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1 - TOCQUEVILLE, A. A Democracia Na América PDF
1 - TOCQUEVILLE, A. A Democracia Na América PDF
NA AMÉRICA
Leis e Costumes
D e certas leis e certos costumes políticos qu e
fo ra m naturalm ente sugeridos aos am ericanos
p o r seu estado social democrático
Alexis de Tocquevüle
Tradução
EDUARDO BRANDÃO
Martins Fontes
São Paulo 2005
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
Configuração exterior
da América do Norte
Perto dele nasce outro rio3, que vai desaguar nos mares
polares. O próprio Mississippi parece por um instante incer
to sobre o caminho que deve seguir; várias vezes volta atrás
e somente depois de desacelerar seu curso no seio de lagos
e charcos é que se decide, por fim, e traça lentamente sua
rota rumo ao sul.
Ora tranqüilo no fundo do leito argiloso que a natureza
lhe preparou, ora engrossado pelas tempestades, o Mississippi
irriga mais de mil léguas em seu curso4.
Seiscentas léguas5 acima da sua foz, o rio já tem uma
profundidade média de 15 pés, e embarcações de 300 tone
ladas sobem-no por um espaço de quase duzentas léguas.
Cinqüenta e sete grandes rios navegáveis vêm trazer-lhe
suas águas. Entre os afluentes do Mississippi, contam-se um
rio de 1 300 léguas de extensão6, um de 9007, um de 6008, um
de 5009, quatro de 20010, sem falar de uma multidão incontá
vel de riachos que acorrem de toda a parte para perder-se
em seu seio.
O vale que o Mississippi irriga parece ter sido criado só
para ele; distribui à vontade por ele o bem e o mal, e é como
seu deus. Nas cercanias do rio, a natureza ostenta uma ines
gotável fecundidade; à medida que nos afastamos de suas
margens, as forças vegetais se esgotam, os terrenos emagre
cem, tudo languesce ou morre. Em nenhum outro lugar as
grandes convulsões do globo deixaram vestígios mais evi
dentes do que no vale do Mississippi. O aspecto inteiro da
região atesta o trabalho das águas. Sua esterilidade, bem
como sua abundância, é obra das águas. As torrentes do
oceano primitivo acumularam no fundo do vale enormes ca
madas de terra vegetal que tiveram o tempo de nivelar. En
contramos na margem direita do rio planícies imensas, uni
das como a superfície de um campo no qual o lavrador teria
passado seu rolo. À medida que nos aproximamos das mon
tanhas, o terreno, ao contrário, se torna cada vez mais desi
gual e estéril; lá, o solo é, por assim dizer, furado em mil
pontos, e rochas primitivas aparecem aqui e ali, como os os
sos de um esqueleto depois de o tempo ter consumido em
torno deles músculos e carnes. Uma areia granítica, pedras
irregularmente talhadas cobrem a superfície da terra; algu-
28 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA
tê-las tais como são, boas ou más, pelos motivos que eles
sabem. O grosso da nação mal as conhece; só as vê agir em
casos particulares, tem dificuldade de perceber sua tendên
cia e submete-se a elas sem pensar.
Citei um exemplo, poderia ter assinalado muitos outros.
O panorama que a sociedade americana apresenta é, se
assim posso me expressar, coberto de uma camada demo
crática, sob a qual vemos surgir de tempo em tempo as ve
lhas cores da aristocracia.
CAPÍTULO III
Do princípio da soberania
do povo na América
Circunscrição da comuna
Do Estado
Do p o d er executivo do Estado
pátria, não sei que orgulho irrefletido do nome que esta tem,
que vaga lembrança de sua glória passada, que, sem se pren
der precisamente a nada, basta para lhes imprimir se neces
sário um impulso conservador.
Seria um erro tranqüilizar-se pensando que certos povos
fizeram esforços prodigiosos para defender uma pátria em
que viviam, por assim dizer, como estrangeiros. Atentem bem
e verão que a religião era quase sempre, então, seu móbil
principal.
A duração, a glória ou a prosperidade da nação tinham
se tornado para eles dogmas sagrados e, ao defenderem sua
pátria, defendiam também essa cidade santa em que eram
todos cidadãos.
As populações turcas nunca tomaram nenhuma parte na
direção dos assuntos da sociedade; no entanto realizaram
imensas empresas, tanto que viram o triunfo da religião de
Maomé nas conquistas dos sultões. Hoje a religião se vai, só
lhes resta o despotismo. Elas soçobram.
Montesquieu, emprestando ao despotismo uma força
que lhe foi própria, fez-lhe uma honra que, acho eu, ele não
merecia. O despotismo, por si só, nada pode manter de
maneira duradoura. Se examinarmos bem, perceberemos
que o que faz prosperar por muito tempo os governos abso
lutos é a religião, e não o medo.
Não importa o que fizermos, nunca encontraremos uma
verdadeira potência entre os homens, fora do livre concurso
das vontades. Ora, o patriotismo ou a religião são as únicas
coisas no mundo capazes de fazer marchar por muito tem
po em direção a um mesmo objetivo a universalidade dos
cidadãos.
Não depende das leis reavivar as crenças que se extin-
guem, mas depende das leis interessar os homens pelo
destino de seu país. Depende das leis despertar e dirigir
esse instinto vago da pátria que nunca abandona o coração
do homem e, ligando-o aos pensamentos, às paixões, aos
hábitos de cada dia, transformá-lo num sentimento refleti
do e duradouro. E não venham dizer que é tarde demais
para tentá-lo: as nações não envelhecem da mesma manei
ra que os homens. Cada geração que nasce em seu seio é
PRIMEIRA PARTE 107
Da liberdade de imprensa
nos Estados Unidos
(Vincenne’s Gazette.)
Da associação política
nos Estados Unidos
Tirania da maioria
Alexis de Tocqueville
Tradução
EDUARDO BRANDÃO
Martins Fontes
São Paulo 2004
PRIMEIRA PARTE
nem faculdade para assim agir, por causa dos limites de seu
espírito, é reduzido a dar por certa uma porção de fatos e de
opiniões que não teve nem o vagar nem a possibilidade de
examinar e verificar por si mesmo, mas que outros encontra
ram ou que a multidão adota. É sobre esse primeiro funda
mento que ele próprio ergue o edifício de seus pensamentos
pessoais. Não é sua vontade que o leva a proceder dessa ma
neira, a lei inflexível da sua condiçã.o é que o obriga a tanto.
Não há no mundo um filósofo que não creia um milhão
de coisas com fé em outrem e que não suponha muito mais
verdades do que ele próprio estabelece.
Isso não só é necessário como desejável. Um homem
que empreendesse examinar tudo por si mesmo só poderia
conceder pouco tempo e atenção a cada coisa; esse trabalho
manteria seu espírito numa agitação perpétua, que o impedi
ria de penetrar profundamente uma verdade e fixar-se com
solidez numa certeza. Sua inteligência seria a uma vez indepen
dente e frágil. É necessário, portanto, que entre os diversos
objetos das opiniões humanas ele faça uma opção e adote
muitas crenças sem discuti-las, a fim de aprofundar melhor
um pequeno número delas, cujo exame reservou para si.
É verdade que todo homem que acolhe uma opinião com
base na palavra alheia põe seu espírito na escravidão; mas é
uma servidão salutar, que permite fazer bom uso da liberdade.
Portanto, é sempre necessário, não obstante o que suce
da, que a autoridade se encontre em algum ponto, no mun
do intelectual e moral. Seu lugar é variável, mas ela tem de ter
um. A independência individual pode ser maior ou menor,
mas não poderia ser ilimitada. Assim, a questão não é saber
se existe uma autoridade intelectual nas eras democráticas,
mas apenas onde está depositada e qual será sua medida.
Mostrei no capítulo anterior como a igualdade das con
dições fazia os homens conceberem uma espécie de incre
dulidade instintiva pelo sobrenatural e uma idéia elevadíssi
ma e, muitas vezes, exageradíssima da razão humana.
Portanto, os homens que vivem nesses tempos de igual
dade dificilmente são levados a colocar a autoridade intelectual
a que se submetem fora e acima da humanidade. É neles mes
mos ou em seus semelhantes que, comumente, procuram as
PRIMEIRA PARTE 11
por ter uma, mas ela terá um caráter diferente do que se ma
nifesta nos escritos americanos de nossos dias e que lhe será
próprio. Não é impossível esboçar esse caráter antecipada
mente.
Suponhamos um povo aristocrático em que sejam culti
vadas as letras. Nele, os trabalhos da inteligência, assim como
os negócios do governo, são regidos por uma classe sobera
na. A literatura, como a existência política, está quase intei
ramente concentrada nesâa classe ou nas que dela são mais
próximas. Isso me basta para ter a chave de todo o resto.
Quándò um pequeno número de homens, sempre os
mesmos, se ocupa ao mesmo tempo dos mesmos objetos, eles
se entendem facilmente e estabelecem em cOmum certas re
gras principais que devem dirigir cadâ um deles. Se o objeto
que atrai á atenção desses homens for a literatura, os trabaJhos
do espírito logo serão submétídos por eles a algumas leis pre
cisas, das quais não será mais permitido afastar-se.
Se esses homens ocupam no país uma posição hereditá
ria, serão naturalmente inclinados não apenas a adotar para
si certo número de regras fixas, mas também a seguir as que
seus avôs tinham se imposto; sua legislação será a uma só
vez rigorosa e tradicional.
Como não estão necessariamente preocupados com as
coisas materiais, e nunca estiveram, nem tampouco seus pais,
eles puderam se interessar, durante várias gerações, pelos tra
balhos do espírito. Compreenderam a arte literária e acabam
por apreciá-la por ela mesma e por experimentar um douto
prazer ao ver que o povo a ela se conforma.
Não é tudo ainda: os homens de que falo começaram sua
vida e a terminam no bem-estar ou na riqueza; conceberam
portanto, naturalmente, o gosto pelos deleites requintados e
o amor .pelos prazeres finos e delicados.
Muito mais, certa languidez de espírito e de coração, que
muitas vezes contraem no meio desse longo e aprazível uso
de tantos bens, leva-os a afastar de seus prazeres mesmos o
que poderia haver neles de demasiado inesperado e dema
siado vivo. Eles preferem ser distraídos a ser vivamente como
vidos; querem que os interessem, mas não que os arrebatem.
66 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA
A influência da democracia
sobre os sentimentos dos americanos
CAPÍTULO I
Do individualismo nos
países democráticos
Não creio, tudo bem pesado, que haja mais egoísmo en
tre nós do que na América; a única diferença é que lá ele é
esclarecido e aqui não. Cada americano sabe sacrificar uma
parte de seus interesses particulares para salvar o resto. Que
remos nos apoderar de tudo e, com freqüência, tudo nos
escapa.
Não vejo em tomo de mim senão pessoas que parecem
querer ensinar cada dia a seus contemporâneos, por sua pa
lavra e por seu exemplo, que o útil nunca é desonesto. Não
descobrirei então, enfim, quem procure lhes fazer compreen
der como o honesto pode ser útil?
Não há poder na terra capaz de impedir que a igualdade
crescente das condições leve o espírito humano à busca do
útil e disponha cada cidadão a se fechar em si mesmo.
Deve-se contar, portanto, com que o interesse individual
se tome, mais que nunca, o principal, se não único, móvel das
ações dos homens; mas resta saber como cada homem en
tenderá seu interesse individual.
Se os cidadãos, tomando-se iguais, permanecessem igno
rantes e grosseiros, é difícil prever até que estúpido excesso
seu egoísmo poderá levar e não se poderia dizer de antemão
em que vergonhosas misérias eles mesmos mergulhariam, com
medo de sacrificar algo de seu bem-estar à prosperidade de
seus semelhantes.
Não creio que a doutrina do interesse, tal como é pregada
na América, seja evidente em todas as suas partes; mas ela
encerra um grande número de verdades tão evidentes que
basta esclarecer os homens para que eles as enxerguem.
Cumpre pois esclarecê-los a qualquer preço, porque a época
das devoções cegas e das virtudes instintivas já vai longe de
nós, e vejo chegar o tempo em que a liberdade, a paz pública
e a ordem social mesma não poderão prescindir das luzes.
CAPÍTULO XIII
A influência da democracia
sobre os costumes propriamente ditos
CAPÍTULO IV
tempo, o próprio governo. Mas não nego que uma força so
cial centralizada seja capaz de levar facilmente a cabo, num
tempo dado e num ponto determinado, grandes realizações.
Isso é verdade sobretudo na guerra, em que o sucesso de
pende muito mais da facilidade que encontramos em con
centrar rapidamente todos os seus recursos em certo ponto,
do que da própria extensão desses recursos. Assim, é princi
palmente na guerra que os povos sentem o desejo e, muitas
vezes, a necessidade de aumentar as prerrogativas do poder
central. Todos os gênios guerreiros gostam da centralização,
que aumenta suas forças, e todos os gênios centralizadores
gostam da guerra, que obriga as nações a concentrar nas mãos
do Estado todos os poderes. Assim a tendência democrática
que leva os homens a multiplicar sem cessar os privilégios
do Estado e a restringir os direitos dos particulares é muito
mais rápida e mais contínua nos povos democráticos, sujei
tos por sua posição a grandes e freqüentes guerras e cuja
existência pode muitas vezes ser posta em perigo, do que em
todos os outros.
Mostrei como o medo da desordem e o amor ao bem-
estar levavam insensivelmente os povos democráticos a au
mentar as atribuições do governo central, único poder que
lhes parece de per si bastante forte, bastante inteligente, bas
tante estável para protegê-los contra a anarquia. Mal necessito
acrescentar que todas as circunstâncias particulares que ten
dem a tornar o estado de uma sociedade democrática per
turbado e precário aumentam esse instinto geral e levam os
particulares a sacrificar cada vez mais seus direitos à sua tran
qüilidade. •
Portanto um povo nunca está tão disposto a aumentar as
atribuições do poder central do que ao sair de uma revolução
longa e sangrenta, que, depois de ter arrancado os bens das
mãos de seus antigos possuidores, abalou todas as crenças,
encheu a nação de ódios furiosos, de interesses opostos e de
facções contrárias. O gosto pela tranqüilidade pública se toma
então uma paixão cega, e os cidadãos ficam expostos a serem
tomados por um amor desordenado à ordem.
Acabo de examinar vários acidentes que contribuem pa
ra a centralização do poder. Ainda não falei do principal.
372 A DEMOCRACIA NA AMÉRICA