixa de madeira, com orifícios de ventilação
dos lados. Uma inscrição em letras brancas, do lado de caixa, dizia: TORTAS
CASEIRAS DA MAMÃE MAHONEY. Os dois homens passaram por Louie rumo
ao depósito de carga.
Agora a jovem estava sentado num dos bancos do estação rodoviária,
com a mala ao lado. Cruzando o saguão, Louie lançou um rápido olhar às
suas pernas, depois olhou-a nos olhos e sustentou e olhar. Sorrindo seu
sorriso enviesado, aproximou-se dela. A pequena olhou-o na cara, sem sorrir,
e depois voltou o rosto para o outro lado.
Louie ficou desapontado. Afinal, ela não ficara embaraçada, como
deveria ter ficado. Manifestara apenas desinteresse por ele, pura e
simplesmente. E era uma pequena boa, isso não havia dúvida - um belo par
de pernas, coxas carnudas e cintura fina, seios graúdos e firmes, que ela sabia
destacar. Era loira e seus cabelos pareciam estar ainda meio crispados nas
pontas, por efeito de um secador muito quente, mos estavam bem penteados,
tinham uma bela cor luminosa e caíam sobre a testa numa longa franja
encrespada, como Louie gostava. Seus olhos estavam retocados com sombra
azul, tinha cold cream espalhado nas pálpebras e suas pestanas eram
escurecidos com rimmel. Não usava ruge e a pintura de sua boca era quase
um pequeno retângulo rubro, como a boca de algumas estrelas de cinema.
Envergava um costume, saia muito justa e jaleco de gola redonda. Seus
sapatos eram de couro claro, costurados em fio branco. Não era apenas bonita
e bem conformada, era elegante também. E o conjunto agradava.
Ao passar por ela, Louie estudou seu rosto. Tinha a impressão de que já
a vira em algum lugar. Mas, afinal, ela poderia ser parecida com alguma
pessoa que conhecia, ou talvez já a tivesse visto no cinema. Isso já acontecera.
Seus olhos bem plantados no rosto, separados um do outro por uma distância
quase anormal, eram azuis, marchetados de pontinhos pardos e cruzados de
linhas escuras, que iam das margens dos pupilas à íris. Suas sobrancelhas
eram raspadas e pintadas em arcos abertos, o que lhe emprestava um ar de
ligeira surpresa.
Louie notou que suas mãos enluvadas repousavam tranqüilamente. A
pequena não era impaciente nem nervosa, e isso o desgostava. Temia as
pessoas controladas e teve então, mais uma vez, a impressão de que já a vira
anteriormente. Os joelhos do pequena eram arredondados, nada tinham de
ossudos, e ela mantinha sem esforço a saia bem ajustada sobre eles.
Ao passar por ela, Louie puniu-a pelo desinteresse manifesto, baixando
os olhos para suas pernas. Isso, geralmente, fazia com que a jovem observada
ajeitasse nervosamente a saia sobre os joelhos, ainda quando não havia nada
à mostra, mas a pequeno de olhos azuis não tomou conhecimento. Sua
ausência total de reação à técnica de Louie inquietava-o cada vez mais. Uma
vigarista, provavelmente, pensou ele. Uma marafoninha de dois dólares. Mas
não pode deixar de sorrir, ao pensar nisso.
Não, não de dois dólares, com aquela classe toda em vestir-se.
Chegando ao guichê de passagem, Louie sorriu seu sorriso sardônico a
Edgar, o caixa. Edgar admirava Louie. Gostaria de ser como ele.
- Para onde vai essa porca? - perguntou Louie.
- Porca?
- Essa aí. A Boazuda. A loira.
- Oh, sim - compreendeu Edgar, trocando um secreto olhar masculino
com o outro. - Para o sul.
- No meu ônibus?
- Pois é.
Louie começou a tamborilar com os dedos sobre a prateleira do guichê.
Deixara a unha do dedo mínimo de sua mão esquerda crescer. Agora a unha
era longa, curvada como a metade de um cilindro e limada em ponta. Louie
não saberia explicar por que deixara a unha crescer, mas estava satisfeito por
ter verificado que outros motoristas de ônibus deixavam também crescer a
unha do dedo mínimo da mão esquerda. Louie estava lançando uma nova
moda e sentia-se bem ao pensar nisso. Sabia que fora um motorista de táxi
que tivera a idéia de hastear um rabinho de texugo na tampa de seu radiador
e, do dia para a noite, a moda propagara-se por todo o país. Não havia quem
não desejasse um desses ornamentos, e os peleteiros começaram a produzir
rabinhos de texugo artificiais. Não havia carro de estudante que não circulasse
com um desses pendões ao vento. E o motorista de táxi podia orgulhar-se de
ter lançado a nova moda.
Louie deixava a unha do dedinho crescer havia mais de cinco meses e já
tivera a satisfação de verificar que cinco ou seis motoristas de ônibus estavam
também deixando crescer a unha do dedo mínimo. A moda bem podia
disseminar-se por todo o país e nesse caso seria ele, Louie, quem a havia
lançado.
Tamborilava sobre a prateleira mos com cuidado, levemente, pois uma
unha como aquela demora para crescer e é muito delicada, quebrando-se
fàcilmente. Edgar olhou a unha. Mantinha sua mão esquerda abaixada. Ele
também estava deixando crescer a unha de seu dedo mínimo, mas ela ainda
não estava comprida e ele não queria que Louie a visse antes de ela ter
atingido um bom comprimento. As unhas de Edgar não eram muito fortes - ele
tinha de pintá-las com esmalte incolor para evitar que se partissem. Chegara a
quebrar unhas até mesmo na cama. Erguendo a cabeça, ele examinou a
pequena.
- Está pensando em meter uma conversa nessa... porca?
- Não se perde nada em tentar - respondeu Louie. Uma vigarista,
provavelmente.
- Bem, e quem é contra uma boa vigarista? - os olhos de Edgar estavam
acesos. A jovem tinha recruzado as pernas.
- Louie - lembrou ele, num tom de quem pede desculpas - antes que eu
me esqueça, veja pessoalmente se desta vez descarregam direito a caixa de
tortas. Na semana passada tivemos uma reclamação. Alguém virou a caixa e
uma torta de amoras caiu em cima de uma torta de morangos e foi o diabo.
Tivemos de indenizar o destinatário.
- Isso nunca aconteceu em viagem minha - retrucou Louie,
truculentamente - Essas caixas são para San Juan, não é? Foi aquele cretino
que dirige o ônibus da Encruzilhada dos Rebeldes quem entornou tudo.
- Bem, nós tivemos de pagar - disse Edgar. - Dessa vez preste atenção,
sim?
- Já disse que ninguém entorna tortas em viagem minha - rosnou Louie
ameaçadoramente.
- Eu sei. Eu sei. Mas o superintendente me disse que desse o recado a
você.
- E por que não vem falar comigo? - perguntou Louie. - Se não gosta do
meu serviço, por que não vem me dizer na cara, em vez de mandar recados? -
Ele alimentava seu ódio como quem alimento uma fogueira. Mas estava com
ódio era da loira. Marafoninha vagabunda. Ergueu os olhos para o grande
relógio de parede. Um ponteiro de cinqüenta centímetros de comprimento
saltava de segundo a segundo, fazendo a volta ao mostrador, e observando o
reflexo do vidro do relógio Louie podia ver a loira, sentada de pernas cruzadas.
Embora não pudesse estar certo do que via, em virtude da deformação
provocada pela curvatura do vidro, tinha a impressão de que ela estava
olhando para sua nuca. O ódio que o queimava extinguiu-se como que por
encanto.
- Vou ver esse negócio das tortas - disse ele. - Posso garantir a eles que
não haverá amoras na torta de morangos. - Ele notou o olhar de admiração de
Edgar, quando se voltou lentamente para encarar novamente a loira.
Sua impressão foi confirmada. Ela estava olhando para sua nuca e
quando ele se voltou ela o olhou no rosto. Não havia interesse, não havia
indício algum no olhar. Mas ela tem belos olhos, pensou Louie. Boa mesmo, a
danada! Ele tinha lido numa revista que as pessoas sensuais têm os olhos
muito separados, e era mais que evidente que da pequena emanava sexo puro.
Era uma dessas pequenas que fazem com que todo mundo se volte na rua
para um segundo olhar. Aquela, por exemplo, atrairia olhares em qualquer
lugar. A sua passagem, as cabeças dos homens girariam de um lado para o
outro, como a dos apostadores num prado de corrida. Tinha alguma coisa de
diferente, além da pintura e do jeito de andar, embora isso também
contribuísse para o efeito geral. Fosse o que fosse, aquilo se projetava em
torno dela como uma aura. E agora ela estava encarando Louie, olhando-o nos
olhos, sem sorrir, sem manifestar desagrado, somente olhando, e ele sentia
novamente aquilo que já sentira ao vê-la chegando, com o sol pelas costas.
Sentiu um nó na garganta, sabia que seu pescoço começava a ficar
enrubescido acima do colarinho. Sabia que num momento a sua técnica de
olhar diretamente nos olhos das mulheres produziria resultados. Edgar estava
observando tudo, e Edgar tinha fé em Louie.
Todo mundo sabia que Louie mentia um pouco, mas não havia quem
não concordasse em que ele sabia lidar com as porcas. É verdade que naquele
momento não estava muito à vontade. Era a porca quem tomava a iniciativa.
ele teve vontade de esbofeteá-la, com a palma de mão. Sua respiração tornou-
se dolorosa. O momento crucial ia passar, a oportunidade escaparia, a menos
que agisse logo, fizesse alguma coisa. De onde estava, ele podia ver
nitidamente as raias escuras na íris daqueles olhos azuis, o contorno macio e
arredondado de seu rosto. Lançou a ela o seu olhar panorâmico. Depois
estreitou os olhos e sorriu, como se a tivesse reconhecido subitamente. Ao
mesmo tempo, começou a andar na direção da moça.
Cuidadosamente, ele transformou o sorriso enviesado num sorriso um
pouco mais respeitoso. Os olhos dela continuavam presos aos seus, perdendo
um pouco da frieza. Parou pertinho da pequena.
- O camarada do guichê me disse que a senhora vai no meu ônibus
para o sul, madame. - Ele mesmo achava graça naquele madame estropiado,
mas às vezes a coisa funcionava. Funcionou com aquela pequena. Ela sorriu,
levemente.
- Pode deixar, tomo conta de sua mala - disse ele. - Partimos dentro de
três minutos.
- Obrigada - respondeu ela. Sua voz era profunda e sensual, notou
Louie.
- Deixe ver a sua mala. Ponho agora mesmo lá dentro e marco um bom
lugar para você.
- A mala é pesada.
- Bem, não sou propriamente um anão - retrucou ele. Apanhando a
mala, cruzou rapidamente a estação.
Entrou no ônibus e colocou-a na frente do primeiro assento,
diretamente atrás do seu. Poderia ver a pequena pelo espelho retrovisor e
bater um papo com ela, quando estivessem na estrada. Quando desceu do
ônibus, o lavador de vidraças e outro servente estavam colocando a grande
caixa das tortas no compartimento de bagagem superior.
- Cuidado com esse negócio - gritou Louie. - Vocês deixaram a caixa cair
na semana passada, seus cretinos, e a coisa rebentou por cima de mim.
- Não deixei cair caixa nenhuma - protestou o rapaz.
- Que não deixou nada! - rosnou ele. - Preste mais atenção no que faz. -
Cruzando a porta do depósito, passou para a sala de espera da estação.
- O que será que mordeu esse camarada? - perguntou o outro servente.
- Ora, acho que estraguei o programa dele - respondeu o rapaz. - George
achou uma carteira e eu vi tudo, de forma que eles ficaram sem jeito e foram
entregar ao dono. E era um bom pacote. Ficaram danados comigo, porque vi
tudo. Os dois iam rachar uma bolada de cem, e eu estraguei tudo. Mas não
tinha mesmo jeito, depois que eu vi, eles não podiam fazer outra coisa.
- Pois me vinha bem um pouco dessa gaita - disse o outro.
- Prá quem não vinha? - retrucou o rapaz.
- Pois você me arruma uma pelega de cem e eu lhe mostro como é que a
gente pode gozar o que é bom na vida, menino. - Os dois prosseguiram no
diálogo ritual, ao lado do ônibus.
Na sala de espera reinava agora uma febril atividade. O grupo que
seguiria na viagem rumo ao sul começava a congregar-se. Edgar estava
ocupado em seu guichê, mas não a ponto de perder de vista a loira.
- Uma porca - murmurou entre os dentes. Era um termo novo para ele.
Doravante passaria a empregá-lo. Ergueu a mão esquerda, para examinar a
unha do dedinho. Ainda levaria tempo para ficar igual a de Louie. Mas para
que se iludir? Ele não tinha a classe de Louie. Mais cedo ou mais tarde, era
sempre passado para trás.
Um grupo de retardatários abastecia-se no balcão de doces, nas
máquinas automáticas de amendoim, nas máquinas de goma de mascar. Um
chinês comprou o Times e o Newsweek, enrolou-os cuidadosamente e enfiou o
rolo no bolso largo de seu sobretudo. Uma velha folheava rapidamente as
revistas expostas à venda, sem intenção de comprar qualquer delas. Dois
hindus, de turbantes alvíssimos e barbas negras e aparadas, estavam
postados lado a lado, junto ao guichê de venda de passagens. Lançavam
olhares sóbrios para todos os lados, como se quisessem fazer-se entender.
Louie tomou posição ao lado da porta que dava para a plataforma de
embarque, com os olhos colados na loira. Notou que todos os homens da sala
de espera estavam fazendo a mesma coisa. Todos procuravam observá-la
secretamente, como se isso fosse possível. Voltando-se, olhou através da porta
de vidro e viu que o rapaz e o outro servente tinham colocado a caixa
cuidadosamente no compartimento superior de bagagens, correndo depois a
lona de proteção por sobre o bagageiro. A luz na sala de espera empalideceu
um pouco. Provavelmente uma nuvem escura estava passando contra o sol.
Aos poucos a luz voltou a ganhar intensidade, como se fosse controlada por
um reostato. A grande cigarra metálica fixada sobre a porta emitiu seu silvo
abafado. Louie observou os passageiros, à medida que cruzavam a porta para
embarcar no ônibus. Outros passageiros erguiam-se dos bancos da sala de
espera e vinham caminhando rapidamente para a porta.
Edgar ainda estava tentando descobrir para onde pretendiam seguir os
dois hindus.
- Cretinos de cabeça enfaixada - murmurava entredentes. - Por que não
aprendem a língua de gente, antes de se meterem a viajar?
Louie subiu para seu assento, cercado por um cano de aço cromado, e
foi recebendo as passagens à medida que os passageiros entravam. O chinês
de sobretudo foi diretamente para o banco traseiro, tirou o sobretudo e ajeitou
no colo o Times e o Newsweek. A velha subiu ao ônibus arfando e sentou-se
no assento que ficava atrás de Louie.
- Sinto muito, minha senhora - disse ele - mas esse lugar está ocupado.
- Como, ocupado? - retrucou ela, num tom beligerante. - Nestes ônibus
não há reserva de lugares.
- Esse lugar está ocupado, minha senhora - repetiu ele. - Não está
vendo essa mala aí na frente? - Ele odiava as velhas. Elas o apavoravam.
Tinham um cheiro que lhe fazia mal. Eram ferozes e não tinham orgulho. Não
ligavam a mínima aos outros, estavam sempre dispostas a fazer uma cena,
armar um escândalo. E no fim sempre arranjavam o que queriam. A avó de
Louie tinha sido uma tirana. Obtinha tudo o que desejava, com sua
arrogância. Com o canto dos olhos ele via a pequena na plataforma de
embarque, esperando que os dois hindus embarcassem para subir no ônibus.
Ele estava encostado à parede. Subitamente, ficou bravo.
- Minha senhora - disse à velha - quem manda no meu ônibus sou eu.
Há muitos outros lugares bons. Quer fazer o favor de desocupar esse aí?
A velha ergueu o queixo, danada. Ajeitou-se no assento, preparada para
manter a posição conquistada.
- Você quer é que eu de o lugar a essa mocinha, sei muito bem o que
está querendo. Vou dar parte de você à direção da empresa, entendeu?
Louie explodiu.
- Está muito bem, minha senhora. Pode fazer a sua queixa. A empresa
tem montes de queixas de passageiros e falta de bons motoristas. - Ele notou
que a pequena estava ouvindo tudo e ficou satisfeito.
A velha também notou que ele estava danado.
- Vou dar parte de você - repetiu ela.
- Pois vá, pode dar. Se quiser pode ir até agora - Louie começou a
erguer a voz - mos não vai viajar nesse lugar. O passageiro que vai viajar aí
está obedecendo uma recomendação do médico.
Era uma saída que ele oferecia à velha, e ela aceitou-a imediatamente.
- Por que não disse antes? Eu sei compreender essas coisas. Mas vou
fazer uma queixa de qualquer jeito, por sua grosseria.
- Está bem, minha senhora - respondeu ele em voz baixa - já estou
mesmo acostumado com essas coisas.
A velha passou para um assento da segunda fileira, que estava vazio.
"Agora ela vai ligar o radar e me fiscalizar durante toda a viagem" -
pensou Louie. "Não tem importância, que se dane. Temos mais passageiros
que motoristas, afinal de contas. "A jovem estava ao seu lado, com a passagem
na mão estendida. Recolhendo a passagem, Louie exclamou,
involuntariamente: - Então vai só até a Encruzilhada?
- Eu sei, tenho de fazer baldeação lá - disse ela, sorrindo ante seu tom
de desapontamento.
- Seu lugar é este, aqui atrás de mim - murmurou Louie. Pelo espelho,
ele a viu sentar-se, cruzar as pernas, puxar a saia para a frente e ajeitar a
bolsa no colo. Depois endireitou os ombros e fixou os olhos no colarinho da
camisa dele. Sabia que Louie observava todos os seus movimentos. Estava
acostumada, aquilo para ela era rotina diária. Sabia que era diferente das
outras, mas não compreendia bem por que era diferente. Geralmente, era ela
quem obtinha os melhores lugares, quem era melhor servida, quem era
auxiliada por uma mão em seu cotovelo a cruzar ruas movimentadas. Os
homens não conseguiam manter-se à distância dela. E isso terminava sempre
em complicações.
Estava acostumada a resistir, insultar, discutir ou lutar para afastar os
importunos. Todos os homens que a abordavam desejavam a mesmo coisa e
ela era forçada a resistir. Já contava com isso, antecipadamente, como coisa
natural.
Durante sua adolescência, tal condição a fizera sofrer muito. Sofria
sempre de um sentimento de culpa, tinha a impressão de ter agido com
impropriedade quando isso acontecia. Mas agora era mais velha, aceitara sua
condição e desenvolvera sua própria técnica. Às vezes cedia e às vezes obtinha
dinheiro ou roupas. Conhecia quase todas as variantes das técnicas de
aproximação. Poderia dizer, com uma margem mínima de erro, tudo quanto
Louie iria dizer na próxima meia hora. Antecipando o que iria ouvir, ela
tornava todo o processo menos desagradável.
Os homens mais velhos estavam sempre dispostos a ajudá-la,
matriculá-la em escolas ou encaminhá-la no teatro. Os mais jovens desejavam
casar-se com ela ou protegê-la. E alguns poucos, muito poucos, desejavam
apenas, aberta e honestamente, ir para a cama com ela e diziam logo o que
tinham a dizer. Esses eram os que aborreciam menos, pois ela podia
responder sim ou não e estava tudo acabado. O que ela mais detestava eram
os conflitos, que surgiam entre os homens, provocados por seus dotes ou suas
imperfeições. Bastava chegar a qualquer lugar para os homens presentes
começarem a brigar. Freqüentemente, lutavam como animais, como cães, e ela
chegava a desejar, às vezes, que as mulheres a apreciassem, mas isso não
acontecia. E ela era inteligente. Sabia por que as mulheres não podiam
apreciá-la, mas não havia nada que pudesse fazer para modificar a situação.
O que realmente desejava era uma boa casa numa boa cidade, dois filhos e
uma escadaria em que pudesse posar. Ela saberia vestir-se bem e teria sempre
convidados para o jantar. Teria um marido também, é claro, mas não podia
concebê-lo muito bem, porque os anúncios coloridos das revistas femininas
que forneciam matéria-prima para os seus sonhos nunca reproduziam figuras
masculinas. Apenas uma adorável mulher, muito bem vestida, descendo a
escadaria rumo à sala de jantar, onde as velas já estão acesas sobre a mesa de
mogno, os convidados esperando e as crianças prontas para beijá-la e seguir
para a cama. Era tudo quanto desejava. E sabia perfeitamente, tinha a certeza
de que seu desejo jamais se materializaria.
Havia muito de tristeza nela. Costumava pensar muito nas outras
mulheres. Seriam diferentes dela, na cama? Sabia, por experiência, que os
homens não costumavam reagir à maioria das outras mulheres como reagiam
a ela. Seus próprios impulsos sexuais não eram terrivelmente fortes nem
muito constantes, mas ela ignorava o que se passava com as outras mulheres.
Elas nunca conversavam a respeito, pelo menos com ela. Na verdade, não
gostavam nada dela. Certa vez, um jovem médico, que ela procurara em busca
de alívio para suas regras dolorosas, tentara seduzi-ia e, depois de dissuadido,
afirmara: "Não sei como, mas o fato é que você emite qualquer coisa. Não sei o
que, nem como, mas é o que acontece. Algumas mulheres são assim. Graças a
Deus - acrescentara - nem todas são assim, pois caso contrário todos os
homens ficariam loucos."
Esforçara-se por usar apenas roupas discretas, mas isso de pouco
valera. Não conseguia manter-se empregada. Era boa datilógrafa, mas todos os
escritórios em que trabalhava se haviam convertido em verdadeiros
pandemônios, em questão de dias. Finalmente, descobrira um meio adequado
de ganhar a vida. Sua nova profissão era rendosa e não implicava em grandes
riscos ou complicações. Dançava nua, ao fim de banquetes de homens de
negócios. Seu trabalho era controlado por uma agência teatral perfeitamente
respeitável. Ela não compreendia o que poderia levar os homens de negócios a
pagar por tais espetáculos, nem que satisfação poderiam neles encontrar, mas
a coisa era assim e ela ganhava cinqüenta dólares cada vez que tirava as
roupas, em lugar de ser forçada a lutar com unhas e dentes, num escritório,
para conservá-las sobre si. Lera várias obras sobre ninfomania, o bastante,
pelo menos, para certificar-se de que não sofria dessa aberração. Às vezes,
quase desejava ser ninfomaníaca. Não raro, pensava em instalar-se num bom
convento, juntar algum dinheiro e depois seguir para o interior, aposentando-
se - ou então casar-se com um velho rico, que pudesse dominar. Essa seria a
solução mais fácil. Os jovens com quem se dava bem acabavam,
invariavelmente, por feri-ia. Sempre suspeitavam de que ela os enganava com
terceiros. Quando não ficavam furiosos e tentavam espancá-la, ficavam
danados e desapareciam.
Tentara ajustar-se a vários deles, mas as ligações sempre terminavam
por uma cena de violência. Mas um velho com dinheiro... isso seria outra
coisa. E ela sabia que poderia ser boa para ele. Saberia pagar, à sua moda, o
que gastasse com ela. Tinha apenas duas amigas e ambas faziam a vida.
Aparentemente, eram as únicas mulheres que não tinham ciúmes dela nem
ressentiam seus encantos. Mos agora uma delas estava longe, no interior. Não
sabia onde. Seguira soldados para uma cidade qualquer. E a outra estava
vivendo durante uma temporada com um publicitário e não a queria rondando
a casa.
Essa era Loraine. Tinham tido um apartamento em conjunto. Loraine
não dava grande importância aos homens; por outro lado, não tinha a menor
inclinação por mulheres. Mas acontece que ela e o publicitário haviam
decidido viver juntos e então Loraine pedira que ela se mudasse do
apartamento. Loraine explicara-lhe tudo direitinho, pedindo que não voltasse
mais. Loraine estava trabalhando num bordel quando o camarada se
apaixonara por ela. Bem, Loraine contraíra uma gonorréia e depois disso
dormira com o tal publicitário, antes do manifestação dos primeiros sintomas
da moléstia. Ele era um tipo nervoso, ficou, agitadíssimo, perdeu o emprego e
foi lamentar-se a Loraine. Sentindo-se de certa forma responsável pelo que
acontecera, ela recolheu-o e alimentou-o, enquanto os dois se tratavam. Isso
acontecera no tempo do tratamento antigo, de forma que os dois passaram um
mau pedaço. Depois disso, o publicitário viciou-se em pílulas soporíferas. Ela
passou a encontrá-lo desacordado, o homem não dizia coisa com coisa, ficava
alucinado quando não dispunha de um bom estoque de pílulas e consumia
uma quantidade cada vez maior. Loraine teve de levá-lo duas vezes ao pronto-
socorro, para lavagem de estomago.
Ela era na verdade uma boa pequena e ficou numa situação das mais
difíceis, pois a dona da casa em que trabalhava disse que não a aceitaria de
volta enquanto não estivesse completamente curada. Ela não queria transmitir
a moléstia a ninguém, mas precisava de dinheiro para pagar o médico, o
aluguel, a comida. Foi obrigada a trabalhar nas ruas de Glendale, aliciando
clientes, coisa que a deprimia. Então, como se isso não bastasse; o publicitário
encheu-se de ciúmes e proibiu-a de trabalhar, embora ele mesmo estivesse
desempregado. Seria ótimo se a coisa tivesse terminado em rompimento, pois
então ela e Loraine poderiam voltar a viver juntas no apartamento.
As duas se davam muito bem. Sabiam divertir-se, tranqüilamente.
Uma longa série de convenções terminara em Chicago e ela conseguira
economizar algum dinheiro. Agora, descia para o sul com destino a Los
Angeles, viajando de ônibus para economizar. Pretendia descansar um pouco.
Fazia tempo que não tinha notícias de Loraine. A última carta dela dizia
que o publicitário andava lendo sua correspondência, de forma que era melhor
não escrever mais.
Os últimos passageiros entravam no ônibus e escolhiam seus lugares.
Louie cruzara as pernas. Perto daquela pequena sentia-se meio tímido.
- Então você vai para Los Angeles - observou. - Mora lá?
- Passo temporadas.
- Gosto de tentar descobrir coisas assim - admitiu ele. Quem guia um
ônibus destes fica conhecendo gente diferente todo santo dia.
O motor do ônibus ronronava baixinho. A velha fuzilava Louie com os
olhos. Ele podia observá-la também pelo espelho. Provavelmente, ia escrever
uma carta à empresa, reclamando.
- Bem - disse ele com seus botões - a empresa que se fomente. Emprego
para ele não faltava. De um jeito ou de outro, a empresa não dava muita
atenção às reclamações de velhas. Olhou para o fundo do ônibus. Parecia que
os dois hindus estavam de mãos dadas. O chinês abrira o Times e o
Newsweek e estava cotejando artigos sobre o mesmo assunto. Seus olhos iam
de uma revista para a outra e entre suas sobrancelhas havia uma rugazinha
vertical de preocupação.
O despachante, lá da plataforma, acenou com a mão. Louie manobrou a
alavanca que fechava a porta. Engrenou a ré e o ônibus recuou pela
plataforma de concreto, fazendo uma curva tão aberta e bem calculada que o
pára-choque dianteiro passou a menos de um centímetro do muro da direita.
Louie engrenou a primeira da reduzida e fez outra curva perfeita, com o pára-
choque passando a uma fração de centímetro do muro da esquerda.
No fim da passagem, ele frenou e olhou para os dois lados do rua. O
trânsito estava desimpedido e ele acelerou novamente, ganhando a sua mão,
do outro lado da rua.
Louie era um bom motorista, tinha uma ficha profissional impecável. O
ônibus desceu a ria principal de San Isidro, cruzou os subúrbios da cidade e
ganhou a larga rodovia pavimentada, rumo ao sul.
O céu e o sol pareciam lavados e limpos. As valetas laterais estavam
cheias e em alguns trechos, onde tinham transbordado, a água da chuva
lavava o leito da estrada de um lado ao outro. Quando o ônibus passava por
esses trechos a água chiava sob os pneus e Louie sentia no volante a puxada
das rodas. O capim ainda estava aplastado pela força da tempestade, mas o
calor do sol já se fazia sentir sobre a gorda vegetação rasteira e nas elevações o
capim começava a erguer-se ao vento.
Louie bateu de novo os olhos no espelho, para ver a pequena. Ela
permanecia com os olhos colados em sua nuca. Mas alguma coisa a fez erguer
a vista para o espelho e ela olhou dentro dos olhos de Louie e então aqueles
olhos azuis raiados de negro, o nariz reto e perfeito, a boca pintada em
retângulo gravaram-se, fotograficamente, para sempre, no cérebro de Louie.
Ao olhar para os seus olhos, ela sorria como uma pessoa quando se sente
bem.
Louie sentia o nó na garganta, cada vez mais apertado, e uma crescente
pressão dentro de seu peito. Pensou por um momento que estivesse ficando
louco. Sabia que no fundo era um tímido, mas em geral conseguia convencer-
se de que era atirado. Naquele momento, porém, sabia que estava sofrendo os
sintomas de que sofre um rapaz apaixonado de dezesseis anos. Seus olhos iam
do estrada para o espelho, incessantemente. Sabia que estava com o rosto
vermelho, queimando. "Que diabo, que será isso?" - pensou ele. "Estarei me
derretendo todo, por causa dessa vigarista?" Pelo espelho, examinou-a
atentamente, em busca de um defeito qualquer que o consolasse, e então
notou as linhas fundas de fórceps, ao longo dos maxilares da pequena. Isso fez
com que se sentisse melhor. Ela não estaria tão segura de si se soubesse que
ele tinha notado as marcas. Sessenta e sete quilômetros.
Os números gritaram em sua cabeça. Ela ia saltar a sessenta e sete
quilômetros de onde estavam agora. Louie tinha de trabalhar rapidamente.
Não podia perder um minuto, se quisesse meter uma boa cantada naquela
vigarista. E quando tentou falar sua voz soou rouca.
- Não ouvi bem o que disse - explicou ela, curvando-se para frente.
Louie pigarreou.
- Disse que o campo fica uma beleza, depois de uma boa chuva.
- É, fica.
Ele tentou voltar à sua técnica rotineira de aproximação. Olhando pelo
espelho retrovisor, notou que a pequena ainda estava curvada para a frente.
- Como estava dizendo - começou - gosto de descobrir coisas, de ficar
sabendo o que as pessoas fazem. Eu diria que você, por exemplo, trabalha no
cinema ou no teatro.
- Não - disse ela - nada disso.
- Você então não é atriz?
- Não.
- Bem, mas você trabalha, não trabalha?
Ela riu, e quando ela ria seu rosto ficava ainda mais encantador. Mas
Louie notou que um dos seus incisivos era ligeiramente torto. Crescera meio
enviesado; empurrando o vizinho. A risada cessou e seu lábio superior cobriu
os dentes. "Ela sabe que o dente é torto" - pensou Louie.
A essa altura, ela já tinha ido e voltado, estava muito no frente dele.
Sabia o que ele iria dizer. Aquilo mesmo já acontecera muitas e muitas vezes.
Agora ia tentar descobrir onde morava. Ia pedir o número de seu telefone. Era
tudo muito simples. Ela não morava em parte alguma. Deixara um baú com
alguns livros no apartamento de Loraine - o Capitão Hornblower e uma Vida
de Beethoven, alguns livros de bolso dos contos de Soroyan, uns poucos
vestidos velhos que tencionava reformar. Ela sabia que Louie estava
embaraçado. Conhecia havia muito o rubor que sobe pelo pescoço de um
homem, as frases laboriosamente articuladas. Viu que Louie erguia olhos
apreensivos para o espelho, olhando para o fundo do ônibus.
Os hindus trocavam mansos sorrisos. O chinês estava com os olhos
perdidos no teto do ônibus, tentando elucidar mentalmente alguma
discrepância de tratamento do mesmo assunto pelas duas revistas. Um grego,
no assento traseiro, estava cortando pelo meio, com seu canivete, um
charutinho toscano. Quando acabou de cortar, meteu uma dos pontas na
boca e a outra no bolsinho do lento. A velha continuava a fitar furiosamente a
sua nuca, mascando em seco, de ódio, os lábios descorados pela tensão da
força com que os fechara.
A pequena curvou-se mais um pouco em direção a Louie.
- Vou poupar seu trabalho - disse ela. - Sou enfermeira odontológica.
Sabe como é, faço todas aquelas coisas no consultório de um dentista. -
Freqüentemente, ela se apresentava dessa forma. Não sabia por quê. Talvez
fosse porque isso punha fim às especulações e não se falava mais sobre o
assunto. Ninguém gosta de falar muito sobre coisas ligadas a dentistas e
tratamento de dentes.
Louie digeriu a informação. O ônibus chegara a uma passagem de nível
de estrada de ferro. Automaticamente, ele comprimiu o pedal do freio e o
ônibus parou. O ar comprimido dos freios silvou quando ele tirou o pé do
pedal e foi engrenando as marchas, até ganhar novamente a velocidade
normal. Sentia que as coisas se faziam cada vez mais pretos. A qualquer
momento a velha faria um escândalo medonho. Não dispunha de tempo para
muita coisa. Assim que a bruaca abrisse a boca novamente, iria tudo por água
abaixo. Queria aproveitar ao máximo o tempo que ainda lhe restava, mas
qualquer iniciativa adotada a essa altura seria prematura, de acordo com os
métodos de Louie. Devia dar uma folga de meia hora à pequena, mas a velha o
obrigava a forçar a mão.
- Às vezes eu vou a L. A. - disse ele. - Se pudesse telefonar a você, nós
não poderíamos... bem, jantar juntos e depois pegar um cineminha?
Ela acolheu calmamente o convite, sem animosidade. Não tinha nada
de orgulhosa, nem de implicante, como bem podia ter.
- Não sei - respondeu. - Olhe, eu nem sei ainda onde vou ficar. Estive
fora. A primeira coisa que vou fazer, assim que chegar, é procurar um bom
apartamento.
- Mas você trabalha num consultório - lembrou Louie. - Talvez eu possa
procurá-la lá mesmo.
A velha agora fervia, inquieta e agitada em seu lugar. Estava furiosa por
ter sido obrigada por Louie a abandonar o assento em que ia a pequena.
- Bem, isso não é possível - respondeu elo. - Eu ainda não tenho
emprego certo, entendeu? Está claro que arrumo um, logo que chegar, porque
trabalho não falta no nosso ramo.
- Não estou sendo passado para trás? - perguntou Louie.
- Não - garantiu ela.
- Bem, nesse caso talvez você possa me mandar um postal com o
endereço, assim que se instalar.
- Talvez.
- Gostaria de ter uma conhecida com que sair quando vou a L. A.
E então aconteceu, a voz da velha sibilou no ar, fina e fria como vento
de cemitério.
- É proibido conversar com passageiros, é proibido por lei estadual. O
motorista tem de prestar atenção na estrada. - A velha não falava só com ele,
dirigia-se a todo o ônibus. - Esse motorista está pondo a nossa vida em perigo.
Vou mandar parar o ônibus e desço aqui mesmo, se ele não parar de falar e
atentar melhor na seja obrigação.
Louie emudeceu. Agora, a coisa era séria. Se persistisse, a velha poderia
criar-lhe sérias dificuldades. Erguendo de novo a vista para o retrovisor, ele
deu com os olhos da pequena. Movendo os lábios, ele pronunciou quatro
palavras, baixinho:
- Raio de bruaca intrometida!
A jovem sorriu e ergueu um dedo aos lábios. Estava aliviada, mas por
outro lado tinha também um pouco de pena dele. Sabia que, mais cedo ou
mais tarde, teria uma encrenca qualquer com ele. Mas sabia também que
Louie tinha suas qualidades e que poderia dominá-lo com facilidade, até certo
ponto. Depois de ver seu pescoço corado, ela ficara certa de que poderia detê-
lo a qualquer momento, ferindo seus sentimentos. Mas agora não havia
esperanças, estava tudo acabado e Louie não se deixava iludir. A pequena não
se envolveria em complicações. Ele tinha de manter a boca fechada enquanto
estivessem rodando na estrada. Louie não tinha ilusões. Sabia que quando os
passageiros chegam a seu destino só se preocupam em deixar o ônibus o mais
rapidamente possível. Tinha perdido aquela parada. Na Encruzilhada dos
Rebeldes teria tempo apenas para vê-la desembarcar e para descarregar a
caixa de tortas. Ele apertou o aro do volante entre os dedos. A jovem cruzara
as mãos no colo e não voltou a erguer os olhos para o espelho retrovisor.
Afinal, havia montes de pequenas muito mais bonitas do que ela. Aquelas
marcas de fórceps eram horríveis. Davam até arrepios na gente, só de olhar
para elas. Está claro, ela usa o cabelo comprido porque deseja esconder as
marcas. Nunca poderia pentear o cabelo para cima. Louie gostava de
penteados altos e imagine só - Jesus! - se ele acordasse na cama e desse de
cara com aquelas cicatrizes. Havia milhares de porcas soltas pelo mundo, um
camarada não precisa ficar preocupado com isso. Louie se arranjaria. Mas no
seu peito, na boca de seu estomago, a tristeza pesava como chumbo. Lutou
contra ela, tentou minorá-la, mas foi tudo inútil. Queria aquela pequena mais
do que já quisera qualquer outra, e também de uma forma diferente. Um
sentimento de perda, seco e duro, cresceu dentro dele. Nem ao menos sabia
seu nome, e agora estava certo de que não a veria mais. Já podia imaginar os
olhos ansiosos de Edgar, interrogando-o quando voltasse a San Isidro. Louie
começou a pesar os prós e os contras, para decidir se mentiria ou não.
Os grandes pneus cantavam sua canção sobre o leito da estrada, uma
canção alta e plangente, e o motor roncava, baixinho. Nuvens grandes e
informes, pesadas, começavam a aparecer no céu, escuras no centro e muito
brancas nas bordas. Uma delas estava agora começando a esconder o sol.
Louie já podia ver a sombra da nuvem na estrada, avançando sobre ele, sobre
o ônibus, e mais longe ainda ele avistou a torre verde das copas dos grandes
carvalhos que se erguiam em torno do restaurante do Encruzilhada dos
Rebeldes. Nunca se sentira tão desapontado em sua vida.
Quando abriu a porta, Juan Chicoy já estava à sua espera.
- Que foi que me trouxe?
- Um passageiro e uma ninhada de tortas - respondeu Louie. Levantou-
se de seu lugar, deu a volta por trás da barra de aço cromado, curvou-se e
apanhou a mala.
Depois desceu do ônibus, ergueu as mãos e a pequena apoiou-se em
seus braços para desembarcar. Os dois deram alguns passos, na direção do
restaurante.
- Adeus - disse ela.
- Adeus - disse Louie. Ainda ficou a olhar, enquanto ela desaparecia
pela porta do restaurante, sacudindo seu pequeno traseiro de um lado para o
outro.
Juan e Espinhudo tinham retirado a caixa de tortas do bagageiro
superior. Louie voltou para trás do volante.
- Boa viagem - disse Juan.
A velha mudara de lugar, passando para o da pequena. Louie
manobrou com força a alavanca da porta. Engrenou a primeira e acelerou.
Quando já estava longe, com os pneus cantando novamente sua canção sobre
o leito da estrada, ergueu os olhos para o espelho. A velha também estava com
os olhos no espelho, o rosto transfigurado por uma expressão de triunfo
mesquinho.
"Você entornou o caldo" - disse Louie com seus botões. "Pois é, rapaz,
desta vez você meteu os pés pelas mãos."
Ergueu novamente a vista e deu com os olhos da velha pregados no
espelho. Deliberadamente, ele moveu silenciosamente os lábios, escandindo
bem as sílabas, sem falar: - Maldita cadela velha, lazarenta! - Louie viu que ela
compreendera muito bem, pois seus lábios estavam brancos de raiva.
Entendera muito bem.
A estrada estendia-se, longa e deserta, à frente do ônibus.

CAPÍTULO VIII

Juan e Espinhudo carregaram até o restaurante a caixa de Tortos


Caseiras da Mamãe Mahoney, depondo-a junto à porta. Os dois tinham
observado atentamente a loira que desembarcara. Espinhudo emitiu um
assobio de admiração. Quando deu por si, sentiu as palmas das mãos
molhadas. Os olhos de Juan estavam cerrados a ponto de somente um
raiozinho de luz penetrar entre as pestanas. Passava a língua pelos lábios, em
movimentos rápidos e nervosos.
- Sei o que você gostaria de fazer - disse Juan. - Quer um dia de folga,
para ir aliviar-se, não é?
- Deus santíssimo - respondeu Espinhudo. - Nem diga.
- Pois é - observou Juan. Curvando-se sobre a caixa, ele soltou o
amarrilho e ergueu a tampo. – Sou capaz de apostar, Kit.
- No que? - perguntou Espinhudo.
- Eu aposto - disse Juan - aposto vinte contra dez como você está
pensando em que há duas semanas não tira um dia de folga e que seria
melhor ir comigo no ônibus, nesta viagem para San Juan. Não é por nada não,
é só para dar uma mão ao velho Juan, se o ônibus quebrar de novo.
Espinhudo começou a corar sob suas espinhas. Ergueu os olhos
inquietos para Juan, mos havia tanta alegria inofensiva naqueles olhos negros
que Espinhudo se sentiu bem outra vez. "Que coisa! - pensou ele - isso é que é
homem. Eu não poderia trabalhar para outro patrão."
- Bem - começou ele, em voz alta, sentindo-se como um homem que se
dirige a outro homem. Juan compreendia essas coisas, compreendia os
problemas de um homem. Quando passava uma boa por perto, Juan sabia
muito bem como é que a gente se sente. - Bem... - repetiu.
- Bem - imitou-o Juan - e quem é que vai ficar no posto, para vender
gasolina e consertar pneus furados?
- Quem é que costuma ficar? - perguntou Espinhudo.
- Ninguém. Eu costumava pendurar um cartaz na porta da oficina -
"Fechado para reforma". Alice se incumbe da bomba de gasolina. - Juan deu
um tapinha amistoso no ombro de Espinhudo.
"Que camarada - pensou Espinhudo outra vez - que grande camarada!"
As tortas eram sustentadas dentro da caixa por prateleiras de madeira
laminada, em forma de bandeja, que as mantinham separadas. Havia quatro
pilhas de doze tortas - ao todo quarenta e oito tortas.
- Vamos ver - disse Juan, contando - temos seis de amoras, quatro de
creme de limão, quatro de passas, duas de creme de caramelos. - À medida
que contava ia retirando as tortas e pondo-as de lado. - Leve para dentro,
Esp... Kit.
Espinhudo pegou uma torta em cada mão e entrou no restaurante. A
loira estava sentada num tamborete, tomando café. De onde estava não podia
ver seu rosto, mas sentia a eletricidade ou fosse lá o que fosse que se
desprendia dela. Colocou as duas tortas sobre o balcão. Foi só quando se
voltou para sair que percebeu o silêncio reinante.
O Sr. Pritchard, o velho de pescoço torto e a caixeiro-viajante, Horton,
estavam fascinados. Seus olhos subiam pela loira, exploravam todo o seu
corpo e desciam novamente. A Srta. Pritchard e sua mãe olhavam com o mais
profundo interesse para o mostruário de doces, no fim do balcão. Alice não
estava e Norma, pastada bem na frente da loira, limpava o balcão com um
pano de pratos, de olhos arregalados.
- Quer um pãozinho salgado? - perguntou ela.
Espinhudo parou onde estava, a meio caminho da porta. Queria ouvir o
tom da voz da loira.
- Sim, creio que sim - disse a loira. O tom profundo e rouco provocou
um espasmo na boca do estomago de Espinhudo. Ele saiu e apanhou depressa
mais duas tortas.
- Vamos logo com isso - disse Juan. - Você poderá olhar para ela daqui
até San Juan, a menos que prefira dirigir.
Espinhudo começou a levar tortas para dentro. Levou dezesseis.
Restavam trinta e duas na caixa. Juan ergueu-se e deixou a tampa cair.
Quando Espinhudo voltou, os dois carregaram a caixa para o compartimento
de bagagens do "Querida", o velho ônibus. Agora estava tudo pronto. Juan
estava pronto para partir. Deu uns passos para trás e examinou o ônibus. Não
se podia compará-lo a um Greyhound, claro, mas era mais belo que muitos
outros. Em torno das janelas, uma linha de ferrugem começava a aparecer sob
a pintura de alumínio. Tinha de retocar aquilo. E as calotas também estavam
pedindo uma boa mão de tinto.
- Vamos tocando - disse ele a Espinhudo. - Tranque as portas da
garagem. Entre os bancos, bem debaixo das braçadeiras de mangueira de
radiador, você encontra o cartaz de pendurar na porta. Agora, ande logo, se
ainda quer trocar de roupa.
Espinhudo partiu como um raio para a garagem. Juan endireitou-se,
esticou os braços para desentorpecê-los e tocou para o restaurante.
A perna direita do Sr. Pritchard estava cruzada sobre a esquerda e os
seus dedos daquele pé, dentro do sapato, eram sacudidos por pequenas
convulsões. Tinha observado o rosto da loira, no momento em que ela entrara,
e agora era possuído de um agradável sentimento de excitação. Mas também
estava intrigado. Conhecia aquela pequena, de algum lugar. Talvez
trabalhasse numa de suas fábricas, talvez fosse uma secretária, poderia ser
funcionária no escritório de um amigo, quem sabe? Mas já a vira antes. Disso
estava certo. Convencera-se de que jamais esquecia uma cara, quando, na
verdade, raramente conseguia ligar caras a nomes. Isso acontecia porque ele
jamais estudava atentamente o rosto de qualquer pessoa, a menos que se
tratasse de alguém com quem pretendia fechar um negócio. Por outro lado,
estava intrigado com o leve sentimento de culpa que lhe era inspirado pela
lembrança do rosto da pequena. Onde poderia tê-la visto?
A Sra. Pritchard observava disfarçadamente as pulsações do pé de seu
esposo. Ernest Horton observava abertamente as pernas da loira. Norma não
escondia sua apreciação. Nesse ponto, Norma era como Loraine. Não amava
ninguém - isto é, só uma pessoa - de modo que não tinha nada a perder, nada
que os outros lhe pudessem tomar. E a pequena era boazinha. Falava
gentilmente, tinha compostura. Ela também simpatizara, logo com Norma,
sentindo que a mocinha a apreciava.
Pouco antes da chegada do ônibus da Greyhound, Alice dissera a ela:
"Tome conta do balcão, sim, Norma? Volto num momento." Então, a chegada
do ônibus, a loira e a máquina de café tinham absorvido a atenção de Norma.
Passado aquele primeiro momento de agitação, ela lembrou do que acontecera
e ao lembrar-se ficou fria por dentro, sentindo uma contração no estomago.
Sabia muito bem o que podia estar acontecendo agora, naquele momento. Era
como se pudesse ver. Sabia, e sabendo começou logo a imaginar o que deveria
fazer, pensando com raiva. Aquele macinho de dinheiro, em notas miúdas.
Daria para que ela se sustentasse muito bem, até encontrar um emprego. E
por que não começar a procurar agora mesmo? Tinha de começar, mais cedo
ou mais tarde. Correu a porta do armário embutido sob o balcão e recolheu as
tortas, deixando expostas somente uma de cada variedade. Alinhou sobre o
balcão uma de amoras, outra de creme de limão, outra de passas e outra de
creme de caramelo, e o cheiro das tortas fez com que se sentisse ainda mais
enjoada. Ainda não estava bem certa do que deveria fazer.
Juan entrou pela porta da frente e pregou os olhos na nuca da loira.
- Pode tomar conta do balcão, por um momento, Sr. Chicoy? - pediu
Norma.
- Onde está Alice?
- Não sei - respondeu Norma. Podia até mesmo ver Alice, sabia
perfeitamente o que ela estava fazendo naquele momento. A vista de Alice não
era grande coisa. Devia estar junto à janela, erguendo a carta nas mãos. Sem
grande interesse pela coisa. Demonstrando apenas uma curiosidade casual,
vaga. Devia estar com a cabeça meio inclinada, para aproveitar bem a luz da
janela, e seu cabelo estaria caindo sobre os olhos, ela estaria soprando os
cabelos e seus dedos estariam acompanhando as linhas escritas. Norma
sentiu um calafrio. Viu-se invadindo o quarto, bruscamente. Viu-se
arrancando a carta das mãos de Alice, e viu os dedos dela no ar, vazios.
Chegou a sentir suas unhas afundando na cara de Alice, dilacerando seu
rosto, procurando seus olhos, aqueles olhos horríveis, sempre melados e
empapuçados. Alice cairia para trás e ela cairia com os joelhos sobre aquele
estomago enorme e flácido, meteria de novo as unhas no rosto de Alice e o
sangue iria escorrer por entre os seus dedos.
Olhando para Norma, Juan perguntou:
- Que houve com você? Está enjoada?
- Sim - respondeu ela.
- Pois vá para dentro, antes de começar a vomitar aqui.
Norma contornou o balcão e abriu a porta do dormitório,
silenciosamente. A porta de seu quartinho estava quase fechada. Fechou a
porta do restaurante com cuidado e marchou com decisão para a frente. Agora
sentia frio e estava toda arrepiada. Fria como gelo. Escancarou a porta do
quartinho. E estava acontecendo exatamente o que tinha imaginado - Alice, ao
lado da janela, soprando o cabelo que lhe caía sobre o rosto, com a cabeça
meio inclinada para o lado e a carta a Clark Gable enviesada sob os olhos.
Alice virou a cabeça para soprar o cabelo e deu com Norma, imóvel na
porta. Alice ficou de boca aberta, os olhos cheios de assombro. Fez um esforço,
mas não podia modificar aquela expressão. Norma deu um passo dentro do
quarto. Apertava os dentes com tanta força que a linha de seus maxilares
surgia, bem marcada. Estúpidamente, Alice estendeu-lhe a carta. Norma
apanhou a carta, dobrou-a cuidadosamente e enfiou-a no centro do porta--
seios. Depois foi até a cômoda. Abaixou-se e retirou sua mala de baixo do
móvel, Tirou o alfinete do vestido, tirou a chavezinha do alfinete e destrancou
a mala. Começou a arrumar suas coisas, com movimentos rápidos e
deliberados. Esvaziou as gavetas da cômoda dentro da mala, comprimindo
com o punho fechado as peças soltas. Do armário tirou seus três vestidos, o
casaco com a gola de pele de coelho, atirou o casaco sobre a cama, enrolou os
três vestidos nos cabides e jogou-os na mala também.
Alice estava estarrecida. Observava Norma, virando a cabeça para um
lado e para o outro, acompanhando suas idas e vindas. No cérebro de Norma
ecoava um mudo grito de triunfo. Estava por cima. Depois de ter vivido por
baixo durante toda sua vida, estava por cima e ainda assim sabia manter a
boca fechada. Era uma dessas coisas que fazem com que a gente se sinta bem.
Não tinha dito uma só palavra e não diria uma só palavra. Jogou dois pares de
sapatos na mala, baixou a tramela do fecho e trancou-a com a chavezinha.
- Então você vai embora? - perguntou Alice.
Norma não respondeu. Não queria estragar sua vitória. Nada poderia
forçá-la a falar naquele momento.
- Não fiz por mal - disse Alice.
Norma nem ergueu os olhos para ela.
- É melhor você não dizer nada, ou me paga - prometeu Alice, sem
grande segurança. Ainda assim, Norma não falou. Foi até a cama e vestiu o
casaco preto, com gola de coelho. Depois passou a mão pela alça da mala e
saiu do quarto. Sua respiração sibilava nas narinas. Abriu a porta do
restaurante, seguiu diretamente para a caixa registradora, atrás do balcão, e
apertou o botão troco. Tirou dez dólares da gaveta numa nota de cinco, quatro
de um dólar, uma moeda de cinqüenta cents e duas de vinte e cinco. Meteu o
dinheiro no bolso esquerdo de seu casaco preto. Sua boca fraca estava
firmemente fechada, numa linha fina e dura.
- Mas, o que foi que houve? - perguntou Juan.
- Vou para San Juan com vocês - respondeu ela.
- Você tem de dar uma mãozinha a Alice - lembrou Juan. - Ela não pode
ficar sozinha no restaurante.
- Estou indo embora - disse Norma. Dando volta ao balcão, notou que a
loira a observava. Carregando a mala, Norma saiu do restaurante, foi até o
ônibus e sentou-se num lugar dos fundos. Ao lado, na passagem, colocou a
mala. Ficou esperando no ônibus, empertigada sobre o assento.
Juan observou-a, deixando o restaurante e embarcando no ônibus. Deu
de ombros.
- Afinal, o que se pode fazer? - perguntou em voz alta, falando sozinho.
Ernest Horton estava deliciado. Ele odiava Alice Chicoy. Dirigindo-se a
Juan, perguntou:
- A que horas partimos?
- Dez e meia - respondeu Juan - agora são dez e dez. Voltando-se para
os Pritchard, ele esclareceu: - Bem, agora tenho de ir trocar de roupa. Se
alguém quiser café ou alguma coisa para comer, é só dar volta ao balcão e
servir-se.
Passou para o dormitório. Puxou para os lados as alças do macacão de
zuarte e deixou as calças folgadas escorregarem sobre os sapatos. Suas cuecas
eram brancas, riscadinhas de azul. Tirou pela cabeça a camisa de cambraia
azul, sem desabotoá-la, descalçou os sapatos com dois repelões e acabou de
tirar as calças, deixando tudo numa só pilha, no chão do quarto. Seu corpo
era rijo e escuro, bronzeado não pelo sol mas pelos seus ancestrais morenos.
Cruzando o quarto, seguiu para o banheiro e bateu na porta. Alice puxou a
válvula de descarga da privada e veio abrir. Estivera lavando o rosto
novamente e tinha agora uma mecha de cabelo molhado colada ao rosto.
Sua boca estava amargurada, seus olhos inchados e vermelhos.
- Mas o que há? - perguntou Juan. - Você está mesmo impossível hoje,
não é?
- Estou com dor de dentes - respondeu Alice. - Nem sei bem o que faço.
A dor está me deixando louca.
- Que foi que houve com a Norma?
- Deixe, deixe ela ir embora - disse Alice. – Eu sabia que mais cedo ou
mais tarde ela seria apanhada com a mão na massa.
- Bem, que foi que ela fez?
- Estava treinando aqueles cinco dedinhos dela. Mão leve.
- Que foi que ela roubou?
- O que eu esperava que quisesse roubar. Lembra aquele vidro de
Bellogdia que você me deu no Natal? Bem, dei por falta do vidro, fui procurar
na mala dela e lá estava ele. Ela entrou logo depois, viu que eu descobrira
tudo, ficou queimada e eu disse a ela que podia ir embora.
Os olhos de Juan estavam velados. Sabia que ela estava mentindo, mas
não se interessava muito pelo que realmente acontecera. Não tinha o menor
interesse por brigas de mulher. Entrou na banheira e correu a cortina do
chuveiro.
- Você está com um humor de cão, desde que se levantou - disse ele. -
Que há com você, afinal?
- Bem, estou no meu período - disse Alice. - E ainda por cima com dor
de dente.
Juan sabia que a história do período era mentira. Quanto à dor de
dente, apenas suspeitava de que fosse mentira também.
- Pois então tome um bom gole de gim, assim que estiver sozinha -
sugeriu ele. - Fará bem para as duas coisas.
Alice ficou contente. Era bom que a sugestão partisse dele mesmo.
- Você vai ter de tomar conta de tudo - prosseguiu ele, por trás da
cortina. - Espinhudo vai conosco.
Imediatamente, Alice ficou excitada. Ficaria só, teria o dia inteiro para
fazer o que bem entendesse. Mas não queria que Juan soubesse que estava
satisfeita.
- O Espinhudo também vai? Por quê?
- Ele quer comprar umas coisas em San Juan. Olhe aqui, por que você
não aproveita e vai também? Podemos fechar a casa e você vai ao dentista em
San Juan.
- Não - respondeu Alice - acho que não. Vou ao dentista em San Isidro,
amanhã ou depois. É melhor não fechar o restaurante no meio da semana.
- OK., o dente é seu - disse Juan, abrindo a água do chuveiro. Depois
meteu a cabeça para fora, pela fresta das cortinas de plástico. - Agora vá para
o restaurante e veja se os passageiros querem mais alguma coisa.
Quando Alice entrou no restaurante, Ernest Horton estava do lado da
loira.
- Bem, vamos tomar um bom café - disse ele. E para a loira: - Você não
prefere uma coca?
- Não. Café. Não quero engordar.
Ernest já fizera algum progresso. Perguntara o nome dela e a loira tinha
dito que se chamava Camille Oaks. Não era verdade, é claro. Tinha sido uma
rápida combinação inspirada por um anúncio dos cigarros Camel, pregado na
parede, por outro anúncio que reproduzia acima do balcão uma loira de seios
enormes e pela copa de um carvalho, que ela avistara pela janela. Mas agora
era Camille Oaks, pelo menos até o fim daquela viagem.
- Ouvi esse nome, recentemente - disse Ernest.
Gentilmente, ele passou-lhe o açucareiro.
O pé do Sr. Pritchard continuava pulsando no ar e a Sra. Pritchard
estava com os olhos fitos nele. Sabia que o Sr. Pritchard estava ficando
irritado com alguma coisa, mas não sabia por quê. Não tinha experiência com
situações desse tipo. Suas amigas não pertenciam ao tipo que faz com que o
pé de um homem vibre assim. E ela desconhecia completamente tudo quanto
fazia o Sr. Pritchard quando não estava em sua companhia.Afinal, ele
descruzou as pernas, levantou-se e foi até o balcão.
- Você está pensando no caso Oakes, aquele crime de morte - disse ele a
Ernest. - Estou certa de que esta moça não foi assassinada, nem vice-versa -
prosseguiu, com uma risadinha.
- Um pouco mais de café - pediu a Alice, com veludo na voz.
Sua filha, lá da mesa, voltou-se um pouco para observá-lo melhor.
Havia na voz do Sr. Pritchard um tom que jamais ouvira. E um tom que
implicava num pouquinho de grandeza. Ele estava abrindo deliberadamente os
seus ases e emprestando uma formalidade artificial às suas palavras. Aquilo
tudo chocava sua filha. Ela olhou também para a pequena e, subitamente,
compreendeu tudo. O Sr. Pritchard estava reagindo à presença de Camille
Oaks. Estava agora desempenhando um papel - um papel paternal, bondoso.
E aquilo a inquietava.
- Tenho a impressão de que a conheço de algum lugar - disse o Sr.
Pritchard a Camille. - Seria possível?
Mentalmente, Mildred parafraseou o pai. "Não nos conhecemos de
algum lugar?"
Camille examinou o rosto do Sr. Pritchard e depois seus olhos desceram
para o pequeno distintivo de associação que ele tinha na botoeira. Sabia onde
e em que circunstâncias ele a tinha visto. Quando avançava nua por cima das
longas mesas, para sentar-se na imensa taça de vinho, tomava as maiores
precauções a fim de não olhar diretamente para as caras dos convivas. Havia
alguma coisa que a amedrontava naqueles olhos esbugalhados e úmidos, nas
bocas que sorriam sorrisos que nunca se completavam. Tinha a impressão de
que, se os encarasse, um deles poderia saltar sobre ela. Assim, para ela, os
convivas jamais passavam de manchas vagamente rosadas, sobre centenas de
colarinhos engomados e gravatas-borboleta negras. Nos melhores banquetes
de homens de negócios o uso de smoking era obrigatório
- Já esteve no Meio-Oeste? - insistiu o Sr. Pritchard.
- Trabalhei em Chicago.
- Onde? - perguntou o Sr. Pritchard. - Estou certo de que a conheço.
- Sou enfermeira odontológica - disse Camille.
Os olhos do Sr. Pritchard brilharam por detrás das lentes
escantilhadas.
- Ah, então já sei, sou capaz de apostar que trabalha para o Dr. Horace
Liebholtz. É o meu dentista.
- Não - disse ela - nunca trabalhei com ele. Meu último emprego foi com
o Dr. T. S. Chesterfield. - Ela retirara o nome de outro cartaz de anúncio de
cigarros e agora lamentava a repetição da manobra. Só esperava que ele não
erguesse os olhos para o grande cartaz que estava na frente de seu nariz:
"Chesterfield - Eles Satisfazem.”
O Sr. Pritchard observou alegremente, para desgosto de sua filha:
- Bem, eu lembrarei de onde a conheço, mais cedo ou mais tarde.
Nunca me esqueço de um rosto.
A Sra. Pritchard trocara um olhar com Mildred e notara o desgosto
refletido em sua expressão. Depois observou novamente o marido. Ele estava
agindo de forma estranha.
- Elliott - pediu ela - quer nos trazer mais um pouco de café?
O Sr. Pritchard voltou à realidade, como quem é despertado
bruscamente.
- Oh, sim... pois não - disse ele, em seu tom de voz normal. Mas estava
novamente irritado.
A porta de fora do restaurante abriu e fechou, estalando no batente.
Espinhudo Carson entrou, mas um Espinhudo diferente, transformado. Seu
rosto estava coberto por uma espessa camada de talco, numa vã tentativa de
ocultar as erupções, pois o talco apenas transformara o que era rubro em
purpúreo. Seu cabelo estava esticado para trás e pesado de brilhantina. Usava
uma camisa de colarinho estreitíssimo, gravata verde, com laço minúsculo, e
um prendedor de colarinho dourado. Espinhudo parecia meio sufocado, tão
estreito era o seu colarinho. A camisa e a gravata subiam em conjunto,
quando ele enchia o peito de ar. Seu terno era castanho escuro, cor de
chocolate, de um tecido grosso e eriçado de pêlos, e nos lados de suas calças
havia marcas quase imperceptíveis de molas de cama. Seus sapatos eram de
duas cores, branco e marrom e suas meias de lã estampadas em losangos de
cor, vermelhos e verdes.
Alice fitou-o durante um momento, assombrada.
- Nossa, vejam só o que apareceu agora!
Espinhudo odiou-a mais ainda. Sentou-se no tamborete que o Sr.
Pritchard acabara de abandonar, respondendo ao chamado de sua esposa.
- Gostaria de provar uma fatia dessa torta fresca de amoras - disse ele.
Depois, voltando-se nervosamente para Camille, ele sugeriu com a voz meio
estrangulada: - A Srta. deveria provar um pedacinho dessa torta.
Camille olhou para ele e seus olhos se encheram de ternura. Conhecia
bem os homens, sabia compreender um homem em dificuldades.
- Não, obrigada - respondeu ela, sorrindo gentilmente. - Já tomei café
em San Isidro.
- É por minha conta - explicou Espinhudo, cada vez mais embaraçado.
- Não, muito obrigada. Agora eu não poderia comer mais nada.
- Bem, ele pode - disse Alice. - Ele é capaz de comer de cabeça para
baixo, sobre um barril de cerveja, no domingo de Ramos. - Tirando o protetor
de plástico que cobria a torta, ela ergueu a faca para cortar uma fatia.
- Dupla, por favor - pediu Espinhudo.
- Pelo visto, esta semana você não vai receber um tostão - observou
Alice, cruelmente. - Você comeu em doces todo seu salário.
Espinhudo piscou, constrangido. Cristo, como ele odiava Alice! Ela
estava examinando a loira. Percebera tudo. Todos os homens presentes
estavam atentos, sem perder um único movimento da loira. Uma dessas coisas
que deixavam Alice nervosa. Só ficaria sabendo, ao certo, quando Juan
voltasse ao restaurante. Ainda havia alguns momentos ela desejara que o
ônibus já estivesse a caminho, para tomar sossegadamente uma boa
carraspana. Mas agora, estava ficando cada vez mais nervosa.
- Se tiver uma oportunidade de exibir meu mostruário - dizia Ernest
Horton à loira - poderei mostrar-lhe umas novidades que a interessarão. Tudo
coisa nova. Você gostará, tenho certeza.
- Há quanto tempo você foi licenciado do Exército? - perguntou Camille.
- Cinco meses - respondeu ele.
Ela tinha os olhos em sua lapela, na pequena barra de esmalte azul,
com cinco estrelinhas brancas.
- Essa é bonita - disse ela. - E a condecoração mais alta que eles dão,
não é verdade?
- Foi o que me disseram - respondeu ele. - Mas na verdade, aqui para
nós, eu sou de fritar bolinhos. - Os dois riram juntos.
- E foi o próprio chefão que lhe entregou a condecoração?
- Foi ele mesmo - respondeu Ernest.
O Sr. Pritchard começava a inclinar-se para a frente, na direção da
loira. Estava irritado, por não poder acompanhar a prosa.
Espinhudo repetiu o convite.
- No duro, acho que você deveria provar um pedacinho desta torta de
amoras.
- Não posso, realmente - retrucou Camille.
- Se encontrar a sua mosquinha do costume na fatia - ameaçou Alice -
eu lhe jogo o resto da torta na cara.
Camille conhecia os sintomas. A mulherzinha preparava-se ativamente
para odiá-la. Inquieta, procurou com a vista as outras duas mulheres. A Sra.
Pritchard não a aborreceria. Contudo, não estava bem certa da jovem, que se
esforçava por ver sem os óculos. Camille esperava que a jovem não se lançasse
contra ela. Um entrevero com aquela pequena seria duro. Um mudo apelo
tomou forma em sua mente: "Oh, Loraine, pelo amor de Deus, ponha na rua
esse cretino, vamos voltar a viver juntas no apartamento." Estava esmagada
por um sentimento de solidão e fraqueza. Imaginou o que seria a vida da
esposa do Sr. Pritchard. Ele tinha alguma coisa do homem que ela tinha em
mente. Ser sua mulher não deveria ser tão desagradável nem difícil. A mulher
dele não parecia especialmente desgostosa com sua situação.
Bernice Pritchard estava no escuro. Ela não odiava Camille. Vagamente,
tinha idéia de que uma mudança se registrara na atmosfera, mas não sabia
precisamente o que tinha acontecido.
- Creio que é melhor juntarmos nossas coisas - disse ela, subitamente
inspirada, à filha. E fez a sugestão embora as suas coisas já estivessem mais
que arrumadas.
Nesse momento, Juan saiu do dormitório. Vinha de calças de brim
limpas e bem passadas, camisa azul limpa e uma jaqueta de couro. Penteara
para trás a cabeleira negra e seu rosto escanhoado reluzia.
- Vamos embora, pessoal? - disse ele.
Alice observou-o atentamente, quando se aproximou do balcão. Ele nem
olhou para Camille. Alice começou a ficar alarmada. Ele costumava olhar para
todas as mulheres. Se não estava olhando, alguma coisa havia. Alice estava
cada vez mais nervosa.
O Sr. Van Brunt, o velho cavalheiro de pescoço duro, veio lá de fora e
entreabriu a porta do restaurante.
- Parece que vem aí mais chuva - anunciou.
Juan voltou-se bruscamente para o velho.
- Bem, você segue no próximo Greyhaund que passar, volta para casa.
- Mudei de idéia - retrucou o velho. - Vou com vocês nesta viagem.
Quero ver aquela ponte. Mas vai chover mais, sou capaz de apostar.
- Pensei que tivesse desistido de ir.
- Posso mudar de idéia, não posso? Por que não telefona de novo, para
saber como está a ponte?
- O camarada me disse que ela está de pé.
- Isso foi há mais de meia hora - insistiu o velho de pescoço duro. - Você
não nasceu aqui, como eu. Você não faz idéia da rapidez com que o San Isidro
pode subir. Já vi esse rio subir mais de trinta centímetros numa hora, quando
cai um bom temporal como o desta manhã. Melhor telefonar de novo.
Juan estava exasperado.
- Olhe aqui - disse ele - quem dirige o ônibus sou eu, e não comecei
ontem. Sabe do que mais? Ou bem vem conosco ou bem volta para San Isidro,
mas quem vai dirigir o ônibus sou eu.
Van Brunt voltou o rosto para Juan e encarou-o friamente.
- Ainda não decidi se vou com vocês ou não. Ainda não decidi se devo
ou não escrever uma carta à comissão de transportes públicos do município.
Você tem um alvará que pode ser cassado. Não se esqueça disso.
- Vamos, pessoal - respondeu Juan.
Alice procurava observá-lo secretamente e viu que ele não olhava para
Camille, nem se oferecia para carregar sua mala. A coisa ia mal. Alice não
estava gostando do jeito dele. Aquilo não era coisa que ele deixasse de fazer.
Camille apanhou sua mala e saiu do restaurante, andando depressa.
Não queria sentar-se ao lado de nenhum daqueles homens. Estava cansada.
Rapidamente, pesara todas as alternativas que se lhe ofereciam. Mildred
Pritchard não era casada, mas já não gostava dela. Contudo, a garçonete que
se despedira já estava sentada no ônibus, esperando. Camille apressou o
passo e entrou no ônibus. Ernest Horton e o Sr. Pritchard também apertaram
o passo para alcançá-la a tempo, mas quando chegaram à porta do "Querida"
Camille já tinha entrado. Norma permanecia em seu lugar, muito empertigada.
Seus olhos pareciam hostis e seu nariz estava muito brilhante e vermelho.
Norma estava aterrorizada pelo que tinha feito.
- Posso sentar-me ao seu lado, querida? - perguntou Camille.
Norma voltou-se sem vontade, examinando a pequena atentamente.
- Há muitos lugares vagos.
- Você não se incômoda, meu bem? Depois eu explico por quê.
- Faça o que mais lhe convier - respondeu Norma, ainda empertigada.
Ela notou que tudo quanto a pequena usava era fino e caro. Aquilo não fazia
sentido. Gente assim não gosta de sentar-se ao lado de uma Norma qualquer.
Mas devia haver uma razão. Uma explicação misteriosa, talvez. Norma tinha
visto muitos fitas e tinha boa memória. Há muitas fitas excelentes que
começam com um incidentezinho banal como aquele. Sem muita vontade
afastou-se mais um pouco para o lado da janela, para dar mais espaço à
outra.
- Para onde vai? - perguntou Norma.
- L. A.
- Não diga, também vou para lá! Você mora em L.A.?
- Passo temporadas - respondeu Camille.
Notou que os homens tinham recuado ao ver que ela se sentara ao lado
de Norma. Pareciam meio desalentados. Afinal, não haveria mais competição
para sentar ao lado da loira. Os homens, agora, estavam atrás do ônibus,
ajeitando suas coisas no compartimento de bagagens,- Juan parou na porta
do restaurante, enquanto Alice o fitava do lado de dentro, através da tela de
arame.
- Calma - disse ele - calma, hoje você está mesmo impossível. Veja se
limpa tudo antes de voltarmos.
O rosto de Alice endureceu. Uma resposta chegou à ponta de sua
língua. Mas antes que ela falasse, Juan arrematou o que começara a dizer:
- Ou um belo dia eu não volto para casa.
Alice parou de respirar.
- Hoje não me sinto bem - gemeu.
- Está certo, nesse caso é melhor você começar a se sentir bem, e sem
fazer muita hora. Ninguém gosta de gente que vive doente. Ninguém. Preste
atenção no que estou dizendo. - Seus olhos não a viam, estavam olhando
através dela, por cima dela, pelos lados dela e Alice foi tomada de pânico.
Juan voltou-lhe as costas e seguiu para o ônibus.
Alice apoiou os cotovelos na travessa que corria pelo meio da porta,
sustentando a tela de arame. Lágrimas grandes e mornas encheram seus
olhos.
- Sou gorda - disse, baixinho - e sou velha. Oh, Jesus, como eu sou
velha! - As lágrimas corriam agora pelo seu nariz. Fungando, ela continuou a
falar sozinha. - Você pode conquistar as mocinhas, mas e eu, e eu, que é que
eu posso fazer? Nada. Uma velha, um caco de gente. - Fungou mais uma vez,
com vontade, por trás da tela de arame.
O Sr. Pritchard gostaria de sentar-se atrás da loira para observá-la, mas
a Sra. Pritchard sentara-se num banco da frente e ele não teve remédio senão
tomar lugar ao seu lado. Mildred sentou-se sozinha, no banco que ficava do
lado, oposto. Espinhudo ocupou exatamente o lugar que o Sr. Pritchard
desejava ocupar e Ernest Horton sentou-se ao seu lado.
Juan notou, com irritação, que o velho Van Brunt tinha escolhido o
lugar que ficava exatamente atrás do assento do motorista. Juan estava
nervoso. Não tinha dormido bem e a manhã fora mais que agitada. Depois de
ajeitar bem as malas no bagageiro da traseira, deixou cair sobre elas uma
ponta do encerado e trancou o compartimento. Acenou para Alice, que
permanecia encostada à porta de tela. Pelo jeito ele sabia que Alice estava
chorando, e era bem feito. Ela tinha daquelas coisas. Não sabia por que ainda
vivia com ela. Preguiça, só de preguiça, concluiu. Não queria passar pelo
conflito emocional que experimentaria ao abandoná-la. Apesar de tudo, ele se
preocuparia com ela e ia ser o diabo.
Depois teria de arrumar logo uma outra mulher e isso demandaria
muita conversa, discussão, persuasão. Dormir com uma pequena é uma coisa,
mas ele iria precisar de outra mulher e isso é coisa muito diferente. Quando a
gente se acostuma com uma, tudo fica mais fácil. Além disso, Alice era a única
mulher capaz de fazer feijão como deve ser feito que ele conhecera desde que
havia deixado o México. Coisa gozada. No México, qualquer indiazinha sabe
cozinhar devidamente os seus feijões, mas aqui não havia uma, com exceção
de Alice, capaz de fazer a coisa como deve ser feita - o caldo bem
engrossadinho, nem de menos e nem demais, para que o feijão tenha o seu
próprio sabor, e não o de um tempero ou condimento qualquer. Aqui, eles
põem tomates, pimenta, alho e sabe lá Deus mais o que no feijão, e se há coisa
que deva cozinhar por si, sem corpos estranhos, é feijão. Juan riu um pouco
de sua conclusão. - Porque ela sabe fazer feijão - disse com seus botões.
Mas havia ainda outra razão. Ela o amava. Amava realmente. Ele sabia
disso. E não se pode romper assim, sem mais nem menos, uma ligação como a
deles. É como uma estrutura com seu próprio estilo arquitetônico que não se
pode abandonar sem nela deixar um pouco da própria carne e do próprio
sangue. Assim, quando se quer permanecer inteiro, a gente fica, ainda que
ficar constitua um sacrifício. Juan não era homem de deixar-se levar por
ilusões.
Já estava quase no ônibus quando resolveu fazer meia volta.
Caminhando depressa, ele retornou à porta do restaurante.
- Trate-se bem - disse ele. Seus olhos eram só ternura. - Tome um bom gole de
uca, que o seu dente melhora. - Depois, sem esperar mais nada, voltou-se e
caminhou novamente para o ônibus. Agora tinha certeza de que ela estaria
bêbada como um gambá quando regressasse, mas talvez fosse melhor assim,
pois ela poderia queimar no álcool aquela raiva que a consumia e depois
sentir-se melhor. Se ela estivesse desacordada, ele dormiria no coma de
Norma. Não suportava o cheiro de Alice quando ela estava embriagada. Era
um cheiro ácido e amargo.
Juan ergueu os olhos para o céu. Sobre a terra, o ar ainda estava
parado, mas lá em cima soprava um vento forte e constante, trazendo legiões
de nuvens, do outro lado dos montanhas, nuvens achatadas que se
perseguiam umas às outras e que iam enchendo o céu de horizonte a
horizonte. As copas dos carvalhos, ainda molhadas, gotejavam água da chuva
da manhã, e sobre as folhas dos gerânios luziam pingos d"água isolados. Na
terra empapada reinava uma intensa e silenciosa atividade. Embora doesse ter
de dar o braço a torcer ao velho Van Brunt, Juan era forçado a reconhecer que
dentro em breve iria chover de novo, e bastante. Galgou os degraus do ônibus.
Van Brunt nem esperou que ele se sentasse atrás do volante para abrir fogo.
- Sabe que vento é esse que está soprando? O sudoeste. Sabe de onde
vem essas nuvens? Do sudoeste. Sabe de onde vem as nossas chuvas? -
perguntou o velho, triunfante. - Do sudoeste.
- OK., afinal todos nós temos de morrer, mais cedo ou mais tarde -
disse Juan. - Alguns de nós de maneira horrível. Você pode morrer esmagado
por um trator, por exemplo. Já viu um homem esmagado por trator?
- De onde tirou essa idéia? - perguntou o velho.
- Deixe chover, que chova.
- Eu não tenho trator - explicou Van Brunt. - Tenho quatro parelhas
dos melhores cavalos de tiro deste Estado. De onde tirou essa idéia de trator?
Juan acionou o arranco. Ele produziu um barulho rascante, de peças
enferrujadas, mas quase imediatamente o motor do ônibus pegou, rugindo
satisfatòriamente. Parecia até um motor novo. Juan voltou-se para o fundo do
ônibus.
- Kit - ordenou - fique atento ao barulho do diferencial.
- OK. - respondeu Espinhudo, satisfeito com a missão que Juan lhe
atribuía.
Juan acenou para Alice e manobrou a alavanca que fechava a porta.
Não podia ver o que ela estava fazendo, do outro lado da tela de arame. Mos
sabia que esperaria que eles partissem para só então abrir a garrafa. Só
desejava que Alice não fosse arrumar complicações.
Passando pela frente do restaurante, Juan fez uma curva para a direita
e tomou a estrada asfaltada que leva a San Juan de La Cruz.
A estrada não era larga, mas bem conservada e tinha um arco bem
pronunciado, o que evitava que ficasse alagada mesmo depois de uma
tempestade. O sol ainda batia pontos isolados do vale e das colinas e aqui e
ali, como cercas de propriedades, as sombras das nuvens cortavam os
campos. Tanto as manchas de sol quanto os pontos mais escuros pareciam
sombrios, ameaçadores e tristes.
O "Querida" ia saltando pela estrada a sessenta por hora. Era um bom e
velho ônibus e o reparado diferencial parecia funcionar perfeitamente.
- Nunca gostei de tratores - disse Van Brunt.
- Nem eu - concordou Juan. Subitamente, sentia-se bem outra vez.
Van Brunt não era homem capaz de manter a boca fechada. Era curioso
e Juan espicaçara sua curiosidade. Voltando com dificuldade o seu pescoço
duro para o lado, ele perguntou:
- Olhe aqui, você não é tirador de sorte nem nada assim, não é?
- Não - respondeu Juan.
- Ah, bom, porque eu não acredito nessas coisas.
- Nem eu.
- Eu nunca compraria um trator.
Juan ia dizer ao velho: "Pois eu tive um irmão que morreu pisoteado por
um cavalo", mas depois pensou: "Ora, esse camarada é um chato. Só queria
saber do que é que ele está com medo."

CAPÍTULO IX

A estrada para San Juan de La Cruz era coberta de asfalto. Na década


de 1920, centenas de quilômetros de estradas de concreto haviam sido
construídas na Califórnia, e era costume dizer: "Pois é, essas são feitas para
sempre. Durarão tanto quanto as estradas construídas pelos romanos, mais
ainda, pois não há mato que possa varar o concreto." - Mas quem falava assim
não sabia o que dizia. Os pesados caminhões e o tráfego incessante de
automóveis castigavam dia e noite o concreto, de forma que, com o correr dó
tempo, ele foi morrendo - começando a rachar. Uma pequena seção cedia,
uma fenda avançava pelo leito, um pouco de gelo alargava a fenda durante o
inverno e o resistente concreto foi deixando de resistir à pressão das rodas de
borracha e começou a rebentar.
Então as turmas de conservação tentaram reparar os estragos
derramando piche nos fendas, com a finalidade de impedir a entrada da água,
mas está claro que isso não deu resultado e o remédio foi mesmo recobrir as
estradas de concreto com uma boa camada de pedregulho - asfalto. A nova
superfície sobreviveu, pois não oferecia uma face inflexível às pesadas rodas
de borracha. Cedia um pouco, dilatava-se um pouquinho. No verão amolecia -
no inverno endurecia. E, gradualmente, todas as estradas de concreto foram
sendo recapadas com asfalto, parecendo muito negras de perto e prateadas à
distancia.
A estrada de San Juan corria por uma longa extensão através do campo
plano, no fundo do vale, e os campos não eram cercados, pois ninguém criava
gado na parte baixa do vale. A terra era boa demais para que a usassem como
pastagem. Os campos eram abertos para a estrada. Terminavam em valetas,
que corriam paralelas ao asfalto. Sobre as valetas, a mostarda silvestre crescia
em grandes touceiras, lutando por espaço com as moitas de rabanetes do
mato. Flores azuis e pequeninas marcavam o limite das valetas. As papoulas
naquele dia pareciam nuas, pois as pétalas soltas tinham sido arrancadas pela
chuva.
A estrada seguia em linha reta para as encostas das primeiras colinas -
colinas arredondadas, femininas, macias e sensuais como a carne. E a relva,
muito verde e fina, tinha o viço de pele nova. As colinas estavam lindas,
lavadas pela chuva, e sobre a estrada plana e reta, "Querida" corria
tranqüilamente. Seus flancos lavados e brilhantes refletiam-se na água que
ficara empoçada nas valetas. As miniaturas dançavam e batiam no pára-brisa,
as pequeninos luvas de boxe lutavam com o sapatinho de bebê. A Virgem de
Guadalupe, do alto de seu crescente parafusado no painel de instrumentos,
considerava benignamente os passageiros.
Da ação traseira não vinha qualquer ruído alarmante, só se ouvia o leve
ronco abafado do diferencial bem lubrificado. Juan recostou-se bem em seu
assento, disposto a gozar do prazer daquela viagem. Tinha um grande espelho
sobre sua cabeça, que lhe permitia observar todos os passageiros, e um outro
menor, instalado num braço de metal que se projetava pela janela à sua
esquerda e que funcionava como retrovisor lateral. A estrada estava
praticamente deserta. Apenas alguns automóveis tinham passado por eles, e
nenhum na direção de San Juan.
Inicialmente, Juan não deu muita atenção ao fato, mas depois começou
a ficar preocupado. Talvez a ponte tivesse caído. Bem, se não houvesse mais
ponte, eles voltariam para casa. Descarregaria a batelada de passageiros em
San Isidro e eles que se arrumassem por lá. Se a ponte tivesse caído, não
haveria serviço para "Querida" até que ela fosse reparada. Pelo espelho, viu
que Ernest Horton tinha aberto sua mala-mostruário e estava mostrando a
Espinhudo um aparelhinho qualquer que girava, faiscava e desaparecia. Notou
também que Norma e a loira estavam com as cabeças quase juntas,
conversando.
Juan calcou mais um pouquinho o acelerador.
Já vira que não era passível arranjar nada com a loira. Não tinha a
menor possibilidade de aproximação. E Juan era suficientemente vivido para
não sofrer por alguma coisa que estivesse fora de seu alcance. Se tivesse uma
oportunidade seria outra coisa, ele não teria a menor dúvida em empenhar-se
de corpo e alma. Sentira frio na boca do estomago ao ver a loira pela primeira
vez.
Norma só agora começava a desempertigar-se. Ao deixar o restaurante
ela fechara a cara com tanta determinação que depois fora preciso algum
tempo para que degelasse, voltando ao normal. E Camille necessitava de
Norma como uma espécie de escudo, uma vez que tinham o mesmo destino.
- Eu nunca estive em L. A., nem em Hollywood - cochichou Norma no
ouvido da companheira, para que Ernest, que vinha atrás, não ouvisse o que
dizia. - Chegando, não sei para onde ir, nem o que fazer.
- E o que pretende fazer? - perguntou Camille.
- Primeiro arrumar um emprego. Garçonete, ou coisa assim. Gostaria de
trabalhar no cinema.
Os cantos da boca de Camille subiram, num leve sorriso.
- Primeiro é melhor você procurar trabalho como garçonete, meu bem.
Esse negócio de cinema é duro.
- Você é atriz? - perguntou Norma. - Assim pelo seu jeito eu seria capaz
de jurar.
- Não - respondeu Camille. - Trabalho com dentistas. Sou enfermeira
odontológica.
- Bem, mos você mora em hotel, em quarto alugado ou numa casa?
- No momento não sei para onde ir - respondeu Camille. - Antes de ir
trabalhar em Chicago eu tinha um apartamento, com uma amiga.
Os olhos de Norma brilharam.
- Pois eu tenho umas pequenas economias - explicou ela. - Talvez
possamos morar juntas, num apartamento. Olhe, se eu arrumar logo um
emprego num restaurante, não teremos problema de comida. Isso eu sei que
posso trazer para casa. - Agora, os olhos de Norma refletiam sua ansiedade. -
Pensando bem, se nós dividirmos o aluguel, pode ser que não fique muito
pesado. E eu acho que vou fazer um bom dinheiro em gorjetas.
Camille sentiu-se possuída de ternura pela mocinha. Olhou para o seu
nariz vermelho, sua pele descorada, para os olhos pequenos e pálidos.
- Vamos ver, quando chegarmos - disse ela.
Norma inclinou-se mais um pouco para ela, murmurando:
- Sei que o seu cabelo é natural. Mas talvez você possa sugerir uma
dessas tinturas especiais para o meu. O meu parece cabelo de rato. E tal qual
cabelo de rato.
Camille não conteve uma risada.
- Você ficaria surpreendida - disse ela - se soubesse qual é a cor natural
de meu cabelo. Fique um minuto assim como está, não se mexa. - Estudou
atentamente o rosto de Norma, tentando imaginar o que poderia fazer por ela
com cold cream, pó e rimmel, talvez o cabelo pudesse ser frisado e levantado,
os olhos alargados com um pouco de sombra azul, a linha do boca corrigida
com batom. Camille não tinha ilusões no que concernia à beleza feminina.
Sem pintura, Loraine parecia um ratinho molhado, mas devidamente pintado
era mais que passável. Teria uma companheira e seria agradável reformar a
fisionomia daquela menina inspirando-lhe um pouco mais de autoconfiança.
Talvez fosse até mesmo melhor que voltar a viver com Loraine.
- Vamos pensar nisso - disse ela. - Mas agora, o melhor é apreciar a
paisagem. Belo lugar. Gostaria de viver algum tempo no campo. - Em sua
mente já começava a tomar forma, lentamente, uma antevisão do que iria
acontecer. Ela daria um jeito em Norma. Com um pouco de cuidado, Norma
lograria chamar a atenção de quem a visse. E então Norma ficaria conhecendo
um rapaz e naturalmente o convidaria a visitar o apartamento para exibi-lo à
companheira e o rapaz tentaria seduzir Camille e Norma a odiaria por isso.
Estava certa de que isso aconteceria. Era o que já tinha acontecido. Mas que
diabo! Seria agradável enquanto durasse. E talvez ela pudesse antecipar todos
os movimentos de Norma e sair do apartamento com antecedência, antes da
visita de qualquer rapaz. Sentia-se terna e amistosa.
- Pois vamos pensar nisso - repetiu.
Havia um coelho esmagado, sobre o leito da estrada. Muita gente gosta
de passar sobre coisas assim, mas Juan não gostava. Ele girou um pouco o
volante, endireitou-o de novo e a carcaça esmagada passou entre as rodas do
ônibus, intocada pelos pneus. Juan mantinha uma velocidade constante de
setenta. Os grandes ônibus de transporte rodoviário freqüentemente circulam
a noventa ou mais, mas Juan estava adiantado, tinha muito tempo. A estrada
era plana por mais uns três quilômetros, antes de começar a galgar as colinas
arredondadas. Juan retirou uma mão do volante e espreguiçou-se.
Mildred Pritchard sabia que eram postes telegráficos as manchas escuras que
iam ficando para trás. Colocou seus óculos. Observou o rosto de Juan,
refletido pelo espelho superior. De onde estava, só conseguia distinguir seu
perfil. Notou que ele erguia de vez em quando os olhos para observar a loira e
ficou amargurada, com raiva. O que acontecera naquela manhã a havia
deixado confusa. Ninguém percebera nada, está claro, a não ser Juan, talvez.
Ela ainda estava meio dolorida e com a pele sensível, após a experiência do
restaurante. Repetia e voltava a repetir mentalmente a mesma frase. Ela não o
é loira, não é enfermeira e não se chama Camille Oaks.
Repetiu e repetiu a mesma frase, muitas e muitas vezes. Finalmente,
acabou por achar graça em sua própria atitude. "Estou tentando destruí-la" -
pensou. "Estou agindo como uma idiota. Por que não admitir que estou com
ciúmes dela? Estou enciumada. Muito bem. Admitir tal fato faz com que eu
sinta menos ciúmes? Não, de forma alguma. Dou importância ao fato de meu
pai fazer papel de idiota? Não, não dou ... quando não estou com ele. Não
quero que pensem que eu sou filha dele, é isso. Não, isso também não é
verdade. Não quero ir para o México com ele. Já posso ouvir tudo quanto ele
vai dizer." Não se sentia muito bem e a trepidação do ônibus não ajudava em
nada. "Basquetebol - pensou ela - isso sim, estou precisando é treinar um
pouco." Flexionou os músculos das coxas e pensou no estudante de
engenharia de cabelo cortado à escovinha. Recordou seu caso com ele.
O Sr. Pritchard estava cansado e entediado. Ele podia ser muito
irritante quando estava entediado. Voltando-se para o lado da janela, ele disse
à mulher:
- A terra parece muito boa. A Califórnia é a maior produtora de legumes
dos Estados Unidos, você sabe.
A Sra. Pritchard já se imaginava falando, fazendo uma pequena palestra
às suas amigas. "Então fomos por uma estrada que passava por quilômetros e
quilômetros de campos muito verdes, com flores azuis e douradas. Passamos a
noite num desses lugarzinhos engraçados; onde apareceu uma loira e os
homens fizeram um papel de palhaço, inclusive Elliottt. Depois disso, brinquei
com ele durante uma semana, só para arreliá-lo". Pensou também na carta
que iria escrever"... e estou certa de que a coitadinha, embora toda lambuzada
de pintura, é uma moça boazinha. Disse que era enfermeira, mas
provavelmente é uma atriz - deve arrumar umas "pontinhas" no cinema de
quando em quando, sabe como é. Há muitas como ela em Hollywood. Trinta e
oito mil inscritas. Elas têm uma grande agência, especial. Trinta e oito mil."
Sua cabeça pendeu um pouco para a frente. Bernice estava com sono e com
fome. Só Deus sabe, pensou ela, o que mais lhes reservaria aquela viagem.
O Sr. Pritchard percebeu imediatamente que sua mulher começava a
sonhar acordada. Ele a conhecia muito bem, sabia quando ela não estava
escutando o que dizia e, geralmente, prosseguia falando mesmo assim.
Freqüentemente esclarecia seus próprios pensamentos, sobre política ou
negócios, expondo suas idéias a Bernice, quando ela não o ouvia. Tinha uma
excelente memória para números e fatos isolados. Sabia, aproximadamente,
quantas toneladas de açúcar são produzidas anualmente no vale de Salinas.
Tinha lido a estatística e retivera os dados na memória, ainda que no
momento não lhe fossem úteis. Mas sentia que convinha reter aquela
informação, aqueles dados, embora jamais tivesse posto em dúvida seu valor
ou o da necessidade de retê-la. Mas agora ele não estava interessado em
dados. Uma influência poderosa, procedente do fundo do ônibus, fazia-se
sentir sobre ele. Queria voltar-se e. olhar para a loira. Queria sentar-se noutro
lugar, de onde pudesse observá-la à vontade. Horton e Espinhudo estavam
sentados atrás dela. Mas ele não podia mudar de lugar e pregar os olhos nela,
é claro.
- Quantos anos julga que ela tem? - perguntou a Sra. Pritchard,
subitamente. A pergunta perturbou-o, pois ele estava pensando precisamente
nisso.
- Quem tem quantos anos? - perguntou ele.
- Essa moça. A mocinha loira.
- Ah, ela. Como é que eu vou saber? - A entonação de sua voz era tão
grosseira que a Sra. Pritchard ficou espantada e magoada. Ele percebeu o que
fizera e tentou logo encobrir seu erro, adotando um tom brincalhão. - As
meninas conhecem melhor as outras meninas. Você poderia calcular melhor
que eu.
- Não sei por que. Bem, com toda aquela pintura, cabelo oxigenado e
coisas assim, é difícil dizer. Não sei bem. Acho que deve ter entre uns vinte e
cinco e trinta, mais ou menos.
- Está aí uma coisa que eu não saberia dizer - observou ele. Pela janela,
viu as mansas colinas que se aproximavam. Sentia as palmas das mãos
úmidas, sentia a atração do magneto que lá do fundo do ônibus atuava sobre
ele. Queria voltar a cabeça, olhar para trás.
- Não entendo dessas coisas - disse ele. - Mas o que me chamou a
atenção foi o jovem Horton, aquele rapaz. É moço, parece que trabalha com
energia e tem boas idéias. Fui com o rapaz, assim que ele apareceu. Sabe
como é, eu sempre posso encontrar um lugar para um rapaz desses na
organização. - Agora ele falava de negócios.
Bernice também podia lançar mão de alguns assuntos, tais como
maternidade ou menstruação, para usá-los como círculos mágicos que a
isolavam do mundo e que homem algum poderia ou tentaria transpor. O
círculo mágico de seu marido era formado pelos negócios. Ela não tinha o
direito de intervir quando ele o erguia. Não tinha a menor curiosidade nem
inclinação para negócios. Eram propriedade privada de seu marido e ela a
respeitava.
- Parece ser um rapaz direito - concordou - mas a linguagem dele, e as
maneiras...
- Ora, Bernice! - exclamou ele, irritado. - No meu ramo não se ligo para
essa história de gramática ou de maneiras. O que interessa é produção. O
mundo dos negócios é o mais democrático que existe. Você vale pelo que é
capaz de fazer.
Ele estava tentando lembrar-se da forma do contorno dos lábios da
loira. Acreditava firmemente em que os mulheres de lábios grossos são
voluptuosas.
- Gostaria de bater um papinho com o rapaz antes de nos separa-
mos dele - disse o Sr. Pritchard.
Bernice sentia que ele estava inquieto.
- E por que não aproveito para conversar com ele agora? - sugeriu.
- Bem, não sei se devo. Ele está sentado com aquele rapazinho.
- Ora, tenho a certeza de que o rapaz lhe cederá o lugar, se você pedir
gentilmente. - Uma das coisas em que Bernice acreditava firmemente era que
neste mundo se pode obter qualquer coisa de qualquer pessoa, desde que se
peça gentilmente, com modos. Com ela, isso sempre dera certo. Pedia e
obtinha as coisas mais extravagantes de pessoas estranhas, simplesmente
pelo fato de saber pedir gentilmente. Ela pedia aos boys de hotel, por exemplo,
que carregassem suas malas até a estação, pois era um percurso muito curto
para que valesse a pena tomar um táxi, e depois agradecia o trabalho e dava
aos rapazes uma moedinha de dez cents.
Agora, estava tentando ajudar o marido a fazer uma coisa que ele
queria fazer. O que seria, ela não sabia muito bem. Queria voltar a escrever a
carta que tinha começado a compor mentalmente. - "Elliott interessa-se por
tudo. Ele bate longos papos com qualquer um. Creio que é por isso que ele
tem tanto êxito nos negócios. Interessa-se realmente pelas coisas. E tem muita
consideração pelos outros. Havia no ônibus um rapaz com o rosto coberto de
espinhas, sentado no lugar que ele queria, e Elliott não queria importunar o
rapaz mas eu disse a ele que fosse e que pedisse o lugar, gentilmente. Não há
quem não aprecie bons modos".
O Sr. Pritchard voltara a limpar suas unhas com a limazinha de ouro
que pendia da corrente de seu relógio.
Os olhos de Espinhudo estavam pregados na nuca de Camille. Antes,
logo que se sentara, ele explorara todas as possibilidades, para verificar se
poderia ver as pernas ou mesmo os tornozelos da loira por sob o assento. De
vez em quando olhava para a janela e via o perfil da loira refletido no vidraça,
as longas pestanas negras que se encurvavam para cima, o nariz reto e bem
empoado, as narinas ligeiramente escurecidos por nicotina e poeira de
estrada. Seu lábio superior descia quase em vertical, antes de rolar macio
sobre a grande pétala rubra da boca e Espinhudo podia até distinguir a leve
penugem que aparecia entre a boca e o nariz. Por uma razão qualquer, a
penugem o excitou terrivelmente. Quando ela voltava a cabeça para o lado,
Espinhudo tinha visão, de três quartos de seu rosto, via até uma de suas
orelhas que aparecia por entre o cabelo. Via o lóbulo arredondado e o
ligamento de cartilagem que prendia a orelha à cabeço, estreitamente. A
concha da orelha era muito fina. Subitamente, foi como se ela tivesse
percebido que ele estava olhando, pois ergueu o queixo e sacudiu a cabeça de
um lado para o outro, fazendo com que o cabelo caísse sobre os lados de seu
rosto, ocultando a orelha. Depois, tirou logo o pente da bolsa, uma vez que a
sacudidela nos cabelos deixara a descoberto as profundas cicatrizes de fórceps
em seus maxilares. Espinhudo viu então, pela primeira vez, as grandes
cicatrizes. Para ver direito, tinha de inclinar-se um pouco para a esquerda e,
ao observá-las, ele sentiu uma dor aguda no peito, quase uma punhalada. Sua
compaixão era profunda e irracional, mas não deixava também de ser sexual.
Viu-se amparando aquela cabecinha entre seus braços acariciando o pobre
rosto lacerado com seus dedos. Engoliu em seco várias vezes. Camille estava
dizendo a Norma, baixinho: - ... e há o cemitério de Wee Kirk the Heother.
Creio que é o mais belo cemitério do mundo. É preciso comprar entrada para
visitá-lo, sabe como é. Gosto muito de passear lá. É tão lindo, o órgão toca
durante quase todo o tempo e se quiser pode visitar os túmulos de muita
gente que você viu no cinema. Sempre disse que gostaria de ser enterrada lá.
- Não gosto de falar nessas coisas - disse Norma. - Dá azar.
Espinhudo batera um longo papo com Ernest Horton, sobre o Exército.
- Dizem que no Exército um camarada pode aprender muita coisa e
ainda por cima viajar bastante. Não sei. Acho que vou fazer um curso de
técnico em radar. Começo na semana que vem, por correspondência. Acho que
o radar vai ser uma coisa muito importante. Mas no Exército um camarada
pode fazer um bom curso de técnico em radar.
- Em tempo de paz eu não sei - respondeu Ernest. - Mas havendo uma
guerra, não há dúvida.
- Você foi combatente, no duro?
- Não por minha vontade, mas fui.
- E onde esteve?
- Fui ao inferno e voltei - respondeu Ernest.
- Talvez eu possa obter uma boa linha de produtos e meter os peitos
nesse negócio de vendas, como você.
- Está certo, mas não se esqueça de que está arriscado a morrer de
fome até fazer os seus contactos - disse Ernest. - Eu levei cinco anos fazendo
os meus, e, quando estava preparado para começar a ganhar dinheiro, fui
convocado. Só agora é que estou recuperando o tempo perdido. Esse negócio
não vai só de querer começar, você tem de ter vontade de trabalhar duro.
Parece que não se trabalha muito, mas isso é um engano. Se eu pudesse
recomeçar tudo de novo, acho que iria aprender um ofício qualquer, pois
assim poderia ter um lar. Deve ser muito bom ter uma esposa e um ou dois
filhinhos. - Ernest sempre dizia isso. Quando estava embriagado, chegava até
a acreditar no que dizia. Não queria lar nenhum. Gostava de viajar
constantemente, de conhecer pessoas, de ver sempre caras novas. Um lar
seria um pesadelo para ele. Em certa ocasião se casara e no dia seguinte tinha
desaparecido, abandonando a esposa amedrontada e furiosa, para jamais
voltar a vê-la nem escrever-lhe. Mas vira mais tarde o retrato dela publicado
nos jornais. Tinha sido presa por casar-se com cinco homens e ter obtido
empréstimos de ex-combatentes de guerra em nome dos cinco. Muito viva.
Uma vigarista de alto coturno. Ernest chegava quase a admirá-la. Aquele era
um bom conto do vigário, que pagava dividendos.
- Por que não volta para o colégio? - perguntou ele a Espinhudo.
- Isso de colégio é coisa para filhinhos de papai. Não quero nada com
esses mariquinhas. Sou homem, quero levar uma vida de homem.
Camille inclinara-se para Norma e estava cochichando alguma coisa em
seu ouvido. As duas deram uma gargalhada. O ônibus fez a curva da encosta e
começou a subir, deixando para trás a parte plana do vale. A estrada passava,
agora por entre barrancos cortados a pique, cuja terra era escura e porejava
água. Nas margens da estrada, onde o sol não batia, os fetos ainda estavam
curvados sobre o cascalho, pesados de água. Juan segurou o volante com as
duas mãos e ergueu ligeiramente os cotovelos, para manobrar livremente.
Durante quinze minutos teria de fazer curvas continuamente, para a direita e
para a esquerda, sem um só trecho reto onde pudesse correr um pouco.
Lançou um olhar rápido à loira, pelo retrovisor. Estava rindo, de olhos quase
fechados e escondendo a boca com a mão entreaberta, como fazem as
meninas.
O Sr. Pritchard, caminhando para o fundo do ônibus, descuidou-se e
quando o ônibus fez uma curva foi projetado para um lado. Tentou agarrar-se
no encosto de um banco, não conseguiu alcançá-lo e caiu esparramado no
colo de Camille. Sua mão direita, esticada para amortecer o impacto da queda,
afastou a saia curta e passou entre os joelhos da loira. Ela ajudou-o a
levantar-se e ajeitou de novo a saia sobre os joelhos. Um pequeno rasgo
surgira no tecido. O Sr. Pritchard estava ruborizado.
- Sinto muito - disse ele.
- Ora, não tem importância.
- Mas eu rasguei sua saia.
- Posso consertar o rasgo facilmente.
- Mas tenho a obrigação de pagar o, conserto.
- Eu mesma vou consertá-la. Isso não é nada. - Erguendo os olhos para
ele, Camille percebeu que o Sr. Pritchard pretendia prolongar ao máximo
aquela conversa. Vai acabar pedindo meu endereço, pensou, para enviar o
dinheiro do conserto.
Lá da frente a Sra. Pritchard perguntou:
- Elliott, você pretende viajar no colo da moça?
Até mesmo Juan riu com os outros. Todos riram. E, subitamente, não
eram mais estranhos que viajavam num ônibus. Uma espécie de associação
química se completara. Norma riu histericamente. Toda a tensão daquela
manhã foi descarregado em sua risada.
- Tenho de reconhecer que você sabe compreender uma coisa dessas -
disse o Sr. Pritchard. - Não vim para trás com a intenção de viajar no seu colo.
Gostaria de conversar um pouco com este cavalheiro. - Meu filho - disse ele a
Espinhudo - se não se importa, gostaria de sentar-me um pouco em seu lugar.
Preciso conversar um pouco sobre negócios com o Sr.... Bem, creio que não
ouvi bem o seu nome.
- Horton - lembrou Ernest. - Ernest Horton.
O Sr. Pritchard era exímio na aplicação de uma série de táticas, no que
concernia a entrar em contacto com pessoas. Jamais esquecia os nomes de
quem era mais rico ou mais poderoso do que ele e nunca lembrava os nomes
dos que tinha por inferiores. Descobrira que fazer com que uma pessoa repita
seu nome sempre a coloca em posição de ligeira desvantagem. Um homem
forçado a repetir seu nome sente-se sempre meio despido e desprotegido.
Camille tentava ajeitar o rasgo de sua saia e continuava a conversa com
Norma.
- Sempre quis morar numa colina - disse ela. - Adoro colinas. Gosto de
passear em colinas.
- Está muito bem, mas isso só é bom depois de a pessoa ser rica e
famosa - respondeu Norma, com firmeza. - Há muitos artistas de cinema que
na primeira oportunidade vão caçar, pescar, usar roupa velha e fumar
cachimbo.
Camille estava dando a Norma uma oportunidade de exprimir-se.
Nunca em sua vida ela se sentira tão excitado e livre. Agora poderia dizer o
que lhe viesse à cabeça. Deu uma risadinha.
- É muito bom usar roupas velhas e surradas, mas só quando se tem
um armário repleto de roupas novas, prontas para usar - afirmou. - Eu, por
exemplo, só tenho roupas velhas e fico doente só de olhar para elas. -
Examinou Camille atentamente, para ver como reagia a tal franqueza. Mas
Camille assentiu, gravemente.
- Você tem toda a razão, irmã. - Um forte laço de simpatia as estreitava.
O Sr. Pritchard fez o possível para ouvir o que diziam as duas, mas não
conseguiu. Nas valetas ao lado da estrada havia muita água descendo para o
vale. No céu, grandes nuvens escuras continuavam a tomar posição para
desfechar um novo ataque em massa.
- Vai chover - disse Van Brunt, alegremente.
Juan grunhiu.
- Pois eu tive um cunhado que morreu pisoteado por um cavalo.
- Com certeza foi culpa dele mesmo - disse o velho. - Quando um cavalo
escoiceia alguém, a culpa é sempre de quem toma o coice.
- De um jeito ou de outro, o fato é que o rapaz morreu - afirmou Juan.
O ônibus estava chegando ao topo da encosta e as curvas eram cada
vez mais fechadas.
- Nossa prosa desta manhã interessou-me muito, Sr. Horton. É um
prazer tratar com um jovem que demonstra tanta iniciativa e energia. Estou
sempre em busca de elementos que reúnam essas qualidades, para minha
organização.
- Obrigado - disse Ernest.
- Agora, por exemplo, estamos às voltas com uma série de dificuldades,
causadas pelos veteranos de guerra - prosseguiu o Sr. Pritchard. - São boa
gente, não há dúvida. E eu acho que se deve fazer o possível por eles - o
possível. Mas acontece que eles voltam deslocados para a vida civil. Voltam
meio enferrujados. Para fazer negócios e ganhar dinheiro é preciso estar
sempre alerta e bem preparado. Um homem bem preparado vale duas vezes
mais que um homem que passou algum tempo fora da jogada, por assim dizer.
- O Sr. Pritchard olhou para Ernest, contando com um aceno de aprovação
para o que acabava de dizer. Entretanto, ao dar com os olhos do rapaz
deparou com um brilho duro, satírico.
- Compreendo muito bem - disse Ernest. - Passei quatro anos no
Exército.
- Oh - exclamou o Sr. Pritchard. - Oh, sim ... mas você não está usando
o distintivo de veterano.
- Eu tenho um emprego.
O Sr. Pritchard fez um esforço para reorganizar seus pensamentos.
Tinha cometido um erro. Só queria saber o que significava aquela insígnia na
botoeira do rapaz. As cores pareciam familiares. Deveria saber o que era.
- Bem, vocês são excelentes rapazes - disse ele - e só espero que
possamos eleger um governo que vele para que nada lhes falte.
- Como depois da outra guerra? - perguntou Ernest. O rapaz falava com
ironia e o Sr. Pritchard perguntou-se se não teria feito uma idéia errônea dele.
Horton reagia com uma frieza que chegava quase à brutalidade. Adotava a
atitude de desprezo sarcástico que se observa em tantos veteranos de guerra.
Os médicos diziam que se tratava de uma questão de tempo, que acabariam
por ajustar-se às condições de vida normal. Eram deslocados.
- Sou o primeiro a defender os nossos veteranos de guerra - disse o Sr.
Pritchard. Ansiava por mudar de assunto, o mais rapidamente possível. Ernest
começava a fitá-lo com aquela sombra de sorriso que ele já vira em tantos
rostos de candidatos a emprego nas suas fábricas. - Pensei apenas em
conversar mais um pouco com você, pois gostei das suas idéias - prosseguiu
ele, hesitando. - Gostaria que me procurasse, quando eu voltar das férias. Em
nossa organização sempre haverá lugar para gente como você.
- Bem - disse Ernest - na verdade eu estou ficando cansado de viajar,
sem parar em lugar nenhum. Ultimamente, ando com vontade de assentar
nalgum lugar, de ter um lar, uma esposa, um ou dois filhos. Ir para casa à
noite e bater a porta na cara do mundo. Gostaria de ter um casal de filhos, um
menino e uma menina. Viver de hotel em hotel, sem pouso certo, não é vida.
O Sr. Pritchard assentiu, concordando plenamente.
- Tem toda razão - exclamou, profundamente aliviado. - Posso
comprovar, com minha própria experiência, que você está cem por cento certo.
Estou casado há vinte e um anos e não quero outra vida.
- Tem sorte - observou Ernest. - Sua senhora é muito simpática.
- E uma mulher perfeita. A pessoa mais dedicada deste mundo. Não sei
o que faria sem ela.
- Já fui casado - disse Ernest. - Minha mulher morreu. - Seu rosto ficou
sombrio.
- Oh, que pena - murmurou o Sr. Pritchard. - O que estou dizendo pode
parecer tolice. Mas acontece que o tempo fecha as feridas. E talvez, algum
dia... bem, eu no seu caso não perderia a esperança.
- Ah, eu não perco.
- Não gosto de interferir na vida alheia - disse o Sr. Pritchard, indo
diretamente ao ponto - mas estive pensando naquela sua idéia dos lapelas de
seda, para converter em smoking um terno escuro de passeio. Se ainda não
estiver comprometido com ninguém, pensei que talvez pudéssemos... bem,
conversar mais um pouco sobre as possibilidades comerciais do negócio.
- Bem, é como já lhe expliquei. Os donos das indústrias de roupas
esmagarão quem der qualquer passo que possa afetar os seus lucros. Assim,
não vejo solução nenhuma para o problema.
- Sim, mas esqueci o que você disse a respeito da patente.
- Tratei disso. Registrei a idéia.
- Como assim?
- Bem, redigi uma descrição, ilustrada com desenhos, meti tudo num
envelope e remeti para o meu endereço, pelo correio, como carta registrada.
Isso permite provar a data em que imaginei a coisa, pois o envelope registrado
é carimbado e selado.
- Compreendo - murmurou o Sr. Pritchard, sem saber se tal método
seria ou não considerado válido por um tribunal. Ele não sabia. Mas sempre é
melhor assegurar-se o concurso do inventor, em casos como aquele,
oferecendo-lhe uma porcentagem. Somente as grandes corporações podem
dar-se ao luxo de apoderar-se de uma invenção revolucionária, agindo
isoladamente. Os grandes têm meios para sustentar uma longa luta, se isso
for necessário. Agem assim esperando que a coisa saia por um preço muito
mais barato do que seria se entrassem em acordo com o inventor, e a
experiência já demonstrara mais de uma vez que tinham razão. Mas a firma do
Sr. Pritchard não era pròpriamente uma corporação gigantesca e, além disso,
ele sempre sustentara que a generosidade também rende dividendos, a longo
prazo.
- Pois eu tenho uma ou duas idéias que podem ser úteis - disse ele. -
Está claro que isso demandaria trabalho em conjunto, organização. Olhe, eu e
você poderíamos chegar a um acordo. Isso não passa de uma mera suposição,
você compreende. Eu trataria da porte de organização e posteriormente
dividiríamos uma porcentagem dos lucros, depois de feita a dedução das
despesas.
- Mas os industriais da roupa feita são contra, não tolerariam uma
coisa dessas - respondeu Ernest. Eu sei, eu fiz uma pequena investigação a
respeito.
O Sr. Pritchard pousou a mão sobre o joelho de Ernest. Alguma coisa
lhe dizia que devia deter-se naquele momento, parar ali, mas ele tinha visto o
brilho satírico nos olhos do rapaz e queria que Ernest o admirasse e
apreciasse. Não poderia mais parar.
- Mas olhe aqui, e se nós organizássemos uma companhia e
protegêssemos devidamente a sua idéia? Poderíamos patenteá-la,
devidamente. Se nos organizássemos para fabricar o produto, lançando uma
campanha publicitária em escola nacional...
- Um momento - cortou Ernest.
Mas o Sr. Pritchard não podia mais parar, estava sendo impelido por
seu próprio ímpeto e entusiasmo.
- Espere, suponha que os desenhos patenteados caíssem, por acaso, é
claro, nos mãos de alguma das grandes firmas, como... bem, vamos dizer,
Hart, Schaffner e Marx ou outro grande fabricante qualquer, ou talvez nas
mãos da própria associação de indústrias do ramo. Cairia nas mãos deles por
simples acidente, está claro. Muito bem, nesse caso eles talvez manifestassem
o desejo de comprar a nossa patente.
- Comprar a patente? - Ernest começava a interessar-se.
- Comprar não só a patente, mas também a nossa empresa.
- Mas eles só precisariam comprar a patente para liquidar a empresa -
lembrou Ernest.
Os olhos do Sr. Pritchard estavam frios como gelo, suas pupilas
reluziam através das lentes dos óculos e um pequeno sorriso erguia os cantos
de sua boca. Pela primeira vez, desde que entrara do ônibus, esquecera
completamente a presença de Camille.
- Nesse caso, é preciso olhar um pouco mais longe - explicou. - Quando
a companhia for vendida e dissolvida, nós pagaremos apenas um imposto
geral sobre os lucros.
- Bem pensado - respondeu Ernest, excitado. - Sim, senhor, muito bem
pensado. Chantagem, mas chantagem de alta classe. Sim, senhor, ninguém
poderia acusar-nos de nada.
O sorriso desapareceu dos lábios do Sr. Pritchard.
- Chantagem? Mas como assim? Nós poderíamos pretender produzir,
em lugar de vender a empresa. Poderíamos até mesmo encomendar porte da
maquinaria.
- É o que estou dizendo - replicou Ernest . - Um trabalhinho de alta
classe. Tudo preparado, à prova de fogo. Você é um homem inteligente.
- Espero que não pense que poderia haver desonestidade nessa
operação - respondeu o Sr. Pritchard. - Trabalho há trinta e cinco anos e logrei
conquistar meu lugar, no topo de nossa organização. Tenho orgulho de meu
passado limpo.
- Eu nunca pensaria em criticá-lo - afirmou Ernest. - Creio que a sua
idéia é excelente. Acontece somente que ...
- Somente o que?
- No momento meus fundos não são grande coisa disse Ernest. - Seria
preciso levantar um empréstimo. Bem, posso empinar um papagaio num
banco, não há problema ...
- Fazer um empréstimo? Por quê? Eu poderia adiantar.. .
- Não - respondeu Ernest. - Eu mesmo trato do empréstimo.
- Alguma nova idéia que lhe ocorreu?
- Sim. E tenho de enviá-la por pombo-correio, para obter logo a patente.
- Espere um pouco, espero que não suspeite nem por um momento de
que eu ...
- Está claro que não - disse Ernest. - Claro que não. Mas eu dormirei
mais descansado quando souber que o envelope seguiu direto para
Washington.
O Sr. Pritchard recostou-se no assento e sorriu. Lá na frente a estrada
era uma sucessão interminável de curvas e o ônibus naquele momento
cruzava um pequeno desfiladeiro, para entrar no segundo vale.
- Não se preocupe, meu filho. Creio que poderemos fazer negócio. Não
quero que pense que desejo aproveitar-me de você. Meu passado fala por mim.
- Não há perigo - disse Ernest. - Não há perigo, eu não pensaria uma
coisa dessas. - Com o rabo dos olhos, ele examinou secretamente o Sr.
Pritchard. - Acontece que conheço duas pequenas muito boas em L. A. Vou
passar uns dois dias no apartamento delas e não quero esquecer tudo. - No
rosto do Sr. Pritchard refletiu-se a emoção com que Ernest contava.
- Vamos passar dois dias em Hollywood – disse o Sr. Pritchard. - Talvez
tenhamos oportunidade de conversar com mais vagar.
- No apartamento das pequenas, por exemplo?
- Bem, de vez em quando um homem precisa de um pouco de distração.
Vamos ficar hospedados no Beverly Wilshire. Você poderia telefonar-me.
- Claro que sim - garantiu Ernest. - De que cor prefere a sua pequena?
- Não me interprete mal - retrucou o Sr. Pritchard, apressadamente. -
Gosto de poder sentar-me com sossego num lugarzinho confortável e tomar
um scotch com soda, mas não posso esquecer minha posição. Creio que você
me compreende.
- Claro que compreendo. Talvez possa arrumar essa loira aí da frente
para você.
- Não brinque com essas coisas, rapaz - disse o Sr. Pritchard.
Ao trocar de lugar, Espinhudo passara para a frente. Agora ele sentia
uma comichão que queimava como fogo na parte de baixo de seu queixo e
sabia que se tratava de uma nova erupção que se formava. Estava sentado no
lado oposto ao de Mildred Pritchard. Não queria tocar o ponto em que se
formava a nova espinha, mas acabou perdendo o controle sobre suas mãos. A
mão direita ergueu-se e seu indicador apalpou o caroço que surgia sob o
queixo. A espinha seria grande. Um demônio de uma espinha. Ele já sabia que
aparência iria ter, depois de sazonada. Queria espremê-la, rasgá-la, arrancá-
la. Seus nervos estavam à flor da pele. Mas fez um esforço e meteu as mãos
nos bolsos do paletó, cerrando os punhos com força.
Mildred observava distraidamente a paisagem.
- Gostaria de estar viajando para o México - disse Espinhudo.
Mildred voltou a cabeça para ele, surpreendida. Seus óculos refletiam a
luz do sol e o reflexo fez Espinhudo piscar quando ela olhou para ele. O rapaz
engoliu em seco.
- Nunca estive no México - explicou, constrangido.
- Nem eu - respondeu Mildred.
- Pois é, mas você está a caminho.
Ela assentiu. Não queria olhar para ele, pois não poderia tirar os olhos
das suas espinhas purulentas e sabia que isso o embaraçaria. - Talvez você
ainda vá para o México mais cedo do que espera.
- Ah, eu irei - afirmou Espinhudo, mais animado. - Pretendo conhecer o
mundo todo. Sou louco por viagens. Não troco uma viagem por nada deste
mundo. A gente ganha muita experiência viajando.
Ela assentiu novamente, tirando os óculos para proteger-se da visão
das espinhas purulentas. Sem óculos, não podia vê-las claramente.
- Estive pensando, talvez eu me torne um missionário, como o Spencer
Tracy, para ir para a China e curar todos aqueles doentes. Você já estêve na
China?
- Não - respondeu Mildred. Estava fascinada pelos pensamentos do
rapaz.
Espinhudo retirava quase todas as suas idéias do cinema e as restantes
do rádio.
- Dizem que na China há gente muito, muito pobre - prosseguiu ele -
tão pobre que eles podem morrer de fome do dia para a noite, debaixo da sua
janela, se não tiver um missionário por perto para ajudar. E se você ajudar os
chineses eles ficam muito agradecidos, é claro, ficam adorando você, e se um
japonês vier a começar a criar coso, eles metem logo uma faca nele. -
Espinhudo assentiu, solenemente. - Acho que eles são gente boa, como você e
eu. O Spencer Tracy estava lá curando aqueles camaradas, e eles ficaram
loucos por ele. Mas então sabe o que ele fez? Ele encontrou a sua própria
alma. E então ele encontrou aquela pequena e não sabia se devia casar com
ela, porque ela tinha um passado, sabe como é. Está claro que mais tarde ele
descobriu que ela não tinha culpa nenhuma e que era tudo mentira, mas a
velhinha ficava enchendo a cabeça dele de mentiras. - Agora, os olhos de
Espinhudo brilhavam de compaixão e entusiasmo. - Mas o Spencer Tracy não
acreditou nas mentiras da velha e foi morar naquele velho palácio cheio de
passagens secretas e túneis e... bem, então os japoneses chegaram.
- Eu vi a fita - disse Mildred.
O ônibus subia em segunda a última lombada. Fez a curva estreita, no
topo, passou por um corte entre barrancos, dobrou outra curva fechada, para
a esquerda e lá embaixo surgiu o vale, escurecido por grandes nuvens
acinzentadas, com o longo curso turtuoso do rio San Isidro brilhando como
aço sob o céu fechado. Juan engrenou a terceira e o ônibus começou a descer
a estrada que levava ao vale.

CAPÍTULO X

O rio San Isidro corta o vale de San Juan seguindo um curso irregular e
torturado, até desaguar em Black Rock Bay, sob a proteção de Bat Point.
Ovale, propriamente dito, é longo e estreito, de forma que o rio San Isidro,
chegando perto do mar, faz o possível para aproveitar ao máximo o terreno que
ainda tem pela frente, seguindo de uma encosta do vale para a outra. Passa
sob um grande rochedo, vai bater contra a montanha e depois espraia-se
sobre os bancos de areia. Durante boa porte do ano suas águas não são
visíveis e nas margens dos bancos de areia crescem os chorões, cujas raízes
aprofundam-se no solo em busca da água subterrânea.
Coelhos, gambás, raposas pequenas e coiotes fazem suas tocas entre os
chorões, nas margens dos bancos de areia, quando o rio está baixo. Na
cabeceira do vale, a noroeste, o rio subdivide-se numa série de afluentes, como
os pequenos ramos de um galho, de forma que um mapa dessa região parece
uma árvore seca no inverno. As colinas secos e pedregosas, cortadas por
brechas, precipícios e canyons, não lançam água ao rio durante todo o ano,
com exceção da época que vai do fim do inverno à primavera, quando o solo
rochoso absorve um pouco d"água e lança o restante em escuros riachos que
se transformam em torrentes e que transbordam pelas brechas e depressões, e
então as torrentes começam a juntar-se e engrossar os ribeirões maiores, que
se unem na extremidade norte do vale.
Assim, quando a primavera vai terminando e as colinas pedregosas já
absorveram toda a água que poderiam conter; uma tempestade forte pode
provocar o transbordamento do San Isidro, que em poucas horas se
transforma num rio caudaloso. Então a água amarelada e espumejante corta
fundo nas margens e grandes blocos de terra arável são levados pelo rio.
Depois aparecem vacas e carneiros mortos, boiando no meio do rio amarelo.
Ele é um rio instável e caprichoso; se é morto durante quase todo o ano, é
mortal durante alguns meses.
No meio do vale, que separa a Encruzilhada dos Rebeldes de San Juan
de La Cruz, o rio faz uma grande curva que vai de lado a lado no terreno
plano, lambendo primeiro a encosta da montanha do lado oriental e depois
cruzando as pastagens e áreas cultivadas. A estrada velha acompanhava a
curva do rio, fazendo uma grande volta para atingir a encosta do lado oposto
do vale, sem cruzar o curso do San Isidro. Mos um dia tinham chegado os
engenheiros, com aço e concreto, e as duas pontes novas haviam sido
lançados sobre o rio, encurtando de alguns quilômetros o percurso
determinado pelo curso caprichoso do San Isidro.
As duas eram pontes de madeira, sustentadas por cabos de aço e
apoiadas, nas margens e no centro do rio, por pilares de concreto. As
armações de madeira tinham sido pintadas de vermelho escuro e as partes de
ferro estavam agora negras de ferrugem. Junto às margens, os engenheiros
tinham erguido muretas, sobre as quais chorões cresciam, e que defletiam a
força da correnteza para evitar que a água minasse as cabeças de ponte.
As pontes não eram muito velhas, mas tinham sido construídas numa
época em que não somente as taxas eram baixas mas ainda freqüentemente
incoletáveis, pois as coisas andavam ruins para todo mundo. O engenheiro
municipal encarregado de construir as pontes fora compelido por um
orçamento limitado a adotar o processo mais simples de construção. Assim, a
madeira que lhe foi fornecida era mais pesada do que deveria ser, o que o
forçara a usar mais suportes de aço, mas ele tinha de respeitar os estritos
limites impostos pelo orçamento e se manteve dentro deles. Desde então, os
fazendeiros do vale observavam o rio, todos os anos, com cínica apreensão.
Sabiam que mais cedo ou mais tarde uma cheia brusca levaria as pontes.
Todos os anos eles requeriam ao Conselho Municipal a construção de pontes
mais sólidas, mas como o número de eleitores do vale era relativamente
pequeno, ninguém dava atenção às petições. As cidades grandes, que tinham
não somente eleitores como ainda valiosas propriedades sujeitos à taxação,
recebiam todos os melhoramentos requeridos. O progresso não atingira as
terras do vale. Um bom posto de serviço numa esquina de San Juan valia
muito mais que cem acres de terra fértil no vale. Mos os fazendeiros sabiam
que a queda das pontes era apenas uma questão de tempo, sabiam que
ninguém ouviria suas queixas e sabiam que o Conselho só tomaria
conhecimento da situação quando as pontes desabassem.
Quem vinha da Encruzilhada dos Rebeldes passava por um armazém de
beira de estrada, instalado num ponto que ficava a cem metros da primeira
ponte. O armazém vendia de tudo, de lotaria a pneus, artigos de necessidade,
coisas dessas que se costumo comprar nos sábados à tarde ou quando não se
tem tempo para dar um pulo a San Juan de La Cruz ou a San Isidro.
Chamava-se Armazém Geral Breed’s. Como quase todos os armazéns de beira
de estrada dessa região do país, ele tinha também duas bombas de gasolina e
uma seção de peças e acessórios de automóvel.
O Sr. e a Sra. Breed eram os guardas oficiosos da ponte e durante as
épocas de inundação o telefone do armazém chamava continuamente e eles
respondiam dezenas de chamadas de gente preocupada com o nível do rio.
Estavam habituados a isso. Seu único temor era o de que algum dia a
ponte fosse abaixo e a Municipalidade construísse a nova a meio quilometro
de distancia, rio abaixo, pois nesse caso eles teriam de transferir o armazém
para lá ou construir um novo, perto da outra ponte.
Cinqüenta por cento do movimento do armazém, no mínimo, dependia
do venda de refrescos, sanduíches, gasolina o doces aos turistas que
escolhiam aquela estrada. Até mesmo o ônibus que fazia a ligação entre a
Encruzilhada dos Rebeldes e San Juan invariàvelmente parava no armazém. O
ônibus trazia encomendas e os passageiros geralmente desciam para tomar
refrigerantes gelados.
Juan Chicoy e os Breed eram muito amigos.
E agora o rio estava cheio e não apenas cheio mas, como dissera o Sr.
Breed à sua esposa, os pilares da ponte estavam sendo minados pela água e,
se d concreto cedesse de um momento para outro, iria tudo por água abaixo,
no sentido literal. Ele já fora umas doze vezes até a ponte, naquela manhã.
Desta vez a coisa parecia séria e ele compreendia perfeitamente a gravidade da
situação. Com os lábios apertados e a barba por fazer, ele fizera sua primeira
visita à ponte às oito horas da manhã e observara a torrente de água
amarelado e espumarenta em que se transformara o rio, que já ia levando de
roldão pequenos carvalhos selvagens e algodoeiros. Vira também algumas
tábuas aparelhadas descendo na correnteza, depois um pedaço de telhado,
ainda com algumas telhas, e finalmente a grande carcaça do touro negro
Angus, dos McElroy, que se afogara e ia sendo levado para o mar. Quando a
carcaça passou sob a ponte, a água forçou-a a girar de costas e Breed viu os
olhos revirados e a língua pendurada do touro morto. Breed quase vomitou.
Todo mundo dizia que os McElroy haviam construído seu celeiro perto
demais do rio e todos sabiam que aquele touro preto custara mil e oitocentos
dólares. Os McElroy não eram tão ricos assim, para esbanjar dinheiro daquele
jeito. Ele não viu mais nenhuma cabeça de gado no rio, mas aquele touro já
era mais que o bastante. O velho Mac esperava muito do touro.
Breed então avançara mais um pouco pela ponte. A água estava agora a
menos de um metro da plataforma de madeira e ele podia sentir a pressão da
correnteza sobre toda a estrutura. Esfregando o queixo barbado com a palma
da mão, voltara para casa de cabeça baixa. Não disse nada a sua mulher
sobre o Angus negro dos McElroy.
Não adiantaria nada e ela ficaria triste e apreensivo.
Quando Juan Chicoy telefonara, logo depois da chuva, ele havia dito a
verdade. A ponte ainda estava de pé, mas só Deus sabia até quando se
agüentaria. A água continuava a subir. As colinas nuas e pedregosas estavam
ainda vertendo torrentes de água no rio e as grandes nuvens escuras
começavam a esconder o sol outra vez.
Às nove horas, os troncos carregados pela correnteza estavam passando
a menos de meio metro da ponte. Agora a pressão da água sobre a estrutura
da ponte era muito mais forte e bastaria que o rio atirasse uma ou duas
árvores desenraizadas contra ela para que fosse tudo abaixo.
Breed observava a ponte por detrás da tela de arame da porta do
armazém, tamborilando os dedos sobre a tela.
- Venha comer alguma coisa - disse sua mulher. - Até parece que você é
o dono da ponte.
- Até certo ponto, eu sou mesmo - respondeu ele. - Se ela cair, vão dizer
que foi por minha culpa. Já telefonei para o Departamento de Obras e chamei
o engenheiro municipal. Não encontrei ninguém. E se o concreto ceder, de um
momento para outro, vai tudo por água abaixo.
- É melhor comer alguma coisa. Faço uns bolinhos de trigo para você.
- Está certo. Mas faça os bolinhos com massa fina.
- Nunca fiz com massa grossa - lembrou a Sra. Breed. - Quer com um
ovo?
- Claro. Não sei se o Juan vai conseguir passar ou não. Ele só vai
aparecer daqui a uma hora, mais ou menos, e como a água está subindo,
Cristo!
- Não é razão para blasfemar, Walter.
Ele voltou-se, para encará-la.
- Pois eu diria que essa é uma ocasião em que um homem tem o direito
de encher a boca. Vou beber qualquer coisa.
- Antes do café?
- Antes de mais nada.
Ela nada sabia do touro negro, é claro. Ele foi ao telefone e chamou os
McElroy, três maniveladas rápidas no magneto e depois mais duas, e ficou
esperando, mas quem respondeu foi Pinedale, quatro quilômetros além dos
McElroy, rio acima.
- Também estive tentando falar com eles - disse Pinedale. - A linha dos
McElroy deve ter caído. Vou arrear um cavalo e descer até lá, para ver se estão
bem.
- É melhor mesmo - disse Breed. - O touro Angus deles passou aqui por
baixo da ponte, esta manhã.
A Sra. Breed ergueu para ele os olhos cheios de temor.
- Walter!
- Bem, é verdade, foi o que aconteceu. Não queria que você se
preocupasse.
- Walter! Oh, meu Deus! - gritou a Sra. Breed.

CAPÍTULO XI

Alice Chicoy observou através da tela de arame da porta do restaurante


o ônibus que se afastava. Deixava que as lágrimas lhe rolassem livremente
pelo rosto.
Quando não conseguiu mais ver o ônibus pela porta, passou para uma
janela lateral do restaurante, de onde se podia observar a estrada. O ônibus já
ia longe, brilhando ao sol, e desapareceu em questão de segundos. Alice fez
uma longa inspiração e depois foi soltando o ar aos poucos, num longo
suspiro de alívio. O dia era seu! Estava só. Sentia-se feliz, era como se
preparasse para fazer alguma coisa secreta e pecaminosa. Lentamente, ela
ajeitou o vestido sobre os quadris e acariciou as próprias coxas. Depois
examinou suas unhas. Não, isso ficaria para mais tarde.
Correu os olhos pelo restaurante, examinando tudo com atenção. Ainda
se podia sentir o cheiro de fumaça de cigarro. Havia muita coisa a fazer mas,
afinal, aquele dia era seu e ela começou a trabalhar sem pressa alguma.
Primeiro tirou da cristaleira um cartaz que dizia em grandes letras
FECHADO. Depois saiu e pendurou o cartaz num prego cravado do lado de
fora da porta de tela. Voltou para dentro, fechou e trancou a porta de tela.
Depois fechou a porta interna e trancou-a também. Depois foi de janela em
janela, baixando as persianas e voltando para baixo as lâminas de metal, para
que ninguém pudesse ver o interior do restaurante olhando do lado de fora.
O restaurante ficou escuro e silencioso. Alice trabalhava
deliberadamente. Lavou e deixou de lado toda a louça, depois limpou o tampo
do balcão e dos mesinhas. As tortas foram recolhidas ao armário embutido sob
o balcão. Depois foi buscar uma vassoura de pêlos no quarto e limpou
cuidadosamente o soalho do restaurante, transferindo para a lata de lixo todo
o pó, terra e pontas de cigarros que encontrou. Mesmo na penumbra, o tampo
polido do balcão brilhava e os das mesinhas pareciam brancos e limpos.
Alice deu volta ao balcão e acomodou-se num dos tamboretes. O dia era
seu! Sentiu-se de repente tola e culpada.
- Bem, mas por que não? - perguntou-se em voz alta. - Afinal, eu nunca
me divirto. Olhe aqui - prosseguiu, dirigindo-se a alguém invisível, atrás do
balcão - olhe aqui, quero um uísque duplo, e depressa, ouviu?
Colocando as mãos sobre o balcão, ela examinou-as atentamente.
- Pobres mãos estragadas - murmurou - pobres mãos... - Depois,
erguendo a voz num grito, reclamou: - Que diabo, esse uísque vem ou não
vem? - e respondeu a si própria, num murmúrio humilde: - Sim, senhora, está
saindo, um momento, minha senhora.
- Ah, assim é melhor - disse ela. - É bom que você saiba com quem está
tratando. E não me venha com conversa, porque não sou idiota. Estou de ôlho
em você, não se esqueça.
- Sim, senhora - respondeu ela a si mesma, humildemente. Então,
levantou-se e deu volta ao balcão, passando para o lado de dentro.
No extremidade do balcão, perto do soalho, havia um pequeno armário.
Alice curvou-se, abriu a porta, meteu a mão ás cegas e retirou-a com uma
garrafa de um quinto de bourbon Old Grandad. Depois apanhou um copo
limpo na pia e seguiu com ele e a garrafa na mão, até chegar à frente do
tamborete em que se sentara.
- Pronto minha senhora, cá está.
- Pois leve para aquela mesinha. Tenho cara de quem costuma beber em
pé em balcão de bar?
- Não, senhora.
E trago outro copo. E uma garrafa de cerveja gelada.
- Sim, senhora.
Ela conduziu todas as coisas reclamadas para a mesinha que ficava ao
lado da porta e sentou-se.
- Agora, pode ir - ordenou para responder: - Sim, senhora.
- Mas não se afaste, nem saia daí, pois talvez eu queira mais alguma
coisa.
Despejando a cerveja no copo, ela riu alto, satisfeita. Se alguém pudesse
ouvir-me iria pensar que estou louca. Bem, talvez esteja mesmo. No outro
copo ela despejou uma dose generosa de uísque.
- Alice - disse ela, erguendo o copo - um, dois, três, pronto! - Levou o
copo à boca e bebeu lentamente. Ela não iria engolir a bebida. Deixou o uísque
puro e quente rolar por sua boca, queimando primeiro a língua e depois a
parte de trás da língua, deixou a bebida descer aos poucos, bem devagar, pela
garganta, sentindo o arrepio do álcool no céu da boca, e então, lentamente, o
calor do uísque passou primeiro para seu peito e depois para seu estomago.
Mesmo depois de esvaziar o copo, ela conservou-o junto aos lábios.
Quando o depois sobre a mesinha, suspirou
- Ah! - lutando para recobrar o fôlego, em grandes haustos.
Ainda sentia gosto de uísque no ar que expirava. Depois estendeu a
mão para o copo de cerveja. Cruzou as pernas e bebeu bem devagarinho, até
esvaziar o copo.
- Deus! - disse ela.
Alice tinha a impressão de que jamais havia notado que o restaurante
era um lugarzinho acolhedor e confortável, vagamente iluminado pela luz que
se filtrava através das lâminas das persianas. Ouviu o ruído do motor de um
caminhão na estrada, um ruído que a aborreceu. E se alguém aparecesse para
interferir com aquele dia que era o seu? Bem, quem quisesse entrar teria de
derrubar a porta. Ela não deixaria ninguém entrar. Derramou mais dois dedos
de uísque num copo e quatro dedos de cerveja no outro.
- Há mais de uma maneira de beber - disse ela, tomando rapidamente o
uísque e rematando com a cerveja. Bem, era uma idéia muito boa. A bebida
muda de gosto. Depende do jeito de que a gente bebe. Engraçado, ninguém
pensara nisso antes, só ela, Alice. Alguém deveria escrever: "É o jeito de beber
que faz o gosto."
Sentiu uma ligeira tensão em sua pálpebra esquerda e uma dorzinha
estranha, porém agradável, descendo pelas veias de seus braços.
- Ninguém tem tempo para descobrir coisas - declarou, solenemente. -
Ninguém tem tempo. - Derramou cerveja no copo até chegar ao meio e acabou
de enchê-lo com uísque. - Será que alguém já experimentou o gosto que isso
tem?
O suporte de metal cromado dos guardanapos estava em sua frente e
ela via seu rosto refletido na superfície lisa.
- Olá, menina - exclamou. Fez um acenozinho, com o copo na mão, e a
imagem do copo surgiu destorcida sobre o metal, como seu rosto. - Vamos lá,
menina. A sua saúde. - E bebeu a cerveja misturada com uísque como um
homem sedento bebe um copo de leite. - Ah - disse Alice - afinal esse raio
dessa mistura não é nada má. Não senhor. Acho que descobri uma coisa
formidável. Que ótimo.
Ajustou o suporte de guardanapos, para poder ver-se melhor. Mas a
própria, curvatura do metal fazia tom que seu nariz parecesse quebrado na
base e largo e bulboso na ponta. Ela levantou-se, cruzou o restaurante, entrou
no dormitório, apanhou um espelho de mão que estava sobre a cômoda, voltou
com ele para a mesinha e encostou-o a um açucareiro. Depois ajeitou-se
novamente na cadeira, cruzando as pernas confortavelmente.
- Ei, olhe aqui! Gostaria de convidá-la a tomar um gole comigo. -
Derramou uísque nos dois copos. - Acabou a cerveja. Não há mais cerveja.
Bem, nós damos já um jeito nisso.
Foi até a geladeira e trouxe outra garrafa de cerveja.
- Olhe aqui, veja - disse ela à imagem do espelho - primeiro a gente põe
um pouco de uísque... nem demais... nem de menos... e depois a gente põe a
dose certa de cerveja. E pronto. - Empurrou um dos copos em direção ao
espelho e emborcou o outro. - Certas pessoas têm medo de beber - afirmou em
voz alta. - Não agüentam bebida.
- Oh, você não quer? Bem, é um direito que lhe assiste. Não vou obrigá-
la a beber, não tenha medo. Mas não quero saber de desperdício ah, isso é que
não. - Esvaziou o outro copo. Agora, sentia o rosto pegando fogo, como se
tivesse sido queimado por geada. Puxando o espelho mais para perto, passou-
se em revista. Seus olhos estavam úmidos e brilhantes. Com um gesto da mão
afastou o cabelo que lhe caía sobre a testa.
- Não há razão para desleixo, só porque você está divertindo-se um
pouco. - Então, inesperadamente, uma visão tomou forma em sua cabeça e ela
voltou depressa a face do espelho para baixo. A visão a ferira tão dura e
rapidamente quanto um raio. Talvez fosse a penumbra da sala. - Não quero
pensar nisso - gritou Alice. - Detesto pensar nisso.
Mas o pensamento e a visão não se dissolveram. Um quarto escuro,
uma cama muito branca e sua mãe paralisada, rígida; imóvel, com os olhos
fixos no teto e então a mão muito branca surgia de sob a colcha, erguendo-se
lentamente num gesto de desespero, num pedido de socorro. Toda vez que
Alice entrava no quarto, embora não fizesse o menor ruído, aquela mão se
erguia no ar, num terrível gesto de desalento, e Alice a acariciava por um
momento, para depois acomodá-la carinhosamente junto ao corpo e; sair.
Todas as vezes que entrava no quarto ela implorava àquela mão que não se
erguesse, que permanecesse imóvel, morta, como o resto do corpo.
- Não quero pensar nisso - gritou. - Por que fui lembrar, por que? - Sua
mão tremia e a garrafa tilintou contra o copo. Tomou depressa um gole
enorme, engasgou, tossiu e foi isso que a salvou de enjoar. - Que sirva de lição
para você - disse ela. - Agora, quero pensar noutra coisa qualquer.
Tentou imaginar-se na cama, com Juan, mas sua mente persistia em
voltar ao passado.
- Eu poderia ter tido qualquer, homem que quisesse - vangloriou-se
Alice. - Muitos, muitos, só Deus sabe quantos, me fizeram propostas, mas eu
não lhes dava muita atenção. - Mordeu o lábio inferior, lubricamente. - Talvez
fosse melhor aproveitar enquanto é tempo. Estou ficando velha... Mentira,
mentira - gritou - não estou envelhecendo coisa nenhuma, estou boa como
sempre fui! Melhor ainda! Quem é que deseja uma cadelinha magricela que
nem sabe direito o que fazer? Um homem de verdade não quer saber dessas
cachorrinhas. Eu podia sair agora mesmo e pegar homens por aí como quem
pega moscas.
Agora a garrafa de uísque já estava quase pelo meio. Ao por bebida no
copo, ela derramou um pouco sobre a mesa e achou uma graça imensa no
tremor de sua mão.
- Acho que estou ficando meio tacada.
Alguém bateu lá fora, na porta de tela, e Alice gelou. Bateram
novamente. Uma voz de homem disse:
- Não há ninguém em casa. Pensei que tinha ouvido alguém falar.
- Bem, bata de novo. Talvez estejam no fundo - respondeu uma voz de
mulher.
Cuidadosamente, Alice apanhou o espelho e começou a examinar-se.
Acenou gravemente para sua própria imagem e depois piscou um ôlho.
Bateram novamente na porta de tela.
- Já disse que não há ninguém na casa.
- Bem, então experimente o trinco.
Alice ouviu o barulho que faziam, tentando abrir a porta de tela.
- Está trancada - disse o homem. A mulher replicou: - Olhe, está
fechada pelo lado de dentro. Deve haver alguém em cosa.
O homem riu e o cascalho estalou sob seus pés.
- Bem, se há gente aí dentro, está na cara que eles querem ficar sós.
Você não gosta de ficar só, meu bem? Isto é, só comigo?
- Ora, não chateie - respondeu a mulher. - Quero um sanduíche.
- Pois vai ter de esperar.
Alice não podia compreender por que não tinha ouvido o barulho do
automóvel estacionando na frente do restaurante. Aposto que estou com a cara
cheia - pensou. Mas ouviu muito bem o barulho do automóvel partindo.
- Essa gente não tem consideração pelos outros - disse Alice em voz
alta. - Uma pessoa não pode tirar um dia para descansar, para tratar um
pouco de si mesma e pronto, aparece alguém querendo comer um raio de um
sanduíche. - Erguendo a garrafa, ela forçou a vista para ver quanto restava. -
Não há muito, está acabando.
Alice ficou com medo. E se a bebida acabasse, antes de ela estar
pronta? Mas então suspirou, descansada, sorrindo de seu próprio temor. No
armarinho das bebidas havia duas garrafas de vinho do porto. A lembrança
das garrafas reforçou novamente sua segurança e ela serviu-se de uma boa
dose. Juan detestava mulheres que se embriagam. Dizia que elas ficam com as
feições transtornadas quando bebem e que isso era uma coisa que não
suportava. Pois bem, ia mostrar uma coisa a Juan. Emborcou o meio copo de
uísque e ergueu-se com certa dificuldade.
- Bem, agora você espere um pouquinho que eu já volto - disse elo,
gentilmente, ao copo vazio. Ao dar volta ao balcão, cambaleou um pouco e
esbarrou no quina, que a atingiu com força pouco acima do quadril. - Isso vai
ficar preto e roxo - murmurou ela. Cruzando o dormitório, passou para o
banheiro.
Depois de molhar uma toalha, Alice esfregou-a com sabão até obter
uma pasta densa de espuma e começou a limpar o rosto. Esfregava com força,
especialmente dos lados do nariz e ao longo da linha que se formara sob seu
queixo. Enrolando uma ponta da toalha em torno do dedo mínimo, ela
escarafunchou as narinas e as orelhas.
Depois, fechando os olhos para não entrar sabão, enxaguou o rosto e
observou o produto final no espelho. Estava com o rosto rubro, os olhos
avermelhados. Pacientemente, trabalhou durante muito tempo sobre o próprio
rosto. Primeiro cobriu-o de creme de limpeza. Depois retirou o creme e
observou o resultado. Procurou sujeira na toalha e encontrou-a. Redesenhou
suas sobrancelhas com um lápis castanho escuro. Na hora de usar o batom,
encontrou certa dificuldade. Ao pintar o lábio inferior, correu o bastão muito
por baixo e manchou todo o queixo, tendo de limpar o borrão vermelho com a
toalha e recomeçar tudo. Depois, rolou os lábios para fora, encostou-os e
esfregou um contra o outro, e ao terminara examinou os dentes, viu que
estavam meio manchados de batom e limpou-os com a toalha. Só então lhe
ocorreu que deveria ter escovado os dentes antes de pintar a boca. Agora, pó
de arroz.
O pó faria desaparecer a vermelhidão de seu rosto. Depois, escovou o
cabelo. Jamais gostara de seu cabelo. Primeiro arrumou-o de um jeito, depois
de outro, em busca do melhor efeito, e aos poucos foi perdendo o interesse
pela coisa.
No dormitório, apanhou um chapéu justo, de feltro negro, com uma
espécie de aba na frente. Ajeitou o cabelo dentro do chapéu e, depois puxou a
aba para o lado, num ângulo audacioso.
- Pois agora - disse ela - vamos ver se o rosto de uma mulher fica
transtornado. Só queria que Juan voltasse agora. Ia ter de meter a viola no
saco.
Tirando o vidro de Bellogio da gaveta da cômoda, derramou perfume no
colo e depois, usando a tampa de vidro, perfumou também os lóbulos das
orelhas e a linha do cabelo, na testa. Passou também um pouco de perfume no
lábio superior, de leve.
- Também gosto do cheiro - explicou em voz alta a si mesma.
Voltou ao restaurante, caminhando cuidadosamente, para evitar a
quina do balcão que já a tinha magoado. O restaurante estava mais escuro,
pois agora as grandes nuvens negras velavam o céu e a luz que se filtrava
pelas persianas era muito fraca, Sentando-se à mesinha, Alice ajustou o
espelho em posição.
- Linda - disse ela à imagem - você está bonita, linda mesmo. Que
pretende fazer hoje à noite? Que tal se fossemos dançar?
Apanhando a garrafa, serviu-se de uma boa dose.
Imagine só, pensou, se aquele motorista da Red Arrow Lane chegasse de
repente e batesse na porta. Ela o deixaria entrar. Era um camarada gozado,
sabia brincar com a gente. Daria a ele um ou dois goles, por conta da casa, e
depois mostraria a ele uma ou duas coisas.
- Red - disse ela - você pensa que é o maior para se divertir, mas hoje
vou lhe mostrar uma coisa nova. Hoje sim, você vai ver como é que a gente se
diverte no duro.
Pensou na cintura fina e nos braços grossos e musculosos do rapaz,
que usava largo cinto de couro e calças rancheiro, de zuarte azul... Bem, ele
era mesmo OK. Engraçado, pensar naquelas calças dele. Bem entre as pernas,
abaixo da braguilha, havia um pequeno rebite de cobre, reforçando a costura.
E, ao pensar naquele rebite de cobre, Alice começou a ficar triste. Nas calças
de Bud havia também um rebite de cobre, igualzinho, no mesmo lugar. Ela
tentou afastar a visão que se formava, mas não conseguiu e deixou-se levar
por ela, compondo em sua mente os fragmentos de recordações. Ele tinha
pedido, insistira com ela muitas e muitas vezes, tentando convencê-la.
Finalmente, um belo dia, os dois foram até o lugar em que o pessoal
costumava fazer os piqueniques, a mais de seis quilômetros da cidade. Foram
a pé e Bud levou o lanche - ovos duros, sanduíches de presunto.
Alice tinha comprado a torta, mos disse a Bud que a tinha feito. E ele
nem esperou que ela abrisse o farnel. Ele a machucara E depois, ela tinha
perguntado:
- Para onde vai?
- Ué, tenho de voltar para o trabalho.
- Mas você disse que me ama.
- Disse? E daí?
- Você não vai me abandonar, não, Bud?
- Olhe aqui, menina, o que aconteceu, aconteceu. Está acabado. Não
assinei contrato nenhum com você, assinei?
- Mas foi a primeira vez, Bud.
- Pois tudo tem a primeira vez nesta vida.
Agora Alice chorava, contemplando sua própria imagem no espelho.
- Nada disso vale nada, não vale nada... - Soluçando, ela bebeu o que
restava no copo e depois acabou de esvaziar a garrafa. Nenhum dos outros
valia nada, ninguém mais prestava, e o que poderia fazer? Um trabalho que
ninguém queria, com privilégio de cama e sem salário. Era assim. E casada
com um camarada malcheiroso e piolhento, ainda por cima. Casada com ele!
No meio do mato, longe demais até para ir a um cinema. Presa naquele
restaurante fedorento.
Metera a cabeça entre os braços e agora soluçava convulsivamente. E
uma segundo Alice podia ouvi-la chorar. Uma segunda Alice olhava por cima
de seu ombro e a observava. Sempre pisando macio, fazendo tudo com
extremos de cuidado, para agradá-lo. Ela ergueu a cabeça e olhou-se no
espelho. Seu queixo era um só borrão de batom. Seus olhos estavam injetados
e seu nariz corria. Esticando a mão para o suporte de metal cromado, ela
retirou dois guardanapos de papel e assoou o nariz. Depois fez uma bola dos
guardanapos e jogou-a no chão.
Por que diabo teria de manter limpa aquela espelunca? Quem se
importava? Quem ligava para ela? Ninguém! Mas ela podia pensar mais um
pouco em si mesmo. Ninguém iria maltratá-la, ninguém. Enxugou o restinho
de uísque que ainda havia no copo.
Beber o vinho do Porto é que foi um problema. Cambaleando atrás do
balcão, caiu sobre a pia. A pressão aumentava no interior de seu nariz e sua
respiração era sibilante. Tentou equilibrar uma garrafa de vinho sobre o
balcão e apanhar um saca-rolhas ao mesmo tempo. Quando foi introduzir o
saca-rolhas a garrafa caiu e na segunda tentativa a rolha fragmentou-se em
pedacinhos. Ela empurrou para dentro, com o dedo, os fragmentos que ainda
estavam presos ao gargalo e voltou para a mesa com a garrafa.
- Refresco - exclamou, com um muxoxo de pouco caso. Encheu o copo
até as bordas com o vinho da garrafa, vermelho-escuro. - Só queria que
houvesse mais um pouco de uísque. - Sua boca estava seca. Bebeu meio copo
de vinho, sequiosamente. - Ora, mas isso é bom - exclamou, com uma
risadinha. Quem sabe não seria melhor preparar sempre a boca com uísque,
antes de beber vinho?
Apanhou novamente o espelho.
- Você é um traste velho - comunicou à sua imagem. - Você é uma velha
suja e embriagada. É por isso que ninguém aprecia você, ninguém quer você.
Eu mesma não quero.
A imagem refletida no espelho não era dupla, mas cercada por linhas
paralelas e, além de seu campo de visão, Alice sentia que o chão começava a
girar e a dançar. Bebeu de um trago o que restava no copo, engasgou, e o
vinho escuro escorreu pelos cantos de sua boca. Quando tentou encher
novamente o copo seu golpe de vista falhou e ela derramou quase todo o vinho
sobre a mesinha antes de acertar com o copo. Seu coração agora batia
depressa. Podia ouvi-lo e podia sentir sua palpitação nos braços e nos ombros,
nas veias e em seus seios. Alice bebeu solenemente.
- Daqui a pouco estou no chão e vai ser bem feito. Eu não devia ter
bebido. Queria dormir para sempre... para sempre ... para sempre ... Mostrar
a esses bastardos todos que não sou obrigada a viver se não quiser. Pois vou
mostrar uma coisa para eles.
E então ela viu a mosca. Não era uma mosca doméstica comum, mas
uma mosca azul, recém-nascida, cujas asas refletiam uma tonalidade azul
iridescente. A mosca pousara na mesa, na margem da grande poça de vinho.
Depois molhou sua probáscide e começou a lavar-se.
Alice mantinha-se absolutamente imóvel. Sua pele estava arrepiada de
ódio. Toda sua infelicidade, todos os seus ressentimentos, centralizavam-se
naquela mosca. Fazendo um esforço, ela conseguiu centralizar numa só as
duas imagens da mosca.
- Filha da... - murmurou baixinho. - Pensa que eu estou bêbeda. Pois
vai ver só uma coisa.
Seus olhos estavam rasos d’água, brilhantes. Lenta, lentamente, ela
deixou-se escorregar da cadeira para o chão, equilibrando o corpo numa mão.
Mantinha a cabeça erguida, sem despregar os olhos da mosca. A mosca não se
movera. Arrastando-se, ela deu volta ao balcão. Havia um pano de pratos
pendente da pia de aço inoxidável. Puxando o pano, ela enrolou-o
cuidadosamente na mão direita. Era muito leve. Erguendo-se, abriu a
torneira, molhou o pano e depois espremeu o excesso de água.
- Vou mostrar uma coisa a essa filha da... - disse Alice já de gatinhas,
dando volta ao balcão. A mosca ainda estava lá, ainda brilhando.
Alice ergueu a mão, deixando a toalha pender sobre seu ombro, para
trás. Centímetro a centímetro, cuidadosamente, aproximou-se da mosca, a
mão da toalha erguida e preparada. Deu o golpe. Garrafa, copos, açucareiro e
suporte de metal de guardanapos saltaram em todas as direções. A mosca
zumbiu e descreveu uma série de círculos no ar. Alice ficou imóvel, seguindo-o
com os olhos.
A mosca pousou sobre o balcão. Ela desceu o pano com força e quando
a mosca voou ela passou-o novamente para trás do ombro, com um
movimento brusco.
- Não é assim que se faz - murmurou. - Vá devagarzinho. Vá bem
devagarzinho. - O chão girava sob os seus pés. Esticou a mão e apoiou-se num
dos tamboretes. Onde estava agora o raio da mosca? Ela ainda ouvia o seu
zumbido. Aquele zumbido raivoso, enjoado, de asinhas que vibravam. Bem, ela
tem de pousar nalgum lugar. Alice sentia o enjôo subindo, subindo por sua
garganta.
A mosca descreveu uma série de curvas, oitos e círculos e depois
começou a voar baixinho, efetuando uma série de vôos rasantes que iam de
um lado ao outro do restaurante. Alice esperava. A escuridão começava a
avançar sobre as margens de seu campo de visão. A mosca pousou com um
estalido sobre uma caixinha de flocos de aveia, no alto de uma das pirâmides
de caixas de cereais que se erguiam na prateleira, atrás do balcão. A mosca
pousara bem sobre o F, de flocos, passando depois para o L. Ali, ficou imóvel.
Alice fungou.
Agora todo o restaurante dançava e girava à sua volta, mas sua força de
vontade mantinha em foco a mosca e a área que a cercava. Alice esticou a mão
esquerda até encostar a ponta dos dedos no balcão. Lenta, silenciosamente, foi
dando volta ao balcão. Depois ergueu a mão direita, com muito, muito
cuidado. A mosca deu alguns passinhos sobre a caixa e parou novamente.
Estava pronta para levantar vôo outra vez. Alice sentiu que a mosca ia voar.
Sentiu que ela ia voar, embora a mosca ainda estivesse imóvel. Ela desceu a
toalha molhada com todo o peso de seu corpo. A toalha molhada desceu como
um tacape, pelo meio das caixas, até estalar na prateleira. Caixas, uma dúzia
de copos novos e um jarro cheio de laranjas estouraram no chão, atrás do
balcão, e Alice caiu por cima.
A escuridão pontilhada de luzinhas vermelhas e azuis fechou-se sobre
ela. Sob seu rosto, uma caixa arrebentada espalhou flocos de aveia. Ela ainda
ergueu a cabeça uma vez, para deixá-la cair de novo quando a escuridão total
desceu.
O restaurante ficou mergulhado na penumbra e no silêncio. A mosca
pousou na margem da poça de vinho que se espalhava no topo da mesinha.
Por um momento, sondou o ambiente, olhando para todos os lados a fim de
detectar sinais de perigo, e depois, deliberadamente, mergulhou sua
probáscide achatada no vinho doce e consistente.

CAPÍTULO XII

As nuvens acumulavam ameaça cinzenta sobre ameaça e uma sombra


azulada envolvia a terra. No vale de San Juan, os verdes mais escuros se
tornavam quase negros e o verde mais claro da relva ia tomando um tom de
azul molhado. "Querida" descia poderosamente a estrada asfaltada e a pintura
de alumínio de seus flancos luzia com o brilho sinistro de uma arma
niquelada. Sobre as montanhas, ao sul, uma massa de nuvens negras
desfazia-se em chuva que caía lentamente, como uma imensa cortina.
Deixando a estrada, o ônibus fez a curva para estacionar ao lado das
bombas de gasolina, na frente do Armazém Geral Breed. As pequenas luvas de
boxe e os sapatinhas de bebê balançavam para a frente e para trás, como se
fossem pêndulos. Juan não se levantou depois de frenar o ônibus. Com o pé
no embreagem, ainda acelerou por um momento, escutando atentamente, e
então suspirou e girou a chave de contacto, desligando o motor.
- Quanto tempo vamos parar aqui? - perguntou o velho Van Brunt.
- Quero dar uma espiada na ponte - explicou Juan.
- Ainda está de pé.
- Nós também - retrucou Juan, erguendo-se e manobrando a alavanca
da porta.
Breed saiu do armazém, aproximando-se do ônibus. Trocou um aperto
de mão com Juan.
- Não está um pouco atrasado?
- Creio que não - disse Juan - a menos que meu relógio esteja atrasado.
Espinhudo desceu do ônibus e foi postar-se ao lado dos dois. Queria
estar bem colocado, para ver a loira descer do ônibus.
- Vocês têm coca?
- Não - respondeu Breed. - Só umas garrafas de Pepsi-Cola. Faz mais de
um mês que não recebo coca. Mas é a mesma coisa. Você gostando de uma,
gosta da outra, é a mesma coisa.
- Como vai a ponte? - perguntou Juan.
O Sr. Breed sacudiu a cabeça.
- Acho que desta vez ela vai mesmo. Mas é melhor você mesmo dar uma
espiada. A coisa não está nada boa.
- Cedeu em algum lugar?
- Ela bem que gostaria de ceder - disse Breed, juntando as palmas de
suas mãos. - A pressão da água está fazendo a ponte chorar como uma
criancinha. Se quiser, vamos lá olhar como estão as coisas.
O Sr. Pritchard e Ernest desceram do ônibus, seguidos por Mildred e
Camille. Norma desceu atrás. Camille tinha prática em descer de coisas.
Espinhudo não viu nada.
- Eles aqui têm Pepsi-Cola - disse Espinhudo a Camille. - Gostaria de
tomar uma?
Camille voltou-se para Norma. Estava começando a compreender
plenamente a utilidade de Norma.
- Que tal? - perguntou elo.
- Bem, por mim está bem.
Espinhudo fez um esforço para disfarçar sua decepção. Breed e Juan já
desciam a estrada, rumo ao rio.
- Vou dar uma espiada na ponte - gritou Juan, por sobre o ombro.
A Sra. Pritchard, de pé no degrau da porta do ônibus, chamou o
marido:
- Elliott, quer ver se me arranja qualquer coisa fresca para a gente
tomar? Água mesmo, se não houver mais nada. E pergunte onde é aquilo que
você sabe.
- É lá atrás - informou Norma.
Breed ajustou seu andar ao de Juan, enquanto desciam a estrada rumo
à ponte.
- Faz anos que eu espero a ponte rodar - disse ele. - Só queria que
houvesse aqui uma ponte que me deixasse dormir quando chove forte de
noite. Fico acordado, ouvindo a chuva matracar no telhado, mas estou mesmo
atento é ao barulho da ponte, sabe como é. E eu nem posso saber como será o
barulho que ela vai fazer quando cair.
Juan sorriu para o amigo.
- Eu sei o que é isso. Lembro que isso acontecia em Torreón, quando eu
era pequeno. De noite, nós costumávamos ficar ouvindo aqueles estalos, lá
longe, porque sabíamos que eram tiros de revólver, de homens brigando. Nós
gostávamos, mas quando isso acontecia o velho chegava sempre tarde. E um
dia ele foi e não voltou. Acho que nós já sabíamos que aquilo ia acontecer,
mais cedo ou mais tarde.
- E o que houve com ele? - perguntou Breed.
- Eu nunca soube direito. Alguém meteu chumbo nele. O velho não
podia ficar em casa quando havia barulho na cidade. Tinha de entrar no coisa.
Acho que ele nem se preocupava com a causa do conflito. E quando voltava
para casa ele tinha sempre uma boa história para nos contar. - Juan sorriu,
pensativamente. - Costumava contar sempre uma historieta sobre Poncho
Villa. Dizia que uma mulher muito pobre chegou a Poncho Villa, um belo dia,
e disse a ele: "Você mandou matar meu marido e agora eu e os pequenos
passamos fome." Bem, nessa ocasião, Poncho Villa estava cheio de dinheiro.
Tinha máquinas de imprimir e estava imprimindo seu próprio dinheiro. Então
ele chamou o seu tesoureiro e disse assim: "Embrulhe aí cinco quilos de notas
de vinte pesos e entregue a essa pobre mulher." Ele nem contava o dinheiro,
de tanto que tinha. E então o tesoureiro fez um belo pacote, reforçado com
arame, entregou para a mulher e ela foi embora. Mas logo depois apareceu um
sargento e disse a Villa: "Parece que houve um engano, meu general. Nós não
fuzilamos o marido daquela pobre mulher. Ele tomou uma bebedeira e agora
está na cadeia." E então Poncho ordenou: "Pois fuzilem o homem
imediatamente. Afinal, nós não podemos desapontar essa pobre mulher."
- Mas isso não faz sentido - observou Breed.
Juan riu.
- Eu sei, e é por isso mesmo que gosto dessa história. Deus, o rio está
levando a terra das muretas!
- Eu sei. Já tentei telefonar, para avisar o pessoal - disse Breed. - Mas
não consegui falar com ninguém.
Os dois continuaram a descer a estrada, rumo à ponte. E, no momento
em que pos o pé sobre o madeiramento, Juan sentiu a vibração da torrente,
como um mudo trovão contra a sola de seu sapato. A ponte tremia e vibrava.
O madeiramento chorava, seu zumbido grave e surdo sobrepondo-se à canção
das águas espumarentas. Juan olhou para os lados da ponte. As grandes
travessas de suporte que apoiavam a plataforma central já estavam debaixo
d"água, e o rio fervia e borbulhava em torno delas. Toda a ponte tremia e
gemia, e as madeiras cruzadas por peças de aço davam gritos curtos e agudos.
Enquanto olhava o rio, um grande carvalho selvagem, desenraizado pela
tempestade, surgiu descendo pesadamente pela corrente. Quando atingiu a
ponte, toda a estrutura gritou e Juan teve a impressão de que madeira e aço
se uniam num abraço estreito para resistir. A árvore penetrou entre os
ferragens submersas e o rangido de metal que se rasgava cortou o ar. Os dois
homens recuaram rapidamente para a margem.
- Está subindo muito depressa? - perguntou Juan.
- Trinta centímetros, na última meia hora. Mas agora pode ser que
comece a descer, é claro. Talvez tenha atingido o ponto mais alto.
Juan correu os olhos pelos suportes da ponte. Localizou um grande
rebite que ficava bem ao nível da água e manteve os olhos nele.
- Acho que posso passar - disse ele. - Andando depressa, acho que
posso passar. Ou então os passageiros passam a pé e depois eu passo com o
ônibus e recolho todo mundo do outro lado. Como é que está a outra ponte?
- Não sei. Tentei telefonar, mas não consegui falar com ninguém do lado
de lá. Agora, olhe aqui, e se você passar por esta, encontrar a outra caída e
quando voltar esta também tiver rodado? Vocês ficariam presos entre os dois
braços do rio. E os passageiros não iriam gostar.
- Passe ou não passe, tenho passageiros que não gostam de nado -
disse Juan. - Tenho um... não, dois, que estão sempre preparados para brigar
e reclamar. Eu vejo pela cara deles. Conhece um velho chamado Van Brunt?
- Ah, aquele velho chato? Se conheço, se conheço! Pois ele me deve
trinta e sete dólares. Vendi a ele umas sacas de sementes de alfafa e ele alega
que as sementes estavam estragadas. Não quer pagar. Deve a Deus e todo
mundo neste município. Não vendo fiado nem um doce a esse camarada. Ele
iria dizer que o doce estava amargo. Então, veio nessa viagem com vocês?
- Veio - disse Juan. - E também tenho comigo um camarada de
Chicago. Um industrial, tubarão graúdo. E ele vai ficar danado se as coisas
não saírem como tinha planejado.
- Bem, de um jeito ou de outro, você tem de resolver se vai passar ou
não.
Juan ergueu os olhos para o céu ameaçador.
- Acho que vai chover, nem tem dúvida. Por aí já está tudo alagado e a
água vai descer toda para o rio. Posso passar, acho que posso; mas, e a volta?
- Uma chance em dez - calculou Breed. - E sua senhora como vai?
- Não vai muito bem. Está com dor de dentes.
- Isso de manter os dentes em ordem não é sopa - disse Breed. - A gente
tem de ir ao dentista de seis em seis meses.
Juan riu.
- Eu sei. Mas você conhece alguém que vá?
- Não - respondeu Breed. Ele gostava de Juan, gostava tanto que nem o
considerava estrangeiro.
- Nem eu - disse Juan. - Bem, mas há um jeito de evitar brigas com os
passageiros.
- Que jeito?
- Posso pedir a eles que decidam. Afinal isto aqui é uma democracia,
não é?
- É, mas acontece que isso iria dar numa briga entre os passageiros.
- Bem, e que mal haveria nisso?
- Não sei, talvez você tenha razão - disse Breed.
- Mas sou capaz de apostar que decidam o que decidirem de um jeito ou
de outro, o velho Van Brunt vai ser contra. Se a volta do Messias fosse
aprovada por voto popular, ele seria contra.
- Não há problema - disse Juan. - Basta saber como lidar com ele. Eu já
tive um cavalo tão teimoso que quando se puxava a rédea da esquerda ele
virava sempre para a direita. Pois eu enganava o raio do cavalo. Fingia que
queria ir para o outro lado e ele ia sempre para onde eu queria ir mesmo,
pensando que estava escolhendo o caminho. A gente pode obrigar o velho Van
Brunt a fazer quase qualquer coisa, discordando dele.
- Pois vou proibi-lo de pagar os trinta e sete dólares que me deve -
lembrou Breed.
- Talvez assim ele pague. Bem, a rio ainda está subindo. Agora mesmo
cobriu um rebite que eu tinha marcado. Vamos ver o que resolvem os
passageiros.
No balcão do Armazém Geral Breed, Espinhudo sentia-se meio roubado.
Inicialmente, sua manobra tivera êxito, pois ele conseguira levar Camille e
Norma para o balcão, para tomarem uma Pepsi-Cola. Contudo, a despeito de
todos os seus esforços, verificara que era impossível separar Camille de
Norma. E não por culpa de Norma. Era Camille quem a usava como um
escudo.
Norma estava corada de alegria. Nunca se sentira tão feliz em toda sua
vida. Aquela bela criatura a tratava bem. Eram amigas. E não tinha dito que
iriam viver juntas? Dissera que ia ver no que davam as coisas. Por uma razão
qualquer, isso dava a Norma grandes esperanças. No decorrer de sua vida,
Norma não tinha sido bem tratada pelos outros. Geralmente, todos prometiam
fazer o que ela queria, para depois esquecê-la.
Mas a loira, que representava tudo quanto Norma queria ser, dissera
apenas que iria ver no que davam as coisas. Mentalmente, Norma já
visualizava o apartamento em que viveriam. Um belo sofá de veludo, com uma
mesinha de café na frente. As cortinas seriam de veludo vermelho escuro, cor
de vinho. Teriam também uma rádiovitrola, é claro, e pilhas de discos. Ela
nem queria pensar muito nisso. Era quase como tentar o diabo. E o sofá podia
ser de veludo azul-elétrico.
Norma ergueu seu copo de Pepsi-Cola e deixou a bebida doce e picante
descer por sua garganta, mas ainda não tinha acabado de tomar aquele gole
quando o desespero desceu sobre ela e envolveu-a, como um gás pesado. "Isso
jamais acontecerá" - gritava uma vozinha dentro de sua cabeça. "Isso jamais
acontecerá! Vai dar tudo em droga, como sempre, e você ficará sozinha outra
vez!" - Norma apertou os olhos, com força, e passou as costas da mão sobre
eles. Quando abriu outra vez os olhos, estava novamente em forma. - Eu darei
um jeito - pensou ela. - Vou economizando, guardando dinheiro, para ir
comprando tudo pouco a pouco. Assim, mesmo que a coisa não dê certo, eu terei
o apartamento. Norma agora era forte, tinha a força da resignação. - Se
acontecer, será ótimo. Mas não posso contar com isso, não posso contar com
certeza. Se contasse, iria tudo por água abaixo.
- Tenho os meus planos - dizia Espinhudo. - Estou estudando radar. É
um campo novo, que tem muito futuro. Os camaradas que entenderem de
radar vão ficar por cima. Acho que a gente tem de olhar sempre para a frente,
não é? Certas pessoas, por exemplo, não gostam de olhar para a frente e
acabam sempre onde começaram.
Os lábios de Camille estavam gelados num pequeno sorriso.
- Acho que você tem razão - disse elo. Estava ansiosa por
desembaraçar-se dele. Era um bom rapaz, mas ela estava louca por
desembaraçar-se dele. Podia sentir seu cheiro, literalmente. - Muito obrigado
pelo refrigerante - disse ela. - Agora, tenho de dar um pulinho ao lavatório,
para ver como está minha cara. Não quer vir também, Norma?
O rosto de Norma estava transfigurado pela devoção quando se voltou
para a amiga.
- Sim, creio que vou com você. - Tudo o que Camille dizia era
apropriado, adequado e elegante. - Oh, Jesus Cristo - rogou Norma
mentalmente - faça com que tudo de certo!
A Sra. Pritchard estava tomando uma limonada. Demorara um pouco,
pois ali eles não costumavam servir limonadas. Mas quando a Sra. Pritchard
indicou a pilha de limões ao lado do balcão, chegando a oferecer-se para
espremê-los... bem, a Sra. Breed não tivera alternativa senão produzir a
reclamada limonada.
- Não suporto esses refrigerantes engarrafados - explicara a Sra.
Pritchard. - Gosto do suco de frutas. - A Sra. Breed, ressentida, teve de
curvar-se ante aquela barragem de explicações e gentileza. Tomando sua
limonada, a Sra. Pritchard correu os olhos pelos cartões-postais expostos
numa pequena vitrina. Havia fotografia do edifício do tribunal de San Juan de
La Cruz e do hotel de San Isidro, o qual se erguia ao lado de uma fonte de
água mineral gasosa. Um bom hotel, muito procurado por turistas reumáticos
que tomavam banhos de água mineral. Nos cartões-postais, o hotel era
descrito como uma estação balneário. Na mesma vitrina havia ainda diversas
novidades em quinquilharia. Cãezinhos coloridos de matéria plástica, pistolas
de vidro cheias de bolas coloridas, bonecas e caixas de madeira com doces
cristalizados da Califórnia. Havia também quebra-luzes com figuras coloridas
que pareciam girar quando a lâmpada era ligada, dando um aspecto dos mais
realistas a incêndios florestais e às tempestades que açoitavam os brancos
veleiros.
Ernest Horton estava sentado num tamborete junto à vitrina, que ele
considerava com mal disfarçado escárnio. Voltando-se para o Sr. Pritchard, ele
disse:
- Às vezes tenho vontade de abrir minha própria loja, com um estoque
de tudo o que é realmente novidade. Sabe como é, há por aí artigos que estão
à venda, como novidades, há mais de dez anos, coisa que ninguém mais pensa
em comprar. Minha companhia trabalha exclusivamente com artigos que são
mesmo novidades.
O Sr. Pritchard assentiu.
- Se há uma coisa que dá confiança a um homem é trabalhar para uma
firma que só produza artigos de primeira classe. E por isso que pensei que
talvez você gostasse de trabalhar conosco. Você, conosco, poderia trabalhar
com confiança, vinte e quatro horas por dia.
- Com licença - disse Ernest - vou buscar minha mala. Tenho comigo
um novo artigo que ainda não foi lançado no mercado, mas que já está sendo
encomendado em quantidade pelos atacadistas. Mas eu gostaria de colocar
alguns aqui.
Minutos depois ele voltava com a mala, que abriu com cuidado. Retirou
uma caixa de papelão.
- A embalagem é simples, como vê. Isso é para garantir a surpresa. -
Abrindo a caixa, ele tirou uma privadinha em miniatura, das que têm uma
caixa d"água superior. A imitação era perfeita e tinha uns trinta e cinco
centímetros de altura. Da caixa pendia uma correntinha com puxador de
cobre, e a bacia da privadinha era revestida de porcelana alvíssimo. A
privadinha tinha até mesmo uma pequena banca de plástico, pintada de forma
a imitar madeira.
A Sra. Breed estava do outro lado do balcão.
- Aqui, quem faz todas as compras é meu marido - disse ela. - Você vai
ter de falar com ele.
- Eu sei - respondeu Ernest. - Só queria que visse este artigo. Ele se
vende por si.
- E para que serve? - perguntou o Sr. Pritchard.
- Veja - respondeu o rapaz. Puxou a correntinha de descarga e
imediatamente um fluido pardo encheu a bacia da privadinha. Ernest ergueu
a banca de matéria plástica e a bacia transformou-se num cálice de porcelana.
- Dá uma dose bem medida - disse ele, triunfante. - Se quiser uma dose
dupla, como para um high-ball, por exemplo, basta puxar a correntinha duas
vezes.
- Uísque! - gritou o Sr. Pritchard.
- Ou conhaque, ou rum - aduziu Ernest. - O que se quiser. Olhe, é por
aqui que se enche a caixa com a bebida que se quiser, pois ela é de plástico,
garantido. Não imagina como o artigo está sendo vendido. Ainda não cheguei
nem ao meio de minha zona e já vendi mais de dezoito mil. É tiro e queda. Não
há quem não ache graça.
- Não há dúvida, é bem pensado - concordou o Sr. Pritchard. - Quem é
que inventa essas coisas?
- Bem - explicou Ernest - temos na empresa um departamento de
idéias. Todo mundo envia para lá as idéias que tem. Esse artigo nasceu de
uma sugestão de nosso vendedor na zona dos Grandes Lagos. Já ganhou uma
bela gratificação. Nossa companhia dá dois por cento dos lucros a qualquer
empregado que faça uma sugestão aproveitável.
- Bem pensado - repetiu o Sr. Pritchard. Já podia ver a cara de Charlie
Johnson, quando desse a descarga na privadinha. Charlie sairia correndo,
para comprar uma.
- Por quanto vocês estão vendendo cada uma dessas?
- Bem, no varejo esta vai ser vendida a cinco dólares. Mas se me
permite fazer uma sugestão, temos um outro modelo, para vinte e sete dólares
e cinqüenta.
O Sr. Pritchard ergueu as sobrancelhas.
- Espere, antes de dizer qualquer coisa, tome nota das vantagens do
modelo mais fino. Este é todo de plástico. O outro... bem, a caixa é de madeira
de lei, carvalho aproveitado de velhos barris de uísque, o que garante a
conservação de qualquer bebida. A corrente da descarga é de prata maciça e o
puxador adornado com um diamantezinho brasileiro. A bacia é de porcelana
legítima, importada, e a banca de mogno entalhada a mão. A caixa em que
vem a privadinha tem uma placa de prata, onde o comprador pode mandar
gravar o nome, se quiser fazer um presente à sua associação ou clube.
- Bem, nesse caso, vale o que vocês cobram - concordou o Sr. Pritchard.
Já tomara sua decisão. Agora ele sabia que poderia encostar Charlie Johnson
na parede. Daria uma das privadinhas a Charlie. Mas, na placa de prata, ele
mandaria gravar: "De Elliott Pritchard a Charlie Johnson, o maior isso-e-anulo
dos Estados Unidos.
Charlie poderia mostrá-la a quem quisesse. Mas todos veriam de quem
tinha sido a idéia.
- Você não tem nenhuma desse tipo na mala, não?
- Não, essas são feitas sob encomenda.
Então, a Sra. Pritchard manifestou-se. Silenciosamente, ela se
aproximara devagarinho dos dois homens.
- Elliott, você não vai comprar uma dessas coisas. São vulgares, Elliott.
- Eu não exibiria uma dessas privadinhas em presença de senhoras, é
claro - assegurou o Sr. Pritchard. - Não, minha menina. Sabe o que eu vou
fazer? Vou mandar uma ao Charlie Johnson, de presente. Em troca daquele
gambá empalhado que ele me mandou. Vai lhe servir de lição.
A Sra. Pritchard entrou em explicações.
- Charlie Johnson foi companheiro de quarto do Sr. Pritchard, quando
estudavam. Desde então eles fazem dessas brincadeiras, um com o outro.
Quando estão juntos, mais parecem dois meninos.
- Olhe aqui - disse o Sr. Pritchard - se eu encomendasse uma delas,
modelo de luxo, vocês mandariam gravar umas palavras na plaquinha e
providenciariam a entrega? Posso escrever agora mesmo as palavras que quero
gravadas.
- Que é que você vai escrever? - perguntou Bernice.
- As meninas não devem meter o nariz em negócios de gente grande.
- Aposto que é alguma coisa horrível - afirmou a Sra. Pritchard.
Mildred estava deprimida. Sentia-se pesada, cansada e não estava
interessado em coisa alguma. Sentara-se num velha cadeira de arame
trançado, solitária, no fim do balcão. Dali, acompanhara, tranqüilamente, as
manobras desenvolvidas por Espinhudo para isolar a loira. A viagem estava
dando em droga. Estava decepcionada consigo mesma e com tudo que havia
acontecido. Que poderia esperar, de si própria, como mulher, se um motorista
de ônibus a fazia perder o controle? Tremeu um pouco, engulhada. Onde
estaria ele agora? Por que ainda não teria voltado? Lutou para dominar o
súbito impulso de levantar-se e sair à procura dele. Tomou um tremendo
susto ao ser trazida de volta à realidade por Van Brunt, que se aproximara
dela por detrás.
- Senhorita - disse o velho - sua combinação está aparecendo. Achei que
gostaria de saber.
- Oh, sim. Muito obrigada.
- Poderia passar o dia todo pensando que não havia nada aparecendo,
se ninguém a advertisse.
- Pois é, muito obrigada. - Ela levantou-se e, olhando por cima do
ombro, esticou a saia para frente, contra as pernas, tentando ver onde
aparecia a barra da combinação. Atrás, realmente, três centímetros da barra
estavam expostos.
- Acho que quando se trata de coisas assim é melhor falar diretamente
com a pessoa - afirmou o velho.
- Oh, sim. Creio que uma alça rebentou.
- Não me interesso por sua roupa de baixo - replicou Van Brunt,
friamente. - Como já disse, e repito, sua combinação está aparecendo. Não
quero que pense que eu tinha qualquer outra intenção ao chamar-lhe a
atenção.
- Eu não pensei - replicou Mildred, desalentada.
Mas o velho prosseguiu:
- Hoje em dia, muitas jovens emprestam às próprias pernas uma
importância que elas não têm. Pensam que todo mundo está interessado em
suas pernas.
Subitamente, Mildred não conseguiu conter o riso.
- Em que achou tanta graça? - indagou Van Brunt, danado.
- Em nada - respondeu ela - em nada. É que me lembrei de uma
anedota. - Ela lembrava também que Van Brunt passara a manhã atento a
toda e qualquer exibição ocasional de pernas femininas.
- Bem, se é engraçada assim, pode contá-la - disse ele.
- Oh, não. Não é anedota que se conte. E agora, tenho de dar um jeito
nesta alça. - Mildred examinou-o bem e então, deliberadamente, disse: - Sabe
como é, há duas alças sobre cada ombro. Uma é da combinação e, a outra é
do soutien e o soutien serve para manter os seios erguidos e firmes. - Ela
acolheu com um sorriso o rubor que subia do colarinho de Van Brunt e lhe
tomava todo o rosto. - Para baixo não há mais nada, a não ser as calças, e isso
se eu usasse calças, o que não costumo fazer.
Van Brunt voltou-lhe as costas e desapareceu, o que fez com que
Mildred imediatamente se sentisse melhor. A partir daquele momento o velho
idiota estaria sobre brasas. Poderia observar seus movimentos e talvez até
mesmo pegá-lo em flagrante, surpreende-lo olhando para suas pernas. Ainda
rindo do desapontamento do velho, Mildred deu volta ao prédio do armazém,
rumo à porta de onde pendia a placazinha SENHORAS.
Uma trepadeira subia pela treliça armada em tomo da porta. Bernice
parou ante a porta fechada. Podia ouvir Norma falando com a loira, lá dentro.
Ficou ouvindo.
Talvez só aquilo, atentar no que diziam as pessoas, já valesse toda a
viagem. Mildred gostava de ouvir o que os outros diziam. As vezes, esse
interesse chegava a preocupá-la. Podia ouvir até mesmo banalidades com
interesse. Mas de todas as conversas que gostava de ouvir, as que mais
apreciava eram as que ouvia em reservados de senhoras. A liberdade com que
se exprimem as mulheres onde quer que encontrem uma privada, um espelho
- uma pia, era uma coisa que sempre a intrigara. Certa vez, chegara a redigir
uma tese, considerada muito audaciosa em seu colégio, segundo a qual as
mulheres só perdem realmente suas inibições quando estão de saias erguidas.
Deve ser isso, pensou ela, ou então a certeza de que - homem, o inimigo, não
se atreveria a invadir aquele território. É o único lugar do mundo em que as
mulheres podem agir com inteira liberdade, certas de que ali não encontrarão
homens. Assim, é ali que se relaxam, extravertendo suas introversões. Ela
pensara muito nisso. As mulheres eram mais amistosas ou mais agressivas
nos reservados, contudo, sempre em termos pessoais. Talvez isso também
acontecesse em virtude da ausência de homens. Onde não há homens
necessàriamente não há competição, assim as mulheres abandonam suas
poses e atitudes estudadas ao cruzar a porta do reservado.
Mildred só desejava saber se o mesmo ocorria nos reservados
masculinos. Julgava que não fosse assim, pois os homens competem por
muita coisa além de mulheres, enquanto muito da insegurança feminina gira
em torno dos homens. Sua tese a respeito tinha sido devolvida com a
observação. "Não foi devidamente ponderada." Ela pretendia reescrevê-la.
Até então não adotara uma atitude amistosa para com Camille. Não
gostava dela, simplesmente. Mas sabia que aquele sentimento não prevaleceria
no reservado. "Não é estranho - pensou - que as mulheres se vejam na
obrigação de competir ainda mesmo pelos homens que não desejam?"
Norma e Camille falavam e falavam. Mildred encostou a mão na porta e
empurrou-a. O reservado era um aposento pequeno, com uma privada, uma
pia e um espelho de parede, quadrado. Numa das paredes estava a caixa de
papel destinado a cobrir a banca da privada e ao lado da pia havia uma
braçadeira com toalhas de papel.
Uma máquina automática de panos higiênicos, dessas que funcionam
com a introdução de uma moeda na fresta, fora instalada ao lado da janela de
vidros foscos. O chão de concreto era pintado de vermelho e as paredes
tinham recebido mão sobre mão de cal. No ar pairava o cheiro acre de
desinfetante perfumado.
Camille estava sentada na privada e Norma observava-se ao espelho.
Ambas olharam logo para Mildred quando ela entrou.
- Quer vir aqui? - perguntou Camille.
- Não - respondeu ela. - Parece que uma das alças de minha
combinação escapou.
Camille olhou para a barra do vestido de Mildred.
- É, soltou mesmo. Não, desse jeito não - prosseguiu ela, dirigindo-se a
Norma. - Você não está vendo a linha do cabelo, em sua testa? Bem, levante
as sobrancelhas um pouquinho, por fora, só um pouquinho. Espere, meu
bem. Espere um momentinho que eu já lhe mostro como é.
Camille levantou-se e foi até o espelho, ao lado de Norma.
- Vire-se para cá um pouco, que eu quero vê-la. Isso, assim. Agora,
examine-se ao espelho. Você vê como isso faz com que a linha de seu cabelo
pareça mais baixa? Você tem a testa alta e deve fazer com que fique mais
baixa um pouco. Agora, olhe aqui um pouco, feche os olhos. - Tomando o lápis
de sobrancelhas dos dedos de Norma, ela correu-o de leve sobre as pálpebras
inferiores da mocinha, logo abaixo das pestanas, calcando um pouco nos
cantos externos.
- Você está usando rimmel demais, querida - prosseguiu. - Está vendo
como as pestanas ficam pegajosas? Use mais água, perca mais um pouco de
tempo. Espere aí um pouco, vou mostrar uma coisa a você. - A loira tirou de
sua bolsa uma pequena caixinha plástica de sombra de olhos. - Bem, com isto
a gente tem de tomar cuidado. - Roçando o dedo pela pasta azulada, passou
um pouco da massa sobre cada uma das pálpebras superiores de Norma,
escurecendo mais um pouco os cantos externos. - Bem, agora vamos ver que
tal ficou. - Ela inspecionou Norma, cuidadosamente. - Olhe aqui, querida, você
anda com os olhos muito abertos, arregalados como os de um coelho. Deixe as
pálpebras superiores caírem mais um pouco. Não, e não pisque. Deixe as
pálpebras caírem só um pouquinho, assim. Isso, assim mesmo. Agora, veja-se
no espelho. Note a diferença.
- Meu Deus, eu estou mesmo diferente - disse Norma, e sua voz estava
cheia de pasmo.
- Claro que está, querida. Agora, olhe aqui, você não pintou direito a
boca. Olhe, veja aqui, meu bem, seu lábio inferior é muito fino. Como o meu.
Passe o batom um pouco mais baixo, aqui e aqui.
Norma permanecia imóvel, como uma boa menina, deixando Camille
trabalhar em paz sobre seu rosto.
- Está vendo? Um pouco mais forte nos cantos. Pronto - disse Camille -
agora seu lábio inferior parece mais cheio.
- Você entende da coisa, é boa nisso - disse Mildred. - Gostaria de que
me desse uns conselhos também.
- Ora, mas isso é muito simples.
- Não, é pintura de atriz - disse Mildred. - Isto é, uma pintura do tipo
das que usam as atrizes.
- Bem, você sabe como é, quem tem de lidar com o público... os
dentistas preferem enfermeiras que sejam também recepcionistas.
- Ora, mas que diabo! - exclamou Mildred. - Minha alça não escapou,
rebentou. - Ela abaixara o vestido sobre o ombro e tinha na mão uma fitinha
de seda.
- Vai ter de por alfinete aí - disse Camille.
- Mas eu não tenho alfinete comigo e a linha e agulha estão numa das
malas!
Camille abriu a bolsa novamente, mostrando meia dúzia de pequenos
alfinetes de gancho presos ao forro.
- Olhe - disse ela - tire um. Eu ando sempre preparada. Quer que eu
prenda para você?
- Será um grande favor. Meus olhos são o diabo. Não enxergo nada sem
óculos.
Camille desenrolou a alça, passou o alfinete pela ponta, passou a ponta
do alfinete pela combinação e fechou.
- Não fica lá grande coisa, mas pelo menos a sua combinação não
aparece mais por baixo. Serviço provisório. Sua vista foi sempre fraca, meu
bem?
- Não - respondeu Mildred. - Eu tinha vista muito boa, até, mais ou
menos... deixe ver, catorze anos. Um médico disse que isso está ligado com a
puberdade. Disse que certas mulheres recuperam a visão perfeita depois de
terem o primeiro filho.
- É duro - observou Camille.
- É uma coisa muito chata - concordou Mildred. - Isso de óculos de
novos formatos não interessa. Tenham a forma tiverem, os óculos são sempre
uma coisa feia.
- Já ouviu falar dessas lentes de contacto, que são colocadas
diretamente nos olhos?
- Pensei nisso, mas não resolvi nada. Acho que fico com medo de andar
com uma coisa dessas, encostada nos meus olhos.
Norma ainda estava plantada na frente do espelho. Seus olhos se
haviam tornado maiores de repente, seus lábios mais cheios e macios e aquele
aspecto de rato molhado desaparecera de seu rosto.
- Não é mesmo maravilhoso? - perguntou ela, em voz alta. - Não é
mesmo maravilhoso?
- Você vai se transformar numa bela garota - assegurou Camille -
quando aprender a pintar o rosto direito e quando ganhar mais um pouco de
autoconfiança.Vamos dar um jeito nesse seu cabelo, meu bem, assim que
chegarmos.
- Quer dizer que você já resolveu? - gritou Norma. - Quer dizer que nós
vamos mesmo para o apartamento? - Ela voltou-se para Mildred. - Vamos ter
um apartamento - disse ela, sem fôlego. - Vamos ter um belo sofá de veludo e
nos domingos de manhã nós vamos lavar a cabeça e...
- Vamos ver - cortou Camille. - Vamos ver no que dão as coisas. Cá
estamos nós, prontas, sem emprego, e ela já está pensando em alugar um
apartamento duplex. Devagar com o andor, meu bem.
- Uma viagem gozada - disse Mildred. - Estamos a caminho do México.
Tudo deu errado, desde que partimos. Meu pai queria conhecer bem esta
zona. Ele pensa em vir morar na Califórnia, quando se aposentar. Foi por isso
que ele preferiu ir de ônibus para Los Angeles. Achou que assim poderia
conhecer melhor esta região.
- Bem, ele pode - disse Camille.
- Pode conhecer até demais - respondeu Mildred.
- Mas você já viu uma coleção de tipos como essa do ônibus?
- São mais ou menos a mesma coisa, todos eles - disse Camille.
- Como o Sr. Chicoy, por exemplo - disse Mildred. - Ele é meio
mexicano, você sabe. E aquele rapazinho! Dá a impressão de que está pronto
para pular em cima da gente, na primeira oportunidade.
- Ora, não há nada de mal com ele - respondeu Camille. - Apenas um
pouco excitado. Como quase todo rapaz, nessa idade. Provavelmente, ele
superará logo essa fase.
- Talvez não supere - disse Mildred. - Você já observou bem aquele
velho, o tal Van Brunt? Ele, por exemplo, não superou essa fase. Até
retrogradou um pouco. Um velho cheio de idéias sujas.
Camille sorriu.
- Ele é muito velho.
Mildred dirigiu-se ao pequeno cubículo e sentou-se.
- Há uma coisa que eu gostaria de perguntar a você - disse ela. - Meu
pai está certo de que a conhece de algum lugar. Ele tem uma memória
infalível. Você o conhece, já o tinha visto antes, por acaso?
Durante um segundo, Mildred viu a hostilidade endurecer o olhar de
Camille, estreitar sua boca, e percebeu que tocara em algo doloroso. Mas logo
a fisionomia de Camille reverteu à sua habitual placidez.
- Creio que devo ser muito parecida com alguém - disse elo. - Ele pode
ter boa memória, mas desta vez está enganado, a menos que me tenha visto
na rua, passando por ele.
- No duro? - insistiu Mildred. - Não estou duvidando do que me disse.
Estou apenas pensando no caso.
A familiaridade, a despreocupação, o companheirismo, desvaneceram-
se como por encanto no reservado. Era quase como se um homem tivesse
entrado, de supetão. Os olhos de Camille apunhalaram Mildred.
- Pois seu pai está enganado - disse ela, friamente. - Acredite ou não, o
fato é que se enganou.
A porta do reservado foi aberta e a Sra. Pritchard entrou.
- Ah, então você está aqui - disse ela a Mildred. - Pensei que tivesse ido
dar uma volta.
- Não, é que uma alça de minha combinação rebentou.
- Bem, então vamos logo. O Sr. Chicoy voltou, e eles estão discutindo
como loucos... Obrigada, querida - disse ela a Norma, que se afastara da pia
para dar-lhe lugar. - Vou somente molhar a ponta de meu lenço e tirar um
pouco de poeira da ... Por que você não vai tomar uma limonada? - perguntou
ela a Mildred. - Aquela boa mulher diz que não é trabalho nenhum. Eu lhe
disse que ela ficará famosa se vender apenas suco de frutas, bem puro.
Subitamente, Camille observou:
- Seria bom comermos qualquer coisa. Estou ficando com fome Gostaria
de comer qualquer coisa boa.
- Eu também - disse a Sra. Pritchard.
- Gostaria de comer uma boa lagosta fria, com maionese e cerveja -
sugeriu Camille.
- Bem, para falar a verdade, nunca comi lagosta em salada - disse a
Sra. Pritchard - mas gostaria que você pudesse provar peixe de água doce, do
jeito que minha mãe costumava fazer. Ela usava uma velha frigideira de ferro
... e o peixe tinha de ser bem fresquinho e cuidadosamente escamado. Fazia
um recheio de farinha de pão preto - de pão preto, e não de rosca - e depois
punha uma colher de sopa - não duas colheres, de molho inglês numa gema
de ovo. Creio que o segredo estava nisso.
- Mamãe - pediu Mildred - não comece com essa história da receita de
peixe de água doce que sua mãe fazia.
- É melhor você ir tomar uma limonada - disse a Sra. Pritchard. - Fará
bem para sua pele. Uma viagem longa como essa deixa a gente com a pele
toda manchada.
- Tomara que o ônibus saia logo - disse Mildred.
- Assim poderíamos almoçar na próxima cidade. Como é que se chamo?
- San Juan de La Cruz - disse Norma.
- San Juan de La Cruz - repetiu baixinho a Sra. Pritchard. - Acho lindos
esses nomes espanhóis.
Antes de sair, Norma lançou ainda ao espelho um último e longo olhar,
cheio de pasmo. Deixou as pálpebras superiores caírem um pouquinho. Sabia
que ter de acostumar-se a mantê-las sempre assim era uma coisa que iria
demandar muito tempo e prática, mas aquilo mudava toda sua aparência e ela
gostara da nova Norma que tinha visto no espelho.

CAPÍTULO XIII

Juan estava sentado num tamborete, bebendo uma Pepsi-Cola e


esfregando o coto do dedo amputado contra o tecido macio das calças de brim.
Quando as mulheres voltaram do reservado e entraram no armazém ele
ergueu os olhos e começou a tamborilar com o dedo sobre o balcão em lugar
de esfregá-lo.
- Todo o pessoal está aqui? - perguntou ele. - Não, falta alguém ainda.
Onde está o Sr. Van Brunt?
- Estou aqui. - A voz veio do fundo do armazém, seção de lotaria, onde,
atrás de uma pilha de latas de café solúvel, o velho inspecionava as
prateleiras.
- Quero saber quando é que partimos - disse o Sr. Pritchard. - Tenho
compromissos.
- Eu sei - explicou Juan, calmamente. - É sobre isso que quero falar. A
ponte não está muito firme. Provavelmente, poderei passar por ela. Mas há
uma outra ponte, depois desta, e pode ser que tenha caído, ou que caia antes
de passarmos por ela. Não se pode saber se está de pé ou não. Se ficarmos
presos na curva no rio, entre as duas pontes, estaremos isolados e ninguém
vai poder cumprir seus compromissos. Bem, estou disposto a dor uma
oportunidade a todos, para que decidam, e a fazer o que a maioria decidir. Ou
tentamos seguir caminho, ou levo todos de volta, e então cada qual trata da
sua vida. Cabe a vocês decidir. Mas quando decidirem se vamos ou não, não
poderemos voltar.
Depois ele ergueu a garrafinha e bebeu a Pepsi-Cola.
- Não tenho tempo - afirmou o Sr. Pritchard. - Escute, meu amigo. Não
gozo férias desde que a guerra rebentou. Desde então, estive produzindo os
acessórios militares que nos garantiram a vitória na guerra, e estas são as
primeiras férias que tiro desde então. Não tenho tempo a perder, não posso
perder tempo com problemas de viagem. Preciso de um bom descanso. Tenho
apenas algumas semanas de férias e cada dia de viagem é um dia perdido.
- Sinto muito - explicou Juan. - Não estou fazendo isso de propósito,
como sabe, e se ficarmos presos na curva do rio você ainda vai perder mais
tempo e talvez eu perca o ônibus tentando passar. A ponte não vai resistir
muito tempo, está no fim. Pode ceder a qualquer minuto. Agora, ou bem
tentamos passar ou bem voltamos; não há mais nada a fazer.
Van Brunt surgiu detrás da pilha de latas de café. Trazia na mão uma
lata de meio quilo de pêssegos em calda. Cruzando o armazém, ele caminhou
diretamente para a Sra. Breed.
- Quanto custa?
- Quarenta e sete cents.
- Meu Deus! Por uma lata de compota?
- Vendemos pelo preço antigo - disse elo. - E estamos pagando mais ao
fabricante.
Van Brunt atirou com força uma moeda de meio dólar sobre o balcão.
- Abra, abra - ordenou ele. - Quarenta e sete cents por uma latinha de
pêssegos!
A Sra. Breed levou a lata até um abridor de parede, girou a manivela e
ergueu a tampa, sem destacá-la. Depois passou a lata por sobre o balcão a
Van Brunt. Primeiro, ele a ergueu e bebeu um pouco de calda, depois enfiou
os dedos na lata e pescou uma fatia amarela. Manteve a fatia sobre a lato
aberta, pingando.
- Ouvi o que você disse - declarou depois, voltando-se para Juan. - Você
pensa que temos tempo a perder. Tenho de ir ao tribunal, e tenho de ir esta
tarde. Isso só depende de você. Você tem um alvará de transporte público e
tem também a obrigação de respeitar os regulamentos.
- É justamente o que estou tentando fazer - respondeu Juan. - O
regulamento diz que não se deve matar os passageiros.
- Isso tudo aconteceu porque você não conhece esta zona - prosseguiu o
velho. - Devia haver uma lei específica, estabelecendo que, para dirigir um
ônibus, o candidato precisasse provar que conhece bem a região. - Van Brunt
meteu o pedaço de pêssego na boca e ergueu outra fatia entre o indicador e o
polegar. Fazia tempo que não se divertia tanto.
- Você disse que só há duas coisas a fazer. Pois não há duas, há três.
Você não conhece a estrada velha, que nos servia muito bem antes deles
construírem essas porcarias dessas pontes. Passa por fora da curva do rio,
dando a volta. Antigamente, as diligências desciam por ela para cruzar o vale.
Juan lançou um olhar perplexo ao Sr. Breed.
- Ouvi falar dessa estrada, mas em que condições está?
- As diligências usaram essa estrada por mais de cem anos - disse Van
Brunt.
- Sei que os primeiros quilômetros ainda são transitáveis - declarou o
Sr. Breed - mas depois disso não faço idéia das condições em que ela está.
Mas passa pela encosta das montanhas, do outro lado do vale. Deve estar
alagada. Não sei, faz muito tempo que não passo por lá.
- Você é quem deve decidir - insistiu Van Brunt. Fez uma pequena
visagem com seu pedaço de pêssego, meteu-o na boca e falou de boca cheia. -
Eu lhe disse que ia chover. Eu lhe disse que o rio ia subir e agora, quando
você não sabe o que fazer, já lhe disse como sair dessa enrascada. Será que
está esperando que eu também guie esse seu maldito ônibus?
Juan explodiu.
- Segure as suas calças e cuidado com a língua. Há senhoras aqui.
Van Brunt inclinou a latA sobre a boca e bebeu o resto da calda,
mordiscando os pedaços de pêssego. A calda grossa escorreu por seu queixo e
ele limpou-o com a manga.
- Deus, que viagem! - exclamou. - Desde o começo.
Juan voltou-lhe as costas, para dirigir-se aos outros passageiros.
- Bem, a coisa é essa. O alvará que eu tenho diz que devo circular pela
estrada asfaltada. Não conheço a estrada velha. Não sei se poderemos passar
por ela. Vocês é que decidem se vamos ou não. Se ficarmos encalhados, não
quero que depois me joguem a culpa nas costas.
- Gosto de quem resolve logo as coisas - disse o Sr. Pritchard. - Olhe,
tenho de ir a Los Angeles, homem.
Tenho passagens de avião reservadas para a Cidade do México. Sabe
quanto custaram? E foi difícil obter as reservas. Temos de seguir. Vamos
decidir logo o que se pode fazer. Você acha que a ponte é perigosa?
- Sei que é perigosa - respondeu Juan.
- Bem, e você não sabe se poderemos passar pela tal estrada velha?
- É isso - concordou Juan.
- Nesse caso, temos de decidir entre duas possibilidades e um fato
concreto. Mas o fato concreto não resolve o problema.
- Hmmmm - zumbiu o Sr. Pritchard, indeciso.
- Que é que você acha, querido? - perguntou a Sra. Pritchard. - Temos
de resolver alguma coisa, e logo. Faz três dias que não tomo um bom banho.
Você tem de resolver alguma coisa, querido.
- Então vamos tentar a estrada velha - disse Mildred. - Talvez seja um
passeio interessante. - Ela olhou para Juan, a fim de ver como tinha reagido à
sua sugestão, mas ele já desviara os olhos dela para Camille. Alguma coisa
relacionada com sua recente associação a Norma fez com que Camille
decidisse logo. - Sou pela estrada velha. Estou tão cansada e empoeirada que
uns quilômetros a mais não vão fazer diferença, nesta altura.
Juan voltou-se para o passageiro seguinte e seus olhos brilharam
quando deu com Norma. Ela não parecia a mesma. E Norma percebeu que ele
notara a diferença.
- Pela estrada velha - murmurou ela, num sussurro.
Ernest Horton estava sentado numa cadeira, a mesma que a Sra. Breed
costumava usar à tarde, quando suas pernas começavam a inchar de tanto
ficar de pé. Horton estava contando os votos.
- Para mim, tanto faz - disse ele. - Quero chegar logo o L. A., é claro,
mos isso não faz muita diferença. Concordo com a maioria, seja o que for que
decidirem.
Van Brunt pousou a lata sobre o balcão, com força.
- Vai chover - disse ele. - E chovendo chove forte, a estrada velha fica
que é só lama. Talvez não possamos subir a encosta, do outro lado. E íngreme
e escorregadia como sabão. Se encalharmos lá ficaremos no mato sem
cachorro. Estou apenas lembrando as desvantagens - retrucou o velho. -
Apenas lembrando as desvantagens.
- E você, o que diz? - perguntou Juan.
- Oh, eu não digo nada. Isso é a maior besteira de que já ouvi falar. Na
minha opinião, cabe ao motorista tomar as decisões, como um comandante de
navio.
Espinhudo aproximou-se da vitrina de doces. Colocou uma moeda
sobre o vidro e retirou duas borras de chocolate Baby Ruth. Meteu uma no
bolso do paletó, com a intenção de oferecê-la a Camille, assim que pudesse
encontrá-la sozinha, e desembrulhou lentamente a outra. Uma idéia maluca,
excitante, acabara de passar por sua cabeça. E se eles tentassem cruzar a
ponte e quando estivessem bem no meio fosse tudo abaixo e o ônibus caísse
no rio? Espinhudo poderia safar-se sem dificuldade, mas a loira ficaria preso
dentro do ônibus. E então Espinhudo mergulharia, mergulharia muitas vezes
e no fim, quando já estivesse meio morto, conseguiria quebrar o vidro de uma
a sugestão não foi sua? – perguntou, retirar Camille e conduzi-la,
inconsciente, até a relva do margem, onde lhe faria massagens nas pernas
para restabelecer sua circulação. Melhor ainda, pensou depois, seria rolá-la de
costas, segurá-la pelos seios e aplicar-lhe respiração artificial.
Mas, e se fossem pela estrada velha e o ônibus encalhasse? Então eles
teriam de passar a noite ao relento, talvez acendessem uma fogueira e
ficassem todos bem juntinhos, sentados em torno do fogo, com a luz brilhando
em seus olhos e com um cobertor sobre os ombros de cada duas pessoas.
- Creio que é melhor irmos pela estrada velha - disse Espinhudo.
Juan olhou para ele, sorrindo.
- Você tem mesmo sangue de Kit Carson nas veias, não é mesmo, Kit?
Espinhudo sabia que se tratava apenas de uma brincadeira, que não havia
maldade na observação de Juan.
- Bem, creio que todos concordam, menos um, e esse não quer opinar.
Mas o que é que há? Vocês querem estar em condições de processar-me?
Van Brunt voltou-se para os outros.
- Vocês estão loucos - disse ele. - Sabem o que ele está fazendo? Está
jogando toda a responsabilidade sobre nós. Se acontecer alguma coisa ele
alegará inocência, dizendo que fez apenas o que nós queríamos. Não, ele não
me embrulha desse jeito.
O Sr. Pritchard tirou os óculos e começou a polir as lentes com seu
lenço de linho branco.
- É um fato - disse ele. - Não tinha pensado nisso. Realmente, estamos
abrindo mão de nossos direitos.
Os olhos de Juan brilharam de ódio. Sua boca transformou-se numa
linha fina e estreita.
- Toquem já para o ônibus - disse ele. - Vou seguir para San Isidro e
descarregar vocês todos lá. Estou tentando facilitar as coisas, mas vocês estão
agindo como se eu pretendesse matá-los. Vamos, vamos logo para o ônibus.
Já estou cheio de vocês. Desde ontem à noite não tenho um minuto de
sossego, pensando no conforto de vocês e, francamente, estou cheio. Vamos,
vamos embora. Vamos voltar.
O Sr. Pritchard aproximou-se de Juan.
- Não, você me interpretou mal - disse ele. - Aprecio muito o que já fez
por nós. Todos nós apreciamos. Estava tentando apenas examinar todos os
aspectos do problema com que nos defrontamos. É como costumamos tratar
um problema comercial. Não convém decidir nada até examinar todos os
aspectos.
- Pois eu já estou cheio disso - repetiu Juan. - Você dormiu na minha
cama esta noite. A única coisa que quero é livrar-me de vocês.
- Não se esqueça - disse Van Brunt - que ainda estamos aqui porque o
seu ônibus quebrou. Não temos culpa disso.
- Gostaria de livrar-me especialmente de você, que é o mais chato -
observou Juan.
- Cuidado com o que diz - retrucou Van Brunt. - Não se esqueça de que
você depende de um alvará cassável, como concessionário de um serviço
público de transporte. Depois do que disse, não será difícil obter a revogação
de seu alvará.
Subitamente, a expressão de Juan transformou-se. Ele não conseguiu
conter o riso.
- Pois não imagina como eu ficaria aliviado. Entre outras coisas, ficaria
livre de tipos chatos como você, e eu sei onde poderia enfiar o alvará, bem
enroladinho e amarrado com arame farpado.
Camille riu alto e Ernest Horton sorriu, satisfeito.
- Não posso esquecer uma boa como essa - disse ele. - Sim, senhor!
Agora, olhe aqui, Sr. Chicoy, só esses dois ainda estão debatendo a questão. O
resto, isto é, todos nós, está de acordo. Vamos. A gente se arrisca. O melhor é
fazer um trato no chão. Quem quiser ir, passa para lá do traço, quem não
quiser fica onde está. Acho que isso resolve o coso.
- Sr. Chicoy, eu quero ir - disse Mildred.
- OK. - respondeu Juan. - Aquela fenda no concreto serve muito bem.
Quem não quiser ir pela estrada velha, passe para o lado de lá, perto dos
legumes.
Ninguém se mexeu. Juan examinou cuidadosamente os rostos dos
passageiros.
- Isso não é legal - disse Van Brunt. - Está aí uma coisa que nenhum
tribunal levaria em conta.
- Não levaria em conta o que?
- O que você está fazendo.
- Não estamos num tribunal.
- Mas isso pode acabar num deles.
- Pois você não vai conosco mesmo que queira ir - disse Juan.
- Experimente tentar deter-me. Comprei uma passagem e tenho o
direito de viajar no ônibus. Tente deixar-me aqui. Você seria suspenso tão
depressa que nem iria saber direito o que aconteceu.
- Você também seria suspenso, mas de outro jeito - retrucou Juan,
encolhendo os ombros. - OK., vamos embora, pessoal. - Mas antes de sair ele
voltou-se para o Sr. Breed. - Pode emprestar-me umas ferramentas? Na
viagem de volta eu devolvo tudo.
- Que ferramentas?
- Bem, uma picareta e uma pá.
- Ora, está claro. Está pensando no caso de o ônibus encalhar?
- Isso. Queria também um guincho portátil, de oficina, se você tiver
algum na sua garagem.
- A corda que tenho não é grande coisa. O meu guincho está aí atrás,
não há problema, mas os cabos dele não são muito grossos. O ônibus é
pesado.
- De um jeito ou de outro, será melhor que nada. Corda nova para
vender você não tem, tem?
- Desde o começo da guerra que eu não recebo uma boa corda de
manilha - disse Breed. - Mas tudo o que tenho está às suas ordens. Venha.
Escolha o que quiser.
- Vamos, Kit - chamou Juan - venha dar uma mãozinha para a gente.
Os três saíram do armazém e deram volta ao prédio, rumo à garagem, nos
fundos.
- Um espetáculo que eu não gostaria de perder - disse Ernest a Camille.
- Não perderia uma coisa dessas nem por todo o dinheiro deste mundo.
- Eu só queria não estar tão cansada - respondeu ela. - Faz cinco dias
que estou viajando de ônibus. Agora, só queria poder tirar esta roupa
empoeirada e dormir durante dois dias.
- Por que não fez a viagem de trem? Partiu de Chicago, não é?
- Sim, Chicago.
- Bem, você poderia ter embarcado no Super Chief e ir para L. A.
dormindo. O trem é formidável.
- Economizando um pouco - respondeu Camille.
- Tenho umas economiazinhas e pretendo descansar um pouco antes de
enfrentar um novo batente. E prefiro uma boa cama larga a um leito de trem.
- Eu entendi bem o que você disse? – perguntou ele.
- Não disse nada e você não entendeu coisa nenhuma.
- Está certo, está certo, é você quem manda.
- Olhe, vamos acabar com essa brincadeira - pediu Camille. - Estou
muito cansada, cansada demais para brincar de adivinhações com você.
- OK. irmã, OK. Eu danço conforme a sua música.
- Bem, então vamos por de lado essa música. Você não se aborrece?
- Sabe de uma coisa? Gosto de você - disse ele. - Quanto estiver mais
descansada um pouco, gostaria de sair com você.
- Bem, veremos no que dão as coisas - respondeu Camille. Gostava dele.
Podia conversar com ele. Entendia sua linguagem e era um alívio encontrar
uma pessoa assim.
Norma estivera observando os dois, ouvindo. Sua admiração por
Camille não tinha mais limites. Gostaria de poder agir como ela. Subitamente,
lembrou-se de que estava de olhos arregalados, como um coelho, e deixou cair
as pálpebras superiores.
- Só espero não ter dor de cabeça no caminho - disse a Sra. Pritchard. -
Elliot, por favor, veja se eles têm aspirina aqui, sim?
A Sra. Breed destacou um envoltório de comprimidos do pequeno
mostruário de papelão que estava sobre uma das vitrinas. - Vai levar um
destes? Custa cinco cents.
- Melhor levar logo meia dúzia - disse o Sr. Pritchard.
- Bem, nesse caso, com o desconto, são vinte e seis cents.
- Não é preciso levar tantos, Elliott - protestou a Sra. Pritchard. - Na
mala eu tenho um frasco de quinhentos comprimidos.
- É melhor estarmos preparados para qualquer coisa - respondeu ele.
Conhecia as dores de cabeça de sua mulher, que eram terríveis. As vezes,
eram tão fortes que transtornavam suas feições, reduzindo-a a um tremulo,
gemebundo e suarento feixe de dor. As dores de cabeça da Sra. Pritchard
enchiam um quarto e uma cosa.
Afetavam todos que entravam em contacto com ela. O Sr. Pritchard, por
exemplo, podia dizer que sua esposa sofria de, dor de cabeça mesmo quando
estavam separados por uma parede. Chegava até mesmo a sentir também as
dores em seu próprio corpo, e os médicos diziam que nada havia a fazer para
evitá-las. Quando os paliativos normais não faziam efeito, eles receitavam
injeções de cálcio e de sedativos. As dores de cabeça da Sra. Pritchard
geralmente ocorriam quando estava nervosa ou quando as coisas, ainda que
não fosse por sua culpa, não corriam bem.
Seu marido gostaria de poder protegê-la, quando isso acontecia. As
dores de cabeça pareciam uma manifestação de egoísmo, mas não eram. A dor
era verdadeira. Ninguém poderia simular aquela dor lancinante. Não havia
coisa no mundo que o Sr. Pritchard temesse como temia aquelas dores de
cabeça de sua esposa. Uma das boas podia fazer toda a casa vibrar de horror.
E elas funcionavam, até certo ponto, como uma consciência. Fizesse o que
fizesse, o Sr. Pritchard não conseguia vencer seu sentimento de culpa,
sentindo que, de uma forma ou de outra, ele era o causador daquelas dores.
Não que a Sra. Pritchard tivesse algum dia feito a menor referencia ao
assunto, ainda que indireta. Na verdade, era muito corajosa. Tentava abafar
seus gemidos com um travesseiro.
O Sr. Pritchard não costumava incomodá-la na cama - na verdade, isso
acontecia muito raramente. Mas, de certa forma, ele relacionava sua ocasional
libidinosidade e sua perda de autocontrôle com as dores de cabeça da esposa.
Aquilo estava firmemente implantado em sua mente, embora não soubesse
como nem por quê. Mas ele não podia evitar o próprio sentimento de culpa. O
que provocava aquelas dores era a sua bestialidade, a sua libidinosidade, a
sua perda de autocontrôle. E ele não dispunha de meios de defesa. As vezes,
dava por si odiando profundamente a esposa, por ser infeliz. Permanecia no
escritório, fazendo serão, quando ela tinha uma das dores de cabeça e
costumava ficar sentado à sua mesa durante horas, sem fazer nada, fitando os
lambris de madeira escura, sentindo a dor de sua esposa pulsar no seu
próprio corpo. Geralmente, no auge de suas crises, ela tentava confortá-lo.
- Vá a um cinema - gemia ela. - Vá visitar Charlie Johnson. Beba um
pouco de uísque. Tome uma bebedeira. Não fique aqui. Vá a um cinema. - Mas
era impossível. Ele não podia.
O Sr. Pritchard meteu os seis envelopezinhos de celofane no bolso
externo do jaquetão.
- Quer tomar duas já, como prevenção? - perguntou à esposa.
- Não - garantiu ela. - Creio que não vai haver nada. - Estava sorrindo
seu sorriso corajoso e doce. Mildred, ao ouvir a primeira menção a aspirina,
afastara-se imediatamente dos pais e concentrara sua atenção no exame de
uma tabela oficial de preços, pregada a uma parede do armazém. Nos cantos
de sua boca haviam surgido duas linhas amargas e ela sentia um bolo na
garganta.
- Oh, Jesus Cristo - murmurou Mildred - será que ela escolheu
justamente este momento para começar? - Mildred não acreditava muito nas
dores da mãe. Qualificava as tais dores de psicossomáticas e de sintomas de
neurose e temia-as mais do que seu pai. Quando menina, costumava fugir,
quando sua mãe tinha dores de cabeça, para esconder-se no porão ou no
armário do quarto de costura. E geralmente era resgatada e conduzida à força
para o lado da mãe, pois quando a mãe tinha dor de cabeça a obrigação da
filha era amá-la e confortá-la. Para Mildred aquelas dores de cabeça não
passavam de uma maldição. E quando sua mãe tinha as dores de cabeça
Mildred a odiava. Durante algum tempo, Mildred chegara a convencer-se de
que as tais dores não eram mais que pura simulação, e mesmo agora, depois
de ter aprendido nos livros que nesses casos a pessoa afetada sente realmente
as dores, ela ainda pensava que as dores de cabeça eram uma arma que sua
mãe utilizava impiedosamente, com a maior brutalidade. As dores de cabeça
faziam sua mãe sofrer, não havia dúvida, mas elas também governavam e
puniam toda família. Na verdade, transformavam a vida da família num
verdadeiro inferno. Certas coisas de que sua mãe não gostava jamais eram
feitas, pois provocariam dores de cabeça. E quando saía à noite, Mildred sabia
que seu temor de voltar para casa depois da uma da manhã era causado pela
certeza quase absoluta de que sua mãe amanheceria com dor de cabeça se
desrespeitasse o horário estabelecido.
Entre as dores de cabeça, todos esqueciam os momentos horríveis que
tinham vivido e voltariam a viver. Mildred era de opinião de que sua mãe devia
consultar um bom psiquiatra. Bernice estava disposta a fazer-se analisar.
Estava disposta a fazer o que quisessem. Era o Sr. Pritchard quem vetava essa
solução. Dizia que não acreditava em psiquiatras. No verdade, ele acreditava
nos psiquiatras e acreditava tanto a ponto de temê-los. Isso acontecia porque,
com o correr do tempo, ele passara, gradualmente, a depender das dores de
cabeça de sua esposa. Elas funcionavam para ele como uma espécie de
justificação. Eram a punição que lhe era imposta, levando-o a cometer os
pecados pelos quais seria punido. O Sr. Pritchard precisava pecar, necessitava
de pecados. Não havia pecado algum em seu mundo comercial, pois ali as
crueldades são definidas e classificadas como necessidade e responsabilidade
perante os acionistas. Assim, o Sr. Pritchard necessitava pecados pessoais e
punição pessoal. Era por isso que manifestava forte hostilidade aos
psiquiatras. Com esforco, Mildred obrigou-se a fazer meia volta e aproximar-se
de sua mãe.
- Está bem, mamãe?
- Sim - respondeu Bernice, em tom alegre.
- Não está com dor de cabeça?
Bernice entrou em explicações, como quem pede desculpas.
- Não, foi apenas uma pontadinha - disse ela. - Jamais poderia perdoar-
me se tivesse uma daquelas coisas horríveis e arruinasse toda a viagem do
papai.
Mildred sentiu um arrepio de mêdo ante aquela mulher que era sua mãe -
ante seu poder e sua implacabilidade. Aquilo tinha de ser inconsciente. Tinha
de ser. Mildred vira e ouvira o planejamento de toda a viagem ao México. Seu
pai não queria ir. Preferia passar as férias em casa, continuando a comparecer
diariamente ao escritório; contudo, deixando de entrar cedinho e saindo
quando bem entendesse, ele descansaria e aproveitaria bem as suas férias.
Mas aquela viagem ao México tinha sido decidida. Quando, e como? Mildred
não sabia e seu pai também não sabia. Contudo, ele gradualmente se
convencera não somente de que a idéia havia sido sua, mas que lograra
convencer a família a acompanhá-lo. E isso lhe dera a satisfatória sensação de
ser o chefe de sua família. Ele se deixara envolver, avançara às cegas,
enquanto porta após porta se fechava à sua retaguarda. Agira como uma
galinha do mato que cai numa arapuca. A galinha descobre um ninho, olha, vê
que lá no fundo há uns grãozinhos apetitosos e cruza a entrada - e então a
porta cai. Bem, afinal, está num ninho. O ninho é escuro e tranqüilo. Por que
não botar um ovo? Seria uma surpresa agradável, para quem tivesse
esquecido aquela porto aberta.
Seu pai tinha quase esquecido de que não queria ir ao México. Tanto o
Sr. quanto a Sra. Pritchard estavam fazendo aquela viagem mais por ela,
Mildred. Era a maneira mais segura de considerar a coisa. Ela estava
estudando espanhol no colégio, um idioma que era incapaz de compreender,
tal como seus professores. O México era o lugar adequado para praticar um
pouco. Sua mãe dizia sempre que não há maneira melhor de aprender uma
língua do que ter de usá-la.
Observando o rosto meigo e tranqüilo de sua mãe, Mildred mal podia
acreditar que aquela mulher era capaz de criar uma coisa e depois destruí-la.
Por quê? Não sabia, mas estava certo de que sua mãe já havia tomado uma
decisão. Já manifestara o primeiro sintoma. Agora, nem o diabo evitaria a dor
de cabeça que se avizinhava. E ela esperaria, aguardando o momento
oportuno, esperando até que não houvesse médico algum à mão, para que sua
dor de cabeça pudesse causar a maior impressão possível.
Era difícil acreditar. Mildred julgava que sua mãe não tinha perfeita
consciência do que estava fazendo. Mas sentia um peso no peito, que
começava a comprimir seu estomago. A dor de cabeça estava a caminho. Ela
tinha a certeza de que viria.
Naquele momento, invejou Camille. Camille era uma vigarista, pensou
Mildred. E tudo é muito mais fácil para uma vigarista. Não havia consciência,
sentimento de perda, nada, nada além de um maravilhoso e livre egoísmo,
como o dos gatas que se espreguiçam. Podia ir para a cama com quem bem
entendesse e jamais voltar a ver seus companheiros, sem que isso lhe
produzisse qualquer sentimento de perda ou de insegurança. Era assim que
Mildred imaginava a vida de Camille. Gostaria de ser como ela, e sabia que
isso jamais seria possível. Era impossível, por causa de sua mãe. E o
pensamento irrefreável voltou à sua mente - se ao menos sua mãe estivesse
morta, a vida seria muito mais simples para ela. Teria o seu próprio cantinho
secreto para morar. Mas afastou o pensamento logo, quase com truculência. -
Em que coisas idiotas eu ando pensando - disse com seus botões, mais por
força de hábito. Mas ela sonhava com aquilo mesmo, freqüentemente.
Olhou para fora, pela janela da frente do armazém. Espinhudo ajudara
a conduzir o guincho e a corda para dentro do ônibus. A corda estava
besuntada de graxa e manchara as calças do terno castanho de Espinhudo.
Ele estava tentando tirar as manchas com um lenço. "Pobre menino - pensou
Mildred - provavelmente só tem esse terno." Já estava disposta a sair para
dizer ao rapaz que seria melhor não tocar nas manchas, quando ele se
aproximou de uma das bombas de gasolina, abriu a mangueira, molhou a
ponta do lenço e começou a limpar as calças com gestos de quem sabia o que
estava fazendo. E então apareceu Juan, chamando.
- Vamos embora, pessoal.

CAPÍTULO XIV

A estrada que dava a volta por fora da grande curva do rio, cruzando o
vale em diagonal, era uma estrada muito velha, tão velha que ninguém sabia
ao certo quando tinha sido aberta. Por ela haviam passado as diligências, bem
como homens a cavalo. Durante as épocas de seca, há muitos anos, os
vaqueiros costumavam tanger o gado por ela até o leito do rio, onde os animais
encontravam abrigo do sol na sombra dos chorões e água nas cacimbas que os
vaqueiros abriam no leito seco. Na verdade, a estrada não passava de uma
longa faixa irregular de chão batido, marcada apenas por rodas de carro e
patas de cavalos. No verão, as carroças que ainda passavam pela estrada
velha erguiam pesadas nuvens de pó e, no inverno, os cavalos só podiam
avançar a passo por sobre a lama densa e pegajosa que a recobria.
Gradualmente, a faixa da estrada fora cedendo ao peso do trânsito e em certos
trechos se tornara mais baixa que os campos que cortava, de forma que nos
épocas de chuva esses trechos se convertiam em longos lagos de água parado,
às vezes bastante profundos.
Quando os lavradores chegaram ao vale, uma das primeiras coisas que
fizeram foi abrir valetas dos dois lados da estrada, a fim de aproveitar para
irrigação a água empoçada. A essa altura, o gado passara a ter tanto valor que
os criadores, depois de transferir-se para a parte mais alta do vale, tinham
erguido grandes cercas ao longo da estrada, para manter seu gado confinado e
o gado alheio do lado de fora.
As cercas eram feitas de mourões de sequóia, cravados no chão e
unidos por grossas tábuas, pregadas quase juntas. Pela porte superior das
cercas corria um fio de arame farpado, do tipo antigo, metal torcido, eriçado,
de pontas aguçados. Batida pelo sol e a chuva, a madeira avermelhada dos
cercas acabara por apresentar uma coloração acinzentada, pálida, ou verde-
cinza. Fetos cresciam na madeira e os lados sombrios dos mourões eram
cobertos de musgo.
Pregadores borbulhantes de zelo e de mensagens aos
homens passavam pela estrada e pintavam suas advertências sobre as tábuas
das cercas: "Arrependei-vos irmãos, antes do Dia do Juízo" - "Pecador, volta ao
rebanho divino" - "É tarde..." - "Quando um homem de boa vontade..." - "Volte
para Jesus". E outros homens, usando moldes perfurados, pintavam outro
tipo de mensagens sobre as cercas: "Tonico Jay" - "Cyrus Noble, o Uísque dos
Médicos" - "Oficina de Bicicletas San Isidro". As inscrições estavam lavadas
pelas chuvas e eram quase invisíveis contra as cercas.
Quando os criadores tinham abandonado a parte baixa do vale e os
lavradores ampliado os seus campos de cultivo, limpando-os de ervas
daninhas, os rabanetes do mato, a mostarda amarela e as flores silvestres
refugiaram-se nas valetas ao longo da estrada, como se ali tivessem
encontrado um paraíso. Os pés de mostarda amarela chegavam a ter dois
metros de altura durante a" primavera e os passarinhos de asas vermelhas
faziam seus ninhos sob as grandes flores amarelas. No fundo das valetas,
crescia o agrião bravo.
Nos pontos em que as valetas eram sombreadas pelo mato mais alto
viviam as doninhas e cobras d"água de colorido brilhante e era ali que os
pássaros vinham beber, à tarde. Na primavera, as cotovias do brejo passavam
o dia sobre as velhas cercas, cantando de manhã à noite.
As rolinhas chegavam ao entardecer e pousavam sobre o arame
farpado, asa contra asa, cobrindo quilômetros de cerca, e seus arrulhos eram
ouvidos a quilômetros de distância.
Ao por do sol apareciam os pequenos gaviões que procuram suas presas
à noite, dando início à ronda diária em busca de carne e, quando já era noite
fechado, as corujas que passam o dia dormindo nos celeiros, saíam à caça de
coelhos e ratos. Quando uma vaca ficava doente, os grandes abutrês tomavam
posição sobre as cercas, aguardando pacientemente a morte.
Com o correr do tempo, a estrada tinha sido praticamente abandonada.
Agora, só era utilizada pelas famílias de alguns fazendeiros cujas propriedades
não tinham outro acesso. Nos velhos tempos, muita gente havia vivido à beira
da estrada, em casinhas construídas na frente de uma pequena lavoura, com
a janela da cozinha dando à horta. Agora, na estrada abandonada, aqui e ali,
as velhas casas e celeiros olhavam o mundo através de janelas sem vidros,
enquanto suas paredes de tábua, que há muito tempo não eram pintados,
começavam a acinzentar como as longas cercas.
Por volta do meio-dia, as nuvens pesadas desceram do sudoeste e
começaram a concentrar-se sobre o vale. Não há quem não saiba que quanto
mais as nuvens se preparam, mais longa será a chuva. Mas elas ainda não
estavam prontas. Ainda havia alguns pedaços de céu azul entre os rasgões de
nuvens e, aqui e ali, a luz do sol ainda reverberava sobre o terreno rochoso.
Uma das nuvens mais longas cortava sobre o chão longas faixas de sol, quase
em linha reta.
Juan teve de voltar um pouco pela estrada asfaltada, a fim de ganhar a
entrada da estrada velha. Mas antes de deixar o asfalto ele frenou o ônibus,
desceu e foi examinar a estrada de terra. Sob seus pés ele sentiu o barro mole
e pegajoso. Juan ficou contente. Até então estivera tentando conduzir à força
aquela carga humana ao seu destino, no qual ele não tinha o menor interesse.
Agora, em sua alegria, havia quase uma ponta de malícia. Eles é que haviam
escolhido aquela estrada, logo, deveriam estar satisfeitos. Sentia-se feliz, como
se estivesse em férias.
Eles haviam escolhido a estrada, que fizessem bom proveito dela. Só
queria saber o que fariam se o ônibus encalhasse. Antes de voltar ao seu lugar
atrás do volante, ele revolveu a mistura de cascalho e barro, com a ponta do
sapato. Gostaria de saber o que Alice estaria fazendo naquele momento. Ou
melhor, ele sabia muito bem o que ela estava fazendo. E se o ônibus
encalhasse... bem, ele podia muito bem descer, voltar as costas, ir embora e
nunca mais voltar. Sentia-se bem, como um escolar que se prepara para as
férias. Quando voltou ao ônibus, ao seu lugar atrás do volante, Juan tinha o
rosto radiante de prazer.
- Não sei se poderemos passar ou não - anunciou ele, alegremente. E os
passageiros ficaram um pouco nervosos ante sua exuberância. Os passageiros
tinham formado um grupo compacto, nos lugares da frente. Todos eles
sentiam que Juan era o único contacto de que dispunham com o mundo
exterior e se soubessem o que ia por sua cabeça teriam ficado muito
amedrontados. Juan vibrava de satisfação. Fechou a porta do ônibus e calcou
o acelerador duas vezes, fazendo o motor rugir, antes de engrenar a reduzida e
enveredar pela estrada barrento.
As nuvens estavam agora quase preparadas para dar início ao
espetáculo. Juan não se iludia. Ele via uma grande nuvem escura, a oeste,
que se transformaria em água, a qualquer momento. Aquilo seria apenas o
começo de uma outra forte tempestade que alagaria o vale. A luz tomara
novamente um tom metálico, como o que se filtra por um telescópio, e que é
uma indicação segura de chuva forte.
- A chuva está chegando - disse Van Brunt, alacremente.
- Parece - respondeu Juan, manobrando o ônibus na estrada estreito.
Ele confiava nos pneus, mas logo que entraram na estrada de terra ele sentiu
que as rodas giravam em falso sobre a superfície lamacenta, enquanto a
traseira do ônibus derrapava de lado. Contudo, sob a lama, o terreno ali era
sólido e o ônibus prosseguiu. Juan engrenou a segunda. Provavelmente teriam
de fazer todo o caminho em segunda.
O Sr. Pritchard ergueu a voz por sobre o ronco do motor:
- Quanto tempo vamos perder nesta estrada?
- Não sei - respondeu Juan. - Nunca passei por aqui. Dizem que tem
uns vinte ou vinte e cinco quilômetros, não sei bem.
Curvado sobre o volante, ele ergueu naquele momento os olhos para a
pequena imagem da Virgem de Guadalupe, instalada sobre a sua luazinha, no
topo do painel de instrumentos. Juan não era um homem profundamente
religioso. Acreditava no poder da Virgem como as crianças acreditam no poder
de seus tios. Para ele, a Virgem era uma bonequinha, uma deusa, um amuleto
e uma parenta. Sua mãe - a irlandesa - ao casar-se aceitara a Virgem da
família do marido, tal como aceitara a mãe e a avó dele. A Guadalupana
passara a ser parte de sua família e de sua devoção.
Juan havia crescido sob o olhar daquela Nossa Senhora de saias largas,
postada sobre o arco da lua nova.
Quando era pequenino, ela participara de todos os episódios de sua
vida diária - sobre sua cama, supervisionando os seus sonhos, na cozinha,
observando o preparo das refeições, no vestíbulo, observando os que entravam
ou saíam de casa, e na porta da rua, para ouvi-lo quando ele brincava com os
outros meninos na calçado. Na igreja ela tinha a sua própria capela, ricamente
ornamentada, na sala de aula ficava sobre um pequena prateleira, e como se
sua presença não se fizesse sentir, ele ainda a usava numa pequena medalha
de ouro presa por uma correntinha ao pescoço. Conseguia escapar, às vezes,
dos olhos atentos de sua mãe, de seu pai ou de seus irmãos, mas a Virgem
morena estava sempre com ele. Poderia enganar, esquecer, ignorar ou iludir
seus parentes, mas a Guadalupana não perdia seu menor gesto ou
pensamento. Costumava confessar-lhe o que fazia, mas aquilo não passava de
uma formalidade, pois ela já sabia de tudo. Era mais uma tentativa de
justificação, mais uma exposição dos motivos que o haviam levado a fazer os
coisas do que a revelação de fatos, dos quais ela já estava a par. E isso
também era inútil, pois ela já conhecia de sobra todos os motivos. A Virgem
tinha no rosto uma expressão curiosa, de sorriso contido, como se a qualquer
momento fosse dar risada achando graça no que ele dizia. Ela não somente
compreendia, mos achava até um pouco de graça nele.
Os maiores crimes da infância não pareciam perturbá-la muito, a julgar
por sua expressão.
Assim, quando menino, Juan a amara profundamente e confiara nela,
especialmente depois de seu pai ter-lhe dito que ela recebera por missão
especial velar pelos mexicanos. Quando ele avistava crianças alemãs ou
americanas na rua, sabia que sua Virgem não lhes ligava a menor
importância, porque elas não eram crianças mexicanas. Ligando-se tudo isso
ao fato de Juan não acreditar na Virgem com sua mente, mas com todos os
seus sentidos, era possível definir sua atitude em relação a Nossa Senhora de
Guadalupe.
O ônibus avançava pela estrada enlameado, deslocando-se lentamente e
deixando marcas profundas sobre o barro grosso. Juan piscou para a Virgem,
pensando: "Você sabe que eu não tenho sido feliz e que, em virtude de um
sentimento de dever que não me é natural, acabei caindo nas armadilhas que
me foram preparados. E agora estou disposto a colocar Limo decisão nos suas
mãos. Não posso arcar com a responsabilidade de abandonar minha mulher e
meu pequeno negócio. Quando era mais moço, isso seria uma coisa que eu
poderia fazer sem vacilação, mas agora estou ficando mole e encontrando
dificuldades em tomar decisões. É por isso que ponho tudo em suas mãos.
Não estou nesta estrada por minha própria vontade. Fui forçado a segui-la
pela vontade de pessoas que não emprestam a menor importância ao meu
conforto nem à minha felicidade, pessoas que só se preocupam com seus
próprios planos. Acho que elas nem mesmo me viram ainda. Sou um motor
que deve levá-las para onde querem ir. Ofereci-me a levar todos de volta. Você
me ouviu. Assim, deixo tudo em suas mãos, pois você saberá o que fazer. Se o
ônibus encalhar e for possível safá-lo, com força e jeito, prosseguirei . Se as
precauções de rotina mantiverem o ônibus rodando na estrada, eu tomarei
todas as precauções. Mas se você, em sua sabedoria, quiser dar-me um sinal
de sua vontade, encalhando o ônibus até os eixos em terreno pantanoso, ou
jogando-o numa das valetas, saberei que aprova o que eu quero fazer, pois
nada haverá a ser feito nesse caso. Se isso acontecer, eu irei embora. Essa
gente que se arranje. Vou embora, desapareço. Nunca mais voltarei para Alice.
Despirei minha velha vida como quem despe uma peça suja de roupa de baixo.
Cabe a você decidir."
Fez uma pequena mesura e sorriu para a Virgem, notando que ela
sorria de leve, como de costume. Ela sabia o que deveria acontecer, é claro,
mas ele não tinha meios de perscrutar o futuro. Não podia desaparecer sem a
devida sanção. Para isso, ele deveria ter a aprovação da Virgem. Agora, tudo
dependia diretamente dela.- Querendo que ele voltasse para Alice, ela deveria
aplainar o caminho, afastar os obstáculos e garantir a passagem do ônibus, e
se isso acontecesse ele saberia como haveria de ser sua vida, até o fim.
Juan estava excitado, respirando fundo, e seus olhos brilhavam.
Mildred podia observar seu rosto pelo espelho retrovisor. Gostaria de saber
quais seriam os pensamentos terrivelmente alegres que lhe iam pela cabeça,
os pensamentos que lhe iluminavam o rosto. É um homem, pensou ela, um
homem totalmente másculo. Era o tipo de homem que uma mulher pura
desejaria, porque um homem assim nunca seria nem mesmo ligeiramente
efeminado. Permaneceria sempre satisfeito com seu próprio sexo. Não chegaria
nem mesmo a tentar compreender as mulheres, e isso, por si só, já seria um
grande alívio. Era dos que se limitam a procurar nelas o que desejam. O
desgosto que suas próprias ações lhe haviam inspirado desaparecera e Mildred
sentia-se novamente muito bem.
Sua mãe estava ocupada, compondo mentalmente outra carta. -
"Estávamos numa estrada lamacenta, a quilômetros da vila mais próxima.
Nem mesmo o motorista conhecia a estrada. Assim, estávamos sujeitos a tudo.
Tudo. Não havia uma casa ò vista e a chuva estava começando a cair."
A chuva estava começando a cair. Não caía como a da manhã,
precedida de pancadas fortes e rajadas, mas pesadamente, tamborilando com
convicção sobre o teto do ônibus, como uma chuva séria e respeitável que cai
com a finalidade de distribuir determinado número de litros d"água numa
dada área. E não estava ventando. A chuva caía verticalmente, direta, sem
subterfúgios. Seguindo pela estrada enlameada, o ônibus avançava chiando e
patinando na água. Quando girava um pouquinho o volante, Juan sentia a
derrapagem das rodas traseiras, na direção oposta.
- Você têm correntes? - perguntou Van Brunt.
- Não - retrucou Juan, alegremente. - Não consigo arrumar correntes
desde antes da guerra.
- Pois eu acho que você não vai conseguir passar - disse o velho. - Aqui,
onde o terreno é plano, talvez possamos passar, mas logo mais encalhamos na
primeira ladeira. - Esticando o braço, Van Brunt indicou as montanhas na
direção das quais o ônibus avançava lentamente. - O rio passa do outro lado
daquela encosta - gritou o velho, para que os outros passageiros o ouvissem. -
A estrada sobe pela encosta. E eu acho que você não vai poder subir a ladeira.
Para Espinhudo, aquela tinha sido uma manhã cheia de conflitos e
tensões. Embora sua vida não fosse propriamente contemplativa, aquele dia
fora cheio de agitação desde que se levantara. Seu corpo todo ardia de
excitação. Espinhudo transpirava a seiva de concupiscência da adolescência.
Acordado ou dormindo, ele só se preocupava com uma coisa. Mas suas
reações ao mesmo estímulo variavam tanto que, se num momento ele agia
como um cãozinho libidinoso que se esfrega numa cortina, no outro era
tomado por um sentimento idealístico e profundo, para em seguida gemer,
esmagado por um profundo sentimento de culpa. Então se sentia solitário,
abandonado, sentia-se como o único dos grandes pecadores deste mundo. Sua
admiração pelo autocontrole de Juan e de outros homens que conhecia não
tinha limites.
Desde que vira Camille, seu corpo e seu cérebro trabalhavam em função
dela e sua imaginação trabalhava incessantemente, compondo quadros
lúbricos, de que ele e ela eram os protagonistas, e quadros domésticos, nos
quais os dois estavam casados e vivendo tranqüilamente numa casa
confortável. Em certo momento, ele quase chegara a reunir a coragem
necessária para pedi-ia em casamento, mas um simples olhar lançado por
Camille em sua direção era o bastante para deixá-lo constrangido e
embaraçado.
Ele tentara novamente ocupar um lugar do qual pudesse observá-la
sem ser notado e malograra novamente. De onde estava, Espinhudo só via a
nuca da loira, mas podia distinguir bem o perfil de Norma. Foi só então que
ele notou a transformação de Norma e, ao notar, ele inspirou profundamente.
Sabia que a mudança resultara apenas de pintura, pois de onde estava
distinguia perfeitamente os traços do lápis de sobrancelha e o trabalho feito
com batom, mas não era aquilo que lhe esquentava o estomago e fazia o seu
coração bater com mais forca.
Ela era outra, mudara. Agora, refletia uma feminilidade consciente que
jamais demonstrara e a seiva da juventude de Espinhudo reagia prontamente,
murmurando coisas. “Se, como sabia no fundo de seu coração, não podia ter
Camille, poderia muito bem ter Norma" . Ela não o amedrontava tanto quanto
aquela deusa, Camille. Automàticamente, começou a fazer planos para
conquistar Norma, sobrepujá-la. Uma nova pústula começava a formar-se bem
na frente de sua orelha esquerda. Sem pensar no que fazia, esfregou-a com a
unha e o sumo vermelho vivo da carne torturada desceu num pequeno filete
pelo seu rosto. Ele examinou disfarçadamente a unha que tinha feito o
servicinho, meteu a mão no bolso e limpou o dedo no forro.
Seu rosto estava sangrando. Espinhudo sacou o lenço do bolso de trás e
apertou-o contra a pústula aberta.
O Sr. Pritchard estava preocupado com o horário da chegada e com
seus compromissos. A ansiedade constante não lhe permitia descansar nem
relaxar um pouco o corpo.
Tentara, sem resultado, levar aquilo na brincadeira. Lançara mão de
todos os métodos que conhecia para afastar pensamentos desagradáveis, sem
resultado algum.
Ernest Horton tinha qualificado de chantagem o plano do Sr. Pritchard
e chegara quase a dizer claramente que Elliott Pritchard seria capaz de roubar
sua idéia das lapelas de seda para um terno escuro, se não fosse devidamente
vigiado. Inicialmente, o Sr. Pritchard sentira-se ultrajado - não era possível
que se pensasse uma coisa dessas de um homem de sua honorabilidade e
posição. Mas, depois, pensara: "Sim, tenho boa reputação e ocupo uma
posição em minha comunidade, mas aqui não tenho nada. Estou sozinho.
Esse homem pensa que eu sou desonesto. Não posso remetê-lo a Charlie
Johnson, para que ele se informe a meu respeito e verifique que está
completamente enganado." O fato de ser tomado por quem não era preocupava
profundamente o Sr. Pritchard. E Ernest não se limitara a isso. Ainda dera a
entender que o Sr. Pritchard era um desses homens que freqüentam
apartamentos de loiras. Coisa que jamais havia- feito em sua vida. Tinha de
provar a Ernest Horton que a idéia que ele fizera a seu respeito era errada.
Mas como poderia provar?
O braço do Sr. Pritchard estava estendido sobre o encosto do banco e
Ernest estava sentado sozinho, no assento de trás. O motor do ônibus,
funcionando em segunda, rugia alto e a velha carroçaria trepidava
ensurdecedoramente. Só havia um jeito - oferecer a Ernest Horton alguma
coisa, oferecer-lhe aberta e honestamente qualquer coisa, para que ele se
certificasse de que suas intenções eram das melhores. Então, uma vaga idéia
começou a formar-se em seu cérebro. Ele voltou-se no banco e olhou para
trás.
- Estou interessado no que me disse sobre a gratificação que sua
companhia paga aos funcionários que fazem sugestões úteis.
Ernest considerou-o por um momento, divertido. Ele queria alguma
coisa, na certa. Suspeitava de que o Sr. Pritchard queria lembrá-lo da
promessa das loiras, em L. A. O patrão de Ernest era assim. Vivia marcando
conferencias ò noite, depois do horário do expediente, as conferências
terminavam sempre numa casa de mulheres e ele sempre parecia
surpreendido com esse desfecho curioso.
- Em nossa empresa, todo mundo se entende bem - disse Ernest.
- Minha idéia não é grande coisa, para falar a verdade - disse o Sr.
Pritchard. - É apenas algo que me ocorreu. Poderá aproveitá-la se quiser, isto
é, se achar que poderá ter alguma utilidade para sua empresa.
Ernest ficou esperando, sem fazer qualquer comentário.
- Veja esse negócio de abotoaduras, por exemplo - disse o Sr. Pritchard.
- Eu, como muita gente, uso abotoaduras e punhos duplos, e quando as
abotoaduras estão colocadas... bem, você tem de tirá-las antes de tirar a
camisa. E se quiser erguer os punhos para lavar as mãos, você também tem
de tirar as abotoaduras. É fácil passar as abotoaduras pelas casas antes de
vestir a camisa, mas então as suas mãos não descem pelos punhos. E quando
a camisa está vestida é difícil colocá-las. Não é verdade?
- Bem, há o tipo de abotoaduras de pressão - lembrou Ernest.
- Há, mas elas não são populares. E não são porque sempre se perde
uma das peças.
O ônibus parou com as rodas girando em falso, Juan engrenou a
primeira e acelerou. O ônibus deu um grande tranco quando as rodas da
frente passaram sobre um buraco e um tranco maior ainda quando as
traseiras passaram também. Juan prosseguiu lentamente, sempre em
primeira. A chuva martelava pesadamente o teto do ônibus. O limpador de
pára-brisas gemia no vidro.
O Sr. Pritchard curvou-se sobre o encosto do banco, puxando um pouco
a manga do jaquetão para cima, a fim de exibir suas abotoaduras simples, de
ouro maciço.
- Em lugar de uma cadeiazinha ou de um pino - disse ele - as duas
peças poderiam ser unidas por uma mola. Assim, as abotoaduras poderiam
ser colocadas nos punhos antes da pessoa vestir a camisa, pois as molas
cederiam para dar passagem às mãos. Quando se quisesse lavar as mãos não
haveria problema, bastaria puxar os punhos para cima e depois puxá-los
novamente para baixo. – O Sr. Pritchard observava atentamente o rosto de
Ernest.
Ernest estava pensando, com os olhos semicerrados.
- Mas que aparência teriam as abotoaduras? Para resistir, as molas
deveriam ser de aço.
- Pensei nisso - respondeu o Sr. Pritchard ansioso por prosseguir. - Os
modelos mais baratos poderiam ter molas douradas ou prateadas. Mas as
mais caras, como as de platina ou ouro maciço - as de melhor qualidade de
dólares - teriam um tubo entre as duas peças, onde a mola ficaria alojada
enquanto a abotoadura estivesse colocada.
- É uma idéia - assentiu Ernest, solenemente. - Sim, senhor. Parece ser
uma boa idéia.
- Pois pode aproveitá-la - disse o sr. Pritchard. - É sua, pode fazer dela o
que quiser.
- Minha empresa trabalha com uma linha diferente de produtos - disse
Ernest - mas, quem sabe ... Talvez eu possa convencê-los a fabricar alguns
modelos desse tipo de abotoaduras. Os artigos mais vendidos no mundo -
artigos masculinos, é claro - são lâminas e aparelhos de barbear, canetas,
lapiseiras e jóias masculinas. Gente que não escreve cinco linhas durante um
ano não vacila em meter a mão no bolso e pagar quinze dólares por uma
caneta. E jóias, então, como abotoaduras caras? Nem é bom falar. Sim,
senhor, pode ser que de certo. Quanto quereria da minha parte da comissão,
se a idéia for aprovada e o negócio der certo?
- Não quero nada - disse o Sr. Pritchard. - Absolutamente nada. A idéia
é sua. Tenho muito prazer em ajudar um jovem que luta pela vida com
vontade. - Começava a sentir-se bem novamente. Mas, pensando bem, e se a
coisa funcionasse, se o negócio desse certo mesmo? A empresa de Ernest
poderia ganhar um milhão de dólares. E se... mas ele já tinha dito que não
queria nado e tinha de sustentar a palavra dada. Sua palavra não voltava
atrás. Se Ernest quisesse demonstrar seu agradecimento, isso era com ele. -
Não quero nada - repetiu o Sr. Pritchard.
- Bem, é muita bondade sua. - Ernest socou uma cadernetinha do bolso
interno, fez uma anotação e rasgou a página. - Está claro que uma coisa assim
merece ser examinada com calma - disse ele. - Se tiver um momento livre,
durante sua estada em Hollywood, ligue para esse número que nós poderemos
examinar a coisa com mais vagar. Talvez possamos até fazer um bom negócio.
- Ao dizer isso, Ernest piscou rapidamente, a pálpebra de seu olho esquerdo
desceu e subiu num relâmpago, enquanto indicava a Sra. Pritchard com a
cabeça. Passou a folha da cadernetinha para o Sr. Pritchard, dizendo: - Aloha
Arms, Hempstead 3255, apartamento 12 B.
O Sr. Pritchard corou ligeiramente, socou a carteira e ajeitou a folha
dobrada num dos compartimentos. Na verdade, não queria ficar com aquele
endereço. Não precisava guardá-lo. Poderia jogar fora o papel na primeira
oportunidade que tivesse, pois sua memória era muito boa. Durante anos ele
não se esqueceria daquele número de telefone. O sistema estava firmemente
implantado em sua cabeça, aquele velho sistema que sempre usara. Três e
dois são cinco, repetido duas vezes. E Hempstead. Hemp é corda. Corda
amarela, era fácil. Ele usava centenas de processos semelhantes para
memorizar o que desejava.
Corda amarela, corda loira. Seus dedos comichavam, ele estava doido
para jogar fora logo a folha dobrada. As vezes, Bernice abria sua carteira
quando precisava de dinheiro trocado. Era uma prática que ele estimulava.
Mas agora sentia uma pontada de medo no estomago - o miserável sentimento
de quem é tomado por ladrão.
Voltando-se para a esposa, perguntou:
- Então, como vai, menina?
- Bem - respondeu ela. - Acho que desta escapei. Disse a mim mesmo:
"Desta vez não vou ter nada, nada. Não vou deixar que coisa nenhuma
atrapalhe as férias do papai."
- Ótimo.
- E escute uma coisa, querido - prosseguiu ela - como é que os homens
têm idéias como essa sua?
- Ora, foi uma coisa que me ocorreu de repente - disse ele. - Aquela
camisa nova, que tem as casas de abotoaduras muito pequenas, me fez
pensar. Ainda outro dia fiquei desesperado na hora de colocar as abotoaduras
e quase tive de pedir sua ajuda.
- Acho que você é muito bonzinho - disse ela.
Então o Sr. Pritchard curvou-se, colocou a mão sobre o joelho dela e
apertou-lhe a perna, de leve. Ela deu-lhe um tapinha sobre a mão, de
brincadeira, e ele retirou-a logo.
Norma voltara a cabeça para o lado, a fim de falar bem junto da orelha
de Camille. Falava tão baixinho quanto podia, pois sabia que Espinhudo
estava tentando ouvir o que dizia. Já notara seu olhar cheio de admiração e,
de certa forma, estava satisfeita. Jamais olhara a vida com tanta confiança
quanto agora.
- Nunca tive uma família, como as famílias que as pessoas costumam
ter, - dizia ela a Camille. Estava revelando seus problemas mais íntimos a
Camille. Contava-lhe toda sua vida, com todos os pormenores. Queria que
Camille soubesse exatamente como ela tinha sido, queria que soubesse tudo
sobre ela, como era antes daquela manhã e como era agora, pois aquilo
transformaria Camille numa pessoa de sua família e uniria estreitamente à
Norma aquela criatura bela e segura de si.
- A gente faz coisas engraçadas quando se sente muito só - disse ela. -
Eu, por exemplo, costumava mentir aos outros. Vivia imaginando coisas boas
para mim. Eu até... bem, fazia coisas, como essas coisas que a gente quer que
aconteça. Sabe o que eu fazia quando estava sozinha? Fazia de conto que um
artista de cinema era... bem, meu marido.
Aquilo escapara. Ela não tivera intenção de ir tão longe. Ficou corada.
Não devia ter dito aquilo. De certa forma, era uma espécie de traição ao Sr.
Gable. Mas pensou mais no caso e acabou por concluir que não era traição. O
Sr. Gable não representava mais para ela o que representara algumas horas
antes. Aquele sentimento havia sido projetado sobre Camille. Ela sofreu um
pequeno choque ao compreende-lo. Perguntou a si mesma se não seria
inconstante.
- Isso acontece quando não se tem família nem amigos - explicou. -
Acho que a gente tem de inventar o que não se tem. Mas agora, bem, se
tivermos um apartamento nosso, acho que não precisarei mais fazer de conta.
Camille voltou o rosto para o lado, pois não queria ver a nudez crua nos olhos
de Norma, sua inermidade absoluta. Oh, meu Deus - pensou ela - em que
enrascada me meti! Agora arrumei uma filhinha. Como é que vou sair desta?
Como foi que isso aconteceu? Agora vou ter de viver a vida dela, de confortá-
la, de assisti-ia e dentro em breve estarei tão chateada que nem poderei olhar
mais para a cara dela, mas a essa altura já não haverá mais nada a fazer. Se
Loraine decidir chutar o tal publicitário, que farei dela? Como foi que isso
começou? Como me meti nesta enrascada do diabo?"
Voltando-se para Norma, ela explicou, secamente:
- Olhe aqui, querida, eu não disse que já estava tudo resolvido. Disse
que iríamos ver no que dão as coisas. Você ignora muita coisa a meu respeito.
Entre outras coisas, estou noiva e o meu noivo quer que nos casemos logo.
Assim, você entende, se marcarmos logo o casamento eu não poderei ir morar
com você.
Camille viu o desespero que surgia nos olhos de Norma, como um frio
horror, viu que suas bochechas e sua boca murchavam, viu que os músculos
de seus ombros e de seus braços cediam de repente. Camille disse a si mesma
que poderia alugar um quarto no primeira cidade por que passassem e
esconder-se, até que Norma desaparecesse. Poderia fugir dela. Poderia... Oh,
Jesus, como se deixara envolver naquilo? Estava muito cansada. Só podia
pensar num bom banho quente. Em voz alta, ela disse:
- Ora, querida, não fique desanimada. Talvez ele não queira casar-se já.
Talvez... Olhe, meu bem, talvez a coisa de certo. Quem sabe? Estou falando
sério. Vamos ver no que dão as coisas.
Norma comprimira os lábios com força e estava com os olhos fechados.
Sua cabeça era jogada para frente e para trás pela trepidação do ônibus.
Camille não queria olhar para ela. Depois de algum tempo, Norma conseguiu
controlar-se novamente.
- Talvez você tenha vergonha de mim - disse ela, baixinho - e não posso
culpá-la por isso. Sou apenas uma garçonete, mas acho que se você me
ajudasse um pouco eu também poderia ser enfermeira odontológica. Eu
estudaria à noite e trabalharia de dia como garçonete. Era o que eu faria, o
que eu pretendia fazer para que você não tivesse vergonha de mim. E se você
me ajudasse um pouco não seria tão difícil.
Camille lutou para dominar uma revulsão do estomago. "Oh, Deus
Santíssimo - pensou,. - Agora estou mesmo enrascada. Que posso dizer a ela?
Contar-lhe outra mentira? Não seria melhor contar de uma vez a ela como
ganho a vida? Ou isso só tornaria a coisa pior? Poderia chocá-la tanto que não
me quereria mais por amiga. E talvez seja mesmo o melhor. Não, creio que o
melhor mesmo é perder-me dela, no meio de uma multidão."
Norma continuava a falar.
- Gostaria de ter uma profissão respeitável, que tenha uma certa
dignidade, como a sua.
Desesperada, Camille interrompeu-a.
- Olhe, meu bem, estou terrivelmente cansada, exausta. Estou cansada
demais para pensar. Estou viajando há dias. Não consigo pensar em coisa
nenhuma. Vamos deixar essa questão de lado, pelo menos por enquanto.
Vamos ver no que dão as coisas.
- Sinto muito - respondeu Norma. - Fiquei entusiasmada e esqueci. Não
falarei mais nisso. Vamos ver no que dão as coisas, não é?
- Sim, vamos ver no que dão.
Juan frenou e o ônibus derrapou de lado antes de estacionar. Haviam
chegado ao sopé das colinas e continuava a chover tão forte que mal se
distinguia o verde da relva, lá em cima. Juan meteu a cabeça para fora, a fim
de examinar melhor o caminho. Havia um buraco na estrada, um buraco
cheio d’água, e era impossível saber que profundidade teria. Poderia ser uma
grande vala, que tragaria o ônibus. Juan lançou um rápido olhar à Virgem.
- Como é, arrisco? - perguntou ele, num sopro. As rodas fronteiras do
ônibus estavam sobre as bordas do longo buraco. Sorrindo, ele engrenou a
marcha a ré e regrediu uns dez metros na estrada.
- Vai tentar passar? - perguntou o velho Van Brunt, sobre seu ombro. -
Acho que o ônibus vai encalhar.
Os lábios de Juan formaram as palavras, sem emitir qualquer som.
- Se você soubesse, meu amiguinho, se soubesse... Se vocês
soubessem... - Engrenando a primeira, ele acelerou e o ônibus avançou sobre
o buraco inundado. Os pneus chiaram na água, projetando-a em repuxos para
todos os lados. As rodas traseiras entraram no buraco. O ônibus derrapou,
querendo sair de lado. As rodas traseiras giraram em falso, o motor rugiu alto,
os pneus roçaram no fundo e lentamente, trepidando e vibrando, o ônibus
avançou até atingir o terreno mais firme, do outro lado do buraco. Juan
engrenou a segunda e o ônibus prosseguiu lentamente seu caminho pela
estrada enlameada.
- Acho que havia um pouco de cascalho no fundo do buraco - disse
Juan, por sobre o ombro, ao velho Van Brunt.
- Bem, você vai ver o que é bom quando começarmos a subir a encosta -
respondeu o velho, num tom sinistro.
- Para uma pessoa que tem pressa em chegar a seu destino - observou
Juan - você não parece estar muito animado.
A estrada agora começava a galgar a encosta e não havia mais poças
d'água no leito. As valetas laterais mais pareciam cataratas. As rodas traseiras
giravam em falso e escorregavam sobre a superfície lisa. Subitamente, Juan
decidiu o que iria fazer se o ônibus capotasse num daqueles barrancos. Até
então ele não soubera bem o que iria fazer, caso aquilo acontecesse. Pensara
vagamente em tocar para Los Angeles e em empregar-se como motorista de
caminhão, mas agora sabia que não faria isso.
Tinha cinqüenta dólares no bolso. Sempre tinha consigo algum
dinheiro, para qualquer emergência na estrada, e os cinqüenta dólares
bastariam. Primeiro, sairia andando, mas não iria longe. Esperaria que
parasse de chover. Poderia até dormir um pouco, num lugar seco qualquer.
Levaria consigo uma das tortas, o que resolveria o seu problema de
alimentação. Depois, quando acordasse descansado, desceria até a rodovia
estadual e pediria uma carona. Se fosse preciso, iria de carona em carona,
com escalas nos postos de serviço, até San Diego, para cruzar a fronteira em
Tijuana. Era um lugar muito agradável e ele poderia passar uns dois ou três
dias na praia. Não teria dificuldades na fronteira. Do lado de cá, ele era para
todos os efeitos cidadão americano. Do lado de lá, era mexicano. Então,
quando se sentisse disposto, ele sairia da cidade, como carona num caminhão
ou simplesmente caminhando, cruzando as colinas e os regatos até atingir
Santo Tomás, onde esperaria o caminhão do correio. Compraria vários litros
de vinho em Santo Tomás e pagaria o homem do caminhão do correio para
descer com ele a península, passando por San Quintin e por Bahia de Las
Ballenas. A viagem pela região rochosa e deserta, até La Paz, duraria umas
duas semanas. ele economizaria algum dinheiro. Em Lã Paz, poderia tomar
um dos barcos que cruzam o Golfo, desembarcando em Guaymas ou em
Mazatlán, talvez até mesmo em Acapulco, pois em qualquer desses lugares ele
encontraria turistas. E onde houvesse turistas às voltas com o castelhano e os
costumes estranhos de uma terra estranha, Juan estaria à vontade.
Pouco a pouco, ele cobriria o percurso até a Cidade do México, onde há
turistas de verdade. Poderia funcionar como cicerone, conduzindo grupos de
turistas, e havia muitas outras formas de ganhar dinheiro. Ele não precisaria
de muito.
Ao pensar, Juan sorria. Por que, em nome de Deus, não pensara nisso
antes, em lugar de se enterrar naquele buraco? Era livre. Poderia fazer o que
bem entendesse.
Eles que o procurassem. Poderia até encontrar uma noticiazinha a seu
respeito num dos jornais de L. A. Seria dado por morto e eles procurariam seu
corpo. Alice faria inicialmente um barulho dos diabos. Aquilo lhe daria um
sentimento de importância. Mas no México é difícil encontrar uma mulher que
não saiba fazer feijão. E ele podia muito bem ajeitar-se com uma das
americanas que vão morar na Cidade do México para não pagar impostos
pesados. Com uns três ou quatro ternos bons, ele tinha certeza de que seria
mais que apresentável. Por que diabo não pensara nisso antes?
Ele já podia até sentir o cheiro do México. Não saberia explicar por que
já não tinha pensado nisso há muito tempo. E os passageiros? Eles que se
arranjassem. Seria muito bem feito. Juan podia dar conta de si mesmo e era o
que ia fazer. Tinha vivido uma vida idiota, preocupado com o transporte de
tortas entre uma cidade e outra. Bem, isso estava acabado.
Disfarçadamente, ergueu os olhos para a Guadalupana.
- Oh, eu manterei minha promessa - murmurou ele, baixinho. -
Conduzirei todos ao seu destino, se possível. Mas mesmo assim, não posso
garantir que voltarei para casa.
Em sua mente surgiam em sucessão, um após outro, quadros das
colinas batidas de sol da Baja Califórnia, da terra quente de Sonora, das
manhãs muito frias no planalto, quando o ar é perfumado pela fumaça de
lenha de pinho e impregnado do cheiro de pipoca que se desprende das tortilas
que começam a assar. A doce excitação do saudade envolveu-o. O gosto de
laranjas colhidas no pé, de pimenta queimando na boca. O que estava ele
fazendo, naquela terra estranha, que não era a sua? Ele não pertencia àquele
país. A cortina dos anos desenrolou-se para trás e sobre aquela estrada
barrenta e batida de chuva, sobrepos-se o México, o México que via, ouvia e
cheirava, desde a babel de vozes nas feiras ao tagarelar dos papagaios nos
jardins, dos grunhidos dos porcos nas ruas aos peixes que provara, das flores
às moças pequenas e morenas, envolvidas em seus rebozos azuis. Era
estranho ter esquecido tudo aquilo, durante tanto tempo. Agora, ele ansiava
pelo sul. Não sabia o- que o teria prendido durante tanto tempo àquela terra
que não era a sua. Subitamente, ficou impaciente e ansioso para por-se a
caminho. Por que não comprimir logo o pedal dos freios, abrir a porta e sair
andando, debaixo da chuva? Podia imaginar perfeitamente as caras estúpidas
que fariam os passageiros surpreendidos e até mesmo ouvir seus furiosos
protestos. Olhou novamente para a Virgem.
- Manterei minha palavra - murmurou. - Se for possível, nós
completaremos a viagem. - Sentiu no volante que as rodas da frente
deslizavam no barro grosso e sorriu para a Virgem de Guadalupe.
Nesse ponto o rio passava pertinho da estrada, conduzindo uma carga
de chorões arrancados por entre as colinas. Logo mais adiante a estrada fazia
uma curva quase em ângulo reto, afastando-se do rio. A chuva começava a
perder a força e pelas janelas eles podiam avistar o rio mais abaixo, com sua
superfície parda, marcada aqui e ali por ondas de espuma. A estrada subia
pela encosta da colina e bem no topo contornava um enorme rochedo amarelo.
Bem no alto do rochedo amarelo, em grandes letras desbotadas, estava escrito
ARREPENDEI-VOS. Pintar a inscrição em grossas letras negras, agora quase
invisíveis, deveria ter sido um trabalho duro e perigoso para a criatura
selvagem que desenhara os caracteres.
O rochedo era arenoso e sua parte inferior era perfurada por covas e
cavernas, abertas pelo vento e cavadas por animais. As cavernas, vistas da
estrada, pareciam os olhos negros do rochedo amarelo.
Naquele trecho, as cercas eram reforçados e nos pastos do pequeno
planalto a chuva escurecera o pêlo das vaquinhas de leite, algumas já
acompanhadas por seus bezerros da primavera. Quase todas as vacas torciam
o pescoço para observar, solenemente, a passagem do ônibus, mas uma velha
vaca idiota foi tomada de pânico e desembestou aos coices e pinotes, como se
com aquilo pudesse exorcizar o ônibus.
A estrada era agora bem melhor. O cascalho espalhado pelo leito dava
um ponto de apoio às rodas. A velha carroçaria trepidava e saltava, mas os
pneus não giravam mais em falso. Juan lançou um olhar cheio de dúvida e
suspeita à imagem da Virgem. Teria decidido enganá-lo? Teria resolvido
facilitar a viagem, para forçá-lo a tomar por conta própria sua decisão? Aquilo
seria um golpe baixo. Sem um sinal do céu, Juan não saberia o que fazer.
A estrada fazia uma curva muito aberta em torno de uma velha fazenda
e depois subia por uma ladeira, transpondo a colina.
Juan estava usando novamente a primeira e uma nuvenzinha de vapor
escapava do tampa do radiador, pairando na frente do pára-brisa. O ponto
mais alto da estrada ficava bem na frente do rochedo amarelo que dizia
ARREPENDEI-VOS. Juan acelerou, quase com raiva. As rodas lascaram
pedregulho para trás. Tinham de transpor um trecho no qual as valetas
laterais haviam transbordado e a água cobria o leito da estrada. Juan
imprimiu mais um pouco de velocidade ao velho ônibus e investiu contra a
superfície coberta de água. As rodas da frente passaram, mas as traseiras
giraram em falso, patinando no barro grosso do fundo. A traseira do ônibus
saiu de lado, as rodas giraram, lançando para trás um repuxo de lama e o
ônibus recuou, afundando pesadamente, até os eixos, na valeta lateral.
Juan sorriu, mostrando os dentes. Acelerou de novo e as rodas
traseiras afundaram mais um pouco. Girou o volante, fazendo as rodas
fronteiras girarem também, abrindo buracos maiores na lama e afundando
neles, enquanto lá atrás o diferencial afundava no barro grosso.
Juan ergueu o pé do acelerador. Pelo espelho podia ver Espinhudo, que
olhava para ele boquiaberto. Juan esquecera que Espinhudo poderia
compreender. Agora, ele estava de boca aberta. Juan sabia que tinha forçado a
mão. Ao cruzar um barreiro como aquele, ninguém acelera o motor. Juan via a
perplexidade nos olhos de Espinhudo. Por que diabo tinha feito aquilo? O
rapaz não era estúpido. Dando com os olhos de Espinhudo no espelho
retrovisor, a única coisa que ele conseguiu fazer foi piscar, discretamente. E
então viu que uma expressão de alívio substituía a de assombro no rosto do
rapaz.
Se era parte de um plano, se aquilo fora deliberado, estava tudo OK. E
se precisasse de alguma coisa, Espinhudo estava às ordens. E então um
terrível pensamento cruzou a mente de Espinhudo. E se ele tivesse feito aquilo
pensando na loira? Se Juan quisesse Camille, ele não teria a menor
possibilidade. Ele não poderia competir com Juan.
O ônibus encalhara num ângulo pronunciado. As rodas traseiras
tinham afundado na valeta lateral, enquanto as dianteiras repousavam na
lama do leito da estrada. O "Querida" parecia um inseto estropiado. E então o
reflexo do rosto de Van Brunt superpos-se ao de Espinhudo no espelho
retrovisor. Van Brunt estava vermelho, furioso, e seu dedo ossudo cortou o ar
embaixo do nariz de Juan.
- Então, você afinal conseguiu! - gritou ele. - Conseguiu deter-nos aqui.
Eu sabia que era isso que você pretendia fazer. Por Deus, eu sabia que era
isso mesmo que você estava querendo. E agora, como é que vou ao tribunal?
Como é que vamos sair daqui?
Juan afastou o dedo do velho com as costas da mão.
- Tire esse dedo de perto da minha cara - ordenou. - Você me deixa
doente. Volte para o seu lugar.
Van Brunt vacilou, sem saber que atitude tomar. Compreendeu,
subitamente, que o homem que interpelava perdera o controle. Era um homem
que não temia a Comissão Estadual de Trânsito, que não temia coisa
nenhuma deste mundo. Van Brunt recuou depressa, sentando-se num dos
bancos laterais.
Juan girou a chave de contacto e o motor morreu. A chuva rufava na
capota do ônibus. Juan comprimiu por um momento o volante entre as mãos,
depois voltou-se para encarar os passageiros.
- Pois é - anunciou. - Estamos encalhados.
Todos estavam com os olhos fitos nele, entre chocados e surpreendidos.
O Sr. Pritchard perguntou em voz baixa:
- Acha que vai ser possível safar o ônibus?
- Ainda não olhei - respondeu Juan.
- Mas parece que encalhamos de verdade.
- O que pretende fazer agora?
- Não sei - respondeu Juan.
Queria ver o rosto de Ernest Hortos, para verificar se ele percebera que
aquilo tinha sido deliberado, mas a cabeça de Norma estava na frente,
escondendo-a do rapaz. Camille parecia indiferente, seu rosto não refletia
emoção alguma Já esperara demais para impacientar-se agora.
- Fiquem firmes em seus lugares - disse Juan.
Com um esforço, ergueu-se sobre o soalho que se inclinara em ângulo
pronunciado e puxou a alavanca da porta. O trinco estalou, mas a porta
continuou fechada. Estava deslocada. Endireitando o corpo, Juan encostou
um pé na porta e abriu-a com um tranco brusco. Os passageiros ouviram o
crepitar da chuva sobre a estrada e a relva. Juan desceu e deu volta até a
traseira do ônibus. A chuva fria batia com força em sua cabeça.
Tinha feito um bom trabalho. Provavelmente seria preciso a assistência
de um auto-reboque ou talvez até mesmo de um trator para retirar o ônibus
do buraco em que o metera. Curvando-se, olhou por baixo do carroçaria, para
certificar-se de algo que já tinha dado por certo.
Os eixos e o diferencial estavam profundamente afundados no barro.
Através das janelas, os passageiros olhavam para fora, suas feições
destorcidas pelos vidros molhados. Juan endireitou-se e voltou para o ônibus.
- Bem, pessoal, acho que agora a única coisa que podemos fazer é
esperar. Sinto muito, mas não se esqueçam de que foram vocês todos que
escolheram este caminho.
- Eu, não - protestou logo Van Brunt.
Juan voltou-se rápido como um raio para ele.
- Feche essa maldita boca, não se meto! Não me provoque, porque eu já
estou quase estourando, compreendeu?
Van Brunt compreendeu logo. Baixando os olhos para as mãos
ossudas, ele começou a beliscar a pele frouxa das juntas dos dedos e depois
esfregou as costas da mão esquerda com a palma da direita.
Juan sentou-se de lado em seu lugar, atrás do volante. Seus olhos
passaram rapidamente pela Virgem. "Está bem, está bem - pensou ele - eu
ajudei um pouco a coisa, é verdade. Não muito, mas um pouco. Acho que você
agora tem o direito de complicar um pouco a minha vida." Em voz alta, ele
disse:
- Agora tenho de caminhar até o telefone mais próximo para chamar um
carro-reboque. Vou chamar também um táxi para vocês. Não vai demorar
muito.
Van Brunt tinha agora o cuidado de controlar o tom de sua voz.
- Num raio de dez quilômetros não há casa nenhuma. A fazenda do
velho Hawkins fica a uns dois quilômetros daqui, mas está abandonada desde
que o banco executou a hipoteca. Você vai ter de seguir até a estrada
municipal e ela fica bem a uns doze quilômetros.
- Bem, se tenho de ir, vou, não há remédio - retrucou Juan. - Um pouco
de chuva não me molhará mais do que já estou.
Espinhudo teve uma explosão de altruísmo.
- Pode deixar, que eu vou - sugeriu. - Você fica aqui esperando, com os
passageiros.
- Não - respondeu Juan, rindo - êste é o seu dia de folga. Trate de
aproveitá-lo bem, divirta-se, Kit. - Curvou-se sobre o painel de instrumentos,
destrancou o porta-luvas e abriu a portinhola. - Aqui há um pouco de uísque,
para qualquer emergência - disse ele.
Juan hesitou, por um momento. Não seria melhor levar consigo o
revólver - um bom Smith & Wesson, cano longo? Talvez fosse besteira deixar a
arma no ônibus. Mas por outro lado, seria também besteira levar o revólver.
Caso se metesse em qualquer encrenca e fosse preso armado, o revólver
deporia contra ele. E se ia mesmo abandonar sua mulher, podia muito bem
abandonar o revólver também.
- Se aparecer algum tigre faminto - disse ele aos passageiros, em tom de
brincadeira - aqui há uma arma carregada.
- Estou com fome - observou Camille.
Juan sorriu-lhe.
- Olhe aqui, Kit, pegue estas chaves. A menorzinha é a do bagageiro, lá
atrás. Dentro, há uma caixa de tortas. - Ainda sorriu para Espinhudo. - Não
vá comer todas, filho. Vocês podem esperar aqui dentro do ônibus, mas se não
quiserem basta tirar o encerado do bagageiro e forrar com ele o chão de uma
daquelas cavernas. Podem até fazer uma boa fogueira, se encontrarem alguma
madeira seca por ai. Assim que encontrar um telefone, mando um táxi para
recolhê-los.
- Eu gostaria de ir em seu lugar - insistiu Espinhado.
- Não, você fica aqui olhando por tudo - disse Juan, notando a
satisfação que imediatamente se refletiu no rosto de Espinhudo. Juan fechou
a jaqueta até o pescoço. - Fiquem firmes aí - disse ainda, descendo do ônibus
e metendo os pés no barro.
Mas Espinhudo soltou também e alcançou-o. Deu alguns passos ao seu
lado, até Juan parar e encará-lo.
- Sr. Chicoy - disse mansamente - que pretende fazer?
- O que pretendo?
- Pois é. Olhe, sabe como é... bem, o ônibus não encalhou por acaso.
Juan pousou a mão no ombro de Espinhudo.
- Olhe, Kit, vou lhe contar uma coisa. Mas você tem de agüentar a mão,
compreendeu?
- Ora, é claro, Sr. Chicoy. É que eu... bem, eu só queria saber.
- Eu lhe conto tudo na primeira oportunidade que tivermos de
conversar a sós - disse Juan. - Por enquanto, você agüente a mão aqui e não
deixe esses camaradas se matarem, está certo?
- Bem, está certo - disse Espinhudo. Ele falava com insegurança. -
Quanto tempo, mais ou menos, o Sr. calcula que vai levar até encontrar um
telefone e voltar para cá?
- Não sei - retrucou Juan, impaciente. - Como é que eu posso saber?
Faça o que eu lhe disse.
- Claro. Está muito bem - assegurou Espinhudo.
- E coma todas as tortas que agüentar, Kit.
- Mas vamos ter de pagar essas tortas, Sr. Chicoy.
- É lógico - respondeu Juan, voltando-lhe os costas e reiniciando sua
caminhado sob a chuva. Sabia que Espinhudo estava parado onde o deixara,
olhando para ele, e sabia que Espinhudo pressentia alguma coisa. Espinhudo
sabia que ele ia embora. Juan não se sentia mais tão bem.
Não como tinha pensado que se sentiria. Agora tinha a impressão de
que não estava tão satisfeito, nem tão feliz, nem tão livre. Parou e olhou para
trás. Espinhudo estava entrando de novo no ônibus.
A estrada passava pelo grande rochedo amarelo, com suas tocas e
cavernas. Juan deixou a estrada e abrigou-se por um momento sob a saliência
da rocha. Tanto a saliência quanto as cavernas eram muito maiores do que
pareciam do lado de fora e eram também muito secas.
Logo na entrada da maior das cavernas havia três pedras escurecidos
pelo fogo e uma lata velha amassada. Juan voltou para a estrada e seguiu
caminho.
A chuva já perdera quase toda sua força. A sua direita, colina abaixo,
estava o rio, fazendo a grande curva
que o levava de um lado ao outro do vale, por entre a vegetação rasteira e os
campos alagados. Não havia um
centímetro de terra seca em todo o vale. O ar recendia a decomposição, os
fetos em fermentação exalavam um cheiro forte. A frente dele, a estrada surgia
lavada pela chuva e erodida pelas enxurradas, mas não apresentava qualquer
marca de rodas. Fazia muito tempo que um veículo tinha passado pela última
vez por aquela estrada.
Juan curvou a cabeça para protegê-la da chuva e estugou o passo.
Afinal, não era tão bom quanto tinha pensado. Ele tentou evocar novamente
as ensolaradas tardes do México, as jovens morenas envoltas até os olhos em
seus rebozos azuis e o cheiro de feijão cozinhando, mas desta vez era Alice que
se sobrepunha a todas as suas evocações. Alice, olhando para ele através da
porta da tela do restaurante. E ele lembrou do dormitório, com suas cortinas
de fazenda estampada. Ela gostava das boas coisas. Gostava de coisas
bonitas. A colcha, por exemplo, que ela própria tricotara em dezenas de
quadrados, sem repetir uma só vez a mesma cor. Dizia que uma colcha
daquelas poderia ser vendida a qualquer momento por cem dólares.
Depois ele pensou nas grandes árvores que cercavam o restaurante e em como
era bom ficar deitado na banheira cheia de água quente, a primeira banheira
de verdade em que tinha entrado, com exceção das banheiras de hotel. E no
banheiro havia sempre um sabonete perfumado.
- É apenas um maldito hábito, um vício - disse ele com seus botões. -
Uma maldita armadilha, como outra qualquer. A gente se acostuma com uma
coisa e acaba achando que gosta dela. Vou vencer esse hábito como quem
vence um resfriado. Claro, não vai ser fácil. Vou ficar preocupado com Alice.
Vou ficar triste. Vou recriminar-me e talvez nem possa dormir direito. Mas,
com o tempo, tudo isso passa. Depois de algum tempo nem me lembrarei mais
dessas coisas. E nunca mais me meterei numa arapuca dessas. - E então a
imagem de Alice foi substituída pela do rosto de Espinhudo, confiante e
animado, esperando que ele dissesse alguma coisa, que explicasse.
- Mais tarde, depois - disse Juan. Um dia eu lhe contarei tudo, Kit
Carson. - Pouca gente tinha confiado em Juan como Espinhudo confiava.
Ele tentou pensar no grande lago, em Chapala, mas sobre suas pálidas
águas ele viu o ônibus, "Querida", afundado até os eixos na valeta da estrada.
Mais à frente, do lado esquerdo de quem descia a encosta da colina, havia
uma casa, um celeiro e um velho moinho de vento, com suas pás quebradas e
pendendo do eixo. Aquilo deveria ser a fazenda do velho Hawkins.
Era exatamente num lugar como aquele que ele pensara em descansar
um pouco. Desceria até a fazenda, talvez entrasse na casa, mas o melhor seria
ir logo para o celeiro. Um celeiro velho geralmente é muito mais limpo do que
uma casa velho. Ali ele tinha certeza de que encontraria um pouco de feno ou
de palha seca. Juan pretendia deitar sobre o que encontrasse e dormir um
bom sono. Não pensaria em nada. Dormiria até o dia seguinte, talvez, e depois
desceria até a estrada estadual e pegaria uma carona rumo ao sul. Que
diferença iria fazer aquilo para os passageiros? "Eles não vão morrer de fome" -
pensou Juan. "Uma coisa dessas lhes fará bem. E, depois, não tenho nada
com isso."
Apertou o passo, descendo a colina rumo à velha fazenda abandonada.
Eles começariam logo a procurá-lo.
Alice logo pensaria que ele tinha sido assassinado e chamaria a polícia.
Ninguém cogitaria de que ele resolvera desaparecer, simplesmente. Era isso
que tornava a coisa engraçada. Ninguém pensaria que ele seria capaz de uma
coisa dessas. Pois bem, ele mostraria a todos eles do que era capaz. Iria para
San Diego, cruzaria a fronteira, pegaria o caminhão do correio em La Paz. Alice
que movimentasse a polícia.
Ele parou e olhou para trás. Suas pegadas estavam claras na estrada,
mas ainda estava chovendo e a água
lavaria tudo. Ademais, se quisesse, ele bem poderia deixar a estrada e
despistar quem pretendesse reconstituir os seus passos. Juan voltou-se
novamente para a velha fazenda e prosseguiu pela estrada.
A velha casa começara a cair aos pedaços logo depois de ter sido
abandonada. A rapaziada da vizinhança tinha quebrado as vidraças e furtado
todos os canos de chumbo, as portas abertas haviam batido estupidamente
contra seus batentes, até desprender-se de suas dobradiças e cair. O velho
papel de parede, batido pela chuva e o vento, havia sido arrancado em muitos
lugares, revelando um forro feito de suplementos ilustrados de jornais antigos,
com historietas em quadrinhos - "Vovô Sabido", "O Pequeno Nemo",
"Vagabundo Feliz" e "Brown peitudo". Os vagabundos também tinham passado
pela velha casa, carregando o que podiam e usando a madeira das portas
como lenha na velha lareira. O cheiro azedo de abandono e umidade era forte
dentro da casa vazia. Juan parou na porta, entrou e sentiu o cheiro de casa
abandonada, saiu pela porta dos fundos e seguiu reto para o celeiro.
A cerca do curral tinha sido derrubada e não havia nem sinal da grande
porta do celeiro, mas lá dentro o ar era puro e fresco. A madeira das baias
tinha sido gasta e polida nos lugares em que os cavalos haviam esfregado o
pescoço, sobre os cochos. Nos cantos havia grandes teias de aranha. Entre as
janelas de descarga de esterco estavam ainda penduradas as velhas escovas e
as raspadeiras enferrujadas. Um velho cabresto, com rédeas e um par de
tirantes, pendia de um gancho junto à porta. O couro do cabresto estava
aberto nas costuras, por onde saía o enchimento de algodão. O celeiro não
tinha sótão. Toda a parte central tinha sido usada como depósito de feno.
Juan foi até a última baia. O celeiro era escuro, pois a luz fraca da tarde só
entrava pelos buracos do teto. O chão estava coberto de palha, escurecida pelo
tempo e que desprendia um leve cheiro de mofo. Ao lado da baia, imóvel, Juan
podia ouvir os camundongos conversando e sentir o cheiro de colônias de
ratos. De uma trave do teto, duas corujas de celeiro, cor de café com leite,
observaram o intruso e depois cerraram novamente seus olhos amarelos.
A chuva diminuíra tanto que mal se ouvia seu tamborilar sobre o teto.
Juan foi até um canto e espalhou com o pé a camada superior de palha velha.
Sentou-se, ajeitou o corpo e deitou-se de costas, com as mãos cruzadas na
nuca. No celeiro, a vida recomeçara e os animais retomavam sua conversação
secreta em cochichos, mas Juan estava muito cansado para prestar atenção.
Seus nervos estavam à flor da pele e ele se sentia mal. Se dormisse um pouco,
pensou, acordaria bem melhor.
Antes de deixar o ônibus ele vibrara de antecipação ao pensar na
liberdade, seu prazer ao vislumbrá-la tivera a intensidade de um orgasmo.
Mas agora, aquilo tinha ficado para trás. Sentia-se muito mal. Seus ombros
doíam e embora estivesse confortóvelmente estendido sobre a palha, não tinha
mais sono. "Serei feliz, algum dia?" - perguntou Juan. "Não haverá nada que
eu possa fazer?"
Tentou recordar os velhos tempos, a época em que julgava ter sido feliz,
quando sua vida era uma só alegria, e pequenos quadros vivos do passado
começaram a tomar forma em sua imaginação. Aquela manhã, por exemplo,
bem cedinho, quando o sol ainda mal surgira, o ar estava ainda muito frio e
ele ficara olhando os passarinhos que ciscavam na estrada enlameada.
Naquela manhã ele não tinha razão alguma especial para estar alegre, mas
ainda se recordava de que ficara contente.
E outro. Entardecia e um cavalo de pêlo luzidio esfregava seu pescoço
bem feito sobre um varão de cerca, uma codorniz piava por perto e do meio do
mato vinha o apelo da água de uma cascatinha, espadanando sobre laje. Só de
lembrar isso sua respiração se acelerava. E outro. Ia para algum lugar, de
carro, com uma prima. Ela era mais velha... e por mais que se esforçasse não
conseguia lembrar se era bonita ou feia. O cavalo passarinhara, assustado por
um pedaço de papel na estrada e elo caíra sobre ele, esticando o braço para
equilibrar-se e apoiando a mão em seu joelho para endireitar o corpo.
Lembrando disso, ele sentiu o sangue aquecer seu estomago e a cabeça doer
de prazer. E outro. Estava parado numa grande e sombria catedral, por volta
da meia-noite, respirando numa atmosfera impregnado do odor bárbaro de
copa]. Tinha na mão uma vela pequena e fina, circulada no meio por um
aparador de seda branca. E, como num sonho, o doce murmúrio da missa
chegou até ele vindo do altar e uma suave sonolência pesou sobre suas
pálpebras.
Os músculos de Juan relaxaram-se aos poucos e ele adormeceu sobre a
palha do celeiro abandonado. E os tímidos camundongos sentiram que ele
estava dormindo saíram da palha e reiniciaram suas brincadeiras
interrompidas, enquanto a chuva sussurrava baixinho no teto do celeiro.

CAPÍTULO XV

Os passageiros ficaram observando Juan até o momento em que ele


desapareceu sobre o topo da colina. Não disseram uma palavra, nem mesmo
quando Espinhudo voltou para o ônibus e se instalou no assento do motorista.
Os assentos estavam muito inclinados e cada passageiro só pensava em
ajeitar-se numa posição mais confortável.
Finalmente, o Sr. Pritchard falou, sem dirigir-se a ninguém
especialmente:
- Quanto tempo será que teremos de esperar pelo tal carro?
Van Brunt esfregou sua mão esquerda com a direita, nervosamente.
- Umas três horas, no mínimo. Ele vai ter de cobrir uns dez
quilômetros. Mesmo que consiga telefonar, o carro vai levar mais ou menos
uma hora para chegar à estrada e mais uma hora para vir até aqui. E isso, se
vier. Nem todo mundo se arrisca por uma estrada destas. Nós deveríamos ter
ido a pé com ele, para aguardar condução na estrada municipal.
- Não poderíamos - respondeu o Sr. Pritchard. - Toda nossa bagagem
está no ônibus.
- Eu não quis dizer nada, quando você teve essa idéia maluca, Elliott -
exclamou subitamente a Sra. Pritchard. - Afinal, as férias são suas.
Ela aguardara o momento oportuno para explicar aos demais
passageiros, as circunstâncias que tinham levado gente bem como os
Pritchard a encontrar-se em tal situação, naquele ônibus - como haviam sido
levados a compartilhar com os demais aquele destino. Os outros passageiros
deviam estar surpreendidos, pensara ela. Agora, aproveitava a oportunidade
para esclarecê-los devidamente.
- Viemos de trem, um trem muito confortável, até San Francisco. Foi
uma viagem excelente, muito satisfatória. E então o engraçadinho de meu
marido teve a idéia maluca de que seria interessante prosseguirmos de ônibus.
Achou que assim poderia conhecer muito melhor a região.
- Bem, e não pode negar que ficamos conhecendo mesmo, menina -
replicou ele, num tom amargo.
- Meu marido - prosseguiu ela - disse que tinha perdido o contato com o
povo há muito tempo. Queria saber o que interessa realmente o povo, o
verdadeiro povo.
Um laivo de malícia começava a entremostrar-se nas suas palavras.
- Achei logo que seria tolice, mas afinal é ele quem está de férias. Ele é
um dos que consumiram suas energias emprestando seu apoio ao esforço de
guerra. As mulheres não tinham muita coisa a fazer, além de esquecer que
havia racionamento e que os armazéns tinham pouca coisa para vender, pois
só lhes cabia alimentar a família. Certa ocasião, por exemplo, passamos dois
meses sem provar carne. Só havia galinha, e vejam lá.
O Sr. Pritchard contemplava sua esposa, estupefato. Era raríssimo ela
dar-se ao luxo de um destampatório daquela ordem e a ironia de suas
palavras produzia um estranho efeito sobre ele. Subitamente, ao dar por si, ele
viu que estava furioso, danado, tomado por um ódio crescente e irracional. Era
o produto do tom de sua esposa.
- Pois eu queria ter ficado em casa - interrompeu ele. - Eu não queria
vir. Descansaria muito melhor, jogando um pouco de golfe e dormindo em
minha própria cama. Eu não queria fazer esta viagem, nunca quis.
Agora, os outros passageiros o observavam com curiosidade e interesse.
Não havia mesmo o que fazer. Aquilo poderia ser interessante. O ódio dos dois
começava a encher o ônibus.
- Mamãe, papai - disse Mildred - acabem com isso!
- Não se mêta - replicou o Sr. Pritchard. - Eu não queria vir. Não queria,
de maneira nenhuma. Detesto viajar para o estrangeiro e especialmente para
países sujos.
A Sra. Pritchard estava com os lábios brancos de ódio e seu olhar era
gelado.
- Pois você escolheu bem a oportunidade para me dizer isso. Quem foi
que planejou toda a viagem e comprou as passagens? Quem nos fez embarcar
neste ônibus, quem nos fez vir dor com os costados neste buraco, num lugar
fora do mundo? Quem tem a culpa disso tudo? Eu, por acaso?
- Mamãe! - gritou Mildred. Ela jamais ouvira sua mãe falar daquela
forma.
- E é estranho - a voz da Sra. Pritchard perdeu as notas mais agudas - é
estranho, pois eu fiz o que pude para dissuadi-lo. Quando acabarmos de pagar
as contas, esta viagem vai nos ficar uns três ou quatro mil dólares. Se você
não tivesse querido fazer a viagem eu poderia muito bem ter mandado
construir aquela pequena estufa para as minhas orquídeas, que eu quero há
tanto tempo, aquela pequena estufazinha. Você disse que não seria um bom
exemplo construir a estufa durante a guerra, está certo, mos agora a guerra
acabou e estamos fazendo uma viagem que você não quer fazer. Bem, você
conseguiu estragar a viagem para mim também. Não vou gozar nada desta
viagem. Você estraga tudo. Tudo! - A Sra. Pritchard cobriu os olhos com a
mão.
Mildred levantou-se.
- Mamãe, pare com isso. Mamãe, pare com isso, já! - A Sra. Pritchard
gemeu um pouco. - Se não acabar com isso, vou embora neste momento -
disse Mildred.
- Pois vá - disse a Sra. Pritchard. - Pode ir. Oh, você também não
entende nada.
O rosto de Mildred endureceu. Desdobrou sua capa de gabardine e
envergou-a.
- Vou descer até a estrada municipal - anunciou em voz alta.
- São quase dez quilômetros - disse Van Brunt. - Você vai estragar os
seus sapatos.
- Gosto de andar - respondeu Mildred. Tinha de sair, tinha de sair
depressa do ônibus, pois seu ódio pela mãe crescia dentro dela e começava a
revirar-lhe o estomago.
A Sra. Pritchard sacara seu lenço e agora o perfume de lavanda enchia
o ônibus.
- Pense bem no que vai fazer - disse Mildred duramente à mãe. - Sei
muito bem o que você pretende. Vai ter uma dor de cabeça daquelas, para
castigar-nos. Conheço você muito bem. Uma daquelas suas dores de cabeça
simuladas. E não vou ficar sentada aqui, esperando você dar início ao
primeiro ato.
Espinhudo olhava para ela de olhos arregalados, fascinado. Respirava
pela boca entreaberta.
A Sra. Pritchard ergueu os olhos cheios de horror para a filha.
- Mas, o que é isso, querida? Você não pensa mesmo assim, não é
mesmo, minha filha?
- Estou começando a pensar, estou começando a acreditar. Suas dores
de cabeça são muito oportunas, oportunas demais.
- Cale-se, Mildred! - disse o Sr. Pritchard.
- Vou sair já - respondeu ela.
- Mildred, proíbo que você saia!
Ela respondeu com muxoxo.
- Pois proíba e que se fomente! - Mildred abotoou a capo até o queixo.
O Sr. Pritchard estendeu-lhe a mão.
- Mildred, por favor, minha filha.
- Já estou farta - respondeu ela. - Além disso, preciso fazer um pouco
de exercício. - Sem mais palavra, deu as costas a todos, desceu do ônibus e
tomou o caminho seguido por Juan, andando depressa.
- Elliott - gritou a Sra. Pritchard - faça alguma coisa para detê-la. Não a
deixe ir, Elliott.
Mas ele limitou-se a dar-lhe uma palmadinha no braço.
- Ora, menina, não há perigo, ela sabe tomar conta de si. O que
acontece é que estamos irritados. Todos nós.
- Oh, Elliott - gemeu ela - se ao menos pudesse deitar-me um pouco...
Só queria descansar um pouquinho. Ela pensa que as minhas dores de cabeça
são simuladas, Elliott. Elliott, eu me mato se ela me julgar capaz de uma coisa
dessas. Oh, se ao menos eu pudesse deitar-me um pouco...
- Madame - disse Espinhudo, atenciosamente - temos uns encerados no
bagageiro de trás. Os encerados são para cobrir a bagagem, quando ela vai em
cima do ônibus. Se seu marido quiser levar um deles para aquela caverna, a
senhora poderia estendê-lo no chão, para deitar-se sobre ele.
- Oh, uma excelente idéia - exclamou o Sr. Pritchard.
- Deitar nesse chão frio e úmido? - protestou ela. - Eu, não.
- Não, sobre o encerado. Eu posso arrumar com ele uma caminha bem
confortável para a minha menina.
- Bem, não sei - disse ela.
- Olhe aqui, querida - insistiu ele - olhe, estou enrolando o meu
sobretudo. Agora, encoste sua cabecinha aqui em cima dele, assim. Daqui a
pouco a sua caminha estará preparada e eu virei buscá-la.
Ela gemeu.
- Encoste bem sua cabeça aqui e feche os olhos.
- O Sr. Chicoy me disse que retirasse as tortas, para o caso de alguém
ficar com fome - disse Espinhudo.
- Há tortas de quatro sabores e elas são muito gostosas. Eu seria capaz
de comer uma inteirinha, agora mesmo.
- Primeiro vamos tratar do encerado - lembrou o Sr. Pritchard. - Minha
esposa está exausta. Chegou ao limite final de suas energias. Você me ajuda a
arrumar uma cama para ela com o encerado, não é?
- OK. - respondeu Espinhudo. Ele sentia que estava fazendo o que devia
na ausência de Juan. Sentia-se forte e disposto. Sua postura demonstrava os
seus sentimentos, pois atirara os ombros para trás e em seus pálidos olhos de
lobo brilhava a luz do confiança. Espinhudo só lamentava uma coisa. Devia
ter lembrado de trazer um par de sapatos velhos. Seus sapatos de duas cores
iriam ficar emporcalhados, imundos de barro grosso, e ele teria de trabalhar
muito com uma velha escova de dentes para limpá-los, quando voltassem para
casa. E não podia demonstrar preocupação pelos sapatos, pois se o fizesse
Camille não o tomaria por um desses homens que não ligam nem para o
diabo. Ela não se deixaria impressionar por um homem que se preocupa com
os próprios sapatos, mesmo quando eles são sapatos de duas cores, branco e
marrom.
- Vou dar uma espiada naquelas cavernas - anunciou Ernest,
levantando-se e passando entre os bancos para ganhar a porta do ônibus. Van
Brunt ergueu-se também resmungando, para segui-lo.
A Sra. Pritchard apoiou o rosto no sobretudo enrolado do Sr. Pritchard
e fechou os olhos. Estava vencida pelo desalento. Como poderia ela ter perdido
o controle, a ponto de deblaterar publicamente - com seu próprio marido?
Aquilo jamais acontecera. Quando uma discussão era inevitável, ela sempre
conseguira adiá-la até o momento em que estivessem a sós. Nem mesmo perto
de Mildred ela se permitia discutir. Considerava vulgar quem discute em
público e, além disso, destruíra um mito que edificara pacientemente durante
muitos anos, o mito de que seu casamento era feliz em virtude- de sua própria
brandura. Todas as pessoas com que se davam acreditavam piamente nisso.
Ela própria chegara a acreditar no que tinha inventado. E agora, num deslize
imperdoável, deixara que fosse por água abaixo o mito do casamento feliz que
levara anos para edificar. Havia brigado com Elliott. Havia dito o que sentia
sobre a estufazinha que desejava tanto para as suas orquídeas.
Na verdade, ela desejava aquela estufa havia muito tempo. Desejava a
estufa desde que lera, no Horper’s Bazaar, um artigo sobre uma Sra. William
O. MacKenzie, que mandara construir uma estufa no jardim de sua casa. As
fotografias publicadas eram encantadoras. Se também construísse uma, não
haveria quem não reconhecesse que a Sra. Pritchard tinha a mais linda
estufazinha de orquídeas deste mundo. Secretamente, ela estudara a fundo os
pormenores da construção. Estudara projetos. Calculara preços de sistemas
de aquecimento e de vaporização do ar. Sabia onde poderiam ser adquiridas as
peças melhores e mais caras, bem como seu preço exato. Lera várias obras
especializadas sobre as orquídeas e seu desenvolvimento. E fizera tudo isso
secretamente, pois sabia que quando, e se fosse resolvida a construção da
estufa, o Sr. Pritchard desejaria verificar pessoalmente todo o equipamento e
suas condições, para expor a ela os dados da operação. Era a única maneira
de ter sua própria estufa. Ela não ressentia a atitude que o Sr. Pritchard iria
tomar e com a qual já contava de antemão. Aquilo era simplesmente parte de
um sistema de vida, sistema que aplicara para tornar feliz seu casamento. Ela
deixar-se-ia impressionar pelos conhecimentos demonstrados pelo Sr.
Pritchard sobre o assunto e não esqueceria de consultá-lo em todas as fases
do projeto.
Agora, estava desalentada e preocupada por ter deixado tudo aquilo
escapar, durante a discussão. Tal erro poderia representar um atraso de seis
meses, talvez mais ainda. Ela planejara levá-lo a fazer a sugestão e, com uma
resistência bem dosada, permitir que a persuadisse da necessidade de
construir a estufa. Mas agora, depois de ter mencionado seu projeto num
momento de ódio, ele resistiria a qualquer insinuação. A explosão havia sido
um gesto estúpido e vulgar de sua parte.
Podia ouvir Norma e Camille, conversando baixinho no assento de trás.
Mantinha seus olhos fechados e dava a impressão de estar tão abatida e
doente que elas jamais poderiam imaginar que ouvia tudo o que diziam.
Norma estava dizendo:
- Uma das coisas que gostaria de aprender com você é... bem, como
controlar os homens.
Camille deu uma risadinha.
- Como assim?
- Bem, veja o Espinhudo, por exemplo. Eu sei que ele está... tentando e
não consegue nada com você e, ao mesmo tempo, você nem parece fazer o
menor esforço para afastá-lo. Depois, há esse outro camarada. O vendedor.
Bem, esse é outra coisa, é um sujeito sabido, mas você lida com ele como se
fosse a coisa mais fácil do mundo mantê-lo à distancia. Queria saber como
consegue fazer isso.
Camille ouvia Norma com agrado. Embora estivesse preocupada com o
repentino apego de Norma, era agradável ouvir uma pessoa que a admirava.
Era a ocasião oportuna para revelar a Norma que ela não era e nunca fora
enfermeira odontológica, para contar-lhe tudo sobre as gigantescas taças de
vinho e o encerramento dos banquetes de homens de negócios, mas aí estava
uma coisa que não podia fazer. Na verdade, ela não queria chocar Norma.
Queria apenas que ela continuasse a admirá-la.
- O que mais me assombra é o fato de nunca ser grosseira nem
agressiva e de mesmo assim eles não conseguirem nem encostar um dedo em
você.
- Nunca pensei nisso - disse Camille. - Creio que é uma espécie de
instinto. - Ela sorriu. - Eu tenho uma amiga que sabe mesmo lidar com os
homens. Não liga a eles a menor importância e, para falar a verdade, gosta de
tratá-los mal, às vezes. Pois bem, Loraine - o nome dela é Loraine - estava...
bem, estava mais ou menos comprometida com um camarada e ele ganhava
bem, de forma que não havia problema. Loraine queria um casaco de pele. É
claro que ela já possuía uma jaqueta de pele de lobo e um par de estolas de
raposa, pois Loraine é muito popular. Ela é bonita, miudinha, e quando está
conversando numa roda, todo mundo ri. Então, como eu ia dizendo, Loraine
queria um casaco de mink, não desses curtos, três-quartos, mas um casaco
clássico, longo, desses que custam três, quatro mil dólares.
Norma assobiou entre os dentes, baixinho.
- Meu Deus! - exclamou.
- Bem, certa tarde, Loraine me disse: “Acho que vou conseguir o casaco
de mink que estou querendo." E eu respondi: "Ora, você está brincando."
"Brincando? Pois o Eddie vai me dar o casaco." "Quando foi que ele lhe disse?"
- perguntei. - Loraine deu uma risadinha. "Ele ainda não me disse nada. Ele
nem sabe que vai me dar o casaco." "Ora - disse eu - você não está boa da
cabeça." "Quer fazer uma aposta?" - Loraine é louca por apostas, é capaz de
apostar em qualquer coisa. Eu não costumo fazer apostas em coisas assim, de
forma que perguntei a ela: "E como é que você vai ganhar o casaco?" "Se eu
lhe disser você não conta nada a ninguém?" - perguntou ela. - "Então escute.
É muito fácil. Conheço bem o Eddie. Vou começar a chatear o rapaz esta noite
e continuar chateando, até ele ficar bem danado. Vou chateando, até ele ficar
louco de raiva e me meter a mão na cara. É capaz até de eu ter de ajudar um
pouco, porque quando ele está meio tocado não consegue acertar ninguém.
Pois bem, depois eu vou deixar o Eddie esfriar no próprio molho, fico só
cozinhando o bruto de longe. Conheço o Eddie. Ele vai se sentir mau e
mesquinho. Quer fazer a aposta comigo?" - insistiu ela. "Sou capaz até de
prever a hora em que ele vai me trazer o casaco. Aposto como vai ser amanhã,
à noite." Bem, eu não costumo apostar, de forma que disse apenas: "Aposto
dois mangos como você não consegue."
- E ela conseguiu? - perguntou Norma.
- Bem, isso foi numa sexta-feira, e no domingo de manhã eu fui visitar
Loraine. Estava com um olho inchado, todo azul, e um esparadrapo em cima
do nariz, direitinho como tinha previsto.
- E o casaco, ela ganhou o casaco?
- Ganhou, ganhou, que dúvida - respondeu Camille, de testa franzida,
como se ainda estivesse ligeiramente perplexa. - Ganhou o casaco e ele era
uma beleza mesmo. Bem, então ela tirou toda a roupa. Estávamos sozinhas, é
claro. Ela virou o casaco pelo avesso e vestiu-o, com a pele sobre a sua pele.
Depois deitou no chão, enrolada no casaco, rolou e riu tanto que eu pensei
que tivesse ficado louca.
Norma mal respirava, tal a atenção com que acompanhava a história.
- Deus! - exclamou. - Mas por que ela fez isso?
- Não sei. Mas ela é meio... bem, acho que não é muito certo. Loraine é
meio pancada.
A Sra. Pritchard sentiu o sangue que lhe subia ao rosto. Respirava
rapidamente, em haustos muito curtos. Estava arrepiada e sentia um forte
comichão nas pernas e no estomago, coisa que jamais lhe acontecera e
experimentava uma intensa excitação, como só experimentara uma vez em
sua vida, havia muitos anos, quando estava aprendendo a andar a cavalo.
Norma retrucou judiciosamente.
- Não posso dizer que aprovo a conduta dela. Se amava realmente Eddie
e se pretendia mesmo casar-se com ele, não devia ter feito uma coisa dessas.
- Eu também não aprovei - disse Camille. - Aquilo me deixou aborrecida
e eu disse o que estava pensando a Loraine, mas ela respondeu: - "Bem, há
quem tenha paciência para esperar. Eu não tenho. Quero as coisas logo. No
fim, dá na mesma. Alguém iria ganhar um casaco de Eddie, mais cedo ou mais
tarde."
- E ela casou-se com ele?
- Oh, não. Não se casou.
- Pois aposto como ela nunca amou Eddie - afirmou Norma, erguendo a
voz. - Queria apenas explorar o rapaz.
- Talvez - disse Camille - mas ela é minha amigo há muito, muito tempo
e sempre que precisei de alguma coisa ela nunca deixou de me atender. Certo
ocasião, quando tive pneumonia, ela passou três dias e três noites sentada à
minha cabeceira e como eu estava lisa ela pagou todas as contas do médico e
dos remédios.
- Pois é, nunca se sabe - observou Norma, cautelosamente.
- É, não se sabe - retrucou Camille. - Além disso, foi você quem me
perguntou como é que se lida com homens.
A Sra. Pritchard tentava punir-se com palavras. Estava perturbada por
sua própria reação. Falando sozinha, disse num cochicho quase audível: - Que
coisa horrível, vulgar. Essas mocinhas são verdadeiros animais.
Então é isso que Elliott entende por "sondar a verdadeira alma do povo".
Oh, é horrível. O que acontece, é que a gente acaba esquecendo como é o povo,
no realidade, como pode ser baixo e grosseiro. Querida Ellen - sussurrou ela,
escrevendo freneticamente uma de suas cartas imaginárias, sentindo ainda o
ardor da excitação entre suas coxas - querida Ellen, a viagem entre San Isidro
e San Juan de La Cruz foi terrível, O ônibus caiu numa valeta e tivemos de
ficar esperando sentados, durante horas e horas.
O meu Elliott foi muito bonzinho e arrumou uma cama para mim,
dentro de uma caverna esquisita. Você disse que eu iria ter aventuras na
viagem. Lembra do que me disse, antes de partirmos? Mesmo antes disso,
você costumava prever que eu teria aventuras. Pois bem, tive mesmo. No
nosso ônibus viajavam também duas pequenas vulgares, analfabetas, uma
delas garçonete e a outra bem bonitinha. Era uma daquelas, sabe o que eu
quero dizer. Eu estava repousando, recostado, e creio que elas pensaram que
estava dormindo, pois começaram a falar em voz alta. Não posso escrever,
numa carta, o que ouvi. Ainda estou corado de vergonha. Gente decente não
pode imaginar o que seja a vida dessas criaturas. É incrível. Na minha
opinião, acho que isso é resultado de ignorância. Se tivéssemos escolas
melhores, se ... bem, se você quer mesmo saber a verdade ... se nós, que
devemos dar o exemplo, déssemos melhor exemplo, estou certo de que a
situação geral iria melhorando, gradualmente, talvez, mas melhoraria.
Ellen leria e releria aquela carta para as amigas e conhecidas. "Acabei
de receber esta carta de Bernice. Está vivendo as mais extraordinárias
aventuras. Ela sempre tem, aliás, as mais estranhas aventuras. Bem, quero
que vocês ouçam o que ela conta aqui. Nunca conheci uma pessoa tão
disposta quanto Bernice a procurar boas qualidades nos outros."
Norma estava dizendo a Camille:
- Pois se eu gostasse mesmo de um rapaz não seria capaz de fazer o que
ela fez. Se ele quisesse me dar um presente, a iniciativa teria de partir dele.
- Está certo, eu também penso assim - respondeu Camille. - Mas eu não
tenho casaco de pele, nem mesmo uma estola, para falar a verdade. E Loraine
agora tem três casacos.
- Bem, acho que isso não é direito - afirmou Norma. - Tenho a
impressão de que não vou gostar de Loraine.
- Deus Santíssimo! - exclamou Camille com seus botões. - Você então
tem a impressão de que não vai gostar de Loraine. Será que poderia imaginar
a idéia que Loraine faria de você? Não, pensou Camille, não, isso não é
verdade. Loraine provavelmente acolheria aquela menina e a ajudaria a dar
um jeito na vida. Loraine poderia ser acusada de tudo, menos de ser uma boa
aliciadora de recrutas promissoras, de ajudar uma menina a dar um jeito na
vida.

CAPITULO XVI

Mildred baixou a cabeça, para evitar que a chuva embaciasse as lentes


de seus óculos. Gostava de caminhar e estava aproveitando o exercício,
respirando profundamente. Tinha a impressão de que o céu ficava cada vez
mais escuro. Não podia ser muito tarde, mas a luz já era crepuscular e fazia
com que certas coisas, como pedacinhos de quartzo e de granito, ficassem
ainda mais brilhantes, enquanto as coisas mais escuras, como os mourões de
cerca, pareciam quase negras.
Mildred caminhava rapidamente, com segurança, batendo forte os
calcanhares contra o cascalho. Estava tentando esquecer a briga entre seu pai
e sua mãe. Não se lembrava de tê-los visto brigar assim, nunca. Contudo, a
atitude dois indicava certa prática, o que afastaria a hipótese de que se
tratasse de um incidente inusitado. Sua mãe devia limitar as brigas do casal
ao dormitório, onde ninguém poderia ouvir o que os dois se diziam. Ela
edificara e mantinha aquele mito de casamento perfeito. Mas acontece que
naquele dia a tensão havia chegado a um ponto incontrolável e não havia
dormitório por perto onde eles pudessem dizer-se as coisas que tinham a se
dizer. Eram especialmente as pequenas gotas de veneno filtradas durante a
discussão que perturbavam Mildred. Era um veneno que não agia aberto,
honestamente, mas um veneno sutil, que agia secretamente, forjando um fino
estilete de ódio que podia ser rapidamente cravado e rapidamente
embainhado.
E ainda tinham pela frente aquela viagem ao México. E se não voltasse?
O que aconteceria se continuasse andando, para pegar uma carona na estrada
e desaparecer? Poderia alugar um quarto, talvez nalgum lugar à beira-mar,
onde pudesse passar bastante tempo tomando sol, sobre as pedras ou na
praia. A idéia agradou-a imediatamente. Poderia cozinhar suas próprias
refeições e ficar conhecendo uma porção de pessoas na praia. Mas a idéia era
ridículo. Ela não tinha dinheiro. Seu pai era muito generoso - mas não quando
se tratava de dinheiro. Ela tinha liberdade para mandar debitar vestidos no
conta dele e para assinar cheques em restaurantes, mas jamais tivera dinheiro
sonante em quantidade razoável para gastar. Embora seu pai não fosse
mesquinho com dinheiro, era muito curioso. Gostava de saber o que ela
comprava e o que comia, e ficava sabendo por intermédio das contas que
recebia e pagava mensalmente.
Mas não tinha importância, ela sempre poderia trabalhar. Iria começar
logo, de qualquer formo, mas até então não pensara muito nisso. Não, seria
melhor esperar mais um pouco. Tinha de agüentar aquela horrível viagem pelo
México, que bem poderia ser maravilhosa se estivesse viajando sozinha, e
depois voltar para o colégio.
Brevemente estaria em condições de trabalhar e tinha certeza de que
seu pai não se oporia a isso. Ele gostaria de dizer a Charlie Johnson: "Eu
poderia muito bem dar a ela tudo quanto quisesse, mas ela ficaria,muito cheia
de vontades e caprichos. Não senhor, agora ela vai dar um pouco mais de
valor ao dinheiro ganho com trabalho."
E ele diria isso com orgulho, de boca cheia, como se o fato de ela
trabalhar dependesse de uma qualidade ou virtude paterna especial e jamais
saberia que ela decidira trabalhar para poder dirigir sua própria vida, para
garantir sua própria intimidade, para poder ter o seu próprio apartamento e
gastar o dinheiro em coisas das quais ele não precisava ter conhecimento.
Em casa, por exemplo, ela tinha plena liberdade para servir-se da
bebida que estivesse com vontade de tomar, mos também sabia que seu pai
tinha gravado na memória o nível exato da bebida que havia em cada uma das
garrafas e assim, se tornasse três doses, ele saberia que ela tinha tomado
exatamente três doses. Era um homem extremamente curioso.
Mildred tirou por um momento os óculos, limpou-os no forro da capa, e
prosseguiu pela estrada. As pegadas de Juan eram bem visíveis sobre o barro.
Pegadas distanciadas, deixadas por um homem que dá longos passos.
Havia lugares em que ele pisara sobre pedras e ali as marcos de lama
expunham reproduções das solas de seus sapatos, com a linha do desenho
quebrada no meio, no arco do pé. Mildred tentou caminhar pisando só nas
pegadas de Juan, mas os passos eram muito largos para ela e depois de
algumas tentativas os músculos de suas coxas começaram a ficar doloridos.
Era um homem estranho, arrebatador, pensou Mildred.
Agora, estava satisfeito por ter passado por aquela estranha experiência
da manhã. Aquilo, afinal, não queria dizer nada, ela sabia. Os nervos ficam
tensos e uma série de glândulas começa a funcionar - conhecia bem o
processo. E conhecia também o seu forte impulso sexual.
Com o correr do tempo, teria de casar-se ou de estabelecer qualquer
forma de relação permanente com um homem. Agora, seus períodos de
ansiedade e de necessidade eram cada vez mais freqüentes. Pensou no rosto
moreno e nos olhos brilhantes de Juan, sem sentir-se afetada. Mas nele havia
ternura, ternura e honestidade. Ela gostava dele.
Do topo da colina, avistou a velha fazenda abandonada e imediatamente
sentiu-se fascinada. Podia sentir quase fisicamente o abandono do lugar.
Sabia que lhe seria impossível passar pela velha casa, quase em ruínas, sem
entrar para examiná-la. Quando deu por si, tinha apertado o passo A velha
fazenda despertara todo seu interesse.
O velho Van Brunt tinha dito que o banco executara a hipoteca, que a
família se mudara e que o banco não se interessava pela velha casa. A única
coisa que ali valia alguma coisa era a terra.
Agora, seus passos eram quase tão longos como a distância entre as
pegadas de Juan. Ela desceu a colina até o trilho lamacento que levava à
entrada da casa, e então parou. Ali estavam, à sua frente, as pegadas de Juan.
Dando volta, avançou um pouco pela estrada, para ver se ele tinha
prosseguido rumo à estrada municipal, mas não achou uma só pegada.
"Então ele ainda deve estar aí na fazenda" - pensou Mildred. "Mas, por
quê? Ele nos deixou para descer até a estrada municipal. Aqui não há
telefone, com certeza."
Ficou intrigada ao perceber que não podia compreender o que havia
acontecido, que não conhecia bem aquele homem. Recomeçou a caminhar na
direção da casa, desta vez mais lentamente e procurando andar sobre a relva,
para que seus pés não fizessem barulho ao pisar em cascalho.
Agora, parecia haver alguma coisa perigosa naquela casa deserta. Ela
recordou as notícias que lera em velhos jornais, sobre assassínios em lugares
isolados como aquele. Sua garganta estreitou-se de medo. "Ora - pensou - se
não quiser entrar, eu posso virar as costas e ir embora. Não há ninguém aqui
para agarrar-me. Ninguém me empurra para dentro da casa, mas eu sei que
devo entrar. Sei que não posso ir embora. Talvez aquelas moças assassinadas
também tenham sentido a mesmo coisa. Talvez estivessem procurando o fim
que, tiveram."
Viu-se jazendo no soalho de um dos quartos, estrangulada ou
apunhalada, e alguma coisa da visão fez com que desse risada - estava morta
e de óculos. E o que conhecia sobre aquele homem, Juan? Era um homem
casado, respeitável. Então ela recordou um grande título de jornal que tinha
lido havia muito tempo: "Pai de três filhos e assassino sádico. Pastor liquida
uma cantora de coro."
Ela queria muito saber por que tinha de ser tão grande o número de
cantores de coro e organistas assassinadas. Parecia tratar-se de um risco
profissional corrido pelas cantoras de coro. Eram invariàvelmente encontradas
estranguladas, atrás do órgão. Ela riu alto. Sabia que não poderia mais deixar
de entrar naquela casa. Deveria entrar fazendo barulho ou silenciosamente, a
fim de surpreender Juan Chicoy, ver o que ele estava fazendo naquele
momento? Talvez estivesse na privada.
Deu um primeiro passo no interior da casa, com cuidado, e o velho
soalho rangeu, protestando contra seu peso. Cruzou a casa, abrindo os velhos
armários. Na cozinha havia uma lata de pimenta do reino virada e num dos
dormitórios um paletó ainda pendia de um cabide de parede. Ela virou a
cabeça de lado, para examinar uma historieta em quadrinhos de um dos
velhos jornais que tinham servido de forro para o papel de parede. Ainda era
possível ler toda uma faixa do "Vagabundo Feliz".
Maude, a mula, desfechava um formidável par de coices e Cy voava pelo
ar e nos fundilhos de Cy estavam impressas as marcas das ferraduras da
mula.
Ela endireitou a cabeça. Por que não pensara logo no celeiro? Mildred
voltou para a frente da casa e localizou as pegadas de Juan. Depois entrou
novamente e seguiu as marcas dos passos até a sala de estar. Ali, as pegados
desapareciam. Então ela deu a volta por dentro da cosa, saiu pela porta da
cozinha e olhou, de novo. Era mesmo uma idiota, tivera medo a toa! Ali
estavam novamente as pegadas, as marcas dos passos de Juan, rumo ao
celeiro.
Mildred seguiu as pegadas pelo chão de terra mole, passando ao lado do
velho moinho de vento. Entrou silenciosamente no celeiro, deu alguns passos
e parou, escutando. Não se ouvia o menor ruído, era tudo silêncio.
Pensou em chamar, gritar, mas não abriu a boca. Lentamente, foi
avançando pelo celeiro, passando pelas velhas baias. Seus olhos demoraram
um pouco para ajustar-se à penumbra interna. Parou ao chegar ao centro do
celeiro. Os camundongos haviam desaparecido. E então ela viu Juan, deitado
de costas, com as mãos cruzadas sob a nuca. Tinha os olhos fechados e
respirava serenamente.
"Posso muito bem ir embora" - pensou ela. "Ninguém me obrigou a
entrar. A culpa será toda minha. Não posso esquecer, será toda minha. Eu é
que me meto com a vida dele. Ora, mas em que bobagens estou pensando?"
Tirou os óculos e guardou-os no bolso da capa. Agora, mal distinguia a
silhueta imprecisa de um homem, seus olhos não percebiam os detalhes da
figura, mas ainda assim podia vê-lo. Caminhou lentamente, andando com
cuidado, cruzou o trecho coberto de palha amassada e, quando chegou ao lado
dele, sentou-se sobre as pernas cruzadas. Podia distinguir vagamente a funda
cicatriz branca do lábio superior de Juan, notar que respirava fundo e
compassadamente. "Está apenas cansado - pensou ela. - Deitou-se um pouco
para descansar e adormeceu. Não devo acordá-lo."
Pensou nos outros, nos que tinham ficado no ônibus - no que
aconteceria se nem ela e nem Juan voltassem. Que fariam eles? Sua mãe
desfaleceria, com certeza. Seu pai passaria um telegrama ao governador do
Estado - a dois ou três governadores. Chamaria o FBI. Seu pai faria um
barulho dos diabos, moveria céus e terras. Mas que poderiam fazer eles,
afinal? Ela já completara vinte e um anos. Quando os encontrassem, podia
muito bem dizer: "Tenho vinte e um anos, sou maior de idade e posso fazer o
que bem entender. Que querem vocês?" E urgis ainda, poderia ir para o
México, com Juan. Isso" seria outra história, uma coisa muito diferente.
Mas então as pequenas incongruências ocorreram a ela. Se ele fosse
mesmo índio, ou se tivesse sangue de índio, como é que uma pessoa poderia
aproximar-se dele de mansinho, como ela se aproximara, e surpreendê-lo
desprevenido? Mildred comprimiu os cantos dos olhos, para enxergar melhor.
Era um rosto batido pelo tempo, bronzeado, mas era bom. Os lábios eram
cheios e próprios para rir, mas eram também bondosos. Ele deveria ser um
homem gentil, quando estivesse com uma mulher. Poderia não permanecer
muito tempo ao lado dela, desaparecer um dia, mas seria bom enquanto
estivesse com ela. Mas ele já tinha uma mulher, aquela mulherzinha
horrorosa e ficara ao seu lado. Só Deus sabia há quanto tempo. Ela talvez
tivesse sido muito bonita ao se casarem, mas agora era horrível. O que teria
acontecido, então? Como poderia aquela mulher horrorosa monte-lo ao seu
lado? Bem, talvez fosse um homem igualzinho aos outros, como seu pai por
exemplo. Talvez se sujeitasse àquela vida premido pelos temores e pela força
de hábito. Mildred não compreendia como uma coisa dessas pode acontecer,
mas sabia que essas coisas acontecem. A medida que vão envelhecendo, as
pessoas começam a ter medo de coisas cada vez menores. Seu pai tinha medo
de um idioma estranho, de uma cama estranha, de um partido político que
não fosse o seu. Seu pai acreditava realmente que o Partido Democrático não
passava de uma organização subversiva, que tinha por objetivo derrubar o
governo dos Estados Unidos e entregá-lo a um grupo de comunistas barbudos.
Temia seus amigos e seus amigos o temiam. Um círculo vicioso, uma corrida
de ratos, pensou Mildred.
Ela correu os olhos pelo corpo de Juan, um corpo rijo - enxuto que se
tornaria mais rijo e enxuto à medida que fosse envelhecendo. As calças ainda
estavam úmidas e coladas às pernas de Juan. Contudo, ele dava a impressão
de estar muito limpo - limpo como um mecânico que acabou de se lavar.
Mildred observou seu estomago chato, seu peito largo. Não notara nenhuma
alteração no ritmo de sua respiração, não notara qualquer movimento em seus
músculos, mos agora ele tinha os olhos abertos e olhava para ela. E seus
olhos não estavam pesados de sono, mas escuros e brilhantes.
Mildred assustou-se. Talvez ele não estivesse dormindo, como supusera
ao chegar. Poderia ter estado todo aquele tempo pacientemente à sua espera.
Quando deu por si estava falando em voz alta, dando explicações que ele não
pedira.
- Precisava fazer um pouco de exercício. Sabe como é, eu estava sentada
há muito tempo. Pensei em descer até a outra estrada e tomar um carro lá
embaixo. E então eu vi esta velha fazenda. Adoro casas antigas.
Seus pés estavam começando a dormir. Inclinando o corpo para um
lado, ela apoiou-se na mão esquerda e esticou as pernas e os pés para o outro
lado, cobrindo cuidadosamente os joelhos com a saia. Seus pés ardiam e
coçavam, à medida que o sangue afluía e a circulação começava a
restabelecer-se.
Juan não respondeu. Seus olhos estavam imóveis, sobre o rosto de
Mildred. Lentamente, ele rolou de lado e apoiou a cabeça numa mão. Um
brilho negro fulgia em seu olhar e sua boca começava a arrebitar-se nos
cantos.
O rosto dele é duro, pensou ela. Não havia maneira de saber o que
havia por detrás daqueles olhos negros. Ou bem tudo se refletia sobre aquele
rosto ou não havia maneira de saber o que ia por trás dele.
- Que está fazendo aqui? - perguntou ela.
Os lábios dele entreabriram-se um pouco.
- Que está fazendo aqui?
- Já lhe disse, precisava fazer um pouco de exercício. Já lhe disse.
- Sim, você já me disse.
- Mas o que está fazendo aqui?
Ele não parecia estar bem acordado.
- Eu? Oh, sentei-me aqui um pouco, para descansar. Adormeci. Sabe,
não dormi nada de ontem para hoje.
- Sim, eu sei - respondeu ela. - Tinha de continuar falando. Tinha de
dizer tudo o que tinha dentro do peito. - Estava pensando em você. Você não
devia levar essa vida. Dirigindo um ônibus, sabe como é. Você não deveria
estar aqui.
- E onde deveria estar? - perguntou ele, alegremente. Seus olhos tinham
descido para o ponto em que as lapelas da capa de Mildred se cruzavam.
- Bem - Mildred não sabia direito como começar - pensei numas coisas
gozadas, enquanto vinha andando para cá. Pensei que talvez você não fosse
mais voltar. Podia continuar andando, andando, até chegar ao México. Acho
que era o que eu faria, se fosse você.
Os olhos dele tinham voltado para o rosto de Mildred e tinham agora
um brilho duro.
- Você está boa da cabeça? Como é que foi pensar numa coisa dessas?
- Bem, foi uma dessas coisas que ocorrem à gente. Sua vida, dirigindo
esse ônibus, entra dia, sai dia, deve ser monótona, principalmente depois...
quero dizer, principalmente depois do México.
- Você já esteve no México?
- Não.
- Então você não sabe como a vida lá é monótona.
- Não.
Ele ergueu a cabeça, esticou o braço e repousou a cabeça na curva do
cotovelo.
- E como se arranjaria o pessoal que ficou lá no ônibus?
- Não sei, eles se arranjariam de um jeito ou outro - disse ela. Não é
longe. Não morreriam de fome.
- E o que aconteceria à minha mulher? Pensou nisso?
- Ela... - Mildred ficou confusa. - Não tinha pensado nela.
- Pensou, você pensou, sim - disse Juan. - Você não gosta dela. Vou lhe
contar uma coisa. Ninguém gosta dela, a não ser eu. Uma dos razões pelas
quais gosto é justamente porque ninguém gosta dela. - Juan sorriu. - Que
mentiroso - disse ele, com seus botões.
- Foi apenas uma idéia louca que eu tive - explicou ela. - Cheguei até a
pensar em fugir também. Pensei em desaparecer e viver por minha conta e...
bem, jamais voltar a ver as pessoas que conheço. - Ela ergueu-se sobre os
joelhos e recostou-se novamente, do outro lado.
Juan olhou para os joelhos dela. Esticando a mão, ajeitou a saia sobre
eles. Mildred ficou tensa ao sentir o toque da mão de Juan e a tensão de seu
corpo só foi amainando lentamente.
- Você não quer... você não me deseja?
- Claro - disse Juan. - É claro.
- Você sabe que eu vou cair nos seus braços, de qualquer jeito, e é por
isso que nem pretende empenhar-se um pouco?
- Não me meta na sua discussão - pediu Juan. - Sou mais velho que
você. Gosto muito disso. Gosto tanto que até posso esperar. Até mesmo posso
passar sem isso durante algum tempo.
- Eu poderia detestar você, detestar muito - disse ela. - Você não dá
importância ao meu orgulho. Nem ao menos um pouco de violência, para que
eu me justifique mais tarde.
- Pois pensei que seu orgulho fosse suficiente para que você tomasse
sua própria decisão.
- Bem, não é.
- Creio que não - disse ele. - Na minha terra, as mulheres também são
assim. Têm de ser requestadas ou forçadas. Quando é assim, elas não se
sentem mal depois.
- Mas você foi sempre assim?
- Não - respondeu Juan. - Só com você. Você veio para cá em busca de
alguma coisa. Você disse ainda há pouco que não veio por minha causa.
Mildred considerou suas unhas.
- Engraçado - disse ela - sou o que você chamaria uma jovem
intelectual. Leio coisas. Não sou virgem. Conheço centenas de exemplos, mas
sou incapaz de tomar a iniciativa. - Mildred sorriu, um sorriso quente e
rápido. - Você não poderia forçar-me mesmo, nem um pouquinho?
Ele abriu os braços e ela caiu na palha, ao seu lado.
- Você não vai me apressar?
- Temos o dia inteiro - respondeu ele.
- Não vai desprezar-me, nem rir de mim?
- Que diferença faria?
- Bem, para mim faz, mesmo que eu não queira.
- Você fala demais - disse ele. O que acontece é isso. Você fala demais.
- Eu sei, mas isso acontece sempre. Depois você me leva? Para o
México, talvez?
- Não - respondeu Juan. - E agora, vamos ver se você é capaz de colar
essa boquinha, por um momento.

CAPÍTULO XVII

Espinhudo retirou a penca de chaves do porta-luvas e deu volta ao


ônibus. Destrancou o cadeado que fechava o compartimento de bagagens e
ergueu o encerado. Sentiu imediatamente o cheiro apetitoso das tortas.
O Sr. Pritchard olhava por sobre seu ombro. As malas estavam bem
ajustadas, tomando quase todo o compartimento.
- Acho que vai ser preciso tirar todas as malas para retirarmos o
encerado - disse Espinhudo, puxando uma mala pesada que estava por cima.
- Não, espere - disse o Sr. Pritchard. - Eu levanto as de baixo e você
puxa o encerado. Assim não será preciso tirar as malas. - Subindo ao pára-
choque traseiro do "Querida" ele fez força para cima, erguendo as malas de
baixo, enquanto Espinhudo puxava o encerado para fora. Espinhudo foi
puxando um pouco de cada lado, até arrancar todo o encerado do
compartimento.
- Acho que é melhor a gente apanhar um par de tortas, já que abrimos
mesmo o cadeado - sugeriu ele.
- Temos aí tortas de amoras e limão, de passas e de creme de caramelo.
Acho que seria bom começar com uma de creme de caramelo.
- Mais tarde - disse o Sr. Pritchard. - Primeiro vamos tratar de
acomodar minha senhora. - Ele agarrou um dos lados do pesado encerado,
Espinhudo segurou do outro lado e, juntos, eles conduziram a lona para o
rochedo das cavernas.
Era uma formação rochosa das mais comuns. A encosta de uma
pequena colina cedera há muitos anos, desfazendo-se e deixando exposta uma
superfície lisa de pedra calcária. Gradualmente, o vento e a chuva tinham
desgostado a base exposta, enquanto a terra e as raízes dos plantas rasteiras
protegiam o topo. Com o correr dos séculos, diversas cavernas haviam surgido
na parte exposta da face de pedra. Nesta, um coiote dera à luz sua ninhada e,
naquela, havia muitos e muitos anos, quando coisas assim ainda aconteciam
nessa parte do país, um grande urso cinzento costumava hibernar. E, nas
cavernas mais altas, as corujas do campo passavam o dia.
Três cavernas profundas e escuras abriam-se ao nível do solo e as
menores mais acima. Todas as cavernas eram protegidas da chuva pela
cobertura natural oferecida pelo ângulo do próprio rochedo. As cavernas não
eram produto exclusivo do trabalho da Natureza, pois grupos de índios
caçadores de antílopes ali haviam não somente acampado e vivido como até
mesmo travado batalhas esquecidas.
Posteriormente, as cavernas haviam servido de pousada aos homens
brancos que cruzavam a região a cavalo, e eles haviam alargado as entradas o
construído pequenos fogões de pedra sob a porte projetada do rochedo. As
marcas de fuligem no interior das cavernas eram muito antigas nalguns
lugares e muito novas em outros, e seus pisos eram relativamente secos, pois
a pequeno colina, que perdera uma de suas faces, não ficava no caminho da
água que descia das outras colinas mais.s elevadas. Algumas iniciais haviam
sido inscritas na pedra calcária, mas a superfície era tão macia que tudo
quanto se inscrevia sobre elas em pouco tempo se tornava ilegível. Somente a
inscrição ARREPENDEI-VOS, pintada sobre a face da colina, sobre as
cavernas, era ainda legível. O pregador itinerante, que descera amarrado a
uma corda para pintar a inscrição em grandes letras negras, deveria ter
partido muito satisfeito com os resultados de seu trabalho, certo de que estava
divulgando com propriedade as palavras de Deus num mundo pagão.
Conduzindo sua ponta do encerado, o Sr. Pritchard ergueu os olhos e
deu de chofre com a palavra ARREPENDEI-VOS.
- O camarada que escreveu isso deve ter tido um trabalhão - disse ele -
um trabalhão. Só queria saber quem teria financiado uma aventura dessas.
Algum missionário, decerto.
Ele e Espinhudo abandonaram o encerado sob a proteção da plataforma
rochosa, enquanto inspecionavam rapidamente as cavernas. As cavernas eram
relativamente rasas, com pouco mais de dois metros de altura, três ou quatro
de largura e pouco mais ou menos cinco de profundidade. O Sr. Pritchard
escolheu a caverna que ficava mais à direita, não só por parecer-lhe a mais
seca como ainda por ser a mais escura. Ele julgava que seria melhor manter a
Sra. Pritchard na penumbra, em vista da dor de cabeça que se anunciava.
Espinhudo ajudou-o a estender o encerado no chão.
- Seria melhor - lembrou o Sr. Pritchard - juntarmos um pouco de
agulhas de pinheiro ou palha, para acolchoar o encerado.
- Seria bom - concordou Espinhudo - mas acontece que a relva por aqui
está molhada e não há um só pinheiro por perto.
O Sr. Pritchard examinou cuidadosamente o encerado para ver se
estava bem seco. - Ela poderá deitar-se sobre meu sobretudo - disse ele - e
cobrir-se com o casaco de peles.
Ernest e Van Brunt surgiram do lado de fora da caverna.
- Poderíamos ficar aqui durante semanas, se tivéssemos o que comer -
observou Ernest.
- É disso mesmo que tenho medo - retrucou o velho Van Brunt. - Se até
amanhã de manhã o motorista do ônibus não estiver de volta, eu vou tocando
a pé. Já suportei a minha dose máxima de burradas, não agüento mais.
- Posso abrir umas duas formas de torta, se vocês estiverem com
vontade - sugeriu Espinhudo.
- Pois é uma boa idéia - concordou Ernest.
- De que sabor prefere?
- Oh, qualquer uma serve.
- As de creme de caramelo são muito gostosas. Têm recheio de biscoito,
em vez de recheio comum.
- Então pegue umas dessas - disse Ernest.
O Sr. Pritchard foi ao encontro de sua esposa; no ônibus. Agora estava
envergonhado ao recordar sua explosão de cólera, durante a discussão. Sentia
no estomago aquele nó doloroso que se formava quando as coisas não lhe
corriam bem, um nó que parecia um punho fechado. Charlie Johnson
costumava dizer que ele devia ter uma boa úlcera e gostava de fazer piadas a
respeito. Dizia que não há ninguém com uma renda superior a vinte e cinco
mil dólares que não tenha a sua ulcerazinha. Charlie dizia que as úlceras são
sintoma seguro de depósito bancário. Assim, de certa forma, o Sr. Pritchard
orgulhava-se um pouco de suas dores de estomago.
Quando ele entrou no ônibus, a Sra. Pritchard estava com os olhos
fechados.
- Sua caminha está pronta, querida - disse ele.
Ela abriu os olhos, assustada.
- Oh!
- Estava dormindo? - perguntou ele. - Se soubesse, não a teria
acordado. Desculpe.
- Não, querido. Não faz mal. Estava apenas cochilando.
Ele ajudou-a a levantar-se.
- Você pode deitar-se sobre o meu sobretudo e cobrir-se com seu
casaquinho.
Ela sorriu fracamente, ante o tom carinhoso dele.
O Sr. Pritchard amparou a esposa, para ajudá-la a descer do ônibus.
- Sinto muito ter sido rude com você, menina - disse ele.
- Não faz mal. Você está é cansado. Sei que não fez aquilo por mal.
- Assim que chegarmos a Hollywood vamos jantar num bom lugar, para
compensar o que aconteceu - prometeu ele. - No Romanoff, talvez, com
champanha. Você gostaria, não é?
- Com dinheiro na mão, você fica louquinho - respondeu ela, brincando
também. - É melhor nem tocarmos mais no caso. Todos nós estamos exaustos.
- "Querida Ellen, jantamos no Romanoff, estava ótimo, e você nem imagina
quem eram os nossos vizinhos de mesa."
- Bem, a chuva quase passou - disse ela.
- Pois é, e agora eu quero que a minha menina tire uma boa
sonequinha, para acordar bem forte e disposta.
- Tem certeza de que esse lugar não é úmido e de que lá não há cobras?
- Claro, olhei tudo.
- Nem aranhas?
- Bem, pelo menos teias não há.
- Mas, e essas aranhas grandes e cabeludas, tarântulas? Acho que elas
não moram em teias.
- Posso olhar mais uma vez - disse ele. - As paredes são bem lisas. Não
há lugar nenhum para uma aranha se esconder. - Os dois chegaram à
caverna.
- Está vendo como é confortável? E você pode deitar-se aqui, assim, com
a cabeça recostada, olhando lá para fora, se quiser.
Bernice sentou-se sobre o sobretudo do Sr. Pritchard.
- Agora, deite-se aí, direitinho, que eu a cubro com seu casaco.
Ela obedeceu, dòcilmente.
- E agora, como está a cabecinha menina?
- Bem, não está doendo tanto quanto eu pensei que fosse doer.
- Então, está muito bem. O que você precisa agora é de uma boa
sonequinha. Está bem ajeitadinha aí?
Ela gemeu baixinho, afirmativamente.
- Se quiser alguma coisa, é só chamar. Ficarei por perto.
Espinhudo surgiu na boca da caverna. Tinha a boca cheia e trazia na
mão um pratinho de folha com uma fatia de torta.
- Gostaria de provar um pedacinho de torta, madame?
A Sra. Pritchard ergueu a cabeça, mas ao dar com ele teve calafrio e
encolheu-se de novo dentro do casaco.
- Não, obrigado - disse ela. - Agradeço muito a sua gentileza, mos agora
eu não poderia comer torta. - "Elliott tratou-me como se eu fosse uma rainha,
Ellen. Quantas pessoas podem dizer o mesmo, depois de vinte e três anos de
casamento? Acho que é por isso que me sinto feliz."
O Sr. Pritchard observou-a. Agora, ela cerrara os olhos e tinha um leve
sorriso nos lábios. Ele sentiu aquela funda tristeza que tão freqüentemente o
acometia. Lembrou-se, recordou perfeitamente, a primeira vez que aquilo
acontecera. Tinha cinco anos quando sua irmã mais moça havia nascido e
subitamente começara a encontrar portas fechadas dentro de cosa, descobrira
que não podia entrar no quarto da criancinha, nem tocá-la, mesmo de leve, e
começou a ter a impressão de que andava sempre um pouco sujo e fazia
sempre um pouco de barulho demais e de que não era muito querido e de que
suo mãe estava sempre muito ocupada para atende-lo. E então aquela fria
tristeza o acometera, aquela tristeza fria de que mesmo depois de adulto ainda
sofria, que o dominava naquele momento. O leve sorriso indicava que Bernice
abandonara o mundo, recolhendo-se aos seus aposentos particulares, e que
ele não podia segui-la.
O Sr. Pritchard desprendeu a limazinha de ouro da cadeia de seu
relógio e começou a limpar as unhas, à medida que caminhava, afastando-se
da caverna. Avistou Ernest Horton sentado do outro lado do rochedo, sob a
plataforma rochosa natural. Ernest estava sentado sobre uma pilha de papéis
velhos e, quando viu que o Sr. Pritchard se aproximava, retirou uma folha
dupla do monte e ofereceu-a.
- Os jornais velhos são uma das coisas mais úteis deste mundo - disse
ele. - Com exceção de lê-los, você pode fazer quase qualquer coisa com eles.
O Sr. Pritchard riu polidamente, aceitou as folhas dobradas, ajeitou-as
no chão e sentou-se ao lado de Ernest.
- Se você leu isso no jornal, não é verdade - disse ele, citando um dos
divertidos provérbios de Charlie Johnson.
- Bem, cá estamos. Há dois dias eu ainda estava instalado num
apartamento do Hotel Oakland e agora estamos numa caverna. Isso prova que
é tolice mesmo planejar muito as coisas.
Então ele olhou para o ônibus. Através das janelas avistou Espinhudo
lá dentro, com as duas pequenas, todos comendo torto. Sentiu um desejo
intenso de juntar-se a eles. Ele também poderia comer um bom pedaço de
torta.
- Afinal, de tudo se aprende alguma coisa - disse Ernest. - As vezes, eu
tenho de dar risada. Você sabe, nós somos tidos por um povo mecanizado. Não
há quem não tenha automóvel, refrigerador, rádio. Acho que quase todos nós
somos metidos a entender de mecânica, mas acontece que quando entra um
pedacinho de sujeira no carburador... pronto, está feita a festa, o carro fica
parado até aparecer um profissional para ajeitar o negócio. Surge qualquer
defeito na instalação elétrica e pronto, a gente chama o eletricista para trocar
um fusível . Quando um elevador pára, há um verdadeiro pânico.
- Bem, não sei - respondeu o Sr. Pritchard. - De maneira geral, creio
que nós todos temos uma boa inclinação para a mecânica. Nossos
antepassados, por exemplo, sabiam arrumar-se muito bem.
- Claro, não há dúvida. Nós também poderíamos, se quiséssemos. Você
é capaz de regular o distribuidor de seu carro?
- Não, mas...
- Vou mais longe ainda - prosseguiu Ernest. - Só por hipótese, imagine
que tivéssemos de passar duas semanas aqui, neste lugar. Não morreríamos
de fome? Como é que evitaríamos uma pneumonia, por exemplo?
- Bem - lembrou o Sr. Pritchard - hoje em dia todo mundo se especializa
em alguma coisa.
- Você seria capaz de matar uma vaca? - insistiu Ernest. - Seria capaz
de retalhá-la e cozinhar a sua carne?
O Sr. Pritchard descobriu que estava ficando impaciente com o rapaz.
- Hoje em dia o que acontece é que o cinismo parece estar em moda -
retrucou ele. - Parece que os próprios jovens perderam a fé na América.
Nossos antepassados tinham fé.
- Eles tinham de comer - retrucou Ernest. - Não tinham tempo para
essa história de fé. Hoje em dia ninguém mais trabalha duro. O pessoal tem
mais tempo para fé e outras coisas.
- Mas hoje em dia os jovens não têm mais fé - gritou o Sr. Pritchard. – O
que houve com eles?
- Não sei - respondeu Ernest. - Isso é uma coisa em que costumo
cismar. Meu velho, por exemplo, tinha grande fé em duas coisas. Uma delas
era a honestidade. Ele estava convencido de que a honestidade daria frutos,
mais cedo ou mais tarde. Julgava que se um homem fosse honesto as coisas
sempre dariam certo para ele que se trabalhasse honestamente e pusesse um
pouco de dinheiro de lado poderia viver com uma certa segurança. Então veio
a primeira crise e depois a de trinta, que serviram para ele de lição. Descobriu
que as pessoas que mais admirava nunca tinham sido honestas coisa
nenhuma. E morreu confuso, profundamente desorientado, porque descobriu
que as duas coisas em que acreditava - honestidade e frugalidade - não
funcionavam. O que não compreendo é por que ainda não descobriram nada
para por no lugar dessas coisas.
O Sr. Pritchard meneou a cabeça de um lado para o outro.
- Não se pode ser econômico nem parcimonioso por causa dos impostos
- disse ele. - Já houve épocas em que um cidadão podia economizar uma
fortuna, mas agora isso não é mais possível : Os impostos comem tudo. Todos
nós, no fundo, trabalhamos para o governo. Pode estar certo do que lhe digo, é
isso que liquida a livre iniciativa. Ninguém mais tem ambição, no pé em que
estão as coisas.
- Não faz muita diferença trabalhar para o governo se você acredita nele
respondeu Ernest. – O governo ou outra coisa qualquer.
O Sr. Pritchard interrompeu-o.
- Os veteranos de guerra - disse ele - está aí uma coisa que sempre me
preocupa, os veteranos de guerra. Eles não querem estabelecer-se em
ocupação nenhuma, não querem ficar no mesmo lugar e trabalhar. Pensam
que o governo tem a obrigação de sustentá-los pelo resto da vida, mas nós não
podemos arcar com esse peso.
A testa de Ernest ficou empapada de suor e uma linha branca começava
a tomar forma em torno de sua boca. Seu olhar era vago.
- Eu estive lá, vi como é - disse ele, baixinho. - Não, não, não se
preocupe. Não vou contar como foi. Não, não pretendo falar. Eu não quero
falar.
- Está claro - apressou-se a dizer o Sr. Pritchard - está claro que eu,
tenho o mais profundo respeito pelos nossos ex-combatentes e sou de opinião
de que eles devem ser ouvidos.
Os dedos de Ernest subiram para o distintivo da botoeira.
- É claro - disse ele - é claro, está muito bem. - Falava como se se
dirigisse a uma criança. Costumo ler coisas nos jornais sobre os nossos
grandes homens. Devem ser grandes, deveras ser os melhores, porque são eles
que têm as mais altas posições. Costumo ler o que eles dizem e fazem e tenho
também uma porção de amigos que você chamaria de vagabundos e parece
que há uma diferença muito pequena entre eles. Ouvi dizer que .alguns desses
vagabundos são capazes de falar melhor que o próprio secretário de Estado...
Oh, que diabo! - Ernest riu. - Tenho uma invenção de que não lhe falei, é um
tambor de borracha para ser tocado com baquetas de esponja. É para os
bêbedos que sempre insistem em acompanhar as baterias das orquestras.
Acho que vou dar uma volta por aí.
- Você está nervoso - disse o Sr. Pritchard.
- Pois é, estou nervoso - concordou ele. - Estou nervoso, todos nós
estamos nervosos. E vou lhe dizer uma coisa. Se tivermos de entrar noutra
guerra sabe o que será mais horrível? Eu irei também. Isso é a coisa mais
horrível. - E sem mais, ele levantou-se e abandonou o Sr. Pritchard, descendo
a estrada na direção do rio.
Caminhava cabisbaixo, de mãos metidas nos bolsos, batendo com força
os calcanhares sobre o cascalho da estrada, tinha a boca crispada e não podia
parar.
- Estou nervoso - repetia. - Estou apenas um pouco nervoso. É isso.
O Sr. Pritchard acompanhou-o com a vista e depois baixou os olhos
para suas mãos, tirou a limazinha de ouro da cadeia do relógio e limpou suas
unhas. O Sr. Pritchard estava abatido, e não sabia por quê. Embora fosse
muito pessimista no que se referia à intervenção do governo no campo da livre
iniciativa, sempre tinha grandes reservas de esperança. Mais cedo ou mais
tarde, surgiria um homem como Coolidge ou Hoover, que se levantaria e
tomaria as rédeas do governo das mãos desses idiotas que aí estavam e então
tudo voltaria aos eixos. Não se falaria mais em greves e todo mundo ganharia
dinheiro e seria feliz. Uma coisa que poderia acontecer a qualquer momento. O
Sr. Pritchard acreditava firmemente nisso. Não concebia, não podia
compreender que o mundo mudara. Para ele, tratava-se apenas de alguns
erros e quando o homem capacitado surgisse - Bob Taft, por exemplo - tudo
seria ajustado rapidamente e as malditas experiências acabariam.
Mas aquele rapaz o desalentava porque era um jovem brilhante e no
entanto estava desalentado. Embora ele não o tivesse dito, o Sr. Pritchard
sabia que Ernest Horton nem mesmo votaria em Bob Taft se ele fosse
candidato. E o Sr. Pritchard, embora acreditasse em milagres, como a maioria
de seus associados, estava profundamente abatido. Horton não atacara
diretamente o Sr. Pritchard, mas... aquela história do carburador, por
exemplo. O Sr. Pritchard evocou mentalmente a imagem de um carburador.
Poderia desmontá-lo? Vagamente, ele sabia que há uma pequena bóia no
interior dos carburadores e lembrou também que há uma tela de latão e
algumas válvulas.
Mas havia coisas mais importantes em que pensar, em vez de ficar
cismando sobre tolices como aquela. Horton falara também da casa às escuras
e o Sr. Pritchard tentou lembrar a localização da caixa de fusíveis em sua casa
e teve de admitir que não sabia onde era. Horton o hostilizara. Horton não
gostava dele. E suponhamos que eles ficassem detidos naquela região, como o
rapaz lembrara. O Sr. Pritchard fechou os olhos e imaginou-se no corredor do
ônibus, de pé entre os bancos.
- Não se preocupem - diria ele aos passageiros alarmados - eu tomo
conta de tudo. Não edifiquei por acaso uma grande organização industrial,
vocês sabem. Vamos examinar racionalmente nossa posição. Em primeiro
lugar, precisamos providenciar comida. Naquele pasto, ali ao lado, há algumas
vacas. - E Horton havia dito que ele não saberia matar uma vaca. Pois bem,
mostraria a ele do que era capaz. Provavelmente, Horton não sabia da
existência de um revólver no porta-luvas do ônibus. Mas o Sr. Pritchard sabia.
O Sr. Pritchard empunhou imaginariamente o revólver. Desceu do
ônibus, atravessou a estrada e saltou uma cerca. Tinha na mão o grande
revólver escuro e pesado. O Sr. Pritchard era um freqüentador assíduo dos
cinemas. Sua mente, automaticamente, dissolveu a cena num corte
cinematográfico. Não queria ver-se matando nem retalhando a res, e assim, na
cena seguinte, ele surgiu curvado sob uma pesada carga de carne sangrenta.
- Pronto, agora vocês já têm a que comer - disse ele. - Vamos tratar do
fogo. - Novamente a cena foi cortada e na próxima as línguas de fogo já
lambiam um apetitoso assado, que pendia de um espeto sobre a fogueira.
- Mas, e o dono da vaca? - perguntou Camille.
- Ela pertence a alguém.
- Para a necessidade não há lei - respondeu o Sr. Pritchard. A lei do
sobrevivência vem em primeiro lugar. Ninguém poderia esperar de mim que eu
os deixasse passar fome.
Subitamente, ele dissolveu aquela cena também, sacudiu a cabeça com
força e abriu os olhos.
- Não se meta com ela - murmurou baixinho. - Não se meta em
complicações. - De onde a conheceria? Se pudesse trocar algumas palavras
com ela, tinha certeza de que poderia lembrar. Sabia, tinha certeza de que a
conhecia de algum lugar, pois ao deparar com ela sentira aquele aperto no
peito. Não devia ser somente ela, mas alguma coisa mais que acontecera.
Olhou para o ônibus. Espinhudo e as duas pequenas ainda estavam lá dentro.
Ele levantou-se e passou as mãos pelos fundilhos, como se o jornal dobrado
não o tivesse protegido da poeira.
A chuva agora transformara-se numa garoa fininha e a oeste já surgiam
rasgões de céu azul. Afinal, tudo iria dar certo. Chegando ao ônibus, ele
galgou o degrau do porta. Van Brunt estava deitado no assento traseiro, que
tomava toda a largura do ônibus. O velho parecia estar dormindo. Espinhudo
e as pequenas conversavam em voz baixa, para não perturbá-lo.
- O que eu desejo de uma esposa é fidelidade - disse Espinhudo.
- E você? - perguntou Camille. - Também pretende ser fiel a ela?
- Claro - respondeu ele - se ela for uma esposa correta eu também serei.
- Bem, mas e se não for?
- Ora, aí eu mostro uma coisa para elo. Mostro para ela que os dois
podem fazer a mesma coisa, como Gary Grani naquela fita.
Uma forma de lata que contivera uma torta e outra onde só restava um
quarto estavam colocadas sobre um assento vazio, ao lado do grupo. As duas
estavam sentadas juntas e Espinhudo instalara-se no banco fronteiro com um
braço apoiado sobre o encosto.
Quando o Sr. Pritchard entrou, todos ergueram os olhos para ele.
- Dão licença, posso me sentar aqui também? - perguntou ele.
- Claro, venha - disse Espinhudo. - Não quer comer um pedaço de
torta? Ainda há um bom pedaço nessa forma. - Ele passou a forma que
continha um quarto de torta ao Sr. Pritchard e retirou a vazia, para que ele
pudesse sentar-se.
- E você tem alguma pequena? - prosseguiu Camille.
- Bem, mais ou menos. Mas ela... é... não sei, é meio bobinha.
- E é fiel a você?
- Claro - respondeu Espinhudo.
- Como é que sabe?
- Bem, eu nunca poderia... quer dizer... ora, tenho certeza.
- Pois eu acho que você vai se casar brevemente - profetizou o Sr.
Pritchard, alegremente - e estabelecer--se com um bom negócio.
- Não, por enquanto não posso pensar nisso - explicou Espinhudo. -
Estou fazendo um curso por correspondência. O radar oferece um grande
futuro. Poderei estar ganhando setenta e cinco dólares por semana, dentro de
um ano.
- Não diga!
- Pois é, os camaradas que fizeram o curso e escrevem para a escola
dizem que estão ganhando nessa base - explicou Espinhudo. - Um deles já é
gerente de zona, em menos de um ano.
- Gerente de zona do que? - perguntou o Sr. Pritchard.
- Gerente de zona, apenas. E o que diz na carta dele, que veio
reproduzida no prospecto da escola.
O Sr. Pritchard começava a sentir-se bem novamente. Ainda havia
ambição no mundo. Nem todos os jovens eram cínicos.
- E quando pretende casar-se - perguntou Camille.
- Oh, isso ainda vai demorar um pouco - disse Espinhudo. - Acho que
antes de assentar, um camarada deve ver um pouco do mundo. Tem de viajar
um pouco. Eu, por exemplo, talvez vá para a marinha mercante. Quando a
gente entende de radar, entende de rádio também. Acho que poderei
empregar-me num navio, durante algum tempo, como rádio-operador.
- Mas quando é que você vai terminar o seu curso por correspondência?
- perguntou o Sr. Pritchard.
- Bem, logo mais começarei a receber as primeiras aulas pelo correio. Já
preenchi todos os cupons e economizei o que era preciso para o primeiro
pagamento. Fiz um teste e eles responderam que tenho muito talento para a
coisa. Recebi umas três ou quatro cartas deles.
Os olhos de Camille defletiam fadiga. O Sr. Pritchard estudou-a com
cuidado. Sabia que seus próprios olhos estavam escudados pelos óculos. Ao
examiná-la assim, de perto, concluiu que tinha belos traços. Seus lábios eram
cheios e agora eram também amistosos, somente seus olhos refletiam fadiga.
E fez o caminho todo de ônibus, de Chicago para cá, pensou ele. Ela não
parecia muito forte. Podia perceber o contorno arredondado de seus seios sob
a jaqueta, e a jaqueta estava amarrotada. Ela voltara para cima os punhos da
blusa, para conservá-los limpos. O Sr. Pritchard reparara nisso.
Significava que era ordeira, asseado. Ele atentava, sempre nos
pormenores. Sentia aquela jovem quase como um perfume. Sentia como
excitação, como fome devoradora. É porque raramente eu vejo uma pequena
assim, tão atraente, tão composta, disse ele com seus botões. E então ouviu-se
falando e nem ele mesmo sabia o que iria dizer.
- Srta. Oaks - disse ele - estive pensando e ocorreu-me, de repente, que
poderia gostar de ouvir uma pequena idéia comercial que eu tive. Sou
presidente de uma grande corporação e pensei que... bem, estou certo de que
estes jovens nos desculparão por um momento, se quiser ouvir o que tenho a
dizer. Vamos até aquele rochedo, ali em cima? Coloquei lá alguns jornais
velhos, onde poderemos nos sentar. - Ele mesmo estava assombrado com suas
próprias palavras.
"Oh, Jesus - pensou Camille. - Já estava mesmo demorando."
O Sr. Pritchard saltou primeiro e, galantemente, estendeu o braço para
ajudar Camille. Quando saltaram a valeta, ao deixar a estrada, ele segurou-a
pelo cotovelo e guiou-a gentilmente até o ponto em que estivera sentado com
Ernest, sobre os jornais velhos. Ao chegarem, ele indicou os jornais.
- Oh, não sei - disse Camille. - Passei muito tempo sentada.
- Talvez a mudança de posição lhe faça bem - sugeriu o Sr. Pritchard. -
Eu, por exemplo, quando passo muitas horas sentado à minha mesa no
escritório, trabalhando, altero de hora em hora a altura de minha cadeira e
isso me mantém repousado. - Ajudou-a a sentar-se sobre os jornais velhos.
Camille sentou-se envolvendo as pernas com os braços e comprimindo os
joelhos contra os seios.
O Sr. Pritchard sentou-se ao seu lado. Retirou os óculos.
- Estive pensando - disse ele. - Sabe como é, quando se tem uma
posição como a minha é preciso olhar sempre para frente, planejar. Agora,
tècnicamente, estou em férias. - Ele sorriu. - Férias... gostaria de saber o que
são férias, férias de verdade.
Camille sorriu também. Sob suas nádegas, o chão era muito duro. Só
queria saber quanto tempo teria de ficar ali sentada.
- Pois é, sei por experiência que a matéria-prima principal de que
necessito uma companhia próspera é constituída por seres humanos -
começou ele. - É por isso que ando sempre atento aos seres humanos.
Borracha e aço, por exemplo, são coisas que a gente obtém a qualquer
momento, sem dificuldades, mas cérebros, talento, beleza, ambição... esses
são os produtos difíceis de obter.
- Olhe aqui - disse Camille - estou cansadíssima.
- Sei disso, querida, e vou direto ao ponto. Quero empregá-la. É apenas
isso.
- Como o que?
- Como recepcionista. Como sabe, é um serviço muito especializado, que
lhe daria base para tornar-se... bem, com o tempo você poderia ser até mesmo
minha secretária particular.
Camille estava exausta. Olhou para a entrada da caverna em que
dormia a Sra. Pritchard. Não podia distinguir nada direito.
- E que diria sua esposa a isso?
- Ora, que é que ela tem com isso? Ela não dirige meus negócios.
- Escute, como eu já disse, estou exausta. Não precisamos passar por
todas as formalidades da coisa. Sim, eu gostaria de casar-me. Seria uma boa
esposa e se dispusesse de meios, para não ter preocupações durante algum
tempo, acho que poderia até mesmo ser boa para um homem.
- Não entendo bem o que quer dizer - interrompeu o Sr. Pritchard.
- Entende, ora se entende - prosseguiu ela. - Gostou de mim porque eu
não respeito as regras que você respeita. Você preferiria deixar decorrer vários
meses, para só então surpreender-me com sua propostazinha, mas acontece
que no momento estou quase lisa. Disse que sua mulher não dirige seus
negócios; mas eu digo que ela dirige. Dirige você, os seus negócios, tudo que, é
seu: Até agora eu tentei ser amável com você, mas estou muito cansada. - Ela
provavelmente escolhe até mesmo as suas secretárias, embora você não saiba.
É uma mulher dura.
- Não sei do que está falando.
- Sabe, sabe muito bem - retrucou Camille. - Quem comprou essa sua
gravata?
- Bem...
- Ela descobriria tudo a meu respeito, num minuto. Não, espere. Agora
eu quero falar um pouco. Você não pode fazer de repente uma proposta desse
tipo a uma pequena. Precisa de algum tempo, tem de fazer rodeios. Mas há
dois jeitos, não se esqueça. Ou bem você se apaixona, ou bem faz uma
proposta comercial. Se dissesse, por exemplo: a coisa é essa. Tanto para um
apartamento, tanto para as suas despesas, eu poderia pensar bem no caso e
chegar a uma conclusão e pode ser que desse certo. Mas essa história de
rodeios, de conversa mole, de perder tempo não me interessa. Queria me fazer
uma pequena surpresa, depois de instalar-me durante dois ou três meses
atrás de uma mesa, não é? Já não sou mais criança para gostar dessas
brincadeiras.
O Sr. Pritchard projetara seu queixo para frente.
- Minha mulher não tem nada a ver com meus negócios - insistiu ele. -
Não sei de onde você tirou essa idéia.
- Ora, esqueça isso - disse Camille. - Mas eu preferiria pisar num ninho
de cascavéis a enfrentar sua mulher se ela não gostasse de mim.
- Estou um pouco surpreendido com sua atitude - observou o Sr.
Pritchard. - Não tinha pensado em nenhum desses aspectos. Estava pensando
apenas em oferecer-lhe um emprego. Pode aceitá-la ou recusá-lo.
- Ora, velhinho! - retrucou Camille. - Se você é mesmo capaz de iludir-
se dessa forma, Deus ajude as pequenas que arrumar. Elas jamais terão um
momento de paz.
O Sr. Pritchard sorriu para ela.
- Você está apenas cansada lembrou. Talvez seja melhor pensar
novamente em minha proposta, quando estiver mais descansada.
Mas a nota de entusiasmo desertara sua voz e Camille ficou aliviada.
Talvez tivesse cometido um erro, pensou, porque ele era fácil de manobrar, um
perfeito otário. Loraine tiraria até a camisa dele num abrir e fechar de olhos.
O Sr. Pritchard observava a pequena com outros olhos. Via em seus
traços desafio, uma dureza de que não suspeitara e agora, que estava bem
perto dela, distinguia perfeitamente sua pintura, a forma pela qual tinha sido
distribuída, e sentia-se nu perto da pequena. Ficara perturbado ao ouvi-la
falar daquela forma. Estava certo de que tudo iria dar certo... bem, ele
poderia... bem... mas acontece que ela já sabia. Só que ele não trataria a coisa
naqueles termos... bem, há certos coisas que se espera de uma senhora, de
uma jovem bem educada. Estava confuso e em sua confusão sentia o ódio
retornar. Era raro encolerizar-se duas vezes no mesmo dia.
Seu pescoço começava a avermelhar, o ódio começava a subir de seu
peito para a cabeça. Tinha de disfarçar aquilo. Tinha de fazer qualquer coisa,
em seu próprio benefício.
- Eu apenas lhe ofereci um emprego - disse ele, secamente. - Se não
está interessada ... muito bem, acabou-se. Não há necessidade alguma de ser
vulgar. A gente não espera isso de uma moça bem educada.
Mas quando ela respondeu, sua voz também estalou seca e dura.
- Olhe aqui, Zé - disse Camille. - Eu também sei jogar bruto. Esse
negócio de moça bem educada não funciona. Vou lhe contar uma coisa. Você
acha que me conheceu, em algum lugar. Você pertence a algum clube de
homens de negócios, como o Octógono Internacional, o Pássaros do Mundo, o
Dos Duzentos ou o Clube dos Três Mil?
- Sou associado do Octógono - disse o Sr. Pritchard, empertigando-se.
- Então, lembra daquela moça nua que aparece durante a sobremesa,
para sentar numa taça de vinho? Eu lembro muito bem da cara de vocês
todos. Não sei que graça acham nisso nem quero saber. Mas eu sei que: não é
nada bonito, velhinho. E talvez você saiba distinguir uma jovem cheia de
princípios das outras. Eu não sei. - A voz de Camille era entrecortada, emitida
em pequenos arrancos e em seu timbre havia quase uma histeria de fraqueza.
Ela ergueu-se depressa. - Agora, vou dar uma cochilada, Zé. Não se meta mais
comigo, porque eu conheço você e conheço sua mulher muito bem.
Camille afastou-se, caminhando depressa. O Sr. Pritchard observou-a,
estupefato. Estava de olhos arregalados e sentia uma funda opressão no peito,
desgaste geral, horror físico. Ele observou aquele belo corpo bamboleante, viu
as belas pernas e mentalmente despiu-a, viu-a novamente sentada sob a
imensa taça e o vinho que borbulhava novamente, em rubros regatos, sobre o
estomago, as coxas e as nádegas de Camille.
O Sr. Pritchard estava de boca aberta e com o pescoço muito vermelho.
Desviou a vista dela, com um esforço, e estudou as próprias mãos. Retirou a
limazinha de ouro e tornou a guardá-la. Estava tonto, desorientado. Levantou-
se e, em passos incertos, venceu a distância que o separava da pequena
caverna em que a Sra. Pritchard repousava.
Ela abriu os olhos e sorriu, quando ele entrou. O Sr. Pritchard deitou-se
ao seu lado, rapidamente. Ergueu o casaco de pele e meteu-se também
debaixo dele.
- Querido, você está cansado - disse ela. - Elliott! O que está fazendo?
Elliott!
- Cale a boca - retrucou ele. - Ouviu o que eu disse? Cale a boca! Você é
minha mulher, não é? Então um homem não tem direito nenhum com sua
mulher?
- Elliott, você está louco! Alguém... alguém pode entrar de repente... -
Tomada de pânico, ela resistia. - Não estou conhecendo você ... Elliott, você
está rasgando meu vestido!
- Fui eu que paguei seu vestido, não é? Já estou farto de ser tratado
como um gato doente.
Bernice chorou baixinho de medo e de horror.
Quando ele saiu, ela continuou a chorar, com o rosto apoiado sobre o
casaco de pele. Gradualmente, a vontade de chorar foi morrendo e então ela
sentou-se e olhou para fora da caverna. Seus olhos estavam frios, duros. Ela
ergueu a mão e meteu as unhas no rosto. Desceu as unhas uma vez pela pele
do rosto, experimentalmente, e depois, comprimindo o lábio inferior entre os
dentes, baixou a mão com força, rasgando o rosto com as unhas. Sentiu o
sangue correndo dos cortes abertos. Então sujou a mão na terra do fundo da
caverna e esfregou-a sobre o ferimento sangrento. O sangue vazou pela terra e
desceu pelo pescoço, pelo decote do vestido, até a cintura.

CAPÍTULO XVIII

Mildred e Juan saíram do celeiro e ela disse:


- Olhe, a chuva parou. Veja o sol e as montanhas. Vai ser uma tarde
linda.
Juan sorriu.
- Sabe, eu me sinto maravilhosamente - disse ela. - Maravilhosamente.
- Claro - disse Juan.
- Então, já que se sente bem, quer fazer o favor de segurar meu
espelho? Lá dentro não havia luz. - Ela retirou um pequeno espelho quadrado
de sua bolsa. - Assim. Não, um pouco mais para cima. - Mildred penteou
rapidamente os cabelos, empoou de leve o rosto e pintou os lábios. Tinha o
rosto quase colado ao espelho, para ver bem o que fazia. - Julga que estou
muito exuberante, para uma moça que acaba de ser violentada?
- Está muito bem assim - disse ele. - Gosto de você.
- Apenas isso? Nada mais que isso?
- Quer que eu minta?
Ela riu.
- Acho que quero, um pouquinho. Não, não quero. E você não vai me
levar para o México?
- Não.
- Então isto é o fim? Não haverá mais nada?
- Como é que poderia saber?
Ela recolheu o estojo do batom e o espelho, fechou a boca e comprimiu
um lábio contra o outro, para acertar a pintura.
- Bata a palha de minhas costas, sim?
Ela voltou-se e ele foi batendo as costas de sua capa, com a mão
espalmada.
- Engraçado - prosseguiu Mildred - meu pai e minha mãe não entendem
nada disso. Estou certa de que fui concebida imaculadamente. Minha mãe
plantou-me, uma batatinha numerada, antes da neve cair, e cobriu-me de
terra, areia e esterco. - Ela estava alegre. - O México então não dá pé. Que
faremos agora?
- Vamos desenterrar o ônibus e tocar para San Juan.
Ele já estava caminhando rumo ao portão da velha fazenda.
- Posso segurar sua mão, um pouquinho?
Ele olhou depressa para a mão do dedo amputado e fez um movimento,
começando a passar para o outro lado, a fim de oferecer a ela sua mão inteira.
- Não - disse ela - gosto desta aqui. - Tomou-lhe a mão e esfregou um
dedo, de leve, por sobre a pele lisa de toco amputado.
- Não faço isso - pediu Juan. - É uma coisa que me deixa nervoso.
Ela agarrou-se à mão, com força.
- Assim não tenho de usar os óculos - explicou.
Atrás deles, as montanhas que se erguiam no Ocidente estavam
radiosas, banhadas em ouro pelo poente. Juan e Mildred dobraram para a
direita e começaram a subir a colina, na direção do ônibus.
- Você quer me contar uma coisa como... bem, como pagamento pelo
prazer que lhe dei?
Juan riu.
- Que quer você?
- Por que veio para a fazenda? Pensou que eu teria de segui-lo?
- Quer ouvir a verdade ou está apenas querendo brincar?
- Ora, quero as duas coisas. Mas, não... eu... acho que quero a verdade
primeiro.
- Bem, eu estava fugindo - disse Juan. - Pretendia seguir para o México
e sumir, deixando os passageiros que se arrumassem por conta própria.
- Oh, e por que desistiu?
- Não sei - disse ele. - De repente, tudo ficou azedo, deu em droga. A
Virgem de Guadalupe me abandonou. Pensei que tinha conseguido enganar a
Virgem. Mas ela não gosta dessas coisas, não gosta de ser enganada. Ela
matou a alegria da coisa toda.
- Você não acredita nisso - observou ela, sériamente. - Eu também não
acredito. Qual foi a verdadeira razão?
- Do que?
- De ter descido para a fazenda abandonada?
Juan caminhava com seu rosto aberto por um largo sorriso e a cicatriz
branca em seu lábio superior fazia com que o sorriso parecesse fora de centro.
Quando olhou para ela, seus olhos negros boiavam em ternura.
- Vim para cá porque esperava que você fosse dar um passeio, e então
talvez eu pudesse... Talvez eu pudesse até mesmo ter você.
Ela passou o braço por sob o braço dele e comprimiu seu rosto contra a
manga da jaqueta de Juan.
- Só queria que isso durasse mais um pouco - disse Mildred - mas sei
que não é possível. Adeus, Juan.
- Adeus - disse ele. E os dois foram andando lentamente, de volta ao
ônibus.

CAPÍTULO XIX

Van Brunt estava estendido sobre o assento traseiro do ônibus. Tinha


os olhos fechados, mas não dormia. A cabeça repousava sobre o braço direito,
dobrado, e seu pêlo bloqueara parcialmente a circulação do sangue na mão
direita.
Quando Camille e o Sr. Pritchard saíram do ônibus, Espinhudo e
Norma pararam de falar. Van Brunt ouvia a própria idade em suas veias.
Quase podia sentir o sangue raspando, indo e vindo, correndo por velhas
artérias que tinham a consistência quebradiça de papel, ouvia o pulsar do
coração acompanhado de um leve silvozinho. A mão direita estava quase
adormecida mas era a esquerda que o preocupava. Quase não tinha mais
sensibilidade naquela mão. A pele era totalmente insensível, como se fosse de
borracha. Quando estava sozinho, ele beliscava e massageava aquela mão
para restabelecer a circulação e, no fundo, sabia muito bem o que tinha
causado aquilo, embora não acostasse de admiti-lo nem a si mesmo.
Havia alguns meses, perdera os sentidos, por um momento apenas, e o
médico tinha-lhe verificado a pressão e recomendado que levasse vida calma,
pois ficaria bom. E então, havia duas semanas, outra coisa acontecera.
Sentira uma faísca elétrica dentro da cabeça, bem atrás dos olhos, e um clarão
fortíssimo, branco-azulado, cegara-o por um segundo e, desde então, ele não
pudera mais ler.
Não se tratava de nada na vista. Via bem como sempre, mas as palavras
impressas sobre o papel branco nadavam e corriam juntos e rastejavam como
cobras, e ele não podia dar com seu sentido.
Sabia que tivera dois pequenos derrames, mas aquele era um segredo
que não revelava à esposa, que ela não revelava a ele e que o médico escondia
dos dois. E ele esperava, esperava pelo terceiro, pelo relâmpago que lhe
cruzaria a mente, que lhe cruzaria o corpo e que se não o matasse iria torná-lo
insensível a tudo. Era a consciência disso que o enchia de ódio, ódio a todos.
O ódio físico dirigido contra todos que o cercavam era uma bola em sua
garganta.
Tentara ler com todas as lentes que lhe tinham caído nas mãos.
Experimentara ler os jornais com lupas, pois ele mesmo, com metade de sua
mente, tentava manter sua condição secreta para a outra metade. Agora, sua
cólera freqüentemente explodia sem qualquer aviso prévio, mas para ele o
verdadeiro horror residia no choro, pois às vezes chorava incontrolave1mente
e não podia parar. Uns dias antes, acordara cedinho, perguntando-se a si
mesmo: Mas, por que esperar?
Seu pai morrera da mesma coisa, mas antes de morrer passara onze
meses numa cama, imóvel, inerme como um grande verme acinzentado e todo
o dinheiro que economizara para a velhice fora gasto com médicos e remédios.
Van Brunt sabia que se lhe acontecesse a mesma coisa os oito mil dólares que
tinha no banco seriam gastos do mesmo jeito e que sua velha mulher não teria
um tostão quando ele fosse enterrado.
Assim que as farmácias abriram, naquela manhã, ele tinha procurado
seu amigo Milton Boston na Boston Drug Store.
- Quero acabar com uma praga de esquilos, Milton - dissera - Você pode
me arrumar um pouco de cianeto?
- Olhe aqui - explicara Milton - esse é um negócio perigoso como o
diabo. Coisa que eu nem gosto de vender. Ter, eu tenho, mas seria melhor
você levar um pouco de estricnina.
- Não - respondera ele. - Tenho lá em casa um boletim da Secretária da
Agricultura com uma nova fórmula, que leva cianeto.
- Bom, então está certo. Você tem de assinar o registro de drogas
venenosas. Mas cuidado com o negócio, Van. Cuidado. Não vá largar a coisa
em qualquer lugar.
Eram amigos havia muitos anos, eram membros da Loja Azul e se
tinham sucedido na diretoria; nos anos seguintes chegaram a Mestres da Loja
de San Isidro e depois Milton passara para a Arca Real e para o Rito Escocês e
Van Brunt não conseguira acompanhá-lo além do terceiro grau. Mas
permaneceram amigos como sempre.
- Quanto você quer da coisa?
- Umas vinte e cinco gramas, mais ou menos.
- É muito, Van.
- Não faz mal, eu devolvo o que sobrar.
Milton ficara preocupado.
- Olhe aqui, não toque no cianeto com as mãos nuas, entendeu?
- Não se incomode, sei lidar com essas drogas.
Chegando a casa, fora direto ao porão e, com um canivete bem afiado
fizera uma série de incisões nas costas da mão esquerda. Quando os
filetezinhos de sangue começaram a escorrer, abrira o tubo de vidro que
continha os cristais. E então parara. Era uma coisa que não podia fazer. Não
podia inclinar o vidro e derrubar os pequenos cristais sobre as incisões que
fizera nas costas da mão.
Ao fim de uma hora, fechara o tubo e fora guardá-lo em seu cofre forte,
no banco, juntamente com o testamento e a apólice de seguro. Depois,
chegara a pensar em comprar uma pequena ampola para usar pendurada no
pescoço. Assim, se chegasse o grande momento, ele talvez pudesse enfiá-la na
boca como aquelas pessoas lá na Europa costumam fazer. Mas o que não
podia era torná-la agora. E depois, talvez nada acontecesse.
O desapontamento ficara pesando dentro dele, casando-se à cólera que
já estava em seu peito. Ficava encolerizado ao contemplar todas as pessoas
que o cercavam e que não morreriam também. E havia outra coisa que o
aborrecia. O derrame pusera término a uma de suas inibições. Subitamente,
ele voltara a ser possuído de forte desejo. Passara a desejar intensamente
mulheres moças, até mesmo meninas. Não podia afastar os olhos nem o
pensamento delas e, quando aquele desejo doentio chegava ao auge, ele
chorava desoladamente. Tinha medo, como uma criança tem medo de casa
estranha.
Era velho demais para ajustar-se à alteração de personalidade que
resulta do derrame e de sua nova natureza. Jamais fora um grande leitor, mas
agora que não podia ler, vivia sequioso de leitura. E seu temperamento
tornava-se cada vez mais violento e agressivo, a ponto das pessoas que o
conheciam havia anos, começarem a evitá-lo.
Deitado no assento traseiro do ônibus, ele ouvia o tempo passando por
suas veias, desejando e temendo a morte.
Através das pálpebras quase cerradas, via a luz dourada do crepúsculo
que agora banhava o interior do ônibus. Seus lábios abriram-se um
pouquinho e ele disse:
- Tarde, tarde, tarde. - A palavra era muito linda e ele podia ouvir
perfeitamente o silvo abafado de seu coração. Uma plenitude de sentimento
apossou-se dele, cresceu-lhe no peito, cresceu-lhe na garganta, pulsou-lhe na
cabeça. Pensou que iria chorar novamente. Tentou fechar a mão direita,
porém ela estava adormecida, e não conseguiu fechá-la.
E então a tensão o enrijeceu. Sentiu o corpo distendido, como uma luva
de borracha bem cheia de ar. A luz do crepúsculo era cegante. Atrás de seus
olhos, um terrível relâmpago brilhou. Ele sentiu que saía e caía no cinzento e
no escuro e cada vez mais negro; negro...
O sol tocou as colinas do Ocidente,e achatou-se, muito claro e amarelo.
O vale saturado de água brilhava sob a luz horizontal. O ar, limpo e lavado,
começava a esfriar. Nos campos, a relva curvada e os caules pesados e gordos
da aveia selvagem tentavam ficar de pé, e as corolas douradas das papoulas
do campo eram desfolhadas peio vento, aqui e ali. O rio amarelo fervia e
espumava, mordendo as margens com raiva. No assento de trás do ônibus,
Van Brunt roncava surdamente. Sua testa estava marejada, a boca aberta e os
olhos também.

CAPÍTULO XX

Espinhudo tinha passado para o lado de Norma, no mesmo banco, e ela


puxara logo as saias com a mão, para dar-lhe lugar, afastando-se um pouco
para o lado da janela.
- Que será que o velho quer com ela? - perguntou Espinhudo, com a voz
pesado de suspeito.
- Não sei - respondeu Norma. - Mas vou lhe dizer uma coisa. Ela sabe o
que fazer. É uma criatura maravilhosa.
- Oh, não sei - disse Espinhudo. - Há outras pequenas maravilhosas.
Norma inflamou-se.
- Como quem? - perguntou ela, com desprezo.
- Como você - disse Espinhudo.
- Oh! - aquilo para ela tinha sido Lima surpresa. Baixando a cabeça,
olhou para os dedos cruzados, tentando restabelecer seu equilíbrio.
- Por que você se despediu?
- Ora, a Sra. Chicoy me maltratou.
- Eu sei. Ela não trata ninguém como deveria tratar. Mas eu gostaria
que você tivesse ficado. Nós poderíamos nos dar muito bem, talvez.
Norma não respondeu, e Espinhudo prosseguiu:
- Se quiser, vou buscar uma torta de passas agora mesmo. As de passas
são ótimos.
- Não, obrigada. Estou satisfeito, agora não posso comer mais nada.
- Está doente?
- Não.
- Pois é, se voltasse para a Encruzilhada talvez pudéssemos ir a San
Isidro, nos sábados à noite, para dançar um pouco e coisas assim.
- Você nunca tinha pensado nisso.
- Não pensei que você gostasse.
Norma começou a ganhar ousadia. Era um jogo delicioso.
- E o que o levou a pensar que eu gostaria, agora?
- Ora, agora você está diferente. Está de outro jeito, mudou. Gosto do
jeito que deu no seu cabelo.
- Oh, isso - disse ela. - Pois é, mas não há nada que me arraste para
trás daquele balcão outra vez. Além disso, quem apareceria lá para me ver?
- Eu - respondeu Espinhudo, galantemente. - Por que você não volta?
Eles darão o emprego de novo para você. Garanto que dão.
Ela sacudiu a cabeça.
- Não, quando eu me despeço, me despeço mesmo. Não volto rastejando
para pedir desculpas, eu não. Ademais, tenho um futuro. E nós temos planos.
- Que tipo de planos?
Norma pensou um pouco antes de falar. Ela sabia que aquilo era uma
coisa que dava azar, mos àquela altura não podia mais resistir ao desejo.
- Vamos montar um apartamento, com um belo sofá e um rádio. Vamos
ter fogão, refrigerador e eu vou fazer um curso de enfermeira odontológica. -
Seus olhos brilhavam intensamente.
- Nós quem?
- Eu e a Srta. Camille Oaks, nós duas. Quando eu tirar o diploma de
enfermeira odontológica poderei vestir-me bem e poderemos ir aos teatros e
talvez até mesmo convidar pessoas amigas para um pequeno jantar, de vez em
quando.
- Besteira - disse ele. - Você nunca fará essas coisas!
- Por que diz isso?
- Porque você não vai fazer mesmo, ora. Olhe aqui, por que não volta
conosco para a Encruzilhada? Estou estudando radar e podemos sair de vez
em quando e quem sabe... poderemos até casar. Eu ainda sou bem moço. Para
um camarada moço, é... é... bom ter uma mulher. Uma mulher sempre dá ao
sujeito um pouco de... ambição.
Norma olhou para o rosto do rapaz bem de perto, atentamente, para ver
se ele estava querendo divertir-se à sua custa. E havia algo tão direto em seu
olhar que Espinhudo interpretou mal sua atenção e olhou logo para o outro
lado, embaraçado.
- Eu sei - disse, amargamente. - Você pensa que não poderia dar certo,
com um camarada como eu, que tem essas coisas. Pois eu já fiz de tudo.
Gastei mais de cem dólares só com médicos e com contas de farmácia. Mas
não adiantou nada. Um médico disse que elas vão acabar. Disse que daqui a
uns dois anos eu vou estar de cara limpa outra vez. Mas eu não sei se é
verdade. Pois vá - exclamou ele, de repente, em tom raivoso, cortando a
explicação. - Pois vá para esse raio desse apartamento, vá de uma vez. Talvez
eu saiba aproveitar bem a vida, talvez me divirta com coisas de que você
nunca ouviu falar. Não quero esmolas de ninguém. - O tom de sua voz
transformara-se de raivoso em lamentoso e agora Espinhudo estava
cabisbaixo, imóvel.
Norma contemplou-o, espantada. Jamais soubera que outras pessoas,
além dela, fossem sujeitas àquele tipo de dor interna. Jamais fora procurada
por pessoa alguma em busca de simpatia ou conforto. Uma bolha de ternura e
gratidão ganhou corpo rapidamente dentro dela.
- Você não deve pensar assim - disse ela. - Não é preciso, porque se
uma pequena gostar mesmo de você ela nem liga para essas coisas. O médico
que lhe disse aquilo sabia o que estava dizendo. Conheci três rapazes que
tiveram espinhas assim, a mesma coisa, e elas sumiram todas com o tempo.
Espinhudo manteve-se cabisbaixo. Ainda estava arrasado, mas agora
sentia uma pontinha de excitação também. Sabia que a vantagem começava a
pender de seu lado, que podia valer-se dela e isso era uma coisa nova para ele,
uma grande novidade. Ele sempre discutira com as pequenas e tentara
impressioná-los com suas bravatas, e no entanto conquistar aquela vantagem
de que agora gozava era muito mais fácil.
- É, mas acontece que a gente chega a um ponto em que não pode
agüentar mais - disse ele. - Às vezes penso até em me matar de uma vez. - Ele
forçou um meio soluço.
- Não fale assim, não diga essas coisas - disse Norma. Para ela, aquele
papel também era novo, mas provavelmente jamais encontraria outro que se
lhe ajustasse tão bem.
- Ninguém gosta de mim - lamentou-se Espinhudo. - Ninguém quer
nada comigo.
- Não fale assim - repetiu Norma. - Não é verdade. Sempre gostei de
você.
- Não, não gosta coisa nenhuma.
- Gosto, sim. - E ela pousou de leve a mão sobre seu braço, para dar
ênfase ao que assegurava.
Cegamente, ele voltou-se e comprimiu a mão dela contra seu braço.
Depois suas mãos empolgaram as dela, apertando seus dedos e,
automaticamente, Norma correspondeu à pressão. E então ele ajeitou-se no
banco, estreitou-a entre os braços, com força e aproximou seu rosto do dela.
- Não! - gritou Norma. - Não, pare com isso!
Ele abraçou-a com mais força ainda.
- Pare - pediu ela. - Pare. Olhe o velho lá atrás.
- Ora, esse velho bastardo está roncando - cochichou Espinhudo. -
Escute só, parece um serrote. Vamos, vamos.
Ela ergueu os cotovelos contra o peito dele, para afastá-lo. As mãos dele
entraram debaixo da saia de Norma.
- Pare com isso - cochichou ela. - Pare já com isso. - Agora, ela sabia
que tinha sido engambelada . - Pare com isso! Quero sair daqui, pare!
- Ora, vamos logo - pediu ele, frenèticamente. - Por favor, vamos logo. -
Os olhos de Espinhudo estavam vidrados e ele lutava desesperadamente
contra a saia.
- Pare com isso, pare, por favor. Olhe aqui, e se... e se Camille voltar? E
se ela vir o que você está...
Os olhos de Espinhudo clarearam um pouco. Quando os ergueu para
Norma, tinham um brilho mau.
- E daí, o que é que tem? Então você dá bola para aquela vigarista?
A boca de Norma pendeu aberta e seus músculos relaxaram-se. Ela o
fitava sem acreditar no que acabara de ouvir. Então sua cólera se tornou fria e
homicida. Seus músculos exercitados no trabalho diário entesaram-se
subitamente. Ela desembaraçou uma das mãos e acertou-o na boca, com
força. Erguendo-se, Norma fechou as mãos e atingiu-o no rosto dos dois lados,
com os punhos cerrados, ele ficou tão surpreendido que ergueu as duas mãos
para o rosto, a fim de defender-se como podia daquela fúria.
Ela cuspiu em seu rosto como uma gata furiosa.
- Seu canalha! - gritou. - Oh, seu canalha, gambazinho imundo!
Aos pontapés, trancos e empurrões Norma foi levando Espinhudo até o
fim do corredor entre os bancos e quando chegaram à porta ela saltou e correu
para longe.
Espinhudo entalara um dos pés no suporte de ferro de um banco e
tentava safar-se. Norma sentiu-se de repente muito fraca e enjoada. Tinha os
lábios trêmulos e os olhos rasos d’água.
- Oh, aquele gambazinho imundo! - gritou. - Gambazinho sujo, imundo!
Cruzou a valeta, atirou-se sobre a relva molhada e meteu a cabeça entre os
braços. Espinhudo conseguira desembaraçar o pé que ficara preso debaixo do
assento e agora estava curvado dentro do ônibus, olhando pelo cantinho de
uma janela. Estava desorientado, não sabia o que fazer.
Camille, que vinha voltando pela estrada, andando devagarinho,
encontrou Norma deitado de brutos, na relva molhada. Cruzando a valeta,
inclinou-se sobre ela.
- Que foi que houve? Escorregou? Que houve com você?
Norma ergueu o rosto, debulhado em lágrimas.
- Estou bem - respondeu.
- Levante-se - disse Camille, secamente. - Levante-se já desse mato
molhado. - Curvando-se mais um pouco, agarrou Norma, colocou-a de pé,
conduziu-a até o rochedo e forçou-a a sentar-se sobre os jornais velhos. -
Agora me diga uma coisa, que diabo aconteceu com você?
Norma enxugou o rosto molhado no manga do casaco e então
desapareceu de sua boca o derradeiro remanescente de batom.
- Prefiro não falar disso.
- Bem, o problema é seu - respondeu Camille.
- Aquele Espinhudo. Ele me agarrou.
- Ora, e você então não é capaz de se defender? Precisa meter a cara no
mato, como meteu?
- Não foi por isso.
- Bem, então explique de uma vez o que houve. - Camille não estava
realmente interessada. Ela Já tinha preocupações de sobra com sua própria
vida.
Norma esfregou os olhos vermelhos com os dedos.
- Dei na cara dele - disse elo. - Dei na cara dele, porque ele chamou
você de vigarista.
Camille olhou depressa para o lado. Olhou para o outro lado do vale,
onde o sol estava desaparecendo atrás das montanhas e coçou o rosto com a
mão, distraída. Seus olhos estavam nublados. Ela forçou-os a focalizar outra
vez as coisas, forçou-os a sorrir e depois sorriu para Norma.
- Olhe aqui, menina - disse Camille. - Uma coisa que você vai acabar
descobrindo, mais cedo ou mais tarde, é que de vez em quando todo mundo é
vigarista. Todo mundo, ninguém escapa disso, entendeu? E os piores
vigaristas são sempre os que chamam os outros de vigaristas.
- Mas você não é.
- Vamos deixar isso passar - disse Camille. - Vamos deixar passar.
Olhe, vamos ver se a gente dá um jeito no seu rosto. O melhor seria um bom
banho, mas com um pouco de batom sempre se dá um jeito, é melhor que
nada.
Camille abriu a bolsa, remexeu as coisas lá dentro e sacou um pente.
CAPÍTULO XXI

Juan apertara tanto o passo que Mildred mal conseguia acompanhá-lo.


- Temos de correr tanto assim? - perguntou ela.
- Vai ser muito mais fácil desencalhar o ônibus enquanto ainda há
alguma claridade do que se tivermos de trabalhar no escuro.
Ela o acompanhava com dificuldade, trotando ao seu lado.
- Você acha que pode tirar o ônibus da valeta?
- Acho.
- Bem, então por que não tirou logo, em vez de ficar fazendo hora?
Ele reduziu o passo, por um momento.
- Eu já lhe disse - lembrou. - Eu já lhe disse, duas vezes.
- Oh, sim. Então quer dizer que é verdade.
- Claro que é.
Quando eles chegaram ao ônibus o sol já se escondera atrás das
montanhas. Mas as nuvens mais altas estavam ainda iluminadas e
projetavam uma luz muito brando, quase uma transparência rosada, por
sobre o vale e as colinas.
Espinhudo surgiu de trás do ônibus, assim que Juan se aproximou.
Sua atitude era de hostilidade servil.
- Quando é que os homens ficaram de aparecer?
- Não achei ninguém - disse Juan. - Vamos ter de fazer tudo sozinhos.
Mas vai ser preciso um pouco de ajuda. Que diabo, onde está o pessoal?
- Espalhado por aí.
- Está bem, vá buscar o encerado.
- Aquela senhora está deitada em cima dele.
- Então diga a ela que saia de cima. Vou querer também umas pedras,
se houver pedras por aqui, e uns mourões de cerca. Pode ser que você tenha
de derrubar uma dessas cercas. Mas deixe o arame farpado, para o gado não
fugir. E, outra coisa, Espinhudo...
A boca de Espinhudo pendeu aberta, seus ombros caíram.
- Mas o Sr. disse...
- Chame os homens. Vamos precisar de ajuda. Vou retirar o macaco
grande de baixo do assento traseiro.
Juan subiu o degrau de um salto e entrou no ônibus. Lá dentro, estava
quase escuro. Mas ele logo reconheceu Van Brunt, estendido sobre o assento
traseiro.
- Você vai precisar sair daí - disse Juan - porque eu quero retirar o
macaco.
Mas como o homem não se mexia, Juan curvou-se sobre ele, para
examiná-lo de perto. Os olhos do velho, voltados para cima, estavam
arregalados e de sua boca escapavam os roncos duros e irregulares de quem
respira com dificuldade. Em torno dos seus lábios havia espuma.
Juan voltou-o de costas sobre o assento e então a língua do velho caiu
para trás e obstruiu sua respiração. Metendo depressa a mão na boca de Van
Brunt; Juan pescou a língua intumescida com a ponta dos dedos e puxou-a
para a frente e para cima. Depois gritou:
- Espinhudo! Espinhudo! - enquanto usava a mão livre para bater com
a aliança de ouro contra o vidro da vidraça. - Este camarada está passando
mal, que diabo! Peça ajuda logo, ande! Toque esse raio dessa buzina.
Afinal, quem se encarregou de velar pelo velho foi o Sr. Pritchard. Era
uma coisa que o repugnava, mas que não podia deixar de fazer. Juan cortara
uma varetinha de madeira e explicara a ele que devia conservá-la entre a
língua e o céu da boca do velho, para que ele não morresse sufocado pela
própria língua. O olhar do velho e o cheiro azedo que se desprendia de seu
peito arfante reviraram o estomago do Sr. Pritchard. Mas tinha de fazer aquilo,
pelo menos aquilo. Não queria pensar em nada, não queria pensar em coisa
nenhuma. Calafrios que eram verdadeiras agonias corriam sobre sua pele. A
Sra. Pritchard tinha voltado ao ônibus e, ao avistá-lo, sentara-se no assento
lateral, junto à porta, mantendo-se tão longe dele quanto possível. E mesmo
na penumbra do interior do ônibus ele podia avistar seu rosto lanhado e o
sangue coagulado na gola de seu vestido. Ela não disse uma só palavra.
"Devo estar ficando maluco" - pensou ele. "Não sei como fui capaz de
fazer uma coisa dessas. Mas querida, então você não acredita que eu estava
mesmo louco, fora de mim?" O Sr. Pritchard apenas pensou tudo isso. Estava
mais que disposto a dar a ela a tal esfufa, e não seria uma estufazinha
qualquer. Mandaria construir a melhor que se pudesse fazer. Mas não poderia
tocar no assunto durante muito tempo. E ainda tinham pela frente a viagem
ao México... teriam de passar por aquilo. Seria horrível, mas agora não havia
mais remédio, tinham de ir de qualquer forma. E até quando ele teria de viver
sob aquele olhar de reprovação, mágoa, recriminação? Sabia que ela não lhe
dirigiria a palavra durante dias, falando apenas em caso de absoluta
necessidade e, nessas circunstâncias, com a maior polidez, respostas
lacônicas, dados em voz muito brando, enquanto o olhar seria desviado para o
outro lado, a fim de não cruzar com o seu.
“Oh, Deus” - pensou ele – “como fui capaz de fazer uma coisa dessas?
Por que não posso estar no lugar desse velho, estendido no banco, morrendo?
Ele nunca mais vai defrontar-se com qualquer problema, nunca mais."
Ouvia os homens que trabalhavam embaixo do ônibus. Alguém removia
barro grosso com uma pá e outra pessoa rolava pedras para baixo das rodas
traseiras. Sua esposa, com um sorriso de tolerância nos lábios, permanecia
muito empertigada no assento lateral . Ainda não estava bem certo de como
ela pretenderia agir e, afinal, aquilo era problema dela.
Ela estava triste. "Não devo fazer má idéia dos outros" - pensava. "Não
devo esquecer a beleza e a tolerância, só porque Elliott agiu como um animal."
Um sentimento de triunfo começava a dominá-la. - Tenho dominado o ódio -
murmurou - e até hoje tenho conseguido dominar o desgosto. Posso perdoá-lo,
sei que poderei. Mas no próprio bem dele, não posso perdoar muito depressa...
no próprio bem dele. Tenho de esperar, terei de esperar. - Seu rosto só refletia
dignidade e tristeza profunda.
Lá fora, Espinhudo produzia verdadeiros milagres de força e
desprendimento. O barro arruinara completamente os seus sapatos de duas
cores. Ele facilitara a destruição, quase deliberadamente. Suas calças estavam
recobertas por uma grossa camada de barro escuro. Estragara suas melhores
roupas. Era ele quem usava a pá, para remover o barro comprimido entre as
rodas dos lados do ônibus, atirando-o sobre a estrada. Chegara mesmo a
ajoelhar-se na lama, para usar as próprias mãos. Seus olhos de lobo estavam
injetados e tinha a testa coberta de suor. De soslaio, ele observava Juan,
atentamente. Juan tinha esquecido o que prometera, justamente no momento
em que mais precisava dele. Espinhudo removia montanhas de barro com a
pá, lançando mão de todas as suas reservas de energia.
Empunhando uma picareta, Ernest Horton cruzou a estrada e a valeta.
Trabalhando depressa, ele removeu rapidamente a camada superior de mato e
terra e encontrou o que procurava. Era a base rochosa da colina, que havia
séculos cedera deixando exposto o rochedo amarelo. Estilhando a rocha.
Ernest começou a retirar pedras e calhaus, que ia depositando no mato, ao
lado do buraco.
Camille atravessou a estrada.
- Posso ajudar a carregar essas pedras?
- Você vai se sujar toda.
- Mais do que já estou é difícil.
Ele apoiou-se por um momento, contra o cabo da picareta.
- Olhe aqui, não quer mesmo me dar o número de seu telefone?
Poderíamos sair juntos.
- Mas eu lhe disse a verdade - afirmou Camille. - Não sei onde vou
morar. Não tenho telefone.
- Está certo, é você quem sabe.
- Não, estou falando sério. Onde vai ficar?
- Hollywood Plaza.
- Bem, se quiser esperar no saguão do hotel, por volta das sete horas,
depois de amanhã - sugeriu Camille - sou capaz de aparecer por lá.
- Ótimo - respondeu ele. - Estamos combinados. Vamos jantar no
Musso-Franck’s.
- Eu não disse que fica combinado. Disse que sou capaz de aparecer.
Não sei como estarei me sentindo depois de amanhã. Se eu não aparecer logo,
espere mais um pouquinho. Talvez eu chegue atrasada.
- Certo - concordou Ernest. - Espero até sete e meia.
- Você é um bom sujeito.
- Ora, apenas um outro otário. E não vá pegar essas pedras grandes.
Essas eu levo. Pegue aquelas pequenas, ali.
Ela marchou para o ônibus, com uma pedra em cada mão.
Juan foi até a velha cerca e começou a arrancar mourões. Arrancou
oito, mas alternados, para que o arame farpado não caísse. Depois levou os
mourões para perto do ônibus e voltou para arrancar mais alguns.
A faixa rosada no céu começava a tornar-se purpurina e a escuridão
descia sobre o vale. Juan apoiou a base do macaco grande sobre um mourão
e, ajustando a cabeça da haste sob a borda de um aro, ergueu um lado do
ônibus. A medida que a roda subia, Espinhudo a calçava com pedras.
Juan mudou o macaco de posição e ergueu mais um pouco o ônibus,
daquele lado. Quando parou de acionar o cabo do macaco, o ônibus estava
bem acima da lama.
Juan passou o macaco para o lado oposto e começou o erguer a outra
roda. Camille e Norma carregavam pedras para calçar as rodas, enquanto
Ernest trabalhava com a picareta.
- Que posso fazer? - perguntou Mildred.
- Segure êste mourão no lugar, enquanto ajeito o macaco - disse Juan.
Agora, trabalhava furiosamente, numa corrida contra a escuridão que
começava a descer sobre eles. Sua testa rebrilhava de suor. Espinhudo,
ajoelhado na lama, ia colocando pedras sob as rodas e aos poucos a traseira
do ônibus começava a chegar ao nível da estrada.
- Vamos reforçar a coisa - ordenou Juan - para não termos de fazer
tudo outra vez. Acho que por segurança é melhor calçar as rodas com esses
mourões também.
Quando terminaram, a escuridão era quase total.
- Vou dar a partida - disse Juan - e quero que todo mundo de uma mão
aqui atrás. Se o ônibus andar um metro para frente, não haverá problema.
- E a estrada aí na frente, como está? - quis saber Espinhudo.
- Pelo que vi está em ordem. Cristo! Você arruinou sua roupa!
Espinhudo ficou constrangido, desconcertado.
- Não tem importância. Uma roupa a mais, uma roupa a menos, que é
que tem? - O tom da voz do rapaz era tão desalentado que Juan fez um esforço
para distinguir suas feições, no escuro. E então Juan sorriu, compreendendo.
- Olhe, Kit, você vai ter de dirigir tudo aqui atrás, entendeu? Faça a
turma empurrar com vontade. Você sabe como é. Deixo tudo em suas mãos,
Kit.
Espinhudo imediatamente atirou a pá para um lado.
- Vamos, todo mundo! Chegou a hora de fazer um pouco de força. Vou
ficar aqui, do lado direito. Vocês três aí, as moças também. Todo mundo vai
fazer força. - Espinhudo dirigiu a disposição dos passageiros na traseira do
ônibus. Chegou mesmo a olhar para a Sra. Pritchard, sentada dentro do
ônibus.
- Ora - murmurou - afinal ela só iria estorvar a gente.
Juan tomou seu lugar atrás do volante.
- Desça também - ordenou ele ao Sr. Pritchard - e vá ajudar a pessoal a
dor um bom empurrão.
O motor pegou depressa. Juan esperou um pouco, deixando esquentar.
Depois engrenou a reduzida da primeira, bateu duas vezes com o punho
cerrado contra o lado do ônibus e ouviu as duas batidas com que Espinhudo
respondeu, da traseira. Estava tudo em ordem. Acelerou um pouquinho e foi
retirando bem devagar o pé do pedal da embreagem. As rodas giraram,
escorregaram, morderam pedras e mourões e o "Querida" avançou lenta e
pesadamente, como um ébrio, cruzando a borda da valeta e ganhando a
estrada. Juan ainda prosseguiu por alguns metros, até deixar para trás o
trecho onde a lama era mais grossa, e então usou o freio de mão para
estacionar o ônibus.
- Joguem as ferramentas em qualquer lugar, no fundo do ônibus -
gritou ele. - Vamos, vamos embora de uma vez.
Quando ele acendeu as luzes, os dois fachos dos faróis iluminaram a
estrada até o topo da pequena colina.

CAPITULO XXII

Juan dirigiu o ônibus lentamente até o topo da colina e desceu a ladeira


que passava ao lado da fazenda abandonado. Quando fez a curva, os faróis do
"Querida" iluminaram as órbitas vazias da velha casa, o moinho de vento
quebrado e o celeiro.
A noite estava muito escura e uma brisa fresca soprava sobre o vale,
trazendo consigo o cheiro forte da terra molhada e das flores do campo. Os
faróis abriam um túnel iluminado no negrume da estrada e uma coruja voou
espantada na frente do ônibus, cruzando os cones de luz projetada. Mais
adiante, um coelho que cruzava a estrada parou por um momento, encarando
os faróis, e seus olhos brilharam como duas brasas vermelhas antes de ele
saltar de cabeça na valeta e desaparecer.
Juan mantinha o ônibus em segunda e evitava os trilhos da estrada,
ainda alagados. Todas as luzes interiores do veículo estavam apagadas, com
exceção das do painel de instrumentos. Juan pousou os olhos por um
momento na Virgem.
- Só peço uma coisa - disse, baixinho. - Desisto do resto, mas seria
muito bom você fazer com que ela esteja sóbria, quando eu voltar.
A Sra. Pritchard não estava mais empertigada. Sua cabeça era sacudida
de um lado para o outro pela trepidação do ônibus e ela estava sonhando.
Usava um vestido... um vestido... que vestido ficaria bem? Qualquer coisa leve.
E teria de ser branco. E estava conduzindo Ellen através de sua nova estufa.
- Sabe por que eu conservo aqui umas orquídeas roxas? - perguntou a
Ellen. - Bem, em primeiro lugar, todo mundo tem parentes que gostam de
orquídeas roxas. Você mesma tem algumas, eu sei. Mas olhe estas aqui.
Acabaram de chegar... veja que beleza, que delicadeza de tons castanhos e
verdes. Elliott encomendou-as a um agente no Brasil. Nascem o mais de mil
quilômetros acima da embocadura do Amazonas, imagine.
No soalho do ônibus, a picareta retiniu contra a pá. Espinhudo curvou-
se até o ouvido de Juan.
- Se quiser, posso revezá-lo um pouco, Sr. Chicoy. Não estou cansado.
Posso dirigir.
- Não, obrigado, Kit, você já trabalhou muito.
- Mas eu não estou cansado.
- Obrigado, Kit, não é preciso.
De onde estava, Mildred podia distinguir perfeitamente o perfil de Juan,
recortado contra a luz dos faróis.
“Só queria saber até quando conseguirei fazer êste dia durar” - disse
ela, com seus botões. – “A gente precisa conservar o que tem na mão, até
aparecer outro melhor.”
Por sobre a trepidação e os estalos da velha carroçaria, o Sr. Pritchard
tentava ouvir a respiração ofegante de Van Brunt. Ele mal avistava o rosto
esbranquiçado do velho. Descobriu que odiava aquele homem, que o odiava
porque ele estava morrendo. Surpreendido por seu próprio sentimento, tentou
analisá-lo. Acabou concluindo que poderia estrangular facilmente o velho, sem
emprestar grande importância à coisa em si. "Que espécie de homem sou eu?"
- gritou mentalmente. "O que me faz ter essas idéias pavorosas? Estarei
ficando louco? Talvez esteja trabalhando demais. Talvez isso seja o começo de
um colapso nervoso."
Inclinou-se sobre o velho, para certificar-se de que ainda respirava. O
céu da boca de Van Brunt deveria estar bem ferido, no ponto tocado pela
vareta de madeira. Alguém fez barulho ao seu lado e, quando ele se voltou
para ver quem era, deu com Ernest Horton, que se sentara no mesmo banco.
- Quer que eu tome conta do velho, para você descansar um pouco?
- Não - respondeu o Sr. Pritchard - obrigado, não é preciso. O que será
que ele teve?
- Um derrame - explicou Ernest. - Desculpe, não tencionava ofendê-lo,
esta tarde. É que eu estava meio nervoso.
- Eu sei, eu sei como são essas coisas - disse o Sr. Pritchard. - Quando
tudo vai mal, num desses dias em que coisa nenhuma dá certo, minha
senhora costuma dizer: "Não tem importância, a primavera há de chegar.
- Pois é, aí está uma boa maneira de encarar as coisas - concordou
Ernest. - Bem, ficarei hospedado no Plana, se você quiser telefonar. Ou então
tente aquele apartamento, qualquer noite destas... sabe, o das loiras, aquele
endereço que lhe dei.
- Creio que não vai ser possível, sinto muito. Vou estar muito ocupado.
Mas gostaria de que me fizesse uma visita na fábrica, quando puder. Ainda é
bem capaz de acabarmos fazendo um negócio.
- Pois é, talvez façamos mesmo.
Norma ia agora junto à janela, e Camille ao seu lado. Apoiara o cotovelo
sobre a borda de alumínio e tinha os olhos perdidos na noite que iam
deixando para trás. Ainda havia uma nesga de luz nas bordas de uma grave
nuvem escura que passava lentamente sobre as montanhas ocidentais e,
quando a nuvem passou, o céu foi clareando e a estrela vespertina brilhou no
céu, clara, limpa e firme.
- Estrelinha, estrelinha - murmurou Norma - primeira estrela que vejo
esta noite, fazei com que eu tenha, fazei com que alcance o que desejo esta
noite.
Camille, sonolenta, voltou a cabeça para ela.
- Que é?
Norma não respondeu logo. E, quando respondeu, foi com uma
pergunta.
- Então, vamos ver no que dão as coisas?
- Isso, vamos ver no que dão - repetiu Camille.
Lá longe, à frente e um pouco à esquerda, começava a surgir um rosário
de luzes, luzes pequeninas que piscavam e tremulavam, perdidas e solitárias
na escuridão da noite, remotas, frias e longínquas, todo um rosário que se
desdobrava, piscando.
Juan voltou a cabeça para o lado e anunciou em voz alta:
- Pronto, estamos em San Juan.
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