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PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
FACULDADE DE DIREITO
Niterói
2016
UNIVERSDADE FEDERAL FLUMINENSE
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
FACULDADE DE DIREITO
Niterói
2016
Universidade Federal Fluminense
Superintendência de Documentação
Biblioteca da Faculdade de Direito
CDD 341.5
CECILIA ROXO BRUNO
BANCA EXAMINADORA
Inicialmente, gostaria de agradecer a Deus, Senhor da minha vida, que, por toda a minha
trajetória acadêmica, abriu portas, guiou meus caminhos e me capacitou mesmo quando eu
não me considerava capaz. Tenho certeza de que se hoje estou completando esta etapa, isso
se deve à maravilhosa graça e à misericórdia divina;
Agradeço à minha super mãe Maria do Rosário, mulher sensível e dedicada, que sempre
me encorajou a superar meus limites e medos. Por sempre acreditar na minha capacidade
de romper barreiras e, com muito amor, ter me ajudado a realizar este trabalho. Minha mãe
é um exemplo de mulher empoderada, em quem me espelho para alcançar meus sonhos;
Ao meu amado pai Sebastião Bruno, melhor amigo, incansavelmente dedicado às filhas e
amostra viva do amor de Deus como pai. Guardarei eternamente em meu coração todos os
seus ensinamentos e lições de sabedoria. Agradeço por ser sempre meu porto seguro e por
se fazer presente em todos os aspectos da minha vida desde a infância;
À minha linda irmã Raquel, companheira de aventuras, verdadeira amiga com quem tenho
o privilégio de conviver. Por ser um exemplo de maturidade, autenticidade e pureza. Por
tantas vezes me acolher com o espírito cuidadoso e protetor em momentos difíceis, como
se fosse a mais velha entre nós. Minha doce "sá", você me inspira a viver!
Aos meus adoráveis amigos, sempre bem humorados, amorosos e fiéis. À Mayara, Larissa,
Alexia, Anna Gabi e Paulla, por compartilharem comigo as alegrias e momentos de tristeza
em todos esses anos de graduação. Ao Edesio, Gabriella, Sharon, Susane e Wisrah por me
apoiarem, ouvirem e acreditarem na minha competência, com todo o carinho e lealdade;
Por fim, agradeço à minha orientadora Profa. Dra. Cristiana Veras, por me auxiliar neste
trabalho, me incentivando a realizar a pesquisa de campo e, por conseguinte, ensinando-me
a fazê-la corretamente, de modo a enriquecer este estudo.
"Há pessoas que nos roubam...
Há pessoas que nos devolvem."
The principle of equality is one of the essential assumptions to the realization of the
democratic rule of law, without which it is not possible to develop a fully established
society on human rights. Therefore, we propose this work in order to demonstrate the
applicability of the protection mechanisms for women in situations of violence, introduced
by Maria da Penha Law, problematising gender equality in Brazil. The focus of this study
is on the constitutionality and efficiency of the 11.340/2006 Law, as well as the need to
deconstruct the patriarchal mentality. In this sense, as a research methodology, we have
made an interview in the "Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher Vítima de Violência
(NUDEM)", an agency that belongs to the Public Defender's Office of Rio de Janeiro,
where we analyzed the effectiveness of the women's protection system, built by Maria da
Penha Law, from the point of view of the core coordinator, Arlanza Maria Rodrigues
Rebello. The study results reveal the need for women's empowerment, the deconstruction
of sexist imagery and multidisciplinary care in women.
INTRODUÇÃO
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem por objetivo analisar os institutos legais introduzidos pela Lei Maria
da Penha, bem como sua aplicabilidade e eficácia. Para tanto, utilizaremos referenciais
teóricos, realizando, ao fim, como metodologia desse trabalho, uma entrevista no Núcleo de
Defesa dos Direitos da Mulher Vítima de Violência (NUDEM) da Defensoria Pública do Rio
de Janeiro.
A Lei Maria da Penha surge em 2006 como instrumento legal apropriado para o
enfrentamento da violência doméstica, diante de uma demanda social urgente. Vivemos em
uma sociedade marcada pela cultura patriarcal de "objetificação", pela qual subsiste o ideário
de que a mulher está subjugada ao homem, excluindo sua condição de sujeito de direitos. Esta
construção machista tem como um de seus piores desdobramentos a violência de gênero, que
atinge mulheres dos mais diversos grupos sociais, seja fisicamente, psicologicamente,
sexualmente, patrimonialmente ou moralmente.
Neste sentido, ainda que a Constituição da República preveja a igualdade como um de
seus princípios fundamentais, reconhecemos a importância da elaboração de normas
específicas e políticas públicas voltadas à redução das desigualdades de fato, de modo a
alcançar uma sociedade mais justa e equilibrada.
Perante o panorama destacado, este estudo justifica-se pela necessidade contínua de
informações que possam demonstrar não só o teor dos mecanismos de proteção da lei, como
também a execução e efetividade destas inovações normativas, que compõem o sistema de
atendimento à mulher vítima.
Para isso, partiremos do pressuposto de constitucionalidade da Lei Maria da Penha, à
luz dos princípios da igualdade material, isonomia e dignidade da pessoa humana, pelos quais
o estatuto pode ser considerado como ação afirmativa de proteção específica das mulheres e
instrumento capaz de contribuir para a superação da desigualdade de gênero.
Desse modo, esperamos colaborar para a desconstrução do senso comum de
naturalização das práticas de violência e para o desenvolvimento de uma perspectiva solidária
em relação à mulher vítima, assimilando a complexidade desta forma de violação. Além
disso, esperamos encorajar o sentimento de empoderamento feminino, o diálogo e as
discussões acerca da violência doméstica, de maneira a promover a não aceitação e a
identificação de relações abusivas.
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Sob tais fundamentos, como metodologia deste trabalho, realizamos uma pesquisa de
campo, entrevistando a defensora pública Arlanza Maria Rodrigues Rebello, coordenadora do
Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher Vítima de Violência (NUDEM), situado na cidade
do Rio de Janeiro. O órgão é responsável pelo atendimento jurídico às mulheres
hipossuficientes em situação de violência, bem como pela difusão de iniciativas voltadas ao
tema. A intenção é compreender como a Lei Maria da Penha vem sendo aplicada na prática e
a efetividade de seus mecanismos. Assim, levamos em conta os relatos e a experiência da
entrevistada, considerando a relevância do ponto de vista de quem atua na esfera jurídica se
utilizando da Lei Maria da Penha em defesa das mulheres vítimas.
Esperamos com esta pesquisa, abrir caminhos para futuros estudos engajados no
aprimoramento das práticas de enfrentamento da violência doméstica e superação da
desigualdade de gênero, sempre através do diálogo e da informação, para nos tornarmos
agentes capazes de promover a construção de uma sociedade livre desta problemática.
Para tanto, o presente estudo segue em quatro capítulos numerados de um a quatro.
No capítulo um, damos destaque ao conceito de gênero, para, a partir de então,
introduzir o panorama histórico no qual se desenvolveram as lutas feministas e o processo de
constitucionalização no Brasil. Também demonstramos a constitucionalidade da Lei Maria da
Penha, diante do princípio da igualdade material, observando que a lei procura transformar
um contexto social de real desproporção em relação às mulheres.
No capítulo dois, apresentamos o caso concreto de Maria da Penha Fernandes, bem
como o desencadeamento do processo de elaboração da Lei 11.340 de 2006, ressaltando a
importância do movimento feminista. Além disso, tratamos das inovações e mecanismos de
proteção introduzidos pela Lei Maria da Penha no ordenamento jurídico brasileiro,
analisando, outrossim, o tratamento dado ao homem pelo estatuto.
Finalmente, no capítulo três, trazemos o resultado da entrevista realizada no NUDEM,
descrevendo as observações detectadas em nossa conversa, de modo a enriquecer o presente
trabalho através de uma perspectiva prática sobre os institutos legais fornecidos pela Lei
Maria da Penha.
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1
“O Protocolo Facultativo da CEDAW foi adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1999. Até
fevereiro de 2002, 73 países já o haviam assinado – dentre eles o Brasil – e 31 países já o haviam ratificado. O
Governo brasileiro assinou o Protocolo Facultativo à CEDAW em março de 2001 e, em 2002, ratificou-o”. In:
PIMENTEL, Silvia. Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher.
Cedaw 1979, pp. 17-18. Disponível em: http://compromissoeatitude.org.br/wp-
content/uploads/2012/08/SPM2006_CEDAW_portugues.pdf.
12
2
V. Mario Schmidt, Nova História Crítica, 2008, p. 673: "Acontece que 1968 incorporou uma nova visão
política. Até então a esquerda privilegiava a luta econômica contra a exploração capitalista e restringia o objetivo
político ao combate para destruir o Estado burguês. Pois 1968 mostrou que a opressão capitalista também
acontecia em outros pontos, esmagando as individualidades e provocando angústia. Temas como ecologia, os
direitos da mulher, dos velhos e dos homossexuais, a loucura, as necessidades existenciais e a realização do ser
humano passaram a ser enfocados com toda a atenção e sob perspectivas libertárias".
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diretrizes para promover os direitos das mulheres. Sobre o marco da Constituição de 1988,
Barroso indica que:
Veja-se que não só a Lei Maria da Penha como outras normas de discriminação
positiva possuem fundamento no conceito de igualdade material, já que buscam a redução das
desigualdades de fato, aproximando o texto constitucional da realidade social. O caráter
programático da Constituição brasileira não exclui a eficácia dos dispositivos constitucionais,
mas pressupõe a elaboração de projetos e normas que reduzam essas lacunas de desigualdade,
o que também afasta a ideia de utopia do conteúdo constitucional.
Apesar disso, são tímidas as ações positivas no sentido de promover a igualdade de
gênero, uma vez que subsiste o receio de se ferir o princípio da igualdade formal. Este
raciocínio faz com que se perpetue um status de disparidade que já é naturalmente acentuado
em nossa sociedade (DIAS, 1997). Ademais, a incorporação de dispositivos legais que
promovem a proteção da mulher possui respaldo nos tratados e convenções internacionais que
consagram as ações afirmativas de gênero como não discriminatórias, posto que essas ações
possuem a finalidade de sanar situações de desigualdade.
Ainda que aos poucos, as iniciativas de promoção de igualdade de gênero e de direitos
das mulheres vêm se tornando mais frequentes no universo político e social, muito em virtude
do amparo legal conferido pela Constituição ao estabelecer direitos subjetivos às mulheres,
perante os quais não é admissível comportamento antagônico.
O Brasil teve participação na Plataforma de Ações aprovada na IV Conferência
Mundial sobre a Mulher, em Pequim, no ano de 1995, onde foi legitimado o compromisso de
promover ações estratégicas e políticas públicas concretas de redução de desigualdade entre
homens e mulheres, com foco e incentivo ao empoderamento feminino.
Outrossim, o governo brasileiro vem lançando desde 2003 o Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres, realizado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, que traça
planejamentos e metas específicas para a redução das desigualdades de gênero nas mais
diversas áreas, tendo como fundamento o princípio da transversalidade, conforme destacado:
Sabemos que as práticas patriarcais seculares enraizadas nas relações sociais e nas
diversas institucionalidades do Estado devem ser combatidas no cotidiano de
maneira permanente. A busca pela igualdade e o enfrentamento das desigualdades
de gênero fazem parte da história social brasileira, história esta construída em
diferentes espaços e lugares com a participação de diferentes mulheres, com maior e
menor visibilidade e presença política. Há muito as mulheres vêm questionando nos
espaços públicos e privados a rígida divisão sexual do trabalho; com isto, vêm
contribuindo para mudar as relações de poder historicamente desiguais entre
mulheres e homens. Nesse sentido, gerações de mulheres têm se comprometido em
construir um mundo igual e justo, buscando igualdade entre mulheres e homens,
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Cabe ressaltar que o contexto de desigualdade no qual a mulher está inserida, não é
universal ou homogêneo, porém dinâmico e heterogêneo, variando de acordo com o
enquadramento que diferentes grupos de mulheres possuem na sociedade (TREVISO, 2008).
Sendo assim, mesmo que a desigualdade afete os mais diversos coletivos de mulheres em
áreas distintas, a intensidade da opressão que recai sobre cada mulher aumenta conforme sua
condição de adquirir bens materiais e imateriais para obter uma vida digna. Ou seja, a
desigualdade se intensifica à medida que a mulher se encontra em situação mais pobre e
desfavorecida (TREVISO, op. cit.).
A distinção entre igualdade formal e igualdade material tem como função precípua
demonstrar que a discriminação positiva, no que concerne à realização de políticas públicas
de gênero e à elaboração de normas protetivas, não infringe o princípio da isonomia, mas
possui caráter compensatório em face de uma demanda socialmente autêntica. Sobre o
princípio da igualdade, Dias afirma que:
O que se deve atentar não é à igualdade perante a lei, mas o direito à igualdade
mediante a eliminação das desigualdades, o que impõe que se estabeleçam
diferenciações específicas como única forma de dar efetividade ao preceito
isonômico consagrado na Constituição. (DIAS, 1997, p. 04)
A Lei Maria da Penha se destaca como ação afirmativa, uma vez que traz novos
mecanismos para a erradicação da cultura de violência contra a mulher, o que era – e ainda é –
uma demanda urgente.
O contexto social brasileiro é marcado por uma cultura secular de dominação machista
que tem a violência doméstica como um de seus efeitos. Reconhecer a existência de uma
sociedade desigual justifica a realização de políticas públicas, dentre elas a própria criação da
Lei Maria da Penha, no sentido de promover os direitos fundamentais femininos para que a
dignidade humana atinja o mesmo patamar entre homens e mulheres (ÁVILA, 2007).
Além disso, a própria Constituição em seu artigo 226, parágrafo 8º, estabelece que o
Estado deve assegurar a assistência à família, coibindo a violência no âmbito de suas relações.
Este dispositivo não possui caráter meramente abstrato, mas é efetivo e vincula a norma infra-
constitucional (ÁVILA, op. cit.), sendo certo que o ordenamento jurídico deve ser
interpretado de modo que os direitos fundamentais de todos os cidadãos sejam ampliados.
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acabou surtindo efeitos nos discursos locais. No Brasil, especialmente, ele foi incorporado à
luta contra a impunidade nos casos de assassinato contra mulheres, assim como na busca por
leis de proteção aos direitos humanos da mulher, movimento este que foi impulsionado e
liderado por organizações não governamentais (SANTOS, 2008).
Como já mencionado no capítulo anterior, o Brasil foi signatário de tratados
internacionais que ratificavam o compromisso de erradicar a violência contra a mulher e
promover internamente os direitos humanos. Assim, cabe destacar os seguintes documentos
que foram incorporados ao sistema jurídico nacional: a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ratificada pelo Brasil em 1995; a
Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, promovida pela ONU em
1995 e assinada pelo Brasil no mesmo ano; o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, adotado pela ONU em
1999, assinado pelo governo brasileiro em 2001 e ratificado pelo Congresso Nacional em
2002; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (CEDAW), adotada pela ONU em 1979 e assinada com reservas pelo Brasil em
1983. Em 1984, a CEDAW foi ratificada pelo Congresso Nacional, mantendo-se as reservas
do poder executivo. Apenas em 1994, o governo brasileiro retirou as reservas e ratificou
integralmente a Convenção (FREIRE, 2006). Em 1992, o Brasil ratificou, ainda, a Convenção
Americana dos Direitos Humanos, que trouxe maior possibilidade de denúncia em âmbito
nacional nos casos de violação aos direitos humanos (SANTOS, op. cit.).
A inserção de tais tratados e convenções no ordenamento jurídico brasileiro trouxe
nova perspectiva de mobilização às organizações feministas e em prol dos direitos humanos,
que agora poderiam recorrer às instâncias internacionais diante da inércia do governo
brasileiro. Além disso, a discussão sobre violência de gênero no plano internacional e a
produção de documentos que reforçavam o objetivo de combater a violência contra a mulher,
foram o ponta pé inicial na mudança de uma mentalidade culturalmente enraizada segundo a
qual a mulher deve ocupar uma posição de subordinação em relação ao homem.
O fundamento legal dos tratados e convenções internacionais de proteção à mulher,
fortaleceu os movimentos feministas que reivindicavam uma resposta mais afetiva do governo
brasileiro no que diz respeito ao combate da violência contra a mulher. Sobre a maior
movimentação das organizações feministas não-governamentais após a incorporação dos
referidos instrumentos legais, Santos reforça que:
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Esta abertura para a discussão acerca da violência contra a mulher, fez com que na
segunda metade da década de 1990 fossem enviados dois casos brasileiros à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): o caso Maria Lepoldi, que foi assassinada por
seu ex-namorado (1996), e o caso Maria da Penha, que sofreu dupla tentativa de homicídio
por parte de seu marido (1998).
Em ambos os casos foi verificada a falta de compromisso do Estado brasileiro no
combate à violência doméstica. Ademais, a repercussão internacional expôs as fraquezas e
necessidade de transformação radical do sistema criminal brasileiro, que era marcado pela
falta de seriedade e morosidade em relação aos processos que envolviam situações de
violência contra a mulher (SANTOS, 2008).
O caso de Maria da Penha ganhou maior destaque no cenário nacional e foi vinculado
à Lei 11.340 de 2006, merecendo ser relatado. Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de
duas tentativas de homicídio realizadas por seu marido, Marco Antônio Heridia Viveros, em
maio e junho de 1983. A primeira tentativa ocorreu quando Viveiros atirou contra Maria da
Penha enquanto ela dormia. Por consequência desta agressão, a vítima precisou se submeter a
diversos procedimentos cirúrgicos, sofrendo, ao final, paraplegia irreversível, além dos
traumas físicos e psicológicos. A segunda tentativa de assassinato ocorreu duas semanas após
Maria da Penha ter retornado do hospital, quando seu marido tentou eletrocutá-la enquanto se
banhava. Antônio Viveros, possuía um histórico de agressões contra suas filhas e esposa, que,
por sua vez, temia se separar por conta de seu comportamento violento. Finalmente a segunda
agressão homicida motivou Maria da Penha a se separar judicialmente.
Os atentados contra a vida de Maria da Penha foram premeditados por seu marido que
semanas antes teria tentado convencê-la a assinar um seguro de vida em favor dele, bem como
realizar a venda de um carro de propriedade da vítima sem que constasse no contrato o nome
do comprador (Corte Interamericana de Direitos Humanos, Relatório n. 54/01, Caso n.
12.051). Cecília Macdowell Santos descreve como se desenrolou o caso no judiciário
brasileiro:
réu primário. Em 1996, a decisão do júri foi anulada e o réu, sendo submetido a
novo julgamento, foi condenado a 10 anos e 6 meses de reclusão. Recorrendo da
sentença diversas vezes e valendo-se, inclusive, de práticas de corrupção, Viveros
permaneceu em liberdade por dezenove anos, sendo preso em outubro de 2002,
pouco antes de o crime prescrever. Pode-se afirmar que a conclusão do processo
judicial e a prisão do réu só ocorreram graças às pressões da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que recebera o caso em 1998.
(SANTOS, 2008, p. 24)
Antes da Lei Maria da Penha, os casos de violência doméstica eram encaminhados aos
Juizados Especiais Criminais e julgados nos termos da Lei 9.099/95 como crimes de menor
potencial ofensivo, o que possibilitava a aplicação de medidas despenalizadoras tais como a
composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo (artigos 72, 74, 76,
88 e 89 da Lei 9.099/95). Aqui reconhecemos a relevância das medidas despenalizadoras na
esfera penal, uma vez que afastam a aplicação da pena privativa de liberdade e a
estigmatização que é inerente ao processo penal. Entretanto, a lei se orienta por critérios de
simplicidade e celeridade que não comportavam a complexidade dos casos de violência de
gênero e familiar. Os crimes cometidos no âmbito da violência doméstica quase nunca eram
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solucionados pelo procedimento previsto na Lei 9.099/95 que se conduzia pela lógica binária
de "autor" e "vítima", inerente ao sistema penal.
A situação de violência doméstica exigia um olhar cuidadoso e multidisciplinar do
judiciário que não era contemplado pelos Juizados Especiais Criminais, gerando na vítima um
sentimento de impunidade e insegurança quanto à ocorrência de uma nova agressão:
A Lei Maria da Penha proibiu expressamente a incidência da Lei 9.099/95 nos casos
de violência doméstica, sobretudo em face da crítica feminista à universalização da
aplicação de prestações comunitárias (contribuições financeiras a entidades
filantrópicas, conhecidas vulgarmente como “penas de cestas básicas”) como
resposta judicial às violências praticadas contra mulheres. Situação que foi projetada
igualmente para as modalidades de sanção previstas na Lei. (CAMPOS e
CARVALHO, 2011, p. 147)
Ao afastar a incidência total da Lei 9.099/95, através de seu artigo 41, a Lei Maria da
Penha introduziu no ordenamento jurídico brasileiro novo procedimento para a efetiva
proteção da mulher em situação de violência, excluindo a possibilidade de aplicação das
medidas despenalizadoras. Neste sentido, foi alterada a pena máxima prevista no artigo 129, §
9º do Código Penal para três anos de detenção, o que impede que o crime de lesão corporal se
configure como de menor potencial ofensivo. Além disso, houve a limitação da possibilidade
de renúncia à representação por meio do artigo 16 da lei, que previa a necessidade de
audiência especialmente designada para tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e
ouvido o Ministério Público. Mais tarde, o STF consolidou o entendimento de que a natureza
da ação penal em caso de crime de lesão, praticado contra a mulher no ambiente doméstico é
de ação penal incondicionada, pouco importando a extensão da lesão (AdIn. n. 4.424 de
9/02/2012).
Em semelhante perspectiva, a descaracterização da violência doméstica como infração
de menor potencial ofensivo transformou a interpretação sobre este tipo de agressão, que
passou a ser compreendida como penalmente relevante.
Outra inovação da Lei Maria da Penha que merece ser discutida foi a intencional
utilização da expressão "mulher em situação de violência" em oposição ao termo "vítima", em
razão da carga estigmatizante contida nesta intitulação. Não se trata portanto de mero detalhe
linguístico, mas sim da necessidade de se deslocar a violência doméstica do plano da
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dicotomia penal (autor e réu; sujeito ativo e passivo), expressando a verdadeira complexidade
deste tipo de agressão (CAMPOS e CARVALHO, 2011).
O próprio movimento feminista reconheceu que o termo "vítima" não era adequado e
atribuía à mulher a condição de objeto da violência ou de não-sujeito de direitos, excluindo
sua autonomia. Já a crítica à expressão "situação de violência" apontava que o termo se
aproximava de "menor em situação irregular", o que colocaria a mulher em um patamar de
incapacidade jurídica (CAMPOS e CARVALHO, op. cit.). Isto não foi suficiente para que a
nova expressão não fosse fortemente aceita, transmitindo a ideia de transitoriedade e
recuperando o status de sujeito de direitos da mulher.
A Lei Maria da Penha criou mecanismos para coibir a violência contra a mulher e
promover igualdade material mesmo que isso implique em aparente desigualdade formal,
como foi demonstrado no capítulo anterior. Neste sentido, a lei é direcionada especificamente
às mulheres e não aos homens, de modo que se possa corrigir uma realidade social marcada
pela desigualdade de gênero, pela qual a mulher é objetificada. Lenio Luiz Streck acrescenta
que:
A feitura de uma lei – que garante um agir rápido do Estado em face da violência
doméstica – é uma exigência constitucional. Trata-se da garantia da proteção da
integridade física e moral da mulher. Não esqueçamos que, na contemporaneidade,
além do princípio da proibição de excesso (Übermassverbot), que serve para proibir
o Estado de punir com exageros, há também o princípio da proibição de proteção
insuficiente (Untermassverbot), que obriga o Estado (legislador, judiciário,
Ministério Publico) a proteger os direitos fundamentais. Há hipóteses em que o
Estado, ao não proteger o bem jurídico (inclusive via direito penal), estará agindo
(por omissão) de forma inconstitucional. (STRECK, s/d, p. 100)
Ainda assim, a Lei Maria da Penha foi benéfica aos homens em situação de violência,
uma vez que aumentou a pena máxima do artigo 129, § 9º, do Código Penal de um ano para
três anos, sendo certo que ainda é aplicável aos homens o artigo 69, parágrafo único, da Lei
9.099/95 que possibilita o afastamento do agressor (a) do lar como medida cautelar. A questão
da proteção do sexo masculino será esclarecida adiante neste trabalho.
Sobre a conceituação de "violência de gênero", a Lei Maria da Penha introduziu
normativamente esta categoria de violência, em consonância com a "Convenção de Belém do
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integridade da mulher desde seu primeiro contato junto à delegacia. Os artigos 18 a 21 da lei
determinam o procedimento que deverá ser utilizado pelo juiz na aplicação das medidas
protetivas, observando-se que cabe ao magistrado se atentar aos critérios de celeridade e
simplicidade, tendo em vista que o texto legal não estabelece rito específico de
processamento.
As medidas protetivas podem ser concedidas pelo juiz, mediante pedido da ofendida
ou a requerimento do Ministério Público (artigo 19, caput, da Lei 11.340/2006). Por serem de
caráter provisório, poderão ser revogadas a qualquer tempo, bem como substituídas por outras
de maior eficácia, de modo proporcional à efetiva proteção da ofendida, podendo culminar na
prisão preventiva (artigo 20 da Lei 11.340/2006).
Ressalte-se que Lei Maria da Penha afasta a lógica prisional do sistema penal, pela
qual a prisão provisória atua como medida cautelar por excelência. Não que a prisão
preventiva ou temporária não possa ser aplicada, mas foram introduzidas novas formas de
proteção para além da prisão cautelar, que, como sabemos, é caracterizada pela carga
estigmatizadora da privação de liberdade. Acerca disso, Ávila esclarece que:
Portanto, a prisão preventiva será aplicada apenas excepcionalmente, nos termos dos
artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal e nas hipóteses onde não há alternativa senão
o encarceramento, para que se assegure a integridade pessoal da mulher. Lavigne e
Perlingeiro acrescentam:
A doutrina ainda não definiu a natureza jurídica das medidas protetivas, que podem ser
cíveis, criminais, ou híbridas. Porém, prevalece o entendimento de que tais medidas devem
ser interpretadas de modo que se amplie e se obtenha a máxima proteção dos direitos
fundamentais das mulheres (ÁVILA, 2007).
A lei classificou as medidas protetivas em medidas que obrigam o agressor e medidas
que obrigam à ofendida. O artigo 22 prevê as medidas que obrigam o agressor, quais sejam: a
suspensão da posse ou restrição do porte de armas; afastamento do lar ou do local de
convivência; proibição de contato com a ofendida ou seus familiares; restrição ou suspensão
da visitação aos menores; e prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Sobre as
medidas que obrigam o agressor, Juliana Belloque explica que:
O elenco das medidas que obrigam o agressor foi elaborado pelo legislador a
partir do conhecimento das atitudes comumente empregadas pelo autor da
violência doméstica e familiar que paralisam a vítima ou dificultam em
demasia a sua ação diante do cenário que se apresenta nesta forma de
violência. Como a violência doméstica e familiar contra a mulher ocorre
principalmente no interior do lar onde residem autor, vítima e demais
integrantes da família, em especial crianças, é muito comum que o agressor
se aproveite deste contexto de convivência e dos laços familiares para
atemorizar a mulher, impedindo-a de noticiar a violência sofrida às
autoridades. Este quadro contribui sobremaneira para a reiteração e a
naturalização da violência, sentindo-se a mulher sem meios para interromper
esta relação, aceitando muitas vezes o papel de vítima de violência
doméstica para manter seu lar e seus filhos. (BELLOQUE, 2011, p. 308)
Por sua vez, o artigo 23 estabelece as medidas protetivas voltadas à mulher, tais como:
encaminhamento da ofendida e seus familiares a programa de proteção; recondução ao
domicílio após o afastamento do agressor; afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo de
seus direitos relativos aos bens, guarda de filhos e alimentos; e separação de corpos.
Por fim, vale destacar que o rol de medidas protetivas é exemplificativo, o que permite
que o julgador se utilize de outras medidas, não previstas em lei, conforme a necessidade de
proteção da ofendida, de seus familiares, ou de seu patrimônio. Sob o mesmo fundamento de
proteção da integridade física, sexual, psíquica e patrimonial da mulher, o juiz também poderá
aplicar as medidas protetivas cumulativamente, tudo de maneira proporcional, observando-se
as peculiaridades do caso concreto e a resposta do agressor à ordem judicial.
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2.2.6 Criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar com competência híbrida
Outra grande inovação da Lei 11.340/2006 foi a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a mulher, com competência cível e criminal, responsáveis pelos
julgamentos de todas as causas oriundas da violência doméstica. O movimento feminista
entendeu que não seria coerente cindir a prestação jurisdicional, tendo em vista que a
fragmentação da demanda tornava o processo burocrático e exaustivo. Antes da Lei Maria da
Penha, a mulher em situação de violência precisava enfrentar uma demanda em âmbito penal,
o que envolvia a notícia crime na delegacia e o processo no Juizado Especial Criminal, além
das demandas nas Varas de Família (alimentos, divórcio e guarda de menores, basicamente).
Este percurso em duas esferas distintas, que poderia envolver dois ou mais processos,
caracterizava-se por ser extremamente desgastante, além de não proporcionar à mulher em
situação de violência o cuidado e suporte necessários para enfrentamento de uma conjuntura
tão complexa como é da violência de gênero. Dando continuidade, Campos e Carvalho
comentam:
Com a Lei Maria da Penha, a violência contra mulheres passa a ser tratada como um
problema complexo, originado em uma relação afetiva marcada pela desigualdade
de gênero, cuja complexidade o direito deve responder de forma minimamente
satisfatória. Desde o ponto de vista do movimento de mulheres, era injustificável
cindir artificialmente a situação, como se as questões de família e criminais fossem
instâncias distintas da relação afetiva que as originou. (CAMPOS e CARVALHO,
2011, p. 149)
Por fim, cabe salientar que a regra de concentração das questões civis e criminais nos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar não alcança os crimes dolosos contra a vida, os
quais são julgados perante o Tribunal do Júri, por força de previsão constitucional (artigo 5º,
XXXVIII, alínea d, da Constituição).
No entanto, a fase de instrução do Tribunal do Júri (primeira fase), que culmina ou não
no pronunciamento do réu, poderá correr nos Juizados De Violência Doméstica e Familiar, de
acordo com as normas de organização judiciária de cada ente federativo, conforme decidiu o
STJ:
De todo o modo, a Lei Maria da Penha deverá ser integralmente observada pelo
julgador, principalmente no que tange às medidas protetivas de urgência, ainda que o processo
seja de competência do Tribunal do Júri, uma vez que a natureza da violência e a qualidade da
vítima são sempre preponderantes.
Ambos os argumentos são falhos, mas não apenas por desconsiderar as questões
histórico-culturais que justificam uma norma específica para lidar com a
discriminação de gênero – com atenção especial à sua vítima predileta (a mulher) –,
ou por desprezar a teoria das ações afirmativas (discriminações positivas) que há
mais de quatro décadas orienta o Estado a tratar “desigualmente os desiguais na
medida da sua desigualdade”, sob pena de não tornar realidade a igualdade formal
preconizada nas Constituições modernas. As criticas pecam na base principalmente
porque a LMP não criou um sistema para punir homens e nem os desprotegeu
quando acossados pela violência familiar. (LIMA, 2011, p. 269)
Vemos, portanto, que a Lei Maria da Penha não criou novos tipos penais
incriminatórios ou mesmo suprimiu algum direito dos homens, mas tão somente introduziu
um sistema de atendimento e proteção às mulheres, uma vez que a violência doméstica atinge
muito mais a mulher do que o homem.
Além disso, a mulher também se submete à Lei Maria da Penha quando agride outra
mulher no âmbito da violência doméstica, o que demonstra que a lei é essencialmente
direcionada à proteção da vítima, independente de quem seja o agressor, ou agressora. Neste
sentido, não é do interesse da Lei Maria da Penha punir homens, mas apenas proteger a
mulher, não importando o gênero de quem lhe tenha agredido (LIMA, 2011).
Mais ainda, pode-se dizer que a Lei Maria da Penha foi benéfica aos homens em
situação de violência ao aumentar a pena prevista para o crime de lesão corporal para três
anos de detenção (artigo 129, § 9º, do Código Penal), sem fazer qualquer distinção de gênero.
Por conseguinte, o crime de lesão corporal deixou de ser um crime de menor potencial
ofensivo, de modo que não há o emprego das medidas despenalizadoras, mesmo que a
agressão seja praticada em face de pessoa do gênero masculino. Vale destacar a elucidação de
Lima:
Além disso, a Lei Maria da Penha não excluiu o homem do sistema de proteção dos
direitos humanos, nem retirou sua dignidade humana. O homem continua protegido
na esfera penal. A lei não criou crimes para tutelar unicamente a mulher como
sujeito passivo, nem estabeleceu penas maiores para os crimes cometidos contra as
mulheres. Os tipos penais que protegem a mulher são os mesmos que protegem o
homem; a pena prevista para os crimes praticados contra elas é igual à prevista
quando a vítima for um homem. (LIMA, 2011, p. 269)
É perfeitamente possível afirmar que o homem possui proteção jurídica quando está
em situação de violência doméstica, ressaltando-se que, em termos práticos, nem mesmo a lei
9.099/95 se provou ineficaz em sua proteção (LIMA, 2011). Deste modo, o homem que for
vítima de um crime de menor potencial ofensivo no âmbito doméstico terá como recorrer ao
artigo 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95, que permite o afastamento do agressor, ou
agressora, do lar, sem prejuízo da incidência das medidas despenalizadoras.
36
Caso a agressão sofrida pelo homem seja de maior potencial ofensivo, o procedimento
será o mesmo previsto para a mulher, com exceção de que o processo não correrá no Juizado
de Violência Doméstica e Familiar. No que concerne às medidas cautelares, o afastamento do
lar (artigo 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95) poderá ser requerido mesmo nos crimes de
competência das Varas Criminais, além das cautelares de família que poderão ser requeridas
em seu respectivo juízo.
Vemos que a Lei Maria da Penha não criou qualquer instituto de desproteção ou de
revogação dos direitos do homem, o qual foi inclusive beneficiado, quando vítima, pelo
aumento de pena nos crimes de lesão corporal. Assim, a Lei Maria da Penha não poderá ser
interpretada extensivamente para a proteção de pessoas do sexo masculino, sob pena de
nulidade, tendo em vista que o referido instrumento legal foi especialmente formulado para o
enfrentamento da violência contra a mulher. Além dessas questões, Lima igualmente nos traz
a seguinte teorização:
Apesar da LMP não estabelecer diferenças penais entre os gêneros, ainda que possa
fazê-lo em nome da teoria das ações afirmativas, ela buscou inovar no
enfrentamento da violência contra a mulher notadamente nas regras processuais –
procedimentais e cautelares –, situações em que elas eram sabidamente
desfavorecidas. As normas foram criadas apenas para as mulheres vítimas porque
jamais se julgou necessário aprimorá-las para a vítima homem. Se necessário fosse,
já se teria buscado alterar o sistema, inclusive pelos mesmos grupos de juristas e
instituições que alardeiam, só agora, a inconstitucionalidade da LMP. Se nunca
reclamaram da atuação do sistema na proteção do homem, porque querem agora
fulminar do mundo a Lei Maria da Penha sob alegação de que não protege esse
mesmo homem? (LIMA, 2011, p. 272)
pesquisa de campo. Fui introduzida ao órgão por um colega, ex estagiário, que gentilmente
agendou a entrevista em uma terça-feira à tarde.
Cheguei ao NUDEM por volta das 13 horas e pude observar alguns atendimentos.
Destaque-se que uma das funcionárias do núcleo era uma mulher transexual que, segundo os
estagiários, vinha trabalhando no NUDEM a partir de um projeto de inclusão social da
Defensoria Pública. Quando cheguei ao núcleo a defensora Arlanza já estava sendo
entrevistada por um grupo de alunas do curso de direito da UFRJ e, portanto, acabei me
juntando às estudantes para realizar minha pesquisa, de modo a não tomar o tempo da
defensora para um segundo encontro. A entrevista conjunta durou cerca de quarenta minutos,
não havendo interrupção nas respostas.
A pesquisa de campo foi especialmente relevante para a construção deste trabalho,
trazendo uma perspectiva prática sobre a Lei Maria da Penha e a efetividade de seus
institutos. Foi possível desenvolver um olhar ainda mais sensível em relação à mulher em
situação de violência, haja vista a complexidade deste tipo de violação.
Assim, neste capítulo trataremos da aplicabilidade da Lei Maria da Penha, de acordo
com a experiência do NUDEM e sob o ponto de vista da defensora entrevistada, observando a
eficácia da lei e de seus mecanismos no enfrentamento da violência doméstica e na proteção
da mulher.
culminar na morte da mulher em situação de violência. Foi dito que os crimes de ameaça são
negligenciados nas delegacias e tratados como crimes de pouca urgência por alguns
operadores do sistema de proteção e atendimento à mulher. Um exemplo lamentável é
relatado pela defensora: "houve uma vez em que o próprio delegado disse ao pai da vítima
que a ameaça em 99% dos casos não se materializava e o pai precisou voltar à delegacia para
dizer que a filha dele fazia parte do 1%".
Análise:
Como se vê, ainda existem profissionais que, por mais que lidem diretamente com o
sistema introduzido pela Lei Maria da Penha e sejam responsáveis pelo atendimento de
mulheres fragilizadas, não consideram, em sua tarefa, a complexidade da violência de gênero
e a importância do acolhimento à vítima, reproduzindo um comportamento um tanto quanto
hostil, sobretudo quando admitimos que o movimento da vítima de ir até a delegacia é
marcado pelo sentimento de medo, ao mesmo tempo que uma atitude de muita coragem. Há
um senso comum que tende a acreditar que o crime de ameaça é "pouco" para que se recorra à
tutela jurisdicional, o que faz com que a vítima permaneça silenciada perante a iminência de
uma possível agressão fatal.
Outra questão relevante levantada pela defensora foi o aumento dos crimes contra a
honra no âmbito da internet e das redes sociais. Com muita frequência o NUDEM atende
mulheres que sofrem injúrias e difamações cometidas por seus ex-companheiros na internet,
com finalidade de envergonhá-las e impedir relacionamentos futuros. Em diversos casos, o
agressor, insatisfeito com o fim do relacionamento ou no intuito de se vingar, utiliza a internet
como meio para denegrir a imagem da mulher. Não são raros os casos de exposição de fotos
da ex-companheira nas redes ou de difamação e injúria no sentido de que a mulher pratica
prostituição, sendo estes apenas alguns exemplos mencionados no núcleo.
Análise:
40
Em que pese a recorrência dos crimes supracitados (lesão corporal, crimes contra a
honra e ameaça), a entrevista demonstrou que o comportamento da mulher, por sua vez, vem
se modificando e que hoje já existe um grupo de mulheres que busca a tutela jurisdicional
desde o primeiro ato de violência por ela identificado, o que representa uma tremenda
mudança de postura.
Segundo a experiência da defensora Arlanza, por muito tempo quase a totalidade dos
casos de violência doméstica eram formados por ciclos de agressão que duravam, em média,
de dez a quinze anos. Os ciclos eram marcados pela agressão, pelo perdão da vítima seguido
de um momento de paz, até que a violência voltasse a acontecer. A mulher permanecia presa
na situação de violência por anos, porquanto se sentia responsável pela formação e bem estar
de sua família, além da possibilidade de dependência emocional ou econômica.
Embora a maioria dos casos de violência doméstica ainda seja de ciclos longos, a
defensora observa que este intervalo de tempo, até que a mulher procure o atendimento
jurisdicional, vem se modificando, sendo considerável o número de mulheres que se impõem
3
O Print Screen – Prt Sc é um comando disponível nos teclados dos computadores, que possibilita a captura da
imagem da tela.
41
desde o primeiro ato praticado pelo agressor; desde o primeiro sopro de consciência da
violência que sofreram.
Em muitos casos, a ofendida sequer deseja o afastamento da convivência junto ao
agressor, mas tão somente censurar sua atitude, mostrando que aquela agressão não pode e
não vai acontecer de novo. Esta mulher não está interessada essencialmente na penalidade, ou
em separar-se de seu companheiro, porém deseja mostrar que é capaz de puni-lo e que uma
segunda agressão não será tolerada. De acordo com a entrevistada, isso demonstra um perfil
de empoderamento feminino, autoestima e confiança que muito raramente são encontrados
em uma mulher que viveu longos ciclos de agressão.
Com tal característica, a defensora afirma que a mudança de postura da vítima
significa um avanço por asseverar que a Lei Maria da Penha trouxe respaldo legal e segurança
à mulher em situação de violência. A lei lhe proporcionou um sistema pelo qual a mulher
pode buscar proteção, bem como inibir a agressão, ainda que em um primeiro momento não
seja de seu interesse cortar relações com o agressor.
Análise:
4
V. Fauzi Hassan Choukr, Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista, 2011, pp.
367-377.
42
Sobre a efetividade das medidas protetivas, a entrevistada afirma que algumas medidas
menos gravosas são suficientes para conter alguns agressores, enquanto para outros não
restará alternativa senão a prisão preventiva. Foi relatado um caso de uma assistida do
NUDEM cujo agressor já havia cumprido pena de prisão durante quatro meses, justamente
por descumprimento de medidas protetivas. Ao deixar o encarceramento, o agressor passou a
perseguir sua ex-companheira, porém sempre respeitando o limite de aproximação fixado pela
medida protetiva de distanciamento. Ou seja, se a mulher estava de um lado da rua, ele a
observava do outro lado; se a mulher estava no trabalho, ele a acompanhava pela janela do
prédio à frente; e assim por diante. O agressor cumpria a medida protetiva, de modo que,
mesmo assim, a mulher não possuía liberdade.
Esta mulher foi instruída pela Defensoria Pública a deixar a cidade e fugir do alcance
de seu agressor, mudando totalmente de vida, para que pudesse de fato desfrutar de sua
liberdade. Ressaltou-se na entrevista que, mesmo nos casos onde não há possibilidade de
qualquer proteção jurídica, a mulher possui poder de decisão e de mudança sobre sua própria
vida, ainda que, para se livrar da situação de violência, precise depreender grandes esforços.
Análise:
Análise:
Note-se que a mulher fragilizada e sem apoio dificilmente será capaz de cortar as
investidas de seu agressor e de movimentar o processo judicial até o fim, tendo em vista que a
situação de violência em regra compromete sua autoestima. Por estes motivos o diálogo, o
trabalho conjunto e o empoderamento são tão importantes.
Sob esta perspectiva, a multidisciplinaridade no acompanhamento da mulher em
situação de violência, também produz o empoderamento. A defensora explica que os grupos
de discussão e o contato com outras mulheres em situação semelhante fazem com que a
vítima não se sinta sozinha, dando-lhe forças para persistir. É importante que a vítima perceba
que existem outras mulheres em situação de violência igual ou pior, e que a violência de
gênero é um mal que atinge a sociedade como um todo.
Assim, ainda que em condição de vítima, a mulher não pode cair em um estado de
"vitimização" e apatia, dado que sua autoestima é essencial para o fim da situação de
violência por completo. Ao mesmo tempo, segundo o relato da defensora, a medida protetiva
45
sem o acompanhamento por uma rede de serviços que proporcione o diálogo é ineficaz. A
multidisciplinaridade faz com que a vítima entenda o processo judicial e o contexto de
violência que está enfrentando.
Análise:
5
A 1ª onda de movimentos feministas consolidou a luta por direitos políticos, principalmente no que diz respeito
ao sufrágio universal. Já a 2ª onda de movimentos feministas deu continuidade à primeira na busca por uma real
igualdade entre os sexos, caracterizando-se por uma atmosfera de maior produção intelectual e questionamento,
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com o objetivo de identificar as estruturas sociais e culturais que colocavam a mulher em condição de
subordinação. Essa informação encontra-se no capítulo 2, p. 14.
6
As campanhas “Meu amigo secreto” e “Meu primeiro assédio” se desenvolveram espontaneamente para
denunciar o machismo nas redes sociais em 2015. Na primeira, as mulheres traziam relatos sobre
comportamentos e experiências machistas que vivenciaram; enquanto, na segunda, narraram publicamente suas
experiências de primeiro assédio moral ou abuso sexual sofrido.
47
Análise:
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O principal objetivo deste trabalho foi analisar a Lei Maria da Penha, informando suas
inovações para, a partir de então, realizar a pesquisa de campo no NUDEM no Rio de Janeiro
e observar a aplicabilidade dos mecanismos de proteção à mulher oferecidos pela lei. Assim
fazendo, acreditamos estar contribuindo efetivamente com práticas transformadoras voltadas
para o empoderamento feminino e a busca pela igualdade material entre os sexos.
Para isso, o presente trabalho embasou-se em diversos artigos acadêmicos sobre
violência doméstica e desigualdade de gênero, na obra do constitucionalista Luís Roberto
Barroso (2011), além dos dispositivos legais pertinentes ao tema. Tais estudos consideram
fundamental a elaboração de ações afirmativas no sentido de promover a isonomia e, por
conseguinte, enfrentar o problema da violência contra a mulher. Diante disso, percebe-se a
necessidade de desconstruir socialmente a mentalidade machista, além de fomentar o
empoderamento feminino e a maior participação das mulheres na política e no judiciário.
Assim, seguimos o nosso estudo e organizamos este trabalho de conclusão de curso
em quatro capítulos numerados de um a quatro.
Na introdução deste trabalho, apresentamos o objetivo principal desta pesquisa, que
foi esclarecer diversos questionamentos comuns no que diz respeito às possibilidades de
aplicação da Lei Maria da Penha, suas inovações e sua eficácia. Tal objetivo está ligado ao
fundamento constitucional de validade da lei, que se apóia no princípio da igualdade material.
No capítulo um, justificamos inicialmente a necessidade de problematização do
conceito de gênero, enfatizando que determinados aspectos sociais são atribuídas
culturalmente aos homens e mulheres. A partir desse enquadramento, realizamos um breve
panorama histórico sobre a evolução dos movimentos feministas, bem como o processo de
constitucionalização e valorização dos direitos humanos da mulher. Além disso, nesse
capítulo, explicamos os princípios da igualdade formal e da igualdade material, demonstrando
a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, à medida que o estatuto promove a redução das
desigualdades de fato e anuncia a não aceitação da violência doméstica no contexto social
brasileiro.
No capítulo dois, descrevemos o processo de elaboração da lei 11.340 de 2006, que se
deu sob influência e participação do movimento feminista. Além disso, relatamos o caso
50
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