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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Artes
Departamento de Artes Visuais
História da Fotografia

Juliana Neves Steinbach

A escolha dos materiais na arte contemporânea é definida pela história contida


neles. Segundo Elida Tesller, 1996 “Os materiais possuem um léxico. Eles estão
presentes para narrar uma história, e esta pode ser conferida ou recriada pelo
espectador que participa ativamente do processo desencadeado pela associação entre
o que ele vê e o que ele sabe da vida do artista e da sua própria existência”. A
utilização de restos traz um rastro contido no suporte e é através destes rastros que
inicio minha narrativa.

Uma reforma no meu apartamento me levou a muitas idas e vindas à lojas de


materiais de construção. Para reformar a cozinha nos deparamos com as escolhas
apresentadas pelas grandes lojas no setor de revestimentos, entre elas os agora
grandes e imponentes azulejos. Ainda guardo em minha memória os azulejos da
cozinha da minha infância, pequenos, amarelados, com motivos florais ou de
utilitários. Há uma grande discrepância entre tamanho e detalhamento dos azulejos
para uso doméstico de hoje e da minha infância, e esta mudança reflete não apenas
uma modernização do design associado à praticidade, mas também uma mudança
social.

A arquitetura contemporânea unifica os espaços de sala e cozinha com o


chamado conceito aberto. A cozinha não é mais apenas um local para o preparo de
alimentos e a mulher deixou de ser a única a frequentar este ambiente. A presença
masculina na cozinha aliada ao conceito de chefe na gastronomia trouxe uma mudança
nestes espaços, e é esta presença que impulsionou uma transformação deste
ambiente físico. O mercado é conduzido por uma demanda crescente de materiais que
atendam ao novo publico que agora habita a cozinha, os azulejos agora precisam ser
neutros e em geral monocromáticos para se construir a cozinha que atenda à presença
masculina nela.

A transformação deste ambiente doméstico parece refletir uma ideia de


igualdade de gênero, porém o que se observa é a apropriação do ambiente culinário
pelo masculino enquanto que o papel de cuidadora da casa segue pertencendo ao
feminino. Ainda se espera da mulher o papel de cuidar do lar, do marido e dos filhos
de acordo com a família tradicional que acompanha a onda conservadora que vem se
instaurando no país nos últimos anos. A mulher nesta condição ocupa o lugar de mãe
não apenas dos filhos, mas também do marido. A conquista do mercado de trabalho
traz uma dupla jornada à mulher, refletindo no seu desempenho e tornando a
condição de mulher trabalhadora muito mais difícil se comparada à do homem.

A negação deste papel de mãe ainda é uma declaração que causa choque ao
modelo de sociedade existente no Brasil e é através dela que este trabalho se
desenvolve. Um dos símbolos que representa a recusa a este papel é a menstruação.
Estar menstruada significa não estar grávida e isto é trazido ao trabalho na forma
material. Empunhando um absorvente interno utilizado durante a minha menstruação
escrevo na minha parede de azulejos recém colocados a frase “Eu não sou sua mãe”.
Marco este azulejo branco com o vermelho do meu sangue me posicionando contra
essa expectativa recaída sobre mim. O ato é fotografado para registro, e a fotografia é
revelada sobre um painel de azulejos antigos da década de 70.

O painel de azulejos antigos se torna o suporte do trabalho enquanto os


azulejos contemporâneos se tornam um rastro sobre o material. Azulejo sobre azulejo
geram uma indeterminação, o azulejo antigo está presente enquanto o
contemporâneo é o rastro, a fotografia entra na condição de índice como testemunha
de um modelo social, mas que não representa uma condição verdadeira. Brincando
com esta noção de verdade associada à fotografia coloco em xeque o léxico do azulejo.

O trabalho é construído em diversas camadas. A materialidade da revelação de


uma fotografia sobre azulejos também é desenvolvida através de matérias primas
simbólicas. A presença do sangue menstrual no painel de azulejos contemporâneos é
trazida ao azulejo antigo através do material utilizado na revelação. A aplicação de
uma goma sensível sobre o azulejo, anterior à exposição da luz na mesa de revelação,
torna as áreas escuras da transparência positiva, posicionada sobre o azulejo, uma
espécie de cola. Óxidos ou corantes podem ser utilizados sobre esta superfície
aplicados com um pincel macio, a escolha deste material compõem uma camada que
apenas este tipo de revelação pode ser capaz de trazer. A presença do sangue
menstrual, aspecto simbólico importante para o trabalho, é trazido para a fotografia
na forma de óxido de ferro. O vermelho do ferro presente na hemoglobina confere ao
sangue sua cor característica assim como a fotografia revelada. Cria-se então uma
associação do óxido de ferro com o feminino. Esta associação entre o óxido de ferro e
o feminino fica completa quando trago a informação de minha graduação anterior ao
estudo de artes visuais. Como bacharel em engenharia metalúrgica busco incorporar
elementos simbólicos dos materiais na minha poiética trabalhando sempre a relação
arte = vida.

Uma vez revelada sobre o azulejo estes são levados ao forno para que o óxido
seja incorporado ao vidrado da superfície. A durabilidade da fotografia agora está
relacionada à do azulejo adquirindo resistência à luz e à umidade. A fotografia aqui
perde sua condição de múltipla uma vez que cada revelação leva em consideração a
manualidade do artista na aplicação do óxido e cada queima traz os aspectos de
transformação da cerâmica para a fotografia. O trabalho não se constitui de forma
separada uma vez que a fotografia só faz sentido quando revelada sobre a superfície
de azulejos.

O título da obra, “La sangre”, também age como elemento conceitual do


trabalho. A língua portuguesa tem papel fundamental na construção dos papeis
sociais, a separação das palavras em gêneros molda os papeis masculinos e femininos
assim como os materiais. Neste trabalho apresento a associação da minha condição
feminina ao ferro presente no sangue e na revelação da fotografia no azulejo, a troca
do gênero da palavra sangue em português e espanhol de “o sangue” para “la sangre”
põem em evidencia a voz feminina da a frase.
Juliana Steinbach, “la sangre”, fotografia revelada sobre azulejo, 2018.

Referências:

Tessler, Elida. Formas e formulações possíveis entre a arte e a vida: Joseph Beuys e
Kurts Schwitters. Porto Arte, Porto Alegre, v. 7 n. 11. p. 57-67, mai. 1996.

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