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Texto 03 - SECRETO, Verônica. A Ocupação Dos Espaços Vazios PDF
Texto 03 - SECRETO, Verônica. A Ocupação Dos Espaços Vazios PDF
no governo Vargas:
do “Discurso do rio Amazonas” à saga
dos soldados da borracha
María Verónica Secr eto
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Introdução
Sempre que pensamos no que foi chamado de “era Vargas” vêm a nossa
memória imagens urbanas, de trabalhadores industriais, de operários da cons-
trução civil. Parece que o Brasil deixou de ser agrário em 1930. É verdade que o
processo de industrialização se aprofundou e o de urbanização se acelerou de for-
ma inédita, mas muitas pessoas continuaram a trabalhar e morar no campo. O
que aconteceu com essas pessoas? Todas migraram para os centros urbanos? Evi-
dentemente, não.
O governo Vargas tinha planos para os habitantes do campo. O princi-
pal: que eles ficassem onde estavam. Os trabalhadores rurais seriam mantidos no
seu “habitat” e as leis trabalhistas não os atingiriam senão num futuro que não
podia ser determinado.
Considerou-se que existia um “fluxo natural” das correntes de povoa-
mento que devia ter o sentido litoral-sertão. O contrário – a migração dos serta-
nejos para o litoral – era considerado no discurso e nas políticas oficiais um “erro
histórico”. Para fixar o trabalhador rural nos sertões de Goiás e Mato Grosso, o
governo Vargas concebeu um amplo plano chamado de “Marcha para Oeste”.
Mas a idéia de marchar para o interior logo se estendeu à região amazônica, que
também ingressou no “imaginário oficial” entre os territórios internos a serem
ocupados pelos homens do sertão, preferencialmente pelos nordestinos.
Este artigo tem por objetivo descrever e analisar o processo que se esten-
de desde o momento em que é anunciada a política de colonização da Amazônia,
dentro das políticas de ocupação dos “espaços vazios” do governo Vargas, até a
mudança desta política, quando depois dos Acordos de Washington, no contexto
da Segunda Guerra Mundial, o Brasil se compromete a produzir mais borracha
para os aliados, abandonando as intenções “colonizadoras” e adotando uma prá-
tica de encaminhamento de trabalhadores sem suas famílias. Essa mudança de
atitude será observada através do discurso oficial e da propaganda de recruta-
mento de trabalhadores, conhecidos como soldados da borracha, para a Amazô-
nia. Finalizamos com uma breve análise sobre a apropriação que os trabalhado-
res e suas mulheres fizeram do discurso oficial quando tiveram que reclamar do
abandono do Estado.
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a difusão das idéias geradas por essa elite. Em Cultura Política escrevia esta últi-
ma, composta por um seleto grupo de intelectuais divididos em dois grupos: a
nata do Estado Novo e um conjunto heterogêneo de figuras que cobriam um am-
plo leque ideológico, que ia de Gilberto Freyre a Graciliano Ramos.
Em 1941 Péricles Melo Carvalho (1941: 15-18), diretor de seção do De-
partamento Nacional de Imigração (DNI), dizia:
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pelato, 1998: 173-191). Silvia Goulart analisou o conteúdo das matérias publica-
das pelo DEIP de São Paulo na imprensa local em seu estudo de 5.799 recortes de
jornais anexados aos processos do DEIP. Esses processos eram constituídos por
correspondência de empresas editoriais reclamando o pagamento pela publica-
ção de materiais oficiais. Da tabela temática que ela elabora a partir das matérias
pagas entre 1941 e 1944, depreende-se que o tema do trabalho teve a mesma mé-
dia de 2,2% (Goulart, 1990).
Segundo Maria Helena Capelato, o trabalhador que aparecia nos carta-
zes produzidos pelo DIP era representado como força de trabalho. A organização
racional do trabalho era representada pelo binômio trabalhador-máquina. Nesse
binômio, a máquina ofuscava o trabalhador. Capelato explica a inexpressiva re-
presentação do operário na iconografia varguista pela negação estadonovista de
identidade de classe, substituída pela identidade nacional. No entanto, na pro-
paganda destinada ao recrutamento de nordestinos para a Amazônia, o
homem-trabalhador foi a figura central na iconografia.
Um dos conceitos-símbolo utilizados pelo Estado Novo foi a bandeira e
o bandeirismo, aos quais nos referimos. O regime também utilizou-se de outros
conceitos de menor sofisticação teórica, tais como: a simplicidade e a autentici-
dade da população sertaneja; o seu destino de desbravadora do Norte e a sua pre-
disposição ao sacrifício; a ocupação efetiva do território brasileiro como ações de
patriotismo; a seca como situação extrema e desumanizante. E, como contrapon-
to a esse último aspecto, a Amazônia era então apresentada como terra de possi-
bilidades para aqueles que não tinham opção alguma.
A propaganda para mobilizar os trabalhadores para a Amazônia teve
duas dimensões: uma nacional e outra local. Na dimensão nacional, a batalha
pela borracha se encaixava no programa de ocupação e colonização dos “espaços
vazios” e nos esforços de guerra do Brasil. Na esfera local, a emigração de nordes-
tinos para a Amazônia era uma questão que contava com uma longa tradição e al-
guns debates. Um dos destinos mais procurados pelos nordestinos nas conjuntu-
ras de seca, e não apenas nelas, era o Norte, especialmente os estados do Pará e do
Amazonas. A propaganda para recrutar trabalhadores explorou alguns elemen-
tos do imaginário, dos desejos e das emoções, por meio de símbolos e de um dis-
curso direto e apelativo (Secreto, 2003).
O historiador italiano Carlo Ginzburg (2001) analisou um cartaz famo-
so, que todos já vimos alguma vez em sua versão original, ou nas imitações que
correram o mundo. Durante a Primeira Guerra Mundial, Lord Kitchner, secre-
tário de Guerra de Sua Majestade britânica, realizou um chamado às armas me-
diante um cartaz que teve como resposta um alistamento voluntário sem prece-
dentes. No cartaz aparecia Lord Kitchner em uma perspectiva que deixava o seu
dedo gigante num primeiro plano apontando para o espectador. Trata-se, segun-
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uma faixa que diz: “Trabalhador também tem o seu lugar no Estado Novo”
(FGV, 1983). Pela metáfora espacial, o Brasil em que cada um tinha o seu lugar se
contrapunha àquele do passado em que nem todos o tinham, o Brasil de inclusão
se opunha, na propaganda, ao Brasil da exclusão. O Brasil da unidade era uma so-
matória de lugares. O lugar do sertanejo era no sertão.
Outra das peças criadas por Chabloz é um cartaz colorido, desenhado a
partir de uma perspectiva muito particular: do interior da casa do sertanejo para
fora. Enquanto grupos de trabalhadores vão para a Amazônia, “para a fartura”,
quem observa o cartaz pode ser o “caboclo passivo” da cena ilustrada por Chabloz:
um homem forte encostado no umbral da porta que vê passar os caminhões. É para
ambos a frase: “Vai também para a Amazônia protegido pelo SEMTA”. O especta-
dor da representação de Chabloz é um homem de pés no chão, que está contem-
plando, ou esperando, e em condições de ser um trabalhador recrutado e “protegi-
do” pelo SEMTA. É um caboclo desenhado com traços arredondados, de membros
grandes, como os trabalhadores de Portinari de uma década antes.
Uma imagem idílica da floresta amazônica começou a surgir dos carta-
zes de Chabloz. Num de seus cartazes, “Vida nova na Amazônia”, a exploração de
borracha aparece como uma atividade de “fundo de quintal”. Toda a cena é idíli-
ca e indica fartura: casa, lenha, porcos, galinhas, boi e, para completar o quadro,
uma criança brincando e uma mulher pendurando roupas brancas no varal. Até
mesmo a densa floresta amazônica não é tão fechada e deixa passar alguns raios
de sol. A casa está cercada e o homem está tirando látex de uma seringa vizinha
ao cercado. Segundo Samuel Benchimol (1945), o que a monocultura fez em ou-
tras regiões do Brasil, o extrativismo fez na Amazônia: “Seringa e roça, portanto,
não rimam bem… Seringa rima bem é com béri-béri, com charque e farinha,
com pirarucu seco e feijão. Não combina com batatas, legumes, galinhas, ovos,
leite”. Nessa ilustração de Chabloz, o extrativismo é ilusoriamente apresentado
como uma atividade complementar na economia camponesa. Salientemos que o
público a que era dirigido o cartaz era sobretudo camponês, para o qual a agricul-
tura é uma parte importante do cotidiano.
O trabalhador recrutado recebia um enxoval composto por uma calça de
mescla azul, uma blusa de morim branco, um chapéu de palha, um par de alpar-
catas de rabicho, uma caneca, um prato fundo, um talher que era colher e garfo,
uma rede e um saco de estopa. Esse enxoval foi desenhado por Chabloz e anunci-
ado com as seguintes palavras: “Equipamento de viagem fornecido pelo SEMTA”.
Este desenho correspondia à cláusula segunda do contrato de encaminhamento.
As cláusulas gerais do “Contrato padrão de trabalho nos seringais” também me-
receram o desenho de Chabloz. Estas ilustrações serviam para tornar conhecido
o conteúdo do contrato numa sociedade em que grande parte da população era
analfabeta.
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Por isso o recém-chegado diz coisas como: “Não gosto desta terra feia e
encharcada”, ou “gosto do enxuto”.
Não podemos avaliar individualmente o efeito de cada peça de propa-
ganda. Mas podemos pensar no efeito que certos slogans tiveram a partir das re-
clamações realizadas pelas mulheres dos soldados da borracha depois que foi
cortada a assistência às famílias em junho de 1944. Os milhares de trabalhadores
nordestinos recrutados desde inícios de 1943 para trabalhar na região amazônica
na extração da borracha assinaram um contrato de “encaminhamento”, no qual
podiam optar – e a grande maioria optou – pela assistência que o SEMTA oferecia
para suas famílias que ficavam no Nordeste.5 Muitas mulheres (e filhos) desses
trabalhadores permaneceram em seus lugares de origem ou nas hospedarias im-
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Notas
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Resumo
Este artigo analisa dois momentos e duas políticas de ocupação dos “espaços
vazios” do governo Vargas. O primeiro momento é quando são anunciadas a
marcha para Oeste e a incorporação da Amazônia numa política de
colonização. O segundo, quando, na conjuntura da guerra e respondendo aos
compromissos assumidos nos Acordos de Washington, se implementa uma
política de mobilização de trabalhadores para a extração da borracha, produto
estratégico para a guerra. O artigo explora as representações dos espaços
geográfico e social dos sertões e da Amazônia nas criações de Chabloz e,
finalmente, avalia os efeitos da propaganda, através da utilização de seus
slogans, nas reclamações que as esposas dos trabalhadores fizeram chegar a
Vargas.
Palavras-chave: fronteira amazônica, soldados da borracha, “espaços vazios”,
migração, propaganda, trabalho/trabalhadores
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Abstract
This article analyses two moments and two policies for the occupation of the
“empty land” during president Vargas administration. The first moment was
when government announced the march to the West and the incorporation of
Amazonia in a policy of colonization. The second was when, in the context of
World War II and responding to the commitments of the Washington
Agreement, government implemented a policy of mobilization of workers for
the rubber extraction, since rubber was a strategic product for the war. The
article explores the representation of the geographic and social spaces of the
“sertões” e the Amazonia in Chabloz creations and evaluates the effects of
propaganda, through the use of slogans, in the claims that the workers’ wives
directed to president Vargas.
Key words: Amazonian frontier, rubber soldiers, “empty land”, migration,
propaganda, work/workers
Résumé
Cet article analyse deux moments et deux politiques d’occupation des
“espaces vides” pendant le gouvernement Vargas. Le premier moment a été
quand le gouvernement a annoncé la marche vers ouest et l’incorporation de
l’Amazonie à la politique de colonisation. Le second, quand, dans la
conjoncture de la II Guerre Mondiale et en répondant aux compromis des
Accords de Washington, a été mise en oeuvre une politique de mobilisation
de travailleurs pour l’extraction du caoutchouc, produit stratégique pour la
guerre. L’article explore la représentation des espaces géographiques et
sociaux des “sertões” et de l’Amazonie dans les créations de Chabloz, et
finalement examine les effets de la propagande à travers l’utilisation de ses
slogans dans les réclamations que les femmes des travailleurs ont adressé au
président Vargas.
Mots-clés: frontière amazonique, soldats du caoutchouc, “espaces vides”,
migration, propagande, travailleurs/travail
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