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Capítulo II

As Filósofas Gregas
Via de regra, constata-se que as mulheres que brilharam
na filosofia pertenciam a um meio já erudito. Os pensadores
esclarecidos, afastando-se dos preconceitos de sua época – o
que é justamente a característica de toda mente esclarecida –
tinham grande entusiasmo em transmitir seus conhecimentos
às suas filhas e estas mostravam-se plenamente dignas,
amplificando esse saber e difundindo-o, por sua vez. Isso
demonstra que, desde que lhes fosse possível ter acesso à
sabedoria e à erudição, as mulheres se mostraram tão ativas
nesta esfera quanto os homens.

Outro ponto importante de se salientar é que, enquanto


tendemos a isolar os grandes pensadores do meio que os
circundava, o que se vê é que, na verdade, eles eram tributários
de todo um contexto simultaneamente masculino e feminino.
Existiam interações permanentes entre esses dois pólos.
Nos meios intelectual e espiritualmente evoluídos, os pais
instruíam as filhas e as mães ensinavam os filhos – como a
filósofa Areta. No entanto, essa realidade histórica é pouco
levada em conta pelos estudiosos da filosofia.

Por essa razão, ao contrário dos seus contemporâneos


ilustres, as mulheres de que vamos tratar aqui são pouco
conhecidas atualmente. Mas é edificante constatar o quanto
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sua contribuição era considerada crucial em sua própria
época.

Em torno a Pitágoras

Houve numerosas pitagóricas, a começar por Temistoclea,


irmã do próprio Pitágoras. Esse último, aliás, segundo Diógenes
Laércio, “deveu a maioria dos seus princípios de moral à sua
irmã”; idéia retomada por Suidas: “Ele extraiu seus princípios
da sua irmã Temistoclea”. Outros autores afirmam que, na
realidade, era a uma certa Aristoclea, sacerdotisa de Delfos, que
Pitágoras, segundo suas próprias palavras, devia sua doutrina. De
qualquer forma, nos dois casos teria sido uma mulher a inspirar
o filósofo.
Não há nisso nada com o que se surpreender, não da parte
de um sábio que fazia de um princípio feminino o fundamento
mesmo de sua doutrina. Não era a “Santíssima Tetraktis” (1
+ 2 + 3 + 4 = 10) definida como “a Mãe de todas as coisas”?
Nada de espantoso também no fato de ser entre os
pitagóricos que se encontram os mais ardentes defensores da
feminidade, como o erudito e místico Próclus, notório neo-
platônico e pitagórico do século V de nossa era. Afirma ele no
Comentário do Timeu de Platão (I, 46):
“Agradava a Platão que as virtudes de homens e mulheres
fossem comuns…, isto é o que de fato a história nos afirma. E as
mulheres de boa educação se sobressaem mais que os homens.”

Idéia que, aliás, tinha sido desenvolvida, na obra Cleomene,


por Plutarco, a respeito do qual é pouco conhecido o fato de
que ele foi um adepto eminente da tradição pitagórica.

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De qualquer forma, não há nenhuma dúvida que, com tais
princípios, para os pitagóricos era impensável interditar o saber
às mulheres. Ao contrário, elas estavam entre os membros mais
eminentes da comunidade e, com toda certeza, também entre
os mais ativos!

Pitágoras era casado com Theano, e este, segundo algumas


fontes, “era perdidamente apaixonado por ela”; coisa que,
vindo do frio e imperturbável matemático, não deixou de
impressionar fortemente seus contemporâneos.

A maioria dos que se aproximavam de Theano ficava


admirados com sua personalidade, e as pessoas daquela época a
qualificavam como uma grande alma. De fato, todos achavam
que ela tinha grande sabedoria, mas ela não agradava ao gosto
de todo mundo. Como aconteceu, em todas as épocas, com todos
os que serviram na via do Bem, espíritos sombrios tentaram
prejudicá-la. Numa carta a um de seus detratores, um certo
Timeônidas, ela nos faz admirar seu caráter cheio de sutileza e
de grandeza:

“Por que continuas a me caluniar?”, escreve ela. “Então não


sabes que não cesso de vos fazer elogios em público, embora
faças o contrário? Devo, todavia, informar-te que ninguém
acredita em mim quando te elogio e também ninguém acredita
em ti quando me calunias.”

Suas obras são numerosas: poesias, textos sobre a piedade,


comentários dos princípios do seu esposo. É ela, em particular,
que explica que Pitágoras acreditava não que todas as coisas
são feitas de números, como pretendem alguns, mas, sim,
segundo as regras dos números.

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Seu estilo era conciso e tingido de uma ponta de ironia.
Atribui-se a ela a seguinte frase, referente à lei da reencarnação:

“A vida seria verdadeiramente uma festa para os malfeitores,


que praticam o mal e depois morrem, se a alma não fosse
imortal.”
Dava aulas na escola de Pitágoras e trabalhava em campos
muito variados, como a física, a medicina e a psicologia
infantil. Mas era também tão versada na arte da matemática
quanto seu augusto esposo – a quem, lembremos, devemos o
teorema que porta o seu nome, bem como trabalhos sobre o
triângulo retângulo. Atribui-se também a Theano a redação
de um tratado sobre o retângulo de ouro, considerado hoje
como sua contribuição mais importante à ciência moderna.
Na realidade, às vezes é difícil saber o que, nos trabalhos
oriundos da escola de Crotona, é obra de Pitágoras ou dos
que o cercavam, pois, de modo geral, as descobertas eram
publicadas em comum, como “descobertas pitagóricas”1.
Além disso, a lei do sigilo cercava todos esses trabalhos, que
não deviam ser revelados a ninguém que não pertencesse
à escola. São os testemunhos de escritores antigos que nos
permitem ter alguns vislumbres indiretos a esse respeito, ecos
longínquos vindos da Antiguidade. Mas no que concerne a
Theano, parece que sua descoberta foi confirmada.
Após a morte de seu marido, ela assumiu a direção de sua
escola, auxiliada por dois dos seus filhos, Telogos, também
filósofo, e Mnesarque.
______________
1. Esse procedimento subsiste em algumas organizações iniciáticas, como, por
exemplo, a AMORC.

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Outra pitagórica eminente foi Myia, filha do filósofo e de
Theano, pessoa tão célebre em seu tempo que um autor romano,
Luciano, disse preferir não falar sobre ela, uma vez que, em
razão de seu caráter ilustre, todo mundo a conhecia… tanto
que hoje resta-nos bem poucos elementos sobre ela! Sabe-se
que ela foi esposa de Milo de Crotona, famoso atleta, várias
vezes vencedor em Olímpia, e general influente, mas, não
obstante, também pitagórico.
Ela devia ser excepcionalmente brilhante, pois ainda muito
jovem já instruía as outras meninas. Depois de casada, ela
instruía as mulheres e seu ensinamento devia ser famoso,
pois a rua onde ela morava, em Crotona, ganhou o nome de
Academia e sua casa foi mais tarde transformada num templo
para Ceres.
Pitágoras teve ainda duas outras filhas, ambas filósofas.
Damo foi a depositária dos escritos de Pitágoras, que
recomendou-lhe expressamente não transmiti-los a estranhos.
Os autores antigos sublinham que ela atendeu escrupu­
losamente esse pedido, quando poderia ter vendido muito
caro os escritos de seu pai.
Por sua vez, ela transmitiu os escritos de Pitágoras à sua
filha, Bistália, que também respeitou essa vontade de sigilo.
Por esse desejo de sigilo, não se deve entender que Pitágoras
queria que seu ensinamento se extinguisse com ele ou que
fosse reservado somente aos membros de sua família, mas, sim,
que ele desejava que fosse conservada a dimensão iniciática
do pitagorismo. A propósito, alguns de seus discípulos
profes­saram o que tinham aprendido com o mestre e foram
severamente julgados por seus antigos companheiros. Assim,
se Damo não foi a mais brilhante das filhas de Pitágoras,
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mesmo assim é importante citá-la como alguém que foi capaz
de pôr em prática o que havia aprendido.

Uma outra figura interessante foi Arignot, sobre quem


não se sabe se era efetivamente filha do filósofo ou discípula
dele, pois o termo “filha” designa igualmente um parentesco
espiritual entre mestre e discípula. Suidas, por seu turno,
escreveu que ela foi “discípula do grande Pitágoras e de
Theano; Samiena, por sua vez, escreveu Bacchica, livro sobre
os mistérios de Deméter, também intitulado Discurso Sagrado,
a Iniciação aos Mistérios de Dionísio e outras obras filosóficas”.

O fato é que essa mulher escreveu muito: versos, cantos


sagrados, além dos seus epigramas sobre os mistérios de Ceres
e Baco. Seus numerosos escritos sobre a filosofia pitagórica
foram citados por Porfírio, que teve a oportunidade de lê-los
– prova de que eles ainda existiam no século III d.C.

Existiram outras filósofas à volta de Pitágoras. Perictione


foi uma de suas discípulas e se tornou professora. Duas de
suas obras chegaram até nós: Sabedoria e Sobre a Harmonia
da Mulher. Nesse último livro, ela apresenta a lei do amor
– em sua mais alta concepção ética – como uma emanação
da Lei universal, aquela que sustenta toda a Criação. O que
significava dizer que através do autoconhecimento aprende-se
a natureza do universo inteiro e sua harmonia subjacente.

Essa idéia foi desenvolvida por uma outra filósofa


pitagórica, Fintis (citada por Estobeu em Florilegium), que,
em sua obra Sobre a Sabedoria Feminina, apresenta a harmonia
como uma disposição natural das mulheres. Ora, a noção de

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harmonia é uma das mais fundamentais do pitagorismo, tal
como o demonstra o grande lugar atribuído aos números ou
à música em sua doutrina.
Em torno a Sócrates

O augusto pensador ateniense tem fama de ter sido muito


misógino. No entanto, através dos escritos de Platão, podemos
vê-lo fazendo menção a mulheres filósofas, a quem ele deve
uma parte de seu saber.

No Banquete, onde um pequeno cenáculo de pensadores


discute sobre o amor, é a uma certa Diotima de Mantinéia
que ele atribui a demonstração final. Foi ela quem lhe teria
ensinado essa parte da filosofia. Encontramo-la citada também
no Tratado das Imagens de Luciano. É possível que ela fosse
uma sacerdotisa. Sócrates, através de Platão, diz o seguinte
sobre ela:

“Ouvi, certo dia, um discurso relativo ao amor, da boca de


uma mulher da Mantinéia, Diotima; uma mulher que era
tão sábia neste quanto numa multidão de outros assuntos, e
a quem os atenienses devem, graças a um sacrifício feito num
dado momento antes da peste, uma pausa de dez anos; pois
foi justamente ela quem me ensinou as coisas do amor…”

O que causa surpresa na passagem referente a essa mulher


é, antes de mais nada, a autoridade com que ela se dirige a
Sócrates, indicando uma mulher habituada a comandar.

Alguns escritores lançaram dúvidas sobre a existência


histórica de Diotima. Mas quer tenha ou não vivido,
permanece o fato de que o Banquete faz alusão a mulher de

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personalidade forte, capaz de ensinar às maiores mentes, entre
elas Sócrates, e que em nenhum momento seus interlocutores
parecem se incomodar com esta idéia ou julgá-la absurda.
Assim sendo, esse fato devia ser bastante comum…

A outra ilustre personagem a quem Sócrates faz referência


é bem mais conhecida. Trata-se de Aspásia de Mileto. Dessa
vez, é no Menexenes de Platão que Sócrates alude a ela. Na
verdade, esse discurso poderia se intitular Aspásia, pois todo
ele é uma referência a um discurso feito por esta mulher,
apresentado como um modelo de retórica.

É bem verdade que, nesse discurso, Sócrates ironiza e


finge ter os oradores em pouca estima, sobretudo quando
estes são encarregados de falar bem dos atenienses diante
dos atenienses, o que é o cúmulo da facilidade… Por causa
disso, alguns comentadores deduziram que sua referência a
Aspásia – uma mulher! – nada mais seria que um grau a mais
na ironia.

Ora, isso é ignorar a realidade histórica, posto que está


comprovado que Aspásia era apreciada por muitos outros
filósofos. Na verdade, Sócrates quis dizer apenas o que
disse, ou seja, que expressar-se bem não requer uma mente
brilhante, desde que se tenha estudado com bons mestres,
como no caso dele mesmo.
Assim, ele declara ter recebido suas lições de Aspásia, uma
mulher que “formou muitos bons oradores, um em particular,
e até o mais notório da Grécia, Péricles, filho de Xantipa!…”
E, mais adiante, acrescenta:

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“Sem dúvida, não há nada de surpreendente que um
homem assim formado esteja apto a falar. Mas, na verdade,
mesmo alguém que tenha recebido uma instrução inferior à
minha, que tenha sido instruído na arte oratória por Antífonas
de Ramonte, não seria menos capaz de adquirir fama fazendo,
diante dos atenienses, o panerígico dos atenienses.”

A referência a Antífonas, ilustre mestre de retórica, mas


apresentada como inferior a Aspásia, sublinha ainda a
supremacia desta última.

Além de seus talentos de eloqüência, que mais sabemos de


Aspásia e de sua vida?

Se não possuímos elementos relativos à sua personalidade,


Plutarco nos informa que sua fama era grande e ultrapassava
os limites da Grécia. Assim, Ciro o jovem, rei da Pérsia,
rebatizou sua concubina preferida, Milto, com o nome de
Aspásia. Já que se pode imaginar que o título de esposa de
Péricles não é suficiente para justificar essa admiração, é
preciso buscar em outro lugar as razões para tanto.

Péricles, depois de se ter divorciado, por consentimento


mútuo, de sua primeira mulher, casou-se com Aspásia, embora
aos olhos da lei ateniense esta união não tivesse valor jurídico.
Ora, o que causou espanto em seus contemporâneos foi o amor
que ele tinha por ela, o que aliás tornou-se alvo das ironias
de seus oponentes. Ouçamos Plutarco:

“Ele desposou Aspásia, a quem amava de maneira


surpreendente, pois, quer saísse de sua casa, quer entrasse,
ele a saudava sempre com um beijo.”

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Foi inclusive através desse sentimento que seus inimigos
lhe arremessaram suas flechas mais dolorosas, pois, homem
íntegro, o chefe da cidade era, de outro modo, dificilmente
atacável. Por motivos dúbios, Aspásia viu-se arrastada à justiça
por um ator, Cratinos. Deve-se lembrar que, em Atenas,
qualquer cidadão podia fazer uma acusação contra um outro,
até pelo motivo mais idiota, e suscitar um processo. Sabemos
como Sócrates, por exemplo, caiu vítima disso e foi condenado
à morte por blasfêmia – aliás, seu acusador também foi
executado pouco depois por ter causado a morte de Sócrates!
Péricles foi pessoalmente fazer a defesa de Aspásia em
seu processo, e ganhou. Entretanto, o golpe o atingiu tão
duramente que ele chorou; esta, dizem, foi a única vez em
que o viram se entregar a esta fraqueza, o que indica bem a
força de sua paixão.
Mas esse amor considerável, do qual o frio político não
tentava se esconder, ainda que atraindo para si as zombarias
da cidade, não explica tudo.
Dizia-se que Aspásia tinha um bordel e mantinha cortesãs
para os prazeres de seu esposo. Em primeiro lugar, isso
seria contrário a tudo o que sabemos sobre Péricles, que era
censurado justamente por não freqüentar os banquetes e
ter horror às orgias, ponto sobre o qual o atacaram, taxando
isto de orgulho… Podemos em seguida nos perguntar que
interesse teria tido a esposa do primeiro dignitário da cidade
em fazer comércio de prazeres fáceis, justo ela que, na
qualidade de estrangeira, já era alvo da rejeição de uma parte
da população…
Como interpretar, então, essa assertiva? Não devemos ver
nisso a mera condenação de uma horda inculta, hostil à idéia

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de que uma mulher atue na vida política e converse livremente
com os filósofos (com homens!)? E, conseqüentemente, não
está aí uma prova do caráter particularmente brilhante e vivo
de Aspásia?

Não nos esqueçamos que ela era de Mileto e que nesta


cidade da Iônia as mulheres tinham acesso ao saber, do qual
eram privadas na Atenas clássica. A notável cultura de Aspásia
não devia contribuir pouco ao seu charme. Mas a educação
liberal que ela havia recebido no Oriente sem dúvida não a
inclinava à prudência: ela se esquecia de ocultá-la, o que a teria
preservado de muitos ataques. Para encontrar uma equivalência
com uma situação atual, ela estava na mesma posição de uma
mulher ocidental liberada que fosse viver num estado islâmico
fundamentalista e continuasse a se comportar como em seu
país…

E quando, ainda por cima, salientarmos que seus amigos


não poupavam elogios a seu respeito e que se chamavam
Anaxágoras, Sófocles, Fídias, Protágoras… todos pessoas
eminentes e respeitadas, as mentes mais elevadas de seu
tempo, não haverá mais espaço para que se dê o menor crédito
aos seus detratores.

Um outro ponto particular permite entrever a personalidade


de Aspásia. Ela teve um filho com Péricles. Ora, esse último
já tinha dois filhos do seu casamento anterior, e é interessante
estabelecer um paralelo com o meio-irmão destes. Os primeiros
são, com efeito, citados por Platão, em seu Protágoras, que
ressalta o quanto a educação deles fora cuidadosa e chama a
atenção para o fato de que, no entanto, não foi suficiente para
fazer deles homens dignos de seu pai. Indivíduos medíocres,
causaram-lhe muitos desgostos.
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O filho que ele teve com Aspásia, ao contrário, era de caráter
totalmente diferente e honrou verdadeiramente sua família,
tornando-se tesoureiro do império, depois militar. Ele foi um
dos dez generais vitoriosos no combate de Arginuses, em 406
– fato que lhe valeu, inclusive, a pena capital, bem como a
cinco de seus pares, porque, tendo o combate acontecido no
mar, atenienses morreram sem receber sepultura, o que causou
a condenação da metade dos chefes julgados responsáveis.

O fato interessante nessa comparação é que os filhos de


uma mulher medíocre foram medíocres, enquanto o filho de
uma mulher brilhante foi brilhante, sem dúvida porque ela
soube inculcar-lhe valores diferentes dos que são transmitidos
por um ensinamento acadêmico. Através do sucesso de seu
filho, é o valor da própria Aspásia que se pode discernir.
Uma terceira mulher teve a honra de despertar a admiração
de Sócrates. Trata-se da poetisa Safo. E, dessa vez, nenhum
comentarista ousou pôr em dúvida a sinceridade dessa
fascinação, como aconteceu com Diotima e Aspásia, pois ela
era unanimemente reconhecida. O próprio Sólon declarou
que não queria morrer sem saber os seus versos de cor. Platão
a qualificou de “Décima Musa”, e Plutarco chamou-a “a
Sábia”. Estrabão, Aristóteles e muitos outros a colocaram no
nível máximo, entre os gênios…
Sua notoriedade era tão grande que as famílias da elite
de Lesbos, sua ilha natal, e de outras terras imploravam
para que ela recebesse suas filhas em sua casa. Com efeito,
Safo dava aulas numa espécie de escola ou pensionato,
onde ensinava sua arte. Parece que sua academia era mais
como um estabelecimento religioso do que uma escola, no
sentido que damos hoje a este termo, pois o objetivo final era

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transformar aquelas jovens em dignas servidoras dos cultos
locais, principalmente dos mistérios órficos. Elas aprendiam,
além da versificação, o canto (as poesias eram cantadas nessa
época) e a dança. Era-lhes proporcionada também uma boa
cultura geral, como o conhecimento dos escritores antigos,
pois Safo visava a elevação de seus semelhantes.

Sua obra foi considerável; ela figurou entre os maiores


expoentes da literatura grega até o fim da Antiguidade, e sua
glória parecia nunca poder se apagar.

Mas as instâncias cristãs viram em sua poesia a mais alta


expressão do paganismo e, por conta disto, obstinaram-se
em destrui-la. Conseguiram isso tão bem que todos os seus
escritos desapareceram. Só recentemente alguns manuscritos
antigos foram exumados no Egito, oferecendo algumas magras
passagens, à guisa de amostra de sua arte.

Sensualidade e graça caracterizam sua expressão. O estilo é


solto; o tom, ardente. A idéia que formamos dela, infelizmente,
é alterada pelo fato de nos faltar a música e as danças que
acompanhavam obrigatoriamente esses versos.

Resta a reputação. Universalmente elogiada, durante sua


vida e mesmo depois de sua morte, pela superioridade de
sua arte, Safo deixou à posteridade, estranhamente, apenas a
lembrança de seus amores homossexuais – que, todavia, não
tinham chocado seus contemporâneos. Ela fornece, assim, um
exemplo da flagrante injustiça da História, que teima muitas
vezes em reter das grandes personalidades femininas apenas
elementos marginais, em detrimento de sua real excelência.

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Com relação a isso, pode-se estabelecer um paralelo
instrutivo com Sócrates. É bem sabido que esse filósofo tão
universalmente admirado era homossexual, como confirmam
inúmeras passagens de Platão, não somente no Banquete,
como em geral se acredita, mas também em vários outros
diálogos – vide, entre outros, as primeiras linhas de Protágoras
ou de Alcebíades. E, no entanto, quem sonharia em reduzir
a personalidade de Sócrates às suas preferências sexuais? O
que se exalta – com toda razão! – é a superioridade de seu
pensamento, a originalidade de suas teorias.
Portanto, é mais do que tempo de dar também a Safo
a parte que lhe cabe, a de uma poetisa de gênio, mística,
professando uma sublimação do estado humano através do
amor e o desabrochar das almas piedosas.

Ela se dedicou a fazer desabrochar o talento daquelas


que lhes eram confiadas. No fragmento 68 da Edição Bergk,
ela pranteia a mulher cuja alma não foi enobrecida pelas
inspirações mais elevadas, pois “ela desaparecerá na sombra
obscura, no silêncio e no esquecimento”. É que Safo era
inteiramente voltada para a exaltação da feminidade. Algumas
de suas amigas deixaram seus traços: Erina, de quem nos
restam alguns fragmentos, Girino, Athis (sua amada),
Anaktoria, e outras… todas elas inspiraram amplamente a
poetisa. Mas, eram sobretudo as divindades femininas que
ela gostava de enaltecer: as Cáritas e as Musas, é claro, mas
também a Grande Mãe do Mundo, deusa do céu, por quem
ela tinha uma devoção toda especial, simples e confiante.

Por trás dessa predileção, será que devemos ver a escolha


de uma iniciada? A tradição reporta que Pitágoras, durante

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seu périplo iniciático, que o levou ao Egito e a Creta, passou
por Lesbos. Sem dúvida, isso não foi mero acaso…

Outras Personalidades
Agnódice foi a primeira médica conhecida. Enquanto
ateniense, ela não tinha direito a aprender medicina, estando,
aliás, na mesma categoria que os escravos. Cortando os cabelos
bem curtos, ela se disfarçou de homem para assistir aos cursos
de um certo Hierófilo. Quando tinha acumulado bastante
conhecimento, ela começou a tratar outras mulheres, que
aceitavam sua ajuda apesar de saberem qual o seu sexo; ela
as assistia principalmente nos partos.

Seu sucesso, entretanto, logo despertou a inveja dos


seus homólogos masculinos. Ela foi levada perante os
juizes da cidade, que, acreditando tratar-se de um homem,
condenaram-na por corrupção das mulheres. Então, ela
revelou sua verdadeira identidade, defendeu a causa das
mulheres que, por pudor, preferiam morrer a recorrer a um
médico homem, e conseguiu convencer todo mundo da razão
do seu proce­dimento. Graças a Agnódice, a lei ateniense foi
modificada e as mulheres passaram a poder estudar medicina.
Na mesma tradição, citamos também Aganice, que, em
aproximadamente 1880 a.C., foi o que se pode denominar
uma filósofa da natureza.
Ou, ainda, Aglaônica, igualmente filósofa, que é
considerada a primeira mulher astrônoma. Ela desenvolveu
a arte de predizer os eclipses, o que acabou fazendo com
que a apresentassem como uma feiticeira capaz de fazer

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desaparecer a Lua – algo que, na realidade, implica um
excelente conhecimento dos fenômenos siderais, mas que foi
traduzido pelas mentes supersticiosas da época como um ato
mágico.

Temista de Lampsaque ficou famosa por sua corres­


pondência com Epicuro, de quem era discípula. Foi chamada
de “Sólon feminino”. Ao que tudo indica, o próprio Epicuro a
escolhera como discípula. Escreveu-lhe: “Ficarei muito triste
se não vieres ver-me, e irei, creia-me, rápido como o vento,
aonde Temista me mandar ir”.
Hipárquia é uma filósofa cínica, que ousou se insurgir
contra os preconceitos do seu tempo. “Fiz mal em dedicar ao
estudo todo o tempo que, por meu sexo, deveria perder em
fiar?”, disse ela aos seus detratores.

Cleobulina, filha de Cleóbulo, um dos sete sábios da


Antiguidade, escrevia versos. Seu campo preferido eram os
enigmas, que ela elaborava de maneira muito espiritual.

Areta, que mencionamos mais acima, foi instruída por


seu pai, o brilhante Aristipo de Cirene. Após a morte desse
último, ela assumiu a liderança da escola cirenéia. Sobretudo,
ela instruiu seu filho, o jovem Aristipo matrodidacta, palavra
que significa “ensinado por sua mãe”.

Lastênia de Mantinéia e Axiotéia de Flionte foram


discípulas de Platão. Para assistir aos seus cursos, sem ser
incomodada por um meio bastante misógino, a segunda
vestia-se como homem.

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Pausânias se refere, acerca da história do santuário de
Delfos, a duas eruditas. Ele cita primeiro uma certa Femonoê,
que, diz ele, “foi a primeira profetiza e também a primeira a
dar os oráculos em versos hexâmetros”, o que fazia dela uma
poetisa. Evoca depois uma outra mulher, Voio, “autora de um
hino aos délficos”. Essas evocações inopinadas, nos meandros
de viagens, deixam supor que as mulheres cultas eram bem
mais numerosas do que se crê.

Até mesmo Cícero…

Este célebre personagem romano, bem conhecido dos


latinistas, atesta que uma certa Cerélia era filósofa. Suspeita-se
até que ele era apaixonado por ela. Ela pertencia à seita dos
Acadêmicos. Infelizmente, tudo o que se sabe a seu respeito é
que ela demonstrava um grande desejo de se instruir. Com toda
certeza, tinha personalidade forte, bastante temerária: fala-se
de um discurso que ela teria feito contra Antônio, na presença
de Cícero, que ficou impressionadíssimo. Ora, sabendo que
esse filósofo é considerado o mestre da eloqüência, pode-se
deduzir que Cerélia devia ser particularmente competente
neste campo.

Em torno a Plotino

As mulheres abraçaram a filosofia neoplatônica.

Foi o caso de Hipácia (370 – 410), filha do grande Teon


de Alexandria, que foi um dos mais eminentes sábios do seu
tempo, matemático e geômetra de renome. Ora, segundo

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a opinião dos seus próprios contemporâneos, Hipácia,
instruída por seu pai, suplantou-o na matemática, provando
e ampliando seus trabalhos. Empreendeu também diversos
estudos no campo da astronomia.
Melhor ainda, ela não se contentou apenas com as
pesquisas científicas, mas bem cedo se interessou pela mística
neopla­tônica, desenvolvida por Plotino um século antes.
Discípula de Amônios, de tal forma excedeu, em saber e
em sabedoria, os pensadores do seu tempo – e até mesmo,
segundo diversas provas, alguns dos que a precederam –
que obteve uma cadeira de matemática e filosofia na escola
platônica de Alexandria. Ali, ela desenvolveu as idéias dos
seus antecessores, Plotino e Jâmblico, dando-lhes, porém,
uma dimensão científica e metódica que em pouco tempo
atraiu para ela grande reputação. Seus cursos conheceram
um sucesso sem precedente.

Para muitos, ela é a verdadeira fundadora da famosa


escola de Alexandria, a instituição de maior renome naqueles
tempos, a qual estava prometida, por suas bases sólidas e seu
ensinamento de qualidade, a um belo futuro de vários séculos.
Os discípulos de Hipácia eram numerosos e entusiastas. Ela
lhes ensinava todas as ciências, atraindo muitos alunos não
somente por seu saber e pela profundidade de suas reflexões,
mas igualmente por uma personalidade excepcionalmente
brilhante. Muito bonita, reconheciam-lhe grande pureza de
costumes e uma autoridade impressionante, embora mesclada
com extrema modéstia.

Não nos restou nenhum dos seus escritos, apenas alguns


títulos de grandes tratados e obras, mas, como aconteceu
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com Pitágoras, podemos captar aspectos de seu caráter
graças ao testemunho dos que conviveram com ela. As
cartas de Sinésio de Cirene, em particular, que foi seu
discípulo apesar de terem a mesma idade, transbordam de
respeito e afeição por ela.

Ora, Sinésio não a admiraria a troco de nada. Quando se


sabe que ele era um homem de autoridade reconhecida, que
não temia dar lições de moral ao imperador e que viu ser-lhe
confiada a organização militar das fronteiras, compreendemos
que ele não devia votar seu entusiasmo a qualquer um.
Quando em 410, embora fosse laico, foi-lhe proposto um cargo
de bispo – função social das mais importantes na época – ele
impôs condições: queria continuar casado e não renunciar às
doutrinas da preexistência da alma e da eternidade do mundo,
que lhes tinham sido ensinadas por Hipácia, as quais eram,
porém, contrárias aos dogmas cristãos.

Em vista desses diversos elementos, pode-se realmente


considerar Sinésio como uma testemunha digna de credi­
bilidade no que concerne Hipácia, e aderir sem reservas à
opinião que ele tem dela. Numa carta, ele a chama de sua
mãe, sua irmã, sua doutora, sua benfeitora, dizendo que ela
merece títulos mais respeitáveis ainda, caso existam. E escreve:
“Mesmo sendo verdade que os mortos perdem a lembrança
uns dos outros, ainda assim, que eu possa conservar a memória
de Hipácia, por quem tenho tanta amizade”.
O que é o mesmo dizer que ele admitia ter sido marcado
intensamente pela personalidade dessa iniciada, e de um
modo tão profundo que sua influência poderia ultrapassar os
limites de uma encarnação, como algo apreendido pela alma
e transcendente ao plano cerebral.
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Em outras cartas, ele sempre se dirige a ela como a um filósofo,
qualificativo que, na época, revestia-se de um valor bem mais
forte do que nos dias atuais: o filósofo, com efeito, não era um
mero intelectual ou um estudioso; era um reconhecido mestre
em sabedoria e conhecimento, e bem poucos faziam jus a este
título.
Sinésio nos informa também que as aptidões de Hipácia
iam além do quadro dos conhecimentos especulativos. De
fato, certa feita pediu-lhe, numa carta, que ela construísse
para ele um “hidroscópio”, instrumento para determinar a
pureza da água; numa outra, solicitou-lhe um astrolábio,
espécie de planisfério. Esses detalhes provam que o talento
dessa mulher invulgar exercia-se em todos os níveis, tanto nos
da teoria e da pedagogia, como no das técnicas e da realização
científica. Tudo isso permite fazer ressurgir perante nossa
mente maravilhada a imagem de uma espécie de Aristóteles
feminino – pela longevidade da escola que ela fundou, mas
não pela defesa de teses, bem menos místicas entre os gregos!
– mesclada com um Leonardo da Vinci antecipado…

Ela desfrutava, portanto, da admiração geral e respeitosa


de todos, pagãos e cristãos. Sem dúvida, exercia também certa
influência política, o que acabou atraindo para ela a inveja de
um pequeno grupo de mentes medíocres. Seu fim foi muito
triste. Tendo surgido uma dissensão entre o arcebispo Cirilo de
Alexandria e o prefeito desta cidade, que era um grande amigo
de Hipácia, atribuiu-se a esta última a responsabilidade disto.
Um dia, um pequeno grupo de fanáticos cristãos a seguiram e
a agarraram enquanto ela passeava. Ela foi arrastada até uma
igreja, espancada até a morte, decapitada e queimada!

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Entre as outras platônicas dessa época, podemos citar
aquelas que hoje, infelizmente, não são mais que nomes sem
rosto: Gemina, mãe e filha (discípulas de Plotino), Anficleia
(nora de Jâmblico), ou, ainda, numa época mais antiga, Arria,
a quem Diógenes Laércio dedicou sua História Filosófica,
o que constitui uma referência de primeira ordem… Essas
mulheres, freqüentemente citadas pelos autores do seu tempo,
devem ter sido todas admiráveis. Mas por falta de elementos
mais exatos, ficamos limitados a imaginar como deviam ser.
Sua existência permite, todavia, afirmar que a parte tomada
pelas mulheres na filosofia era importante.

Assim, pesquisando com obstinação, percebemos que


na Antiguidade muitas mulheres se distinguiram por sua
sabedoria e sua brilhante cultura. Na realidade, e não tenhamos
dúvida quanto a isto, elas foram bem mais numerosas que as
poucas personalidades enumeradas aqui, mas a amostra é
suficiente para nos darmos conta de sua ação positiva.

Observamos que algumas delas iluminaram verdadei­ramente


sua época, como supernovas em céus escuros. Quanto a isso,
Ahmés-Nefertari, Theano, Safo, Pan Chao e Hipácia figuram
entre as mais eminentes representantes da humanidade.

Com Hipácia, podemos mesmo dizer que encontramos a


Exceção: existem de fato poucos seres, homens ou mulheres,
que manifestaram tanta inteligência, gênio inventivo, saber e,
ao mesmo tempo, um grau tão superior de nobreza. Por essa
razão, ela é, sem dúvida, inigualável em sua perfeição. E, no
entanto, que livro de História a menciona?

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