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AOESTE
revista científica e cultural
n.º 1, junho 2019

FICHA TÉCNICA
AUTORES (n.º 1)
Ana Madalena Trigo de Sousa
Cristina Trindade
Eberhard Axel Wilhelm
José Gregório Gouveia
José Xavier Dias
Higino Faria
Manuela Pereira
Nelson Veríssimo
Paulo Ladeira
Paulo Perneta
Rita Rodrigues
COORDENAÇÃO DIRETIVA E EDITORIAL
Eugénio Perregil
Eva Natália Gouveia
Paulo Ladeira
CONSELHO CIENTÍFICO
Ana Cristina Trindade
Carlos Alberto Moreira Azevedo
Eva Natália Gouveia
José Domingues de Almeida
José Eduardo Franco
Luísa Marinho Antunes Paolinelli
Manuel Jacinto Jardim
Maria Manuela Franco Esteves
Maria Manuela Pereira
Nelson Veríssimo
Paulo Perneta
Rita Rodrigues
CONCEÇÃO LOGOTIPO: Paulo Ladeira
DESIGN: Paulo Ladeira
PAGINAÇÃO: Paulo Ladeira
CAPA: Paulo Ladeira
EXECUÇÃO GRÁFICA: Cromotema
EDIÇÃO: CEDECS (Costa do Sol – Associação Centro de Estudos e Desenvolvimento, Educação, Cultura e Social)
cedecs@costadosol.org
APOIO: Câmara Municipal da Calheta
ISSN: 2184 – 5719
DEPÓSITO LEGAL:
TIRAGEM: 100 exemplares
PERIDIOCIDADE: anual
Reservados todos os direitos segundo a legislação em vigor.
O conteúdo dos artigos é da exclusiva responsabilidade dos autores.

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ÍNDICE

7 Editorial

9 Repouso na fuga para o Egipto: Pintura de António de Oliveira Bernardes na Capela de Jesus-
Maria-José (Lombo do Doutor, Calheta).
Rita Rodrigues

21 A Pia Batismal da Matriz da Ribeira Brava e a Unificação Religiosa do Reino no Tempo de D.


Manuel I
Higino Faria

43 A Ponta do Pargo no percurso do pintor Alfredo Miguéis


Paulo Ladeira

51 As vistorias municipais nas serras do concelho da Calheta: espaço, conflito e poder (1827-1874)
Ana Madalena Trigo de Sousa

63 Curt Gagel: Uma excursão ao Rabaçal, em 1903


Eberhard Axel Wilhelm

69 António Veloso de Lira (1616—1691)


Cristina Trindade / Paulo Perneta

77 Condado da Calheta (Título de Conde)


José Gregório Gouveia

87 A Ordem de Cristo e o arquipélago da Madeira: dos primórdios do povoamento até à instituição


da diocese do Funchal
Nelson Veríssimo

93 A economia do açúcar na Madeira e a valorização da História Local


José Xavier Dias

103 Educação e Formação de Adultos— Complexidade: Um novo Paradigma para Investir e Intervir
em Educação
Maria Manuela Vieira Teixeira Pereira

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EDITORIAL

A Madeira, situada no oceano Atlântico, numa posição geoestratégica entre vários continentes, reve-
lou-se de extrema importância para diferentes povos que por aqui passaram ou se fixaram, trazendo consigo os
seus saberes e, posteriormente, também os levando para outras partes do mundo. A disponibilidade de um novo
espaço geográfico originou a adaptação de aspetos culturais ao local, desenvolvendo-se especificidades ao longo
de seis séculos.
A população do arquipélago, tendo um espaço terrestre limitado, viu o mar sem limite e marcou a sua
presença em quase todos os cantos do mundo. Dentro do arquipélago, como é natural, existem caraterísticas
comuns a todo o território, mas cada localidade, concelho, sítio, núcleo habitacional, família ou mesmo um
indivíduo desenvolve particularidades que os distingue uns dos outros. Esta porção da ilha da Madeira, situada a
oeste, conhecida inicialmente pelas “partes do fundo” e “costa de baixo” não foi alheia a estas especificidades.
Neste espaço da revista aoeste, de publicação anual, pretende-se dar um contributo para o
enriquecimento do conhecimento, divulgar e proporcionar a reflexão sobre os aspetos culturais da zona aoeste
da Madeira. Não será descurada a sua relação com o restante território insular, situado a leste e demais pontos
cardeais, o continente português, Açores e o estrangeiro. O logótipo da revista pretende transmitir esta ideia
através do arco com o termo aoeste, ao centro, a indicar este ponto cardeal. A abertura do arco remete para a
sua relação com outros territórios e para uma analogia a uma zona sem fronteiras para o conhecimento.
Tendo como elo principal a cultura, nas formas erudita e popular e nas diversas formas de expressão,
nesta revista pretende-se o relacionamento com várias áreas do saber, tais como a História, o Património, as
Artes, a Literatura, o Folclore, o Ambiente, a Educação/Ensino, entre outras que tenham interesse aoeste e na
sua relação com outras partes desta aldeia global.
Bem-vindos aoeste.
Paulo Ladeira

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Repouso na fuga para o Egipto: Pintura de
António de Oliveira Bernardes na Capela de
Jesus-Maria-José (Lombo do Doutor, Calheta)
Rita Rodrigues
Docente requisitada na Direcção Regional da Cultura –
Direcção de Serviços de Museus e Património Cultural

Resumo
A Capela de Jesus-Maria-José (Lombo do Doutor, Calheta) é uma típica capela seiscentista, com alterações
sofridas no século XVIII, identificando o conceito de “bel composto” e “horror vacui”, bem ao gosto do ideário estético
barroco. Sobrevive nesta ermida um espólio artístico e religioso digno de estudo, que exige intervenção cuidada de
conservação e restauro, a fim de salvaguardar o seu património, fruto de encomenda da família Berenguer, fundadores e
administradores desta capela, ricos proprietários de fazendas de vinhas nas terras da Calheta.
Do século XVII mencione-se uma cruz em pedra, próxima à configuração de cruz-alfa, à entrada da capela; a porta
de madeira que dá acesso à sacristia; o nicho de duplo arco, junto ao altar, onde eram colocadas as alfaias litúrgicas; os
azulejos polícromos que forram totalmente as paredes da ermida, de tipo “camélia”, de oficina nacional. Do século XVIII
anote-se a presença de uma pintura de pequenas dimensões, a óleo sobre tela, de boa oficina portuguesa com influência
romana; o retábulo de talha dourada e policromada de produção regional e atribuído ao imaginário madeirense João
Rodrigues de Almeida, de cerca de 1690-1708. Mas é a pintura Repouso na fuga para o Egipto de António de Oliveira
Bernardes (1662-1732), pintor português do Ciclo dos Mestres, a obra que coloca esta capela na rota da investigação da
pintura barroca nacional.

Palavras-chave
Pintura; Talha; Barroco; António de Oliveira Bernardes; Berengueres.

No altar-mor da Capela de Jesus-Maria-José de dois bispos e Martírio de Santa Quitéria e suas


encontra-se uma pintura a óleo, sobre tela, representando companheiras (c.1700-1715), hoje no arco do cruzeiro da
o Repouso na fuga para o Egipto (c.Larg. 140 x Alt. 170 cm), Igreja de São João Evangelista (Colégio, Funchal), mas
atribuída com segurança ao pintor português António de proveniente da Capela de Santa Quitéria, à entrada, no lado
Oliveira Bernardes (1662-1732) (Sobral, 2004, pp. 200-201). do Evangelho, deste templo, e parte de um painel de
Aponta-se a datação desta obra para 1690-1708, sabendo- azulejos alusivo a milagres nazarenos (c.1718-1725) na
se que a actividade de António de Oliveira Bernardes Capela de Nossa Senhora da Nazaré (São Martinho,
enquanto pintor de óleo está sinalizada entre finais do Funchal) (Simões, 1963, pp. 162-164; Calado, p. 37; Rodrigues,
século XVII (1690-1698) e princípios do século XVIII, como 2012, pp. 252-277; Rodrigues, 2018).
bem documenta a campanha de obras na Igreja de Nossa Deve-se a primeira referência bibliográfica desta
Senhora dos Prazeres (Beja) e os quadros da Capela dos pintura, Repouso na fuga para o Egipto, a Eduardo Pereira,
Passos no Mosteiro dos Jerónimos (Serrão, 2007; Franco, que refere como «uma boa tela da Sagrada Família de que
1992, pp. 206-217), passando depois a sua actividade a estar se destacam pelo desenho e expressão as figuras da Virgem
centrada, essencialmente, na produção azulejar, embora e uma criança a oferecer timidamente um cacho de uvas ao
não tenha abandonando totalmente a modalidade de óleo. Menino Jesus» (Pereira, 1940, p. 768). A “criança”
Na ilha da Madeira estão identificadas outras obras mencionada é um anjo alado, que humildemente parece
de António de Oliveira Bernardes: duas pinturas a óleo pedir autorização a São José para cumprir a sua acção.
sobre tela, Santa Quitéria e a (re)conversão de Lenciano e O Repouso na Fuga para o Egipto apresenta quatro

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Fig. 1— Retábulo de
talha dourada e
pintura a óleo sobre
tela, c.1690-1708.
Foto: RR.

figuras principais: Jesus, Maria, São José e um anjo. Esta Família com Santa Ana de Shelte A. Bolswert (c.1586-1659),
ordem hierárquica das figuras não corresponde à qualidade sobre a qual falaremos adiante.
plástica das mesmas, pois São José, por exemplo, evidencia- Assim, no cômputo geral, podemos mencionar o
se pelo desenho apurado, delicado e expressivo, revelando bom traço e correcto desenho da Virgem e do Menino, que
maior desenvoltura no tratamento dos panejamentos, seguem, no entanto, uma composição e desenho mais
denunciando um pintor com formação oficinal, seguindo convencionais, partindo de modelos gravados, sem variação
estética barroca. A composição é formalizada por uma criativa, mas as figuras de São José e do anjo enriquecem
estruturação ainda classicizante, basicamente equilibrada esta tela, quer pelo desenho e plasticidade das mesmas,
pela distribuição das figuras segundo linhas verticais, desenvoltura no grafismo, quer pela ambiência terrena e
formando dois grupos distintos, com Maria e Jesus, graciosa, enredada numa atmosfera intimista e quase
ocupando o lado esquerdo, e São José e o anjo, o lado mística, remetendo para outras pinturas conhecidas de
direito, segundo a leitura do observador. Apesar da sua António de Oliveira Bernardes. Sublinhe-se, ainda, a
concepção e execução estarem confinadas ao período do representação das qualidades tácteis e visuais dos
Barroco Pleno, a composição é estática e distanciada do materiais, bem visíveis nos panejamentos, uvas e botas,
dinamismo caracterizador desta época, pelo facto do seu denotando rigor no apuramento de um realismo visual, tão
autor seguir gravura de tempo mais recuado, uma Sagrada característico da gramática barroca.

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Fig. 2— Repouso na fuga para o Egipto (pormenor), pintura de Fig. 3— Repouso na fuga para o Egipto (pormenor), pintura de
António de Oliveira Bernardes, c.1690-1708. Foto: RR. António de Oliveira Bernardes, c.1690-1708. Foto: RR

Jesus, que se encontra de pé sobre os joelhos de sua presença masculina, acentuada pelo vigor e pujança da
Mãe, de cabeça envolta por um nimbo, com raios amarelos, estatura do seu corpo, acrescido da sua colocação no
e de braços abertos, tenta receber um cacho de uvas enquadramento do campo visual. É uma figura majestosa e
ofertado por um anjo, num gesto afectuoso e naturalmente imponente, de longa cabeleira, cuja indumentária
infantil. A figura do Menino encontra-se prejudicada pelos cromaticamente se equilibra com a de Maria, vestindo um
repintes grosseiros no rosto, assim como a restante manto ocre e vestido magenta, destacando-se, ainda, as
anatomia ficou desvirtuada, mas a cuidada transparência suas botas de cano alto armadas com ferros junto aos
aplicada no vestido revela técnica apurada do pintor. tornozelos, aproximando-se a uma figura nobre e não a um
A Virgem, cujo modelo segue fielmente o gravado simples carpinteiro. Está aureolado e com rosto de perfil,
mencionado, encontra-se sentada sobre um banco ou uma muito ao gosto das figuras masculinas desenhadas por
rocha (?). Traja um vestido amagentado rematado por uma António de Oliveira Bernardes, apresentando um traço
gola de tecido enrolado, de cor ocre, e cujo manto azulado correcto e bem delineado (olhos, nariz, boca e queijo),
encobre o assento. Expressa um olhar absorto e enlevado, denunciando grande domínio do seu autor no desenho da
com grande tranquilidade, quase alienada da cena e figura humana e na representação com tendência
mentalmente ausente da acção principal. Está aureolada naturalista. A figura de São José parece ter partido de um
com coroa de raios amarelos, iguais aos do seu Filho, desenho a tinta do pintor espanhol Vicente Salvador Gómez
aproximando-se, assim, na sua santidade. O desenho do (c.1637-c.1700), São José e Jesus Menino (1674), hoje na
rosto de Maria é cuidado marcando as linhas de contorno colecção The University of Michigan Museum of Art (The
dos olhos e lábios, seguindo um traço mais duro e University of Michigan Museum of Art, https://
convencional, até com alguma rigidez. exchange.umma.umich.edu/resources/21123/view).
São José, como já foi referido, é a figura com maior A figura do anjo, que acompanha São José pelo lado
desenvoltura desta composição, quer a nível gráfico, com direito, e ligeiramente atrás, foi representada como uma
bom traço construindo a figura e representando a criança, aliás como interpretou Eduardo Pereira (Pereira,
modelação dos panejamentos, quer a nível plástico, pela 1940, p. 768), trazendo a esta composição, uma vez mais,
interessante e expressiva exploração do claro-escuro e do uma cenografia centrada numa docilidade familiar. O anjo,
cromatismo que contribui para a leitura das volumetrias. alado, de traços e gestos infantis, caminha descalço junto a
A pincelada, livre, expressiva e bem construída, é São José, em direcção a Jesus, com o intuito de lhe oferecer
marcada em grandes planos e manchas, particularmente no um cacho de uvas, prefiguração da Paixão de Cristo,
tratamento das dobras e panejamento do manto, simbolizando a morte mas aludindo à Sagrada Eucaristia,
revelando, uma vez mais, a autoria de um grande mestre sacramento tão caro à Contra-Reforma (XXX sessão, 1551),
barroco, formado num círculo erudito. São José é uma forte que defendia perante os fiéis a transubstanciação, ou seja,
a crença da mudança da substância (vinho) no sangue de

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Fig. 4— São José e Jesus Menino, Vicente Salvador Gómez, 1674. Fig. 5— Repouso na fuga para o Egipto (pormenor), pintura de
Foto disponível em https://exchange.umma.umich.edu/ António de Oliveira Bernardes, c.1690-1708. Foto: RR.
resources/21123/view

Cristo quando consagrado, assim como o seu corpo estaria Retomando a figura do anjo, este traja apenas uma
na hóstia, tão bem expresso em passagens do Novo túnica branca com grande abertura sobre a sua perna
Testamento (Jo 6:53, 55 e 57). Numa representação que esquerda, deixando-a totalmente desnudada. De cabelos
prenuncia simbolicamente a morte, paradoxalmente emane louros e caracóis fartos, rosto cheio e maçãs rosadas, olhar
toda a cena alegria centrada em Cristo que sofrerá pelos meigo, ternurento e sorriso matreiro, segura as uvas na sua
homens para salvá-los (Cirlot, 1984, p. 686). Sendo assim, este mão esquerda, acompanhando a passada larga e o gesto de
Repouso na fuga para o Egipto, numa iconografia de São José. Ambos apontam com o dedo indicador da mão
Sagrada Família, é também uma imagem catequética e faz direita para a figura de Jesus que os recebe de braços
jus ao orago da capela: Jesus-Maria-José, aliás a população abertos. O gesto demonstrativo do anjo e de São José, aqui
também designa esta ermida de Sagrada Família. de carácter ilocucional, contribui para a orientação do olhar
Apesar de toda a composição deste Repouso na fuga do espectador (Saldanha, 1995, p.193). Convém recordar que
para o Egipto partir de várias gravuras, anotamos já que o gesto, nas suas multiplicidades significativas, foi abordado
São José não está representado como um carpinteiro, mas semanticamente pela arte barroca, com grande expressão
como figura nobre, e agora deve ser explicitado que há uma na pintura e escultura (Chastel, 2004). A indicação da
grande valoração na representação das uvas. Ocasião para presença de Jesus, pelo anjo e São José, evoca a figura do
questionar se nesta encomenda teria havido alguma presente e do futuro, o Salvador, que morrerá pelos
orientação específica, por parte dos comitentes, pois a homens. É um momento de certa teatralidade, mas
Calheta era então um grande centro de cultivo e produção simultaneamente de desvelo, meiguice e ternura.
vinícola, com latadas de vinhas em terras dos Berengueres, Refira-se que a figura deste anjo se aproxima à do
fundadores e proprietários desta capela. Seria também uma representado na Fuga para o Egipto de Aurelio Bussi
evocação à fertilidade das terras? Documentação coeva (italiano, c.1510-1540), hoje na Pinacoteca de Lovere
atesta a existência de maus anos agrícolas, desde finais do (Itália), como do anjo pintado por Alessandro Turchi
século XVII, devidos às secas sucessivas, que causavam (italiano, 1578-1649) numa obra do mesmo tema (c.1600-
infertilidade dos solos e fracas colheitas, queixas que 1649), executado mais do que uma vez pelo pintor
chegavam à coroa portuguesa por parte da governação (Nápoles, Museo e Gallerie Nazionali di Capodimonte;
madeirense, assim como da nobreza, clero e povo, tendo Madrid, Museu do Prado), embora aqui fosse privilegiado
por objectivo solicitar apoio monetário à Fazenda Real, um anjo figurando mais adulto. António de Oliveira
essencialmente para grandes obras, mas também para Bernardes deveria conhecer indirectamente estas obras,
obtenção de redução ou dispensa de cumprimentos das tendo-se apropriado da postura do anjo, da túnica branca,
pesadas pensões pias, que a nova economia não conseguia aberta, que permite ver a perna despida, a posição do dedo
competir com a anterior riqueza do “ouro branco” (açúcar). direito indicador, e ainda os cabelos louros cheios de

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Fig. 6— Repouso na fuga para o Egipto (pormenor), pintura de Fig. 7 — Igreja de Camarate (Lisboa, Loures). Pintura de António
António de Oliveira Bernardes, c.1690-1708. Foto: RR Machado Sapeiro, 1710 (pormenor). Foto: RR

caracóis. Também existem algumas semelhanças com um Fig. 8— A Virgem, o Menino, São José, São João Baptista Menino
anjo pintado num dos painéis da Igreja de Camarate e anjos, de António de Oliveira Bernardes, c.1690-1695. Igreja de
(Lisboa, Loures), de António Machado Sapeiro, obra datada Nossa Senhora dos Prazeres (Beja). Foto gentilmente cedida por
de 1710. No entanto, no Repouso na fuga para o Egipto, da Vitor Serrão.
Capela de Jesus-Maria-José, o anjo, muito próximo da
representação de uma criança, é mais folião, teatral e
familiar, respondendo a uma mensagem perfeitamente
contra-reformista, apelando aos sentimentos e sentidos.
Embora numa composição diferente e numa figura de anjo
mais juvenil, António de Oliveira Bernardes volta a
representar anjos de perna desnudada, sempre com
espírito decoroso, como na Circuncisão de Jesus (tecto da
Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, Beja, 1690), seguindo
uma obra de Michel Dorigny (francês, 1616-1665), de cerca
de 1641, e modelo de Simon Vouet (francês, 1590-1649), e
em Santa Ana ensinando a ler a Virgem, da mesma igreja
(Serrão, 2007).
As figuras da Virgem e do Menino seguem o
esquema e formalismo da tela A Virgem, o Menino, São
José, São João Baptista Menino e Anjos (c.1695-1698)
pintada na Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres (Beja), por
António de Oliveira Bernardes, que segundo Vitor Serrão é
de «estilo mais duro de desenho, com modelação mais
insegura, mostra intervenção distinta pois não tem, salvo a
Virgem sentada e o São José em contraluz, nem a leveza de
pincel nem a largueza compositiva da obra de Bernardes,
levando a crer que haja outra mão a colaborar» (Serrão,
2007, pp. 54, 58 e 62).
Nas pinturas de Beja e da Calheta, a Virgem e o
Menino seguem uma gravura a buril de Schelte A. Bolswert
(holandês, c.1586-1659), Sagrada Família com Santa Ana

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Fig. 9— Sagrada Família com Santa Ana. Gravura a buril de Fig. 10— Azulejos. Sagrada Família, de António de Oliveira
Schelte A. Bolswert, c.1586-1659). Bernardes, c.1690. Capela de N.ª Sr.ª do Monte (Quinta da
Ramada – Frielas). Foto: gentilmente cedida por Vitor Serrão.
(c.1586-1659), segundo Rubens (1577-1640) (Navarreto Salvador um bandeja com frutas, enquanto na composição
Prieto, 1998, p. 201; Sobral, 2004, p. 140). Na Calheta a figura do Repouso na Fuga para o Egipto da Capela de Jesus-Maria
de Maria é uma cópia rigorosa desta estampa, sem variação -José é um anjo, que ao lado de São José e olhando-o
interpretativa: cabeça, modelo do penteado, aureola afectuosamente, quem segura entre os dedos indicador e
raiada, indumentária e mão que segura no pé do Menino polegar um cacho de uvas, representado com rigor
que olha de frente o anjo e São José, diferindo apenas da naturalista, valorizado pela modelação e tratamento
gravura original, em que Jesus olha para sua Mãe, lumínicos.
acariciando o seu rosto com uma mão e outra colocada Na parte superior da pintura foram representados
sobre o seu seio, ficando, nesta pintura, a figura do Menino uns anjos esvoaçantes, gorduchos e desnudados, bem ao
mais rígida e menos graciosa que a desenhada na estampa gosto barroco, ligeiramente envoltos num pano de cor
original. magenta idêntica ao vestido da Virgem. Do céu irrompe
A mesma gravura serviu também de referência a uma pomba branca simbolizando o Espírito Santo,
outra obra de António de Oliveira Bernardes, agora na responsável pela criação e protecção da Sagrada Família.
modalidade de azulejaria, uma Sagrada Família (c.1698) António de Oliveira Bernardes foi comedido na
pertencente à antiga capela de Nossa Senhora do Monte cenografia espacial desta pintura, ao contrário da maioria
(Quinta da Ramada - Frielas), onde expressa forte influência das suas obras, tendo economizado na representação de
holandesa, «através do desenho delicado e cuidado de elementos paisagísticos e arquitectónicos. Apercebe-se que
todos os pormenores» (Meco, 1989, p. 79), que em 1918 o a paisagem é terrena, embora não seja suficientemente
arquitecto Raul Lino (1879-1974) transferiu para a Casa de clara a identificação do espaço físico onde decorre a cena,
Santa Maria (Cascais), e que em 1707 tinha já merecido mas a presença de um animal (burro?) e das flores brancas
descrição e elogio de frei Agostinho de Santa Maria, e vermelhas, esboçadas a pincel e aplicadas directamente
registados no seu Santuário Mariano: «Debaixo dos quadros sobre a tela, evidenciam um espaço rural e humilde, que
das ilhargas, que descanção sobre as vergas das portas, & contrasta com a destacada figura de São José, nobre e
das janellas das tribunas se vem os campos de azulejo, com majestoso.
hum pastoril tão galante, & tão perfeito que o julguei pelo Pela sua antiguidade e pelo estado de conservação
melhor que havia vindo de Olanda, mas dezenganaram-me, da capela, sujeita a humidades, esta tela apresenta lacunas
que fora obrado em Lisboa por Antonio de Oliveira» (Serrão, matéricas e cromáticas, e ao longo dos tempos sofreu
2007, p. 68; Simões, 1979, p. 185). Nesta versão António de algumas intervenções, pouco abonatórias para a sua
Oliveira Bernardes não se limitou a utilizar directamente a conservação e legibilidade. Observam-se repintes grosseiros
imagem gravada, mas explorou as suas potencialidades que dificultam uma leitura mais pormenorizada a nível do
informativas, pois no painel de azulejos o cacho de uvas desenho, do tratamento do claro-escuro e dos
encontra-se na mão esquerda de São José que irrompe por cromatismos. É o caso particular do Menino, cuja repintura
detrás da Virgem e do Menino e dois anjos oferecem ao no rosto e no corpo esconde parte dos traços originais,

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desvirtuando a pintura primitiva, e do anjo, que desce em prática de pintura a óleo. Segundo Vitor Serrão, António de
direcção à Sagrada Família, canto superior esquerdo, Oliveira Bernardes, qualificado pintor de “fa presto”,
danificado nos traços do seu desenho anatómico. continuou a prática da pintura a óleo mesmo depois das
Apesar destas vicissitudes, felizmente que maioria suas grandes campanhas de azulejos, porque ao «contrário
dos repintes foi dada nas zonas de maior abertura lumínica, do que se pensava, Bernardes trabalhou sempre em
como testa e maçãs dos rostos, e nos panejamentos, sendo, simultâneo o azulejo e a pintura de cavalete, não trocando
por isso, facilmente observáveis e corrigíveis. Não obstante esta por aquele, e pintando ininterruptamente a óleo desde
a existência deste repintes, que danificaram a sua oficina na Rua das Casas Caídas» (Serrão, 2003, p. 72) e
substancialmente a pintura original, e das lacunas de tintas «foi, sempre pintor de óleo» (Serrão, 2001, p. 92). Este
e massas, particularmente na parte superior central do historiador revela que António de Oliveira Bernardes apesar
quadro, é possível observar-se uma pintura ainda de de idade já avançada e muito debilitado continuou a
qualidades naturalistas, de pinceladas soltas e expressivas executar pintura a óleo para o mercado brasileiro (Serrão,
que valorizam o tratamento pictórico, embora já afastada 2000, pp. 268-269).
da paleta tenebrista e penumbrista da estética barroca Assim, a pintura Repouso na fuga para o Egipto,
então vigente, com desenho duro nas figuras da Virgem e encomenda da nobreza madeirense (família Berenguer),
do Menino, mas correcto e seguro nas figuras de São José e mas para uma modesta ermida rural, em território
do anjo, como já foi sublinhado. ultraperiférico, torna-se em mais um documento “vivo” e
Ressalve-se que a pintura Repouso na fuga para o contributivo para a compreensão da produção a óleo de
Egipto apresenta uma faixa, vincada e dobrada na tela, com António de Oliveira Bernardes ocorrida na transição dos
cerca de 20 cm, na parte inferior, pintada de negro e sem finais do século XVII para o século XVIII. Agora
qualquer representação de figuras ou elementos, podendo perfeitamente identificada a sua autoria, seria de todo
sugerir que a pintura seja oriunda de outro local ou altar, no conveniente a sua conservação e restauro, até porque as
entanto, este pequeno desacerto de medidas era também telas de Beja, especialmente a Sagrada Família no Egipto e A
comum numa tela importada, sendo o excedentário do Virgem, o Menino, São José, São João Baptista e anjos
suporte destinado ao esticamento, armação e adaptação ao podem servir de testemunho visual para a recuperação dos
espaço do retábulo de talha, que era executado localmente. cromatismos perdidos da tela da Calheta.
O Repouso na fuga para o Egipto da Capela de Jesus- Eduardo Pereira identificou o Repouso na fuga para
Maria-José, datado entre 1690/1695 e 1708, segue os o Egipto como sendo uma Sagrada Família (Pereira, 1940, p.
figurinos recorrentes da obra de António de Oliveira 768), temática que se estende a todos os parentes próximos
Bernardes, especialmente os utilizados na campanha da de Jesus ou à parentela de Maria. A mais tradicional
Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres (Beja – 1690-1698). representação é composta por Jesus, Maria e São José,
António de Oliveira Bernardes, pintor sobeja e como o grupo representado na Capela de Jesus-Maria-José,
longamente conhecido e estudado como o melhor pintor de mas podem surgir outros grupos representando Santa Ana,
azulejos do seu tempo, integrou e comandou a geração do Maria e Jesus, tema popularizado a partir do século XV e XVI
Ciclo dos Mestres, correspondendo ao período áureo da representando três gerações: a Virgem, o Menino e São
produção azulejar portuguesa. Foi profícua a sua produção João Baptista; por vezes é acrescentado à Sagrada Família
artística, entre finais do reinado de D. Pedro II, “o as figuras de São João Baptista e Santa Isabel e noutras a
Pacífico” (1683-1706) e mais de duas décadas do reinado de figura de Santa Emereciana, mãe de Santa Ana, ficando a
D. João V, “o Magnânimo” (1706-1750), mas foi Sagrada Família com quatro elementos. Na verdade, a
«injustamente esquecido como pintor de óleo» (Serrão, pintura da Calheta representa a Sagrada Família no repouso
2007, p. 41), cuja actividade nesta modalidade só durante a fuga para o Egipto. Tradicionalmente a temática
recentemente mereceu a devida atenção (Sobral, 2004; da Sagrada Família centrava-se num grupo restrito de três
Serrão, 2007). A sua prática de pintor a óleo deve situar-se a figuras: Jesus, Maria e São José, formando a Trindade
partir de 7 de Agosto 1684, quando registou a assento na Terrestre (Trinitas Terrestris), como é por vezes designada.
Irmandade de São Lucas (Lisboa), praticamente restrita a As três personagens estão ligadas entre si, mas cada uma
pintores desta modalidade depois de sujeitos a rigoroso tem vida própria e essência (o que difere da Trindade
exame, e na qual exercerá o cargo de juiz em 1694. A sua Celeste) não criando qualquer tipo de obstáculo à sua
grande empreitada na Capela de Nossa Senhora dos representação individual enquanto figuras humanas. A
Prazeres (Beja), os quadros do Mosteiro dos Jerónimos Sagrada Família, embora representada em épocas
(Lisboa) e as pinturas existentes na Ilha da Madeira formam anteriores, é um tema basicamente contra-reformista,
um núcleo de estudo da pintura de António Oliveira incentivado e enaltecido pelos jesuítas, designada até por
Bernardes no contexto da grande produção nacional. Já Trindade Jesuíta, cujas iniciais J.M.J. figuram em brasões
Santos Simões tinha apresentado periodização para a jesuíticos, sendo um reflexo do modelo da Trindade
produção artística deste pintor-azulejador (Simões, 2010, p. Celestial.
33): 1.º - prática de pintura a óleo ou de têmpera até 1700; A fuga para o Egipto é descrita por São Mateus (Mt,
2.º - iniciação à pintura de azulejo, entre 1705 (?) e 1715 2, 14-15) como justificação de uma profecia: «José levantou-
(?), com Valentim da Costa e Manuel Borges; 3.º – se de noite, tomou o Menino e Sua Mãe e partiu para o
transformação da sua oficina numa “escola” com colabores Egipto. Lá ficou até à morte de Herodes, para se cumprir o
e aprendizes, entre 1716 e 1726, que se transformará numa que o Senhor tinha dito por meio do Profeta: “Do Egipto
«máquina de produção decorativa bem montada». Estudos chamei o Meu Filho”» (Storniolo, Balacin, 1993, p. 1317). São
mais recentes, como os de José Meco, Vitor Serrão e Moura José foi avisado em sonho para fugir para o Egipto,
Sobral, prolongam a cronologia no que concerne à sua colocando a salvo Jesus e Maria. Mas o episódio aqui

15
entalhador afirmou conhecer bem o pai de D. Antónia
Josefa Berenguer Castelo Branco, o morgado João de
Andrade Berenguer Neto, morador no Lombo do Doutor
(Calheta), a quem está ligada a fundação e administração
desta capela, para quem tinha feito «certa obra». Há um
imaginário documentado desde 1674, João Rodrigues, com
ligação e parceria aos imaginários Manuel Pereira e Manuel
Pereira de Almeida, mas que exigem mais estudos
documentais a fim de serem verificadas outras ligações e
obras executadas na Ilha da Madeira (Rodrigues, 2010, pp. 229
-337; Rodrigues, 2012, pp.271-277).
Mas como chega a esta modesta Capela de Jesus-
Maria-José uma pintura de uma boa oficina nacional, então
dos circuitos da corte portuguesa? Refira-se que na Calheta
estão mais duas interessantes pinturas seiscentistas,
também de oficinas nacionais de conceituados pintores
portugueses. Uma “Imaculada Conceição com litanias” de
Martim Conrado, de meados do século XVII, na Matriz da
Calheta, e “São Francisco Xavier e o milagre do caranguejo”
de Bento Coelho da Silveira, de cerca de 1690-1695, na
Capela de São Francisco Xavier (Rodrigues, 2012). Fica, assim,
a Calheta num itinerário de estudo da produção da pintura
nacional da época barroca, como já tinha acontecido para
as obras flamengas e portuguesas ao tempo da produção
açucareira (igrejas do Espírito Santo e do Arco e capelas dos
Reis Magos e de Nossa Senhora do Loreto). Por isso, não
deve ter sido mero acaso a encomenda de uma pintura para
Fig. 11— Retábulo de talha dourada e policromada, atribuída a o retábulo-mor da Matriz da Calheta ao jovem madeirense
João Rodrigues de Almeida, c.1690-1708. Foto: RR Domingos Nunes Teixeira (act.1606-1615/1617), pelo valor
de cento e quarenta mil réis (ABM, CMC, Lº. 1 / Único, fls. 2-3),
representado é um dos momentos de repouso, paragem, de ficando a obra de talha entregue ao imaginário Álvaro Luís,
uma longa caminhada por caminhos ásperos e perigosos natural de Sintra e muito activo na Ilha da Madeira.
antes da chegada ao Egipto, como atestam os textos Domingos Nunes Teixeira era pintor de óleo, com contrato
bíblicos. de aprendizagem firmado com o famoso mestre flamengo
A pintura Repouso na fuga para o Egipto está no estabelecido em Sevilha Juan de Roelas (1570-1626), em
centro de um retábulo de talha dourada e policromada, cuja oficina esteve estagiando em 1606 (Valle, 2008, p. 217).
identificador da passagem do estilo Proto-Barroco (1619- Sobre o pintor António de Oliveira Bernardes refira-
1668) para o Barroco Pleno (1668-1713), correspondendo se que nasceu em Beja e foi baptizado a 10 de Dezembro de
ao período também designado de Estilo Nacional (c.1675- 1662 na Igreja de Santa Maria da Feira. Faleceu em 1732, a
1725) (Lameira, Serrão, 2003, pp. 63-96; Lameira, Serrão, 2004, 4 de Dezembro, na Rua das Casas Caídas, freguesia de Santa
pp. 251-284; Lameira, Serrão, 2005). Apresenta planta plana, Catarina do Monte Sinai (Bairro Alto, Lisboa), onde se tinha
embora os dois pares de colunas torsas estejam já instalado em 1696. Considerado, indubitavelmente, um
avançados, criando a percepção de profundidade. Os fustes, grande pintor e azulejista, a sua obra é uma referência
assentes em consolas em forma de grande folha de acanto relevante da pintura azulejar da época pedrina-joanina. Da
relevada com nervuras bem marcadas, são ricamente sua produção de pintura a óleo anotam-se as pinturas de
decorados com pâmpanos (ramos de videira com hastes, cavalete e os tectos perspectivados onde ensaiou o
parras e uvas) intercalados por aves e rematados em rasgamento barroco do efeito de tridimensionalidade, em
entablamento com ingénua cabeça de querubim sobre o cujas obras mostrou mestria, versatilidade e desenvoltura
ábaco. O ático é composto por dois arcos de volta perfeita, nas práticas plásticas (cenografias, modelações,
sobrepostos, com arquivoltas concêntricas, prolongando-se transparências, matizes cromáticas), primando por uma
sobre estas os elementos compositivos dos fustes e que são técnica virtuosa e exímia ao serviço das propagandas e
interrompidos, em três momentos, por grandes folhas de ideologias contra-reformistas.
acanto. No centro do banco ou predela estão quatro António de Oliveira Bernardes era filho de Pedro
elementos de composição vegetalista. Este retábulo, Figueira, natural de Moura (Beja), pintor-decorador, de
infelizmente muito repintado, segue os modelos dos óleo, têmpera e dourado, de figura, fresco e brutesco,
imaginários madeirenses Manuel Pereira e Manuel Pereira activo entre 1679 e 1693, e de Isabel Rodrigues. Casou, em
de Almeida, activos em 1624-1679 e 1677-1720/1730, Lisboa, com Francisca Xavier de Araújo, em 1694, filha de
respectivamente, e poderá ter saído da oficina do mestre Francisco Ferreira de Araújo, pintor régio, especialista de
entalhador João Rodrigues de Almeida que faleceu entre têmpera e brutesco, e irmã de José Ferreira de Araújo,
1740 e 1741, conforme registo no ano económico da também pintor. António de Oliveira Bernardes já tinha
Misericórdia do Funchal, tendo já cerca de noventa anos. chegado à côrte de Lisboa no ano de 1683, data que
Num processo de habilitação do Santo Ofício, este conheceu vários pintores-decoradores, tendo ainda

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contactado com as obras tenebristas de Marcos da Cruz Cabinet et Bains de la Reyne Regente, au Palais Royal, par
(1610-1683), falecido nesse mesmo ano. Assim, a sua Simon Vouet, Peintre du Roy, et gravees par Michel
aprendizagem artística, junto do círculo de pintores Dorigny, Paris, MDCXLVII”, que passou ao seu discípulo
lisboetas, relativamente à linguagem dos brutescos, iniciada André Gonçalves (1685-1762). Por isso, não se estranha que
pelos anos de 1683, revela uma produção artística muita obra de António de Oliveira Bernardes fosse
expressiva, de desenho cuidado e requintado, mais decalcada de gravados, ora directamente, ora com
elaborado que a arte azulejar de Gabriel del Barco (1649- “colagens” de diversas estampas ou com variações
1703), espanhol radicado em Lisboa, cunhado de Marcos da interpretativas, destacando-se as de Michel Dorigny (1616-
Cruz, e de quem possivelmente fora discípulo, tendo 1665), Schelte A. Bolswert (1586-1659), Adriaen Collaert
recebido a lição de um cromatismo mais luminoso. (1560-1618), Philippe Galle (1560-1618), Henri Picquot
A pintura de António de Oliveira Bernardes é um (activo em 1640), Jeronimo Wierix (1553-1619), Hendrick
marco na transição do século XVII para o século XVIII e nela Goltzius (1558-1617), Aegidius Sadeler II (1570-1629), etc.,
se observam influências disseminadas de Paris, centro de mas sempre com um cuidado decoroso compatível com as
referência dos jovens pintores, visíveis nas sistematizações exigências da sociedade e ideologias portuguesas. O uso de
entre o gosto clássico e barroco ítalo-francês, advindo da gravados / estampas foi prática comum nas oficinas dos
côrte de D. Maria Francisca de Sabóia (1646-1683), rainha pintores nacionais de Seiscentos e Setecentos. Situação que
consorte de Portugal, filha do duque de Nemours e se verifica explicitamente na tela da Capela de Jesus-Maria-
protegida do rei Luís XIV (França), mulher de D. Afonso VI José, Repouso na fuga para o Egipto.
(1643-1683), cujo matrimónio se realizou em 1666, anulado Pelas qualidades plásticas, composicionais e
em 1668 por não consumação, ano que contrairia cenográficas, quer pelas capacidades de dominar os
casamento com D. Pedro II (1648-1706), seu cunhado, formalismos e volumetrias através de um desenho e
regente desde 1667 a 1683 devido à instabilidade mental mancha livres e expressivos, «pinceladas rápidas e
de D. Afonso VI, reinando depois até 1706. prolongadas em largas manchas de cor» (Franco, 1992, p.
Da França Seiscentista, a obra de António de Oliveira 215) e acentuado colorido, quer pelo sentido totalizante e
Bernardes evoca modelos de Charles le Brun (1619-1690), global explorado na sua obra, profundamente barroca,
Laurent de la Hyre (1606-1656), Simon Vouet (1590-1649), António de Oliveira Bernardes torna-se numa figura
Nicolas Poussin (1594-1665), Nicolas Chaperon (1612-1656), incontornável da pintura portuguesa pertencendo «á
Michel Dorigny (1616-1665), Pierre Mignard (1612-1695), plêiade dos melhores círculos cortesãos da era
Philippe de Champaigne (1602-1674), entre outros, através pedrista» (Serrão, 1996-1997, p. 259), que gozou da
dos quais introduz novos princípios estéticos na arte reconquista da liberalidade da pintura, através de um
barroca portuguesa, bem manifestos, por exemplo, nas acórdão real de D. Pedro II (1689) em que pintores e
telas e tecto da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres (Beja), escultores ficaram libertos dos compromissos das bandeiras
recebendo também a lição do claro-escuro da pintura dos oficiais mecânicos.
madrilena. Outras referências são observáveis na sua vasta Justifica-se um olhar atento à Capela de Jesus-Maria-
obra (cavalete, tectos e azulejo), quer directa ou José, não só pela pintura de António de Oliveira Bernardes e
indirectamente, muitas vezes com variações interpretativas pelo interessante retábulo de talha dourada, já indicados,
e criativas, sempre de obras de grandes mestres, como os já mas também pelos azulejos do século XVII, de oficina
referidos, mas ainda de Eustache Le Sueur (1616-1655), nacional, que forram as paredes da ermida. Estes azulejos
François Perrier (1590-1650), Jean Jouvenet (1644-1717) e policromos (branco, azul e amarelo) estão datados de 1678-
Rubens (1577-1640), especialmente através de gravados de 1688 e apresentam o típico padrão de “camélia”, muito raro
Lucas Vorsterman II (1624-1666). De referir que António de na Madeira, existindo apenas outro núcleo na sacristia da
Oliveira Bernardes era possuidor de um álbum de Igreja Matriz de Machico. A cercadura é de acantos e
estampas, “Livre de Diverses Grotesques Peintes dans le pérolas. A colocação ou recolocação destes azulejos denota

Fig. 12— Painel de azulejos de “camélia”, oficina nacional, século Fig. 13— Azulejos de “camélia”, oficina nacional, século XVII, e
XVII. Foto: RR restos de azulejos de técnica estampilhada, do século XIX. Foto: RR

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incorreção especialmente porque não ficou delineada a deve a toponímia Lombo do Doutor, também designado
cantoneira. Houve aproveitamento de alguns azulejos azuis documentalmente por Lombo dos Berenguéis. Era fidalgo
e brancos, com elementos vegetalistas, da técnica da casa de D. Manuel I e cavaleiro do hábito de Cristo,
estampilhada, já do século XIX, colocados natural do reino de Aragão, Valença ou Catalunha, sendo o
desordenadamente sobre o portal, testemunho de outra primeiro deste apelido que veio para a Madeira, entre 1480
campanha de obras. No seu todo, esta capela forma um -1495. Possuidor de terras de sesmaria, fazendas de canas e
conjunto digno de “horror vacui” (horror ao vazio) e “bel engenho, foi dinâmico nos negócios do açúcar – o ouro
composto”, bem ao gosto do ideário estético barroco. branco. Teve brasão de armas passado por D. João III, a 12
Nesta capela encontra-se uma pequena pintura a de novembro de 1524.
óleo sobre tela, do século XVIII e de oficina erudita O pai de João de Andrade Berenguer Neto, José de
portuguesa, de formação romana, possivelmente próxima à França Berenguer de Andrade, pentaneto paterno do Dr.
oficina de António de Oliveira Bernardes. Representa “Santa Pedro Berenguer de Lumilhana, afirma no seu testamento,
Bárbara”, mártir do século IV, filha de um nobre romano da aprovado a 29 de março de 1716, com codicilo aberto a 1
Nicomédia (Turquia), com os seus atributos: torre, onde de fevereiro de 1720, que depois do falecimento de sua
esteve aprisionada; palma, do martírio; cálice, símbolo da mulher tinha vindo morar para a Calheta, onde, para além
proteção e salvação. A santa, com resplendor prateado, das suas propriedades, fora recebedor dos dízimos dos
apresenta delicado desenho e vestes esvoaçantes com cabritos em 1680 e 1682. Com cerca de 75 anos, homem
modelação desenvolta, ao gosto barroco, com ressalva para religioso, habituado a frequentar a igreja do Convento das
o corpo contorcido de Cristo crucificado, em segundo plano, Mercês, do qual era padroeiro e onde tinha sepultura, e
veiculando o conceito de pathos (paixão, dor). com certeza as igrejas de São Pedro, Catedral e Colégio, tão
Mas quem foram os fundadores da Capela de Jesus- próximas das suas casas de morada no Funchal, ao se retirar
Maria-José? para o Lombo do Doutor mandasse edificar, reedificar ou
Serve o ano de 1708, gravado numa cartela sobre a beneficiar uma capela de sua devoção junto ao seu solar.
empena da ermida, e o nome do morgado João de Andrade Também o capitão Gaspar Berenguer de Andrade, que
Berenguer Neto para datar e atribuir fundação a esta faleceu em 1691, vinha com frequência a esta vila e lugar.
capela, mas a leitura da documentação induz a outras Mas nenhum refere especificamente a Capela de Jesus-
interpretações (Rodrigues, 2012, pp. 152-277; Rodrigues, 2018). Maria-José.
Segundo diversa bibliografia, a Capela de Jesus- A madre soror Isabel Francisca de São José, professa
Maria-José foi fundada pelo morgado João de Andrade no Convento de Santa Clara, filha de José de França
Berenguer Neto e sua mulher, D. Tomásia de França e Berenguer e irmã de João de Andrade Berenguer Neto,
Andrade, casados na Calheta em 1695 e moradores no nascida a 2 de abril de 1679, era devota de Jesus, Maria e
Lombo do Doutor. D. Tomásia morreu em 1713. João de do glorioso São José a quem chamava de pai. Seria comum
Andrade Berenguer Neto, falecido a 7 de outubro de 1716, nesta família tão fervorosa devoção à Sagrada Família,
era filho de José de França Berenguer de Andrade e de D. orago desta capela?
Maria de Castelo Branco de Andrade e Atouguia, neto Também neste sítio, D. Britis de Lira, sogra de João
paterno do capitão Gaspar Berenguer de Andrade, de Andrade Berenguer Neto, tinha uma quinta com árvores
fundador do Convento das Mercês (Funchal), a cujo de fruto, casas sobradas e uma ermida, que deixou à filha.
padroado andavam anexas as terras do Lombo do Doutor. Seria esta capela?
Mas estes ditos instituidores não referem esta capela nos Certo é que em 1708 José de França Berenguer e
seus testamentos, apenas estão documentadas quitações João de Andrade Berenguer Neto, pai e filho, tinham casa
de missas cumpridas nesta ermida, por ordem de João de assente no Lombo do Doutor, possivelmente o solar anexo
Andrade Berenguer Neto e por um dos seus testamenteiros, a esta capela. Na parede do lado da epístola ainda existe
o seu irmão Agostinho César Berenguer. A data – 1708Ã – uma janela através da qual a família Berenguer assistia à
gravada numa cartela, com remates em Cs e Ss, executada missa da sua própria casa senhorial, em cujo portal, de
em cantaria cinzenta, colocada na empena da capela, cantaria e arco de volta perfeita, se vê na imposta a
corresponderá, assim, a uma campanha de obras, inscrição 1767, cujo acesso exterior ainda se faz por quintal
especialmente de beneficiação, de uma ermida mais antiga, de pedra escassilhada.
atendendo à existência de alguns elementos do século XVII: Embora o padre Fernando Augusto da Silva escreva
à entrada, no lado esquerdo, uma cruz em pedra, próxima à que o morgado João de Andrade Berenguer Neto e sua
configuração de cruz-alfa; no interior, a porta de madeira, mulher, D. Tomásia de França e Andrade, dotaram a Capela
que dá acesso à sacristia, embora muito empastada de tinta de Jesus-Maria-José «por escritura pública de 30 de
que a descaracteriza; junto ao altar-mor, lado da Epístola, Setembro daquele ano [1708]» (1940, p. 189), não repete
um nicho de duplo arco, ou tratar-se-á de um epifenómeno esta informação nas edições seguintes do Elucidário
arquitetónico, onde eram colocadas as alfaias; e os azulejos Madeirense ou outra bibliografia de sua autoria e deixa
de padrão polícromo, de oficina nacional. mesmo de referir esta data concreta.
Lembre-se que nesta capela foi encontrada, em Na verdade, a Capela de Jesus-Maria-José é uma
1998, uma imagem em madeira, “Santa Catrina”, do século típica ermida seiscentista com obras de beneficiação
XVI e de oficina flamenga, hoje no Museu de Arte Sacra do realizadas no século XVIII (Rodrigues, 2012, pp. 252-277).
Funchal (MASF 459), possivelmente proveniente de uma A Capela de Jesus-Maria-José está classificada de
ermida desta invocação, que já estava demolida em 1873, interesse público desde 1977 (Presidência do Governo
cuja fundação se deve a Rodrigo Annes, em 1505, sogro de Regional, Resolução 3/2005/M de 29 de Março aprovada
Pedro Berenguer de Lumilhana, físico ou médico, a quem se em Conselho do Governo Regional, Resolução nº. 142/2005,

18
de 17 de Fevereiro, RAM, Jornal Oficial, Série nº. 28, 29 de CLODE, Luiz Peter, 1952. Registo Genealógico das famílias que
Março de 2005 – 4.1/g.). Nesta mesma resolução (4.3/g.), a passaram à Madeira, Funchal, Tip. Comercial.
casa senhorial anexa à capela integrava uma lista de CORREIA, Vergílio, 1915. «Azulejos datados. A capela da Peninha»,
in O Arqueólogo Português, Vol. XX, Lisboa, pp. 201-202; IDEM,
imóveis propostos para futuras classificações. No Jornal
1917. «A Família Oliveira Bernardes. Uma grande escola de
Oficial da RAM, de 29 de Março de 2005, Série 28, p. 4-S,
pintura de azulejos (1ª. metade do século XVIII)», in A Águia,
publica-se que é de valor concelhio a «Capela de Jesus 2ª. Série, Vol. XII, nos. 71-72, Porto, pp. 198-202 e 205-208;
Maria José ou Capela do Cristo Rei» como também a «Casa IDEM, 1918. «Azulejadores e Pintores de Azulejos, de Lisboa»,
Senhorial anexa à Capela de Jesus Maria José». in A Águia, nos. 77-78, pp. 166-198.
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ABM, Calheta, Óbitos:1694-1727, L.º 543, fls. 104-104v.º pintura, Lisboa, SEC/IPPAR/Mosteiro dos Jerónimos, pp. 206-
ABM, Câmara Municipal da Calheta, Lº. 1 / Único, 1760-1770, Lº. 217 (catálogo).
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Cx. 170, Mç. 67- N.º 5096 (Cota Actual Cx. 89). policopiado).
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Publicações Alfa.
Tomos que comprehendem as letras d´o alphabeto desde o - A
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– até o – V -, e no ultimo se lançarão as adições que accrescem
XVII y sus fuentes grabadas, Madrid, Fundacíon de apoyo a la
a cada um dos Títulos. Anno: 1700. Mandou-o copiar em 1844
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20
A Pia Batismal da Matriz da Ribeira Brava e a
Unificação Religiosa do Reino no Tempo de D.
Manuel I *
Higino Faria
Observador de vida selvagem e
investigador de história da arte e património.

Aos meus pais...

Resumo
Esta pia batismal está entre as obras de arte da região com maior fortuna histórico-artística. Para esta fortuna
contribui o facto desta singular peça de aparato remontar ao final do primeiro século de história da ilha, servindo, por
isso, de imagem-objeto de um tempo cujas referências mentais, culturais, sociais e políticas se encontram sistematizadas
na historiografia ou, ainda, encriptadas num universo, vasto, de documentos, fontes e obras de diversos séculos.
Ornamento icónico, decoração, marginalia, simbólica manuelina, etc., tantas designações podem definir o corpus de
motivos decorativos cinzelados nesta pia. Dispondo de terminologia operativa e recorrendo a uma análise multidisciplinar,
o objetivo deste ensaio é estudar a iconografia desta peça à luz das suas funções rituais e simbólicas e fazer a sua
iconologia. Procuramos captar a retórica que esta emana no contexto da história local e nacional no período em questão.

Palavras-chave
pia batismal, ornamento icónico, pia manuelina, marginalia, D. Manuel, batismo, conversão, islamismo, judaísmo.

Considerações histórico-artísticas iniciais

Nos primeiros anos do século XVI o rei D. Manuel, na


qualidade de primeiro rei com o governo e administração
da Ordem dos Cavaleiros de Tomar, ordenou o pagamento
de uma pia feita em basalto da ilha à chancelaria da Ordem
de Cristo. Se a data de doação parece ser 1504, segundo a
epígrafe cinzelada no seu rebordo, a data precisa de
execução é incerta. Rui Carita considera que foi feita em
1511, referindo que essa data se encontra gravada na
epígrafe (Carita, 2016; Faria, 2016). Para Fernando Batista
Pereira a construção da nova igreja manuelina “deve ter
decorrido entre 1510 e 1520 ainda em plena época
manuelina, em consonância com a oferta da pia batismal
pelo rei D. Manuel ou com a encomenda, na flandres, da
célebre imagem policromada e dourada da Virgem com o
Menino” (Pereira, 1997, p. 39).
O corpus de ornamento icónico pétreo da igreja
matriz da Ribeira Brava é o mais significativo e interessante Fig. 1— Pia Batismal, c. de 1504 (?), basalto, © Roberto Pereira,
_________________________ Ribeira Brava.

* Este texto está escrito conforme o Acordo Ortográfico de 1990.

21
da região depois do da Sé do Funchal, compreendendo três
conjuntos: o púlpito, a pia batismal e os capitéis dos arcos
góticos das capelas laterais. Referenciado, por alto, em
obras e artigos de caráter geral (Sarmento, 1953, p. 161;
Carita, 1996, pp. 56-57; Carita, 2016; Dias, 2008, p. 61), só
recentemente lhe foram dedicados estudos específicos
(Lizardo, 2010; Faria, 2012). Apesar destes últimos textos
terem aprofundado várias questões formais, técnicas e
iconográficas, ficaram por clarificar muitos aspetos sobre as
formas e sobre os temas do ornamento icónico de um dos
mais ricos espaços artísticos do período manuelino em
território insular.
Quanto à pia, é de salientar o alerta de João Lizardo
para a necessidade de uma “arqueologia da cor”, em que
defende quer a importância dos resultados das análises
laboratoriais aos materiais usados na composição dos
pigmentos (três: azul; ocre/dourado esbranquiçado;
vermelho) da pia, quer um aspeto pouco considerado que
este “detalhe superficial” denuncia: o revestimento
pictórico, possivelmente integral, dos templos e respetivo
mobiliário litúrgico portátil ou de aparato, segundo
determinada paleta, de maior ou menor complexidade
cromática, sendo certo que, tal como outros monumentos
medievais e tardo-medievais, tanto a igreja da Ribeira Brava
como a Sé do Funchal apresentaram, no passado,
policromia interior, havendo vestígios de pintura original
em elementos constituintes da arquitetura de um e outro
templo, em especial no púlpito da Ribeira Brava e nos
capitéis da Sé (Faria, 2013, Anexo I, pp. 13,172, 180, 238).
Apesar disto e de alguma historiografia ainda olhar
para esta peça com o espanto que ela reclama, os seus
segredos continuam por ser revelados à curiosidade de um
tempo pleno de potencialidades ao nível dos estudos da
imagem, como é o tempo da era digital, em que a cada ano
que passa novos repositórios iconográficos vão sendo
criados, apesar dos nossos horizontes culturais e imagéticos
não se enquadrarem com os de um passado tão longínquo.
Mas o desconhecimento generalizado acerca desta obra
maior da história da arte regional, executada há cerca de
quinhentos ou mais anos, é extensível ao ornamento como
ramo de estudos, visto como arte menor porque subsidiária
da arquitetura ou da pintura, quer no panorama
historiográfico da região, quer, ainda, do país.
Contudo, neste novo milénio, o ornamento icónico
manuelino, enquanto marginalia ou simbólica oficial, tem
Fig. 2 - Pia Batismal, c. de 1504 (?), basalto, © Higino Faria, sido alvo de interesse da historiografia portuguesa, na
Ribeira Brava. senda dos estudos inaugurais de, Sylvie Deswarte, Les
enluminures de la Leitura Nova (1504-1552): étude sur la
Fig. 3 - Epígrafe, pia batismal, c. de 1504 (?), © (desenho) Higino
Faria, Ribeira Brava. culture artistique au Portugal au temps de l'Humanisme
(1977), Ana Maria Alves, Iconologia do Poder Real no
Fig. 4 - Epígrafe, pia batismal, c. de 1504 (?), © (desenho) Higino
Faria, Ribeira Brava.
Período Manuelino ˗ À Procura de uma Linguagem Perdida
(1985) e de Paulo Pereira, A Obra Silvestre a Esfera do Rei
22
(1990), acompanhando a historiografia estrangeira (Antunes,
2016, pp. 80 e 81).
Antes um assunto considerado essencial, porém
controverso e mal encarado porque nunca alçado para além
da mera abordagem descritiva corrente nos estudos de
caráter geral dedicados mais à arquitetura, a ornamentação
manuelina, dada como elemento definidor da própria
originalidade de um suposto estilo, apesar de tantos
equívocos; tornou-se, por fim, um tema debatido, analisado
e objeto de reflexão teórica para monografias, dissertações
de mestrado e teses de doutoramento (Antunes, 2010,
Antunes, 2016; Custódio, 2010; Braga, 1997; Faria, 2013; Leite,
2005, etc.). Inventários e abordagens comparativas e
pluridirecionais no âmbito, lato, da decoração: ourivesaria,
iluminura, pintura, marcenaria, tapeçaria, pedraria, tem
dado, também, contributos extremamente enriquecedores
para a história e para a iconologia da arte portuguesa entre
a Idade Média e o Renascimento.

Estudo formal e iconográfico

Revisitando o último estudo levado a cabo em 2012,


gostaria de reformular totalmente o que ficou dito sobre a
pia, o núcleo de escultura ornamental desta igreja cuja
primeira leitura formal e iconográfica ficou mais aquém
(Faria, 2016) daquela que agora apresentamos com a maior
profundidade possível e rigor.
Ao nível morfológico, um dos aspetos mais
importantes em termos de referências visuais, técnicas e
simbólicas entre obras de arte ao serviço da liturgia, que
então nos escapou, e que agora, de forma mais clarividente,
“salta à vista”, é a pia ser uma réplica, em ponto grande,
dos cálices de formato circular. Não só o seu desenho
apresenta similitudes com estas peças fundamentais na
liturgia cristã, a exuberância ornamental verifica-se,
igualmente, noutras alfaias usadas nos vários atos dos
sacramentos (Faria, 2016, p. 140). Para maior decorum e
esplendor da peça os seus escultores não se esqueceram de
a revestir de pintura, tal como se fez com alguns dos
melhores cálices, custódias, salvas, etc., que mereceram o
elogio coevo.
Importa, também, confrontar esta pia com a pia da
igreja matriz da Ponta do Sol, não só por razões de feitura
como de referência visual, como propôs João Lizardo.
Apesar de realizada na dura e pouco plástica pedra
basáltica, esta pia apresenta mais dinamismo pelo maior
volume dos relevos, embora ambas sejam circulares e não
facetadas. Podemos, na tentativa de enquadrar as duas Fig. 5 - Charola do Convento de Cristo de Tomar e Anjo Custódio
do Reino com o Escudo de Cristo, Leitura Nova, Livro da
pias madeirenses referidas, elencar outras três pias
Estremadura, 1509 © Arquivo Nacional Torre do Tombo.
manuelinas eruditas – mesmo que este conjunto reuna
referências formais diversas: a pia da Sé de Braga, com um Fig. 6 - Cálice manuelino, 1° quartel do séc. XVI, proveniente da
Sé do Funchal, © Museu de Arte Sacra do Funchal.
tronco fino, revelando neste constituinte clara inspiração

23
Fig. 7 - Pia batismal da Ponta do Sol, c. de 1501 (?), cerâmica
vidrada, © Higino Faria.

Fig. 8 - Pia da Ponta do Sol, motivos profiláticos: pinhas, flores,


(cravos?), cordas, Khamsa ou Mão de Fátima e círculos, © Higino
Faria.

Fig. 9 - Capitel, Alhambra: pinhas como motivos decorativos,


século XIV, © Higino Faria.

nos desenhos dos cálices manuelinos, executada por anteriores ou posteriores, pois nos exemplos mencionados
biscainhos nos primeiros anos de quinhentos (Almeida, 2015, se esgota a análise morfológica pretendida.
p. 186); a pia da igreja de Leça do Balio, feita por Diogo Pires Depois de analisadas, parece que a pia da Ribeira
-o-Moço, datada de 1513, de sabor flamengo (Craveiro, pp. Brava seja de data mais recuada, considerando-se ainda
133, 1997); e a pia batismal de Nossa Senhora do Pópulo, tardo-medieval do ponto de vista da morfologia e do
matriz das Caldas da Rainha, octogonal, com uma base de bestiário que nela se inscreve, proveniente de gravuras que
recorte elaborado e ornamentação flamejante, composta o último gótico internacional vai possibilitar (Faria, 2013, pp.
de enormes flores acânticas e animais no registo inferior. 170-174), ao passo que as duas pias do norte se possam
Possivelmente a inclusão de canídeos no registo inferior e o considerar mais “evoluídas” a todos os níveis, em especial a
primor do seu desenho e decoração levou Carlos Ferreira pia de Leça do Bailio, nitidamente resultante de uma
de Almeida a atribuir esta peça a Diogo Pires (Almeida, 1976, sensibilidade luso-flamenga que, paulatinamente, e de
p. 162). modo genérico, vai fluir para modelos construtivos e
Todas facetadas, tais pias distinguem-se das “pias ornamentais clássicos, ao romano.
madeirenses” pelo formato circular que estas últimas As suas margens encontram-se habitadas por
apresentam, na linha dos modelos correntes, mais simples, criaturas e elementos vegetais e arte-factuais enquadrados,
e pelos valores plásticos inerentes ao labor de cada oficina. segundo a historiadora de arte Joana Antunes, num gosto
A lista de pias circulares que encontramos para o período ornamental, indefinido ou supérfluo (Antunes, 2016, p. 124),
manuelino é infindável. Não vale a pena, também, trazer ao que o “primeiro manuelino” (Pereira, 2011, p. 520) recebeu
exercício comparativo outras pias de fatura erudita como herança medieval e reproduziu e reformulou e (re)
misturou, à sua maneira e em nome de um horror vacui,
24
que terá permitido, noutros casos, a convivência, nas modelo gótico, precedente, e do modelo clássico,
margens dos mesmos suportes, de linguagens ornamentais novamente descoberto, numa mesma obra de arte ou
com origens distintas e ideologicamente opostas. Francisco edifício (Leite, 2005, p. 248).
de Holanda foi, em Portugal, um dos principais Para ilustração desta “realidade pluriformal do
protagonistas do renascimento “italiano”, classicista e, manuelino” (Clode, 1992, p. 65) confronte-se um cálice
como tal, o principal detrator da tradição ornamental manuelino, em cuja copa foram lavrados grutescos, como a
precedente, curiosamente enraizada nas regiões copa da pia, ornada de vegetação e bestas, com referências
setentrionais de onde seu pai, António de Holanda, era colhidas em suporte diverso: textual, oral, imagético e
oriundo, considerando-a confusa e falsa: “uma adaptadas a um discurso, de certo modo já humanista, que
superfluidade bárbara que Godos e Mauritanos semearam cristianiza referências greco-latinas e medievais.
por as Espanhas”, fazendo-o em nome do bom gosto, do Contudo, ao contrário de muito do ornamento
humanismo mais racionalista e da decência tridentina arquitetónico “marginado” nas periferias de um edifício
(Holanda,1571, pp. 24 e 38). (capitéis, gárgulas, etc.), menos exposto ao olhar do fiel e,
Falamos, pois, da primeira cultura visual e artística por isso, mais suscetível de desvios, o programa lavrado ao
do manuelino com todas as suas variantes, em que se redor da pia não foi “sonhado”, mas sim pensado para ser
incrustam formas decorativas caraterizadas por um visto e interpretado com quase a mesma recorrência de
naturalismo nominalista, nalguns casos raros, como é o uma imagem devocional, pintura de um retábulo ou
caso da riquíssima decoração pétrea da Sé do Funchal (Faria, escultura propriamente dita.
2013, pp. 84, 166, 168) e por um “barroquismo rústico e Para a pintura Fernando Batista Pereira (Pereira, 1997,
silvestre” (Pereira, 1990, p. 32) que carateriza a arquitetura p. 39) refere a emergência de uma “nova conceção de
dos irmãos Arruda nalguns focos da Estremadura imagem como imagem” em que as “composições replicadas
Portuguesa, que a historiografia contemporânea denomina eram imagens de devoção, daí a sua multiplicação”. Embora
como sendo tardo-gótico, gótico tardio, tedesco, “ao modo este pressuposto não possa, de todo, ser aplicado, por
das Espanhas”, etc., por um lado e, por outro, a do princípio teológico contido na função cultual da pintura
aniconicismo do aggiornamento profano antigo, devocional, à decoração pétrea, pode-se concluir que o
redescoberta pelo humanismo italiano, que o próprio cânone imagético, neste caso provido de conteúdo bíblico e
tempo artístico em Portugal acabará por primar. portanto, assim sendo, não tão licencioso ou irracional,
Pode-se dizer, segundo a autora acima citada, que os teria o seu lugar no momento em que comitentes ou
“marginalia medievais” corresponderam ao “grotesco” e o escultores definiam quais as composições ornamentais
ornamento “ao romano”, segundo “estilo antigo” “ao adaptadas a cada objeto de uso ritual.
grutesco”, ressalvando-se as fragilidades dos termos A hipótese de replicação de modelos ornamentais
operativos porque ambas as linguagens abrangem, afinal, verifica-se no caso da pia da Ribeira Brava, em especial para
características do grotesco enquanto linguagem do bestial, a cena mais visível, na copa da pia. Sendo a pia o objeto
do heteredoxo, do disforme ou do heteróclito e porque litúrgico central no sacramento do batismo o seu centro
verificamos que nas micro-iconografias deste período, a está no interior do recetáculo, isto é, na água que evoca o
licença, a inventividade e o ecletismo eram norma e não batismo de Jesus por João Batista no Rio Jordão e deixa o
exceção (Antunes, 2016, pp.41, 373). Não ficaria mal citar cristão na pureza da comunhão com a igreja e garante a
Durer, uma das principais figuras e referências do salvação, a sua margem é assim uma “superfluidade
renascimento, a propósito do púlpito da Ribeira Brava, cujo indispensável” (Antunes, 2016) ou parenética visual auxiliar
ornamento, ̶ animado e compósito, simulando já o passível de retratar o pecado e o vício de um modo
grutesco italiano, embora menos estilizado, mais realista — exemplar ou edificante.
se pode definir como sendo uma coisa e a outra em Não sendo, obviamente, imagens devocionais, como
simultâneo, mais do que o ornamento caótico e grotesco, as executadas para o próprio culto religioso, não é lícito
porém narrativo, da pia: “Quem quiser fazer traumwerk categorizar estas imagens como sendo marginalia profana,
deve misturar todas as coisas” (Antunes, 2016, pp. 124). O antes ornamento icónico com importante função
estudo do púlpito deixaremos para outra ocasião. sacramental e catequética, em especial para o grosso da
Sílvia Leite vê premeditação iconológica na população da época arredada do saber escrito, pois
“convivência arquitetónica” de ornamentos distintos, justamente a estas camadas da população se aplicaria a
defendendo que, para alguns casos, esta alteridade foi máxima de fábulas e provérbios: “educar
conscientemente incentivada porque assente numa certa entretendo” (Antunes, 2010, p. 138).
ideia, mitológica, de “completude dos tempos” ou Por outro lado, se repararmos bem na organização
“concordância testamentária” relativa à aceitação do dos relevos veremos como esta não é arbitrária, parece
25
Fig.s 10 e 11 - Copa da pia, Fábula da Raposa e das Uvas, c. de 1504 (?), © Higino Faria.

haver uma economia do espaço mais visível, o que se liga, medievais, aparecendo também no cadeiral da Sé do
provavelmente, ao propósito, já mencionado, de Funchal (Antunes, 2010, pp. 138 e 139).
semantização da peça. Uma parte, pequena, da peça está Mas porque a pia é um objeto de culto e de uso
desprovida de motivos como se a cadeia de motivos ali se litúrgico não basta procurar os sentidos múltiplos da sua
interrompesse. Estaria esta parte virada para uma parede e complexa simbólica no ciclo do bestiário, no fabulário
não se justificaria a sua decoração? Este aspeto recorda as antigo e nas hipóteses das construções historiográficas
imagens devocionais de produção flamenga destinadas a (Antunes, 2010, p. 139), mas também nas Sagradas Escrituras,
nichos retabulares, de meio vulto, como a imagem de Nossa Job, 12:7-8: “Mas pergunta aos animais que eles te
Senhora da Luz, de cerca de 1501, por exemplo, entre informarão, todas as aves to darão a conhecer. Vai falar
outras (Santa Clara, Valente, 2017). Apesar de apresentarem com a terra que ela te informará, os peixes do mar contar-
elevada qualidade plástica estas peças eram produzidas em te-ão como é”.
grandes quantidades nas oficinas dos Países Baixos, O imaginário que a nossa cultura herdou da raposa
sobretudo na cidade de Malines. Uma vez que estas peças como um animal matreiro é de facto tão antigo que
teriam um lado oculto este nem chegava a ser trabalhado, remonta ao tempo bíblico do Antigo Testamento. No
poupando-se assim matéria-prima e tempo. O mesmo deve Cântico dos Cânticos, 2:15, este animal é visto como
ter acontecido com a execução da pia. Em plena época mesquinho, mas devastador: “Apanhem as raposas, as
manuelina, com todo o furor construtivo que a Madeira raposas pequenas, que devastam as nossas vinhas, porque
vivia, havia que cumprir o encargo, por mais importante as nossas vinhas estão em flor”. O Novo Atestamento é
que fosse, para que outro se seguisse. perentório na conotação negativa da raposa como animal
Ora em relação à iconografia da pia, enquanto ardiloso, Lucas, 13:32: “Vão lá dizer a essa raposa que eu
recetáculo da água sagrada, elemento que dá vida e expulso espíritos maus e faço curas hoje e amanhã, mas
santifica, é de acrescentar que o motivo esculpido na sua depois de amanhã termino”. A raposa é o rei Herodes e a
copa que identificamos, mal, como sendo “um canídeo”, fala é de Cristo. Assim se entende a expressão popular
esculpido na sua copa deve ser, na verdade, uma raposa e inglesa para as raposas “azedar uvas”, que tanto se aplica
as pinhas/cachos de uvas, dubiamente identificadas por ao contexto histórico bíblico como ao contexto medieval,
João Lizardo, cachos de uvas da “videira do senhor” (Faria, reflexo da convivência difícil do homem num passado
2012, p. 38-39) que aquela procura abocanhar, levam-nos longínquo com os animais selvagens que punham em causa
para o fabulário de Esopo e para a própria bíblia como fonte a sua sobrevivência por causa da depredação de culturas e
literária. Note-se que as gravuras da tradução de Heinrich animais domésticos.
Steinhöwel das Fábulas de Esopo (1477-1478) tiveram O isopete da raposa que não logra alcançar as uvas e
grande divulgação pelo sucesso que a obra escrita teve no alega que estas não valem, afinal, o esforço por estarem
tempo. verdes evoca todo aquele que quanto mais desdenha mais
Dadas as dimensões que este motivo assume na pia, quer comprar. Enfatizada pela doutrina cristã, a fábula
a Fábula da Raposa e das Uvas deve ser, mesmo, a principal representa a cobiça, a mesquinhez e também a inveja como
lição moral da sua decoração. A raposa era um dos motivos pecados capitais e remete, assim, para todos os fracos de
preferidos por entre os entalhadores de cadeirais espírito, todos aqueles que recusam seguir Cristo por

26
rejeitarem comungar dos seus frutos e imitar as suas obras
(Barreira, 1622, pp. 27-32). Recusando as uvas eles recusam o
próprio sangue da salvação e a vida eterna.
O combate entre o bem e o mal prossegue na
composição da pia, visto que, no mesmo registo, mas na
outra metade da circunferência, um cão, doméstico, com
coleira, corre feroz e com os dentes à mostra por entre o
emaranhado de vegetação na direção da raposa. No
bestiário De proprietatibus rerum do franciscano
Bartolomaeus Anglicus (Antunes, 2010, p. 139) é dito que
quando os guardas são negligentes as raposas logram roer
as uvas.
No Antigo Testamento é expressa a necessidade de
apanhar as raposas. O cão deve ser visto assim, à luz destas
fontes, como símbolo de guarda e obediência, e, por isso,
aqui inserido, por isso, no polo do bem, embora o
confronto entre animais seja recorrente na escultura
icônica ornamental e aplicado a esta opção representativa,
em que a fábula, misturada com trechos bíblicos, pode ser
ligar ao tema, mais vago, da caça à raposa (Custódio, 2010,
pp. 138-140) ou ao coelho (Antunes, 2016, p. 206; Faria, 2013, p.
122). Isto demonstra, uma vez mais, que as referências
visuais, orais e iconográficas diversas cruzavam-se,
sobrepunham-se ou se interligavam no próprio ciclo do
fabulário e, por conseguinte, na marginalia medieval e
tardo-medieval ao critério do artista ou programador da
decoração, de onde resulta difícil destrinçar, em muitos
casos, as fontes e as várias camadas de significação a que se
prestam as representações colocadas ao serviço de uma
decoração marginal (Antunes, 2010, p. 138).
Fig. 12 - De Vulpe et Uva, Heinrich Steinhowel, 1479, ©
Por debaixo do cão há um motivo de difícil
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identificação. Vegetal não parece ser pois do repertório de
ornato vegetal da pia nenhum se assemelha a este motivo. Fig. 13 - Copa da pia, cão de caça (à raposa?), c. de 1504 (?), ©
Higino Faria.
Dadas as incertezas é arriscado identificá-lo como sendo um
motivo animal. Contudo, nas margens do Livro de Horas Fig. 14 - Copa da pia, híbrido bicéfalo vegetalista (?), c. de 1504
dito de D. Leonor, da autoria do iluminador flamengo (?), © Higino Faria.

Willem Vrelant, surge uma fauna fantástica, aliás corrente Fig. 15 - Livro de Horas da Rainha D. Leonor, grotesco bicéfalo, fl.
em muita da iconografia marginal produzida a norte dos 3., Willem Vrelant, 1450-1475, © Biblioteca Nacional de
Portugal.

27
também bicéfala, se vista de cima, apresenta uns contornos
por cima das supostas cabeça ou dorso, algo que podem ser
orelhas afiladas características nos seres demoníacos ou
então cornos espinhosos. Estas criaturas, apesar de mais
arredondadas, aproximam-se das víboras-verdes híbridas
que podem ser vistas esculpidas no túmulo de D. Fernando
(Antunes, 2016, p. 255). A bicefalia deve ser identificada com
o comportamento dúplice e dissimulado das criaturas
rastejantes e viperinas, imagens-súmulas de pecado terreno
e instabilidade moral (Antunes, 2016, pp. 241, 249).
Para o mesmo registo vai o lagarto e uma pequena
figurinha humana ou simiesca. É difícil precisar se se trata
de uma figura humana se de um símio. Em linha de conta
para a identificação destas figuras marginais não deve
entrar o tamanho, anatomicamente falando, dos motivos.
Na iluminura, de onde foram colhidas tantas gravuras ou
tarjas, uma mosca pode ser gigante para o tamanho de uma
ave ou um boi ser minúsculo comparado com um macaco.
Para não ir mais longe, isto pode ser visto na escultura
arquitetónica do portal da Capela do Santíssimo
Sacramento da própria igreja de São Bento, em que um
lobo se agiganta face ao homem que se esconde atrás de
um escudo (Faria, 2012, p. 50).
Esta figura não aparece em combate com outros
animais, nem o rosto está virado para o observador, é difícil
precisar se trata de um macaco, normalmente muitos
ativos, em interação com outros animais que procuram
sodomizar ou infernizar, ou sempre a gesticular quando
surgem nos manuscritos iluminados. A nudez da figura
parece ser evidente e a sua posição corporal, com o dorso e
o rabo virados para cima situam este motivo no campo de
figurinhas decaídas ou eróticas: como os gnomos, putti,
(Antunes, 2016, pp. 423-424, 280) e outras criaturas terríficas
ou grotescas, como as droleries.
Se o macaco, como animal decorativo que é provoca
o riso e o escândalo, causando, por oposição, sentido de
retidão ou decoro moral nos que o observam, deve ser
considerado como criatura imoral, símbolo do pecado da
Fig. 16 - Copa da pia, Putti agarrado à vegetação, c. de 1504 (?), luxúria, da gula, da vaidade, etc. (Antunes, pp. 209-212); os
© Higino Faria. putti apesar de obscenos, exibicionistas e até mesmo
apotropaicos para o caso de alguns portais, são meros
Fig. 17 - Fólio iluminado do Livro I de Além Douro, 1521, © Torre
do Tombo. neófitos, crianças cujo principal comportamento é
inquietar, protagonizando toda uma plêiade de lutas e
Alpes, da qual este motivo pode ser oriundo por via da jogos infantis. Assim sendo, a relativa neutralidade moral
gravura avulsa. Nas margens de vários fólios surgem das suas representações parece ser um atributo em muitos
pequenas víboras, que travam enérgicos combates com casos, sobretudo em contexto de representações áulicas,
outros homens e animais por entre a vegetação feérica como nos paradisíacos vergéis da Leitura Nova (Antunes,
(Custódio, 2010, pp. 100, 149, 166, 174), mas no fólio 3 surge 2016, p. 421, 426). Contudo, por serem amorais, significados
uma criatura demoníaca de duas cabeças e cascos fendidos menos positivos estão contidos nas figurações destes anjos
(Custódio, p. 48). Este híbrido compósito é diferente do diabólicos e frenéticos, imagens dos impulsos primários e
motivo que encontramos cinzelado na dura pedra da ilha, sem pudor e da sexualidade simples (Antunes, 2016, p. 426) e
mas a figura gravada num interstício da pia, aparentemente feérica que o instinto natural lhes imprime.
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Fig. 18 - Copa da pia, lagarto a abocanhar ramo, c. de 1504 (?), ©
Higino Faria.

O lagarto esculpido com apreciável rigor naturalista,


que abocanha um ramo, pode ser uma versão “suave” dos
leviatãs que comem ou regurgitam vegetação e mesmo
infiéis ou condenados ao inferno. Esta besta inscreve-se no
arquétipo de criaturas polimórficas dos primórdios dos
tempos ou saídos do apocalipse de João e que tal como as
plantas rastejam e saem do fundo da terra, morada do
demónio (Faria, 2013, p. 125, Almeida, 2015, p. 188).
Quanto à abundância de frutos esculpidos na copa da
pia, como os cachos de uvas e as romãs, e de flores, citemos
ainda duas passagens do Cântico dos Cânticos, 6:11: “Desci
ao parque das nogueiras, para admirar os novos frutos do
vale, para ver se os rebentos da vinha e se as romãzeiras já
estavam em flor” e 7:13: “De manhãzinha iremos às vinhas
para vermos se elas floresceram e se as suas flores já
abriram; veremos se as romãzeiras estão em flor. Ali te
darei o meu amor”. No Cântico dos Cânticos a água é citada
em 4:15: “E a fonte deste jardim é a nascente onde brotam
as águas vivas que correm do Líbano”, e 8:7: “toda a água
dos oceanos não seria suficiente para apagar o fogo do
Fig. 19 - Dragão vegetalista, capitel da Capela de Nª Sª do
amor, toda a água dos rios seria incapaz de o extinguir”. Amparo, oficina de Gil Enes, Sé do Funchal, c. de 1508, © Nuno
As uvas e as romãs têm sentido vetero- Rodrigues.
testamentário: cristológico e mariológico. Uma das romãs
Fig. 20 - Copa da pia, coelho entre vegetação e flores, c. de 1504
da pia rebenta de madura. A romã, sendo símbolo do (?), © Higino Faria.
próprio sangue e ventre da igreja, correspondendo os seus
membros às centenas de grainhas suculentas que cada passou a incluir a figura de uma romã, realista, bem
fruto contêm no seu interior, representa o ofertório diferente dos arabescos (diversos motivos florais
eucarístico, a descendência e a fertilidade feminina (Faria, estilizados) que constituíam o anterior brasão muçulmano
2013, p. 105) e deve ser vista, também, à luz do seu da dinastia nasrida.
significado cronológico e ideológico, pois tornara-se No universo de animais esculpidos, que tanto a bíblia
verdadeiro símbolo do catolicismo e da coroa de Espanha, como outras fontes referem, deve caber o coelho, já
com a dinastia dos Trastâmara, com Henrique IV de Castela identificado no estudo anterior, escondido do cão na base
e antes da tomada da cidade de Granada. Só depois da da copa, na qual a pujança da vida silvestre continua a
tomada desta cidade pelos reis católicos ao sultão Boabdil impor o seu ritmo por entre grossas molduras circulares,
(corruptela caselhana de Abu Abdilá) o brasão de armas da repetindo-se os motivos florais, romãs e caules. Símbolo da
cidade Granada, já dentro das fronteiras da cristandade, concupiscência, o que volta a parecer fundado e verossímil
29
(Faria, 2012, p. 12), este motivo pode ter conotação negativa lamber, libidinosamente, as suas partes ou atacar outro
se este coelho participar na alegoria ornamental da pia animal ou criatura associada com o bem (Faria, 2013, p. 123).
significando a fertilidade extrema e a depredação das O osso que um cão rói ou dois disputam, o que acontece
culturas e recursos dos primeiros madeirenses (História em várias representações marginais da época, é substituído
Natural: Livro 8, 81, Plínio o Velho). na pia pela corda, que este rói com uma certa e latente
No sustentáculo da copa o cão que morde uma corda monstruosidade, tentando desfazer a virtude da santidade:
pode remeter para outra fábula de Ésopo, a do “Cão único e verdadeiro elo de ligação do crente com Deus que a
Invejoso” (Antunes, 2011 p. 125-126; Pereira, 1990, p. 171). Na corda simboliza, o que agrava a conotação negativa do cão
pintura de São Nicolau, atribuída ao Mestre da Adoração de como criatura frequentemente associada aos instintos
Machico, um cão deambula numa praça aberta. Pode este indomáveis, à peste e ao pecado da preguiça e da ira, como
animal conferir sentido marginal ao tema secundário da em Isaías, 56:10,11: “Feras dos campos e animais da selva,
pintura, O Milagre das Três Donzelas, completando, venham todos para o banquete! Estes guardas estão cegos,
portanto, o significado global da narrativa e de todo o não vêm nada! São como cães mudos, incapazes de ladrar;
painel, à semelhança da micro-iconografia que surge deitam-se a ressonar e só gostam de dormir. Mas são
noutras obras atribuídas ao mesmo mestre flamengo ou também cães vorazes e insaciáveis”.
influenciado pela pintura flamenga (Faria, 2013, pp. 152, 25, No Novo Testamento, os cães estão conotados com
215)? Quer nos parecer que o cão que vagueia os gentios e os infiéis. Vejamos o Apocalipse de João,
despudoradamente na rua, enquanto três donzelas são 22:14,15: “Felizes os que purificam as suas vestes, pois que
salvas pelas moedas de ouro doadas pelo bispo de Mira assim tem direito de comer o fruto da árvore da vida e de
configura a metáfora da vida pecaminosa a que o pai destas entrar pelas portas da cidade. Mas ficarão de fora todos os
virgens, um albergueiro, as queria entregar por forma a que são como cães, os feiticeiros, os imorais, os assassinos,
minimizar a sua própria miséria (Pereira, 1997, p. 60). De os adoradores de falsos deuses e todos os que mentem por
resto, muito importante seria a realização de um aturado e palavras e obras”. Atente-se, por fim, ao que recomenda o
minucioso estudo, merecedor de todo o incentivo Evangelho de São Mateus, 7:6: “não deis aos cães o que é
institucional, da simbólica animal e vegetal das pinturas santo”.
flamengas na região, achega verdadeiramente Entrando no domínio da hermenêutica bíblica, as
indispensável para o entendimento global dos painéis onde vestes purificadas podem estar relacionadas com as cordas
elementos marginais aparecem. No portal da Catedral de esculpidas na pia e, por conseguinte, com o hábito
Évora o cão que surge esculpido numa mísula e que usa o beneditino já que os quatro nós que nelas se verificam
judenhut deve estar conotado com o judaísmo, tal como a podem simbolizar os quatro votos da castidade beneditina
pia da Sé de Braga (Almeida, 2015, p. 189). (Faria, 2012, p. 48): pobreza, obediência, castidade e
O cão da pia batismal da matriz da Ribeira Brava está, estabilidade (este último introduzido na vida religiosa
certamente, no polo do mal, sendo que o enfâse neste caso regular por São Bento).
é dado ao comportamento, negativo, de roer e não de
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Numa mísula interior da nave, quatrocentista, da
Saint Chapelle de Vincennes em França, fundada por
Carlos V, o Sábio de França, em 1379, mas só concluída
mais tarde; é ostensivo o simbolismo da corda, não como
ornato falante mas como motivo, recordando os votos
religiosos e a militância de que se deve revestir a ação
pastoral e a fé dos homens (Faria, 2013, p. 148), sobretudo
nos momentos de cisma. Vários religiosos seguram uma
corda enquanto olham fervorosamente e espantam o mal.
1378 Coincide com o Grande Cisma do Ocidente, em que a
França e os seus aliados voltam a reclamar como legítimo
Papa o Papa de Avinhão. De resto, para a identificação da
corda como ornato tirado, possivelmente, do arsenal
imagético do estaleiro, mas também como atributo de
observância religiosa e da fé, parecem apontar as inúmeras
pias de água benta onde este motivo aparece. A Sé do
Funchal é bom um exemplo (Faria, 2013, p.110).
A água, elemento essencial do batismo, é também
aludida nos frutos esculpidos na base circular por entre
galhos, as cabaças. A pia representa a imagem eucarística

Fig.s 21 e 22 - Sustentáculo da pia, cão que rói, c. de 1504 (?), ©


Higino Faria.
Fig. 23 - O cão e o osso, apoia-mãos lateral do Cadeiral de Coro da
Sé do Funchal, c. de 1515-1517, © Higino Faria.

Fig. 24 - Sustentáculo da pia, corda e nós (votos beneditinos?), c.


de 1504 (?), © Higino Faria

Fig. 25 - Corda como motivo e franciscanos, século XV, mísula


interior da Sainte Chapelle de Vincennes, © Poussnik.

Fig. 26 - Cordame virtual de sustentação e modelos compositivos


elaborados, mísula de pia de água-benta, c. de 1508, oficina de
Gil Enes, Sé do Funchal, © Pedro Sousa

Fig. 27 - Base da pia, cabaças e galhos, c. de 1504 (?), © Higino


Faria
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da Fons Vitae. Neste rio do tempo cristão purificam-se as função do qual se estabelecem camadas discursivas, oficiais
almas para a vida na terra e no céu. A cabaça é atributo do ou secundárias.
apóstolo São Tiago Menor, e portanto, de todos os Comecemos pela proposta de transcrição, parcial, da
peregrinos, e aqui deve ser vista como fonte de vida que sua epígrafe: (…) pia (…) duo (…) man`il (…) era de VIIII?
alimenta o mundo e possibilita a peregrinação na terra que (Faria, 2016, p. 140). Como o teor da enigmática inscrição
espera o recém-nascido, salvo no ato do batismo de todo o inclui a abreviatura do nome de D. Manuel, sua divisa
pecado original (Azambuja, 2009, p. 329). pessoal: esfera armilar, dois círculos com uma mandorla
mística no interior (ou duas porções de círculo, símbolo de
Estudo iconológico e histórico uma nova aliança?), uma cruz em trevo, com as hastes
polilobadas (símbolo de cruzada?), um círculo com o
Feito o estudo iconográfico vejamos as considerações interior dividido (cronograma de Cristo, XP?), mais a cruz da
iconológicas que dele podem resultar. Relativamente à Ordem de Cristo (três cruzes) e uma data (de doação – não
semantização da arquitetura a que se presta a simbólica, necessariamente de execução), esta epígrafe afigura ser o
nem sempre o espaço reservado a um discurso oficial, selo, numa obra de grande aparato e destinada ao uso,
ficava perfeitamente delimitado do espaço reservado a um restrito, da liturgia no decurso do importante sacramento
discurso mais ou menos heterodoxo, onde o lavrante dava do batismo, da quase absoluta autoridade do monarca
asas à inventividade ou à escolha subjetiva do repertório de sobre a esfera do espiritual numa nova era e território cuja
motivos permitidos. Tal acontecia quanto maior era o posse, beneficiação e jurisdição lhe cabia já, por legado,
arsenal iconográfico ao dispor dos lavrantes e quanto mais antes de se tornar rei, enquanto Duque e, depois,
recônditas eram as diferentes opções espaciais. No espaço governador da Ordem de Cristo.
simbólico da capela-mor da Sé do Funchal, por exemplo, a Mesmo que esta mensagem (criptograma?) fique por
escultura capitelar de feição púdica não deixa de se decifrar podemos dizer, portanto, que estamos no domínio
articular com escultura capitelar de conteúdo solene, ligado da razão, já que se impõe um discurso oficial, canônico ou
à devotio moderna, pré-reformista, como alguns real, que se virá a expressar, (posteriormente?) no mote das
instrumentos da Paixão de Cristo (Faria, 2013, p. 172). Ordenações Manuelinas: DEO IN CELO TIBI AVTEM IN
Desaparecida a igreja manuelina da Ribeira Brava, o MUNDO: A DEUS NO CÉU E A TI NA TERRA (1514). Uma vez
que não permite saber com rigor a organização da mais, fica a marca do rei sublime, contra todas as
totalidade da sua decoração marginal e se haveriam mais expetativas “Rei precioso per graça divina” (Cruz, 2002,
ornamentos vegetalistas e animalistas, para além das p.337) , êmulo de Cristo, e rei-construtor à imagem de
psicomaquias que se encontram nos portais remanescentes Salomão, “quer dizer a marca da sua vontade expansionista
(Faria, 2012, p. 42 e 51); e a atender à própria feição da pia e da natureza teófora do reino” (Pereira, 2002, pp.
batismal da Sé do Funchal, sóbria e sem decoração, da 88,250,261), que o seu próprio nome traduzia posto que em
análise à decoração desta pia, podemos concluir que ela hebraico Emanuel significa Deus connosco (Pereira, 1990, pp.
não é arbitrária ou de sentido vago, posto que a 84, 85).
semantização a que se presta é forte pela função ritual e Ora o facto inédito para a monarquia portuguesa de
visibilidade que lhe são inerentes, como se deixou antever um rei chegar a titular da coroa sem ser filho de rei, embora
no fio condutor seguido na análise dos motivos de sangue real, vai conferir ao Duque de Bragança atributos
iconográficos: de cima para baixo e da margem para o místicos inéditos. A conjuntura do reino e da sucessão,
centro. Para a compreensão da sua iconologia vamos seguir somadas ao facto do rei ter nascido no dia do Corpo de
a mesma leitura, deixando depois a exposição de ideias Deus, vão fazer com que a coroação de D. Manuel se revista
sobre o contexto histórico e religioso prosseguir até às de uma grande e auspiciosa graça divina, sendo glorificada
conclusões. e profetizada, e, depois, toda a sua autoridade se extenda,
Paulo Pereira introduziu na problemática da legitimamente, para além da esfera do poder temporal, à
ornamentação manuelina uma sistematização que se pode esfera do espiritual (Gama, 2011, p. 5 e 6).
aplicar, com grande validade operativa (Pereira, 1995, p.113. Ao nível da iconografia, os seus temas, da animalia
e Antunes, 2016, p. 151, 152) ao caso presente da pia batismal alegórica à vegetação feérica, meio onde se confrontam as
da Ribeira Brava. Para este autor a simbólica manuelina forças ocultas da vida e da morte, da representação central
pode ser compreendida através de uma triplicidade: razão, da copa à base da estrutura, passando pelo sustentáculo,
celebração e segredo. Esta triplicidade ajuda-nos a colocam o observador e crente em confronto com as
compreender os vários níveis de semantização da peça em parábolas da Bíblia e das lições morais extraídas do
si pelo ornamento icônico, isto é, como um centro em fabulário greco-latino com quanto elas tem de exemplar e

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ajudam na celebração da festa do nascimento posto que se
trata da metáfora da vida, com todas as lutas entre o bem o
mal: a “aventura iniciática cristã” (Alves, 1985, p.127) que
espera o recém-nascido depois de salvo de todo o pecado
original.
Ao nível mais subliminar e profundo do segredo da
pia somos colocados perante um exigente exercício de
adivinhação iconológica, possível, e válido, se bem
dissecadas as camadas de significado através da decifração
dos temas. Estes temas, se confrontados com circunstâncias
de ordem religiosa, política, mecenática, social e artística,
terão muito para dizer.
Os temas do mundo terreno e da natureza selvagem
ou infernal, através dos quais a autoridade cristã encena o
domínio do bem sobre o domínio do mal, em que se
movem as criaturas disformes e os diversos inimigos da fé,
vão aparecer nas pias batismais batismais até ao
renascimento, como nos demonstra a historiadora de arte
Lurdes Craveiro ao analisar a pia batismal da Sé Velha de
Coimbra, originalmente feita para São João de Almedina,
em Coimbra, também executada por Diogo Pires já depois
de 1520 (Craveiro, 1997, p. 133): “E, nesta iconografia dos
efeitos purificadores da água, a que se junta a presença do
vinho eucarístico, os anjos que exercem a função de
tenentes são seres estranhos, nus ou cobertos de folhagem
com grossos cordões, misto de homens silvestres e
senhores coroados de um qualquer mundo inquietante. Um
reino que é, afinal, passível de conversão à mensagem
evangelizador do cristianismo. Numa palavra, controlável. Fig. 28 - Pia batismal, Batismo de Cristo no rio Jordão e brasão do
Em plano inferior, e num campo preenchido por larga Bispo. D. Jorge de Almeida, pedra de ançã, Diogo Pires-o-Moço, c.
folhagem, inscrevem-se, igualmente, seres monstruosos, de 1520, Sé Velha de Coimbra, © Higino Faria.
espécies de cães deformados e rastejantes, também eles Fig. 29 - Pia batismal, pedra de ançã, cães disformes subjugados,
criaturas do mal.” Diogo Pires-o-Moço, c. de 1520, Sé Velha de Coimbra, © Higino
Avançando na tentativa de traçar um contexto que a Faria.

simbólica da pia ilustre, o mais lógico será procurar no espiritualidade observante, a verificar, pois, no saber bíblico
próprio espaço histórico e artístico da paroquial que a suas iconografia contém, não é, de modo nenhum,
ribeirabravense elementos e dados para tentar enquadrá-la obra de arte menor. Do ponto de vista técnico é
dentro de um discurso, gosto ou cânone, tentando fazer os equiparável à melhor pintura coeva, como ao painel
pontos de ligação com algumas peças desse período. A atribuído ao Mestre do Espinheiro. Vale a pena correr o
única pintura que terá restado do original retábulo da risco de afirmar que o pedreiro que a esculpiu a partir de
matriz da Ribeira Brava, Nossa Senhora com o Menino entre uma matéria pétrea ígnea como o basalto dominaria tão
São Bento e São Bernardo, tem sido atribuída a Francisco bem o cinzel quanto Francisco Henriques e seus oficiais o
Henriques, a cuja oficina foi atribuída, erradamente, a pincel.
execução do retábulo da Sé do Funchal (Serrão, 2015, p. 118), Por outro lado, o humanismo cristão que se denota
no qual a presença da fauna e da flora, realista, não no tema do Menino Jesus a folhear as Sagradas Escrituras
quimérica, como um lagarto, se explica pela importância da daquela pintura é o mesmo que possibilitou o cruzamento
tradição, muito forte, da arte simbólica. A decoração de referências orais e escritas do fabulário latino com
simbólica marginal vai se verificar no campo da pintura referências bíblicas. Este afã de erudição e curiosidade
devocional até uma fase bastante avançada do humanista, que vai nascer primeiro nos grandes centros de
renascimento. cultura monástica e palatina, resultou na criação de um
A pia batismal da Ribeira Brava, obra vasto mercado de imagens pias ao acesso da nobreza e da
indubitavelmente erudita e executada sob o signo de uma burguesia e estendeu-se à gravura tardo-medieval e
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renascentista usada na ornamentação da pintura, da assim se perceberá de que maneira estas influenciaram o
arquitetura, da ourivesaria e tapeçaria do último gótico ao tipo de gosto e os encargos gráficos (Faria, 2015, p. 116). Só
classicismo. assim se compreenderá a relação entre norma e desvio que
Motivos e composições de inspiração nova vão ser através da ornamentação significante completa o sentido
difundidos pela Europa através da tipografia e as fontes da obra de arte ao serviço da religião cristã.
literárias antigas greco-latinas, hebraicas e até muçulmanas, Deve ter sido bastante grande a influência do Funchal
escondidas nas bibliotecas dos principais centros neste lugar da Costa de Baixo, referindo Gaspar Frutuoso
monásticos da escolástica tradicional, como os da Ordem que “Não é este lugar vila pelo deixar de ser à falta de bons
de São Bento, durante séculos escondidas, vão, também, vizinhos e bom assento, e se somenos da ilha, antes é o
conhecer as luzes nos alvores do renascimento. Com a mais bem assentado e magnífico de todos; senão por ser
rápida instalação de tipógrafos e tradutores pelas principais termo da cidade do Funchal” (Frutuoso, 1979, p. 88). Quanto
cidades europeias, caso de Valentim Fernandes Alemão à metrópole, parece que a cidade de Évora teve um papel
para Lisboa, obras e repertórios formais e ornamentais vão decisivo na edificação da vida cultural e eclesiástica deste
se internacionalizar e correr para a periferia. povoado. Quer na análise feita às encomendas artísticas,
Se o atributo da sapiência, precoce, que o menino, quer no estudo sobre a constituição do primeiro grupo de
ainda bebé de colo, do painel central do retábulo enviado religiosos que se vai instalar nesta paróquia no período
de Lisboa para a Ribeira Brava revela ao folhear a Tora, as manuelino deparamo-nos com menções à cidade de Évora,
Sagradas Escrituras hebraicas: prenúncio da cerimónia judia um dos berços do humanismo em Portugal e umas das
do bar-mitzvá e da sua ação pastoral, deve remeter para a sedes da corte de D. Manuel (Silva, 2014, p. 53), onde fora
sua divindade, o fato da paróquia em 1538 já atribuir criada, no período da Reconquista, a Ordem de São Bento
tonsura clerical na sua escola de ler e escrever não deve de de Avis para sua própria defesa contra o inimigo mouro,
maneira nenhuma ser ignorado (Ribeiro, 1998, p. 275) para cujo santo patrono seria escolhido para invocação da
compreendermos o ambiente cultural em que se dá a Ribeira Brava, muito provavelmente já no período em que
encomenda de uma obra de arte com as caraterísticas D. Fernando era Grão-Mestre da Milícia de Évora.
materiais e o simbolismo evidente e subjacente que esta Em 1518 Afonso Correia foi ecónomo no benefício do
pia batismal assume. religioso Gonçalo Álvares de Évora, que tinha o seu cargo
O lema beneditino Ora et Labora pressupõem a eclesiástico na Ribeira Brava, mas estava ausente (Ribeiro,
virtude e obediência cristãs pela via do ensino. Jesus 1997, p. 240). O absentismo era prática frequente nas
ordenou que os seus discípulos ensinassem os instituições eclesiásticas da época. A atender à sua origem,
mandamentos aos recém-nascidos batizados, pois que de indicada no seu nome, é válido supor que estivesse na
nada servia batizar um bebé sem o guiar ao longo da vida, metrópole. Terá sido este religioso um dos mediadores das
(Mateus, 28:19,20). Dois anos depois, em 1540 estava já várias encomendas artísticas, como o retábulo e as gravuras
criada a colegiada da Ribeira Brava, de onde saiu um dos utilizadas na decoração pétrea da pia e arquitetura da
maiores vultos da cultura portuguesa como o Padre Manuel matriz da Ribeira Brava? Fernando Batista Pereira defende
Álvares. A paroquial da Ribeira Brava recebeu obras e que o primitivo flamengo da Ribeira Brava contem várias
artistas de qualidade cimeira no panorama da arte semelhanças formais e técnicas com o painel de A Virgem
manuelina e a sua pia batismal é, tal como o primitivo com o Menino entre Santa Julita e São Guerito destinado a
flamengo, um excelente testemunho disso. igreja do Convento e Paço Real de São Francisco de Évora.
O culto à Natividade e à Virgindade de Maria (que o Ora Gonçalo Álvares de Évora podia conhecer a obra do
próprio painel de Nossa Senhora com o Menino entre São Mestre do Espinheiro que realizou todos os outros painéis
Bento e São Bernardo – impulsionador da virgindade para esta mesma igreja. É provável que o retábulo e outras
maternal de Nossa Senhora – acusa e que terá grande peças tenham vindo para a freguesia via Setúbal-Funchal,
expressão na ilha, atente-se ao fenómeno devocional das uma vez que este era o principal desembarcadouro da ilha.
missas do parto e às inúmeras invocações marianas Pela alfândega do Funchal havia a obrigação de serem
espalhadas pelas freguesias e sítios da ilha, etc...), as despachados todos os objetos do culto a serem pagos pela
procissões pascoais, as visitas do Espírito Santo, as danças Ordem de Cristo, depois despachados para as vilas e lugares
em dias festivos como as mouriscadas e outras tantas da ilha. Na Sé podem ser encontradas peças feitas dos
danças profanas (como a dança das espadas na festa de São mesmos materiais que as peças enviadas para a Ribeira
Pedro) e mesmo ritos secretos devem constituir pontos de Brava, caso da pedra de ara da catedral, do púlpito e pia
partida para o estudo da religiosidade no período do batismal, feita em calcário-brecha da Serra da Arrábida e a
povoamento: da piedade canônica aos credos proibidos. Só pia de água benta, situada junto à porta de entrada na

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parede do lado da Epístola da igreja de São Bento (Faria, tipografia, enquanto meio tecnológico que inaugura e
2012, p. 34; 2013, p.25-26; Carita, 2017), respetivamente. impulsiona a própria modernidade, e o alargar de fronteiras
Em relação à comparação, necessária, com a pia da como aspiração nacional e pessoal, são pontos chave para
Ponta do Sol, considere-se os seguintes aspetos: são obras se compreender a iconologia da arte manuelina. O
de arte produzidas em geografias distintas e encomendadas ornamento manuelino vai se apresentar diverso, ora
para contextos de utilização e fruição diferentes; são regional ora universal, por complexas razões de ideologia e
incompatíveis do ponto de vista simbólico e a cronologia de poder (Faria, 2013).
uma não é a de outra. A pia da Ribeira Brava foi executada Voltando à pia batismal da Sé, por exemplo, esta
in loco, a atender ao facto de ser em pedra da ilha, e a difere da pia da Ribeira Brava pela ausência de qualquer
indicação do programa decorativo foi efetuada debaixo do ornamento escultórico, o que implica considerar diferentes
olhar atento dos religiosos da fábrica paroquial, que terão orientações ideológicas ou razões económicas na aquisição
indicado aos pedreiros para incluir simbólica beneditina das mesmas e não do espaço a que se destinavam. Se a
patente na corda ou então delineado na própria metrópole sobriedade de uma contrasta fortemente com a força
por algum mestre-de-obras junto com o desenho da igreja, discursiva da outra, já a presença de um lobo num capitel
já a pia da Ponta do Sol apresenta antecedentes bem de um portal do batistério da Sé não pode ser esquecida
distintos uma vez que foi adquirida feita em data incerta e como reflexo de um discurso maniqueísta, característico do
foi enviada para a Madeira seguindo uma opção ideológica ornamento realista, enquadrado nos princípios escolásticos
bem distinta dadas as prioridades da conjuntura. O rei da similitude e da analogia.
vivenciou o sul de Espanha, assim como muita gente da sua Como documento simbólico, estético e plástico a pia
corte e confiança. Como a Ponta do Sol foi elevada a vila da Ponta do Sol está nos antípodas da pia da Ribeira Brava e
por foral régio, a decisão, a determinada altura, de enviar deve ser encarada como contradiscurso, no diálogo que o
peças de primeiro plano aos olhos da política imperial manuelino vai estabelecer com a alteridade, no sentido do
manuelina para as vilas recém-criadas faria todo o sentido. domínio do outro e do diferente, pela tolerância que levou
Apesar dos surtos estéticos mouriscos e o rei a admirar, com admiração nunca desinteressada, a
orientalizantes a maioria destes encargos com objetos de cultura mourisca dentro e fora das fronteiras do reino –
culto foram, tanto na ilha como na metrópole, pensados e aliás como os seus antecessores – e até importar obras de
promovidos mais “ao modo do norte”, na linha da tradição arte moçárabe, de gosto mudéjar (Braga, 2007, Antunes, p.
luso-flamenga e em consonância com uma corrente 162. 2010, Antunes, 2016, p. 408), como de tantas outras
internacional e pós-medieval (Faria, 2013, p. 169) favorecida partes do globo.
pelos contactos e alianças com a Borgonha e a Flandres e D. Manuel procurou ser rei de Espanha, realizando
devido ao comércio do açúcar e da circulação de pinturas e uma viagem por várias cidades em 1498 para ser jurado
gravuras nórdicas, e até, possivelmente, pela presença de herdeiro dos Reis Católicos. Acompanham o casal régio
entalhadores e pedreiros na Madeira nos primeiros anos de nobres e mesmo artistas. Dos primeiros alguns ficam por lá,
quinhentos de regiões setentrionais, em especial flamengos caso de D. Álvaro de Bragança, que se torna governador do
e alemães (Carita, 1997,pp. 137-134; Faria, 2013, p. 172; Alcazar de Sevilha (Silva, 2014, p. 52). O rei de Portugal
Antunes,2016, p.61-68). comungou, com os seus sogros, Fernando de Aragão e
A dimensão plural e internacional dos temários Isabel de Castela, do grande espanto e admiração que
ornamentais, ditos marginais, impulsionados pela causavam obras primas do estilo mudéjar recêm tomadas
para a fé de Cristo: a maior, sem dúvida, Alhambra,
expoente máximo da cultura islâmica no Al-Andaluz e joia
dos olhos de Isabel, que manda construir logo os seus
aposentos no interior da impactante cidade nazari.
Há, assim, nestas circunstâncias, marcadas por
necessidades de abertura e mesmo por um laicismo ténue
nos assuntos da jurisdição régia, desde os tempos da Ínclita
Geração – ventos cuja conjuntura social e moral da
contrarreforma dissipará – explicação cabal para a
emulação de uma cultura visual e simbólica oposta,
importando-se obras de arte de influência muçulmana por
reconhecimento de qualidade estética, mas não só.
Fig. 30 - Lobo, capitel do batistério da Sé do Funchal, c. de 1508, Imagens de dois universos artísticos, religiosos e políticos
oficina de Gil Enes, © Pedro Sousa distintos, a Domus dei, por um lado, e o Dâr al-Islâm, por
35
outro (Farinha, 2002, p. 37), mas com um espaço de fronteira comum no imaginário prosélito nacional, a que a colegiada
de tensas interações e animosidades: o sul da Península da Ribeira Brava não seria indiferente uma vez que não só a
Ibérica e o norte de África; estas duas peças surgem, assim, criação do lugar e da sua capelania por volta de 1430-1440
como testemunhos de uma dicotomia estética que (Vieira, 2016), , se dá em tempos em que o Infante Santo era
importava, paradoxalmente, ao chefe de estado propalar Grão-mestre da Ordem de Avis, como a Ribeira Brava vai
no sentido da sua afirmação como rei estratega, cordato, assumir um papel importante nas pretensões portuguesas
sábio e venturoso e, como tal, legítimo candidato a unir, na no norte de África. O 2º Donatário, filho de D. Duarte, D.
diversidade, a imensidão “das Espanhas”, (Antunes, 2010, p. Fernando, Duque de Viseu veio a ser, de acordo com Rui
41) perante o vazio deixado no trono de Castela. Carita, administrador da Ordem de Avis (Carita, 1996, p. 56).
O facto da pia da Ponta do Sol ter sido enviada por Com efeito, o “imaginario neocruzadista” (Pereira,
volta de 1501 e da pia da Ribeira Brava ter sido executada, 2002, p. 92) dos primeiros tempos do reinado de D. Manuel,
possivelmente, na primeira década de quinhentos, sendo herdado do século anterior, conforme o pais avança para a
1504 a data de pagamento, ajuda a compreender os segunda década de quinhentos e os interesses imperiais
diferentes contextos em que uma peça e outra são passam, grosso modo, para o oriente (Senos, 2003, p. 114),
adquiridas. O reinado de D. Manuel arranca sob o signo de vai acabar por corresponder mais a um discurso virtual, que
uma certa tolerância e até proximidade face ao a arte e a literatura acabam por cristalizar e servir
pensamento não cristão, embora logo em 1496 o rei se veja eficazmente, do que propriamente a ações concertadas
obrigado a uma muito difícil decisão: pactuar com os reis com o objetivo de conquista militar em terra de
católicos, se quisesse ser jurado herdeiro do trono de muçulmanos. Não que os portugueses os tenham
Castela e Aragão, a expulsão de judeus e muçulmanos da esquecido, procurando até aliados como o Rei cristão da
Península Ibérica. Contudo, a estratégia do monarca para o Abissínia Prestes João para os ajudar a cercar e a vencer o
fazer será distinta, e mais tolerante. inimigo. Quando em 1511 Afonso de Albuquerque avança
Em 1515, altura em que a pia da Ribeira Brava para Malaca muçulmanos veem atacar Goa.
estaria provavelmente pronta já o rei solicitava a Recorde-se Gil Vicente, homem muito próximo do rei
introdução da inquisição no país por pressão castelhana. A dos tempos em que era apenas ourives da Rainha D.
pia da Ribeira Brava deve mesmo se demarcar, totalmente, Leonor, “gil vicente trouador mestre da balãça” afamado
da pia da Ponta do Sol por se pautar por um discurso ourives em vida, cenógrafo-mor e, portanto, verdadeiro
bipolar entre bem e mal, entre forças crentes e infiéis, ideólogo e promotor da cultura visual régia (Gambeta, 1965,
contendo, o discurso, militarista, da Dinastia de Avis contra p. 7-14). Na peça Exortação da Guerra, de 1513-1514 (Cruz,
os inimigos da fé. A própria Ordem Militar de São Bento de 2002 p. 338) os mouros são vistos como “perros
Avis no século XII foi criada com esse fim. arrenegados” cujas terras devem continuar a ser
No Livro de Horas de João Sem Medo a raposa conquistadas e cristianizadas, já No Auto da Barca do
simboliza um inimigo concreto do comitente do livro, Luís Inferno, representada em 1531 pela primeira vez, os que
de Orleães, apunhalado a mando de João Sem Medo, duque tombaram em Africa vestindo o hábito da Ordem de Cristo
da Borgonha, em Paris, que acabaria por ter um fim igual ou são considerados “cavaleiros de Deus" (Rebelo, 2002, p. 338).
pior que o Duque de Orleãs, sendo esquartejado na ponte Voltando ao apogeu da campanhas em Marrocos, a
de Montereau enquanto negociava com Carlos, futuro tentação, a loucura e a renúncia a Deus que o Infante D.
Carlos VII de França (Custódio, 2010, p. 132). Longe de se Fernando narra no seu cativeiro como o pior dos males,
poder estabelecer uma analogia imediata entre um livro de pedindo aos seus companheiros para “não quererem mal os
horas, obra de devoção particular e usada no âmbito carcereiros” (Ruas, p. 30, 2002), é como uma psicomaquia,
privado, com uma obra de uso litúrgico no domínio público uma luta entre o bem e o mal, uma batalha da alma pela
da igreja, e, assim, poder fazer passar a raposa da Ribeira salvação (Faria, 2015, p. 115).
Brava por algum inimigo específico dos religiosos desta À falta de uma gravura de onde o pedreiro tenha
freguesia, vamos presumir que os fruidores desta peça, colhido a criatura do mal, conotada com a inferioridade
eclesiásticos, fiéis ou mesmo infiéis, se sentissem moral dos próprios infiéis, que protagoniza na pia o
provocados e vissem nela os seus próprios inimigos e de sua comportamento de roer os votos beneditinos, em especial
descendência. O inimigo oficial seria tão somente o infiel, o o voto da estabilidade que a corda toda como motivo
não cristão. representa, podemos propor que esta é uma imagem da
A memória coletiva do cativeiro, humilhante e punição terrena que cabe ao cristão, antigo ou novo,
militarmente desastroso, do Infante D. Fernando, logo em suportar e superar. A propósito do imaginário das punições
1470 considerado mártir e santo, devia ser um lugar infernais que esperam os pecadores é, justamente,

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oportuno, citar São Bernardo, reformador da ordem de São Em Portugal, a maioria das conversões de infiéis não
Bento: “tremo só de pensar nos dentes da besta infernal, foram feitas em “praça pública”, em que os adultos
nos leões que rugem e nele se lançam só para devorar recebiam um batismo forçado perante as autoridades
(Almeida, 2015, p. 187-88). Não é o que acontece, hipsis religiosas e o povo, embora isto tenha acontecido,
verbis, na pia, mas o ato de devorar, com os dentes, está possivelmente, no caso mais extremo de conversão que
perfeitamente plasmado no motivo do cão. começou no Palácio dos Estaus, antiga casa dos
Nos séculos XV e XVI os homens bons da Ribeira embaixadores, em Lisboa, com os frades a jogar água benta
Brava empenharam-se, valorosamente, na defesa do norte para cima de famílias inteiras que aguardavam a saída do
de África, sendo esta povoação, ao nível regional, país, e acabou nas pias de várias igrejas de Lisboa em março
ultrapassada apenas pelo Funchal no envio de efetivos para de 1497 (Tavares, 2002, p. 27).
a guerra nas praças e ao longo da costa, de onde provinham No monumental retábulo-mor da Capela Real de
muitos mouros cativos tornados escravos (Vieira, 2016). Granada, panteão dos Reis Católicos, existe um baixo-relevo
Contudo, o contexto de execução da pia ainda é mais amplo no sotabanco representando a conversão, em massa, dos
e esta pode ser vista à luz dos grandes dilemas do início da mouriscos de Granada por volta de 1500, junto a uma pia,
era moderna no território europeu: marcado por todas as que deu origem à Rebelião das Alpujarras, esmagada
grandes cisões, desastres, guerras e controvérsias na cruelmente por Filipe II em 1571. Como o fundo não tem
sociedade, dentro e fora da igreja. referências arquitetónicas esta conversão forçada deve se
Esta pia contém um discurso escatológico cifrado na ter dado num espaço aberto, sendo que nenhum templo
iconografia do mal que a completa nas suas margens, por cristão estaria por esta altura levantado em Granada. À
oposição ao bem contido na água salvífica. Ela representa capela, desaparecida, de São Francisco de Belmonte,
um tempo em que se esperava, com medo, o Julgamento construída sobre uma sinagoga, pertencia uma pia batismall
Final. Ora a Inquisição, criada para expulsar e espoliar os manuelina onde se diz que muitos judeus desta vila raiana
judeus, mais do que para atacar os mouros, foi uma forma foram convertidos. Belmonte recebeu judeus fugidos da
de julgamento, bem distinto do massacre indiscriminado de perseguição espanhola, mas a comunidade de judeus em
cristãos-novos em Lisboa, em 1506. No entanto, estes Belmonte era já bastante expressiva e antiga.
acontecimentos tenham as razões teológicas e Num território como o da ilha da Madeira em que o
antropológicas afins, como a “cegueira” dos judeus em não sentimento judaico não seria antigo nem expressivo quando
aceitar Cristo como o Profeta, por um lado, e a superstição comparado com o continente, estando, de certo modo,
e o ódio racial e económico da parte de cristãos-velhos por diluído pelo ambiente de cosmopolitismo e tolerância
outro (Afonso, 2006, p. 102). relativa que se vivia no pico do povoamento não será
A encenação contida na pia batismal da Sé de Braga descabido supor que não só judeus, mas também escravos
(Almeida, 2015), onde figuras humanas surgem, nuas, mouros e pagãos fossem convertidos de um modo
desprovidas de alma e condenadas às mandíbulas de leões
e leviatãs, o que também acontece nas Janelas da Quinta
das Cruzes (Faria, 2015), é, contudo, a de um julgamento
espiritual mais duro (Senos, 2003, p. 98) e explícito. É sobre o
judeu, enquanto grupo social, que a sátira vicentina se
debruça mais, perpassando nela o sentimento antijudaico
enraizado na sociedade portuguesa nos primeiros anos de
quinhentos. No Auto da Cananeia (1534) os judeus são
“lobos” ou a “mais falsa ralé”. Gil Vicente atribui-lhes,
também, a culpa no deicídio, a avareza, a malícia, e a
cobardia (Auto da Barca do Inferno e Diálogo sobre a
Ressureição, 1527?), etc, pecados que correspondem ao
comportamento da raposa que cobiça as uvas e em
simultâneo as desdenha, isto é, que recusa Cristo (Cruz,
2002, p.338), mas tem que viver entre os seus seguidores. O
atributo da cobardia e ingratidão que o isopete da raposa
encerra remete para a figura do falso converso, entre os
cristãos-novos, ou mesmo do apóstata, tal como Judas que
Fig. 31 - Batismo dos Mouriscos, retábulo da Capela Real de
seguiu Cristo mas depois o recusou. Granada, Felipe Bigarny, c. de 1519-1521, © granadasingular.com

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Fig. 32 - Lupus est homo homini lupus (representação de Fig. 33 - Figurinha satírica, portal manuelino da Capela do
sentença latina?), capitel do primitivo portal da Igreja Matriz da Santíssimo Sacramento, Ponta do Sol, © Direção Regional de
Ribeira Brava, 1º quartel do século XVI, © Higino Faria. Cultura.

diferente, mais humano, recebendo um sacramento desvio no qual não deviam reincidir. Muitos dos “infiéis do
canônico no interior dos batistérios dos templos. A reino” mantinham, cripticamente, uma prática religiosa
dramaturgia vicentina deve, uma vez mais, ser chamada a divergente, sobretudo o judaísmo. O proselitismo da
análise, pois considera que a culpa por muitos judeus não colegiada da Ribeira Brava, que teria por palco principal o
se converterem realmente se devia ao clero por partilhar seu exuberante púlpito manuelino, parece ser evidente na
manifestações populares de antissemitismo em vez de, por leitura da simbólica da pia e esta pode passar a ser vista
obra da confissão e da tolerância, converterem os judeus, como um testemunho artístico senão da conversão de
muitos já cristãos-novos (Cruz, 2002, p. 338). infiéis pelo menos da (in)tolerância religiosa na ilha da
A iconografia da pia, pela dimensão das suas Madeira.
esculturas e contexto, encerra, indubitavelmente, um Manteriam os religiosos diocesanos da Ribeira Brava
discurso prosélito que ganhou força, aliás, nos anos uma parenética dura, seguindo os preceitos dos primeiros
subsequentes às conversões. A data gravada na pia coincide freires da Ordem de São Bento de Avis, alimentando o
com este período, tendo decorrido dessa data oito anos do clamor popular próprio da época que em Lisboa teve como
Édito da Expulsão dos Judeus e Mouros, em 1496. Dois anos principais protagonistas os pregadores dominicanos,
depois de paga, ou mesmo executada a pia, dava-se o verdadeiros “cães de guarda do senhor” ou dominuscanes
Pogrom de Lisboa (1506), o grande massacre de judeus às (Almeida, 2015, p. 191)? O ambiente no meio rural seria mais
mãos do povo, culpando aqueles pela peste e fome que propício à marginalização do que no Funchal? Infelizmente
grassava em Lisboa. não consultamos dados que confirmem ou refutem a
É possível que a pia date de cerca de 1504 se entrar existência de famílias judias na Ribeira Brava. Certo é que a
em linha de conta que um batistério pronto a usar ajudava Ribeira Brava só ficava atrás do Funchal na produção de
a garantir o funcionamento da vida religiosa local com a açúcar no século XVI, produzindo já em 1495 14.778
administração do sacramento do batismo, mesmo que o arrobas (Vieira, 2016). A produção local, com rendas,
templo, como um todo, não estivesse finalizado. Isto pode fiscalização, trato alfandegário, etc.; exigia gestão
explicar a razão da pia de água benta do lado direito da competente e letrada. Genoveses e judeus, provavelmente,
entrada ser em calcário brecha, tal como a pia batismal da desempenharam um papel ativo nas trocas entre a Ribeira
Sé, e não em basalto. Os pedreiros usaram o material que Brava (eixo de ligação norte-sul e oeste-leste) e o Funchal-
tinham já ao dispor para a construção do templo. A Europa. Profissões desempenhadas por judeus de nível
iconologia do ornamento auxilia no exercício da história da social inferior também as havia, pequenos mercadores,
arte e pode ajudar a datar obras ou, pelo menos, levantar fanqueiros, almocreves, ferreiros, etc.
hipóteses. Quanto aos cativos, a freguesia da Ribeira Brava
Mesmo faltando evidências documentais que o concentrava larga mão-de-obra escrava, muita dela
corroborem, a conversão de infiéis na pia da Ribeira Brava e proveniente de África. A sua integração na sociedade não
no espaço do templo (em construção por volta de 1504?) constituía o mesmo desafio para as autoridades do que a
deve ter acontecido. Seja como for a pia permeabilizou um integração dos sefarditas, mais influentes, enraizados na
discurso destinado a dissuadir a prática do pecado da sociedade portuguesa e com poderes mais amplos. D. Diogo
heresia, mas também da apostasia, cometido por infiéis Pinheiro, bispo do Funchal nomeado pelo rei em
convertidos, mais do que a intimidar. Nele reconheceriam o detrimento do candidato proposto pela Santa Sé, foi

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tolerante para com os judeus na metrópole e na Madeira, A corda da fé da pia, como elemento mnemónico:
apesar do gênio conflituoso (Trindade, 2016), pois era da símbolo de vínculo, resgate e redenção, manuelina, pode
opinião que a brutalidade das conversões forçadas de remeter para os vários éditos da fé e para a importância das
pouco adiantava (Dias, 2017). Mas o sentimento antijudaico conversões serem atos de tolerância e amor pois a ligação
era transversal a todos os setores da sociedade, incluindo que, pelo batismo o neófito estabelecia com a igreja cristã
os círculos cortesãos e a elite letrada, sujeitos ao xadrez do seria inquebrável, a não ser que posteriormente o batizado,
jogo político e do desenvolvimento dos acontecimentos. em consciência, apostatasse. Tal acontecia com as crianças,
Fazendo eco da vox populi, Garcia de Resende, no que seguiam, depois, pelo credo moiseístico praticado pelos
Cancioneiro Geral (1516), insulta e pragueja contra o pais, no âmbito, secreto, do lar. Sobre o canídeo da pia,
rendeiro da chancelaria Jorge de Oliveira: chama-o de assim como do capitel do portal atual da Capela do
“gram cão” e condena-o ao inferno (Almeida, 2015, p. 192). Santíssimo Sacramento, é oportuno meditar na seguinte
A principal comunidade cristã-nova da ilha estava sentença latina: “lupus est homo homini lupus”: o homem é
sediada no Funchal. Segundo documentação consultada por o lobo do próprio homem (Plauto, c. 254. a.c – 184 a.c.).
Fernanda Olival, antes da primeira visitação que a Na verdade, o rei, convicto de sua alta missão,
Inquisição fez à Madeira, em 1591-92, nos períodos em que procurou, várias vezes, a reconciliação. A primeira delas foi
a genealogia religiosa não era motivo de devassa contínua ter optado pela conversão geral de 1497, provavelmente
movida pelo aparelho inquisitorial acontecia, em situações aconselhado por Levi bem Shemtov, um pregador
de conflito, no dia-a-dia, os cristãos-novos serem alvo de sefardita de Saragoça convertido (Godinho,2016, p.108).
epítetos como “cam, perro, E Judeu”. Havia mesmo os que Segundo um tratatado escatológico do sefardita Abraão
choravam por ter ascendência hebraica. A vergonha de ser Zacuto 1504 seria o ano em que começaria a renovação,
judeu era tal que filhos chegaram a denunciar mães, como messiânica, “da linha gloriosa do rei David” (Godinho, 2016, p.
Ana Dias, cripto-judaizante e rabina convicta do Funchal 90). Em vários frontispícios do Livro das Ordenações aparece
que foi denunciada pelo filho. Eram precisamente as escrito nos filactérios da divisa do rei o seguinte mote
mulheres cristãs-novas quem mais mantinha acesa a chama bíblico: spera in deo et fac bonitatem, “Confia em Deus e
do judaísmo no seio do lar, só passando os preceitos da Faz o Bem”: Salmo 36, versículo 3 (Godinho, 2016, p. 29), algo
religião judaica ao filhos quando o discernimento destes totalmente oposto ao que aconteceu na cidade de Lisboa
para manter o segredo religioso assim o permitisse (Olival, em 1506.
1993, p.506-509). A condição antiga de alguns putos versus moderna
de outros está documentada noutras representações

Fig. 34 - Cadeiral de Coro da Sé do Funchal, negro apanhando Fig. 35 - Emblema da Inquisição, 1571, © pt.wikipedia.org
frutos (cocos?), c. de 1515-1517, © Higino Faria.

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insulares, como o cadeiral de coro da Sé do Funchal e o alma por vaguear, proscrito, na sua nudez terrena,
portal da Capela do Santíssimo Sacramento da Igreja de condenado ao inferno ou ao limbo, o cristianismo veio
Nossa Senhora da Luz. Se no primeiro um gnomo ou gênio propor a redenção através de um homem novo o homem
da floresta cofia os cabelos, em sinal de sanha, raiva ou cristão (Faria, 2015, p. 114).
mesmo troça (Faria, 2013, Vol. II. p. 57), no segundo vários
putos negros protagonizam tarefas diversas e Considerações finais
comportamentos grotescos. A referência ao mundo antigo
do portal da Ponta do Sol parece ser o capitel figurativo, o Distinta da primeira abordagem da pia, mais formal
mais interior, cuja representação, frustre, pode se tratar de do que iconográfica (Lizardo, 2010, p. 21), este ensaio reclama
Daniel na Cova dos Leões, já a presença, insistente, do não só uma “inteira originalidade artística” para esta obra
negro, em especial em criança ou em idade jovem, seja a (Faria, 2012, p. 51) como até uma iconologia própria, achada
tocar tambor seja ou a apanhar cocos (Carita, 2016), parece na comparação com outras obras de sabor luso-flamengo
aludir para uma nova era. Estas figuras adãmicas ou ou nórdico, da iluminura à escultura pétrea, e não tanto
decaídas, infantilis limbus (Antunes, 2016, p. 477), como a que com obras mudéjares ou nazari de fabrico estandardizado
aparece marginada na pia da Ribeira Brava, remetem para e, por isso, desprovidas de conteúdo narrativo. Há na pia
uma civilização primária, anterior à antiga Lei de Moisés das batismal da Ribeira Brava uma tradição cénica tardo-
primeiras tribos hebraicas ou similar à dos gentios medieval, cuja necessidade de leitura acabou por se
espalhados pelo mundo que as caravelas e as naus sobrepor às problemáticas internas do ornamento:
portuguesas puseram a descoberto. A este propósito, é características, espaços, funções, designações, como
pertinente referir o detalhe, deveras curioso, de uma nau, categorias operativas que interessam mais à teoria da
gravada, por incisão, no Cadeiral da Sé do Funchal. historiografia da arte, porque afinal o significado geral das
A cultura hebraica era, tal como a cultura cristã, uma suas figuras estava por encontrar.
cultura do livro e da exegese bíblica, logo, neste jogo de Embora recorrendo a noções teóricas e terminologia
espelhos de intolerância mútua, as estratégias de acusação recente aplicada à decoração; vimos como a marginalia da
e conversão tinham que passar tanto pela doutrinação pia tão se trata de ornamento tão “supérfluo” ou licencioso
pastoral como pela eficácia da imagem por forma a evitar como noutros casos de semantização da arquitetura em
que os neófitos que haviam abjurado reincidissem nas suas que o simbolismo é menos ostensivo, visível, observável
anteriores práticas. Ora o maior perigo à unificação (Antunes, 2016, pp. 87-106). No caso presente, o ornamento
religiosa do reino, visto que o centralismo régio vem ditar icónico foi sujeito à aprovação do comitente, pois era
que “a religião do príncipe é a religião do reino” era, indispensável para a interpretação, liminar, da liturgia do
sobretudo, o criptojudaísmo, praticado por progenitores de batismo. Assim, a ótica proposta por este ensaio primou a
crianças batizadas, mas não realmente convertidas, porque análise iconológica, teológica e ideológica a partir do estudo
incapazes de em exame de consciência puderem escolher iconográfico e plástico da pia, isto é, encarou-a à luz da
(Tavares, 2002 p. 28). cultura visual, imaginário, fontes e conjuntura histórica.
Em 1497, já depois do decreto da expulsão dos O batizado é, na meta-narrativa que este objeto
judeus, o rei ordena, tendo em vista um religiocídio ritual pressupõem, o seu protagonista e destinatário, mas
simbólico, primeiro, que o culto hebraico fosse totalmente os animais, e respetivos atributos morais eloquentemente
varrido do território, confiscando bibliotecas e ocupando representados, que à igreja cabia distinguir do homem
sinagogas — não sem o zelo, formal e jurídico, que tais cristão, são os principais atores visados, sendo o meio
medidas exigiam, não fossem estas configurar atos ambiente, silvestre ou artefactual, o pano de fundo de um
bárbaros e de profanação (Godinho, 2016, p. 108) contra a teatro alegórico-moralizante, tão rico sobre o contexto
memória de um povo bíblico, distinto dos gentios — e sociológico da cristandade na Península Ibérica num
autoriza, depois, a retirada de custódia de menores de período de tantas convulsões entre maiorias e minorias,
catorze anos a pais judeus que recusaram receber o resultantes de uma nova ordem geopolítica do mundo e do
batismo, o que já havia acontecido durante o reinado de D. ocidente, traçada por portugueses e castelhanos,
João II, quando crianças judias chegam a ser retiradas aos mensagem que os comitentes do Cadeiral da Sé também
pais e levadas para São Tomé, pelo donatário do procuraram deixar.
arquipélago, Álvaro de Caminha (Tavares, 2002, p.26). A verdadeira iconografia normativa da pia, extraída
Só o cristianismo, através do sacramento do do seu labirinto de formas e significados, é a unidade
batismo, podia impedir o regresso de um tempo ancestral e espiritual do reino, votada para a eficácia da empresa régia
amoral. Por oposição a um homem antigo sem direito a e para a eficácia do poder eclesiástico segundo o ideal de

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expansão cristã promovido pela Ordem de São Bento de fim, que este estudo vem confirmar a importância
Avis e da Ordem de Cristo de que o próprio rei se torna extraordinária desta obra para a história da arte e da
administrador. religião em Portugal e na Madeira no começo da
Esgotadas as leituras da peça para esta modernidade.
oportunidade, ficou a descoberto o enquadramento
simbólico que a peça pedia. Apesar de várias questões Bibliografia
ficarem em aberto, apuramos que esta pia contêm uma
AFONSO, Luís Urbano, 2006, Iconografia antijudaica em Portugal
narrativa historicista e testemunha um processo social e
(séculos XIV – XV), Caderno de Estudos Sefarditas, nº 6, pp. 101
religioso complexo e ainda obscuro que o rei procurou, -131, Lisboa.
sempre, controlar, enquanto ministro supremo da justiça ALMEIDA, Francisca Pires, O Corpo Figurado dos Judeus em Braga
no reino. Não seria excessivo dizer que a pia, no conjunto nos Inícios do Século XVI, in digitAR, nº 22, 2015, pp. 186-194,
das suas funções rituais e simbólicas, pode ser em território Coimbra.
ALMEIDA, José António Ferreira de (coord.), 1976, Caldas da
insular, uma súmula do processo de religiocídio que foi
Rainha, Tesouros Artísticos de Portugal, ed. Readers Digest,
praticado contra outras religiões (em especial contra o
Lisboa.
judaísmo sefardita) com maior severidade nos grandes ALVES, Ana Maria, 1985, Iconologia do Poder Real no Período
centros urbanos da metrópole, em nome da unificação Manuelino, Lisboa, ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda.
religiosa e da centralização do poder sob a égide do ANTUNES, Joana, 2011, Uma epopeia entre o sagrado e o Profano:
cristianíssimo rei D. Manuel I (Faria, 2016, p. 141), tal como o Cadeiral de Coro do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra,
dissertação de mestrado, Faculdade de Letras da Universidade
demonstram abordagens histórico artísticas de outras pias
de Coimbra), Coimbra.
e peças de mobiliário coral em que a subjugação do ANTUNES, Joana, 2016, O Limite da Margem na Arte em Portugal
discurso bestial pelo racional parece mais evidente (sécs. XIV-XVI), tese de doutoramento, Faculdade de Letras da
consoante se avança pelo século XVI a fora. Universidade de Coimbra, Coimbra.
É aceitável, ainda, que 1504 corresponda à data AZAMBUJA, Sónia, 2009, A Linguagem Simbólica da Natureza: A
aproximada de execução desta peça basáltica na fábrica da Flora e Fauna na Pintura Seiscentista Portuguesa, ed. Nova
Vega, Lisboa.
paroquial da Ribeira Brava, mesmo que o seu templo
BRAGA, Maria Manuela, 1997, Os Cadeirais de Coro no Final da
tivesse em obras, visto que era necessário dar resposta ao Idade Média em Portugal, dissertação de mestrado, 2 vol.,
normal funcionamento da vida religiosa, pois que sem o Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade de
sacramento do batismo outros sacramentos não poderiam Lisboa, Lisboa.
ser ministrados. Se casais de judeus residiram na localidade Bíblia Sagrada, 1988, Lisboa, ed. Difusora Bíblica (Missionários
Capuchinhos), Lisboa.
da Ribeira Brava havia mesmo alguma urgência em que o
CARITA, Rui,1996, “A Matriz da Freguesia da Ribeira Brava”, in
sacramento do batismo fosse ministrado a estas pessoas, Islenha, nº 19, Jul-Dez., ed. DRAC, Funchal.
segundo as ordenações régias, mas também a guanches, CRAVEIRO, Lurdes, 1997, “Influência dos Escultores do Norte na
mouros escravos e forros, e negros praticantes dos mais Obra de Diogo Pires”, in O Brilho do Norte: Escultura e
diversos cultos animistas da África subsariana. Escultores do Norte da Europa em Portugal: Época Manuelina,
Na verdade, está por mapear, circunscrever e ed. Ministério da Cultura, Lisboa
CRUZ, Maria Leonor, 2002, “Gil Vicente e o Império”, in História de
estudar, a fundo, toda a iconografia marginal antijudaica
Portugal: dos tempos pré-históricos aos nossos dias, vol. IV: Os
em Portugal e no arquipélago da Madeira, embora esse Descobrimentos I – O Mar sem Fim, (dir. João Medina), ed.
caminho esteja já sendo trilhado por uma nova S.A.P.E, Madrid.
historiografia interessada em compreender o reflexo CUSTÓDIO, Delmira Espada, 2010, A Luz da Grisalha. Arte, Liturgia
artístico deste estigma racial, social e religioso que e História no Livro de Horas dito de D. Leonor , dissertação de
mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
perdurou até ao século XX.
Universidade de Lisboa, Lisboa.
Toda a retórica subjacente a esta obra vem reforçar
DESWARTE, Sylvie, 1977, Les enluminures de la Leitura Nova (1504
a imagem de uma comunidade multiétnica e de uma -1552): étude sur la culture artistique au Portugal au temps de
realidade ideológica complexa, demonstrando como o lugar l'Humanisme., ed. Fundação Calouste Gulbenkian; Centro
da Ribeira Brava apesar de não ter sido elevado a vila no Cultural Português, Paris.
período manuelino tinha uma intensa vida espiritual, DIAS, Pedro, 2008, Madeira: História da Arte Portuguesa no
Mundo, vol. nº2. ed. Círculo de Leitores, Lisboa.
cultural e económica, a começar pela sua paroquial
FARIA, Higino, 2012, “Acerca do conjunto de escultura pétrea da
constituída por clérigos locais e metropolitanos, que viria a Igreja de São Bento da Ribeira Brava”, in Islenha, nº 50, (Jan.-
ter colegiada em 1540, mas só teria, oficialmente, lugar de Jun), Funchal, ed. DRAC, pp. 33-60, Funchal.
pregador a partir de 1560, embora o seu púlpito já devesse FARIA, Higino, 2013, Escultura Arquitetónica na Sé do Funchal: das
existir quando se deu a instalação, oficial, do Santo Ofício formas e dos temas do Gótico Tardio Internacional à Simbólica
Manuelina do Poder, Vol. I- II, Coimbra, Dissertação de
em Portugal, em Évora, no ano de 1536. Considera-se, por
41
mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, SOUSA, Francisco Clode de, 192, “As Pratas da Matriz de Santa
Coimbra. Cruz. Primeira Abordagem”, in Islenha nº 10, Janeiro- Junho,
FARIA, Higino, 2016, “Nótula de correção de dado cronológico Funchal.
avançado no artigo intitulado 'Acerca do Conjunto de Escultura TAVARES, Maria José, 2002, “A expulsão dos Judeus de Portugal”,
Pétrea da Igreja de São Bento da Ribeira Brava'”, in Islenha nº in História de Portugal: dos tempos pré-históricos aos nossos
58 Janeiro-Junho 2016, pp. 139-142, Funchal. dias, vol. VI: Judaísmo, Inquisição e Sebastianismo (dir. João
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SILVA,Heitor, 2014, O Fenómeno Mudéjar no Tardo-Gótico
Alentejano, dissertação de mestrado, Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, Universidade de Lisboa, Lisboa.

42
A Ponta do Pargo no percurso do pintor Alfredo
Miguéis
Paulo Ladeira
Docente destacado no CEDECS

Resumo
Alfredo Miguéis nasceu e faleceu no Funchal (28.04.1883 – 10.07.1943), colega dos artistas Henrique e Francisco
Franco, estudou na Escola Industrial do Funchal, Academia de Belas Artes de Lisboa e foi pensionista do Estado em Paris.
Expôs por diversas vezes no Funchal, Lisboa, Açores e Paris. Era um mestre no retrato e na pintura de paisagem,
representando, entre outros locais, inúmeras vezes a Ponta do Pargo. Este artigo tem o propósito de analisar a sua relação
com a Ponta do Pargo, a zona mais “aoeste” da Madeira.

Palavras-chave
Alfredo Miguéis, Ponta do Pargo, Modernismo, Arte, Francisco e Henrique Franco.

Alfredo Miguéis nasceu no Funchal, na freguesia da seu casamento com o marceneiro Francisco de Sousa
Sé a 28 de abril de 1883, filho legítimo de Joaquim Francisco Franco, natural da freguesia de São Pedro (Funchal). A
Miguéis e de Elisa Sara Aguiar Miguéis. Casou a 6 de ligação dos irmãos Franco à Ponta do Pargo manteve-se
setembro de 1908 no Funchal, na paróquia da Sé, com depois da estadia em Paris, embora a residir no Funchal,
Maria Eugénia Gonçalves, de 24 anos, mulher que se por exemplo em 1919 passaram o verão, em setembro de
ocupava dos serviços domésticos. Passado um ano, no dia 1926 e 1930 estiveram ambos com a família nesta
26 de julho de 1909, nasceu a sua única filha, de nome localidade (DM, 11-10-1919, p.2; DN, 05-09-1926; DM, 03-10-
Cecília, que casou em 1927 com Noé Pedro de Alcântara 1930, p. 2). Destas viagens à Ponta do Pargo executaram
Andrade e tiveram três filhos: Gil, Duarte e Fernanda. desenhos e pinturas de cenas campestres e de familiares da
Depois de ter estudado no Funchal, na Escola Ponta do Pargo. A ligação de Henrique a esta freguesia era
Industrial e Comercial António Augusto de Aguiar, mais próxima, pois em 1913, encontrando-se em Paris,
prosseguiu a aprendizagem em Lisboa e em Paris. casou com Amélia de Jesus Pereira, natural da Ponta do
Aquando dos seus estudos na Academia de Lisboa, Pargo, ela de 36 anos, ele de 30, e foi representado por
expôs coletivamente na Sociedade Nacional de Belas Artes procuração, pelo irmão Francisco Franco.
(SNBA) em 1910 e 1911 (catálogos da 8.ª e 9.ª Exposições da Esta relação próxima dos irmãos Franco com Alfredo
SNBA, Lisboa, 1910 e 1911). Da Ponta do Pargo, Alfredo Miguéis fez com que este, por várias vezes, se deslocasse à
Miguéis expôs, em 1910, três aguarelas intituladas “Ermida Ponta do Pargo, nas férias do verão, pelo menos entre 1908
do Amparo (P. Pargo, Madeira)”, “Palheiros (P. do Pargo, e 1926, por vezes em conjunto com os irmãos Franco, como
Madeira)” e “Casa do Ti Ferreiro (P. Pargo, Madeira)”. Expôs ocorreu em agosto de 1919. Deixou muitas obras
ainda as aguarelas “Ilhas desertas (Madeira)”, “Impressão representando esta localidade, principalmente aguarelas,
(Madeira)”, “Costume portuguez” e 4 “Estudos”, todos com assinadas e datadas, entre outras identificadas/intituladas
a dimensão de 0,27 x 0,37 cm, à venda com os valores de 10 apenas por “Madeira” e que muitas delas reportam-se à
$000 a 15$000 réis, exceto a aguarela “Ermida do Amparo” Ponta do Pargo, como se constata nas caraterísticas da
e “Palheiros” que não estavam à venda. paisagem com a igreja, o pico das Favas, os montes da serra
Como constatamos, Alfredo Miguéis, na exposição e a planura central do sítio do Salão. Alfredo Miguéis
de 1910, colocou em destaque, na técnica da aguarela, a gostava de representar as tradições das populações e
Ponta do Pargo. Mas porquê o extremo oeste da Madeira – sobretudo as paisagens campestres e pitorescas com os
a Ponta do Pargo? Alfredo Miguéis era colega e muito templos, habitações, palheiros, caminhos, culturas e
amigo dos irmãos Henrique e Francisco Franco, pois os pais pinheiros. Segundo as notícias dos jornais e as datas
tinham a mesma profissão e os três frequentavam a mesma registadas nas pinturas temos conhecimento da sua
escola. A mãe dos irmãos Franco, Maria Carolina Pereira, presença na Ponta do Pargo, pelo menos nos anos de 1908,
era natural da Ponta do Pargo mas mudou-se para o 1912, 1919, 1922, 1923, 1924, 1925 e 1926.
Funchal (Santa Luzia), pelo menos já em 1875, aquando do

43
Pinturas a aguarela s/ papel, Alfredo Miguéis
À esquerda:
Fig. 1 – “Ponta do Pargo—Madeira” (Paisagem com a igreja), 23 x 14
cm, 1908, coleção particular.
Fig. 2 – “Ponta do Pargo—Madeira” (Paisagem com templo— capela
do Amparo?), 23 x 14 cm, 1908, c.part.
Fig. 3 – “Ponta do Pargo—Madeira” (Campanário de capela—N.ª Sr.ª
da Boa Morte?), 14 x 23 cm, 1908, c.part.
À direita:
Fig. 4 – “Ponta do Pargo—Madeira” (vista do atual Caminho da Fonte
Velha, a partr do lado norte), 25 x 17,5 cm, 1912, c.part.
Fig. 5 – “Ponta do Pargo—Madeira” (Paisagem com caminho, palheiros
e casas), 25 x 17,5 cm, 1912, c.part.
Fig. 6 – “Ponta do Pargo—Madeira” (igreja e casa paroquial), 25 x 17,5
cm, 1912, c.part.

44
Além dos trabalhos apresentados na exposição da O apego que tinha à Madeira e à família levam-no a
SNBA, em 1910, chegaram aos nossos dias outras três transferir-se para o Funchal, em 1916, através de permuta
aguarelas da Ponta do Pargo, datadas de 1908, assinadas e com José Pedro Nolasco, professor da Escola de António
legendadas com o nome da Ponta do Pargo, alusivas à Augusto de Aguiar, no Funchal, sendo ambos professores
igreja e capelas da localidade. Numa das aguarelas é visível do 1º grupo de disciplinas (Diário do Governo, II série, n.º 273,
a igreja paroquial de São Pedro e os terrenos em seu redor 18.11.1916, p. 4002, por decreto de 28.10.1916).
(fig. 1). Noutra aguarela constata-se parte de uma capela, Além do ensino público, Alfredo Miguéis ensinava
com uma escadaria em pedra que leva até um campanário pintura e desenho no seu atelier, situado na sua residência,
com um pequeno sino, um pequeno muro do adro e ao à rua da Carreira n.º 56, local onde funcionou, mais tarde, o
fundo a linha do horizonte a separar o mar do céu. Pelas Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira, desde a
caraterísticas envoltas da paisagem, este campanário década de 1970 até 1998. Alfredo Miguéis tinha, no atelier,
parece corresponder ao da capela de N.ª Sr.ª da Boa Morte, uma sala onde exponha as suas pinturas.
no sítio do Cabo (fig. 3). Na terceira aguarela verifica-se a
torre de um templo, podendo ser a da igreja paroquial ou
da capela do Amparo (fig. 2).
Da ida de Alfredo Miguéis à Ponta do Pargo, em
1912, conhecemos três aguarelas onde se destaca o gosto
pelas construções da localidade, prevalecendo a pincelada
segura e os tons suaves e claros com ênfase para os verdes,
ocres e azuis acinzentados. Numa destas aguarelas, que
corresponde à vista da atual “Travessa da Fonte Velha”,
vista a partir do lado norte, observamos as habitações
tradicionais, de modelo único, de dois pisos, sobressaindo a
claridade da cal, as janelas superiores, os telhados e os
arredores com arbustos e árvores. Noutra aguarela sente-se
o ambiente natural da vegetação e dos palheiros edificados
com pedra e cobertos com restolho. A terceira aguarela
corresponde a um registo da igreja da Ponta do Pargo com
a casa paroquial em tons ocres e os campos dianteiros
cultivados, onde atualmente se encontra edificado o Centro
Cívico (fig.s 4 – 6).
Depois da sua estadia em Paris, entre 1912 e 1914,
com a eclosão da I Guerra Mundial, é obrigado a regressar à
ilha da Madeira tendo chegado em 17 de junho deste ano
(DM, 28.06.1914, p. 2), dedicando-se ao ensino até à data da
sua morte, entre 1914 e 1916 na cidade de Setúbal e os
restantes anos no Funchal.
Na exposição da SNBA de 1915 (dezembro),
Exposição de Aguarela, Desenho e Miniatura, apresentou
quinze aguarelas incluindo o trabalho intitulado “Palheiros
(Ponta do Pargo, Madeira)”. Nesta exposição prevaleceram
aguarelas realizadas em Paris, Setúbal e na cidade do
Funchal: “Jardin du Luxembourg (Paris)” datado de 1913,
“Square de l’Observatoire (Paris)”, “Rue Notre-Dame des
Champs (Paris)”, “Fontainebleau”, “Barra do Sado (Setúbal”,
“No Sado (Setúbal)”, “Tarde no Sado (Setubal)” (I e II), “Casa
velha, no Bonfim”, “Torre de Santa Clara (Funchal)”, “Uma
casa no Valle Formoso (Funchal)”, “No bairro de Santa
Maria (Funchal)” (I e II), “Porta de Quinta (Funchal)”. Em
desenho apresentou “Cecília” e três estudos.
Na exposição da SNBA de 1916, 2.ª Exposição de
Aguarela, Desenho e Miniatura, apresentou oito aguarelas,
das quais duas eram da Ponta do Pargo: “A igreja (Ponta do
Pargo, Madeira)” e “Um caminho (Ponta do Pargo,
Madeira)”. As restantes seis eram de motivos de Setúbal.
Alfredo Miguéis expôs individualmente, em fevereiro de
1916, no Teatro Luiza Tudi, em Setúbal, oito desenhos e
dezasseis aguarelas, a maioria já expostas nas duas Fig. 7—“Madeira” (Ponta do Pargo: balcão com videiras e igreja
exposições da SNBA, atrás mencionadas. Nesta exposição, ao fundo) aguarela s/papel, 26 x 20 cm, A. Miguéis, 1919, c.part.
mostrou duas pinturas da Ponta do Pargo: “Caminho” e Fig. 8— “Madeira” (paisagem com palheiros e pinheiros) aguarela
“Palheiros” (in: catálogo da 1ª Exposição de Arte, Teatro Luíza s/papel, 39 x 28 cm, A. Miguéis, 1919, c.part.
Tudi, Setúbal, 1916).

45
Alfredo Miguéis ao fixar-se no Funchal continuou a importante para a obra de Miguéis, sendo conhecidas
praticar a sua arte. Na 5.ª Exposição de Aguarela, Desenho várias aguarelas realizadas nesta localidade, em 1919, com
e Miniatura, realizada na SNBA, em 1919, apresentou oito a temática atrás mencionada (fig.s 7, 8).
aguarelas, todas da Ponta do Pargo, nomeadamente: “Um Em abril de 1922 destaque-se a participação na
moinho”, “Terras cultivadas”, “Pinheiros à tarde”, “Um exposição “Grupo dos Seis”, inaugurada no dia 26, e que
palheiro”, “Colmo e flores”, “Palheiros à tarde”, “Tarde consistiu na primeira exposição coletiva de arte moderna
(impressão)” e “A’ minha porta”, encontrando-se todas à
venda, exceto a última, pela quantia variável entre os 30 Fig. 9 — “A dobadoura” (Ponta do Pargo), óleo s/tela, 80 x 65 cm,
$000 e os 70$000 réis, cada uma. A Ponta do Pargo nos 1919, coleção do Museu de Lisboa / Câmara Municipal de
finais da década de 10 e inícios da de 20 foi muito Lisboa—EGEAC (n.º inv. MC.PIN.0245)

46
realizada na Madeira, na galeria de arte do Casino Pavão,
sob iniciativa de Henrique Vieira de Castro. Na exposição
participaram também Madeleine Gervex Emery, Bernard
England, Francisco Franco, Henrique Franco e Roberto
Vieira de Castro (Catálogo “Grupo dos Seis”, Galeria de Arte do
Casino Pavão, Funchal, 1922). Nesta exposição, Alfredo
Miguéis apresentou diversas obras, entre as quais oito
aguarelas da Ponta do Pargo, reveladoras das suas
capacidades nesta técnica: “Um caminho”, “Pequena
camponeza”, Pinheiro á tarde”, “Malvas”, “Tarde d’outono”
e “Estudo” (I, II e III). Na imprensa escrita referia-se que
eram “paisagens da Ponta do Pargo, cheias de sol, da luz e
das cores tão genuinamente madeirenses. Aqueles poentes
do extremo ocidente da Madeira, por entre os perfis
adoráveis dos pinheiros contra um mar que vai d’ali até ao
Novo Mundo sem parar!” (DN, 26-04-1922, p.1).
Em 1923 a Exposição “5 Independentes – Exposição
de Pintura Esculptura Gravura Desenho”, realizada na
SNBA, em Lisboa (rua Barata Salgueiro), conta com a
participação de Alfredo Miguéis, Dórdio Gomes, Henrique
Franco, Francisco Franco e Diogo de Macedo. A exposição
teve um grande impacto a nível nacional, sendo marcante
na História da Arte Portuguesa, pois estes artistas
manifestavam a sua vontade de ir mais além do que se fazia
então em Portugal, seguir a tendência do Modernismo
valorizando a expressão. Fig. 10 — “Sarilhando”, óleo s/tela, 1919, in: rev. Ilustração
Nesta exposição, entre os setenta e quatro trabalhos Madeirense, n.º 1, dezembro 1919.
apresentados por Alfredo Miguéis, pinturas a óleo,
aguarelas, desenhos e gravuras com representações de um pouco antes, representando uma moça a ensarilhar
retratos, naturezas mortas e paisagens de Paris e da (ordenar os fios em meadas), com caraterísticas físicas
Madeira figuraram cinco desenhos intitulados “Pinheiros na semelhantes à moça da pintura “A Dobadora” devendo
Ponta do Pargo” e vinte e seis aguarelas intituladas tratar-se da mesma personagem da Ponta do Pargo (fig.
“Paysagem da Madeira, Ponta do Pargo”, identificadas no 10). Em 1931, na VIII exposição anual de arquitetura,
catálogo entre os números 32 e 57, o que constitui o maior aguarela e miniatura expõe as aguarelas: “Telhados e
número de trabalhos de Alfredo Miguéis apresentados Montanha (Funchal)”, trabalho reproduzido na revista
sobre a Ponta do Pargo numa exposição. Desta mostra Ilustração Madeirense, n.º 4 (março 1932), p. 16, “Casa de
destaque-se a pintura a óleo “A Dobadora, Ponta do Pargo, Camponez (Madeira)” (I e II), “Uma vereda (Madeira)” e
Madeira” (80 x 65 cm), pintada em 1919, patente no “Um Caminho (Madeira)” e os desenhos “Pequena do
catálogo da exposição com o número 11 e pertencente Campo (Madeira)” (I, II e III). Nesta exposição obteve a
atualmente à coleção do Museu da Câmara Municipal de primeira medalha no género de desenho e as suas pinturas
Lisboa. Nesta pintura, de fundo escuro, de influência de foram muito apreciadas pelo júri e pela crítica, sendo
Columbano, vê-se em segundo plano uma lareira com uma elogiado como um dos melhores artistas da exposição e
pequena chama e em primeiro plano uma jovem rapariga aguarelistas de Portugal, inconfundível pela simplicidade e
de blusa branca, saia vermelha com três conjuntos mancha larga que impregna nas aguarelas. Os seus
horizontais de riscas (três listas cada um) de tons escuros e desenhos eram caraterizados pela expressividade,
bota chã que segura nas mãos o novelo de linho que vai simplicidade formal, um “desenho dôce, expressivo, com
obtendo a partir do enrolamento da meada que está na mais alma que tinta. São quase uma abstração” (DM,
dobadoura (fig. 9). 13.01.1931, p. 2; DM, 25.01.1931, p. 2 citando Martins dos Santos
Exteriormente à Madeira, Alfredo Miguéis participou em a Voz de 10.01.1931 e Artur Portela do Diário de Lisboa; DM,
ainda nas exposições da SNBA em 1929, 1930, 1931, 1932 e 12.02.1931, p. 1).
1937. Nestas exposições é menor a presença de trabalhos Quanto às pinturas a aguarela (fig.s 11 – 17), Alfredo
sobre a Ponta do Pargo, optando por intitulá-los apenas Miguéis coexistiu com a sedução da Pintura Oitocentista e a
com o nome Madeira, embora alguns se reportem àquela tradição romântica da representação das paisagens
localidade. Na exposição de 1929, a 7.ª Exposição de pitorescas, como os recantos do Funchal, as paisagens da
Arquitetura, Aguarela, Desenho, Gravura e Miniatura, expôs Ponta do Pargo, Setúbal, França e as cenas de costumes e
sete aguarelas: “Retrato”, “Trigo”, “Casa Aldeã”, “Um de género da Madeira, tão reproduzidas pelos turistas que
moinho”, “Pinheiros” (I, II e III) e seis pinturas a óleo: a visitavam.
“Telhados do Convento de Santa Clara (Funchal)”, A partir de meados da década de 20, Alfredo Miguéis
“Pinheiros e giestas (Madeira)”, “Trigo (Madeira)”, retrai-se das tendências modernistas e dedica-se à
“Pinheiros (Madeira)”, “Uma vereda (Madeira)” e realização de algumas pinturas de encomenda, sendo
“Sarilhando (Madeira)”, esta última, executada em 1919 ou conhecidas algumas obras nomeadamente na igreja do
convento de Santa Clara do Funchal e na Câmara Municipal

47
Pinturas a aguarela s/ papel, Alfredo Miguéis
À esquerda:
Fig. 11 – Paisagem, 35 x 27 cm, 1922, c.part.
Fig. 12 – Entrada do adro da igreja e casa
paroquial, 35 x 27 cm, 1923, c.part.
Fig. 13 – Paisagem , vista a partir do Salão de
Cima—atual caminho dos Currais, vendo-se
o síto da Lombadinha, sítio do Amparo com
a antiga capela e ao fundo o Pico do Poiso da
Fajã da Ovelha, 35,5 x 25,5 cm, não
assinado, não datado (c. 1922/193), c.part.
À direita:
Fig. 14 – Casa térrea com árvores, 21 x 14
cm, 1921, c.part.
Fig. 15 – Paisagem, 35 x 18 cm, 1923, c.part.
Fig. 16 – Paisagem com casa, igreja paroquial
e o Pico das Favas, 25 x 17,5 cm, 1922,
c.part.
Fig. 17 – Vista a partir do atual caminho dos
Currais, no Salão de Cima, vendo-se à direita
parte do sítio da Lombadinha e ao fundo o
sítio da Corujeira, 25 x 25 cm, 1924, c.part.

do Funchal. Ainda da Ponta do Pargo,


em 1931, para o cônsul de França no
Funchal, F. H. Cunha, realizou um
trabalho decorativo para colocar na
sala, representando uma paisagem
impregnada de um grande sentimento
poético, “numa harmonia de fim de
tarde, céu róseo, longes azulados,
verdes e gris de pinheiros, vermelhos de
flôres” (DM, 21-07-1931, p. 1).
Na sequência do projeto da
criação do Museu Regional, a Câmara
Municipal do Funchal adquiriu a Alfredo
Miguéis noventa e cinco pinturas que
se encontravam à guarda no Palácio de
São Pedro, local previsto para o Museu.
No entanto, na madrugada de 10 de
Janeiro de 1947, um incêndio deflagrou
no palácio (DN, 11.01.1947, pp. 1 e 4;
Campos, Malho, 1963) e extinguiu para
sempre a maior coleção de obras de
Alfredo Miguéis. A coleção estava
catalogada com trinta e sete trabalhos
alusivos à Ponta do Pargo,
nomeadamente vinte e cinco aguarelas
de paisagens, oito pinturas a óleo
“Paisagens da Ponta do Pargo”, três
“pequenos quadrinhos da Ponta do
Pargo”, um desenho a lápis negro de
“Cabeça de rapariga rústica (Ponta do
Pargo)” e quatro desenhos a lápis negro
de “Paisagens de pinheiros ao
entardecer”, provavelmente estes na
totalidade ou alguns também da Ponta
do Pargo (in: inventário de obras
entregues à Câmara Municipal do
Funchal).

48
Como reparamos, Alfredo Miguéis teve um início
de carreira invejável para muitos jovens artistas, elogiado
na Madeira, em Lisboa e em Paris, afirmando-se
notoriamente nas décadas de 10 e 20 do séc. XX. Poderia
ter prosseguido com maior fama se se mantivesse numa
destas capitais depois dos seus estudos. Por exemplo, foi-
lhe sugerido várias vezes para concorrer à lecionação de
uma cadeira na Escola de Belas Artes de Lisboa, mas
preferiu viver serenamente na ilha da Madeira junto da
sua família, amigos e companheiros, do que afastar-se
para o Continente (Araújo, p. 13), mantendo-se assim “…
independente de tudo e de todos”. Ao fixar residência no
Funchal deu grandes contributos à criação artística na
Madeira, participando em inúmeras e diversificadas
atividades como Pintura, Azulejo, Embutido, Ilustração e
o Ensino das Artes Plásticas.
O projeto para perpetuar e partilhar a sua arte
com as futuras gerações foi arrasado pelo infortúnio
incêndio da madrugada de 10 de Janeiro de 1947 que
devorou noventa e cinco pinturas, uma grande parte da
sua obra. Reunir as obras de um artista madeirense, do
Modernismo, foi pioneiro na Madeira, muito antes da
criação do Museu Henrique e Francisco Franco,
inaugurado em 1987 com peças adquiridas aos herdeiros
nos anos de 1966 e 1972. Alfredo Miguéis foi um pintor
que teve uma formação e vida artística realizada muito
em conjunto e bastante paralela aos irmãos Franco e em
nada inferior a estes. No entanto, após a sua morte e o
dito incêndio, Alfredo Miguéis foi ficando aos poucos no
esquecimento sendo a divulgação e o estudo da sua obra
bastante reduzido.
Do espólio da obra de Alfredo Miguéis ainda
restam algumas obras em coleções públicas e privadas,
entre outras desconhecidas, adquiridas por particulares
ao longo dos anos. Perante o seu percurso académico,
artístico e de professor e a obra que ainda sobrevive,
Alfredo Miguéis merece uma segunda oportunidade, no
que concerne à projeção da sua produção artística, no
contexto do Modernismo Português, compilando
algumas das suas obras, e quem sabe se não colocá-las
em diálogo permanente no Museu Henrique e Francisco
Franco e se este não deveria designar-se Museu Miguéis
e irmãos Franco – artistas Modernistas da Madeira?

Nota: Créditos fotográficos das figuras 1 - 8, 11 -


17: © Gil Miguéis Andrade e Fernanda Miguéis Andrade,
netos do pintor Alfredo Miguéis, 1999, a quem agradecemos
a cedência das imagens.

Fontes e Bibliografia

Arquivo da Escola Secundária Francisco Franco - (AESFF), L.º de


Matrículas n.º 1.
Arquivo e Biblioteca Pública Regional da Madeira (ABM),
Registos Paroquiais (RP), Sé, Casamentos, L.º 6448 A.
ABM, CMF, livro de atas n.º 31, ano de 1941.
Catálogos das Exposições da Sociedade Nacional de Belas Artes
(SNBA), 1910—1937.
Catálogos das Exposições “Grupo dos Seis” e “5
Independentes”.
Periódicos: Correio da Madeira, Diário da Madeira, Diário de
Notícias (Funchal), Eco do Funchal, Heraldo da Madeira,

49
Jornal da Madeira, O Jornal.

Araújo, Juvenal de, 1943, Homenagem ao Professor Alfredo


Migueis / Discurso proferido na sessão consagrada à sua
memória em 10 de Novembro de 1943, na Escola Industrial e
Comercial do Funchal.
Campos, Vasco F., Malho, Alberto, 1963, O Bombeiro Madeirense
e a sua História, Funchal.
Gomes, A. Reis, A Arte do Embutido na Ilha da Madeira e o
aproveitamento das madeiras regionais, Funchal.
Henriques, Jordão, 1912 (24 março), DM, Ano I, nº83, p. 1.
Macedo, Diogo, 1943 (setembro), “Notas de Arte”, Revista
Ocidente, vol. XXI, n.º 65, p. 83.
Nascimento, 1931, “Criação e funcionamento da Aula de Desenho
e Pintura do Funchal”, in rev. AHM, vol. I, pp. 34 – 40.
Santos, Baptista, 1943 (1 de abril), “Mestre Joaquim Migueis”, Eco
do Funchal, Ano III, n.º 130, p. 1.
Santos, Baptista, 1943 (24 de janeiro), “Uma visita ao «atelier de
Alfredo Migueis», Eco do Funchal, Ano II, nº111, pp.1 e 4.
Tavares, Edmundo, 1948, Terra Atlântida (Impressões da
Madeira), Bertrand (Irmãos), Lda.

50
As vistorias municipais nas serras do concelho
da Calheta: espaço, conflito e poder (1827-
1874)
Ana Madalena Trigo de Sousa
Investigadora-Auxiliar
CEHA/Direção Regional da Cultura

Resumo

As vistorias realizadas pela câmara municipal da Calheta, nas serras do seu concelho, entre os anos de 1827 e de
1874, constituem o tema deste artigo. Dividido em duas partes, este ensaio pretende, por um lado, apresentar uma
caracterização do concelho da Calheta em pleno século XIX, com elementos sobre o seu espaço; sobre a instituição
municipal e sobre a evolução demográfica verificada; e, por outro, apresentar uma análise sobre as vistorias camarárias,
aferindo a sua localização, a sua quantificação, as tipologias dos problemas identificados, e a forma como a vereação
exerceu o seu poder disciplinador.

Palavras-chave

Calheta, Município, Vistorias, Conflito, Poder.

Introdução do município foi reveladora de informação complementar.


Se o registo da vereação nos permite percecionar o
O presente ensaio tem por finalidade apresentar universo camarário, há um outro registo, igualmente digno
uma análise sobre as vistorias realizadas pela câmara de análise, porque nos permite percecionar o concelho no
municipal da Calheta, nas serras do seu concelho, entre os seu todo. Referimo-nos ao valioso relatório do governador
anos de 1827 e de 1874. Estas datas são explicáveis pela civil do distrito administrativo do Funchal, Jacinto António
principal fonte sobre a qual se alicerça este estudo. Perdigão, finalizado em Setembro de 1867, e efetuado em
Referimo-nos ao interessante livro pertencente ao arquivo cumprimento da portaria de 1 de Agosto de 1866. Essa
do concelho da Calheta, cujo espólio se encontra portaria foi promulgada para chamar a atenção dos
depositado no Arquivo Regional e Biblioteca Pública da governados civis dos distritos sobre o cumprimento do
Madeira (em diante ABM), dedicado exclusivamente ao artigo 233º do Código Administrativo em vigor, e que
registo das visitas e correições que a vereação da câmara da determinava a obrigatoriedade de estes funcionários
Calheta esteve obrigada a realizar por toda a vasta área do visitarem, anualmente, os seus distritos, com a finalidade
seu concelho. Essa atividade fiscalizadora ficou manifesta de conhecer e dar a conhecer as “verdadeiras necessidades
ao longo dos fólios deste livro, que nos deixou informação dos distritos e para se prover acerca delas por modo
de situações ocorridas entre os anos de 1827 e de 1874. conveniente”. O resultado desta diligência de Jacinto
Para uma compreensão mais abrangente do fenómeno das António Perdigão permite-nos, para o caso específico da
vistorias camarárias, das razões da sua realização, dos Calheta, uma perspetiva válida sobre aquele concelho. Mas,
lugares que abrangeram e dos problemas que com uma componente algo aliciante para a nossa análise: é
evidenciaram, foi fundamental fazer uma articulação com que estamos perante uma fonte que traduz a preocupação
outras fontes. Neste sentido, a leitura das atas das reuniões de caracterizar genericamente aquele espaço, mas que não

51
chegou ao terreno, isto é, ao nível informativo dedicado aos desde a sua origem até à sua foz; o mar até à ponta do Arco
problemas quotidianos. Precisamente, o âmbito destas da Calheta; o alto dos vertentes para a Ribeira da
vistorias. Daí a importância de analisar as duas fontes e Madalena; os cumes centrais que dividem as águas entre as
articular a informação que ambas nos transmitem. costas do Norte e Sul” (Menezes, 1850, II)(1).
Este ensaio encontra-se dividido em duas partes. A A vila era o único centro populacional onde estavam
primeira é dedicada à caracterização do concelho da concentradas a organização administrativa, visível pela
Calheta em pleno século XIX, com elementos sobre o presença da câmara municipal e da administração do
espaço, sobre a instituição municipal e sobre as pessoas concelho, e religiosa, onde se destacava a misericórdia que,
(evolução demográfica). Na segunda, as vistorias municipais em pleno século XIX, tinha um pequeno asilo para inválidos
nas serras do concelho, efetuadas entre 1827 e 1874, (Perdigão, 1868, p. 18). Em virtude da evolução
constituem o nosso objeto de análise, numa linha expositiva administrativa, verificada a partir de 1835, o concelho da
que visa perceber qual a área geográfica abrangida; o Calheta sofreu uma alteração no total de freguesias que o
número de visitas efetuado; as tipologias dos problemas compunham. O quadro nº 1 mostra-nos a evolução
identificados, e a forma como a vereação exerceu o seu demográfica do concelho da Calheta entre os anos de 1797
poder disciplinador. e de 1866. Estas datas têm por justificação as fontes que
sustentam estes números, e que resultaram de um trabalho
estatístico feito em 1797, com o mapa geral da população
1. O concelho da Calheta no século XIX: Para uma da Madeira; em 1849, com o recenseamento da população
breve caracterização portuguesa; e em 1866, com o relatório do governador civil
Jacinto António Perdigão e que terá tido por base o censo
Localizado no litoral sudoeste da ilha da Madeira, o realizado em 1864. Todos estes levantamentos
concelho da Calheta foi fundado em 1 de Julho de 1502 populacionais têm informação ao nível das freguesias,
(Costa, 1995, p. XII). O nome que lhe foi dado – Calheta – sendo por isso, a mais completa(2).
recorda, nas palavras de Elisa Brazão, a existência de uma A introdução do ano de 1797 neste quadro justifica-
boa enseada por onde, desde os primórdios do século XVI, se para demonstrar a evolução que o concelho da Calheta
eram escoados para comercialização os produtos que a sofreu, quer em termos de efetivos populacionais, quer em
terra dava: as madeiras, o açúcar e, posteriormente, o termos de território. Entre 1797 e o censo de 1849, a
vinho (Brazão, 1998, p. 349). A vila da Calheta, situada junto Calheta registou um aumento demográfico. Passou a ter
ao mar, era a sede de um concelho cuja superfície, muito uma nova freguesia, o Jardim do Mar, criada em 1848 (Silva
acidentada, rondaria, segundo o relatório do governador e Meneses, 1998, II, p. 173), e verifica-se que, à exceção da
civil Jacinto António Perdigão, os 6.600 hectares (Perdigão, vila da Calheta, a população cresceu em todas as freguesias.
1868, p. 17). Os limites geográficos deste concelho eram, de A ausência da freguesia da Ponta do Pargo, no ano de 1866,
acordo com a informação de Sérvulo Drummond de explica-se pela sua anexação ao novamente criado concelho
Meneses, com data de 1850: “a Ribeira dos Marinheiros do Porto do Moniz. Com efeito, o Porto Moniz fora elevado

Quadro nº 1: População do concelho da Calheta (1797-1866)

Freguesias Ano de 1797 Ano de 1849 Ano de 1866


Arco da Calheta 2.400 2.988 3.032
Calheta 2.719 2.705 2.625
Estreito da Calheta 2.067 2.301 2.213
Fajã da Ovelha 1.832 2.349 2.298
Jardim do Mar ---------- 303 331
Paul do Mar 553 756 906
Ponta do Pargo 1.550 3.031 ----------
Prazeres 627 846 880
Total de habitantes 11.748 15.279 12.285

Fontes: Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Madeira e Porto Santo, Catalogados, Caixa nº 6, Documento nº 994: Mapa geral da
população das ilhas da Madeira e Porto Santo, de 24 de Junho de 1797. Os Recenseamentos da População Portuguesa de 1801 e 1849.
Edição Crítica. Lisboa, Instituto Nacional de Estatística, 2001, Censo de 1849, p.835. Perdigão, 1868, p. 17.

_________________________
(1)
Trata-se de um desdobrável, onde constam os limites dos concelhos, localizado entre as páginas 66 e 67.
(2)
Sérvulo Drummond de Meneses apresentou na obra Uma Época Administrativa da Madeira e Porto Santo a contar do dia 7 de Outubro
de 1846, Funchal, Tipografia Nacional, 1849-1850, no volume II, páginas 62 até 67, os totais populacionais para todos os concelhos
do arquipélago nos anos de 1835, 1839, 1843 e 1847. Contudo, não apresentou dados ao nível da freguesia.

52
à categoria de município em 1835, seria destituído em 1849 mais reduzidos (Menezes, 1850, II)(3). Este elevado número de
e restaurado em 1855 (Barros, Jardim e Guerra, 1997, pp. 64- lavradores cruza-se com um outro dado, de igual
65). A quebra demográfica registada em 1866 deveu-se, por importância: referimo-nos à extrema divisão da
conseguinte, à retirada da freguesia da Ponta do Pargo da propriedade, uma vez que a matriz predial do concelho
circunscrição administrativa do concelho da Calheta. apontava a existência de 65.714 prédios, havendo 7.973
Segundo o relatório do governador Jacinto António coletados (Perdigão, 1868, 18). Importa acrescentar um outro
Perdigão, havia alguma concentração populacional dentro elemento: este universo fundiário contava com a presença,
do perímetro da vila, sendo que a restante vivia dispersa por um lado, dos senhorios e, por outro, dos cultivadores
pela superfície onde houvesse agricultura (Perdigão, 1868, p. da terra, e que estavam ligados entre si pelo “contrato de
17). Esta era a principal atividade económica do concelho, colonia a meias” que, nas palavras do presidente do
complementada com a exploração dos recursos piscatórios município, registadas num ofício de 11 de Abril de 1850, era
e dos recursos florestais localizados nas serras sobranceiras. descrito no seguinte modo: “o senhorio do terreno dá ao
Uma afirmação sustentada pela interessante “classificação colono a terra e a cargo deste ficou fazer todas e quaisquer
da população por géneros de indústria, profissão, misteres” benfeitorias rústicas com a obrigação de partir com o
dada, em 1850, por Sérvulo Drummond de Meneses. Para o senhorio metade dos rendimentos” (ABM, Câmara Municipal
concelho em apreço era referida, como categoria mais da Calheta, em diante CMC, Livro nº 165, fl.71-74).
relevante, a presença de 2.044 “lavradores”, ou seja, os As produções agrícolas assentavam na cana-de-
indivíduos que trabalhavam as suas parcelas de terra. Os açúcar e nos cereais, complementadas com os produtos
pescadores eram em muito menor número, cerca de duas hortícolas como a batata e o inhame. A vinha estaria a
centenas, devendo ainda mencionar-se a existência de 31 sofrer, em pleno século XIX, um incremento. O gado tinha
lenheiros. As restantes atividades laborais (oficiais um papel importante. O governador Jacinto António
mecânicos; moleiros; jornaleiros; tendeiros, etc.) Perdigão refere a existência de 4.697 cabeças de gado em
encontravam-se representadas por efetivos muitíssimo todo o concelho. Contudo, o trabalho da terra era feito pelo

Fig.s 1 e 2 — Gado a pastar na serra da freguesia do Estreito da Calheta, 2016.


_________________________
(3)
Trata-se de um desdobrável, onde consta este mapa classificativo, localizado entre as páginas 66 e 67.

53
granjeio do homem, uma vez que o terreno tão acidentado frequentavam. Não nos esqueçamos que o século XIX foi o
não permitia a utilização do gado (Perdigão, 1868, p. 17). A período em que o Estado tentou lançar as bases de uma
irrigação era garantida graças ao aproveitamento das águas instrução primária, extensível ao maior número possível de
da levada do Rabaçal, mas longe de ser suficiente face à crianças (Manique, 2009, pp.151-160). Em todo o concelho da
exigência do trabalho agrícola. Segundo este governador, Calheta havia, segundo o cômputo do governador Perdigão,
seria “conveniente promover a conclusão do furado do três escolas. Dessas escolas, duas estavam localizadas na
monte das Levadinhas, porque dessa obra está dependente freguesia da Calheta e uma na Fajã da Ovelha. Nenhuma
o aproveitamento de uma grande quantidade de águas, que das outras freguesias tinha escola. Das duas escolas da
hoje se perdem inteiramente pelo leito das ribeiras, quando Calheta, uma era para o sexo masculino e contava com a
podem ser utilizadas com grande vantagem na agricultura frequência de 30 alunos; a escola para o sexo feminino
deste concelho” (Perdigão, 1868, p. 17). À dificuldade do contava com 42 alunas. A escola da Fajã da Ovelha era só
trabalho agrícola acrescia o estado da viação do concelho, para meninos e possuía 26 alunos (Perdigão, 1868, pp. 19-20).
descrito como “péssimo”, porque os caminhos e veredas de Para uma breve caracterização da instituição
acesso, ora eram perigosos, ora apenas difíceis, municipal da Calheta, no século XIX, temos de ter em
contribuindo para a dureza do quotidiano dos seus consideração, no âmbito deste ensaio, a existência de duas
habitantes (Perdigão, 1868, p. 18). Apesar desta centralidade épocas administrativas. A primeira decorrendo até 1834, a
na agricultura, dever-se-á mencionar alguma atividade segunda, e definitiva até à implantação da República, de
proto - industrial pela referência à salga do peixe, à 1835 em diante.
preparação de manteiga e à destilação de aguardente de Desde a sua criação, em 1502, o município teria tido
cana, a par de um pequeno comércio que exportava estes uma organização assente na sua vereação, ou assembleia
produtos e importava os artigos manufaturados carecidos concelhia, composta por dois juízes ordinários (isto é,
pelo consumo local (Perdigão, 1868, p. 18). Estas referências indivíduos sem preparação jurídica), três vereadores, um
do governador Jacinto António Perdigão estão em procurador do concelho e um tesoureiro. Esta afirmação
consonância com “classificação da população por géneros fundamenta-se com a documentação que remonta aos
de indústria, profissão, misteres” de Sérvulo Drummond de finais do século XVIII, a mais antiga deste concelho que
Meneses, que categoriza, em pequeno número, os sobreviveu até aos nossos dias (Sousa, 2004, p. 316). A
vendeiros e taberneiros, responsáveis pelos postos de vereação era eleita através de um processo determinado
venda dos artigos vindos do exterior (Menezes, 1850, II). O por um conjunto de diplomas régios, cuja promulgação data
facto de não mencionar a salga de peixe, a preparação da do século XVII. Era tutelado pelo ouvidor do donatário e,
manteiga e a destilação da aguardente de cana como extinta a capitania-donataria do Funchal em 1766, passou
atividades desempenhadas por trabalhadores específicos, para a superintendência do corregedor da comarca (Sousa,
permite-nos aferir que as ditas atividades eram asseguradas 2004, pp. 81-97). A implantação definitiva da monarquia
pelos pescadores, no caso da salga de peixe, e pelos constitucional, em 1834, trouxe alterações significativas na
lavradores, no caso da manteiga e da aguardente, nos organização administrativa do arquipélago. Pelo decreto de
espaços das suas habitações e, certamente, recorrendo ao 12 de Setembro de 1835 ficou estabelecido, formalmente, o
auxílio de seus familiares. A ruralidade do concelho da distrito administrativo da Madeira e Porto Santo, cuja
Calheta e o esforço da sua população, concentrado na capital era a cidade do Funchal. Este distrito era dividido em
agricultura, eram reforçados pela muito reduzida expressão concelhos e estes subdivididos em freguesias. O município
no número de escolas oficiais e de alunos que as da Calheta, oriundo da orgânica do Antigo Regime, manteve

Fig. 3 — Sítio do Galhano na serra da Fajã da Ovelha, 2015.

54
-se. A sua vereação ficou composta por cinco elementos A gestão dos recursos naturais, entendida como a
(um presidente, um procurador fiscal e três vereadores) responsabilidade do município zelar pelas áreas arborizadas
entre os anos de 1834 e 1850, por ser um concelho que não e pelos cursos de água, não integrava as disposições
atingia os 3.000 fogos habitacionais. Esta composição era contidas nas codificações administrativas do Liberalismo,
determinada pela legislação eleitoral promulgada pelo nem no articulado das Ordenações. Logo, trata-se de uma
constitucionalismo monárquico, que estabeleceu o número questão cuja resposta deve ser analisada noutras fontes,
de elementos da vereação municipal em função da em concreto, nas vereações, nas posturas municipais, nas
demografia do concelho (Sousa, 2009, pp. 607-609). A partir correições e nas vistorias. Devemos ainda mencionar que a
de 1852, e até 1858, o município integrou um total de sete exploração dos recursos das serras da ilha da Madeira e os
elementos (um presidente, um procurador fiscal e cinco excessos cometidos pela população, foram uma realidade
vereadores). O número de vereadores diminuiu para cinco, cedo constatada pelo próprio monarca que, na segunda
entre os anos de 1860 e 1870, passando, novamente, para metade do século XVI, promulgou legislação com a
sete vereadores, a partir de 1870. Esta oscilação explica-se, finalidade de evitar um depauperamento do manto
fundamentalmente, pela evolução institucional do distrito, florestal. Tratou-se do Regimento Novo das Madeiras para a
mais concretamente, pelo processo de sucessiva criação/ Ilha da Madeira, de 1562, dirigido às vereações dos
destituição do município do Porto do Moniz. Com efeito, municípios da ilha, incumbindo-as de pôr termo à
este concelho ficou extinto, pela primeira vez, entre 1849 e irregularidade que então existia na recolha de madeiras e
1855, e, pela segunda, em 1867-68. Consequentemente, a de lenhas nas serras e que era feita, sobretudo, junto às
freguesia da Ponta do Pargo, ora esteve integrada na linhas de água (Frutuoso, 2007, pp. 463-471). Tentando
Calheta, ora esteve integrada no Porto do Moniz. A conceder ao poder municipal a capacidade para fiscalizar e
oscilação demográfica que adveio desta situação peculiar reprimir os comportamentos que prejudicavam a vegetação
traduziu-se no maior ou menor número de vereadores que e as águas, o Regimento determinou que as vereações
compunham a câmara municipal (Sousa, 2009, pp. 607-609). deviam, anualmente, visitar as serras para verificar o estado
As competências da vereação municipal da Calheta daqueles recursos e, de igual modo, fazer o registo dos
estiveram definidas e enquadradas pela legislação casos que revelassem situações danosas para, finalmente,
promulgada pelo rei. Durante o Antigo Regime, foram as punir os infratores (Frutuoso, 2007, pp. 463-471).
Ordenações do Reino que determinaram a atividade desta Qual a situação que se viveu no concelho da
instituição, mas de uma forma assaz genérica. O conteúdo Calheta? O que é que os registos históricos nos legaram? As
das Ordenações Filipinas, com proximidade cronológica da mais antigas vereações do município da Calheta que
documentação da Calheta mais antiga, revela que os juízes chegaram aos nossos dias têm como datas extremas os
ordinários teriam por missão proceder contra os anos de 1794 e de 1799. Nesses anos foram visíveis
criminosos; os vereadores, por seu turno, seriam algumas ocorrências de agressão e/ou delapidação dos
responsáveis pelo bom regimento da terra; sendo ao recursos florestais concelhios: o corte de árvores sem a
procurador do concelho atribuída a função de levar à respetiva licença camarária; o corte de feiteiras, de giestas
assembleia concelhia os problemas que estivessem a afetar e de bagas de louro por amadurecer; a presença de gado a
a população (Sousa, 2004, p. 98). A análise da documentação, deambular pela serra (Sousa, 2004, pp. 162-168). A vereação
onde está visível a prática da atividade camarária, revela- calhetense revelou grande dificuldade em apanhar os
nos que o exercício do poder municipal, durante a etapa culpados após a visita pelas serras (ABM, CMC, Livro nº 421,
histórica do Antigo Regime, manifestou-se em várias fl.9vº-10, fl.39-40, fl.43vº-44). Contudo, manifestou o cuidado
vertentes: na administração da justiça em primeira de adotar medidas para obviar as situações mais
instância, na elaboração das posturas municipais, na problemáticas, em concreto, a imposição de multas para os
regulamentação da atividade económica concelhia, na cortes de louro não envelhecido; a proibição da apanha de
realização de obras públicas e na manutenção das infra - bagas novas; a proibição do pastoreio livre; e, por último, o
estruturas urbanas, na promoção da salubridade pública e fomento da arborização (Sousa, 2004, 162-168). Infelizmente,
na defesa dos recursos naturais, na assistência à não existe nenhum registo das condenações efetuadas aos
comunidade, na organização das festividades religiosas e na transgressores destas disposições e regulamentos que,
capacidade de cobrar receitas para suportar as suas supostamente, seriam aplicadas na sequência das visitas da
despesas (Sousa, 2018, p. 1). O município do Liberalismo viu serra e, obviamente, quando se conseguisse apanhar o
as suas competências consagradas, com maior detalhe, nas prevaricador. Em contrapartida, a adoção de medidas de
codificações administrativas. A única diferença substancial fomento da arborização teriam tido expressão. Nos anos de
face ao Antigo Regime foi a perda da capacidade de julgar 1795-1796, nas áreas de jurisdição do município da Calheta,
em primeira instância. O restante foi mantido, sendo foram plantadas cerca de 7.894 árvores (ABM, CMC, Livro nº
acrescentadas competências no âmbito do funcionalismo 421, fl.89). Com efeito, a câmara tinha promovido, junto dos
municipal, com a capacidade de criação ou supressão de lavradores, o cultivo de espécies como o castanheiro e a
empregos pagos pelo cofre camarário; no domínio da nogueira, nas quotas mais altas, sendo a plantação de
instrução pública, ficando o município habilitado a criar ou árvores de fruto, designadamente a laranjeira e pereira,
suprimir escolas, com a responsabilidade de assegurar o seu aplicada nos terrenos com menor altitude. Para aferir o
funcionamento; e na gestão do interesse municipal, onde cumprimento destas medidas e punir as suas omissões,
são definidas competências relativas à contração de com coimas no valor de 2.000 réis, os vereadores faziam
empréstimos e estabelecimento de hipotecas, ou ainda inspeções periódicas (ABM, CMC, Livro nº 421, fl.6-7vº, fl.79vº-
relativas à receção de donativos (Sousa, 2015, pp. 473-509). 80, fl.111vº-112).

55
A ruralidade do Concelho da Calheta no século XIX Setembro de 1824, com a finalidade de servir “para as
continuaria a ser caracterizada pela presença de visitas e correições que a câmara desta vila houver de fazer
camponeses nas serras e, igualmente, pela presença dos por todos os lugares do distrito dela”. Tem 23 fólios, frente
representantes do poder municipal que, através das suas e verso, preenchidos com o registo das vistorias feitas pelos
vistorias, procuravam impor a sua autoridade num espaço oficiais da Calheta, registo esse que termina em 1874.
vasto e propício ao conflito, conforme iremos ver no Ficaram consignados apenas 15 atos de vistoria. Contudo,
próximo ponto. apesar deste escasso número, a informação vertida reveste-
se de grande interesse para uma compreensão da realidade
2. As vistorias municipais nas serras do concelho: vivida nos lugares do termo e da forma como a edilidade
1827-1874 resolvia, ou não, uma conflituosidade latente que existia
entre a norma camarária e o seu incumprimento.
A nossa análise das vistorias do concelho da Calheta O quadro nº 2 permite visualizar as datas das visitas,
está alicerçada num único livro. Trata-se de um exemplar as áreas geográficas abrangidas, as problemáticas em
que terá sido colocado em utilização na sequência da apreço e as resoluções adotadas.
ordem do corregedor da comarca, o desembargador O primeiro aspeto que chama a nossa atenção é o
Manuel Soares Lobão e Albergaria, e aberto a 9 de facto de, do total de 15 vistorias realizadas, a maioria

Quadro nº 2: Vistorias nas serras da Calheta (1827-1874)

Data da Freguesia e lugar Problema detetado Resolução


vistoria
1827-07-07 Calheta: Lombo da Estrela Derrube de paredes por baixo da Fonte Ofício ao capitão-mor para este
da Senhora mandar fazer a obra
1829-06-01 Calheta: Estrela, Lombo dos Desvios de águas da levada; Condenação dos infratores na
Moinhos, Lombo da Ribeira Poços destapados; forma das posturas
Funda
Derrame de águas no caminho municipal
1829-06-03 Calheta: Lombo do Salão, Bloqueios do caminho público; Condenação dos infratores na
Lombo das Laranjeiras, Poço destapado; forma das posturas
Lombo da Estrela, Sítio da
Apreensão de rezes de cabra por destruir
Achada do Canto
vegetação
1829-07-21 Arco da Calheta: Sítio da Fajã Bloqueio nas servidões públicas; Condenação dos infratores em
Lances soltos nas levadas multas pecuniárias e custas
1829-07-27 Estreito da Calheta Bloqueio nas servidões públicas; Condenação dos infratores na
Poços destapados forma das posturas
1830-03-08 Arco da Calheta: Sítio da Bica Nada que prover
do Cabo até ao Sítio dos
Lamaceiros
1830-06-28 Arco da Calheta: Achada dos Cortes de vinhático Condenação dos infratores na
Mopos forma das posturas
1833-07-05 Ponta do Pargo: Sítio da Corte de madeiras Proceder a uma devassa
Corujeira
1833-10-03 Calheta Sujidade nas testadas; Condenação dos infratores na
Bloqueio da via pública forma das posturas

1834-05-10 Estreito da Calheta Cortes de madeiras Proceder a uma devassa


1834-05-27 Calheta: Sítio da Ribeira da Cortes de madeiras junto à ribeira Proceder a uma devassa
Caldeira
1841-10-25 Fajã da Ovelha: Lombada Demarcação e divisão do novo bardo do
dos Marinheiros concelho
1847-04-30 Calheta: Lombo da Estrela Vistoria na obra de um poço Averiguação, com recurso a
informantes
1868-09-05 Arco da Calheta: Sítio do Desvio de águas de uma levada Averiguação, com recurso a
Ledo informantes
1874-06-06 Arco da Calheta: Sítio do Desvio de águas de uma levada Averiguação, com recurso a
Ledo informantes

Fonte: ABM, Câmara Municipal da Calheta, Livro nº 150.

56
Fig. 4 — Rabaçal, 2016.
destas ações ter tido lugar no período temporal que vereadores, pelos agrimensores e pelo administrador do
antecedeu a implantação definitiva do constitucionalismo concelho. As áreas geográficas cobertas pelas vistorias
monárquico em 1834, com menção de que a câmara foram, quase sempre, as freguesias da Calheta, Arco da
municipal da Calheta, saída do primeiro processo eleitoral Calheta e Estreito da Calheta. Só na visita de 5 de Julho de
do liberalismo, tomou posse em 13 de Outubro de 1834 1833 é que a vereação se deslocou mais longe, em
(Sousa, 2009, p. 545). É muito difícil dar uma explicação cabal concreto, até à freguesia da Ponta do Pargo, ou, em 25 de
a esta constatação. Teria a vereação calhetense ficado Outubro de 1841, por ocasião da demarcação do bardo do
sobrecarregada com as responsabilidades impostas pela concelho, quando se verificou um percurso até à freguesia
nova situação política? Teria a vereação ficado sem da Fajã da Ovelha, local escolhido como ponto de partida
disponibilidade para calcorrear periodicamente os lugares para a execução daquele trabalho. Portanto, a ação
do termo e verificar, no local, as irregularidades existentes? inspetora da edilidade incidia, e certamente por razões de
São questões lançadas para investigações futuras sobre o ordem prática, no espaço fisicamente mais próximo da sede
papel e atividade da câmara durante o Liberalismo, do poder, por tal implicar deslocações mais fáceis e
matérias sobre as quais paira um total desconhecimento. cómodas. Mesmo assim, seria algo complicado calcorrear
Nas vistorias realizadas, até 27 de Maio de 1834, estiveram os lugares e sítios aqui indicados, cujo acesso, em virtude
sempre presentes os oficiais da vereação, nomeadamente, da orografia, era fisicamente exigente. A presença inspetora
o juiz, os vereadores e o procurador do concelho. A este da vereação nos espaços mais recônditos era necessária,
núcleo juntava-se, ocasionalmente, o alcaide e o porteiro por serem aqueles onde haveria maior facilidade de ação
do concelho, oficiais coadjuvantes da vereação municipal para os indivíduos que pretendiam agir à revelia das
do Antigo Regime, assim como o meirinho da serra, os posturas e regulamentos municipais. A atividade de vistoria
agrimensores e o juiz do ofício de carpinteiro, este último, decorria, de acordo com a informação deste quadro, nos
quando as vistorias versavam especificamente os cortes meses de Primavera, Verão e, ocasionalmente, no Outono.
ilegais de madeiras. No período pós-1834, contou-se, A explicação desta realidade é simples, pois eram as alturas
novamente, com a presença da vereação, agora liderada do ano em que seria mais fácil transitar por caminhos e
pelo presidente da câmara e acompanhado pelos veredas que durante o tempo de inverno estariam

Fig. 5 — Levada do Lajeado, Pico da Urze, 2017.

57
Fig. 6 — Serra do Estreito da Calheta, 2017.

impossíveis de percorrer. infratores foram condenados ao pagamento de multas no


Relativamente aos problemas detetados, podemos valor de 2.000 réis, por cada transgressão (ABM, CMC, Livro
aferir 6 tipologias, a saber: danos em infra – estruturas nº 150, fl. 2vº-3vº). Mais complexa revelou-se a situação,
concelhias; irregularidades no uso das águas das levadas; também de desvio de águas de uma levada, denunciada por
bloqueios nos caminhos públicos; rezes soltas; cortes de João da Câmara Lomelino, dono de um engenho de cana-
madeiras e a ação fiscalizadora em obra particular. doce e destilação de aguardente. Essa queixa, feita
As fontes eram de grande importância para o previamente ao governador civil do distrito, em 1868,
concelho, entidade responsável de zelar pela sua motivou uma deslocação da câmara ao Sítio do Ledo, na
manutenção. A primeira vistoria visou, precisamente, freguesia do Arco da Calheta, com a finalidade de proceder
atender à destruição existente por baixo da fonte da a vistoria. De acordo com o relato de João da Câmara
Senhora, sita no Lombo da Estrela. A medida adotada pela Lomelino, tinha ocorrido um desvio da água de uma
vereação, sem meios humanos para agir, foi mandar oficiar nascente, localizada naquele Sítio, o que motivara a falta de
ao capitão-mor das ordenanças para que mandasse os seus abastecimento na sua unidade de produção. Acrescia o
homens proceder àquela importante obra (ABM, Câmara facto de aquela nascente ser propriedade de João da
Municipal da Calheta, Livro nº 150, fl.2). Os desvios das águas Câmara Lomelino e que as suas águas forneciam, além do
das levadas, um bem de uso comum, era um problema que seu engenho, os moradores do Ledo que vinham busca-la,
exigia a adoção de medidas punitivas por parte da câmara. em bica, junto à porta da mencionada unidade fabril (ABM,
Por ser um ato proibido pelas posturas do concelho, os seus CMC, Livro nº 443, fl.68vº-70). Constatando-se, localmente,

Fig. 7 — Serra da Ponta do Pargo, 2017.

58
que não havia água, levantou-se a suspeita de que o desvio do concelho estava a exigência, feita pelo município, da
fora feito pelo proprietário de um prédio contíguo ao limpeza e cuidado das testadas das habitações que
engenho (ABM, CMC, Livro nº 150, fl. 20vº-21vº). Uns anos mais confinavam com as vias de circulação. Os munícipes em
tarde, em 1874,verifica-se que o problema persistia. falta, isto é, que tivessem as testadas pejadas de silvado,
Novamente, João da Câmara Lomelino dirigira uma queixa impedindo a segurança na circulação de terceiros, eram
ao governador civil do distrito que, por seu turno, mandara devidamente multados com penalizações no valor de 1.000
a câmara da Calheta proceder às necessárias diligências. réis (ABM, CMC, Livro nº 150, fl. 5-7). Na vistoria de 3 de
João da Câmara Lomelino exigia que fosse restabelecida a Outubro de 1833, incidindo na freguesia da Calheta, foi
passagem de águas que, de tempos imemoriais, vinham ter constatado que as testadas das habitações, localizadas
à sua propriedade. A vistoria da câmara, mais uma vez, entre o Canto da Ponte dos Soutos até ao Sítio de Santa
aferiu no terreno o desvio das águas, tendo o cuidado de Catarina, estavam por limpar. A resolução do problema foi,
procurar recolha de informação junto dos locais. Contudo, à semelhança das tomadas dos caminhos, de ordenar a
não se chegou a nenhuma conclusão. Os potenciais visados limpeza dessas testadas, no prazo de 3 dias, sob pena de os
negavam qualquer responsabilidade, chegando a impedir o infratores serem conduzidos à cadeia da vila (ABM, CMC,
acesso da vereação ao interior das suas fazendas para Livro nº 150, fl. 12vº-14). A preservação da vegetação era algo
inspecionar se estavam, no interior dos seus prédios, as de grande importância. Com essa finalidade, existiam as
águas desviadas. A incapacidade de resolução deste conflito restrições à livre circulação de gado pelo termo da vila. No
ficou patente no registo da vereação da Calheta: “não entanto, há uma única referência a esta situação. Na visita
puderam conseguir os fins da vistoria” (ABM, CMC, Livro nº efetuada em 3 de Junho de 1829, foi feita a apreensão de
150, fl.22-23). umas rés de cabra que andavam a destruir plantas de
Os lances das levadas, vias de distribuição das águas castanheiro no Sítio da Achada do Canto, arredores da vila
pelas várias zonas de cultivo, mereciam espacial cuidado. A da Calheta. Os animais foram levados para o curral do
deteção de lances soltos, prejudicando o curso da água, concelho e só poderiam sair se o seu dono pagasse a coima
ocorreu em várias levadas do termo da vila, em concreto, de 100 réis (ABM, CMC, Livro nº 150, fl.4-5). Os registos das
na levada do Caminho, na levada que regava as Covas e o vistorias feitas com o propósito de analisar os cortes de
Pombal, na levada que atravessava a Tenda Velha e na madeiras feitos à revelia das ordens municipais são de
levada do Caldeirão, no Sítio do Sumagre, todas localizadas particular importância. Quando o infrator era de imediato
na freguesia do Arco da Calheta, mais concretamente, no identificado pelo testemunho de outrem, a câmara
Sítio da Fajã. Os responsáveis por este dano foram procedia na forma das posturas (ABM, CMC, Livro nº 150, fl.8).
condenados no pagamento de multas entre os 1.000 e os Com efeito, o articulado das posturas, em pleno vigor
2.000 réis, mais as custas respetivas (ABM, CMC, Livro nº 150, segundo edital da câmara da Calheta, de Março de 1851,
fl. 5-5vº). Os poços destapados era considerado um ato determinava, no seu artigo 48º que “todo o indivíduo que
proibido pelas posturas, pela sua extrema perigosidade destruir ou prejudicar as árvores alheias e as mandadas
para os transeuntes. Na vistoria de 1 de Junho de 1829, a plantar nos lugares públicos pagará 4 mil réis, metade para
vereação identificou 5 poços a descoberto, na zona do o concelho, metade para o denunciante” (ABM, CMC, Livro nº
Lombo dos Moinhos e do Lombo da Ribeira Funda, no Sítio 151, fl.46vº-47vº). Importa, ainda, mencionar o artigo 70º:
da Estrela, freguesia da Calheta. Como era usual, os “A ninguém é lícito fazer cortes de árvores se não a
infratores foram multados em 2.000 réis (ABM, CMC, Livro nº 150 passos longe das ribeiras, ribeiros com rego, fontes, sob
150, fl.2vº-3vº). O mesmo se constatou na vistoria seguinte, pena de 20 mil réis, metade para as despesas do concelho e
realizada no dia 3 de Junho desse ano e abrangendo a outra para o denunciante, além de serem pelos
freguesia da Calheta (ABM, CMC, Livro nº 150, fl. 4-5), e na de transgressores plantadas três árvores por cada uma que
27 de Julho, no Estreito da Calheta, onde foram multados houverem cortado e isto além do procedimento criminal
os donos de vários poços destapados, a saber: o poço no que possa ser promovido pelo Ministério Público ou parte
Sítio do Pé do Lameiro; o tanque chamado Os Mancos; o queixosa. A pena estabelecida neste artigo é extensível
tanque no Sítio do Lombo dos Reis, precisamente “na parte àqueles que em suas propriedades fizerem semelhantes
mais perigosa”; e o tanque no Sítio do Salão. As cortes e nos lugares onde hajam fontes cujas águas vão dar
condenações impostas cifraram-se em 2.000 réis em cada a ribeiras, ribeiros e carregos ” (ABM, CMC, Livro nº 151,
ocorrência (ABM, CMC, Livro nº 150, fl. 6-7). Os caminhos de fl.46vº-47vº).
uso público tinham de estar sempre devidamente A vistoria de 5 de Julho de 1833, que calcorreou o
desimpedidos, pelo que era inaceitável qualquer tipo de Sítio da Corujeira, na freguesia da Ponta do Pargo, foi feita
irregularidade. Assim, lançar águas no caminho municipal na sequência de denúncias, feitas em vereação, de que
era um comportamento passível de sofrer a aplicação de tinham sido feitos cortes de madeiras “contra a lei, posturas
coima, conforme as posturas, (ABM, CMC, Livro nº 150, fl. 2vº- e reais provisões”. O método de trabalho adotado pelos
3vº), bem como a tomada ou bloqueio dessas vias de oficiais municipais, com o auxílio dos agrimensores e do juiz
circulação mediante a colocação de estacas, terras, do ofício de carpinteiro, consistia num exame minucioso
entulhos ou outras quaisquer sujidades. Nestas feito no local da ocorrência: contabilizavam o número de
circunstâncias, a câmara dava um prazo aos infratores, paus de madeiras cortados, procediam à sua medição (em
geralmente de 3 dias, para que, sob pena de prisão, polegadas de testa e palmos de comprido), identificavam a
voltassem a pôr os caminhos em ordem, ou seja, sem riscos espécie atingida, e, por fim, aferiam a localização dos
para os transeuntes (ABM, CMC, Livro nº 150, fl. 12vº-14). cortes, ou seja, a sua distância em relação às linhas de água,
Diretamente relacionada com a manutenção dos caminhos com especificação: nas margens no ribeiro, mesmo a meio

59
madeiras, sobre o estado ruinoso em que se encontrava a
ponte que existia sobre a Ribeira Funda, e tal seria o estado
de destruição que, segundo a vereação, parecia causada
“por pessoas facínoras e mal-intencionadas” (ABM, CMC,
Livro nº 150, fl.14vº-16). A denúncia do procurador do
concelho, de 5 de Maio de 1834, foi extensível a um outro
ato de corte de vinháticos localizado junto à Ribeira da
Caldeira, na freguesia da Calheta. O exame foi feito no dia
27 de Maio do dito ano, com o juiz do ofício de carpinteiro a
proceder à necessária peritagem: contabilização do número
de paus cortados, medição do comprimento e largura dos
mesmos, apuramento da sua localização face à linha de
água. Confrontada, novamente, com um cenário de
destruição, descrito como “um tal estrago e abuso das leis e
reais provisões que mandam conservar intactas as árvores
daquela natureza, muito principalmente em fontes e
ribeiras”, a vereação limitou-se a determinar a futura
realização de uma devassa, isto é, de um apuramento
minucioso das circunstâncias deste ato criminoso mediante
a inquirição de testemunhas (ABM, CMC, Livro nº 150, fl.16-
17vº).
A ação fiscalizadora municipal não descurava as
irregularidades relacionadas com a execução de obras
particulares. Neste ponto, as obras que envolviam a
construção de poços eram alvo de atenção, uma vez que se
tratava de um empreendimento que implicava a
canalização, para fins privados, das águas das levadas. Foi o
que sucedeu aquando a vistoria de 30 de Abril de 1847,
realizada a requerimento de Francisco Gomes da Silva por
ter a sua obra, de construção de um poço de pedra e cal,
embargada pela autoridade judicial. Com esse
Fig. 8 — Pinheiros na serra da Ponta do Pargo, 2017.
requerimento de vistoria pretendia obter a licença
do ribeiro, afastados do ribeiro ou cortados no calhau do municipal demonstrando que a sua obra não transgredia as
ribeiro (ABM; CMC, Livro nº 150, fl.8vº-12). Nesta mesma posturas municipais (ABM, CMC, Livro nº 437, fl.65vº-68). A
vistoria, era constatada a “destruição lamentável, um abuso metodologia da vereação, na inspeção deste tipo de
manifesto e falta de respeito às leis”. Qual a solução ocorrência, consistia no contacto direto com informantes
adotada? Por não se saber quem tinha agido daquela locais, nomeadamente os heréus da Levada da Ribeira do
forma, uma vez que os responsáveis não foram Raposo, cujas águas iam dar ao Lombo da Estrela, sítio onde
identificados e denunciados, só restava ao município Francisco Gomes da Silva estava a construir aquela
proceder na forma da lei (ABM, CMC, Livro nº 150, fl.8vº-12). A estrutura. De acordo com os heréus, a dita obra não era
inspeção realizada no dia 10 de Maio de 1834 foi, uma vez prejudicial ao bem comum, pois o poço estava devidamente
mais, dedicada à problemática dos cortes de madeiras distanciado da levada (ABM, CMC, Livro nº 150, fl19-20).
feitos à revelia da autoridade municipal. Teve a Do total de 15 vistorias registadas, só numa delas é
particularidade de ocorrer na sequência de uma denúncia que ficou lavrado nada que prover. Em 8 de Março de 1830,
feita pelo procurador do concelho, na sessão de 5 de Maio. a vereação da Calheta andou pelo Arco da Calheta, fazendo
O local afetado era a Ribeira Funda, no Estreito da Calheta, o percurso desde o Sítio da Bica do Cabo até ao Sítio dos
onde se tinham “derrotado madeiras de vinhático Lamaceiros. Supostamente, estaria tudo em ordem (ABM,
pendentes sobre a ribeira” (ABM, CMC, Livro nº 431, fl.10vº- CMC, Livro nº 150, fl.7vº). Finalmente, importa mencionar a
11). Acompanhada pelos agrimensores e pelo juiz do ofício particularidade do registo de 25 de Outubro de 1841
de carpinteiro, a vereação deslocou-se até à Ribeira Funda, dedicado à demarcação e divisão do novo bardo do
sendo a vistoria efetuada nos moldes atrás descritos. Toda concelho, dando cumprimento à ordem da Junta Geral de
a madeira cortada era de vinhático, muito próximo uns dos Distrito, com data de 18 de Agosto desse ano. O bardo
outros, havendo, ainda, um elevado número de ramos concelhio era o recinto formado por cancelas amovíveis que
lançados à ribeira que nem foi possível contabilizar. Os protegiam o terreno no seu interior. Era uma tarefa que
danos seriam preocupantes, pois ficou escrito “a sua exigia o auxílio e acompanhamento técnico dos
derrotação tem causado um grande dano às águas daquela agrimensores e dos informantes locais (ABM, CMC, Livro nº
ribeira em prejuízo da agricultura e do interesse do 434, fl. 25-27). As sebes que o município tinha de colocar
Estado” (ABM, CMC, Livro nº 150, fl.14vº-16). Incapaz de saber serviriam para a proteção de vegetação do seu interior, em
quem foram os culpados, só restou à câmara tomar a concreto, a feiteira e a giesta, espécies cujo
decisão de mandar proceder a uma devassa, com a desenvolvimento se pretendia salvaguardar do gado
particularidade de esta incidir, para além dos cortes de errante, e constituindo, para os habitantes do concelho,

60
revelador de uma manifesta inoperância perante munícipes
que, pura e simplesmente, impediam o acesso dos
vereadores às suas propriedades para poder averiguar as
causas da irregularidade apontada. É um quotidiano
marcado pela norma – a postura municipal – e pela sua
transgressão, sobretudo nos lugares mais distantes da sede
de poder. Com efeito, os cortes de madeiras realizados em
locais de difícil acesso, onde a circulação pelos trilhos era
exigente, permitiam, pela ausência de testemunhas, que os
infratores permanecessem desconhecidos. As serras
representavam o único espaço onde o camponês podia agir
com total liberdade, preocupado somente com o seu
interesse pessoal em melhorar os proventos da vida
familiar. A regulamentação municipal seria algo estranha
aos habitantes deste concelho e, talvez, em virtude dessa
pouca recetividade, a vereação acabasse por descurar o
trabalho de, periodicamente, calcorrear as serras do termo
da sua vila.

Nota: Fotografias de Paulo Ladeira.

Fontes e Bibliografia

Fontes manuscritas
Fig. 9 — Loureiros e tis junto ao caminho da extinta Levada Velha
do Rabaçal, serra da Fajã da Ovelha, 2018. ABM, Câmara Municipal da Calheta:
Correspondência Oficial: Livros nº 151, nº 165.
Vereações: Livros nº 421, nº 431, nº 434, nº 437, nº 443.
uma reserva de matos indispensáveis para o amanho das Vistorias e Correições: Livro nº 150.
terras. Com esta colocação de sebes, desde a Lombada dos
Marinheiros, na freguesia da Calheta, até ao Sítio da Ribeira AHU, Madeira e Porto Santo, Catalogados, Caixa nº 6, Documento
Funda, no Estreito da Calheta, ficava constituída uma nº 994.
reserva arbórea ao abrigo “do dente e pé dos gados que
pastam nas serras do concelho” (ABM, CMC, Livro nº 150, Fontes impressas
fl.17vº-19).
Frutuoso, Gaspar, As Saudades da Terra. Fac-Simile. História das
Ilhas do Porto Santo. Madeira, Desertas e Selvagens. Anotado
Considerações Finais
por Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal
“Funchal 500 Anos”, 2007.
O quadro de ocorrências que ficou registado nesta Meneses, Sérvulo Drummond de, Uma Época Administrativa da
fonte, permite tirar algumas ilações. A primeira é, Madeira e Porto Santo a contar do dia 7 de Outubro de 1846,
precisamente, a pouquíssima frequência com que estas Volume II, Funchal, Tipografia Nacional, 1849-1850.
inspeções foram realizadas. As razões que podem explicar Perdigão, Jacinto António, “Relatório do Governador Civil do
estar situação prendem-se com as dificuldades de Distrito Administrativo do Funchal” in Coleção dos relatórios
circulação pelo termo, onde a orografia e o mau estado dos das visitas feitas aos distritos pelos respetivos governadores
civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa,
caminhos e veredas eram um importante entrave às
Imprensa Nacional, 1868, pp. 1-42.
deslocações da vereação da Calheta até ao seu “campo”. O
Os Recenseamentos da População Portuguesa de 1801 e 1849.
quadro de problemas detetados é revelador do quotidiano Edição Crítica., Lisboa, Instituto Nacional de Estatística, 2001.
de um município rural cujas necessidades da sua economia
passavam pelo cuidado da vegetação e arvoredo, pelo Bibliografia
cuidado das águas das levadas, pela garantia de segurança
dos transeuntes, pela garantia de estarem os poços e os Barros, Fátima, Jardim, Gastão, Guerra, Jorge Valdemar, 1997,
tanques devidamente cobertos. A atuação punitiva Arquivo Histórico da Madeira. Guia do Arquivo Regional da
municipal, prevista pelas posturas, é apenas visível nas Madeira, Funchal, Direção Regional dos Assuntos Culturais.
Brazão, Elisa, 1998, “O concelho da Calheta no 1º quartel do
condenações no pagamento de multas aos infratores,
século XIX” in O Município no Mundo Português. Seminário
quando estes fossem apanhados em flagrante delito ou
Internacional, Funchal, Centro de Estudos de História do
quando fossem denunciados. Nas situações de especial Atlântico, pp.349-373.
gravidade, designadamente, nos cortes de madeiras, Costa, José Pereira da, 1995, Vereações da Câmara Municipal da
constata-se a total impotência da vereação municipal. Funchal. Século XV, Funchal, Centro de Estudos de História do
Restava-lhe recorrer a devassas, procedimentos, por Atlântico.
norma, morosos e de difícil conclusão. O caso da denúncia Silva, Carlos Manique, 2009, “Da vontade unificadora do Estado à
reiterada de João da Câmara Lomelino foi, de igual modo, adaptação da escola pública às realidades locais: o papel dos
governadores civis e dos comissários de estudos (anos de 1840

61
-1860)” in Revista da Faculdade de Letras HISTÓRIA, Porto, III
Série, Volume 10, pp.151-160.
Silva, Fernando Augusto da, Menezes, Carlos Azevedo, 1998,
Elucidário Madeirense. Fac-Simile da Edição de 1946, Volume
II, Funchal, Direção Regional dos Assuntos Culturais.
Sousa, Ana Madalena Trigo de, 2004, O exercício do poder
municipal na Madeira e Porto Santo na época Pombalina e Pós-
Pombalina, Funchal, Centro de Estudos de História do
Atlântico.
Sousa, Ana Madalena Trigo de, 2009, “A elite municipal do
Funchal, Ponta do Sol e Porto Santo: identificação e perfil sócio
- económico (1834-1878)” in Anuário do Centro de Estudos de
História do Atlântico, nº 1, Funchal, Centro de Estudos de
História do Atlântico, pp.515-657. Publicação digital.
Sousa, Ana Madalena Trigo de, 2015, “As finanças do município do
Funchal durante a vigência do Código Administrativo de 1842
(1861-1878)”, in Anuário do Centro de Estudos de História do
Atlântico, nº 7, Funchal, Centro de Estudos de História do
Atlântico, pp.473-509. Publicação digital.
Sousa, Ana Madalena Trigo de, 2018, O poder municipal na
segunda metade do século XVIII: administração dos recursos
naturais e ordenamento do espaço comunitário nos municípios
da ilha da Madeira. Working Paper em formato digital
disponível em www.calameo.com/accounts/620221

62
Curt Gagel: Uma excursão ao Rabaçal, em 1903
Eberhard Axel Wilhelm
Investigador das relações culturais germano-madeirenses

Resumo

O geólogo e paleontólogo alemão Curt Gagel (Heiligenbeil, Prússia Oriental, 7-2-1865 – Lüneburg, 22-1-1927),
engenheiro conselheiro de minas do Instituto Nacional Prussiano de Geologia de Berlim, visitou a Madeira, em julho/
agosto de 1903 e em fevereiro de 1907, e publicou, entre 1903 e 1915, sete trabalhos relacionados com a geologia da ilha.
O seu opúsculo chamado Ein Ausflug nach Madeira (Uma excursão à Madeira), de 1904, contém um capítulo denominado
«Ausflug nach dem Rabaçal» (Excursão ao Rabaçal), em que refere entusiasticamente esse sítio célebre em consequência
das suas belíssimas quedas de água e das suas levadas construídas de maneira tão extraordinariamente arrojada e
engenhosa.

Palavras-chave

Geólogo, alemão, excursão, Rabaçal, 1903.

Principalmente desde 1770, a Madeira foi visitada e/ qualquer, mas considerou-se como suficientemente im-
ou descrita em livros e revistas por mais de 500 germânicos portante para ser inserido no Elucidário Madeirense (Silva/
(alemães, austríacos e suíços de língua alemã)(1), afirmação Meneses, 1984, 2.º vol., p. 75), no qual se encontra a seguinte
baseada nos meus estudos levados a cabo a partir de 1983 indicação:
(2)
. Poucos são, no entanto, aqueles que mencionaram nos «Gagel (Dr. C.). Geologo e paleontologo alemão que
seus textos o Rabaçal. visitou a Madeira em principios do seculo XX. E.: Ein Ausflug
A maioria visitou unicamente o Funchal com o nach Madeira, …»
Monte, Câmara de Lobos e mais algumas povoações Gagel (nascido em Heiligenbeil, na Prússia Oriental, a
costeiras, além, às vezes, do Curral das Freiras. Uma 7 de fevereiro de 1865 e falecido em Lüneburg a 22 de
exceção constitui Curt Gagel que não apenas foi ver o janeiro de 1927) era filho do comerciante Johann Christian
Rabaçal, mas também o incluiu no título de um capítulo, F e r d i n a n d Gagel (nascido em Heiligenbeil a 18 de
«Ausflug nach dem Rabaçal» (Excursão ao Rabaçal), da sua março de 1835 e falecido em Königsberg a 30 de maio de
pequena monografia, de 35 páginas, de nome Ein Ausflug 1877) e de J o h a n n e Florentine Gagel com o apelido de
nach Madeira (Uma excursão à Madeira) (Gagel, 1904). solteira de Hein (nascida em Königsberg a 10 de abril de
Curt Gagel, cujo nome completo era Friedrich August 1838 e falecida em Königsberg a 8 de janeiro de 1918) que
Wilhelm C u r t Gagel, não foi um visitante da Madeira se casaram em Königsberg a 19 de agosto de 1863. Em

_________________________
(1)
Trata-se sobretudo de naturalistas, entre os quais se destacam os zoólogos (p. ex. ornitólogos e entomólogos), os botânicos (p. ex.
briólogos e liquenólogos), os geólogos e geógrafos; os médicos, que muitas vezes são igualmente naturalistas; os artistas
(essencialmente pintores, mas também alguns escultores); os escritores, jornalistas e autores de guias de viagem, assim como os
exploradores.
(2)
Após a publicação, em 1990, na Revista Islenha, de um artigo preliminar sobre esta matéria, chamado «Visitantes de língua alemã na
Madeira (1815-1915)» (Wilhelm, 1990), seguiu-se, em 1997, o livro intitulado Visitantes e escritos germânicos da Madeira: 1815 -
1915 (Wilhelm, 1997), no qual se referiram 144 germânicos.
Em preparação estão tanto a segunda edição desta obra, denominada Visitantes e escritos germânicos da Madeira: 1770 – 1915, com
cerca de 300 indivíduos do espaço cultural alemão, como um segundo volume, abrangendo os anos de 1916 a 2015, que, por sua vez,
englobará algumas centenas de germânicos com trabalhos relativamente à ilha.

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Bohlen» para Las Palmas (D. N. F., 21-2-1907).
Em 1907, deslocou-se para a ilha, a fim de levar a
cabo pesquisas mineiras. Recebera uma bolsa da Fundação
Karl Ritter, concedida à Sociedade de Geografia de Berlim.
Referiu o arquipélago, pelo menos, nos sete trabalhos
seguintes, publicados entre 1903 e 1915, denominados

«Über geologische Beobachtungen auf Madeira»,


na Zeitschrift der Deutschen geologischen
Gesellschaft (Gagel, 1903);
Ein Ausflug nach Madeira (Gagel, 1904);
«Beobachtungen über Zersetzungs- und Ver-
witterungserscheinungen in jungvulkani-
schen Gesteinen», na Centralblatt für Mine-
ralogie, Geologie und Palaeontologie
(Gagel, 1910a);
«Die mittelatlantischen Vulkaninseln», no Hand-
buch der Regionalen Geologie (Gagel,
1910b);
«Beiträge zur Kenntnis der Insel Selvagem
grande», no Neues Jahrbuch für
Mineralogie, Geologie und Palaeontologie
(Gagel, 1911);
«Studien über den Aufbau und die Gesteine Ma-
deiras», na Zeitschrift der Deutschen Geo-
logischen Gesellschaft (Gagel, 1912-1915) e
Fig. 1 — Curt Gagel. Vulkanische Erscheinungen der nordwestafrikani-
schen Inseln/Volcanic phenomena of the
1890, o geólogo casou-se com Lina Pieper, com quem teve Canary Islands and Madeira/Phenomena
três filhos e duas filhas. volcaniques des Canaries et de Madère
Estudou ciências naturais na Universidade de (Gagel, 1914).
Königsberg/Conisberga, prestando o exame de Estado, em
1889, e doutorando-se, em 1890. A partir deste ano, No penúltimo texto, descreveu pedras recebidas
trabalhou na secção geológica («bodenkundliche do naturalista Adolfo César de Noronha (nascido no Funchal
Abteilung») do Instituto Nacional («Landesanstalt») a 9 de setembro de 1873 e falecido no Funchal a 6 de abril
Prussiano de Geologia de Berlim. de 1963), bibliotecário, desde 1914, e diretor da Biblioteca
De geólogo regional foi promovido a geólogo Municipal do Funchal, a partir de 1928 (Silva/Meneses, 1984,
nacional e a chefe de secção para as coleções. Participou, 2.º vol., p. 446-447 e Gagel, 1911, p. 386-387). No mesmo
como geólogo de guerra, na Grande Guerra e chegou a ser estudo, mencionou que João Ernesto Schmitz lhe facultara
agraciado com o título de engenheiro conselheiro de minas uma pedra do vale da Boaventura (Gagel, 1913, p. 425).
(«Geheimer Bergrat») (Heimbach, 1964). O padre e zoólogo (especializado em ornitologia)
O geólogo e paleontólogo deteve-se duas vezes na originalmente alemão e depois naturalizado português João
Madeira. Da primeira vez, chegou ao Funchal em 30 de Ernesto Schmitz (nascido em Rheydt a 18 de maio de 1845 e
julho de 1903 a bordo do vapor inglês «Obidense», falecido em Haifa a 3 de dezembro de 1922 [Silva/Meneses,
procedente de Lisboa (D. N. F., 31-7-1903). Alojou-se no 1984, 3.º vol, p. 295-296]) foi, em 1874, no Funchal capelão do
«Neues Hotel» (Hotel Novo) (Gagel, 1904, p. 22)(3). Em 18 de Hospício da Princesa D. Maria Amélia.
agosto do mesmo ano, deixou a ilha, indo no vapor inglês Depois de ter ensinado, de 1875 a 1877, em Santa
«Kildonan Castle» para Southampton (D. N. F., 19-8-1903). Quitéria, em Portugal Continental (Encicl. Univers.), voltou,
Veio novamente, em 3 de fevereiro de 1907, desta em 1878, a ocupar o mesmo lugar (Silva/Meneses, 1984, 2.º
vez de Hamburgo a bordo do vapor alemão «Ernst vol., p. 128-132), fixando-se, então, definitivamente no
Woermann» (D. N. F., 4-2-1907). Ficou hospedado no Hotel Funchal.
Royal (D. N. F., 18-2-1907)(3) e deixou a Madeira, em 20 de De 1881 a 1898, foi aqui professor de ciências
fevereiro de 1907, dirigindo-se no vapor alemão «Lulu naturais do seminário e, de 27 de setembro de 1881 a 7 de

_________________________
(3)
No seu guia turístico da mesma época, intitulado Führer durch Madeira (Guia através da Madeira) (Krohn, 1906), o médico funchalense
Dr. med. R o n a l d Edward Stuart Krohn (nascido provavelmente no Funchal a 29 de março de 1867 ou 1868 e falecido em Arosa, na
Suíça, a 4 ou 5 de maio de 1916) citou apenas alguns poucos hotéis existentes no Funchal do princípio do século XX.
Entre os estabelecimentos de gerência inglesa figuravam tanto o «New-Hotel» (Hotel Novo) como o «Adams Hotel Royal» situados na
parte ocidental da cidade (Krohn, 1906: 3). Noutro lado, o médico referiu um «Hôtel Royal» (Krohn, 1906, p. 42) e indicou-o na planta
do Funchal com localização a norte da Rua da Imperatriz Donna Amelia perto do seu fim ocidental.

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julho de 1908, vice-reitor desta instituição. Em 1882,
fundou no mesmo edifício um museu de história natural e
orientou-o até junho de 1908 (Silva/Meneses, 1984, 2.º vol., p.
414-415).

O norte da Madeira

Segundo a opinião de Curt Gagel, entre os visitantes


estrangeiros da bela ilha da Madeira unicamente alguns
poucos com um espírito especial de iniciativa empreendiam
também uma excursão ao Rabaçal. Localizado na parte
superior do vale da Ribeira da Janela, no noroeste da ilha,
era, porém, um sítio célebre em consequência das suas
belíssimas quedas de água e das suas levadas construídas
de maneira tão extraordinariamente arrojada e engenhosa.
Relativamente ao grau de conhecimento e às
vantagens e desvantagens do norte da ilha, o geólogo
alemão considerou que quase todos ignoravam os outros
lugares dessa parte da Madeira, além do Rabaçal; os
estrangeiros não os conheciam, mas também quase
nenhum dos europeus residentes permanentemente no
Funchal e só alguns dos naturais tinham passado por lá.
O norte da ilha oferecia, no entanto, uma
quantidade tão grande de belezas naturais maravilhosas e
imagens de montanha grandiosas que podia ser comparado
facilmente ao famoso espetáculo do Grande Curral,
ultrapassando-o porventura ainda sob diversos aspetos.
Os vales do norte não podiam competir com o
Grande Curral, no que dizia respeito às dimensões, mas
eram preferíveis devido ao clima mais húmido e menos
quente. A água era muito mais abundante e a vegetação Fig. 2 — Gagel, Ein Ausflug nach Madeira.
mais exuberante. Esses vales eram muitas vezes ainda mais
estreitos e mais semelhantes a gargantas, pelo que
porque as descidas eram quase sempre íngremes, e quando
pareciam frequentemente – no sentido positivo - ainda
o cavaleiro se dirigia monte acima, também era em muitos
mais horrorosas e pitorescas.
sítios preferível desmontar, andar a escalar e deixar seguir o
Acrescia que a montanha da ilha estava mais cavalo sozinho, mesmo estimando altamente a segurança
chegada para norte, precipitando-se, por isso, com escolhos dos cavalos madeirenses.
mais altos e mais íngremes para o mar. Esses numerosos
Além disso, existia na terra o meio de transporte
escolhos altos e de formas grotescas contribuíam ainda
muito apreciado da rede ou do hammock - uma espécie de
mais para o embelezamento dessa imagem.
liteira transportada por dois homens numa longa vara -,
O belo norte da ilha era tão pouco conhecido, mas o próprio Gagel explicou não ter estimado
sobretudo por causa da por enquanto ainda tão grande sobremaneira aquele «instrumento».
falta de vias e alojamento compatíveis, o que quase
O viajante precisava de tomar em consideração a
impossibilitava essas excursões a todas as pessoas
possibilidade de ficar enjoado com o seu balançar
habituadas ao conforto das viagens noutro lado.
constante e duradouro, o que acontecia a muitos, pelo que
Era preciso ser-se um bom caminhante e alpinista e perdia amiúde totalmente o prazer do belo panorama.
contentar-se, durante dias, com uma alimentação de Também sempre tinha à sua volta mais quatro
conservas ou de ovos e fruta, se se pretendiam conhecer madeirenses, com cuja falta de pontualidade e cujo fleuma
essas belezas. Pois quem tinha visto apenas uma vez uma se podia irritar quase até à exaustão.
das «cozinheiras de hotel» naturais, perdeu para sempre a
«Paciência, senhor, paciência!» era a desculpa que
vontade de comer o único prato adquirível – uma galinha
ouvia cem vezes por dia, de cada vez que lhes objetava a
velhíssima cozida com arroz.
falta de pontualidade e a preguiça. Tal subterfúgio
Uma grande parte dos caminhos era enfurecia pouco a pouco qualquer ser humano com algum
indiscritivelmente má, incluindo mesmo a via principal que temperamento, mas a situação não melhorava.
seguia toda a costa norte da ilha e trazia a designação
Curt Gagel não achou as condições de alojamento
orgulhosa de «Estrada real», pelo que a utilidade de um
tão más como, em geral, se lhe tinham sido descritas; por
cavalo levado para lá era em muitos troços do percurso
toda a parte nas suas paragens, todavia muito distantes
inteiramente ilusória.
uma da outra, tinha encontrado uma cama limpa e quase
Quando se ia monte abaixo, na maior parte das sempre sem o «famigerado inventário vivo».
vezes o cavaleiro precisava de desmontar e de escalar,
Tinha, contudo, de observar que frequentemente

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tinha tido de se sujeitar a marchas forçadas muito longas observador era tentado, primeiro, a crer que se tratava de
até descobrir um alojamento humanamente possível, pelo uma construção artificial.
que a de longe maior parte das pessoas já não consideraria Através da entrada apertada da garganta, um
esses passeios tão longos como excursões de recreio que pequeno feixe de raios solares iluminava as numerosas
empreendessem com prazer. cascatas pulverizantes e como por feitiço produzia arcos-íris
Se o visitante estrangeiro conseguia uma brilhantes no meio das folhas de feto e trepadeiras
recomendação de um funchalense natural para uma exuberantes que irrompiam de um profundo crepúsculo e
hospedagem particular, recomendação concedida com se refletiam de modo pitoresco no espelho verde-escuro da
muito gosto pelos portugueses, o caso se afigurava água que se acumulava no fundo da caldeira.
substancialmente melhor e mais agradável. No outro sítio, o mais célebre - o Risco -, uma
impressionante queda de água precipitava-se no fundo
crepuscular de uma garganta estreita com paredes verticais
O Rabaçal de cerca de cem metros de altura. Enquadrava-se em
numerosas fontes menores e fios de água, que manavam
Gagel julgou o Rabaçal, localizado no noroeste da para baixo, e numa vegetação exuberante de fetos e
ilha, o sítio presumivelmente mais belo de toda a Madeira. trepadeiras. No meio do percurso, era recolhida e desviada
Longo, belo, verde e densamente revestido de vegetação, o por uma levada construída com muita arte.
vale da Ribeira da Janela atravessava todo o noroeste da Tanto essa Levada do Risco como a das Vinte e Cinco
ilha. No início, encontravam-se, numa extensão bem curta, Fontes situada cerca de 150 metros mais abaixo eram as de
uma grande quantidade de belas fontes abundantes. longe mais artísticas das numerosas condutas de água
Em belas quedas de água em parte muito altas construídas com tanta habilidade e cuidado que recolhiam
precipitavam-se sobre os prolongamentos verticais do vale. as numerosas fontes bem acima no início dos vales,
Enquadrados numa vegetação maravilhosamente bela e conduziam a sua água para baixo para a rega dos campos e
exuberante concediam uma imagem realmente tornavam dessa maneira uma grande parte da ilha
encantadora da beleza natural mais amena. cultivável.
Num lugar – as Vinte e Cinco Fontes -, lançava-se um Quando o observador estava debaixo (atrás) da
número tão grande e belamente distribuído de quedas de queda de água do Risco na garganta dotada, de facto, de
água mais pequenas e maiores das paredes de uma caldeira paredes verticais e com de longe mais de cem metros de
funda, bem incisa para trás no monte, mas estreita que o altura, mal se compreendia como tinha sido possível

Fig. 3 — Vinte e Cinco Fontes, Rabaçal. Fotografia: Paulo Ladeira, 2015.

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construir nesse lugar aquela conduta de água. Os
trabalhadores tinham sido descidos mediante cordas Bibliografia
extremamente compridas, tinham feito explodir o longo
canal na rocha e tinham construído a represa debaixo da D. N. F., 31-7-1903 = Diário de Notícias, n.º 8 046, Funchal, sexta
queda de água. feira, 31 de julho de 1903, p. 2: «Passageiros»: «Dr. Curt Sagel
Podia andar-se, à meia altura, em parte à beira, em [sic]» e «Navios entrados».
parte por cima do muro dessa levada, à volta de todo o D. N. F., 19-8-1903 = Diário de Notícias, n.º 8 065, Funchal, quarta
precipício vertical dessa garganta selvagem, em parte por feira, 19 de agosto de 1903, p. 2: «Passageiros»: «Dr. Gagel» e
baixo dos fios e quedas de água, que corriam abaixo, e em «Navios entrados»: «Kildonan Castle».
parte diretamente através de pequenos túneis, e admirar D. N. F., 4-2-1907 = Diário de Notícias, n.º 9 319, Funchal, segunda
dos mais diversos lados essa imagem encantadora com os feira, 4 de fevereiro de 1907, p. 2: «Passageiros»: «Prof. Dr.
seus variados arcos-íris reluzentes na pulverização das Gagel» e «Movimento Marítimo».
quedas de água.
D. N. F., 18-2-1907 = Diário de Notícias, n.º 9 333, Funchal,
Fundamentado infelizmente na natureza desse lugar, segunda feira, 18 de fevereiro de 1907, p. 3: «Lista dos
não se conseguia tirar nenhuma fotografia que também só Estrangeiros»: «Hotel Royal»: «Professor Dr. Gagel».
aproximadamente reproduzisse a impressão da realidade.
D. N. F., 21-2-1907 = Diário de Notícias, n.º 9 336, Funchal, quinta
Pois faltava qualquer posição para a colocação da máquina
feira, 21 de fevereiro de 1907, p. 3: «Passageiros»: «Professor
fotográfica e o caminho ao longo da levada também não Dr. Gagel» e «Movimento Marítimo».
estava calculado para ânimos medrosos e com vertigens.
Essas duas levadas do Rabaçal recolhiam a água Encicl. Univers. = Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-
Americana, 70 tomos, 10 apêndices e suplementos desde 1934,
abundante do lado norte da montanha. A fim de a levar
1.º tomo; Barcelona: José Espasa, s. d.; 70.º tomo, Bilbao;
para o sul seco e pobre em água, tiveram de ser conduzidas Madrid; Barcelona: Espasa-Calpe, 1930, 54.º tomo, p. 1084:
em dois túneis de 400 e quase 600 metros, respetivamente, «Schmitz (Ernesto)».
através da cumeada da montanha central para chegar ao
Gagel, C. (1903): «Über geologische Beobachtungen auf Madeira»,
lado sul da ilha. O conjunto constituía uma construção
in: Zeitschrift der Deutschen geologischen Gesellschaft, 55.º
verdadeiramente genial, dando toda a honra aos
vol., Berlin: J. G. Cotta: «Monatsberichte der Deutschen geolo-
engenheiros que a tinham executado. gischen Gesellschaft», p. 117-122.
O caminho melhor e mais cómodo para o Rabaçal
levava, por isso, desde a Calheta, que de vapor se alcançava Gagel, C. (1904): Ein Ausflug nach Madeira, Berlin: Das Rothe
Kreuz.
numa hora e meia a partir do Funchal, pela montanha
acima, até cerca de três quartos da sua altura, e a seguir Gagel, C. (1910a): «Beobachtungen über Zersetzungs- und Ver-
através do longo túnel muito estreito, escuro e húmido da witterungserscheinungen in jungvulkanischen Gesteinen», in:
levada. Bauer, M. et alii [eds.]: Centralblatt für Mineralogie, Geologie
und Paläontologie, Stuttgart: E. Schweizerbart, N.º 8 (15 de
Este só é iluminado pobremente mediante uma
abril de 1910), p. 225-233 e N.º 9 (1 de maio de 1910), p. 271-
tocha de lenha miúda toda primitiva, conseguindo ver-se a 280.
uma distância de apenas três passos. Assim, passava-se
diagonalmente através da montanha até às bifurcações Gagel, C. (1910b): «Die mittelatlantischen Vulkaninseln», in: Hand-
superiores do vale da Ribeira da Janela revestido de belas buch der Regionalen Geologie, 7.º vol., Heidelberg, 10.ª secção,
4.º fasc.º, p. 1-32.
árvores.
Uma vez que esse ponto mais belo da ilha era Gagel, C. (1911): «Beiträge zur Kenntnis der Insel Selvagem
visitado tão raras vezes, aqui nem sequer havia uma grande», in: Bauer, M. et alii [eds.]: Neues Jahrbuch für Minera-
hospedaria. Existiam unicamente a casa do administrador logie, Geologie und Paläontologie, 31.º vol. suplementar,
Stuttgart: E Schweizerbart, p. 386-412.
da levada e, ao lado, duas casinhas bem pequenas com
divisões de alojamento da maneira mais primitiva, para o Gagel, C. (1912-1915): «Studien über den Aufbau und die Gesteine
uso das quais era preciso obter uma autorização por escrito Madeiras», in: Zeitschrift der Deutschen Geologischen Gesell-
do Governo no Funchal. O viandante tinha igualmente de schaft: A. Abhandlungen, 64.º vol., 3.º fasc.º (Julho a Setembro
trazer todas as provisões. de 1912), Berlin, 1912, Stuttgart: Ferdinand Enke, p. 344-448 e
4.º fasc.º (outubro a dezembro de 1912), Berlin, 1913,
Enquanto, no parecer de Gagel, o Rabaçal constituía Stuttgart: Ferdinand Enke, p. 449-491 e 66.º vol., 1914, Berlin,
provavelmente o ponto mais belo da ilha, no sentido da 1915, Stuttgart: Ferdinand Enke, p. 449-481.
calma idílica e paradisíaca, da amenidade e da reunião
estreita de atrativos pitorescos, o geólogo germânico Gagel, Curt (1914): Vulkanische Erscheinungen der nordwestafri-
kanischen Inseln/Volcanic phenomena of the Canary Islands
iniciou o capítulo seguinte, chamado «Ausflug nach dem
and Madeira/Phenomena volcaniques des Canaries et de
Norden der Insel» (Excursão para o norte da ilha) com a Madère (Geologische Charakterbilder, 20.º cad.º), Berlin:
afirmação de que o prémio relativamente a uma grandiosa Bornträger.
paisagem de serra alta era presumivelmente devido ao vale
da Metade, embora não chegasse a atingir inteiramente as Heimbach, Wolfgang (1964): «Gagel, Friedrich August Wilhelm
Curt», in: Historische Kommission bei der Bayerischen
dimensões gigantescas do Grande Curral (Gagel, 1904, p. 22-
Akademie der Wissenschaften (ed.): Neue Deutsche Bio-
25). graphie, vár. vols., Berlin: Duncker/Humblot, desde 1953, 6.º
vol. (1964), p. 28-29.
Krohn, Ronald E. S. (1906): Führer durch Madeira, Berlin: Madeira-

67
Actien-Gesellschaft.
Silva, Fernando Augusto da/Meneses, Carlos Azevedo de (1984):
Elucidário Madeirense: Fac-símile da edição de 1946, 3 vols.,
Funchal: Secretaria Regional de Turismo e Cultura: Direcção
Regional dos Assuntos Culturais.
Wilhelm, Eberhard Axel (1990): «Visitantes de língua alemã na
Madeira (1815-1915)», in: Revista Islenha: temas culturais das
sociedades insulares atlânticas, Funchal: Direcção Regional dos
Assuntos Culturais, n.º 6, Jan.-Jun. 1990, p. 48-67.
Wilhelm, Eberhard Axel (1997): Visitantes e escritos germânicos
da Madeira: 1815 - 1915 (Colecção Cadernos Madeirenses; 3),
Funchal: Direcção Regional dos Assuntos Culturais.

68
António Veloso de Lira (1616—1691)
Cristina Trindade
CLEPUL, Madeira
Paulo Perneta
CLEPUL, Madeira

Resumo
Nascido na Calheta a 14 de junho de 1616, António Veloso de Lira, membro de uma importante família da Calheta,
inicia os seus estudos no Funchal, e aí também recebe as primeiras ordens da carreira eclesiástica. A fim de prosseguir a
sua formação, vai para Salamanca onde se encontrava a 1 de dezembro de 1640, data do fim da monarquia dual.
Feroz partidário da independência nacional, Veloso de Lira vem rapidamente para Portugal, matricula-se na
universidade de Coimbra, onde acabará por se graduar, e publica em 1643 a obra que lhe granjeou maior reconhecimento,
intitulada - Espelho de Lusitanos em o Cristal do Psalmo Quarenta e Três, Cuja Vista em Summa, representa Este Reyno em
Três Estados,na qual faz uma apologética exaltação da história pátria.
Terminados os estudos, Veloso de Lira volta à Madeira onde fará carreira como vigário, cónego, visitador e
governador do bispado, vindo a falecer a 4 de janeiro de 1691.

Palavras-chave
P. António Veloso de Lira, Calheta, Restauração, Literatura, Espelho de Lusitanos.

A 14 de junho de 1616 nascia, na freguesia do


Espírito Santo da Calheta, António Veloso de Lira. Era filho
de Manuel Dias de Lira e de Mécia Rodrigues do Canto (e
não Couto, como vem frequentemente mal referida), casal
que, de acordo com os autores do Elucidário Madeirense
pertencia a uma família “antiga e nobre” da vila da Calheta
(Silva e Meneses, 1984, vol. II, 274-275).
Se a antiguidade dos antepassados é insofismável,
uma vez que se encontram documentados na Calheta
desde pelo menos o início do século XVI, já a questão da
nobreza não é de perceção tão imediata. Na realidade, as
informações recolhidas apenas referem que os pais viviam
de suas fazendas, conforme consta da habilitação do neto,
o licenciado Cristóvão de Sousa e Lira, a Comissário do
Santo Ofício. Os ancestrais apontados e o desafogo
económico de que gozavam acabariam, no entanto, por
fazer radicar a pertença deste agregado familiar em
terratenentes antigos que, pelo menos de acordo com a
tradição, eram oriundos de gente com foros de fidalguia no Fig. 1 — Calheta em 1827, Litografia colorida, 36,3 x 46,5 cm.
continente português, o que, de certo modo, acabaria por Desenho do reverendo James Bulwer (1794-1879), litografado
sufragar a referida nobreza. por William Westall A.R.A. (1781-1850) Impresso por Englemann
Os avós paternos de António Veloso de Lira eram Graf Coindet & Co. para o álbum Views in the Madeiras, Londres,
Inácio Fernandes de Lira e Catarina Velosa, moradores na 1827. Coleção Rui Carita em depósito no Arquivo Regional da
Estrela, sendo o avô filho de Francisco Fernandes e Branca Madeira, Funchal. (Imagem via Wikimedia Commons, disponível
Dias, naturais de “Trás da Ilha”. Esta Branca Dias é dada em https://commons.wikimedia.org/wiki/
pelo genealogista Felisberto Bettencourt Miranda no título File:Calheta,_Madeira_by_James_Bulwer.jpg).
de Liras Varellas como filha de Pedro Dias de Lira Varela -
que a 13 de Maio de 1515 teve foro de Fidalgo Cavaleiro da
Casa Real em África com 1500 reis de moradia, o qual foro

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estava no Tombo da Câmara da Calheta, tendo sido de Nossa Senhora da Estrela;
tombado na Câmara do Funchal em 1669 a pedido do seu  Capitão-cabo José de Lira e Aragão, que foi para o
bisneto Baltazar Varela de Lira, pai de D. Maria de Lira - e Brasil, mas se documenta na Madeira entre 1675 e
de sua mulher Maria Álvares. Segundo depoimento do 1694, pelo menos; embarcou com seu irmão Brás
Capitão Jácome César de Lira, em 1736, estes Liras não Varela de Lira para o Brasil para combater os
tinham qualquer parentesco com os Liras Varelas holandeses e fazer riqueza. José de Lira e Aragão
descendentes de Pedro Dias, o que é contrariado pela permaneceu na capitania de Pernambuco cerca de
persistência do nome Varela nesta família desde tempos 10 anos e 9 meses, entre 1647 e 1657,
remotos. Dizem alguns nobiliários que este Pedro Dias de participando de diversas campanhas militares,
Lira Varela era filho de um D. Fernando de Aragão, primeiro como soldado e depois como alferes;
napolitano, que morreu nos Açores, e de D. Teresa de Lira, mesmo antes de chegar ao Brasil, logo à saída do
filha esta de Pedro Dias de Lira, alcaide-mor de Braga e porto do Funchal, teve de lutar contra naus
Ponte de Lima, dos Liras galegos senhores de Lira, e de holandesas que atacaram o navio onde seguia, e
Teresa Gomes de Abreu, dos senhores da torre e honra de depois também por alturas do Cabo de Santo
Abreu, o que, apesar de não se encontrar cabalmente Agostinho. De regresso à Madeira foi investido no
documentado, poderá explicar a fama de nobreza associada posto de capitão pelo governador Pedro da Silva
a esta família. Certos são apenas os dados da pertença da Cunha, a 1 de Abril de 1660. Entre 1660 e 1674
desse casal a terras de “Trás da Ilha”, provavelmente São comandou uma companhia de ordenanças na
Vicente, de onde parece vir também o apelido Aragão. Ponta do Pargo, distinguindo-se pela forma como
Quanto aos avós maternos encontram-se João socorreu vários navios acossados por piratas
Gonçalves do Canto, sapateiro, casado com Joana mouros nos portos da costa oeste (Veríssimo, 2000,
Rodrigues. João Gonçalves tinha pelo menos um irmão, p. 62);
Sebastião Gonçalves, mercador, casado com Isabel  D. Maria da Estrela e D. Joana, que parece terem
Cordeiro, filha de Antão Bernardes, mareante, natural da ficado solteiras;
Calheta, e de Violante Cordeiro, natural do termo de Ponte  D. Maria do Ó de Aragão, que nasceu em 1619,
de Lima. Violante pertencia à família dos Cordeiro sendo padrinho o avô paterno; casou em 1655
Bernardes, que contava entre os seus membros vários com seu primo, o capitão Gaspar de Sousa e Lira,
mercadores, padres e gente casada na nobreza. vivendo de sua fazenda e indústria. Foram pais do
João Gonçalves do Canto casa a primeira vez em licenciado Cristóvão de Sousa e Lira, mestre escola
1576, com Beatriz Afonso, filha de um alfaiate da Calheta, da Sé do Funchal, que a 30 de outubro de 1700
exercendo então a profissão de sapateiro. O segundo teve provisão de Comissário do Santo Ofício, e três
casamento em 1583, com Joana Rodrigues parece ser de anos depois viria a instruir o processo que visava a
maior estatuto: Joana Rodrigues era filha de João Esteves anulação do estatuto de familiar do Santo Ofício
“dos Quintos”, mercador (1542) e escrivão da Misericórdia do Capitão-cabo Pedro de Faria e Abreu. Pais
da Calheta (1565-1566) que, como o nome indica, tinha por também de D. Ângela de Sousa e Aragão, casada
missão a arrecadação dos “quintos”, imposto que a com Paulo Freire de Noronha Bettencourt
Madeira pagava ao rei em troca da proteção dos mares e Perestrelo (1669-1712), Fidalgo da Casa Real,
costas, embora, de acordo como o próprio António Veloso, cavaleiro do Hábito de Cristo e Sargento-mor da
os tivesse “Castela metido nos seu gastos (...) de tal sorte Ilha do Porto Santo. Henrique Henriques de
que chegou a não haver uma fragata neste reino para Noronha, no seu Nobiliário, e na entrada
acudir a uma pressa” (Lira, 1753, 120). Em 1541, quando casa reservada aos Favilas afirma que “casou n'a
com Micia Rodrigues (que deu o nome à neta, mãe de Calhêta com D.Angela de Sousa e Aragão, filha d'o
António Veloso), era criado de João Rodrigues Castelhano, Capitão Gaspar de Sousa e Lira, e de D. Maria d'o
também chamado João Rodrigues Mondragão. Era filho de Ó e Aragão, pessoas de nobre ascendencia e muito
Álvaro Esteves, de Santa Marta do Bouro, e de Isabel Pires ricos.”, sendo filho de Diogo de Bettencourt
da Cunha, que, de acordo com Pereira de Agrela, se dizia Perestrelo, 7º capitão donatário do Porto Santo
ser dos Pretos Farinhas. (Noronha, 1700, 278);
Além de Micia Rodrigues - que, como foi dito, foi  O Dr. Manuel Dias de Lira, vigário da Ponta do Sol,
buscar o nome à avó materna - João Gonçalves do Canto e que, tal como seu irmão António, estudou em
Joana Rodrigues foram pais de Cristóvão Rodrigues, Salamanca, sendo aí documentado em 1639. Surge
licenciado e vigário da Ponta do Pargo e depois da Ponta do também referido como D. Manuel Veloso de Lira,
Sol, falecido ainda em vida dos pais antes de 1629. Em matriculado em Artes, em Salamanca, em 1640
1614, quando se faz a escritura de dote de casamento de (Carita, 1990, 40), juntando-se mais tarde ao irmão
Manuel Dias de Lira e Micia Rodrigues do Canto, morava na António Veloso de Lira em Coimbra.
Ponta do Pargo, sendo essa escritura então feita em sua O, até certo ponto, elevado número de clérigos
casa. nesta família, bem como o facto de todos terem saído da
Os filhos do casal, além de António Veloso, nascido Ilha para estudar em universidades, é revelador não só do
em 1616, são: seu estatuto económico desafogado, necessário ao suporte
 Capitão Brás Varela de Lira, que casou no Brasil dessas opções, mas também da consciência que tinha do
com D. Simoa Soares, natural daquela terra, que significado social que a pertença ao estado eclesiástico
em 1698 morreu já viúva e se enterrou na Capela acarretava.

70
José Manuel Azevedo e Silva, em estudo realizado a consiliário, o que significa que era o elemento que
partir da lista de estudantes madeirenses na universidade estabelecia a ligação entre os alunos e as autoridades
de Coimbra publicada na revista do Arquivo Histórico da superiores da instituição (Carita, 1990, 39).
Madeira em maio de 1931, chega à conclusão de que a Diogo Barbosa Machado quando fala de António
vinda para o continente do reino, que no caso presente se Veloso de Lira na sua Bibliotheca Luzitana afirma que
alarga até para Salamanca, não estava ao alcance da maior “depois de estudar Letras Humanas na Pátria, passou a
parte das famílias da Ilha, afirmando mesmo que “na Salamanca onde aprendendo Filosofia e Theologia recebeu
Madeira e nos Açores, mais ainda nestes que naquela, só as o grau de Doutor nesta Faculdade”, afirmação que não
famílias gradas e de rendimentos superiores à média parece corresponder à verdade, uma vez que em 1641
poderiam fazer o mesmo” (SILVA, 1990, 58). Um pouco mais António de Lira surge matriculado na Universidade de
adiante, no mesmo texto, o autor, ao propor uma análise Coimbra, onde permanece até 1643, desta vez já como
sociológica da proveniência dos estudantes da Madeira padre e estudante de Teologia, o que não faria sentido se já
adianta que o estrato social de origem dos alunos se ligava fosse doutor (Machado, 1741, tomo I, 414 e Arquivo Histórico da
às principais casas vinculadas, das quais emergiam nomes Madeira, 1931, vol. I, 148).
como os A versão de que já seria doutorado em Salamanca
“Gonçalves, os Achioli, os Vasconcelos, os volta a aparecer no Diccionario Bibliographico Portuguez,
Atouguia, os Mondragão, os Freitas, os Aguiar, de Inocêncio Francisco da Silva, o que vem comprovar que,
os Spínola, os Câmara, os Teixeira, os Ferreira, frequentemente, autores posteriores recolhem
os Ornelas ou Dornelas, os Meneses, os informações em obras anteriores sem o cuidado da
Bettencourt, os Noronha, os Abreu, os confirmação da veracidade dos factos, assim se
Vogado, os Valdevesso, os Henriques, os perpetuando uma cadeia de imprecisões (Silva, 1858, tomo I,
Aragão, os Teive, ou muitos outros que 285).
poderíamos chamar aqui” (Idem, ibidem, 60). Em 1643, precisamente o ano em que teria
Apesar do caráter relativamente exaustivo do concluído a sua formação em Coimbra, António Veloso de
elenco dos nomes aqui apresentados, os “Lira” não Lira publicou aquela que será a obra pela qual se tornará
destoariam da listagem, estando porventura contidos “nos conhecido e digno de integrar o “panteão” de autores
muitos outros” que aqui se não mencionaram. nacionais que povoam as páginas das obras de autores
A preparação de António Veloso de Lira começa na como os já referidos Diogo Barbosa Machado e Inocêncio
Madeira, onde se encontra a tomar o primeiro grau das da
ordens menores a 2 de abril de 1634, logo seguido da
admissão aos 2º, 3º e 4º graus, ocorrida a 20 de setembro
de 1636 (Boletim do Arquivo Histórico da Madeira, nº XXII, 1999,
APEF, doc. 206, fls. 13 e 17), o que obrigatoriamente implica a
realização de estudos preliminares que teriam acontecido
tanto no seminário como no colégio da Companhia de
Jesus. A inexistência de documentação que comprove o seu
acesso ao escalão superior das ordens maiores impede o
conhecimento da data em que se teria ordenado
presbítero, pelo que se ignora se quando foi para
Salamanca prosseguir estudos já teria ou não atingido o
grau superior do caminho da ordenação. Com efeito, a
notícia seguinte que se obtém da sua vida dá-o como
estudante na Universidade de Salamanca onde se
matriculou em Artes em janeiro de 1639, mudando em
dezembro do mesmo ano para Teologia de que frequentou
o 1º e 2º anos, até à Restauração, em dezembro de 1640.
Nesta mesma universidade foi, entre 1639 e 1640,

Fig. 2 (em cima) — Uma aula na universidade de Salamanca, 1614. Pintura de Martin de Cervera ( - 1621). (Imagem via Wikimedia
Commons, disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Class_at_Salamanca.jpg).

Fig. 3 (em baixo) — Panorama de Salamanca, 1570. Desenho de Anton Van den Wyngaerde. (Imagem via Wikimedia Commons, disponível
em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Salamanca_-_Anton_Van_den_Wyngaerde.jpg#%7B%7Bint%3Afiledesc%7D%7D).

71
Fig. 4 — Funchal e
Madeira no século XVII.
(Imagem via Wikimedia
Commons, disponível
em https://commons.
wikimedia. org/wiki/
File:Madeira_Ancient_
Map2.JPG).

Silva. Trata-se de Espelho de Lusitanos em o Cristal do inscreve-se num registo historiográfico nacional iniciado
Psalmo Quarenta e Três, Cuja Vista em Summa, representa uns anos antes por Fernando Oliveira que, em 1581,
Este Reyno em Três Estados. O primeiro desde seus publicara uma História de Portugal que pretendia, muito
princípios, com todas as felicidades e grandezas até à morte mais que ser um repositório isento de factos, fazer a
DelRey D. Joam terceiro. O segundo as calamidades e apologia bastante mitificada do povo português que, em
infortúnios começados em ElRey D. Sebastiam, e seu entender, era tão infinitamente superior ao castelhano
continuados por todo o governo castelhano. O terceiro que de forma nenhuma poderia suportar ser seu
estuda as maravilhas obradas por Deus em a feliz dependente. Assim, e à semelhança de Pereira, também
aclamação e restauração delRey Nosso senhor D. Joam Lira começa por atribuir a fundação de Portugal ao neto de
quarto com os mais raros casos nella sucedidos, asi em este Noé, Tubal, que, vindo do oriente, teria aportado a Setúbal,
Reyno como em Castella, etc. – título tão eivado “desse topónimo que obviamente remete para o nome do putativo
detestável gongorismo que então infestava a literatura fundador.
portuguesa” (Silva e Meneses, 1989, vol. II, 274-275) que levou A descrição mirífica dos eventos dignos de registo
Camilo Castelo Branco a desejar que lhe seja “mais leve a que assinalam a história nacional continua, com a inclusão
terra que o título do seu livro imortal” (Castelo Branco, 1971, de episódios da mais diversa índole que têm em comum o
50). sublinhar das virtudes quase sobre-humanas da lusa gente.
As razões que o próprio António de Lira aponta para Assim se fica, por exemplo, a saber que Aníbal, o grande
a escolha do título são-nos dadas logo no Prólogo ao Leitor general cartaginês – “se já por português não for suspeito -
onde explicitamente informa que “Espelho o intitulo para […], com o favor lusitano que alcançou pôs Roma em tal
que em seu espaço nos vejamos; e vendo-nos a nós aperto que em um só dia cinquenta mil soldados escolhidos
também vejamos o que tanto nos importa” (Lira, 1753, sepultou nas margens do lago Trastimeno” (Lira, 1753, 20).
p.n.n.). Quanto à opção pela comparação entre a sua Para os menos familiarizados com a ligação de Aníbal aos
narrativa e o Salmo 43 – obra de David que integra o Livro lusitanos o autor esclarece em nota à margem que a mãe
dos Salmos do Antigo Testamento e remete para o do cartaginês era portuguesa.
sofrimento de um povo aprisionado (Salmo 43. 1.- Fazei-me Mais à frente, e a propósito de D. Afonso
justiça, ó Deus, e defendei a minha causa contra gente sem Henriques, afirma que “Não se numeram por batalhas
piedade; livrai-me do homem enganador e perverso), o ordinárias os troféus que de bárbaros alcançou: mas por
autor explica que o elegeu “por ser com nossas coisas tão milhões, às dúzias as cidades, os Reis vencidos mais de
coincidente, e para que vejam alguns o quanto em o povo trinta, dizem” (Ibidem, 28), e o tom hiperbólico prossegue ao
de Deus foi este povo Lusitano simbolizado” (Idem, ibidem, p. longo de toda a obra na qual a sua terra natal não é
n. n.). esquecida. Por mais que uma vez, com efeito, António V. de
Por esta forma de enunciar os seus propósitos, Lira Lira situa no arquipélago alguns dos factos miraculosos com

72
Fig. 5 — Espelho de Lusitanos,
António Veloso de Lira, edição de
1643. (Imagem via Wikimedia
Commons, disponível em https://
commons.wikimedia.org/wiki/
File:Hg-5642-p_y-01_rosto_t24-C-
R0150.jpg).

que Deus sempre bafejou os portugueses, como acontece sempre limitado número de lusitanos a um grande
quando evoca um fenómeno acontecido no Porto Santo no contingente de biscainhos, sorrindo invariavelmente a
momento de uma das variadas incursões de piratas vitória aos portugueses, como cumpria.
“hereges” que aquela ilha sofreu. Estando a ilha para ser De regresso ao reino, Veloso de Lira vai, como já
atacada por “setecentos homens se viram tantas pombas referido, frequentar a universidade de Coimbra, e de
sobre os defensores que jamais com as balas acertaram, acordo com Rui Carita, participou em conjunto com outros
deixando mais de trezentos em a praia” (Ibidem, 65-66). madeirenses no terço da universidade que, no Alentejo,
Apesar de toda a proteção divina, Portugal, por combateu por D. João IV (Carita, 2013, 34).
incurso em erros diversos, teve de ser castigado, o que veio A data exata do seu regresso à Madeira é
a verificar-se com a ocupação espanhola, mas logo na desconhecida, sabendo-se, no entanto, que a 20 de
década de 1630 começaram a evidenciar-se sinais de que a outubro de 1655, se encontra na ilha da Madeira, no
libertação estava próxima. As premonições sucediam-se, Funchal, já como cónego, onde diz o sermão da benção dos
entre as quais uma verificada nas praias do Tejo de cujas alicerces da futura igreja e convento de Nossa Senhora das
águas “em tempos atrás saíram alguns feixes de letras que Mercês, na presença do Governador general Pedro da Silva
claramente diziam Duque, Duque”, para se dar apenas um da Cunha, e do Reitor do Colégio, o padre Manuel
dos variados exemplos que o texto contempla (Ibidem, 151). Fernandes (Noronha, 1722, 283).
Consumada a separação de 1 de dezembro de 1640, Em 1669 a sua presença está igualmente registada,
Veloso de Lira que se encontrava, como se viu, em desta feita na realização de uma visitação ao Seixal, onde
Salamanca, ocupado, na companhia de outros “viriatos”, se desloca em período de sede vacante, de acordo com o
com uma cadeira lecionada pelo Doutor Simão Rebelo, registo que deixou no Livro de Provimentos do Seixal (ACDF,
exulta. Subitamente desinteressados do desempenho Livro de Provimentos do Seixal, 1591-1756, fl. 56 e segs).
escolar os portugueses decidiram entregar a dita cadeira Segundo vários autores (Noronha, 1722, 393;
aos seus arqui-inimigos, os biscainhos, que “começaram a Machado, 1741, 414), e em data que alguns colocam em
vitoriar Portugal por toda a Salamanca, dizendo que 1689, (Carita, 1992, 392), António Veloso de Lira ascendera
vivessem os Viriatos insignes domadores do ao lugar de cónego magistral da sé do Funchal, posição na
universo” (Ibidem, 198), para grande espanto dos qual, e em companhia de outros dois ministros eclesiásticos
castelhanos que os sabiam desde há muito – o arcediago António Valente de S. Paio e o mestre-escola
incompatibilizados. Entusiasmados com os recentes Marcos da Fonseca Cerveira, assina, a 15 de outubro de
sucessos da história nacional, voltaram para Portugal os 1690, uma pastoral. Pelo texto do referido documento se
estudantes de Salamanca, liderados pelo autor desta obra fica a saber que, por delegação de D. frei José de Santa
que não resistiu, entretanto, a enumerar um outro notável Maria, bispo recentemente indigitado, estava suspenso o
conjunto de miraculosas façanhas que opuseram um estatuto de sede vacante, sendo a gestão dos assuntos

73
“O autor, ignorando completamente o que é uma
colocação suave e cadente, desta nos deu um
Espelho ou um modelo pouco claro: porque a
colocação que usa é tão esquisita que bem
lhe podemos chamar métrico-prosaica. Na
sua primeira Consideração que tem por título
«Das grandezas da terra Lusitana», nas
primeiras seis regras e meia se contem sete
versos hendecassílabos, sem contar com as
palavras do título que também o são: Lendo-
se, a cada passo se notam outras colocações
tanto ou mais violentas. Na verdade, não
pode haver Lira mais destemperada” (Silva,
1858, 285).
Apesar desta apreciação pouco abonatória do
talento literário do cónego da Calheta, este não deixou de
congregar interesses e atenções diversos que se refletem
em significativa bibliografia na qual vem referido, e de que
se podem adiantar exemplos diversos. Assim, logo em
1741, o seu nome é mencionado na obra de Francisco
Xavier de Oliveira, intitulada Memoires de Portugal: avec la
Bibliothèque Lusitane, dediez a son Altesse Royale l’Infant
D. Emmanuel de Portugal, onde surge no tomo I , a páginas
348, e em 1801 o mesmo acontece na obra conjunta de
Francisco Xavier de Paula Luis e Antonio Domingos Rafael
com o título Bibliotheca Historica de Portugal e seus
Dominios Ultramarinos…, antologia que integra António
Veloso de Lira na página 77 (Luis e Rafael, 1801, 77). Ainda no
século XIX, mas agora em 1846, Fernando Dinis no seu
Fig. 6— Espelho de Lusitanos, António Veloso de Lira, edição de Portugal Pitoresco alude a “um escriptor portuguez” que
1753. (Imagem via Wikimedia Commons, disponível em https:// “compilou cronologicamente, em poucas linhas, os factos
commons.wikimedia.org/wiki/File:Hg-5643-p_y-02_rosto_t24-C- relativos a este período desgraçado (da dominação
R0150.jpg). espanhola)”, antes de se lançar na transcrição não tão
reduzida quanto a introdução poderia fazer crer de
correntes entregue pelo prelado ao referido triunvirato passagens significativas do Espelho de Lusitanos (Dinis, 1846,
(ACDF, cx. 45, doc. 7). 328 e segs). Este mesmo Fernando Dinis é mencionado por
Para além do Espelho de Lusitanos…., António um historiador espanhol M. CH. Weiss que na obra La
Veloso de Lira escreveu, ainda, outras obras a saber: España desde el reinado de Felipe II hasta el advenimeinto
Politica Christiana, Zodiacus Ecclesiae, Stella Matutina in de los Borbones o cita como fonte do discurso de Veloso de
Medio Nebulae, Domus Sapientiae e a Philosophia Muta, Lira quando este se interroga “Es de admirar que la nacion
Glosa sobre os Evangelhos e Antiguidades da Ilha da portuguesa conserve un odio implacable á los insolentes
Madeira intituladas Campus ubi Troya Fuit, todas inéditas, estrangeros que la tuvieran oprimida por espacio de
embora no caso da última, que respeita ao incêndio do sesenta años?” (Weiss, 1843, 209).
Porto Santo no rescaldo do saque dos mouros em 1617, Poucos anos mais tarde, em 1850, é publicada a
(Lira, 1753, 116) se encontrar a referência de estar pronta obra de Jorge Figaniere Bibliographia Historica Portugueza
para impressão em 1658 (Machado, 1741, 414). ou Cathalogo Methodico dos autores portugueses e alguns
Os créditos literários de António Veloso de Lira estrangeiros…, outra antologia que integra o Espelho, desta
foram, portanto, estabelecidos apenas a partir do Espelho vez na página 48.
de Lusitanos…, e estão longe de ser consensuais. Para Em tempos mais recentes, as menções ao Espelho
alguns estudiosos, o estilo em que está redigido é “muito de Lusitanos e ao seu autor continuam a ser produzidas,
natural do seu génio” (Noronha, 1722, 393), enquanto para como se vê pelas referências que lhe são feitas, quer por
outros, mais cuidadosos, a obra “Apesar dos seus defeitos José Joaquim Rodrigues no seu Catálogo Bibliográfico do
[…] é reveladora de uma inteligência superior e de uma não Arquipélago da Madeira onde surge a páginas 119, quer
vulgar ilustração”, tendo mesmo merecido a Alexandre por Alberto Artur Sarmento, que nas suas Freguesias da
Herculano largas citações na revista Panorama (Silva e Madeira, ao elencar personagens ilustres da Calheta
Meneses, 1984, 275). Cabe a Inocêncio Francisco da Silva, (Sarmento, 1953, 27), inclui o cónego Lira, à semelhança do
porém, a mais demolidora das apreciações feitas ao estilo que fazem, anos mais tarde Ângela Borges, Isabel Stephane
de António Veloso de Lira. Depois de explicar que o livro e Rui Carita que também o integram na Antologia Literária
teve duas edições, uma de 1643 e outra de 1753, sendo “a da Madeira, publicada em 1987 (Borges, Stephane e Carita,
primeira em tudo preferível à segunda”, Inocêncio regista 1987, 96).
as impressões que o Espelho… lhe deixou: João Francisco Marques, na sua tese de doutora-

74
mento sobre a Parenética Portuguesa e a Restauração suspensa a jurisdição do cabido.
igualmente recupera a figura do cónego madeirense, agora Arquivo da Cúria Diocesana do Funchal, Livro de Provimentos do
para salientar que Lira exprimira surpresa em relação ao Seixal, 1591- 1756.
raro momento de união nacional que a recuperação da
Impressa
independência fizera acontecer. Dizia, então, o cónego Lira
que “em hum instante Clero, Nobreza e Povo foram juntos BORGES, Ângela, STEPHANE, Isabel e CARITA, Rui, Antologia
tanto no comum parecer, como fazer”, o que, até certo Literária. Madeira, séculos XVII-XVIII, ed. da Secretaria
ponto configura um milagre dentro do outro milagre que Regional da Educação, Funchal, 1987.
fora a Restauração em si mesma (Marques, 1883, 274). CARITA, Rui, “Madeirenses na Universidade de Salamanca” in
Em obra vinda à luz em 1992, Ernesto Gonçalves Islenha, Funchal, jul-dez - 1990, pp. 37- 41.
também se refere a Veloso de Lira de quem, citando CARITA, Rui, História da Madeira 1600-1700. As dinastias
Hipólito Raposo, diz ter sido “o maior criador do Habsburgo e Bragança, vol. III, ed. da Secretaria Regional da
Educação, Funchal, 1992.
maravilhoso da Restauração”, integrando-o no lote
CARITA, Rui, A Igreja Grande de S. Jorge: 1761-2011, ed. da
daqueles portugueses que, estando fora do país, tudo
Direção Regional dos Assuntos Culturais, Secretaria Regional
abandonaram para regressar à pátria de novo do Turismo e Cultura, Funchal, 2013.
independente (Gonçalves, 1992, 149). CASTELO BRANCO, Camilo, Coisas Leves e Pesadas, 3ª edição,
Em 2002, o nosso autor volta a ser mencionado Parceria A. M. Pereira, Lda, Lisboa, 1971.
numa compilação de bibliografia sobre D. Sebastião, num CURTO; Diogo Ramada, O discurso político em Portugal: 1600-
trabalho de Vítor Amaral de Oliveira que considera que a 1650, ed. Universidade Aberta, Lisboa, 1998.
referência a António Veloso de Lira é incontornável quando DINIS, M. Fernando, Portugal Pitoresco ou Descripção Historica
se elencam obras de “exaltação e justificação d’este Reino, ed. Uma Sociedade, Typographia L. C. da Cunha,
Lisboa, 1846.
restauracionista” (Oliveira, 2002, xxx).
FIGANIERE, Jorge Cesar, Bibliographia historica portugueza ou
Já no século XXI, o cónego continua a interessar
Cathalogo Methodico dos autores portuguezes e de alguns
autores que estudam o pensamento político em Portugal, estrangeiros domiciliarios em Portugal, que tratam da Historia
como acontece com Diogo Ramada Curto que integra o Civil, Politica e Ecclesiastica d’estes Reinos e seus Dominios e
Espelho de Lusitanos no “conjunto das apologias da nações Ultramarinas e cujas obras correm impressas em
restauração”, embora não deixe de lhe reconhecer alguma vulgar, onde também se apontam muitos documentos e
originalidade uma vez que introduz “no discurso o relato escriptos anonymos que lhe dizem respeito, Typographia
das suas ações e tomadas de posição” conferindo à Panorama, Lisboa, 1850,
narrativa um caráter autobiográfico singular (Curto, 1998, GONÇALVES, Ernesto, Portugal e a Ilha, ed. Centro de Estudos de
História do Atlântico, Secretaria Regional do Turismo e
152).
Cultura, Funchal, 1992.
A figura do cónego Lira continua presente no
LIRA, António Velozo de, Espelho de Lusitanos em o Cristal do
universo dos estudiosos portugueses e há bem pouco Psalmo Quarenta e Três, Cuja Vista em Summa, representa
tempo, em tese de doutoramento com data de 2018, o Este Reyno em Três Estados. O primeiro desde seus princípios,
autor, Porfírio Pinto, evoca António Veloso de Lira a com todas as felicidades e grandezas até à morte DelRey D.
propósito de um sermão proferido pelo Padre António Joam terceiro. O segundo as calamidades e infortúnios
Vieira que usava como mote o mesmo Salmo 43 que começados em ElRey D. Sebastiam, e continuados por todo o
inspirara o escritor madeirense (Pinto, 2018, 117). governo castelhano. O terceiro estuda as maravilhas obradas
António Veloso de Lira faleceu no Funchal a 4 de por Deus em a feliz aclamação e restauração delRey Nosso
senhor D. Joam quarto com os mais raros casos nella
janeiro de 1691, estando sepultado na capela-mor da sé
sucedidos, asi em este Reyno como em Castella, Oficina de
daquela cidade, ano em que aparece referenciado numa
Domingos Rodrigues, Lisboa, 1753.
lista de receitas da fábrica da Sé como doador de uma LUIS, Francisco Xavier de Paula e RAFAEL, António Domingos,
quantia de 4 000 réis para a mesma fábrica (Silva, 1995, vol I, Bibliotheca Historica de Portugal e seus dominios
539). Fez testamento de mão própria, aprovado por Manuel ultramarinos, na qual se contem varias Historias daquele e
Rodrigues Pedreira, tabelião de notas no Funchal, no qual destes, ms e impressas em prosa e em verso, só e juntas com
deixa morgado ou vínculo em seus sobrinhos, com as de outros Estados, escriptas por autores Portugueses e
obrigação que usassem sempre do apelido Lira. Deixa ainda Estrangeiros, Typographia Calcographica, Typoplastica e
dois mil reis à irmandade de Nossa Senhora do Monte do Litteraria, Arco do Cego, Lisboa, 1801.
MACHADO, Diogo Barboza, Bibliotheca Luzitana, Historica, Critica
Carmo.
e Cronologica, na qual se compreende a noticia dos Autores
Portuguezes e das Obras que compuzerão desde o tempo da
promulgação da Lei da Graça até ao tempo prezente,
Bibliografia: oferecida à Augusta Magestade de D. João V, Nosso Senhor,
Lisboa Occidental, na Officina de Antonio Isidoro da Fonseca,
Fontes manuscritas: ano de MDCCXXXXI, Tomo I.
MARQUES, João Francisco, A Parenética Portuguesa e a
Arquivo e Biblioteca da Madeira, Livro de Matrículas de Restauração, 1640-1668: a revolta e a mentalidade, ed. de
Ordinandos em Ordens Menores: ostiários, leitores, exorcistas autor, Porto, 1983.
e acólitos, 1628-1643, microfilme 769. NASCIMENTO, João Cabral do, “ Estudantes da Ilha da Madeira na
Arquivo da Cúria Diocesana do Funchal, caixa 45, doc. 7 – Pastoral Universidade de Coimbra, nos anos de 1573 a 1730”, in
de D. António Valente de S. Paio, arcediago da Santa Sé, Arquivo Histórico da Madeira, Funchal, 1931, Vol. I, fasc. 3-4,
Marcos da Fonseca Cerveira, mestre-escola e do Dr. António 145-150.
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75
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Condado da Calheta (Título de Conde)
José Gregório Gouveia
Advogado

Resumo
Com o início do povoamento da Madeira, a localidade da Calheta beneficiou com o seu desenvolvimento social e
económico, tornando-se condado em meados do século XVI. A abordagem sobre o título de conde atribuído a Simão
Gonçalves da Câmara pelo rei D. Sebastião precede de um enquadramento histórico, de uma perspetiva geral no âmbito
dos donatários do arquipélago e dos capitães do donatário da Capitania do Funchal, dos títulos de conde atribuídos por
alguns reis a nobres da Madeira e do Porto Santo e dando ênfase à particularidade da influência dos condes da Calheta na
construção de um palácio em Lisboa e na atribuição do nome do primeiro conde a escola e arruamento da Calheta.

1 - Enquadramento Histórico construção da vida social, económica, religiosa, política e


administrativa, gerou o povo que hoje somos.
Os ideais da expansão cristã reacenderam-se No decorrer dos anos, algumas localidades foram
quando, no século XV, os rendimentos da Ordem de Cristo elevadas a vila, correspondendo à designação atual de
passaram a ser investidos na exploração marítima. A cruz concelho/município. A primeira a ser criada por foral foi a
da Ordem de Cristo constituiu o emblema que adornou as do Funchal, entre os anos de 1451 e 1452, no reinado de D.
caravelas que exploraram mares desconhecidos. Afonso V (1438-1481). A área de jurisdição do Funchal
O Arquipélago da Madeira passaria a ser parte correspondia, inicialmente, a toda a Capitania do Funchal,
integrante de Portugal no século XV, marcando os anos de que se iniciava na ponta da Oliveira (Caniço) e tinha fim na
1418 e 1419 a chegada de João Gonçalves Zarco, Tristão ribeira do Tristão, onde começava a capitania de Machico,
Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo às ilhas do Porto mas dela se foram, depois, emancipando outras freguesias.
Santo e da Madeira, respetivamente. O Infante D. O município da Ponta do Sol foi criado por Alvará
Henrique, tinha sido nomeado Administrador Apostólico da Régio de 2 de dezembro de 1501, tendo sido
Ordem de Cristo, passando a ser o novo “dono e senhor”, desmembrado do município do Funchal, sendo jurisdição
em todos os domínios ultramarinos, nos quais de incluía o daquele a arriba leste à Ribeira da Ponta do Sol até a já
arquipélago da Madeira que até então dependia referida Ribeira do Tristão. A Lombada dos Esmeraldos, no
diretamente da Coroa. entanto, continuou a pertencer ao município do Funchal.
A jurisdição sobre o arquipélago foi doada pelo rei Com a criação do município da Calheta, feita vila em
D. Duarte ao Infante D. Henrique a 26 de setembro de 1 de julho de 1502, com a designação de Vila Nova da
1433, concedendo o senhorio daquelas ilhas com todos os Calheta, a Ponta do Sol ficou limitada a metade da
direitos, rendas, poderes e regalias, com algumas exceções, freguesia do mesmo nome, aos Canhas e à Madalena do
tais como cunhar moeda e o exercício de Justiça Suprema Mar, que nessa época não eram paróquias autónomas, e ao
que pertenciam ao rei. sítio do Pinheiro, limites que se mantiveram até 1835.
O apoio espiritual esteve sempre presente nos Assim, o concelho da Calheta começava no Arco da Calheta
passos dos Descobrimentos junto das populações dos e terminava na Ribeira do Tristão.
territórios conquistados e povoados. Em 1835 com a reorganização dos concelhos, a
A fixação dos primeiros habitantes, num processo Ponta do Sol passou a incluir as freguesias da Ponta do Sol,
de migração de colonos do reino e do estrangeiro, a que se Madalena do Mar, Canhas, Tabua, Ribeira Brava e Serra de
juntou mão-de-obra escrava das Canárias e da costa da Água.
Guiné, foi facilitada pelo despovoamento das ilhas, onde, Com a criação do município da Ribeira Brava, em
no entanto, o arvoredo se impunha e dominava, fazendo 1914, as freguesias da Ribeira Brava, Serra de Água e Tabua
crescer em todo o território grandes barreiras à sua obra. deixaram de pertencer ao da Ponta do Sol, tendo passado a
Circunscritos a uma reduzida superfície, os freguesia do Campanário do município de Câmara de Lobos
povoadores desenvolveram caraterísticas próprias, para o da Ribeira Brava.
moldadas pela situação geográfica, pelo clima e pela Se o açúcar e o vinho foram as produções
orografia irregular. A caminhada durante 600 anos, ligada à vivificadoras da economia agrícola, os mais variados

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produtos foram também cultivados e constituíram ao longo Em 18 de abril de 1434, com a promulgação da LEI
do tempo a base da alimentação diária do povo. A cultura MENTAL pelo rei D. Duarte, todas as terras e bens doados
da cana sacarina constituiu uma fonte importante de pela Coroa, no passado ou no futuro, apenas poderiam ser
riqueza e desenvolvimento cujo período áureo se situa nos herdados pelo filho varão primogénito.
séculos XV e inícios do XVI. Na vila da Calheta funcionou Um diploma datado de 30 de outubro de 1422, cujo
uma pequena delegação aduaneira que cobrava impostos original se teria extraviado, mas que foi, depois,
respeitantes à produção açucareira. Houve o cargo de incorporado num texto de confirmação assinado por D.
escrivão dos quintos e o de quintador que aplicavam os Afonso V, autorizou o Infante D. Henrique a doar as suas
devidos impostos. terras e as pertencentes à Ordem de Cristo, de que era
A meados do século XVI, com a crise generalizada governador.
dos canaviais e a grande produção açucareira do Brasil, Por morte do Infante D. Henrique em 13 de
surge a dominância da vinha na agricultura e do vinho no novembro de 1460, o Arquipélago da Madeira passou para
comércio externo da ilha. o infante D. Fernando, filho do rei D. Duarte, seu sobrinho
e afilhado que em 1436 tinha sido perfilhado como seu
2 - Donatários do Arquipélago da Madeira filho adotivo, constituindo-o como herdeiro universal. Com
a morte do infante D. Fernando em 1470, em Setúbal, a
Decorridos sete anos desde a aceitação da doação Donataria da Madeira passou para o seu filho D. Diogo que,
pelo Infante D. Henrique, 1º Donatário do Arquipélago da por ser menor, teve como tutora a sua mãe D. Beatriz na
Madeira, este fez o que poderá chamar-se «primeira administração do arquipélago. E como D. Diogo teria
divisão administrativa do território»: as zonas Leste e Norte encabeçado uma conspiração contra D. João II, este
da Ilha da Madeira constituíram a Capitania de Machico apunhalou-o em 23 de agosto de 1484, passando o
que foi doada a Tristão Vaz, no dia 8 de Maio de 1440, com arquipélago para a posse de D. Manuel, então duque de
sede em Machico; a segunda divisão ocorreu em 1 de Beja. Por morte de D. João II em 1495, o duque de Beja foi
Novembro de 1446 ao doar a Capitania do Porto Santo a aclamado rei com o título de D. Manuel I, sendo
Bartolomeu Perestrelo; a terceira divisão teve lugar no dia simultaneamente donatário do arquipélago e rei, o que
1 de Novembro em 1450 ao doar a João Gonçalves Zarco a facilitou a integração da Donataria na coroa, tendo sido
Capitania do Funchal, constituída pelas zonas Sul e Oeste concretizada por carta régia datada de 27 de abril de 1497.
da Ilha da Madeira, com sede no Funchal, doação que foi Mas os Capitães do Donatário mantiveram os direitos e
confirmada por D. Afonso V em 1451. deveres, ficando diretamente subordinados ao Rei.
As Capitanias eram independentes umas das outras, No fim do reinado de D. João IV (1640 a 1656), foi
tendo cada Capitão do Donatário poderes autónomos para regente do reino sua esposa D. Luiza, por menoridade de
administrar o respetivo território, incluindo os poderes seu filho Afonso que viria a ser D. Afonso VI. Nos primeiros
sobre os povoadores. A doação tinha natureza hereditária, dias de novembro de 1656, D. Luiza em nome de seu
sendo as terras distribuídas aos colonos no regime de marido simulou uma doação do arquipélago a favor de sua
aforamento e em plena propriedade, o que mais não era filha, infanta D. Catarina, para evitar que o arquipélago
senão a aplicação do regime da Lei das Sesmarias, figurasse no rol das cedências à Inglaterra. A infanta
aprovada por D. Fernando em 1375. Catarina veio a casar, em 30 de maio de 1662, com Carlos II
A posse da terra era garantida pelas culturas de Inglaterra. Por morte deste, a viúva regressou a Lisboa,
produzidas e sujeitas a encargos foraleiros, regime que, nos onde chegou a 20 de janeiro de 1693. Como aquela
anos 50 do Séc. XX, ainda obrigava alguns proprietários de doação teria contornos pouco claros ficou sem efeito,
terrenos a pagar «foro» ao senhorio. O pagamento era em sendo o derradeiro Donatário, de facto e de direito, o rei D.
produtos da terra e em dinheiro. Manuel I.
Os Capitães do Donatário detinham o monopólio das As Donatarias, por lei de 1790 de D. Maria I,
estruturas económicas, assim como o direito à dízima deixaram de fazer parte do ordenamento jurídico então
(imposto equivalente à décima parte do rendimento). E no vigente.
decorrer dos tempos, variadas modalidades foram
praticadas, nomeadamente o regime feudal da Colonia que 3 – Capitães do Donatário da Capitania do Funchal
permaneceu vivo até finais do Sec. XX (o Decreto-Lei nº
47.937, de 15 de setembro de 1967, proibiu para o futuro O poder dos Capitães do Donatário não foi sempre
os contratos de Colonia. Os contratos que se realizassem pacífico e bem acolhido pelos monarcas, especialmente
ficariam como contratos de arrendamento rural. A Colonia com D. Manuel I ao imprimir a centralização do Poder. E
apenas foi extinta pelo Decreto Regional nº 13/77/M, de 18 quanto maior era a força centralizadora, maior era o
de outubro, aprovado no dia 29 de julho de 1977 pela espírito reivindicativo dos titulares das Capitanias.
Assembleia Regional da Madeira). Em 8 de março de 1497, D. Manuel I tomou uma
Os capitães e seus descendentes tinham amplos primeira medida ordenando que os Capitães do Donatário
poderes de governação, delegados pelo Infante D. não podiam executar nem cumprir mandatos, sentenças ou
Henrique e reconhecidos pelo rei. Tinham atribuições na perdões sem a sua assinatura. O 2º Capitão do Funchal,
administração pública, aplicavam a justiça na área cível e João Gonçalves da Câmara, contestou aquela medida
criminal e tinham poderes militares, ficando para a Coroa perante o monarca que lhe deu razão por carta de 28 de
os poderes de fazer guerra e paz, de aplicar a pena de novembro de 1499.
morte e a que implicasse talhamento de membro, bem Outras tentativas houve para a retirada de poderes
como de cunhar moeda. da jurisdição cível e criminal dada aos Capitães do

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Donatário, nomeadamente no âmbito da aplicação da nasceram Rui Gonçalves da Câmara, Garcia Rodrigues da
justiça por intermédio dos Corregedores mandados pelo Câmara, Isabel Gonçalves da Câmara, Beatriz Gonçalves da
monarca. “Os abusos da jurisdição cometidos pelos Câmara e Catarina Gonçalves da Câmara.
donatários que às vezes iam até à invasão do poder real, João Gonçalves (da Câmara), 2º Capitão do
determinaram a vinda a esta ilha de ouvidores e Donatário, normalmente estimando-se que tenha
corregedores, levantando-se conflitos entre eles, a que substituído o pai em finais da década de 1460. Nascido em
sempre vinha pôr termo o governo da metrópole nos data que se ignora faleceu no Funchal em 26 de março de
recursos interpostos perante a Coroa” («Elucidário 1501, tendo casado com D. Maria de Noronha. “Chamavam
Madeirense», 4ª Edição, Volume I, pag. 361). -lhe comummente João Gonçalves da Porrinha, em rasão
Com a ocupação filipina, os descendentes deste de hum páo que costumava trazer na mão, em signal de
Capitão Donatário perderam o poder sobre a castigo contra os malfeitores” (Gaspar Frutuoso, Saudades da
administração pública da Capitania, tendo o rei Filipe I Terra, anotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo, pag. 169, ed.
nomeado João Leitão como governador geral de todo o Empresa Municipal Funchal 500 anos).
arquipélago. Foi um cavaleiro esforçado nos serviços prestados a
João Gonçalves Zarco – Era cavaleiro da Casa do D. Afonso V (1438–1481), o «Africano», especialmente na
Infante D. Henrique, provavelmente desde 1415. tomada de Arzila. No contexto de alguma animosidade
Após a descoberta do arquipélago, foi encarregado entre os reinos ibéricos, com as posições assumidas por D.
de desenvolver e povoar o território, tendo sido o 1º Afonso V em relação a problemas sucessórios no reino
Capitão do Donatário da Capitania do Funchal, desde vizinho, por um lado, e o envolvimento em processos
01/11/1450. Embora não se conheça, com certeza, o lugar simultâneos de expansão, por outro, é possível que uma
e a data do seu nascimento, é sabido que faleceu no grande frota de castelhanos tenha tentado invadir a
Funchal provavelmente em 1471, sendo sepultado no Madeira, e este facto estaria então, na origem de uma
Convento de Santa Clara. Veio para a Madeira na atitude valorosa de João Gonçalves da Câmara que teria
companhia de sua mulher Constança Rodrigues de Sá, e de conseguido evitar a presença de castelhanos na Madeira,
seus dois primeiros filhos: o primogénito João Gonçalves seguindo estes para a Ilha do Porto Santo que foi tomada.
(da Câmara) e Helena Gonçalves (da Câmara); na Madeira João Gonçalves (da Câmara) “armou certos navios com

Fig. 1 - João Gonçalves Zarco. Fig. 2 - João Gonçalves da Câmara.

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gente, bésteiros e poucos espingardeiros, e foi buscar aos Donatário desde 1604, e 3º Conde da Calheta. Nasceu em
castelhanos ao Porto Santo, onde estavam já senhores da Lisboa em 1565 e faleceu em 1623. Casou 2ª vez com D.
terra, e pelejou tão animosamente, que a mal de seu grado Maria de Vasconcelos e Menezes, filha de Ruy Mendes de
os fez embarcar com perda de muitos, e captivou alguns, Vasconcelos, filha e herdeira do 1º Conde de Castelo
alem de outros que ferio e matou: e assi assegurou a ilha”, Melhor. Nunca veio à Madeira, nem assumiu o governo da
(Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, anotado por Alvaro Capitania.
Rodrigues de Azevedo, pag. 169, ed. Empresa Municipal Funchal João Gonçalves da Câmara, 8º Capitão do
500 anos). Donatário desde 30 de junho de 1626, e 4º Conde da
Simão Gonçalves da Câmara, 3º Capitão do Calheta. Nasceu em 1590 e faleceu em 27 de março de
Donatário, nasceu em 1463 e faleceu em 1531, tendo 1656.
casado com D. Joana Valente Castelo Branco. Em 1528 Mariana de Alencastre Vasconcelos e Câmara, 9º
renunciou ao governo da Capitania que dirigia desde 1501, Capitoa Donatário desde 13 de outubro de 1660 e 5ª
e “foi chamado Magnífico porque nunca pessoa alguma se Condessa da Calheta. Nasceu em 1610 e faleceu a 15 de
chegou a elle a pedir-lhe alguma cousa que lha negasse, abril de 1689. Foi camareira Mor da Rainha D. Maria
por ser mui grandioso e de singular condição, sem nunca Francisca Isabel de Saboya e marqueza de Castello Melhor.
poupar o que tinha, despendendo tudo comummente com Foi casada com João Rodrigues de Vasconcelos, 2º conde
muita prudencia em serviço de seu Deos e de seu Rey, em de Castello Melhor, Comendador e Alcaide Mor de Pombal,
que foi tão solicito e deligente, que nove vezes foi a Africa de cuja união foi filho herdeiro Luís de Vasconcelos e
com muita gente à sua custa em socorro” (Gaspar Frutuoso, Sousa, 3º Conde de Castello Melhor, não tendo assumido a
Saudades da Terra, anotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo, Capitania.
pag. 177, ed. Empresa Municipal Funchal 500 anos). Afonso Caminha de Vasconcelos e Sousa, 4º conde
“A raça cavalar da Madeira, formada pela mistura de Castelo Melhor, 10º Capitão do Donatário, desde 13 de
de sangue árabe e celtibero, teve fama, por constituir um outubro de 1724, e 6º Conde da Calheta. Filho de Luis
tipo resistente e veloz, levado nas expedições que os Vasconcelos e Sousa e de Guiomar de Tavora Sousa Faro e
donatários organizaram em socorro das praças de África. Veiga. Casou por duas vezes, a primeira em 1690 com D.
Na tomada de Azamor, em 1513, enviou Simão Gonçalves Mariana Francisca Xavier de Noronha, de quem não teve
600 homens de pé e 200 a cavalo. (Artur Sarmento, Ensaios filhos e a segunda em 1695 com Emilie Sophronie Pelagie
Historicos da minha Terra, Ilha da Madeira, 2º vol. pag. 66, 1947). de Rhoan, filha dos príncipes de Subiza, Francisco de
João Gonçalves da Câmara, 4º Capitão do Rhoan, e de sua mulher Anna Judith Habor de Rhoan. Foi
Donatário desde 1528, nasceu no Funchal em 1489 e Senhor da Ponta do Sol, de Câmara de Lobos e Calheta.
faleceu em 1536. Por renúncia de seu pai, veio pela Faleceu em 2 de fevereiro de 1734.
segunda vez governar a Capitania em 1532, por intermédio José de Vasconcelos e Sousa Caminha da Câmara
do seu ouvidor Francisco Jorge. Em 1530, governou Faro e Veiga, Conde e depois 1º Marquês de Castelo
pessoalmente a Capitania durante seis anos. Melhor, 11º Capitão do Donatário desde 28 de maio de
Era casado com D. Leonor de Vilhena, tendo, entre 1734, e 7º Conde da Calheta. Filho de Afonso de
outros, os filhos Simão Gonçalves da Câmara, que herdou a Vasconcelos, 6º Conde da Calheta, e de Emilie Sophronie
Capitania do Funchal, e Luís Gonçalves da Câmara (nasceu Pelagie de Rhoan. Casou com D. Maria Rosa Quitéria de
no Funchal em 1518) que foi padre da Companhia de Jesus, Noronha. Faleceu em 22 de abril de 1769. Por escritura de
tendo vivido no tempo de Inácio de Loiola, fundador e 9 de setembro de 1766, cedeu à Coroa os privilégios que
Geral da dita Companhia tinha de nomear ouvidores e certos oficiais de justiça da
Simão Gonçalves da Câmara, 5º Capitão Donatário Câmara, recebendo uma indemnização de rendas do
e 1º Conde da Calheta, nasceu no Funchal a 2 de setembro tabaco, terras e uma pensão anual.
de 1512 e faleceu a 4 de março de 1580. Na menoridade, Pelo Decreto de 4 de setembro de 1766 foi extinta a
governou a Capitania seu tio Francisco Gonçalves da Capitania do Funchal, por incorporação na coroa.
Câmara, tendo assumido a governação em 4 de janeiro de
1542. No ano de 1538 foi para o Reino confirmar a 4 - Nobreza de Portugal
Capitania e casar, deixando por seu Ouvidor e 4.1- Títulos Nobiliárquicos
Logartenente Gaspar de Nóbrega. “Foi pela fama que corria
de sua magnífica condição e heroicos feitos, requerido por A sociedade do «antigo regime» estava estruturada
muitos e grandes casamentos com senhoras de muito nos privilégios das ordens sociais, cuja nomenclatura,
estado; porem, como ele não queria fazer de si sem licença amplamente conhecida, baseava-se na trilogia Clero –
d`El Rey e da Raynha, que o traziam nos olhos, Sua Alteza o Nobreza – Povo.
casou com D. Izabel de Mendonça, filha de D. Rodrigo de Os títulos nobiliárquicos ou títulos de nobreza foram
Mendonça, Senhor de Moro, em Castela, a qual era criados com o intuito de estabelecer uma relação de
donzela da Rainha D.Caterina”. (Gaspar Frutuoso, Livro vassalagem entre o titular e o monarca, sendo alguns deles
Segundo das Saudades da Terra, pag. 288, 1979). hereditários. E, após o século XV, foram usados como
João Gonçalves da Câmara, 6º Capitão do forma de agraciar membros da nobreza por um conjunto
Donatário e 2º Conde da Calheta. Nasceu em 1541 e de atos prestados à casa real, ao monarca ou ao país, sem
faleceu em 4 de junho de 1580 em Almeirim, três meses que lhe estivesse associada qualquer função pública,
depois de ter herdado a Capitania de que não chegou a jurisdição ou soberania sobre um território.
tomar posse. Casou com D. Maria de Alencastre. A partir do início do século XX, acabou na maioria
Simão Gonçalves da Câmara, 7º Capitão do dos países, mesmo nas monarquias, a relação de

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governança e autoridade dos titulares e demais membros nobiliárquicos de «juro e herança» são os que adveem ao
da nobreza perante toda a população. seu detentor por direito -jus- de herança, passando aos
A ordem hierárquica dos títulos de nobreza é herdeiros daquele a quem se deu, sem dependência de
diversa em grande parte das monarquias tradicionais e nova mercê, mas apenas por confirmação). Todos
atuais nos países onde estas vigoraram. Instituída a os Condes em Portugal gozavam, por inerência,
República em Portugal e na França, ainda permanecem de Grandeza, ou seja eram os «Grandes do Reino».
monarquias em Espanha, Reino Unido, Dinamarca, Bélgica, Aquando da criação ou por concessão posterior,
Suécia e Noruega. alguns títulos de Conde foram outorgados com Honras de
São títulos de nobreza/monarquia: Imperador e Parente, com tratamento de Sobrinho ou de Primo d´El
Imperatriz; Rei e Rainha; Príncipe e Princesa; Infante e Rei, tendo precedência sobre os demais Condes
Infanta; Arquiduque e Arquiduquesa; Grão-duque e Grã- (independentemente da antiguidade). Estes títulos
duquesa; Ducados de Portugal; Duque e Duquesa; designam-se por Condes-Parentes. A precedência geral
Marquesados de Portugal; Marquês e Marquesa; Condados entre os Condes segue a antiguidade do respetivo título.
de Portugal; Conde e Condessa; Viscondados de Portugal; Tal como os demais títulos nobiliárquicos
Visconde e Viscondessa; Baronatos de Portugal; Barão e portugueses, os títulos de Conde podiam ser concedidos
Baronesa; Senhor e Senhora; Baronete e Baronetesa; com carácter hereditário ou vitalício: são
Cavaleiro, como título nobiliárquico em várias monarquias títulos hereditários ou vitalícios os outorgados de juro e
europeias, e Dama; Escudeiro e Escudeira; Donatarias herdade (perpétuos) ; os concedidos em vidas (2, 3 ou 4
Senhores de Portugal - Morgadios de Portugal. vidas). São títulos vitalícios os renovados em vida (restritos
ao novo titular) e os concedidos em vida (restritos ao 1º
4.2 - Condados em Portugal titular).
A “Wikipédia, em julho de 2018”, contabiliza o total
O uso de títulos de conde em terras portuguesas é de 433 títulos de Conde atribuídos em Portugal, de entre
anterior à fundação de Portugal. No tempo dos Reis os de «juro e herdade (hereditários/perpétuos)», «em
Godos era comum a outorga de títulos de Conde a vida», «vitalício». Concedidos de juro e herdade somam 95.
membros da nobreza. Antes de ascender Concedidos em vida são a maioria, somando 332. Vitalícios
a Reino independente, Portugal foi um Condado governado somam apenas 4. Desconhecidos, 2.
por Condes soberanos, mas vassalos do Reino de Leão. Dos 433 títulos de Conde atribuídos em Portugal, 10
Afonso VI do Reino de Leão para premiar os serviços foram atribuídos nas Ilhas da Madeira e do Porto Santo.
de D. Henrique, nobre cavaleiro e fidalgo francês, pela sua Do total de 95 títulos de conde atribuídos «de juro e
participação na guerra contra os mouros da Península herdade», apenas 2 títulos foram atribuídos na ilha da
Ibérica, ofereceu-lhe o comando do governo do Condado Madeira.
Portucalense, bem como a sua filha D. Teresa. Deste Conde da Calheta, atribuído por D. Sebastião, em
casamento nasceu D. Afonso Henriques que foi o fundador 20 de agosto de 1576, a Simão Gonçalves da Câmara, como
do Reino de Portugal. primeiro titular, tendo atualmente como pretendente
O primeiro título de conde atribuído no Reino de Bernardo de Vasconcelos e Sousa.
Portugal, de que há registo histórico, foi criado pelo Rei D. Conde da Torre, atribuído por Filipe III de Portugal,
Sancho I a favor de D. Mendo de Sousa, o Sousão, em 26 de julho de 1638, a D. Fernando Mascarenhas (pai
4º Senhor da Casa de Sousa. Com exceção daquele primeiro de D. João Mascarenhas, 1º Marquês de Fronteira e 2º
título, o Condado mais antigo é o de Barcelos, criado Conde da Torre) como primeiro titular, tendo atualmente
pelo Rei D. Dinis I, por Carta Régia de 8 de Maio de 1298 a como pretendente Fernando José Fernandes Costa
favor de D. João Afonso Teles de Meneses. Posteriormente Mascarenhas.
foram criados os Condados de Arraiolos, Viana (da Foz do Os restantes oito títulos de Conde foram concedidos
Lima), outorgados pelo Rei D. Fernando I a D. Álvaro Pires para vigorar apenas «em vida» de quem beneficiou do
de Castro. O mesmo Rei criou o título de Conde de Ourém, título:
por Carta Régia de 1370 a favor de D. João Afonso Telo de Conde do Funchal, atribuído por D. Maria I, em 17
Menezes, 4º conde de Barcelos e Ourém. Vagos os de dezembro de 1808 a D. Domingos António de Sousa
primeiros Condados criados em Portugal, reverteram todos Coutinho, depois 1º marquês do Funchal, após ter sido
para a Coroa. extinto o título de Conde, sendo o título elevado a
D. João I outorgou, «de juro e herdade» (por direito Marquês.
de herança), os títulos de Conde de Barcelos, Conde de Conde de Machico, atribuído por D. João VI, em 22
Arraiolos e Conde de Ourém ao Santo Condestável D. Nuno de novembro de 1825, a Charles Stuart, Barão de Rothsay
Álvares Pereira, em reconhecimento dos seus feitos (título inglês), depois 1º marquês de Angra, tendo o título
militares em favor da manutenção da independência sido extinto.
de Portugal durante a Crise de 1383-1385. (Os títulos Conde de Carvalhal, atribuído por D. Maria II, em
13 de outubro de 1835, a João José Xavier do Carvalhal
Esmeraldo, 1º Visconde do Carvalhal.
Conde da Calçada, atribuído por D. Luís I, em 4 de
outubro de 1872 (D. Luís I, 17/01/1871) a Diogo de Ornelas
do Carvalhal Frazão Figueiroa, 1º Visconde da Calçada,
tendo sido extinto o título de Conde.
Fig. 3 - Símbolo de Condado. Conde de Canavial, atribuído por D. Luís I, em 22 de

81
maio de 1880 a João da Câmara Leme Homem de varonia e primogenitura dos Câmaras de Lobos até à morte
Vasconcelos, 1º Visconde de Canavial. de João Gonçalves da Câmara, 8º Donatário e 4º Conde,
Conde de Torre Bela, atribuído por D. Carlos I, em 6 filho de Simão Gonçalves e de sua segunda mulher a
de setembro de 1894 a Russel Manners Gordon, tendo sido Condessa D. Maria de Meneses, nascida do consórcio de
extinto o título de conde. Rui Mendes de Vasconcelos, 1º Conde de Castelo Melhor,
Conde do Porto Santo (antigo), atribuído em 1640 a com D. Isabel de Meneses, filha de António da Silva” (Cabral
Francisco de Vasconcelos da Cunha, tendo sido extinto o do Nascimento, Documentos para a História das Capitanias da
título de conde. Madeira, pag. 53, 1930).
Conde do Porto Santo (moderno), atribuído por D. 1º conde da Calheta - Simão Gonçalves da Câmara
João VI, em 26 de outubro de 1823 a António de Saldanha (5º Capitão Donatário da Capitania do Funchal). O título de
da Gama. conde foi-lhe atribuído por D. Sebastião (1557-1578) por
alvará régio de 20 de agosto de 1576, pelos serviços
4.3 – Condado da Calheta (título de conde) prestados pelo titular, bem como pelos seus antecessores.
O título de conde de Vila Nova da Calheta foi extensível aos
Pouca semelhança existe entre o Condado seus descendentes primogénitos que herdavam a
Portucalense, que deu origem ao Reino de Portugal, e o governação da capitania e o título de conde, representante
Condado da Calheta, ou um simples título de conde (para duma tão grande e importante Casa. Intitulava-se conde
quem entenda não ter havido regime legal constitutivo de Simão Gonçalves da Câmara, do Conselho de El-Rei Nosso
um verdadeiro condado). Senhor, Capitão e Governador da Justiça na Ilha da
Outra questão que se coloca é saber se a área de Madeira e na jurisdição do Funchal, Vedor da sua fazenda
jurisdição do condado era limitada à então freguesia/ em toda a dita Ilha e na do Porto Santo, Senhor das Ilhas
paróquia da Calheta, criada em 1430, ou se abrangia todo o Desertas.
território integrante na Vila Nova da Calheta (entre o Arco “Os ofícios do dito Condado, com se chamarem os
da Calheta e as Achadas da Cruz) tal como estava previsto ditos oficiais, em todos os autos e escrituras, termos,
no ato legal de elevação, datado de 1 de Julho de 1502. mandados pelo Conde nosso Senhor e por seu filho
Não existindo outra divisão administrativa nas localidades herdeiro, depois que Deus for servido levá-lo desta vida (…)
do então concelho/município/Vila Nova da Calheta, não é tinha o Conde cada anno quatro contos de renda bem
excessivo considerar condado todo aquele território feitos, e os melhores e bem pagos que há no Reyno, em
correspondente ao município. que entrava a renda dos moinhos, a qual não se paga em
“A capitania do Funchal, também chamada da trigo, que se come de gorgulho, nem em outros fructos,
Calheta por virtude do condado deste título, andou na como tem muitas comendas de Portugal, senão em
dinheiro de contado; e foi hum dos senhores que há no
Reyno todo, que melhor tinha provida sua casa e fartos os
criados (…)” (Gaspar Frutuoso, Livro Segundo das Saudades da
Terra, pag. 391 e 392, 1979).
Quando, em maio de 1533, a fortaleza da Vila de
Santa Cruz do Cabo de Guee ou Guer estava cercada pelos
mouros e próximo a ser tomada, os seus defensores
pediram à Madeira que lhes enviasse socorro. Simão
Gonçalves, autorizado por seu pai, convidou os principais
fidalgos da ilha, organizando um corpo expedicionário de
seiscentos homens, embarcando de seguida em seis navios
com todos os apetrechos de guerra e mantimentos que
conseguiu reunir, tudo fez à sua própria custa e sem exigir
remuneração alguma.
2º conde da Calheta - João Gonçalves da
Câmara (6º Capitão Donatário da Capitania do Funchal).
Quando o rei D. Sebastião foi a África juntamente com
muitos fidalgos e morgados do Reino, o 2º Conde da
Calheta acompanhou-o com muitas tendas, cavalos e
criados, e gastou nisso muito dos seus recursos.
3º conde da Calheta - Simão Gonçalves da Câmara
(7º Capitão Donatário da Capitania do Funchal). Filho único
varão do conde João Gonçalves da Câmara, casou 2ª vez
com D. Maria de Vasconcelos e Menezes, filha de Ruy
Mendes de Vasconcelos, Capitão de Tânger, e 1º conde de
Castelo Melhor, e de sua mulher D. Isabel de Menezes.
Teve os filhos João Gonçalves da Câmara e D. Mariana de
Alencastre.
4º conde da Calheta - João Gonçalves da Câmara
(8º Capitão do Donatário da Capitania do Funchal). Casou
Fig. 4 - Armas dos Câmaras. “com D. Inês de Meneses, viúva do 2º conde dos Arcos e

82
filha de D. António de Meneses. Desse matrimónio não
houve geração. Assim a sucessão da Casa da Calheta se
diferiu, com dispensa da Lei Mental, à irmã mais velha D.
Mariana de Alencastre, que herdara também de seu avô
materno a casa de Castelo Melhor. Seu marido, João
Rodrigues de Vasconcelos e Sousa, tomou por isso o título
de 2º conde. (Cabral do Nascimento, Documentos para a
História das Capitanias da Madeira. pag. 54, 1930)
5º condessa da Calheta - Mariana de Alencastre e
Câmara (9º capitoa do donatário da capitania do Funchal)
e 2ª condessa de Castelo Melhor, “descendente de Zarco,
tinha as honras de donatária da capital do Funchal, foi
«acérrima defensora em amparar os naturais da Ilha,
tractando a todos com especial amor, dada menos em
manter os direitos e privilégios da sua jurisdição», assim
reza o manuscrito «Noticias das coisas da Ilha da Madeira»
no capítulo «Nobreza e Descendencia do grande João
Gonçalves Zarco (...) Luís de Vasconcelos, o 3º conde de
Castelo Melhor, não usou o título de conde da Calheta.
Serviu as armas com seu pai e o príncipe D. Teodósio, de Fig. 5 - 5.ª Condessa da Calheta, D. Mariana de
quem era afecto, e por morte dêstes dedicou-se ao Alencastre e Câmara (Azulejos do Palácio da Rosa,
herdeiro da coroa, D. Afonso (...)”. (Artur Sarmento, Ensaios Lisboa)
Históricos da minha Terra, Ilha da Madeira, 2º Vol. pag. 82, ed. da
Junta Geral do Distrito do Funchal, 1947). 11º conde da Calheta - João de Vasconcelos e Sousa
6º conde da Calheta - Afonso Caminha de Câmara Caminha Faro e Veiga, nasceu em Lisboa, Santa
Vasconcelos e Sousa, 4º conde de Castelo Melhor, 10º Maria dos Olivais, Nª Sª da Purificação de Belas, a 10 de
Capitão do Donatário desde 13 de outubro de 1724, Filho Maio de 1841,e faleceu em Lisboa, São José, a 11 de
de Luís Vasconcelos e Sousa e de Guiomar de Távora Sousa Janeiro de 1878), 5º marquês de Castelo Melhor. Filho de
Faro e Veiga. Casou em segundas núpcias em 1695 com António Vasconcelos e Sousa, 4º marquês de Castelo
Emilie Sophronie Pelagie de Rhoan, sendo seu filho José de Melhor, e de Helena Luisa de Lima Brito Nogueira.
Vasconcelos o 7º conde da Calheta. Foi Senhor da Ponta do Após a implantação da República e o fim do sistema
Sol, de Câmara de Lobos e Calheta. Faleceu em 2 de nobiliárquico, tornou-se pretendente ao título de
fevereiro de 1734. representante da Casa D. Bernardo João da Silveira de
7º conde da Calheta - José de Vasconcelos e Sousa Vasconcelos e Sousa (nasceu em Lisboa - São João de Deus
Caminha da Câmara Faro e Veiga, conde e depois 1º - no dia 21 de fevereiro de 1957-). Reivindica o título de
marquês de Castelo Melhor, 11º Capitão do Donatário conde da Calheta; conde e marquês de Castelo Melhor; 4º
desde 28 de maio de 1734. Filho de Afonso de Vasconcelos, visconde da Várzea; 3º visconde de Guiães; 2º visconde de
6º Conde da Calheta, e de Emilie Sophronie Pelagie de Pinheiro. É único filho póstumo de João Brum da Silveira de
Rhoan. Casou com D. Maria Rosa Quitéria de Noronha. Vasconcelos e Sousa e de sua mulher Silvina da Conceição
Faleceu em 22 de abril de 1769. dos Santos Gonçalves. (Wikipedia Livre).
8º conde da Calheta – António José de Vasconcelos Com a sucessão da capitania e do condado/Casa da
e Sousa Câmara Caminha Faro e Veiga, nasceu em 15 de Calheta para os condes de Castelo Melhor, houve a
fevereiro de 1738, filho de José de Vasconcelos, 7º conde pretensão, por parte do 1º marquês de Niza e 5º conde da
da Calheta e 2º marquês de Castelo Melhor e 12º Capitão Vidigueira, D. Vasco Luís da Gama, de serem os titulares
Donatário, e de D. Maria Rosa Quitéria de Noronha. daquelas duas instituições. O marquês de Niza também era
Faleceu em 6 de junho de 1801. Casou com D. Mariana de cunhado do último donatário, por ter casado com outra
Assis de Mascarenhas. irmã de João Gonçalves da Câmara, D. Inês de Noronha
9º conde da Calheta - Afonso de Vasconcelos e que, mais tarde e já viúva, tornou-se carmelita em Santo
Sousa da Câmara Caminha Faro e Veiga, nasceu em Alberto de Lisboa.
Lisboa, São José, a 29 de Maio de 1783, e faleceu na “Na Torre do Tombo (C. Cron., P. 2ª, M. 347, D. 178)
mesma cidade a 27 de Agosto de 1827, 3.º marquês de está a petição para a demanda e a resposta do Procurador
Castelo Melhor e 13º Capitão Donatário. Filho de António da Coroa (…):
José Vasconcelos, 2º marquês de Castelo Melhor, e de «Dizem os Marquezes de Niza que eles querem
Mariana de Assis Mascarenhas. Casou com Francisca de demandar ao Procurador da Coroa de V. Magestade para
Assis Teles da Gama efeito de se lhes passar carta de sucessão da Capitania do
10º conde da Calheta - António de Vasconcelos e Funchal e Casa da Calheta e tudo o mais pertencente a
Sousa da Câmara Caminha Faro e Veiga, nasceu em Lisboa, ellas, por quanto em petição que sobre a materia se fes
São José, a 13 de Março de 1816, e faleceu naquela cidade, para encontrar a pertenção dos Condes de Castello Milhor
São José, a 27 de julho de 1858, 4º marquês de Castelo foi V. Magestade servido remeter o conhecimento ao Juízo
Melhor. Filho de Afonso Vasconcelos, 3º marquês de da Coroa. Pedem a V. Magestade lhes faça mercê conceder
Castelo Melhor, e de Francisca de Assis Teles da Gama. Alvará para poderem demandar ao digníssimo procurador
Casou com Helena Luisa de Lima Brito Nogueira. da Coroa na forma costumada. E.R.M. Aja vista ao

83
Procurador da Coroa. Lisboa 20 de Junho de 656». “Na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra há
«Conforme a Rellação e notícia desta Petição na uma miscelânea (Cod. 319) intitulada «Estafeta do Parnazo
Doação e Successão da Capitania, e Casa, que ficou por de Ruy Fernandes de Almada Provedor da Casa da India»,
falecimento do Conde Capitão (que Deos tem) que por esta que compreende, entre outros manuscritos, a cópia duma
vez está fora da Lei Mental, se não pertende por parte de «Relação da festa que se fes no dia em que sahio a
V. Magestade vacatura para a Coroa da Doação e sentença da casa da Calheta» (fl. 17 e 18) (…):
Successão, nem nega a qual pertencer, e assim parece que «Em vinte e sete de Agôsto, dia de bem grande
V. Magestade remeteo essa questão entre partes do Juízo gosto, se julgou na Relação a Casa do Capitão; houve
da Coroa que entre si averiguem, a qual compete, cuja é; e temores nas gentes, e caras impertinentes nos homens
podia ver a douta Rezulção de V. Magestade se dexa lugar mais temerosos; mas nós que somos briosos e de fachada
a citação, que onde compete aos vassalos a não costuma V. bastante, tivemos a fé constante e muito firme a esperança
Magestade negar, e seu direito. Lisboa 20 de Junho de na justiça que em balança fêz por certos peldigões; mas os
656». que vestem roupões, doutores de grandes Letras, por
Sobre a data da petição e despacho, devo declarar conhecerem as tretas de quem os quis perturbar, se
que no índice do Corpo Cronológico figura o ano de 1626 e botaram a nadar nos mares da Relação e acordaram em
o mesmo se lê no verso do documento, por letra de época conclusão que isto pertence à Condessa e não o soldado
mais recente. Mas a verdade é que se não pode interpretar infante, nem a Senhora Marquesa; o demo que tudo sabe e
assim, porque: pelos ares faz tudo, não quis ser o demo mudo porque
“1º O título do Marquês de Nisa foi criado em 18 de falou de improviso com a bôca cheia de riso e declarou
Outubro de 1646, conforme vi em diferentes livros com certeza ser a casa da Condessa; começou tudo a
consultados, entre eles a Resenha das Famílias Titulares … ferver, os criados a correr, os filhos a se alegrar, os
de A. da Silveira Pinto. parentes abraçar, os amigos e inimigos a serem todos
2º O Conde Capitão a que ali se faz referência era amigos, mostrando-se os corações com estas
João Gonçalves da Câmara, 4º Conde da Calheta. Ora êste demonstrações; logo ali se despachou com esta nova que
estava vivo em 1634, pois Manuel Tomás consagrou-lhe a veio ao Esmoler um correio numa carta bem jeitosa e uma
Insulana, publicada no ano seguinte (a dedicatória é de 4 trova curiosa; que, isto de satirizar, cá tem também seu
de Abril de 1634). folgar; até se achou o Simão, aquele grão Capitão da Casa
Não podendo, portanto, ser anterior a 18 de da Castanheira, que não cabe na liteira; achou-se o nosso
Outubro de 1646, inclino-me a que o documento transcrito Gil Vaz com toda a cavalaria que o Cantanhede lhe faz.
seja de 20 de Junho de 1656, hipótese que não é inválida Cristóvão Jorge Furtado também riram seu bocado os
pela análise caligráfica do numeral duvidoso. Além disso, Monsieurs de França não faltaram porque são bem da
parece que esse João Gonçalves, Conde Capitão, era a gema de Ruão, e já como naturais mais bailavam e riam
mesma pessoa que D. João Meneses, governador geral da mais. El galan Dom Manuel com su tabaco en papel, estubo
Madeira em 1634. A ascendência materna justifica o um lindo tirano porque en tomado tabaco ya se sabe el
apelido; e como argumento mais seguro temos o facto de o garabato com que dize bien y mal de lo que a yen Portugal.
anotador das Saudades, falando do poema de Tomás, dizer O Melo, o que das musas tão favorecido é, mostrou logo ali
que êle é oferecido a D. João de Meneses, quando no nuns versoso afecto da sua fé. Henrique Henriques
frontispício do livro está a dedicatória seguinte: A João também fêz seu dever muito bem; mas o que melhor
Gonçalves da Câmara, do Conselho del Rey Nosso Senhor, brilhou, entre os da Côrte e os da Beira, foi o que nos
Conde de Vila Nova da Calheta, Capitão Geral de Guerra da convidou para comer quarta-feira; o Mascarenhas bizarro,
Ilha da Madeira, governador perpetuo da Iusticia, Veédor aquel galan Toledano de la sortija en la mano, y Freire de
da fazenda da dita Ilha & porto Santo, & Senhor das Ilhas São Tiago, êste tal nos fêz pasmar com a grandeza do jantar
desertas (1). para que fomos chamados. E não só os convidados de que
1. Mais adiante, no Livro IX, est. 79, identifica-o aqui se faz menção foram os desta ocasião, senão outra
melhor o poeta: muita gente, que a todos chegou a enchente; os pratos
Mas de Simão Terceiro o Quarto Conde foram dois mil; os doces mil e quinhentos; a fruta comeu-
Quinto João, em este tempo alcansa se aos centos, com tal aceio e tal modo que se pode pôr de
O Octavo Bastão… lado o banquete de Castela que lá deu o Almirante a
E na estrofe seguinte: Monsiur de la Charella. Depois de tudo acabado, nos
Nasçe da Formosíssima Maria chegou por desenfado a cada um um presente de luvas,
Dos Altos Vasconçelos digna Planta… lenços e um pente; por ser usança estrangeira metemo-lo
na algibeira, e demos Victor mil vezes o que escureceu
Em reforço do que deixo escrito, reproduzo a nota Castela e deu honra aos Portugueses. Vão-se seguindo
1ª, a pag. 5, da História Militar da Madeira do sr. A. A. jantares porque há quem os dê aos pares; e com isto há
Sarmento: grande festa porque só tem nome desta o que comendo
“É (D. João de Meneses) filho de Simão Gonçalves começa; escrita a tantos de Agosto vendo muitos Jeremias
da Câmara, 3º Conde de Calheta e de D. Maria zombando dos seus rostos.
Vasconcellos e Meneses; adoptou opellido materno, porém El escritor Almansor
Manoel Thomaz, cónego do Funchal, dedicando-lhe a Latiniorum muy bonorum”
Insulana, escreve como deve: A João Gonçalves da Câmara (Cabral do Nascimento, Documentos para a História das
&.” (Cabral do Nascimento, Documentos para a História das Capitanias da Madeira, pag. 56, 1930).
Capitanias da Madeira. 54 e 55, 1930). O longo processo judicial que opôs o marquês de

84
Niza aos Castelo Melhor, herdeiros da capitania do Funchal
e do condado da Calheta, foi favorável à 5ª Condessa da
Calheta - Mariana de Alencastre e Câmara. A sentença de
27 de agosto de 1660 confirmou Mariana de Alencastre
como detentora da capitania do Funchal. Outro processo
contra Luís Gonçalves Coutinho da Câmara, foi decidido por
sentença de 11 de agosto de 1676 confirmando o Condado
da Calheta a favor de Mariana de Vasconcelos.

5 - Palácio dos condes da Calheta

A influência dos condes da Calheta ultrapassou os


limites da Calheta ao construírem um palácio em Lisboa,
localizado na freguesia de Belém. A construção de um
palácio em Lisboa demonstra bem a relação próxima dos
condes da Calheta e capitães do Funchal com a Corte.
No ano de 1946, a Câmara Municipal de Lisboa
publicou um inventário dos palácios existentes naquela
cidade. De entre eles consta o Palácio Calheta, fundado em
meados do século XVII, reedificado em 1726 e restaurado
no século XX.
“O Palácio Calheta, conhecido pela designação, não
apenas popular mas histórica, de «Palácio do Pátio das
Vacas» corresponde às casas nobres, com sua quinta,
compradas em Setembro de 1726, por 50.000 cruzados,
por D. João V a D. Pedro de Vasconcelos e Sousa da
Câmara, filho de D. Joana de Távora, neto do 5º Conde da
Calheta, sobrinho e genro do famoso Conde de Castelo Fig. 6 - Fronteira Sul, sobre o Jardim Colonial, depois da reintegração
Melhor, ministro de D. Afonso VI”. (Inventário de Lisboa, (Inventário de Lisboa, Norberto de Araújo, fascículo IV, C.M.L. 1946)
Norberto de Araújo, fascículo IV, C.M.L., 1946)
Fig. 7 - Escola Preparatória Simão Gonçalves da Câmara, 1972.
“Foi cêrca do «Pátio das Vacas», logradouro da Casa
Calheta, ainda hoje subsistente e desfigurado em ruinas (…)
que se deu o atentado contra D. José na noite de 3 de Bibliografia
Setembro de 1758; no Palácio, onde então estavam
instaladas algumas secretarias de Estado, procedeu-se aos - ALBUQUERQUE, Luís de, “Introdução à História dos
interrogatórios dos implicados no atentado, os Távoras Descobrimentos Portugueses”, Janeiro 2001, Publicações
Europa-América.
entre eles, de cuja família era ascendente a mãe do
- CLODE, Luiz Peter, “Registo Genealógico de Famílias que
vendedor da quinta e casas nobres, D. Joana que ali vivia
Passaram à Madeira”, Edição da “Tipografia Comercial”,
em 1701”. (Inventário de Lisboa, Norberto de Araújo, fascículo Funchal, 1950.
IV, C.M.L. 1946) - FERNANDES, Aníbal de Almeida, “Direito Nobiliário e o direito ao
No exterior do Palácio realizou-se a secção colonial uso de Brasão”, dezembro, 2012.
da Exposição do Mundo Português, em 1940, no Jardim - FRUTUOSO, Gaspar, “Livro Segundo das Saudades da Terra”,
Colonial, instalado em 1914 em grande parte da quinta. No Ponta Delgada, 1968
interior, o Palácio tem riquíssimos painéis de azulejos. - FRUTUOSO, Gaspar, “Saudades da Terra”, Fac-Símile, manuscrito
Na Vila da Calheta, com a construção, em 1972, de de século XVI, anotado por Álvaro Rodrigues de Azevedo,
uma escola, onde se ministrou pela primeira vez o Ensino Edição da Empresa Municipal “Funchal 500 Anos”, 2007.
- GOUVEIA, José Gregório, “Madeira Tradições Autonomistas e
Preparatório, foi-lhe atribuído o nome do conde da Calheta,
Revolução dos Cravos”, Edição do Autor, 1 de outubro de
Simão Gonçalves da Câmara, cuja designação foi Escola
2002.
Preparatória Simão Gonçalves da Câmara. Uma vez - MELO, Saboia Bandeira de, “Títulos de Nobreza, Ordens de
ampliado o edifício da Santa Casa da Misericórdia da Cavalaria e Fons Honorum”, 6 de Agosto de 2012.
Calheta, a nova escola começou a funcionar no ano letivo - NASCIMENTO, João Cabral do, “Os Pedreiros-Livres na Inquisição
1972-1973. e Corografia Insulana, Arquivo Histórico da Madeira – série de
Foi seu impulsionador, em conjugação com a Junta monografias, edição da Câmara Municipal do Funchal,
Geral do Distrito Autónomo do Funchal, o Dr. José Manuel MCMXLIX.
R. Brás, professor do Liceu do Funchal, depois nomeado - NASCIMENTO, João Cabral do, “Documentos para a História das
Capitanias da Madeira”, por si publicados e anotados, Lisboa
diretor da nova escola da Calheta.
1930.
Mais recentemente, na classificação das estradas e
- PEREIRA, Pe. Eduardo, Ilhas de Zargo», Volume II, 3ª Edição da
caminhos municipais da Calheta, foi atribuído o nome de Câmara Municipal do Funchal, 1968;
Simão Gonçalves da Câmara à ligação desde a Estrada - SALDANHA, António Vasconcelos de,“As Capitanias - O Regime
Regional à rotunda da Vila da Calheta. Senhorial na Expansão Ultramarina Portuguesa”, 1ª Edição:
Dezembro de 1991, Colecção Memórias–6, Centro de Estudos
de História do Atlântico.

85
- SARMENTO, Alberto Artur (Tenente-Coronel), “A Madeira e as
Praças de África”, Funchal, 1932; “Corografia Elementar –
Arquipélago da Madeira”, Funchal, 1936; “Freguesias da
Madeira”, 2ª edição, Edição da Junta Geral do Distrito
Autónomo do Funchal, 1953; “Ensaios Históricos da minha
Terra”, Ilha da Madeira, 2ª edição, 2º Volume, pag.82, edição
da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1947.
- SILVA, Fernando Augusto da, «Dicionário Corográfico do
Arquipélago da Madeira», 1934.
Ilhas de Zargo», Volume II, páginas 312 a 349, Padre Eduardo
Pereira, 3ª Edição da Câmara Municipal do Funchal, 1968;
- VERÍSSIMO, Nelson, “Relações de Poder na Sociedade
Madeirense do Século XVII”, p. 122, 2000;
- VIEIRA, Alberto, «O Arquipélago da Madeira no Século XV», em
coatoria com Luís de Albuquerque, Edição do Centro de
Estudos de História do Atlântico, 1987.

86
A Ordem de Cristo e o arquipélago da Madeira:
dos primórdios do povoamento até à instituição
da diocese do Funchal
Nelson Veríssimo
Universidade da Madeira e CHAM – Centro de Humanidades

Resumo
O rei D. Duarte, por carta de 26 de Setembro de 1433, doou à Ordem de Cristo, a pedido do seu irmão, o Infante D.
Henrique, o espiritual das ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta. Na mesma data, D. Henrique recebeu o senhorio do
arquipélago da Madeira. Assim, nestes primeiros tempos do povoamento, o Infante era Senhor destas ilhas, na qualidade
de donatário, e, simultaneamente, interferia na administração eclesiástica, como regedor e governador da Ordem de
Cristo.
Pelo papel que desempenhou no arquipélago madeirense, desde os primórdios do povoamento, mostra-se
pertinente assinalar o Sétimo Centenário da Ordem de Cristo, associando-o às comemorações dos 600 anos do
descobrimento do Porto Santo e da Madeira.

Palavras-chave
Ordem de Cristo, Arquipélago da Madeira, Franciscanos, Diocese do Funchal.

Instituída pela Bula Ad ea ex quibus, do papa João Infante, desde os Cabos Bojador e Não, por toda a Guiné e
XXII, datada de 14 de Março de 1319, a Ordem dos costa meridional até aos índios.
Cavaleiros de Nosso Senhor Jesus Cristo surgiu por O arquipélago da Madeira era conhecido nos meios
diligências do rei D. Dinis, junto da Santa Sé, na sequência náuticos e estava cartograficamente representado desde a
da abolição da Ordem do Templo. A nova Ordem recebeu segunda metade do século XIV. O seu povoamento iniciou-
os bens, que tinham pertencido à Ordem extinta, e acolheu se na década de vinte do século XV por vontade de D. João
alguns ex-freires templários. A sua primeira sede localizou- I. No entanto, a viagem de Zarco e Tristão contou com o
se em Castro Marim, no Algarve, vila fronteiriça do mar e de patrocínio do Infante D. Henrique, como escreveu o
terras de mouros. Só em 1357, a Ordem de Cristo ocupou o cronista Gomes Eanes de Zurara: «E vendo o Infante suas
convento de Tomar, antiga sede dos Cavaleiros do Templo. boas vontades, lhes mandou aparelhar uma barca, em que
Em 1420, a administração da Ordem de Cristo foi fossem de armada contra os Mouros, encaminhando-os
confiada ao Infante D. Henrique. Doravante, esta Ordem como fossem em busca da terra de Guiné, a qual ele já
ficará associada às conquistas e aos descobrimentos tinha em vontade de mandar buscar.» (1)
portugueses, pelo ideal de combate aos infiéis e de D. Henrique somente se tornou donatário destas
expansão da fé cristã. A bula Inter cetera, do papa Calisto ilhas após a morte do rei de Boa Memória, quando D.
III, de 13 de Março de 1456, que confirmou a Romanus Duarte, por carta de 26 de Setembro de 1433, doou o
Pontifex de Nicolau V, de 8 de Janeiro do ano anterior, arquipélago ao seu irmão. Nesta data, a Ordem de Cristo
concedeu, perpetuamente, à Ordem de Cristo, o poder, recebeu também «todo o espiritual» das mesmas ilhas, a
domínio e jurisdição espiritual sobre as terras, portos, vilas, pedido de D. Henrique, como claramente declarou o rei na
ilhas e lugares já adquiridos ou que viessem a sê-lo pelo respectiva carta de doação. Desta forma, o Infante ficou
_________________________
(1)
Crónica de Guiné, Porto, 1994, pp. 345-346.

87
Fig. 1 - Abóboda da Capela-Mor da Sé do
Funchal.

duplamente vinculado ao arquipélago madeirense: como Machico e ilha do Porto Santo ou a comenda dos dízimos de
donatário e como regedor e governador dos cavaleiros de todas as rendas do pão da ilha da Madeira e dos Açores (3).
Tomar. A doação de D. Duarte à Ordem de Cristo reservava, Segundo diversos cronistas, João Gonçalves Zarco
no entanto, para a Coroa o foro e o dízimo de todo o desembarcou em Machico, pela primeira vez, na companhia
pescado das ilhas do arquipélago madeirense, bem como de dois padres que benzeram a nova terra e celebraram
todos os outros direitos reais (2). missa (4). Frei Manuel da Esperança afirmou que esses
No entanto, parece-nos que esta reserva veio a ser padres eram franciscanos (5).
alterada, pois em diversos documentos, inclusive nos Na viagem de reconhecimento do arquipélago
Estatutos da Ordem de Cristo, encontramos referências aos madeirense – conta Jerónimo Dias Leite – os navegadores
«dízimos das ilhas» pertencentes à Ordem por concessão portugueses encontraram frades franciscanos na ilha do
da Santa Sé Apostólica «para se haver de prover ao culto Porto Santo. Afirma ainda o nosso cronista que, nessa
divino, edificar igrejas e repará-las, quando fosse necessá- viagem, Zarco era acompanhado por frades da Ordem
rio», bem como a diversas comendas, tais como a comenda Seráfica (6).
dos dízimos dos pescados e miunças da capitania de Por volta de 1430, estava na Madeira Frei Rogério.
_________________________
(2)
Pub. por Vitorino Magalhães Godinho, Documentos sobre a Expansão Portuguesa, vol. II, Lisboa, s. d., p. 182.
(3)
Pub. por Álvaro Rodrigues de Azevedo, As Saudades da Terra pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das ilhas do Porto Sancto,
Madeira, Desertas e Selvagens…, Funchal, 1873, pp. 325-329.
(4)
«A Relação de Francisco Alcoforado que consta no manuscrito de Vila Viçosa (Leitura de Jean Fontvieille)», ap. José Manuel de Castro,
Descobrimento da ilha da Madeira. Ano 1420. Epanáfora Amorosa, [s. l.], [s. d.], p. 90; Jerónimo Dias Leite, Descobrimento da ilha da
Madeira e Discurso da vida e feitos dos capitães da dita ilha, (transc., int. e notas de João Franco Machado), Coimbra, 1947, p. 9.
(5)
Frei Manoel da Esperança, Historia Serafica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Província de Portugal…, 2.ª parte, Lisboa,
1666, p. 594.
(6)
Jerónimo Dias Leite, ob. cit., p. 21.

88
Nesse tempo, acorreram à ilha muitos frades castelhanos, prejuízo dos legítimos herdeiros, encarregando-se mesmo
galegos e biscainhos que, segundo Frei Manuel da da redacção das cédulas com as derradeiras vontades,
Esperança, «bem podiam encher de conventos toda a ilha, ainda que na ilha houvesse já número razoável de tabeliães.
se ela tivera povoações, em as quais se sustentassem, ou se Os vigários da Ordem de Cristo no Funchal queixavam-se,
eles todos desejassem assistir em povoado, mas vinham pois, do prejuízo que as suas igrejas recebiam, devido à
fugindo dos rebuliços do mundo, e não podiam ver gente. E conduta dos frades franciscanos.
assim encovados pela serra conversavam só com Deus, Frei Nuno Cão, o vigário da vila do Funchal, afirmava
pretendendo imitar o rigor da penitência, em que se ainda que os franciscanos, que afluíam à ilha, permaneciam
exercitaram os Santos Hilariões» (7). pouco tempo, porque «iam de passada a ver mundo cada
Na verdade, os padres franciscanos encarregaram-se um por sua arte e não faziam assento e daí corriam para as
da assistência espiritual aos primeiros povoadores do outras ilhas de baixo como caminhantes» (8).
arquipélago madeirense. Contudo, com a doação do poder Por esta carta de sentença de D. Diogo Pinheiro,
espiritual à Ordem de Cristo, a jurisdição religiosa ficou nas vigário de Tomar, ficou acordado que os menores e os
mãos do Vigário de Tomar. escravos fossem sepultados na igreja paroquial, não
Os franciscanos permaneceram, todavia, na ilha da assistindo, portanto, razão aos franciscanos. Ficou também
Madeira. Por meados de Quatrocentos, havia já uma provado que o costume com mais de 40 anos, invocado
comunidade devidamente organizada em São João da pelos frades da Ordem Seráfica, não havia sido
Ribeira, nas imediações do Funchal, com eremitério autori- estabelecido.
zado por bula de 28 de Abril de 1450, do Papa Nicolau V. Certo é, porém, que foi por muito pouco tempo que
Cedo verificar-se-ão divergências entre as duas os frades da Ordem Seráfica não estiveram na ilha. O seu
ordens. Por esta razão, os franciscanos deixaram a Madeira regresso coincide também com a afirmação da cultura da
em 1459, sendo então chamados a fundar o Convento de cana sacarina que gerou riqueza avultada e colocou a
Xabregas, por ordem do Rei D. Afonso V. No entanto, Madeira nos circuitos do comércio internacional. Em 1473,
regressaram à ilha logo no início da década seguinte e aqui Luís Álvares da Costa fundou o Convento de São Francisco
permaneceram até à extinção das ordens religiosas em da vila do Funchal. Três anos depois a ilha da Madeira
1834. constituía já uma província franciscana, separada da de
Por uma carta de sentença de 20 de Fevereiro de Portugal.
1499, sabemos que alguns motivos antigos de No entanto, para além do conflito entre a Ordem de
conflitualidade, entre os frades franciscanos e o vigário da Cristo e a dos franciscanos há que registar mais dois factos
vila do Funchal, tinham, sobretudo, a ver com que revelam, o primeiro, a disputa do governo eclesiástico
enterramentos, designadamente de menores e escravos, do arquipélago, e, o segundo, desentendimentos entre os
bem como a administração de sacramentos. Os padres da funchalenses e o vigário da Ordem de Cristo.
Ordem Seráfica invocavam a sua presença na ilha da Na verdade, em 1469, pelo breve Romanus Pontifex,
Madeira desde o início do povoamento e o costume da Paulo II concedeu ao bispo de Tânger, D. Frei Nuno Álvares
terra há mais de 40 anos, enquanto os freires de Tomar de Aguiar, o domínio jurisdicional dos arquipélagos da
exigiam o cumprimento do que legalmente havia sido Madeira, dos Açores e de Cabo Verde. Naturalmente, esta
atribuído à Ordem de Cristo, não permitindo que as suas situação gerou o firme protesto do Prior-Mor da Ordem de
igrejas fossem defraudadas. Alegavam que nenhum Cristo e da Infanta D. Beatriz, tutora e curadora de seus
religioso de qualquer ordem podia levar um defunto a filhos, nomeadamente de D. Diogo, herdeiro da donataria
enterrar antes de primeiramente ser chamado o pároco do arquipélago madeirense. Ambos recusaram
para o encomendar. Além disso, nas igrejas da Ordem de determinantemente que o Bispo de Tânger se intitulasse
Cristo não era legítimo os pais escolherem sepultura para os «bispo das ilhas» e requereram o impedimento da sua
filhos de menor idade, nem os senhores para os seus acção ou entrada na ilha da Madeira, bem como de algum
escravos. Os franciscanos eram também acusados de seu representante (9).
incentivarem a inclusão de cláusulas favoráveis aos seus Por carta de 30 de Outubro de 1476, a Infanta
conventos nos testamentos de pessoas enfermas, com comunicou ao capitão do Funchal, fidalgos, cavaleiros e

_________________________
(7)
Frei Manoel da Esperança, ob. cit., pp. 670-671.
(8)
AN/TT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 11, n.º 1, 20 de Fevereiro de 1499.
(9)
Veja-se o estudo do Padre António Brásio, «O Padroado da Ordem de Cristo na Madeira», in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XII,
Funchal, 1960-1961, pp. 191-228.

89
homens bons do concelho que enviava para a ilha, como considerasse ser serviço de Deus e seu e proveito e bem
vigário, Frei Nuno Gonçalves, capelão de seu filho, D. Diogo, dos funchalenses (12).
e criado do falecido Infante D. Fernando e seu. Mas já, em Desconhece-se a data exacta da fundação das
1481, D. Beatriz respondia a Duarte Pestana, procurador da paróquias madeirenses criadas nos finais do século XV ou
gente da governança, acerca das queixas existentes contra inícios da centúria seguinte. No entanto, em 1518 temos
este vigário, que só em 1485 foi retirado do cargo que uma relação completa das paróquias da diocese do Funchal:
desempenhava. Contudo, a documentação não nos Arco da Calheta, Calheta, Câmara de Lobos, Campanário,
esclarece sobre os motivos que ditaram as queixas ao Caniço, Estreito da Calheta, Faial, Fajã da Ovelha, Gaula,
donatário, nem tão-pouco sobre as razões que levaram D. Machico, Ponta do Pargo, Porto Santo, Ribeira Brava, Janela
João II a destituir Frei Nuno Gonçalves. O novo vigário foi de Clara, Santa Cruz, São Jorge, Sé e Tabua (13).
apresentado por D. Manuel, na qualidade de regedor e Assim se pode concluir que a conjuntura económica
governador da ordem de Cristo e também de donatário, a e, particularmente, o aumento da população ditaram a
D. Frei Pedro Vaz, vigário de Tomar, por carta de 30 de instituição de novas paróquias e, por consequência, mais
Março de 1490. Trata-se de Frei Nuno Cão, mestre em clérigos e maior influência da Ordem de Cristo nestas ilhas.
Teologia, por cuja vigararia recebia anualmente 3 moios de Com o donatário D. Manuel, futuro rei, esboça-se o
trigo, 2 pipas de vinho, 3000 reais em dinheiro, 12 cabritos, plano de elevar a vila do Funchal a cidade, bem como a
12 frangos e 2 arrobas de açúcar para seu mantimento, e criação de uma diocese com sede na nova cidade. De facto,
mais o pé do altar, ressalvando o terço que era ordenado em Junho de 1485, o Senhor do arquipélago doou ao
de haver raçoeiros e clérigos. Auferia ainda 6 marcos de município do Funchal um chão, no denominado Campo do
prata por cantar a capela do Infante D. Henrique (10). Duque, para construção de uma igreja, adro, praça e casa
O sucesso do povoamento e a expansão da do concelho. Esta igreja viria a ser a Sé do Funchal. Já em
economia insular possibilitaram o crescimento populacional 1488 era assim designada em reunião da municipalidade
e, naturalmente, a criação de novas paróquias, para além funchalense (14).
das que inicialmente foram fundadas nas sedes das Podemos, assim, concluir que foi o duque, donatário
capitanias do Funchal, Machico e Porto Santo. Estas do arquipélago da Madeira, e, depois, rei Venturoso, quem
primeiras paróquias, dirigidas por freires da Ordem de protagonizou a iniciativa da fundação da diocese do
Cristo, foram instituídas depois de 1433. Funchal, a qual passava logicamente pela elevação do
Em capítulos enviados ao Infante D. Fernando, Funchal a cidade, o que veio a acontecer por carta régia de
segundo donatário do arquipélago madeirense (11), e 21 de Agosto de 1508. O mesmo sucedeu com a diocese de
respondidos em Agosto de 1461, o capitão, cavaleiros, Angra, em 1534. De igual modo, foram motivos religiosos —
escudeiros, juízes, vereadores, procurador e homens bons criação de bispados – que justificaram a elevação a cidade
do Funchal requeriam o provimento de capelães, pois o das vilas de Leiria, Miranda do Douro e Portalegre,
Infante D. Henrique apenas colocara um em toda capitania, respectivamente em 1545 e 1550 (15). No entanto, na carta
por ser então reduzido o número de habitantes. Contudo, a de elevação da vila do Funchal a cidade, não foi invocada a
população havia crescido e um único capelão já não podia criação da diocese, mas sim o seu crescimento, a condição
abranger todos os lugares onde deveria celebrar missa e social e riqueza dos seus habitantes e o comércio próspero
administrar os sacramentos, tais como Câmara de Lobos, da ilha. Mas como afirmou Jerónimo Dias Leite, «D. Manuel
Ribeira Brava, Ponta do Sol e Arco da Calheta. Concordou depois de ter feito cidade no Funchal determinou suplicar
então o donatário que requeressem ao vigário da ilha os ao Papa que criasse na ilha Sé de dignidades e cónegos» (16).
capelães necessários, e de tal obtivessem resposta por Nesse ano, o bispo de anel, D. João Lobo, visitou a
escritura pública, que depois ele determinaria o que ilha por ordem do vigário de Tomar, tendo sido «o primeiro
_________________________
(10)
Idem, ibidem, pp. 202-203.
(11)
O Infante D. Fernando (1433-1470), filho do Rei D. Duarte, foi o herdeiro de seu tio, o Infante D. Henrique. É, por isso, 2.º Duque de
Viseu, donatário dos arquipélagos da Madeira e dos Açores e governador da Ordem de Cristo. Recebeu de D. Afonso V o título de
Duque de Beja.
(12)
Luís Francisco Cardoso de Sousa Melo, transc., Tombo 1.º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal, in Arquivo Histórico da
Madeira, vol. XV, Funchal, 1972, doc. n.º 4, pp. 11-12.
(13)
Fernando Jasmins Pereira, Estudos sobre a História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 329-330.
(14)
Veja-se o nosso artigo, «A construção da Sé», in Monumentos, (19), Lisboa, 2003, pp. 19-21.
(15)
Veja-se Joaquim Veríssimo Serrão, «A concessão do foro de cidade em Portugal dos séculos XII a XIX», in Portugaliae Historica, vol. I,
Lisboa, 1973, pp. 13-80.
(16)
Jerónimo Dias Leite, ob. cit., p. 51.

90
Fig. 2 - Cruz da Ordem de Cristo
encimando o portal lateral da
capela de N.ª Sr.ª do Loreto, Arco
da Calheta, (c.) 1520. Fotografia:
Paulo Ladeira, 2017.

que entrou nela», conforme também escreveu o cronista vigararia. Por sua vez, Frei Nuno Cão, que representava o
madeirense, Jerónimo Dias Leite (17). Contudo só a 12 de vigário de Tomar na capitania do Funchal, foi elevado à
Junho de 1514, pela bula Pro excellenti proeminentia, o dignidade de deão da nova catedral e nestas funções
Papa Leão X instituiu o bispado do Funchal com toda a permaneceu até à data da sua morte, ocorrida por volta de
jurisdição, rendimentos e privilégios da vigararia de Tomar, 1530-1531 (19). Todos os quinze beneficiados da velha Igreja
extinta nesta data. O seu extenso território abrangia todas de Santa Maria do Calhau foram integrados na Sé, sendo os
as terras descobertas pelos portugueses, tal como possuía a três mais antigos elevados às dignidades de arcediago,
Ordem de Cristo. A bula, acima referida, menciona ser da chantre e tesoureiro.
vontade do Rei D. Manuel a supressão e extinção da Segundo os Estatutos da Ordem de Cristo, as ilhas e
vigararia de Tomar (18). conquistas ultramarinas continuavam pertencendo à
É importante salientar que a mesma bula, ao Ordem pleno jure na jurisdição espiritual mesmo depois da
suprimir e extinguir a vigararia de Tomar, consagrou a criação de arcebispados e bispados. Assim, a Ordem não
integração do vigário da Ordem de Cristo e os 15 perdera o que dantes possuía, e o Mestre apresentava nas
beneficiados, todos presbíteros seculares, no bispado do tais prelazias e também em todas as dignidades, conezias
Funchal. Assim, o vigário D. Diogo Pinheiro foi nomeado seu das Sés e em todos os benefícios e curatos (20). No entanto,
primeiro bispo com o mesmo rendimento da suprimida pela bula da fundação da diocese do Funchal, verificamos
_________________________
(17)
Jerónimo Dias Leite, ob. cit., p. 51.
(18)
A bula Pro excellenti proeminentia,traduzida pelo Padre Ricardo Augusto de Sequeira, foi transcrita pelo Padre Fernando Augusto da
Silva in Subsídios para a História da Diocese do Funchal: 1425-1800, Funchal, 1946, pp. 37-41.
(19)
Sobre este vigário, veja-se José Pereira da Costa, «Frei Nuno Cão: 1490-1531», in A Madeira e a História de Portugal, Funchal, 2001,
pp. 15-40.
(20)
Pub. por Álvaro Rodrigues de Azevedo, ob. cit., p. 326.

91
não ser bem assim, porquanto reconhecia ao rei o direito
de padroado e de apresentação do bispo do Funchal, e a
este a instituição nas dignidades, canonicatos e prebendas
que estavam a cargo do grão-mestre da Ordem de Cristo.
A fundação da diocese funchalense não provocou,
portanto, conflitos com a Ordem de Cristo, porquanto os
freires foram integrados na hierarquia da nova estrutura
eclesiástica com as mesmas regalias. Ademais, por esta
altura, o Rei era o administrador e governador da milícia
de Tomar. Todavia, convém sublinhar que a actuação da
Ordem de Cristo ultrapassava a jurisdição espiritual e
englobava também domínios da administração e da jus-
tiça (21).

_________________________
(21)
Veja-se Saul António Gomes, A Ordem de Cristo e a administração “eclesiástica” da Madeira no primeiro quartel do século XVI, in
Diocese do Funchal: a primeira diocese global: História, Cultura e Espiritualidades, Funchal, 2015, vol. I, pp. 123-142.

92
A economia do açúcar na Madeira e a
valorização da História Local
José Xavier Dias
Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos da Torre / CLEPUL

Resumo
Com este artigo pretende-se destacar a importância económica, social e cultural que a cana sacarina teve ao
longo dos 600 anos da história da Madeira. Pretende-se também verificar o seu legado, que se encontra ao nível
monumental e a sua estreita relação com o povoamento e desenvolvimento da ilha da Madeira. É nosso objetivo
valorizar a História local na construção do conhecimento histórico de alunos e a promoção do turismo através deste
produto que muito tem contribuído para o desenvolvimento da ilha.

Palavras-chave
Madeira, açúcar, cana, engenhos, história.

A Madeira manteve uma posição relevante, por ter


“Vales todos cheios de açúcar que aspergiam pelo sido a primeira área do espaço atlântico a receber a nova
mundo.” cultura (Vieira, 1996). Tal facto fez com que nela se
(Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Guiné, Cap. II) definissem os primeiros contornos desta realidade, que
teve plena afirmação nas Américas, principalmente nas
Antilhas e no Brasil. A cana-de-açúcar é produzida desde a
O cultivo da cana sacarina teve ao longo dos 600 pré história, acreditando-se que o seu centro de origem
anos da história da Madeira uma grande importância seja a Melanésia, e no período pré colonial foi domesticada
económica, cultural e social. O seu legado, encontra-se, e dissiminada por todo o sudoeste asiático tornando-se as
principalmente, a nível monumental e a sua estreita ilhas da Papua Nova Guiné e Java o centro de diversidade
relação ao povoamento e desenvolvimento da ilha da desta cultura. Posteriormente é introduzida na Europa e
Madeira é visível um pouco por toda a ilha (Dias, 2013). cultivada na ilha da Madeira. Foi a partir da experiência na
O açúcar, de todos os produtos que acompanharam Madeira que a cana-de-açúcar iniciou a sua diáspora
a diáspora europeia, foi aquele que moldou, com maior atlântica. Aqui tornaram-se evidentes os primeiros
relevo, a mundividência quotidiana das novas sociedades e contornos da estrutura social (a escravatura), técnica
economias que, em muitos casos, se afirmaram como (engenho de água) e urbana (trilogia rural) que
resultado dele. A cana sacarina (Fig. 1), pelas materializaram a civilização do açúcar.
especificidades do seu cultivo, especialização e morosidade As condições naturais da ilha, onde se destaca a
do processo de transformação, implicou uma vivência fertilidade dos solos e a abundância da água, facilitaram a
particular, assente num particular complexo sociocultural ocupação humana. A vertente sul da ilha devido ao facto
da vida e convivência humana (Vieira, 1996). das comunicações entre os lugares serem mais fáceis visto
os terrenos terem menor declive e o mar não ser muito
alterado facilitou a localização dos primeiros povoadores
da ilha. Os primeiros povoadores começaram então a
plantar nas lombas, achadas, fajãs e vales o trigo e
posteriormente a cana-de-açúcar (Dias, 2015).
Devido às três ribeiras, aos solos planos e à ampla
baía, o Funchal foi a área que atraiu mais povoadores e
cedo se transformou no centro da vida económica e
social do arquipélago, sendo elevada a vila cerca de 1450
e posteriormente a cidade em 1508 e foi sede do
governo e do bispado.
Fig. 1 - Cana-de-açúcar. Foto de autor.

93
Diferente do que sucedeu com a maioria das Segundo Jerónimo Dias Leite."(...) o primeiro açúcar que se
culturas transplantadas pelo europeu para o espaço vendeu nesta ilha da Madeira foi na vila de Machico donde
atlântico (vinha, cereais e pastel), a cana-de-açúcar não se se começou a fazer e recolheram treze arrobas dele que se
resumiu apenas à intervenção no processo económico. Ela vendeu cada arroba a cinco cruzados (...)".
foi marcada por evidentes especificidades capazes de Assim, Machico cresce economicamente graças ao
moldarem a sociedade, que dela se serviu para afirmar a lucrativo comércio. Algumas famílias machiquenses tornam-
sua dimensão económica. A importância que o setor se socialmente poderosas, entre as quais a família dos
comercial lhe atribuíu, conduziu a que fosse uma cultura Capitães-Donatários. E é esta importante família que vai
dominadora da maior parte do espaço agrícola disponível, construir a Igreja Matriz de Machico, em finais do século
substituindo outras culturas como o trigo, e capaz também XV, tendo como orago a Nossa Senhora da Conceição.
de estabelecer os contornos de uma nova realidade social A cana sacarina, usufruindo do apoio e proteção do
(Vieira, 1996). senhorio e da coroa, conquistou o espaço ocupado pelas
É oportuno referir, que um dos primeiros produtos a searas, atingindo todo o solo arável da ilha em duas áreas: a
ser produzidos na ilha foi o trigo, havendo uma produção vertente meridional (de Machico à Calheta), com um clima
imensa, que permitiu uma fácil subsistência dos quente e abrigada dos alísios, onde os canaviais atingem
povoadores e também possibilitou uma exportação até 400 m de altitude, dominado pelas plantações da capitania
cerca de 1470. A partir desta data, foi o cultivo da cana-de de Machico, e a do Porto da Cruz e Faial até Santana, solo
-açúcar que ganhou um grande relevo na economia da em que as condições mesológicas não permitem a cultura
ilha. A cana-de-açúcar foi introduzida na ilha por iniciativa além dos 200 metros numa produção idêntica à primeira
do Infante D. Henrique, que segundo a maioria dos área. A capitania do Funchal agregava, no seu perímetro, as
historiadores a mandou vir da Sicília. Apesar de a melhores terras para a cultura da cana-de-açúcar,
Madeira não possuir um clima tropical, possui água e lenha ocupando a quase totalidade do espaço da vertente
em abundância, fatores importantíssimos para regar os meridional.
campos de canaviais e para alimentar os engenhos À capitania de Machico restava apenas uma ínfima
(Nepomuceno, 2003). Esta ideia foi inicialmente defendida área e todo um vasto espaço acidentado impróprio para a
por Cadamosto no século XV, citado por Vieira (2001, p. 169), cultura, mas uma reserva importante de lenhas e madeiras,
“E por ser banhada por muitas águas, o dito senhor necessárias à afirmação da cultura na capitania do Funchal.
[Infante D. Henrique] mandou pôr nesta ilha muitas canas A diferenciação da capacidade produtiva na
de açúcar, que deram muito boa prova”. Contudo foi economia açucareira das duas capitanias torna-se mais
necessário desviar o caudal das ribeiras e encaminhar essas visível, quando se analisam os dados da produção. Assim,
águas através de muitos quilómetros com as famosas em 1494, do açúcar produzido na ilha apenas 20% é
levadas, para desta forma irrigarem os canaviais e mover proveniente da capitania de Machico e o sobrante da
os moinhos e engenhos (Vieira, citado por Nepomuceno, capitania do Funchal (Vieira, 2016).
2003). Segundo Vieira (2001), a primeira plantação teve lugar Em 1494, a maior safra situava-se nas partes de
no Funchal, num terreno do Infante, conhecido como fundo, englobando os lugares da Ribeira Brava, Ponta de Sol
Campo do Duque, sendo esse mesmo Infante quem, com e Calheta com 64%, enquanto o Funchal e Câmara de Lobos
objetivo de promover a cultura da cana, permitiu aos tinham apenas 16%. Em 1520, não obstante uma ligeira
povoadores que construíssem engenhos para a laboração alteração, a diferença mantém-se, pois a primeira surge
do açúcar. com 50%, e a segunda apresenta 25%, valor idêntico ao
A partir desta experiência os canaviais foram levados total da capitania de Machico, com 25%. Uma análise em
para Machico, onde se fabricaram as primeiras 13 arrobas separado das diversas vilas e lugares da capitania do
de açúcar, vendidas a cinco cruzados cada arroba. Foi Funchal, na mesma data, evidencia a importância do
também o Infante, com objetivo de promover a cultura, Funchal em 33%, seguindo-se a Calheta com 27%. Ribeira
que permitiu que os povoadores construíssem engenhos Brava e Ponta de Sol surgem numa posição secundária com
para a laboração do açúcar, sujeitando-se ao pagamento de 20% cada.
1/3 da produção. Com a crescente produção da cana-de-açúcar deu-
Foram os primeiros engenhos em Machico que se então início a uma grande prosperidade económica da
transformaram a cana em "pães de açúcar" que seriam ilha da Madeira, verificando-se o aumento desta
exportados para toda a Europa. Embora a capitania não produção até começos do século XVI. Assistiu-se nesta
reunisse as melhores terras para o cultivo da cana-de- época a um “vigoroso desenvolvimento da ilha, que contou
açúcar (em 1494 fornecia um quinto da produção regional) com o apoio dos senhores e monarcas, aliado a grandes
foi na antiga vila que se ensaiou o fabrico de açúcar: financiamentos do capital estrangeiro” (Nepomuceno, 2003,
94
p. 44). A reconversão da cultura de cereais para a cana-de- norte da Europa e do Mediterrâneo que dominavam o
açúcar fez-se tão depressa “que num lapso de apenas cinco comércio, com destaque especial para Flandres que
anos, a Madeira passará da condição de exportadora de recebia mais de metade das escápulas estabelecidas. Se
cereais para a situação inversa” (Guerra, 1990, citado por analisarmos os dados quantitativos disponíveis verificamos
Nepomuceno, 2003, p. 44). que os mesmos evidenciam a constância dos mercados
Assim, a capitania do Funchal agregava, no seu italiano e flamengo, surgindo os portos portugueses (Lisboa
perímetro, as melhores terras para a cultura da cana-de- e Viana do Castelo) em terceiro lugar, com apenas 10% das
açúcar, ocupando a quase totalidade do espaço da vertente exportações. Nepomuceno (2003), refere que em 1490 o
meridional, como podemos verificar por exemplo através tráfego do açúcar era servido por 20 naus de castelo de
da análise de uma planta do Funchal executada por Mateus avante e 40 ou 50 embarcações de menor porte que
Fernandes em 1570. transportavam o produto para Lisboa e a partir de 1472 era
O comércio do açúcar destacou-se no mercado exportado diretamente para outros portos (Flandres e
madeirense dos séculos XV e XVI como o principal animador Mediterrâneo). A este propósito também escreveu Oliveira
das trocas no mercado europeu, e durante mais de um (s./d.):
século as riquezas das gentes da ilha e o fornecimento de “A partir de 1470, o açúcar da
bens alimentares e artefactos dependeu dele (Vieira, 2002). Madeirense constitui-se no principal meio de
A grande valorização do açúcar produzido na ilha da afirmação do poderio da Coroa, principal
Madeira cedo conquistou os mercados internacionais e irá instrumento e causa das conquistas de
incrementar a rapidez dos desbravamentos na busca de mercados, de feitorias e do alargamento
terras boas para os canaviais. A Europa do século XV, em da presença portuguesa em paragens
franco desenvolvimento económico e demográfico e com varias de toda a Europa e atingindo o
uma crescente estabilidade política, tinha boas Magrebe onde se abrem também as portas
possibilidades para consumir o açúcar da Madeira, cuja (…)”. (citado por Nepomuceno, 2003, p. 44).
produção era limitada. Foi com naturalidade que a entrada
do açúcar madeirense nos mercados europeus fez com que Nesta época, a importância da atividade açucareira
existisse uma vulgarização do seu consumo e os preços era de tal forma significativa, que quando D. Manuel
aumentassem exponencialmente. elevou a vila do Funchal à categoria de cidade (1508) deu-
A expansão da produção do açúcar, cujo início se lhe por armas cinco “pães” de açúcar dispostos em cruz,
situa em meados do século XV, como já atrás referimos, em vez das habituais quinas de Portugal (Fig. 2).
cedo atingiu os limites das suas capacidades (por volta De referir que essa importância esteve também
de 1500), garantindo assim um próspero comércio externo, patente no logótipo da Comissão Organizadora das
sendo a Flandres o grande centro distribuidor. comemorações dos 500 anos da referida elevação a
Segundo Vieira (2003), é a partir das cotas de cidade, onde encontramos um outro símbolo ligado à
exportação estabelecidas pela coroa em 1498 para a defesa atividade açucareira, mais propriamente a “cana-de-
do mercado do açúcar madeirense que conseguimos fazer açúcar” (Fig. 3).
uma ideia sobre os principais mercados consumidores. Toda a atividade relativa à economia do açúcar
Assim, ainda segundo Alberto Vieira eram as praças do alterou em muito a vida social insular, principalmente com

Fig. 2 (à esquerda) - Brasão da Cidade do Funchal. Foto de autor.

Fig. 3 (à direita) - Logótipo das comemorações dos 500 anos da


cidade do Funchal [In, http://funchal500anos.cm-funchal.pt/
(15.07.08)]

95
Fig. 4 - Sé do Funchal. Foto de autor. Fig. 5 - Antiga Alfândega do Funchal. Foto de autor.

a vinda de escravos e de mercadores estrangeiros. visível a presença de estrangeiros, nomeadamente cônsules


Segundo Vieira, 2016, a comunidade estrangeira teve desde flamengos, franceses, ingleses, holandeses e espanhóis,
sempre um papel destacado na história da Madeira. Os apesar de os ingleses constituírem o grupo estrangeiro mais
estrangeiros surgem, desde o princípio, como mercadores, influente e predominante. O Funchal tornou-se assim, de
estabelecendo, primeiro, laços comerciais com as principais acordo com Frédéric Mauro, num pequeno centro
cidades europeias. Foram eles que criaram a rede de cosmopolita.
negócios que enlaçou a ilha aos principais mercados Outro grupo que também teve uma ligação próxima
europeus, e para lá levaram as suas práticas comerciais. ao comércio do açúcar, foi a comunidade sefardita.
Muitos lançaram raízes, fixando-se, primeiro, de forma Segundo Alberto Vieira 2004, judeu era sinónimo de
temporária, passando depois a um assentamento definitivo, negociante e a Madeira foi um dos primeiros polos de
por carta de naturalização régia. O primeiro grupo, atraído atração desta comunidade, que a nível nacional tinham um
pelo comércio do açúcar – o ouro branco –, foi dominado papel preponderante na economia e nas finanças.
por Italianos, Flamengos e Franceses; os Italianos, em Relativamente aos escravos, verificamos que, tal
especial Florentinos e Genoveses, conseguiram, desde como na resto da Europa, implicaram o estabelecimento de
meados do séc. XV, implantar-se na Madeira como os normas definidoras da sua convivência social, que embora
principais agentes do comércio do açúcar, alargando depois se tenha verificado na Madeira, ao contrário do que
a sua atuação ao domínio fundiário, por meio da compra e sucedeu nas sociedades escravistas do outro lado do
de laços matrimoniais. Segundo Alberto Vieira e Atlântico, que ambas as mundividências – a dos senhores e
relativamente aos mercadores estes, inicialmente, sentiram a dos escravos - se entrecruzam gerando uma convivência
muitas dificuldades para se integrarem, só a partir da social peculiar, de que é exemplo o facto de nunca terem
década de oitenta do século XV é que surgiram como existido na ilha senzalas (Vieira, 1991).
vizinhos e se comprometeram com a cultura e o comércio Devido à confluência de pessoas na ilha oriundas de
do açúcar e ajudaram a colocar o arquipélago no comércio diferentes espaços geográficos, poderemos afirmar, que à
internacional e posteriormente acabaram por se inserir expansão da cultura da cana-de-açúcar ligam-se tradições
muito bem na sociedade insular dando-lhe uma nova culturais europeio-africanas, nomeadamente no folclore (o
dinâmica, com destaque para João Esmeraldo (Vieira, 2002). charamba, a mourisca, entre outras danças e cantares), na
Na década de 70 do séc. XV, mediante o contrato alimentação madeirense (couscous e bolo do caco) e no
estabelecido com o senhorio da Ilha para o comércio do vestuário (capuz). A alusão aos escravos está também
açúcar, os mercadores estrangeiros detinham uma posição presente a nível iconográfico em alguns elementos
maioritária na sociedade criada para o efeito, sendo decorativos do cadeirado da Sé e na pintura, a alusão aos
representados por Baptista Lomellini, Francisco Calvo e escravos é visível no Painel da Adoração dos Reis Magos
Micer Leão. (Museu de Arte sacra do Funchal). Por fim é-nos ainda
Ainda, segundo Viera 2016, na primeira metade do possível identificar a presença dos escravos na Madeira
séc. XVI, os Franceses surgem com frequência no Funchal, através da toponímia (Cova do Negro - Ponta do Pargo;
Ponta do Sol, Ribeira Brava e Calheta, onde adquiriam Fonte do Poço do Negro - Porto Moniz, entre outros locais)
grandes quantidades de açúcar que transportavam para os e da genética (os traços resultantes da presença dos
portos franceses nas suas embarcações e os mesmos escravos são escassos e surgem apenas na vertente sul e no
tinham uma presença muito ativa no comércio do açúcar. Porto Santo).
Por sua vez em finais de seiscentos, era bastante É visível que a produção do açúcar trouxe uma
96
Fig. 6 - Museu A cidade do Açúcar. Fig. 7 - Praça Colombo, Funchal. Foto de autor.

grande dinâmica ao desenvolvimento da ilha, tanto a nível encontrar alguns dos mais emblemáticos monumentos
económico e cultural, como social, como atrás já foi regionais que datam do período em análise. Segundo
referenciado. Mas é oportuno referir ainda que esta época alguns autores esta área é também designada por Cidade
foi a de maior esplendor e desenvolvimento da História da do Açúcar. Alguns desses monumentos são a Sé do Funchal
Madeira a nível cultural (Nepomuceno, 2003). Segundo Vieira (Fig. 4) e a antiga Alfândega do Funchal (Fig. 5), mas além
(1996), o açúcar e posteriormente o vinho surgem na destes monumentos poderemos encontrar outros com
Madeira como produtos catalisadores da atividade igual valor histórico (Fortaleza de São Lourenço, Convento
socioeconómica madeirense e não como princípios de Santa Clara e Museu Quinta das Cruzes). Mas o legado
geradores das cidades ou do espaço urbanizado, uma vez da economia do açúcar pode ser visto também no
que eles foram apenas os suportes financeiros necessários a Museu de Arte Sacra e no Museu A Cidade do Açúcar
este desenvolvimento e embelezamento do espaço urbano. (Praça Colombo) (Figs. 6 e 7). Este Núcleo Museológico foi
Assim, vários monumentos foram edificados aquando criado com o intuito de reconhecer no Funchal os
desta prosperidade económica e os museus regionais momentos decisivos do seu desenvolvimento, visto a
guardam preciosas obras artísticas desse período, com criação desta cidade estar de forma bastante próxima
especial destaque para uma das mais representativas ligada aos negócios do açúcar e à progressiva importância
coleções de pintura flamenga que existe em Portugal, da ilha da Madeira no contexto da expansão atlântica de
proveniente de Bruges, Malines e Antuérpia (esta coleção vocação régia. Segundo Clode (s./d.), “Na cidade do
de pintura pode ser visitada no Museu de Arte Sacra e em Funchal, o núcleo do açúcar servirá para ajudar a criar elos
algumas igrejas e capelas da região). de ligação na cidade, que possui ainda memorias vivas
No denominado Núcleo Histórico da Sé, poderemos desse passado”.

Fig. 8 - Achados arqueológicos—Museu A Cidade do Açúcar. Foto de autor.

97
O Museu A Cidade do Açúcar é a consequência
natural de uma pequena unidade designada Núcleo
Museológico A Cidade do Açúcar, inaugurada em 1996,
como memória de uma casa manuelina destruída no século
XIX, do comerciante João Esmeraldo, que hospedou
Cristóvão Colombo. O núcleo museológico aquando da sua
inauguração, pretendeu ajudar ao reconhecimento na
cidade do Funchal de edifícios históricos, ou unidades
museológicas ligadas à fundação da cidade e aos primeiros
séculos da sua existência, através de uma exposição
didática e de guias de visita do Funchal manuelino, sendo
apenas parte de um todo que se articulava nas outras
unidades existentes e que, no conjunto, se constituiriam
como um museu da cidade. O Museu A Cidade do Açúcar é
um museu preferencialmente de leitura e enquadramento
dos achados arqueológicos recolhidos na cidade do Funchal
e particularmente na escavação realizada em 1989 das
antigas casas de João Esmeraldo, que depois de destruídas
no século XIX, só levaram ao reencontro do antigo poço. O
espólio do Museu A Cidade do Açúcar ajuda a perceber o
quotidiano da Cidade entre o final do século XV e os
meados do século XVII (Fig. 8). Assim o Museu não
pretende constituir-se como espaço de identificação da
memória da produção e tecnologia açucareira, nos seus
dois mais importantes ciclos, nos séculos XV-XVI e XIX,
devendo esse ser encontrado na recuperação e
musealização de um antigo engenho de Açúcar. Na praça
Colombo, onde se encontra, foram recuperadas grandes
quantidades de fragmentos de cerâmica Portuguesa dos
séculos XV/XVI e XVII, anforetas, cachimbos, bilhas,
escudelas, selos de chumbo, moedas, e outros, que foram
exumados de um poço ainda existente (Fig. 9). Destaque
também neste espaço para as figuras em alfenim eas
formas de “pães-de-açúcar”, que serviam para transportar
o ouro brando para os principais mercados europeus (Fig.
10) Fazem também parte da coleção algumas obras de arte,
de enquadramento da época. De uma forma geral o Museu
A Cidade do Açúcar propõe um guia de reconhecimento na
cidade do Funchal do ciclo açucareiro, com a indicação
comentada de vários pontos de interesse histórico. De
referir ainda que este espaço ficou parcialmente destruído
com as chuvas do 20 de fevereiro de 2010 e o mesmo foi
reaberto em 2016.
A denominada Praça Colombo, onde está situado o
já referenciado Museu A Cidade do Açúcar, e que é hoje o
centro da cidade, foi no século XV uma área de canaviais, as
Fig. 9 - Fragmentos de cerâmica portuguesa do século XV ao
alterações que se produziram a partir da década de oitenta
XVII—Museu A Cidade do Açúcar. Foto de autor.
do século XV conduziram à sua adequação aos modelos
Fig. 10 - Formas Pães-de-açúcar e figuras de alfenim —Museu A
arquitetónicos peninsulares e afirma ainda que apesar da
Cidade do Açúcar. Foto de autor.
importância dos proventos arrecadados pela economia
Fig. 11 - Rua do Esmeraldo. Foto de autor. açucareira na valorização do património urbano, não houve
uma ligação direta entre as duas situações e remata
98
dizendo que na verdade a vila que é elevada em 1508 à
categoria de cidade deve apenas ser considerada como a
cidade dos mercadores de açúcar e nunca a cidade do
açúcar (Vieira, 1996). Destaque também para a existência
nesta área urbana de várias habitações com as
denominadas “torres-avista-navios”, muitas delas
propriedades de ricos comerciantes ligados à cultura da
cana sacarina.
Além dos já enumerados vestígios ligados à
economia do açúcar é pertinente referir outros legados
como a toponímia que João Sousa apelidou como “Ruas
com História”, onde destacamos as ruas da Alfândega, do
Esmeraldo (Fig. 11), dos Mercadores, do Torreão, entre
outras.
Não é possível falar da história do açúcar sem
falar dos seus engenhos, os lugares onde com enorme
atividade e habilidade se fabrica o açúcar (Landi, 1981). Na
ilha da Madeira, ainda existem três engenhos em
laboração, dois na Calheta (Fig. 12), e um no Porto da Cruz
(Fig. 13). De referir que um dos mais emblemáticos
engenhos de açúcar na cidade do Funchal era a fábrica
Hinton, da qual hoje só poderemos contemplar a chaminé
e algumas máquinas, inseridas na ornamentação de um
jardim que foi edificado no local onde estava a referida
fábrica (Fig. 14). Mais atual e com uma dimensão
diferente, temos a fábrica do Ribeiro Seco, que com
maquinaria moderna, se dedica essencialmente à
produção do mel de cana, muito apreciado na
gastronomia madeirense. Outro dos legados da cultura
da cana sacarina é o que ainda hoje se verifica na
gastronomia regional, onde destacamos os doces
conventuais, com especial destaque para o bolo de mel e a
poncha, bebida típica feita com aguardente de cana.
É oportuno referirmos ainda que, em meados do séc.
XV, existia na ilha da Madeira uma classe dominante que
competia em poder e nível de vida material e cultural com
a aristocracia metropolitana e também teve um papel
decisivo na expansão portuguesa no atlântico, como refere
Vieira (s./d.):
“O madeirense não foi apenas o
cabouqueiro que transformou o rochedo e
fez dele uma magnifica horta, mas também
marinheiro, descobridor e comerciante.
Algumas das principais famílias
enriquecidas com a cultura do açúcar,
gastaram quase toda a sua fortuna na gesta
descobridora, ao serviço do Infante D.
Henrique, ao longo da costa africana ou, de Fig. 12 - Engenho da Calheta. Foto de autor.
iniciativa particular, na direção do Ocidente Fig. 13 - Companhia de Engenhos do Norte—Porto da Cruz. Foto
correspondendo ao repto lançado pelos de autor.
textos e lendas medievais”. (Citado por Fig. 14 - Chaminé da Antiga Fábrica do Hinton. Foto de autor.
Nepomuceno, 2003, p.55 ).

99
Fig. 15 - Apanha da Cana—Canhas. Foto de autor.

Nepomuceno afirma ainda que a riqueza produtiva alterações climáticas que acontecem já por força do
do arquipélago madeirense contribuiu também para o desbaste da floresta.
desenvolvimento cultural do próprio reino, referindo que o A concorrência do açúcar das restantes áreas
Infante D. Henrique ajudou a Universidade em 1431 com produtoras do Atlântico, bem como vários surtos de peste
dinheiro do seu orçamento pessoal, oriundo do comércio (em 1526) e a falta de mão-de-obra apenas vieram agravar
insular. Esta época de grande prosperidade e importância a situação de queda da produção madeirense. A tudo isto
está bem patente nas palavras de Leite, (1579): acresce, em finais do século XVI, os efeitos do bicho sobre
“O nome da Madeira é já tão os canaviais, como é testemunhado para os anos de 1593 e
celebrado e sabido pelos frutos da terra de 1602.
que todos participam e (…) tão nobre e fértil Assim, o comércio do açúcar destacou-se no
e generosa em seus moradores, que tirando mercado madeirense dos séculos XV e XVI como o principal
a Inglaterra mui antiquíssima em povoação animador das trocas no mercado europeu, e durante mais
ilustre com a Majestade dos seus Reis, em de um século as riquezas das gentes da ilha e o
todo o novo Oceano Ocidental esta Ilha da fornecimento de bens alimentares e artefactos dependeu
Madeira se pode chamar princesa de dele.
todas.” (Citado por Nepomuceno, 2003, p. 55) Após o acima enumerado poderemos afirmar que o
Foi particularmente na década de trinta do século denominado ciclo económico do açúcar deixou-nos um
XVI, que se consumou a crise da economia açucareira e o vastíssimo legado patrimonial de inigualável valor histórico
ilhéu viu-se na necessidade de abandonar os canaviais e de que nos ajuda a compreender melhor a História da região e
os substituir pelos vinhedos mas tardou muito tempo até mesmo do país. Todos o monumentos, objetos/
que isso sucedesse em definitivo. instrumentos e lugares ligados ao ciclo económico do
A crise da economia açucareira madeirense não é açúcar, são fontes históricas importantíssimas, que nos
apenas resultado da concorrência do açúcar das Canárias, ajudam a compreender melhor um dos períodos mais
Brasil, Antilhas e S. Tomé, que funcionam como o motor prósperos da história do arquipélago da Madeira e com
desta viragem, mas deriva, acima de tudo, da conjugação os quais os nossos alunos e todos os que visitam a região
de vários fatores de ordem interna: a exaustão dos solos, a podem interagir.
carência de adubagem, a desafeição do solo à cultura e as A conjuntura económica de finais do século XIX
100
trouxe a cultura de regresso à Madeira, como solução para madeirense e poderá ser um grande catalisador turístico,
reabilitar a economia que se encontrava profundamente cultural, educativo e social. Considerando o turismo um
debilitada com a crise do comércio e produção do vinho. fenómeno humano que coloca em contacto os turistas com
A situação, que se manteve até à atualidade, nunca os autóctones das áreas turísticas recetoras, logo estamos
atribuiu ao produto a mesma pujança económica de na presença da interculturalidade provocada pelo sector do
outrora nas exportações. Os canaviais não desapareceram turismo, como veículo de comunicabilidade. É relevante o
da ilha, mantendo-se a produção de açúcar em um único papel do turismo no processo de promoção do contacto e
engenho até 1826. E o resultado continuava a ser de diálogo entre diferentes culturas, a do “visitante” e a do
excelente qualidade. Um dos mais emblemáticos “visitado”, normalmente portadores de saberes, códigos de
engenhos de açúcar na cidade do Funchal era a fábrica valores e estilos de vida distintos. Neste sentido e no caso
Hinton, que já referimos neste texto e que encerrou em concreto do turismo cultural, Pereiro Pérez (2003) refere
1986. A família Hinton ficou para a História como a autora que “enquanto os visitantes evadem as suas preocupações,
da inovação, que como sabemos foi comum em vários os residentes locais podem estabelecer pontes de
espaços açucareiros. Em 1902, a fábrica Hinton comunicação não estereotipados com estes, contribuindo
experimentou um novo sistema em ligação com M. León para um encontro intercultural não assimétrico, educativo e
Naudet. Em 1969, a família Hinton informou o governo da profundamente convivencial”. Ao vivenciar a cultura local, o
intenção de encerrar a fábrica, acabando com o fabrico de turista realiza um processo de revisitação, de
álcool e açúcar que não eram rentáveis. Durante todo o reinterpretação do outro e de si próprio, enfim de
século XX, a fábrica Hinton foi uma referência da cidade e renovação espiritual e emocional. Delma Andrade (2008),
da vida de quase todos os agricultores madeirenses que diz que “a relação entre turismo e cultura é intrínseca,
apostaram na cultura da cana, como meio para angariar desde que consideremos que a prática turística é, em última
uns magros tostões. Segundo o Elucidário Madeirense em instância, um ato ou uma prática cultural”. Para melhor
1900 existiam 45 fábricas de moer cana-de-açúcar, 16 divulgar a história da cana sacarina e desta forma chegar
trabalhavam a vapor e 33 a força motriz da água. A década mais facilmente aqueles que nos visitam foi aprovada
de oitenta do século XIX foi o momento de plena afirmação recentemente a criação da “Rota do Açúcar”, como
dos canaviais. A produção fazia-se em grandes quantidades património cultural, através da Resolução da Assembleia
que dava para o consumo local e o excedente exportava-se. Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 11/2019/M.
Ensaiaram-se as diversas variedades, disponíveis ao nível De referir que a indústria açucareira desempenhou um
mundial, no sentido de se conseguir a recomposição dos papel importantíssimo na economia madeirense, que se
canaviais. Ao longo do tempo, foram surgindo medidas traduziu na proliferação de engenhos por toda a ilha,
favoráveis à reafirmação da cultura sacarina. fazendo destas unidades industriais parte da história da
Nos dias de hoje, os canaviais são reduzidos a áreas Região Autónoma da Madeira. Esta rota contempla o
de plantação mais pequenas (Fig. 15), os engenhos são testemunho do período da «História do Açúcar» na Madeira
poucos, a indústria do aproveitamento da cana-de açúcar, e dá destaque aos concelhos da Calheta, Ribeira Brava e
labora a cana apenas para produção de melaço e Ponta do Sol, onde poderemos encontrar entre outros a
aguardente, tudo de forma mais reduzida e com novos Antiga Fábrica de Destilação de Aguardente da Ribeira
métodos de trabalho, longe das imagens antigas, dos Brava, que integra o património regional e onde funciona
processos, do volume de trabalho e da envolvência de atualmente o Museu Etnográfico da Madeira. Neste
outros tempos. Segundo os responsáveis políticos edifício, funcionaram um engenho de cana-de-açúcar e dois
atualmente a produção da cana-de-açúcar está "no bom moinhos de cereais, sendo um testemunho único do
caminho" na Madeira - e numa reportagem do Diário de património industrial ao nível nacional, face à sua
Notícias da Madeira de seis de maio de 2018, o secretário duplicidade tecnológica. Através da instalação no antigo
da Agricultura e Pescas da Madeira afirmou que mais de engenho do Museu Etnográfico da Madeira, foi possível
seis toneladas de cana-de-açúcar produzida nesta época divulgar, conservar, valorizar e divulgar a História do Açúcar
estão apanhadas e que o rum madeirense "está no bom da Região. E, por outro lado, além de perpetuar a memória
caminho". Em 2000, a produção de cana-de-açúcar cifrava- da história desta indústria, possibilitou o estudo, a
se em 2.871 toneladas e em 2016 a produção atingiu interpretação da cultura tradicional e a afirmação da
10.812 toneladas. É oportuno enunciar que num universo identidade cultural regional. Apesar da atividade
de 11.000 agricultores recenseados, 900 dedicam-se a esta agroindustrial da cana sacarina ter deixado muitos
produção, sendo um complemento às suas economias. testemunhos preciosos com os engenhos que funcionaram
Tal como foi referido a cultura da cana sacarina na Região, apenas permaneceram em funcionamento tal
esteve e ainda está bastante presente no quotidiano como já referimos a Companhia dos Engenhos da Calheta, a
101
Fábrica do Ribeiro Seco e a Companhia de Engenhos do Referências Bibliográficas:
Norte, existindo atualmente mais dois novos engenhos que
CLODE, F., SOUSA, J. & SILVA, C., s./d., Roteiro a Cidade do Açúcar.
começaram a laborar no século XXI. Todas estas unidades
Funchal: Núcleo Museológico a Cidade do Açúcar.
fabris continuam a ter uma enorme importância para a CROIX, A. & GUYVARC’H, D., 1990, Guide d’histoire Locale. Paris:
salvaguarda e divulgação da história da Região e da sua Seuil.
DIAS, José X., 2008, A identidade local numa abordagem
identidade cultural.
intercultural: um estudo com alunos da ilha da Madeira.
A Região apesar da sua limitação geográfica Dissertação de Mestrado. Braga: Instituto de Educação e
encontra vários testemunhos daquela que foi a História do Psicologia, Universidade do Minho.
DIAS, José X., 2012, A identidade local: um estudo com alunos do
Açúcar dos séculos XIX, XX e XXI componentes do
6.º ano. Islenha, Funchal, DRAC, pp. 127-150.
património industrial na Madeira, os quais possuem DIAS, José X., 2015, O legado da economia do açúcar: um estudo
caraterísticas únicas a nível nacional e internacional. Assim, com alunos de 6.º ano, In. Ilharq, Machico, ARCHAIS, pp. 84 a
102.
esta rota incorporará os seguintes locais: O Museu
DIAS, José X., 2017, O legado da economia do açúcar numa
Etnográfico da Madeira (antiga fábrica de aguardente da perspetiva intercultural: um estudo com alunos do 2.º e 3.º
Ribeira Brava); O Engenho do Porto da Cruz (antiga ciclos, In, Epistemologias e ensino da História - XVI Congresso
das Jornadas Internacionais de Educação Histórica, Porto,
Companhia de Engenhos do Norte); A Sociedade de
CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura,
Engenhos da Calheta; a Fábrica de Mel do Ribeiro Seco; a Espaço e Memória», pp. 156-188.
visita de campo a plantações de cana-de-açúcar; Museus ou FRUTUOSO, G., 2008, A cidade do Funchal no fim do séc. XVI. In,
Saudades da Terra. Funchal, Ed. Fac-simile, Comissão dos 500
núcleos museológicos, situados na Região, com acervo
anos do Funchal.
ligado à história do ciclo do açúcar na Madeira. Esta rota LANDI, G., 1981, Descrição da Ilha da Madeira. In, A Madeira vista
poderá incluir também alguns eventos e festividades tais por estrangeiros (1455 – 1477): Funchal.
NEPOMUCENO, R., 2003, Uma perspetiva da História da Madeira.
como: feira do Rum no Funchal; Festival da Apanha da
Funchal: Eco do Funchal.
Cana, no Porto da Cruz; Rota do Açúcar na Calheta e Feira NUNES, Naidea, 2002, «Terminologia Histórica dos Produtos e
da Cana nos Canhas (Ponta do Sol). Subprodutos Açucareiros. Do Mediterrâneo ao Atlântico»,
in História do Açúcar. Rotas e Mercados, Funchal, CEHA.
As referências à cultura da cana-de-açúcar estão
VIEIRA, A., 2001, A História da Madeira e o ensino. In, Diário de
também presentes na literatura, com destaque para os Notícias da Madeira (12.11.2001).
poemas dos poetas populares Manuel Gonçalves, Feiticeiro VIEIRA, A., 2002, A Madeira e o Mercado do açúcar: séculos XV–
XVI. In, História do Açúcar – rotas e mercados. Funchal:
do Norte e João Gomes de Sousa, o Feiticeiro da Calheta,
Secretaria Regional do Turismo e Cultura, Centro de Estudos
onde destacamos o poema: “Agora veio uma ordem / da de História do Atlântico, pp. 55-89.
bela cana plantar / havia de haver uma lei para todas as VIEIRA, A., 1996, Os engenhos de açúcar e a aguardente na
Madeira: situação atual. In, www.ceha-madeira.net/sugar/
fábricas trabalhar”. Também o poeta João Dionísio
engl.htm (26.02.2008).
publicou em 1995 o livro “Os açúcares ou o ruído do VIEIRA, A., 1991, Os escravos no Arquipélago da Madeira, Séculos
silêncio”. Por fim, destaque para os trabalhos de Naidea XV a XVII. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico.
VIEIRA, Alberto, 1987, O comércio inter-insular nos séculos XV e
Nunes Nunes, que tem trabalhado a terminologia do
XVI, Funchal.
açúcar. VIEIRA, Alberto, 1992, Portugal y las yslas del Atlantico, Madrid,/.
É a partir da Madeira que se produz açúcar em larga VIEIRA, Alberto, (1991), “O Açúcar na Madeira: produção e
comércio nos séculos XV e XVI”, in II Seminário Internacional
escala, o que veio a condicionar os preços de venda, de
Produccion y comercio del azucar de caña en epoca
forma evidente, nos finais do século XV. Também o íncola preindustrial, Motril.
foi capaz de agarrar esta opção, tornando-se no obreiro da VIEIRA, Alberto, 1993, “O açúcar na Madeira. Séculos XVII e XVIII”,
in III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal,
difusão no mundo Atlântico. A tradição anota que foi a
1993, pp.324-352.
partir da Madeira que o açúcar chegou aos mais diversos VIEIRA, Alberto & CLODE, Francisco 1996, A rota do Açúcar na
recantos do espaço atlântico e que os técnicos madeirenses Madeira, Funchal.
VIEIRA, Alberto, 1998, O Comércio Inter-insular nos Séculos XV e
foram responsáveis pela sua implantação. No nosso
XVI, Funchal, CEHA, 1987; Id., Canaviais, Açúcar e Aguardente
entender a temática da Expansão Portuguesa – na Madeira: Séculos XV a XX, Funchal, CEHA, 2004; Id., O
nomeadamente o tema da produção e comércio do açúcar Açúcar, Funchal, Edicarte, 1998.
SILVA, F. A., 1998, “Hinton, questão”, in Elucidario Madeirense,
nos séculos XV e XVI, oferece situações privilegiadas para
vol. II, pp. 117-118
abordar a história local, explorar valores de
interculturalidade e abertura a espaços mais vastos – a
nível do país e de vários continentes.

102
Educação e Formação de Adultos Complexidade:
Um novo Paradigma para Investir e Intervir em
Educação
Maria Manuela Vieira Teixeira Pereira
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas—Universidade Nova de Lisboa
Associação Centro de Estudos e Desenvolvimento, Educação, Cultura e Social

Resumo
O presente artigo tem como principal objetivo fazer no quadro de uma análise social do século XXI, a apresentação
de uma investigação relacionada com um Projeto desenvolvido na Educação e Formação de Adultos no qual se constatou
uma imersão integral na sociedade informacional e singular. Se, por um lado, a necessidade de qualificações e
competências dos atores sociais é indispensável e necessária dada circulação da informação que facilita a transversalidade
e mobilidade entre os mercados de trabalho, por outro, a gestão de recursos humanos não se pode alhear do necessário
ajustamento entre as qualificações, as competências individuais e as necessidades desses mesmos mercados na era atual.
Aspetos de caráter societal, económico, psicológico e outros moldam as decisões políticas e educativas desde o nível
micro e meso ao macro.

Palavras-chave
Políticas Públicas Educativas, Qualificações, Individuação, Processo de Reconhecimento Certificação e Validação de
Competências.

Introdução avaliação dos Adultos deixam de propor uma prática do


domínio pedagógico e passam também a pertencer ao
O contexto e a apresentação do presente artigo domínio socioeconómico, tornando-se mesmo uma questão
decorrem do âmbito da Tese de Doutoramento, que foi social, mediática, e dando origem a um novo paradigma de
desenvolvida no domínio das Ciências da Educação, mais Educação e Formação de Adultos.
especificamente na Especialidade, Educação, Sociedade e Nos finais da década de noventa o Estado Regulador
Desenvolvimento, tendo como objeto a Educação e (cf. Queiroz, 1995) começou a promover novas políticas
Formação de Adultos, e, mais concretamente, o Programa educativas ligadas à ideia de formação ao longo da vida (cf.
Novas Oportunidades em Portugal: o Processo de Magna Carta de 1998) relativamente aos Adultos. Na verdade,
Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências os desafios nos novos cenários de natureza socioeconómica
(RVCC). (e.g. deslocalização das empresas e dos deslocados/
O período da pós-modernidade é marcado pela migrantes, períodos de emprego, sociedade de informação
necessidade de os indivíduos serem convidados a e papel da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), a
construírem-se como pessoas-projetos na ideia de economia de conhecimento e as novas competências
criatividade, empregabilidade e valoração dada a economia exigidas pela economia de mercado da sociedade
do conhecimento e a escassez do trabalho (cf. D. Méda, 1995, neoliberal), e de natureza educativa (a disfuncionalidade da
Rifkin, 2000) assim como pela ideia de sociedade educativa e escola, a inserção social dos indivíduos com pouca
de educação ao longo da vida. qualificação, em fragilidade e em exclusão social…) têm
Desde a década de oitenta que o reconhecimento e efeitos a nível da relação Estado/Educação e Formação de
validação das competências (saberes formais, profissionais Adultos.
e experienciais), com base jurídica e socioeconómica, Como medida de valorização e de empregabilidade
deram lugar a um deslocamento do conceito de avaliação foram criados, com base jurídica e socioeconómica,
do processo ensino/aprendizagem em contexto de dispositivos de formação de “segunda oportunidade” para
Educação/Formação de Adultos. Por outras palavras, as Adultos, numa lógica de cultura de reconhecimento (cf.
novas políticas públicas educativas relacionadas com a Ardoino & Berger, 1998, Figari, Achouche, 2001). Assim sendo,

103
os dispositivos de formação - Centros de Reconhecimento, reconstrução do ator-sujeito.
Validação e Certificação de Competências (RVCC) – Para que o estudo seja bem entendido, importa
implicam a fortiori novas formas e instrumentos de ação frisar que não nos interessou limitar a compreensão da
pedagógica, novos cenários na Educação e Formação de presente proposta de Política Pública Social relacionada
Adultos. Estamos longe das conceções positivistas da com as Novas Oportunidades no sentido que ela recebe no
avaliação visto que se procuram novos fundamentos momento da sua conceção, mas pelo contrário foi mais
epistemológicos e metodológicos. Por outras palavras, as profícuo considerar os diferentes sentidos que a política
qualificações, competências e trabalho passam a ser proporcionou, ao ser apropriada por lógicas de ação
consideradas no sentido pluridimensional – processo- distintas por parte dos Coordenadores do Processo de
cognitivo, representacional e comunicacional – privilegiando RVCC, pelas suas Equipas Técnico-pedagógicas e pelos
a dimensão individual e social (cf. Figari, 2001 b). Atores que optaram pelo Processo de RVCC, e analisar
O Estado Regulador através do Processo de como é que à medida que essas políticas se enraizaram nos
Reconhecimento, Validação e Certificação de sucessivos níveis de implementação e se concretizaram.
Conhecimentos, levando-nos a pensar a ideia de Educação Embora a análise destes modos de enraizamento não
para lá dos limites da Instituição Escolar começa a integrar a constitua, aqui, o objetivo central, pareceu-nos importante
ideia de Experiência (cf. Bourgeois & Nizet, 1997, Aubret, 2001, dessacralizar o momento da conceção das políticas,
Josso, 2002). reforçado pela legitimidade e pela capacidade coerciva dos
No presente artigo, apresenta-se um programa de aparelhos de Estado.
uma política social concebida, (Programa Novas Em sentido contrário, pareceu-nos, igualmente, que
Oportunidades) no essencial, para organizar e dinamizar a plasticidade que atribuímos aos modos de apropriação
diferentes ações ao nível das qualificações e competências, por parte dos Atores do Processo de RVCC estava indexada
das possibilidades de abertura no mercado de trabalho à possibilidade de apropriação deixada aos diferentes níveis
cujos níveis de iniciativa visaram o desenvolvimento local e Equipas Técnico-pedagógicas intervenientes. Esta
em Portugal e em especial na Região Autónoma da plasticidade estava associada ao próprio domínio e tipo de
Madeira, região onde se realizou o presente estudo, com a política considerada, mas também, às configurações
apresentação de uma amostra significativa de participantes sociopolíticas nas quais o Processo de RVCC se produziu e
por cada Concelho. se desenvolveu com os atores sociais que o frequentaram e
A conceção, a organização e aplicação das Políticas concluiram a Escolaridade Básica Obrigatória.
Públicas Sociais em Portugal, confrontaram-se com vários O estudo privilegiou os aspetos ligados à construção
dilemas que produziram, por vezes, efeitos de sentido e de dos Portefólios Reflexivos de Aprendizagem (PRA), objeto
ação contraditórios. Assim, ao mesmo tempo que nos de avaliação dos Adultos no Processo de RVCC tendo em
interessou analisar o Programa Novas Oportunidades, mais conta: i) As Histórias de Vida como narrativa do sujeito
especificamente o Processo de Reconhecimento, (aspetos teóricos); ii) A noção do tempo/avaliação/sujeito
Certificação e Validação de Competências (RVCC), em construção que numa visão retrospetiva (através das
pretendeu-se igualmente perceber as circunstâncias em Histórias de Vida ou narrativas biográficas) passou por
que ele se impõe, as forças e os interesses sociais e políticos fases desde a acumulação da informação/acontecimentos,
entre os quais ele se desenvolveu e os sentidos da ação passando pela seleção, reflexão e análise dos fragmentos
política e social mais amplos que se concretizaram através biográficos para lhes encontrar um sentido (cf. A. Nóvoa,
da sua aplicação e através dele, também o combate à 1989, J. L. Legrand, G. Pineau, 1992, G. Pineau et al., 1995, M. C.
exclusão escolar e à exclusão social. Deste modo, as Josso, 2002); iii) Os problemas discursivos (o locutor na 1ª
qualificações e as competências que se proporcionaram a pessoa) e éticos (subjetividade/objetividade, ajuda,
partir de uma nova política pública relacionada com o privacidade) ligados ao destinatário (formação, mediador,
Processo de RVCC integraram, por exemplo, o dossier/ instituição de reconhecer e apresentar a base jurídica do
proposta de: i) candidatura a uma formação (ex. Processo de RVCC no contexto português, tendo em conta a
profissional, académica) (cf. M. Fazard, S. Paivandi, 2000); ii) legislação que regulamentou a organização, estrutura e
reconhecimento de saberes formais, informais ou processo de equivalência ao 3º Ciclo do Ensino Básico (9º
experienciais, como as Árvores do Conhecimento (cf. M. ano de escolaridade) ou seja, o nível B3 segundo a
Authier e P. Lévy, 1991, P. Galvani, 1977); iii) regulação da designação no Processo de RVCC.
relação oferta/procura da formação/competências sociais Ao nível do Estudo Empírico fez-se uma análise de
(cf. G. Figari et al., 2001). conteúdo de vinte Portefólios Reflexivos de Aprendizagem
No caso português, numa primeira fase a Agência (PRA) de candidatos que concluíram o Processo de RVCC na
Nacional de Educação e Formação de Adultos (ANEFA), Região Autónoma da Madeira. Na nossa análise foram
através dos Centros de Reconhecimento e Validação e consideradas as diversas etapas (i) apresentação formal da
Certificação de Competências e do Documento Orientador candidatura) e (ii) apresentação dos Portefólios Reflexivos
– Referencial de Competências-Chave - teve como função de Aprendizagem (CV, Histórias de Vida).
dotar os Adultos que não tinham completado a
Escolaridade Básica Obrigatória (9º ano) de “uma última
oportunidade”. (cf. M. Trigo et al., 2002). Nesta perspetiva de 1. Cultura de Reconhecimento, Validação e
reconhecimento, validação e certificação das competências, Certificação de Competências (RVCC) – Qualificações,
a ideia de avaliação em educação estava intimamente Competências e trabalho no Contexto Português
associada à ideia de formação/construção e mesmo
Uma política global de aprendizagem ao longo da

104
vida exigiu uma (re)configurção do conjunto da oferta i) Linguagem e Comunicação (LC);
educativa, de forma a maximizar a continuidade e sinergias ii) Cidadania e Empregabilidade; (CE);
entre as oportunidades de aprendizagem que ocorreram iii) Matemática para a Vida (MT)
em diferentes momentos, contextos, sistemas e dimensões iv) Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC).
(Melo et al, 2002). Assim, segundo Melo (ibid. p. 79) “…os
adultos poderão construir percursos educativos coerentes A constituição da Equipa Técnico-Pedagógica dos
que se desenvolvam efectivamente ao longo da vida Centros da Novas Oportunidades é formada por Diretores,
(“lifelong”) e nas diferentes situações da vida quotidiana Coordenadores, Profissionais de Reconhecimento e
(“lifewide”)”. Validação de Competências, Formadores e Assistentes
O Plano Nacional de Emprego (PNE) atribuiu à Administrativos.
Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos O apoio e acompanhamento técnico–pedagógico
(ANEFA) (1998) a missão de: i) organizar um sistema do avaliou todo o processo de cada ator, dando prioridade
Processo de RVCC de Adultos com mais de 18 anos que não nomeadamente i) à valorização da história de vida do
tenham concluído o 9 º ano de escolaridade e ao nível de adulto; ii) ao incentivo e à motivação dos adultos para
12º ano a partir de 2002-2003; ii) organizar uma Unidade de atingir os seus objetivos e retomar os seus projectos de vida
Produção de Materiais: iii) Institucionalizar o Programa iii) e à consciencialização dos saberes adquiridos.
S@ber _; iv) articular os dispositivos de Ensino, Formação e A implementação e difusão de sistemas de
Reconhecimento dos processos informais de aprendizagem; reconhecimento e validação de competências constituiu-se
v) Desenvolver e-learning e novas metodologias; vi) como uma tendência relevante ao nível dos sistemas
promover campanhas de mobilização social, através dos educativos europeus tendo feito parte da agenda política
média. Neste sentido foram criados os Centros de RVCC com educativa europeia (nomeadamente traduzida em
as seguintes atribuições: comunicações da Comissão Europeia (2001, 2004), nas
1) Atividades organizacionais (que se traduziram na Declarações de Bolonha e de Copenhaga, etc., no quadro de
realização de ações de divulgação/informação do Plano um paradigma de Educação/ Formação ao Longo da Vida.
Estratégico (PEI) conducentes ao Processo de RVCC (ex. Os Centros Novas Oportunidades foram criados, segundo as
acompanhamento dos Atores do Processo de RVCC, diretrizes da Agência Nacional para a Qualificação, com a
reconhecimento de competências, formação/formações intenção nomeadamente de:
complementares – mobilização de recursos dos Centros – Assegurar a todos cidadãos, maiores de 18
para os atores do Processo de RVCC, validação e anos, uma oportunidade de qualificação e de
certificação das competências/carteira profissional/ certificação, de nível básico ou secundário,
Diploma); adequada ao seu perfil e necessidades, no
2) Atividades estruturantes que foram desde o âmbito da intervenção de cada Centro Novas
diagnóstico/inventário do mapa local das competências, Oportunidades. Promover a procura de novos
dos dispositivos existentes e tipo de população alvo em processos de aprendizagem, de formação e de
termos socioeconómicos e culturais, ao estabelecer de certificação, por parte dos adultos, que
redes e parceiros locais e à divulgação e informação dos pretendam melhorar a sua qualificação
diversos Centros Novas Oportunidades e o Processo de escolar e profissional. Assegurar a qualidade e
RVCC. a relevância dos investimentos efectuados
Por sua vez as atividades organizacionais giraram em numa política efectiva de aprendizagem ao
torno de três eixos principais: longo da vida valorizando socialmente os
i) Eixo de reconhecimento; processos de qualificação e de certificação de
ii) Eixo de validação; adquiridos. (Carta de Qualidade, p.10).
iii) Eixo de certificação de competências. O Processo de Reconhecimento, Validação e
O eixo de reconhecimento de competências Certificação de Competências (RVCC) é uma realidade não
consistiu na identificação de competências adquiridas ao só de cariz educativo e formativo, mas também socio-
longo da vida e em todos os contextos de vida. O eixo de económico, em crescimento exponencial na Região
validação de competências foi realizado perante um júri de
validação e consubstancia-se na apreciação das
competências evidenciadas pelo adulto face às áreas de
competências – chave estabelecidas no Referencial de
Competências – Chave de Educação e Formação de Adultos.
O eixo de certificação foi um processo administrativo que
confirmou as competências adquiridas ao longo da vida e
constituiu o ato oficial do registo de competências.
O Processo de RVCC foi desenvolvido com o
acompanhamento de uma Equipa Técnico – pedagógica
(profissionais de RVCC e formadores das áreas de
competências -chave) e com base num referencial de
competências-chave de educação e formação de adultos de
nível básico, que abrangeu quatro áreas de competências- Fig. 1 - Mapa da Região Autónoma da Madeira (RAM). Fonte:
chave: Pereira, 2004.

105
Gráfico 1 - Elementos das equipas
técnico-pedagógicas dos CNO da RAM,
segundo a função desempenhada (%).

Autónoma da Madeira (RAM) a partir de 2004. educativa/formativa, introduzindo ajustamentos


A Escola ocupando um grande protagonismo na diversificados e experimentando novos modelos
sociedade (nos média, nas famílias, entre os empresários…) pedagógicos e organizativos nos Centros Novas
procura soluções para superar a crise no que diz respeito: i) Oportunidades (CNO) na Região Autónoma da Madeira
ao desencanto, falta de interesse e de sentido das (RAM).
aprendizagens escolares; ii) às elevadas percentagens de O Processo de Reconhecimento, Validação,
abandonos e insucesso; iii) aos conteúdos curriculares Certificação de Competências (RVCC) foi criado pela
desajustados às exigências do mundo do trabalho; iv) à Portaria nº 1082/01, de 5 de setembro, rectificada pela
perda de autoridade do professor, de respeito pelo saber, Presidência do Conselho de Ministros, na Declaração de
v) à exclusão escolar e ipso facto à exclusão social. Rectificação nº 20-BD/2001, de 10 de Novembro, pela
Ora as medidas de remediação passam pelas várias Portaria nº 286/2002, de 15 de Março, alterada pela
Políticas Educativas, por exemplo: i) a criação de Territórios Portaria nº 86/2007, de 12 de Janeiro, no qual é ainda
Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) (cf. Canário et aprovado o regulamento do Processo de acreditação das
ali., 2001); ii) a criação de dispositivos de acompanhamento entidades promotoras dos Centros Novas Oportunidades.
escolar (cf. Glasman, D., 2001, Lajes, A., 2003, Canário, 2003)
para designar a oferta/procura de atividades curriculares e
extracurriculares, quer públicas quer privadas, dirigidas aos 1.1 Dinâmica de impacto das Políticas Públicas
alunos com dificuldades (escolares ou relacionais) ou Regionais cofinanciadas pelos fundos estruturais
mesmo o insucesso perante a falta de sentido do trabalho
escolar ou Ofício de Aluno (cf. Equipa Escol, Paris 8;. Segundo o Programa Rumos, a contribuição dos
Perrenoud, Ph.,1994); iii) a criação de programas como o fundos comunitários para o desenvolvimento regional
Escolhas (fase do Escolhas III) com Fundos Comunitários); v) constitui um adquirido evidente na trajetória da Madeira
a criação do programa de Reconhecimento, Validação nas últimas duas décadas. Procura-se desenhar uma
Certificação das Competências (RVCC) que já é extensivo ao situação de partida enquanto reflexo de uma trajetória da
Ensino Secundário – Programa das Novas Oportunidades. É produção de resultados de políticas públicas regionais
de notar que, segundo a legislação que regulamenta o cofinanciadas, que procura evidenciar também uma
Processo Reconhecimento, Validação e Certificação de situação de amadurecimento da Região para se adequar a
Competências (RVCC), o Adulto fica sujeito a um contrato uma nova filosofia de mobilização dos fundos estruturais.
caucionado pela Pedagogia do Contrato, que se Destacava ainda o referido Programa que a estratégia e
metamorfoseia em sintonia com o contexto social e pode prioridades de desenvolvimento da Região Autónoma da
levar à reconciliação do ator /sujeito com esse contexto. Madeira para o período 2007-2013 se encontravam
Como resposta educativa e formativa à população adulta, definidas no Plano de Desenvolvimento Económico e Social
cada vez mais heterogénea e exigente, dá-se continuidade (PDES) e tinham naturalmente em conta as Orientações
ao Processo de Reconhecimento, Validação e Certificação Estratégicas da Comunidade para a Coesão e as orientações
de Competências (RVCC) como uma nova modalidade do Quadro de Referência Estratégica Nacional.

106
A Região Autónoma da Madeira assumiu o desígnio Perfil da amostra—Portefólios Reflexivos de
estratégico de, no horizonte 2013, manter ritmos elevados Aprendizagens
e sustentados de crescimento da economia e do emprego,
assegurando a proteção do ambiente, a coesão social e o Portefólio
Reflexivo de Total de páginas Iconografias
desenvolvimento territorial. Este desígnio estratégico, foi Aprendizagens
concretizado com o apoio das adequadas políticas públicas
1 258 42
de âmbito regional e sub-regional e dos necessários e
2 298 44
justificados instrumentos comunitários da política de
3 208 50
coesão, de desenvolvimento rural e das pescas,
4 476 75
fundamentando-se no conhecimento da situação
5 280 21
económica e social da Região, na avaliação das suas
6 474 27
potencialidades e oportunidades (tendo em conta as
7 280 32
respetivas ameaças e riscos) e, bem assim, nos
8 476 25
ensinamentos recolhidos da aplicação dos instrumentos de
9 444 35
programação concretizados – particularmente os
10 417 18
explicitados na avaliação intercalar do POPRAM: 2000-
11 130 25
2006.
12 153 21
A globalização das economias e das sociedades tem,
neste contexto, assumido uma responsabilidade 13 374 51

fundamental nas modificações da envolvente global das 14 341 20

economias regionais. O dimensionamento à escala mundial 15 350 15

dos mercados, o aumento explosivo dos fluxos comerciais 16 210 30


de natureza financeira, de mercadorias e de serviços, a 17 138 27
crescente mobilidade das pessoas e dos bens e as 18 284 41
características cada vez mais claras da consolidação de 19 114 27
blocos de interesses e de manifestações diversificadas de 20 189 25
formas de afirmação e de conquista de posições de poder e Totais 5894 651
de influência são bem reveladoras das dinâmicas presentes Quadro 1 - Volume dos vinte Portefólios Reflexivos de
e marcantes do contexto global. Aprendizagens dos Participantes no Estudo na Região Autónoma
da Madeira. Mapa da Região Autónoma da Madeira (RAM).
Fonte: Pereira, 2004.

2. Um Estudo de Caso do Processo de Martuccelli (ibid.), podemos identificar sobretudo quatro


Reconhecimento, Validação e Certificação de domínios em todo o percurso individual: i) experiência
Competências – Análise dos Portefólios Reflexivos de escolar; ii) a relação com o trabalho e situação de emprego;
Aprendizagem (PRA) iii) relação ao espaço e à mobilidade e iv) vida familiar. Em
segundo lugar, as dimensões do laço social presentes
Para delimitar as provas, a análise aborda um também em toda a existência pessoal: a relação à história,
número de situações e elementos heterogéneos, aos coletivos, aos outros e a si próprio. Estes dois eixos
encontrando a boa escala e os bons fatores sobre os quais cruzam-se constantemente ao longo do desenvolvimento
centrar o estudo. Para Martuccelli (2008), mesmo sendo de uma vida, tendo modos de inscrição muito diferentes: os
possível identificar uma grande diversidade de mecanismos primeiros são globalmente mais formais que os segundos,
institucionais e registos analíticos possíveis, o estudo deve porque mais frequentemente enquadrados por instituições.
(para ser operacional), restringir-se ao estudo de um Estes domínios e dimensões não são nem pretendem ser
número limitado de processos, considerados exaustivos. A questão não está em conseguir um estudo
particularmente significativos no ponto de vista de uma global do indivíduo, mas em destacar, num registo que
realidade histórica e social concreta. mistura grandes dimensões históricas e considerações de
Para as sociedades industriais capitalistas posição, as principais provas com as quais são confrontados
contemporâneas, dois grandes eixos são particularmente de maneira diferenciada os Atores em cada um dos eixos
decisivos, cujo encontro define o sistema padronizado de considerados.
provas específicas do processo atual de individuação. Em
primeiro lugar, os principais domínios da vida. Segundo

107
Reflexões Finais iv) Plano profissional, numa perpetiva instrumental,
a necessidade de uma Certificação Escolar para efeitos de
A emergência do Processo de RVCC, gerou um novo inserção profissional, ascensão ou progressão na Carreira
Paradigma na Educação, na medida em que a dinâmica das Profissional ou concorrência ao Mercado de Trabalho.
relações socioeconómicas, políticas e educativas estava Corroborando Alves: “Os vários percursos de inserção
ligada à cultura do reconhecimento de saberes, através da profissional correspondem, então, a modos distintos de
valorização da pessoa/sujeito/ator como efeito da integração na relação salarial e de obtenção de um estatuto
sociedade de aprendizagem e da expansão das sócio-profissional, marcado por uma relação específica com
oportunidades educativas. o trabalho, o emprego, a remuneração e a mobilidade sócio
No estado atual, a certificação e validação das - profissional” (Alves, 2009, pp. 29 e 30).
competências privilegia um sistema de provas que se Na dimensão da Individuação, os Adultos integram a
inscrevem nas Histórias de Vida de cada Ator que fazem a sua passagem/frequência num sistema de “provas”, como é
opção pelo Processo de RVCC. Sempre que se trate das explicitado nas suas Histórias de Vida. Estas “provas”
Histórias de Vida, como objeto, parece-nos importante o estruturam-se numa tipologia de oito dimensões:
recurso à hermenêutica como instrumento facilitador da i) Natureza Individual e Familiar (Física e
cripoleitura das narrativas. Psicológica);
Apresentou-se, um estudo de caso com a análise ii) Natureza Escolar;
parcial de vinte Portefólios Reflexivos de Aprendizagem, iii) Natureza Profissional;
colocando o acento na problemática no sistema de provas iv) Natureza de Mobilidade;
no sentido de Martuccelli (ibid.) A generalização da prova v) Natureza de rede de laços de família e amizade
escolar, como forma de tensão entre a seleção e a de amigos;
avaliação institucional de si, introduz uma evolução vi) Natureza Histórica/Coletiva;
considerável no processo de fabricação dos indivíduos. A vii) Natureza Religiosa;
novidade não reside na ausência de um pacto entre viii) Natureza Cultural.
gerações, ou seja, numa sociedade que não sabe que parte Na dimensão das Representações Sociais, os Adultos
da sua herança transmitir. Martuccelli (ibid.) nos seus referem, nas suas Histórias de Vida, que se preocupam com
Pressupostos Teóricos alusivos à Individuação, em relação os seus Projetos de Vida Futuros. No entanto, o seu motivo
às mudanças estruturais, argumenta que a mudança se apresentado prende-se mais pelos desafios sociais com que
deve por um lado à maneira como a sociedade estabelece a se confrontam no seu dia-a-dia do que com as aspirações
sua relação com as normas e, por outro lado, a rutura de pessoais de autorrealização e autoestima.
um modelo substantivo do sujeito. Os dois pontos são Em função deste estudo, podemos fazer algumas
importantes e diferentes, mas durante muito tempo era Recomendações ao nível do Sistema Político-Normativo:
tido por certo que havia uma articulação, mais ou menos No campo das Políticas Públicas Educativas de
conseguida e acabada, entre a ordem da moral e a da ética. Educação e Formação de Adultos recomenda-se que, na
A formação do caráter dos indivíduos entrou numa nova Região Autónoma da Madeira, bem como, em todo o
fase no período da Modernidade. espaço Nacional Português haja continuação da aposta no
Uma palavra para sublinhar que nos limitamos a capital humano, tornando, deste modo, a garantia do
apresentar, em seguida, os principais parâmetros do estudo direito à educação e à qualificação para o desafio essencial
que se realizou, sem, contudo, nos referirmos da educação ao longo da vida, tornando as Pessoas mais
pormenorizadamente à apresentação dos resultados Felizes no seu regresso à “Escola Hospitaleira”. A aceleração
alcançados. Assim, sumariamente, eis as principais do ritmo do Processo de RVCC e o crescimento das
conclusões. oportunidades de rutura social ou, mais simplesmente, a
As Motivações apareceram-nos fundamentalmente nossa maior sensibilidade a estas descontinuidades e, aos
em quatro planos: custos sociais, justificam que lhe consagremos atenção.
i) Plano instrumental, a necessidade da obtenção de Estas orientações põem em causa, os quadros habituais das
um Diploma e/ou Certificado de Habilitações, os quais relações de confiança, interpelam os atores e apelam para a
permitem a conclusão da Escolaridade Básica Obrigatória; construção de novas relações de confiança entre o Sistema
ii) Plano vocacional/afetivo de autoestima, de Educativo e a Educação e Formação de Adultos.
satisfação e de realização pessoal; No campo das futuras investigações científicas: Dado
iii) Plano cultural, o anseio pelo conhecimento/ o impacto positivo que o Processo de RVCC refletiu na vida
cultura geral e o acesso aos bens culturais; das pessoas, seria pertinente estudar e aprofundar o

108
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