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BREILH, Jaime - Epidemiologia Critica PDF
BREILH, Jaime - Epidemiologia Critica PDF
ISBN: 85-7541-095-4
Catalogação-na-fonte
Centro de Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca
2006
K U « * ,,.
EDITORA FIOCRUZ
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Foi Antonio Gramsci quem estabeleceu uma explicação incisiva da ‘hege
monia' como um elemento de subordinação social e da 'contra-hegemonia'
como possibilidade de um bloco popular emancipador (Gramsci, 2000). A hege
monia foi explicada como forma de dominação de uma classe social sobre as
demais, a qual não é simplesmente praticada mediante uma organização espe
cial da força, mas por meio do exercício de uma liderança moral e intelectual
para cuja vigência essa classe dominante tem de transcender o referencial es
treito de seus interesses corporativos, e estabelecer compromissos, dentro de
certos limites, com uma variedade de aliados. Assim se forma um bloco social
que representa uma base de consentimento para uma certa ordem social, na
qual a hegemonia é criada e recriada dentro de um conjunto de instituições,
relações sociais e idéias (Pissomo, 1982). É inegável a importância dessa des
coberta e de suas conseqüências para o avanço da práxis em todos os campos,
e especificamente no da saúde.
Ao mesmo tempo, contudo, uma interpretação parcial e esquemática da
descoberta da hegemonia de Gramsci conspira contra sua plena utilidade,
sobretudo quando ela é reduzida a um esquema bipolar de classes sociais,
enquadradas “numa lista de ‘hegemônicos’, em contraposição a uma lista
de ‘subalternos’":
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de admitir que sua dependência se deve, em parte, ao fato de ele encontrar na
ação hegemônica algo de útil para suas necessidades. Por exemplo, os campo
neses recebem da cultura urbana de massa as informações necessárias para
compreender e agir ‘corretamente’ em suas novas condições. Entenderemos
melhor a televisão, nesse caso, como uma espécie de manual de urbanidade.
Quando se trata de hegemonia, e não de simples dominação e coerção, o víncu
lo entre as classes apóia-se menos na violência de cima para baixo do que no
contrato, numa ‘aliança em que hegemônicos e subalternos contratam entre si
.serviços recíprocos’.
Da mesma forma que a velha epidemiologia funcionalista constituiu um
instrumento de hegemonia, a nova epidemiologia crítica tem de ser concebida
como um elemento de contra-hegemonia, para chegar ao estatuto de uma ativi
dade emancipadora.
Ao longo destas páginas, falamos da urgência de inscrever o esforço epis-
temológico numa concepção emancipadora da práxis, e, para isso, é preciso
esclarecer algumas categorias e relações fundamentais nas quais se enraíza
uma parte substancial do pensamento epidemiológico e da saúde coletiva. São
categorias que definem a ação e cuja interpretação depende de as olharmos
pela perspectiva hegemônica ou pela contra-hegemónica.
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tração de poder e para desigualdades extremas. Ao desarticular-se esse sujeito
comunitário e surgirem os sujeitos privados, guiados pela ânsia de entesoura-
mento mercantil, rompeu-se o direito à eqüidade - note-se que, neste ponto,
não estamos falando de igualdade. A necessidade foi deslocada e em primeiro
plano veio colocar-se o interesse de produzir para lucrar, com o que teve início
a era da concentração de poder e do aparecimento da ineqüidade. Até então,
haviam existido apenas a diversidade e desigualdades não significativas.
Essa transição da sociedade comunitária para a dos mercadores privados
produziu a 'primeira grande derrota dos direitos humanos e da necessidade'
como eixo da construção social. Desde então, o interesse centrou-se na produ
ção para o lucro, que passou a ser o eixo de organização de todas as ativida
des. Depois, uma ‘segunda grande derrota histórica dos direitos humanos e da
necessidade', como princípio de definição social, deu-se com o surgimento do
capitalismo da livre concorrência (século XVII) e, um pouco mais tarde, da
grande indústria (em torno do século XVIII), alicerçado na descoberta de que o
uso da força de trabalho possibilitava o aumento do valor, a extração de lucros
do trabalho alheio e a acumulação dessa mais-valia. Nesse momento, mulhe
res e homens pobres do mundo perderam o direito à propriedade dos bens
fundamentais da sociedade, industriais e financeiros, mas o sujeito coletivo -
nessa ocasião, o sujeito trabalhador coletivo - se manteve em vigor e conse
guiu sustentar os direitos trabalhistas e sociais básicos que se consolidaram
no pacto social subseqüente à Segunda Guerra Mundial.
A mulher proletária e de classe média, a partir de então, teve de lutar para
que suas reivindicações de gênero não fossem dissolvidas nas reclamações
gerais de classe, e aproveitou o clima reivindicativo e a mentalidade socialista
da época para promover suas próprias reivindicações; com isso, consolidou-se
e se diversificou o movimento feminista, que descortinou para o mundo a luta
dos gêneros como uma linha nova e fundamental de emancipação. Os grupos
étnicos - tendenciosamente denominados de ‘minorias’ pela ciência oficial -
também iniciaram seu expediente de luta no mundo, cm momentos diferentes e
com força variável. Os projetos de emancipação étnica, por sua ligação evidente
com a pobreza, confundiram-se residualmente com os reclamos do proletariado
mundial, embora, por sorte, tenham também preservado o fio condutor de suas
reivindicações etnonacionais, o que, em muitos lugares, na atualidade, derivou
numa força emancipadora, embora o capitalismo globalizado também tenha dado
impulso a um novo etnocentrismo e a um fundamentalismo reativo.
Já nas décadas mais recentes, o processo de extrema concentração da ri
queza determinou a acumulação de uma superpopulação relativa, que rom
peu todas as proporções conhecidas até então. Não mais se tratou de um sim
ples exército industrial de reserva, porém de uma massa totalmente excluída
do circuito primário da economia monopolista - uma massa marginalizada,
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expulsa para a informalidade no campo do trabalho, deslocada no plano terri
torial para os bairros miseráveis e os espaços mais deteriorados de campos e
cidades, e cerceada, no campo cultural, numa cultura marginal e de resistên
cia, na qual não houve oxigênio para a construção de um pensamento emanci-
pador. Assim, em meados da década de 1980, já chegado o capitalismo tardio
ou pós-industrial, ocorreu 'a terceira derrota dos direitos humanos’ e da possi
bilidade de as classes subalternas concretizarem o sempre postergado projeto
emancipador da modernidade. Foi uma derrota em que se combinou o retroces
so absoluto dos direitos económicos com níveis mínimos de sobrevivência,
rompendo-se radicalmente o pacto do pós-guerra. Todavia, apesar de sua gra
vidade, o impacto econômico não foi a única destruição ou retrocesso sofrido,
pois a globalização implicou não apenas o despojamento de nossa riqueza
material e nossos recursos estratégicos, mas também uma contra-reforma jurí
dica, ideológica e cultural que procura neutralizar-nos espiritualmente, não só
dissolvendo os espaços e territórios nacionais de reprodução de culturas pró
prias, mas dominando-nos mediante a implantação de uma cultura do egoís
mo e do consumo, com o que se procura acabar com a identidade dos povos e
apagar, através do individualismo, qualquer vestígio de organização coletiva
e de solidariedade. E tudo isso enquanto se criam severas limitações legais a
qualquer forma de defesa dos direitos.
É no quadro desse retrocesso colossal que deve ser reavivada uma preo
cupação com os direitos humanos e a necessidade em todos os campos disci
plinares e, mais ainda, em campos como o da epidemiologia, direcionados
para a defesa e a promoção da vida.
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uma distribuição eqüitativa e segura por parte de todos os membros de uma
sociedade, a qual deve construir-se solidariamente em prol do máximo bem
comum (corrente solidária). Essa distinção tem profunda influência em cam
pos como o da epidemiologia e de suas atividades de prevenção, pois, como
veremos mais adiante, na seção dedicada à crítica da teoria do risco, uma
definição incorreta da necessidade, ou inclinada para interesses unilaterais,
conduz a um paradigma ineficaz da prevenção, na melhor das hipóteses, ou„a
uma utilização contrária aos interesses sociais, na maioria das vezes.
Por isso, ao nos dispormos a construir um olhar alternativo para uma nova
epidemiologia, é muito importante esclarecer essas acepções e direções possí
veis e tomar consciência de suas implicações. Surpreendentemente, a tese de
atender à necessidade humana encontra-se tanto nos discursos dos setores mais
retrogressivos, que apoiam a corrente liberal, quanto nas propostas alternativas
das organizações sociais e núcleos científicos mais inovadores, que promovem a
visão solidária. A experiência recente parece indicar que a aparente reivindica
ção das necessidades humanas, por parte dos setores hegemônicos, não passa de
uma forma de substituir 'o direito' por uma acepção muito peculiar e convenien
te da necessidade, e assim preparar o terreno para sua mercantilização. Se o
atendimento de saúde e os programas de prevenção já não são direitos inaliená
veis, mas 'necessidades' discricionárias, o poder tem a possibilidade de decidir
quais necessidades deve incluir num pacote mínimo para os pobres, e quais
deve deixar a cargo do mercado e do ‘livre’ arbítrio dos 'clientes'.
Em primeira instância, o debate contemporâneo sobre a ‘definição da ne
cessidade humana’ poderia ser assim delineado: para uns, todos os seres hu
manos têm as mesmas necessidades básicas - ‘teoria objetiva' -, enquanto,
para outros, as necessidades são uma construção sociocultural - ‘teoria sub
jetiva' ou ‘relativismo’ (Doyal & Gough, 1991).
Não sendo analisada com maior cuidado, essa delimitação geral pode ge
rar confusão no campo teórico e técnico, sobretudo agora que a nova direita
maneja o relativismo a seu favor, aduzindo que as necessidades são construí
das pelas diferentes populações, ou até pelos desejos individuais - para sus
tentar o empobrecimento neoliberal das necessidades -, e, como já foi dito,
difunde a idéia de que as necessidades válidas devem ser definidas, em última
instância, no mercado e no livre arbítrio individualista.
A discussão desse assunto ultrapassa os limites do presente trabalho, mas
basta dizer aqui que o ‘processo de definição das necessidades' nos grupos
humanos não é nem exclusivamente objetivo, em resposta a condicionamentos
individuais imediatos, nem exclusivamente subjetivo, adquirido ou mediado
por condicionamentos históricos, econômicos e culturais. Embora não seja nosso
propósito desenvolver aqui uma discussão aprofundada dessa disjunção, ca
bem algumas considerações sucintas.
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Como vimos assinalando, o conhecimento da necessidade pode ser enfoca
do por perspectivas distintas. Há quem sustente que a necessidade não passa
de um fenômeno objetivo da natureza, um ‘em si' que só pode refletir-se em
nosso pensamento e ao qual se responde com a consecução de ‘satisfações',
como um processo reflexo. Essa ‘teoria objetiva’ inscreve-se num enfoque po
sitivista que desconhece que toda necessidade objetiva contém elementos sub
jetivos, os quais, se apagados, deixam-nos uma abstração vazia e indetermi
nada. Inversamente, há quem afirme que a necessidade não passa de uma
construção a partir de um esquema subjetivo a príori. Essa ‘teoria relativista’
inscreve-se num enfoque fenomenológico que desconhece que a necessidade
construída só o pode ser em relação a uma necessidade concreta, isto é, que a
necessidade construída traz a marca da necessidade básica objetiva, e que,
além disso, só o pode ser em relação a definições socialmente construídas. Ou
seja, elementos objetivos como a sede e a sensação de fome existem na nature
za humana desde antes, porém marcam e estão presentes nas necessidades que
construímos com base nelas, individual e coletivamente (Breilh, 2000).
Mas o conhecimento científico da necessidade humana não tem como pon
to de partida um elemento objetivo abstrato nem um esquema subjetivo abstra
to, e sim a atividade prática social de seres concretos, historicamente dados.
Esse ‘enfoque praxiológico' evita fazer-nos cair em abstrações vazias, que re
duzem o conhecimento.
A construção da necessidade, como todo processo humano, é gerada a
partir da ordem individual ou micro (gênese) e se reproduz a partir da ordem
social ou macro (reprodução social) (Samaja, 1993). Na ordem individual pri
mam os processos fenotípicos básicos, isto é, as necessidades fisiológicas e
psicológicas; em outras palavras, são as pessoas e as famílias, em seu co
tidiano, que determinam os movimentos detalhados do consumo, com suas
preferências e de acordo com seus obstáculos (estilos possíveis e desejáveis de
vida), mas tais estilos (preferências e obstáculos) não funcionam num vazio
social, desenrolando-se em espaços sociais concretos, marcados nos condicio
namentos econômicos, culturais e políticos (modos de vida típicos) que. em
cada classe social e de acordo com as relações étnicas e de gênero que as
caracterizam, são viáveis e prováveis, também em relação às determinações
sociais mais amplas (ver Figura 9, inspirada em Samaja).
As relações históricas em que vive o ser humano fazem com que seu fenó-
tipo e seu psiquismo se modifiquem, e com isso mudam as necessidades bási
cas de ordem biológica e psíquica; em outras palavras, os processos históricos
da ordem macrossocial implicam a construção de necessidades coletivas, ou a
‘dimensão coletiva das necessidades’ que depois se mantêm como padrões de
reprodução social nos quais se enquadra a necessidade individual. O consumo
de água e a resposta para realizá-lo, por exemplo, não é arbitrário, mas objeti-
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vamente determinado por um requisito fenotípico; entretanto, o quantum des
sa necessidade, assim como as modalidades de seu consumo, sua qualidade e
as concepções que o reproduzem, varia de acordo com as circunstâncias e
exigências de cada momento e lugar.
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duos, e todas envolvem os requisitos básicos de serem processos: cooperativos
e solidários; criativos; benéficos para a saúde física e mental; culturalmentc
enriquecedores, por meio do fortalecimento dos povos e de suas culturas par
ticulares, bem como das conquistas culturais universais; adaptados às condi
ções de idade, gênero, atividade e meio; possibilitadores de uma participação
criativa e autônoma das pessoas e de suas organizações na definição e desen
volvimento dos próprios direitos; que sejam bens cuja vigência ou aos quais o
acesso não dependa da renda, da situação de classe, do gênero ou da etnicida-
de; e que sejam os mais seguros, conforme o horizonte de visibilidade da ciên
cia num determinado momento (Breilh, 1995b).
Dessa maneira, enfocamos um nível de análise coletiva que atende às ne
cessidades reproduzidas por uma estrutura social, mesmo que estas tenham
sido geradas com o concurso das necessidades básicas biopsicológicas. Isso
não significa que não devamos atentar para as necessidades específicas dos
indivíduos, mas que devemos organizar a lógica das respostas mais singulari
zadas no contexto do pensamento e da ação relacionados com o coletivo, e só
depois entrar no nível micro.
Só faz sentido enunciarmos a necessidade no seio dos processos concretos
de reprodução social quando entra-se diretamente numa matriz como a pro
posta por Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn (1986), atomizam-se a visão e a
análise no indivíduo, porque, embora as necessidades básicas sejam seme
lhantes no plano formal abstrato, no terreno concreto da vida social, ao contrá
rio, elas fazem parte de processos e determinações distintos, cujas especificida
des merecem enfoques diferenciados. Esse é um problema que não se resolve
com a proposta dos autores de distinguir entre necessidade e satisfação - por
exemplo, entre a ‘necessidade de proteção’ e o 'sistema satisfatório de saúde’ -
porque as necessidades que os autores reconhecem, tais como a proteção, não
se produzem nem existem como um fato natural espontâneo, mas são proces
sos em movimento, com características e modos de devir determinados pelas
condições socioestruturais e pelos conflitos de interesses a que elas correspon
dem, com especificidades que, não sendo levadas em conta, conduzem a gra
ves erros de interpretação e de ação. Do mesmo modo, se é verdade que a
‘subsistência’, por exemplo, é uma necessidade essencial em qualquer socie
dade, falar dela no vazio, sem inserir essa análise nos processos históricos
determinantes da reprodução social (processo de produção e consumo, que
define a quota e a qualidade dos bens que cabem a cada grupo; processo de
poder político no Estado, que condiciona a quota e a qualidade dos serviços
prestados também por essa via etc.), equivale a criar uma abstração inútil,
caso o que se almeje seja desencadear uma ação emancipadora; é como tirar
do processo de subsistência a sua raiz e vê-lo incompleto, o que seria apenas
funcionalmente útil e equivaleria a um modelo de ação cosmética, que repro-
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duziria as mesmas condições essenciais. Mais que isso, no entanto, uma ne
cessidade como a subsistência, que tem de ser solidária e digna para ser hu
mana, não é simplesmente uma necessidade, mas foi historicamente transfor
mada num direito que não pode ser submetido a nenhuma negociação, da
mesma forma que os princípios não podem ser negociados.
Vistas as coisas dessa maneira, a ‘subsistência’ não começa como uma
necessidade natural em si, que se reflete na busca de um elemento de satisfa
ção como a água e o alimento, mas é um processo que começa em sua forma
de determinação histórica e se projeta nos processos de satisfação, como uma
unidade dinâmica que a análise não deve quebrar em pedaços; fazer o inverso
é um fracionamento positivista tão falacioso quanto a decomposição da reali
dade em fatores, para estudar de forma positivista as ‘causas' das doenças. O
que efetivamente se pode fazer com as referidas categorias axiológicas (subsis
tência, proteção, afeto, entendimento, participação, lazer, criação, identidade,
liberdade) é inseri-las no referencial dinâmico da reprodução social e nos pos
tulados solidários e socialmente construídos da ação.
Em síntese, os processos básicos subdividem-se em fisiológicos e da cons
ciência. Entre os primeiros surgem necessidades como o consumo alimentar
adequado à atividade e ao meio ambiente, por exemplo, que se inclui entre as
necessidades humanas universais ou básicas (Doyal & Gough, 1991). O mes
mo se pode dizer de uma necessidade básica como a de trabalhar num local
sem estressores físicos e sem processos destrutivos. No primeiro caso, o da
necessidade de alimento, embora esse processo seja realizado por indivíduos,
em última instância, não obedece unicamente a uma liberdade ou uma opção
individual - como afirmaria o liberalismo social de Sen -, mas é profundamen
te determinado pelo contexto social; do mesmo modo, pode-se dizer que no
segundo caso, o do trabalho livre de estressores e processos destrutivos, é
evidente que também isso não é produto de uma restrição ou uma agressão
que condicione a necessidade de uma pessoa isolada, mas faz parte de um
modo de vida que pertence a um conjunto social. As ‘necessidades fisiológicas
básicas' têm de ser integradas como um referente a qualquer medição da qua
lidade de vida, que deve incluir, portanto, o grau de consumo adequado de
valores de uso básicos, conforme a idade, o gênero e a atividade, em compo
nentes como alimentos, proteção em relação ao clima (vestuário e moradia),
descanso ou repouso e exercício físico adequado, e restauração e manutenção
da saúde. O acesso a tais necessidades básicas é ‘parte decisiva de um pacote
integral de saúde’, como direito e aspiração legítima de todos os povos. Mas
existem também 'necessidades básicas ligadas ao psiquismo' e a seu desenvol
vimento, as quais, na espécie humana, são necessidades de consciência parti
cularmente vinculadas ao aumento do consumo, tais como identidade, apren
dizagem, fruição de suportes afetivos e solidários, capacidade de interpretação
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crítica e ausência de cerceamentos do pensamento, recreação formativa e de
reprodução da capacidade física e intelectual, participação consciente nas de
cisões que dão conteúdo e direção à vida humana, pautadas pela eqüidade.
'Também estas são necessidades básicas - as mais violadas pelas sociedades
da desigualdade - que devem fazer parte de um pacote integrado de qualidade
de vida, e têm de ser incorporadas a sua medição.’
Por isso, não compartilhamos da lógica desses autores, quando restrin
gem a análise à relação indutiva ‘necessidade -»■ elemento de satisfação’, como
se estivéssemos tratando de uma relação linear, dada na dimensão individual
do arbítrio singular e descontextualizada das formas coletivas de organização.
Não é nos indivíduos que se explica e se realiza a ligação da necessidade com
a forma de resposta social a ela, pois a estrutura coletiva determina os modos
de criação e reprodução das necessidades, as formas de produção e circulação
dos bens produzidos e, por conseguinte, as maneiras de satisfazer as necessi
dades. Assim, por exemplo, a ‘macdonaldização’ do consumo não é produto de
gostos nascidos em muitas pessoas, mas produto da transformação de um
padrão de consumo alimentar e lúdico nas sociedades do capitalismo monopo
lista urbano. Tampouco o consumo globalizado da Coca-Cola é resultado ex
clusivo de um 'elemento de satisfação', perfeitamente adequado a um fenótipo
e a um estilo humano natural, mas sim produto de um processo complexo de
construção comercial cultural de cenários e afinidades altamente compatíveis
com a sociedade moderna, dentro do qual pode operar a atração poderosa de
uma substância que contém elementos como a cocaína ou a cafeína em doses
baixas. Muito menos são a perda de terreno do Dia de Finados e sua transmu
tação no Halloween, nas sociedades urbanas, uma resposta a uma condição
psicocuitural inerente à 'natureza' humana, e sim a imposição de padrões
lúdicos e comerciais respaldados pelo poder do dinheiro, pelo bombardeio da
propaganda e pela imposição de novos sentidos, compatíveis com a ‘ameri-
canização’ das coletividades urbanas.
Em todos os casos expostos, a estrutura produtiva é determinante, uma
vez que estabelece os condicionamentos decisivos da construção de necessida
des e das maneiras de satisfazê-las. As necessidades são historicamente pro
duzidas, e não geradas por sujeitos isolados; são, essencialmente, um produto
do movimento das opções individuais em meio ao movimento determinante do
coletivo; e, o que é mais importante, a produção econômica dos bens e a distri
buição dos que são repartidos pelo Estado não são simples instrumentos a
serviço da satisfação de necessidades preexistentes (Boltvinik, 1994), mas es
tão ligadas aos interesses das classes hegemônicas, que criam esses ‘elemen
tos de satisfação' de acordo com sua conveniência. É nesse contexto que se
devem estudar as atribuições de valor e os comportamentos das coletividades
em relação aos serviços públicos e privados de saúde, bem como aos dos
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profissionais e técnicos que hoje favorecem uma reforma de saúde regressiva, que
vem modificando o perfil de desenvolvimento da epidemiologia institucional.
Com efeito, as abordagens liberais sobre a necessidade situam-na como
um problema individual, ligado ao consumo e ao arbítrio pessoal, e, nos pla
nos retrógrados de reforma, isso adquire uma importância capital, porque é
assim que os cidadãos e cidadãs deixam de ser ‘detentores de direitos' e se
transformam em ‘clientes’. Formulada dessa maneira, a necessidade substitui
o direito, e a distribuição insuficiente de serviços - que é ocasionada pela
monopolização da riqueza, mas não é reconhecida como tal - passa a consti
tuir um recurso de sobrevivência, medido por técnicas múltiplas, como a da
‘linha de pobreza’ (limiar de renda/despesa mínima) ou a da ‘satisfação de
necessidades básicas’ (lista mínima de elementos de satisfação de necessida
des básicas) às quais os clientes do mercado podem aceder (Desai, 1994).
Neste livro, ao discutirmos mais adiante os modelos de desenvolvimento
humano que inspiram ou influenciam o planejamento e as propostas de refor
ma, procuraremos promover uma visão contrária, que enfoca a necessidade
não em termos de bens e fatores de satisfação, mas como recursos indispensá
veis à humanização das dimensões da reprodução social, em primeiro lugar, e
em seguida, na ordem micro, apoiaremos a recriação de propostas como a de
Sen, que se expressou nos livros citados por nós, reinserindo sua análise numa
estrutura de poder e ineqüidade, que é onde se explicam as desigualdades
resultantes e onde se determinam as capacidades (capabilities) muito distintas
que surgem nas diferentes classes sociais, grupos étnicos e de gênero, e que,
com justa razão, preocupam o Prêmio Nobel bengalês. Nossa proposta para a
‘análise da necessidade na saúde’, portanto, funciona em dois movimentos:
a inserção da análise na estrutura de poder e a inserção das intervenções na
organização coletiva dos grupos subalternos na referida estrutura de poder.
Em outras palavras, os determinantes da saúde operam nas dimensões dis
tintas da vida social (reprodução social), em todo o espectro de bens ma
teriais e espirituais a que cada grupo social tem acesso, de acordo com a
qualidade de sua atividade profissional, de suas modalidades típicas de con
sumo e até de suas formas e relações organizacionais/políticas, culturais e
ecológicas (Breilh, 1997c).
Uma vez analisada a definição da necessidade, é preciso, inevitavelmente,
abordar o problema de sua 'distribuição', e nesse ponto, é absolutamente per
tinente resgatar o questionamento da tese de uma suposta capacidade distribu
tiva do mercado, subjacente a toda a construção teórica da doutrina neoliberal
(Valenzuela, 1991). O mercado é não apenas um ótimo distribuidor dos bens e
do acesso às necessidades, como também, por sua estrutura oligopolista, é o
reprodutor acelerado de grandes abismos de ineqüidade.
As ações de que depende a atividade epidemiológica, como todo o conjun
to que pertence essencialmente ao campo da prevenção e da promoção, são
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sempre profundamente afetadas em toda sociedade em que se inicia um proces
so de privatização da saúde, porque as modificações que elas sofrem não são
apenas pontuais, mas comprometem o conjunto do sistema de saúde, e porque
isso implica ligar as decisões de saúde aos interesses empresariais e de análise
de custo beneficio, em vez de inseri-las na lógica do custo-benefício da coletivi
dade e na dos direitos humanos e das necessidades inalienáveis, tema a que
voltaremos mais adiante, ao abordarmos a crítica do paradigma de risco.
Quando a história humana abandonou a etapa coletivista em que se pro
duzia e se distribuía conforme a necessidade, para entrar em cheio nos diferen
tes períodos do produtivismo e da propriedade privada, a construção social da
necessidade foi deslocada para segundo plano. O produtivismo possibilitou a
monopolização do poder e significou a derrota da construção coletiva da vida
social, a tal ponto que, na era moderna, o centro absoluto de toda a vida humana
passou a girar primordialmente em torno da acumulação em todas as ordens,
e da concentração dos bens materiais e culturais acumulados. No mundo hege
mônico, a acumulação é maior e igualmente monopolizada, enquanto no mun
do subalterno do capitalismo periférico o contraste é maior, porque os centros
de acumulação se aproveitaram dos níveis ínfimos de vida para aumentar
seus lucros; tanto num quanto noutro caso. entretanto, a acumulação consti
tui, agora mais do que nunca, um obstáculo insuperável diante de um projeto
autêntico de reforma (Benítez, 2000).
A acumulação baseada na exploração do ser humano criou uma distância
cada vez maior entre o que se produz e o que se distribui, entre a natureza e o
ser humano, entre o saber e a consciência, entre a necessidade coletiva e a
tecnologia, entre as possibilidades de comunicação e o que sabemos dos ou
tros, aspectos estes que guardam estreita relação, todos eles, com as condições
de saúde. Assim, a acumulação e a racionalidade competitiva de hoje são uma
barreira radical a qualquer tentativa de reforma, pois nos sufocam na miséria
em meio à opulência, enchem-nos de saber científico, mas sem consciência,
deixam-nos culturalmente incomunicáveis em meio à incomensurável capaci
dade da comunicação digital, e nos sufocam em epidemias - algumas das
quais praticamente já haviam desaparecido - tudo isso em meio a uma tecno
logia cada vez mais evoluída, porém estruturalmente impedida de se voltar
para o benefício coletivo (Breilh, 1998).
A história recente da América Latina determinou, nessa fase, uma expan
são acelerada do sistema capitalista, que agora aprofunda a essência do inte
resse privado, graças ao expurgo de certas ‘impurezas ou resíduos de lógica
social ou solidária' que haviam conseguido persistir como produto das lutas
do povo e das concessões do keynesianismo. Esse abismo entre a necessidade
humana insatisfeita, por um lado, e a produção e o poder que a sustenta, por
outro, atingiu sua expressão máxima no período neoliberal, cujo braço admi-
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nistrativo é o Fundo Monetário Internacional (FMI), junto com seu agente Finan
ceiro, o Banco Mundial (BM).
A reflexão sobre o conceito de necessidade introduz-nos em cheio no cam
po da discussão dos modelos de desenvolvimento humano em que deve inscre
ver-se, necessariamente, uma proposta epidemiológica alternativa; e, como
esse é um vasto campo de análise, que ultrapassa os limites deste trabalho,
cabe aqui apenas tentarmos uma delimitação introdutória.
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os subsídios à demanda de serviços ou os abonos de saúde ou educa
ção para os pobres paliativos estes que, de qualquer modo, são
temporais, cobrem apenas níveis básicos de sobrevivência e recaem
sobre os ombros dos consumidores médios e dos setores assalariados,
mas não sobre os das empresas (Valenzuela, 1991).
° Os modelos 'empresariais modernos' que concentram o desenvolvi
mento em torno de condições facilitadoras do avanço moderno das
pequenas, médias e grandes empresas, individuais ou associadas
em cooperativas, e até de empreendimentos individuais ou familia
res, como unidades competitivas formalmente constituídas e ajusta
das a parâmetros modernos de gestão, os quais são apoiados ou
regulados por programas de Estado (Coraggio, 1998).
° Os modelos pensados 'em torno do Estado' ou das políticas institucio
nais. Nesse grupo podemos destacar os modelos de 'gestão social ou
neokeynesianos', centrados na reengenharia do Estado, mediante
paradigmas de gestão de alta eficiência, que outorgam importância -
pelo menos teórica - à gestão da frente social como elemento de
governabilidade, mas incorporando princípios empresariais. Há tam
bém uma variante que poderíamos designar de ‘programa de desen
volvimento humano do PNUD', que concentra o interesse na modifi
cação pontual de alguns indicadores de acesso ao consumo básico
educativo e de saúde, bem como de renda, que são perfeitamente
compatíveis com as políticas de uma focalização social desvincula
da da economia (Breilh et al., 1997; Coraggio, 1999). Em certas oca
siões, a concessão de subsídios à demanda, que faz parte de alguns
dos modelos anteriores, pode, por sua vez, destacar-se como mode
lo, e é conhecida como 'renda cidadã’, a qual pressupõe um reco
nhecimento dos chamados direitos de cidadania como caminho para
aumentar a igualdade, desvinculando a renda do trabalho ou da
produção de bens e serviços e garantindo acesso a uma cesta bási
ca pré-fixada, questão esta que, apesar de universal, pressupõe uma
contradição com o mercado global, que penaliza as sociedades que
reduzem a renda em decorrência da redistribuição (Coraggio, 1999).
• Os modelos de ‘economia privada coletiva' e também o do ‘libera
lismo social’ (Sen, 2000) e o do ‘desenvolvimento em escala huma
na’, os quais, por seu interesse para a construção de uma contra-
alternativa emancipadora, analisaremos mais detidamente. Esses
modelos enfocam, em especial, o que é possível fazer a partir da
•sociedade civil', e reforçam estratégias destinadas a fortalecer a
sociedade privada, o mercado local e nacional e um Estado mais
democrático, que acompanhe esses processos, os interesses empre
sariais e de análise de custo/benefício.
179
Trata-se de um conjunto de propostas que estabelecem uma ruptura parcial
com a dominação do produtivismo e das políticas sociais que o secundam, e
que se mostram favoráveis a teses redistributivas e humanas, embora não
deixem de enraizar a análise na estrutura de poder; poderíamos chamá-las de
‘modelos de transição’.
Nesse grupo se incluem as propostas de ‘economia privada coletiva’, que
articulam trabalhos independentes ligados ao mercado, mas potencializados
por relações cooperativas e, em alguns casos, por vínculos solidários de raiz
cultural ou religiosa, ou por movimentos de reivindicação específica, como os
étnicos ou os de gênero. Essas propostas incluem, em primeiro lugar, os mode
los de ‘economia coletivista’, tais como os sistemas cooperativos ou mutuados
solidários, sem fins lucrativos, orientados para a reprodução e a melhoria de
seus associados. Ocasionalmente, eles assumem a forma de redes de microem-
presas locais, orientadas para a produção ou a comercialização, o que lhes
facilita o acesso ao crédito e à tecnologia. Uma variante próxima é a das ‘em
presas comunitárias’, as quais, diferentemente das anteriores, centram sua
ação na comunidade ampliada, e não apenas nos associados, orientando-se
para o benefício comunitário (aqui se incluem as associações de produção
artesanal, as redes de permuta e as feiras de consumo popular). Também se
destacam nesse grupo as experiências de ‘economia solidária’, muito ligadas à
doutrina da opção cristã pelos pobres, e que vão além do sustento meramente
econômico e se abrem para o trabalho voluntário e as doações, cuja validade é
estabelecida em termos éticos. E, por último, faz parte dessa vertente o modelo
da ‘empresa social’, que agrupa setores especiais e desprotegidos para lhes
dar uma coesão produtiva, questionando o assistencialismo e visando não
apenas à produção de mercadorias, mas também a um valor social agregado,
sob a forma de comportamentos e instituições alternativos; para esse modelo,
o mercado não é alicnante nem excludente, mas sim uma intersecção entre a
empresa e o mercado, no que tange à assistência social (Coraggio, 1999).
Muitas das variações anteriormente descritas foram concebidas a partir
da conflituosa década de 1970 - período estremecido por movimentos traba
lhistas e estudantis e por um intenso debate de alternativas - e foram influen
ciadas tanto pelo pensamento socialista da época quanto pelo chamado ‘socia
lismo liberal’, que desde então já acumulou avanços importantes no campo da
ciência econômica, entre outros assuntos, em torno do questionamento do cres
cimento econômico como critério central e medida do desenvolvimento social.
Começou-se a questionar a ‘ditadura do PIB’, como indicador onipresente e
profusamente usado pelas entidades internacionais para formular suas estatís
ticas da pobreza. Esta última corrente teve em seu centro a doutrina da ‘liber
dade individual como compromisso social’, de Amartya Sen, inspirada no prin
cípio ético da liberdade individual, como um valor central dotado de uma
180
dimensão positiva (a liberdade de fazer algo) - na qual o importante, acima de
tudo, é a liberdade de preferência ou de escolha - e de uma dimensão negativa
(o libertar-se de algo). O resgate da liberdade individual é fundamental para
essa doutrina, visto que uma de suas metas primordiais é a superação das
teses clássicas do utilitarismo (elaborado por Jeremy Bentham e desenvolvido
por John Stuart Mill), para o qual o importante é obter a 'felicidade máxima do
maior número de pessoas', alcançar o prazer ou bem-estar ('utilidade'), recha
çar a dor ou a infelicidade e realizar o chamado ‘ótimo de Pareto’, que procla
ma como estado ideal a situação em que é impossível aumentar a utilidade de
um indivíduo sem diminuir a de outro, meta esta a que se chega com a preci
são do 'cálculo de utilidades'.38
A 'teoria da liberdade como compromisso social’ supera a racionalidade
fria do crescimento econômico e da disponibilidade de renda, e incorpora as
dimensões afetivas, morais e culturais que determinam a capacidade de as pes
soas funcionarem e procurarem fazer com que suas escolhas maximizem as
utilidades (Sen, 1970, 1982, 1985). No caminho de sua construção teórica, o
autor deparou, em primeiro lugar, com o problema de como definir a felicidade
e o bem-estar, e, em segundo, com a necessidade de superar o utilitarismo
clássico, unicamente preocupado com a soma das utilidades, mas não com
sua distribuição desigual na sociedade. Para resolver esses dilemas, adotou a
teoria da justiça de John Rawls39 e afirmou que a questão é distribuir de forma
eqüitativa não apenas a renda e os recursos, mas também as capacidades e
funções humanas fundamentais, ou seja, a capacidade de viver uma vida dig
na e sensata, mais do que de acumular bens (Saint-Upéry, 2000).
Em suma, o modelo de Sen desvia a atenção dos bens e recursos primários
para as capacidades e liberdades, com o que o autor pretende desatar o nó da
estreita ótica da desigualdade como diferença de recursos e possibilidades de
acesso, a fim de considerá-la como resultado de outro tipo de determinantes
(classe, gênero, capacidade física e até localização geográfica); para ele, por
tanto, a liberdade individual é um compromisso social. Trata-se de um enfoque
que sem dúvida afeta as formas convencionais de medir a pobreza, que com
isso deixam de se reduzir a indicadores de baixa renda e passam a incluir
38 Vista por essa óptica, entretanto, uma sociedade de opulentos e miseráveis pode encontrar-se
no 'ótimo de Pareto', porque é impossível melhorar a vida dos miseráveis sem prejudicar os
interesses materiais dos ricos.
39 John Rawls afirma que a questão é distribuir eqüitativamente o que ele chama de 'bens
primários', cuja distribuição seria norteada por dois princípios básicos de justiça: todas as
pessoas têm os mesmos direitos, num esquema de direitos e liberdades fundamentais, e o
mesmo esquema é válido para todas; além disso, as desigualdades sociais só se justificam nos
cargos mais altos, acessíveis a todos com igualdade de oportunidades, mas em posições a
partir das quais se deve oferecer o máximo de benefício aos menos privilegiados.
181
termos que caracterizam a insuficiência de liberdade, incompatível com uma
existência satisfatória, e demonstram uma carência de capacidade (Sen,
2000). Dessa maneira, resgata-se a importância de reconhecer como aspec
to-chave do nível de vida a faculdade de transformar a renda e os bens em
capacidade e liberdade.
O neo-utilitarismo de Sen desdobra-se, portanto, em três níveis de análise:
o das capacidades, o dos modos de funcionamento e o dos bens. O meio físico
e social, assim como as características pessoais, determinam as caracte
rísticas materiais e os bens necessários para garantir a capacidade de funci
onamento das pessoas, o que, por fim, e havendo um certo estado psíquico,
determina a utilidade que elas alcançam. Em outras palavras, o que faz esse
modelo neo-utilitário é inserir a mediação das capacidades, pois o modelo
neoclássico simplesmente relaciona (no caso típico de um consumidor) a liber
dade de escolha e o funcionamento (consumo) da pessoa num certo estado
psíquico (preferências), situando como única limitação os recursos disponí
veis, sem levar em conta as capacidades (Desai, 1994).
Sen insiste no fato de que a faculdade diferenciada das pessoas de trans
formar a renda e os bens em capacidade e liberdade depende de condições
sociais que as políticas devem modificar, e assinala que, por exemplo, ‘a
situação da saúde pública e do ambiente epidemiológico pode ter uma influên
cia profunda na relação entre a renda pessoal, por um lado, e a liberdade de
desfrutar de boa saúde e vida longa, por outro, pois alguns dos países mais
ricos, como os Estados Unidos, são muito atrasados nesse aspecto, e a liber
dade positiva de viver sem uma mortalidade prematura é um compromisso
da sociedade (Sen, 2000).
Outra proposta transicional é o ‘modelo de desenvolvimento em escala
humana' (Max-Neef, Elizalde & Hopenhaydn, 1986; Max-Neef, 1999), uma ofen
siva interessante contra o produtivismo e o instrumentalismo, embora não
corte as amarras no que concerne a sua base estrutural - perspectiva muito
próxima da de Sen. Ela propõe uma economia humanista que, segundo seus
autores, implica, fundamentalmente, conseguir a transformação da pessoa-
objeto em pessoa-sujeito, e a correspondente substituição dos ‘indicadores de
crescimento quantitativo dos objetos' por ‘indicadores do crescimento quali
tativo dos sujeitos'. Esse modelo identifica a qualidade de vida como a possibi
lidade de as pessoas satisfazerem adequadamente seu sistema de necessidades,
o qual, em essência, seria idêntico em todas as sociedades, diferindo apenas
quanto aos elementos de satisfação correspondentes. Aqui, a chave está em
decifrar a dialética entre necessidades, elementos de satisfação e bens econô
micos, mediante uma concepção da necessidade e da relação necessidade/
elemento de satisfação cujos aspectos insubsistentes já foram analisados numa
seção anterior, e que os autores expõem na forma de uma ‘matriz de necessi
dades e elementos de satisfação’.
182
As teorias que qualificamos de transicionais partem, em suma, de um
postulado básico que centra o desenvolvimento nas pessoas, e é justamente aí
que se enraízam a força e, ao mesmo tempo, a debilidade de sua proposta. Elas
situam o cerne de seu interesse na dimensão humana e na proteção integral da
qualidade de vida, e contestam que esta possa ser medida por uma divisão per
capita do produto interno ou peia receita/despesa familiar média; isso é muito
bom, mas elas isolam sua visão no individual, com o que cortam pela raiz a
possibilidade de uma emancipação humana e social verdadeira.
183
nacional de base regional que incorpore as massas heterogêneas no processo
de tomada de decisões - nos níveis local, regional e nacional -, à medida que
se configurem e se reforcem as bases econômicas dos segmentos populares,
num processo de acumulação orientado para atender às ‘necessidades básicas’
e que, para isso, redefina os padrões de produção e consumo. Para atingir esse
objetivo, propõe-se uma dinâmica de produção baseada na interação acordada
de atividades ‘de’ e ‘para’ o mercado interno e no encadeamento de produtores
de bens de massa simples e meios de produção que estejam a serviço deles,
com base num pluralismo tecnológico que desloque para um lugar secundário
a produção de bens e serviços de luxo. O eixo, portanto, é o aumento de uma
capacidade e habilidade ‘pessoais’ que reforcem as comunidades e os sujeitos
sociais (locais), caminhando, a partir daí, para o controle da acumulação
nacional - um controle local da distribuição do excedente, do mercado, dos
recursos naturais e das tecnologias. Trata-se de um modelo de desenvolvi
mento que tem a virtude de ser formulado como uma oposição à reprodução
dependente, centrada nas exportações e nos bens de consumo de luxo, e cuja
autocentração busca o desenvolvimento humano enfocado nas necessidades
e no aumento dos direitos, capacidades e realizações próprios, sobretudo de
comunidades locais e pequenos grupos, cujas identidades e sujeitos sociais
se construiriam, com isso, ‘de baixo para cima’, aproveitando as experiências,
os saberes e a ‘racionalidade oculta’ que seriam indispensáveis para se reto
mar o controle da acumulação. Tudo isso, é claro, com o apoio de um Estado
nacional democrático, que contribua, a curto prazo, para o desenvolvimen
to dessa força produtiva doméstica e do mercado interno, e trabalhe, a lon
go prazo, em prol do redirecionamento do modelo exportador primário,
sem desperdiçar os ‘nichos rentáveis’ do mercado mundial (Acosta, 1998;
Acosta & Schuldt, 1999).
Também faz parte dessa linha o modelo de ‘economia popular’ que se
autodefine como ‘não economicista’, e que desloca seu foco de interesse da
acumulação para a reprodução ampliada da vida humana, subordinando a
acumulação à satisfação das necessidades básicas de todos, para colocar a
produção como meio e a reprodução como sentido, o que equivale, para seu
autor, a situ a r os equilíbrios psicossociais acima dos equilíbrios
macroeconômicos (Coraggio, 1998, 1999). A estratégia proposta para alcançar
seus objetivos é a construção de um subsistema de economia popular centrado
nas unidades domésticas de trabalhadores do campo e da cidade, formais e
informais, braçais e intelectuais, nos moldes de um programa aberto que não
se encerra na vinculação nem na desvinculação da economia capitalista domi
nante. A chave desse modelo estaria em dar um salto para alcançar a solidari
edade orgânica entre os diferentes elementos e atividades populares, o que
pressupõe fortalecer a interdependência entre as unidades domésticas e as comu
nidades através de um intercâmbio reiterado, mediado pelo mercado ou por
184
relações diretamente sociais. Ele escolhe a unidade doméstica porque seu
objetivo último é uma reprodução ampliada da vida que não se reduza aos
níveis básicos da necessidade, mas seja uma busca de qualidade na vida sem
limites intrínsecos, e também porque o recurso principal dessa unidade é o
fundo de trabalho de seus membros.
É evidente a influência dos modelos que antes chamamos de transicionais
nessas duas últimas propostas, que buscam uma guinada emancipadora e
democrática para a economia.
Entretanto, o traço que mais preocupa é que talvez seja muito arriscado
propor a possibilidade de uma separação viável entre a economia empresarial
monopolista, a economia pública e a economia popular, e construir um processo
de reforma profunda, com uma opção emancipatória, quando continuam intac
tos os elementos-chave da estrutura de poder e hegemonia, e quando se parece
querer deixar a construção política entregue a esse tipo de construção espontâ
nea, ‘de baixo para cima’, de redes comunitárias e cidadãos democráticos.
Daí a necessidade de dar mais alguns passos à frente e propor um ‘modelo
de emancipação humana popular' (Breilh, 1995a, 1999b; Hidalgo, 2000) que
articule algumas das contribuições anteriormente delineadas, porém numa vi
são integradora que as insira num processo de libertação econômica do siste
ma de propriedade monopolista; que integre na construção de baixo para cima
um poder popular multicultural, veiculado num bloco popular contra-hegemô-
nico, a fim de transformar não só a estrutura do poder econômico, mas tam
bém o sistema de poder político, desmantelando o Estado atual para dissolver
o poder vigente e viabilizar o desenvolvimento da democracia; e que, por fim,
integre o avanço do multiculturalismo e a incorporação de todos os saberes na
edificação de uma nação em que caibam todos os projetos populares - tecendo
uma trama de estreita comunicação entre esses projetos - gerados a partir da
luta dos partidos e movimentos sociais, desde os movimentos étnicos e de
gênero, mas institucionalizando os processos de descentralização profunda,
de desburocratização e de dissolução de todas as estruturas clientelistas.
185
saúde, mas resultam do cerco de hegemonia, persuasão e até chantagem, vez
por outra, montado pelo BiM e seus apêndices institucionais, e apoiado no
crescimento de ciências sociais neoconservadoras, que se multiplicam em pro
gramas funcionalistas de pós-graduação que desarticulam qualquer análise
referente às raízes estruturais dos problemas. Tudo isso reveste o discurso da
reforma de uma terminologia aparentemente inovadora, mas impulsionadora
de mudanças meramente formais, as quais, no caso das políticas de saúde
traçadas pela reforma da Colômbia, por exemplo, só conseguiram elevar as
contribuições, aumentar as exigências possibilitadoras do direito à saúde e
elevar os limites etários para a concessão de pensões, ao mesmo tempo redu
zindo os benefícios, de tal forma que agora as pessoas contribuem mais para
receber menos (Redondo & Guzmán, 1999).
Temos de começar a chamar as coisas por seus nomes e a olhar o caminho
da reforma com outros olhos, mais abertos e críticos, mais atentos às arestas
e aos contrapesos que nos foram impostos pelo pensamento hegemônico. Deve
mos inserir toda a análise no cenário atual dos países do mundo periférico e,
dentro dessa linha, temos de voltar atrás e examinar as propostas da nova
epidemiologia, sem perder a lembrança de nossa luta, mas reconhecendo que
nosso paradigma enriqueceu-se notavelmente.
O trabalho epistemológico realizado permitiu-nos formular avanços im
portantes e, nos anos mais recentes de m aturidade do processo, de
(re)construção teórica, começamos a compreender que ainda não estava cla
ro o objeto da epidemiologia, e foi nessa linha que se propuseram reflexões
de enorme transcendência. Creio que a pressão atual nos faz reconhecer que
teremos não apenas de trabalhar na construção do objeto, mas de reformar
profundamente o campo de ação; é também urgente ‘trabalharmos na cons
trução do sujeito da epidemiologia’.
Tão sério é esse desafio de construção de uma nova subjetividade para
os povos subordinados do mundo, que ele se tornou flagrante nos eventos
cruciais que definiram seu futuro nos últimos anos: as mobilizações maciças
de repúdio ao neoliberalismo que terminaram em revoltas contundentes -
como no caso do Equador, em várias oportunidades, e no da Argentina, em
nossos dias -, mas que, uma vez derrotados os governantes neoliberais e
revogado seu mandato pela vontade geral, não resultaram em nada, ante a
ausência de um projeto emancipatório compartilhado e unitário e de uma
organização ou bloco revolucionário que desse continuidade ao impulso re
novador das populações mobilizadas. Os mesmos grupos monopolistas que
agrediram nossa qualidade de vida, mediante a exploração, a corrupção e a
entrega de nossos recursos estratégicos, são os que voltaram habilmente
a tomar as rédeas do poder.
Uma explicação completa e rigorosa dessa derrota ou esterilização da von
tade popular ultrapassa as possibilidades deste trabalho; queremos apenas
186
destacar que, em qualquer análise dessa problemática, é preciso levar muito a
sério um fato histórico que tem muito a ver com o tema da construção do
sujeito coletivo: os ciclos de dominação e de ludíbrio da vontade popular são
produto, em larga medida, de havermos esquecido ou rechaçado o pensamento
revolucionário, de termos caído na armadilha que nos ofereceram, de relegar
mos a riqueza das doutrinas emancipadoras, e de havermos acreditado no
conto do vigário.
Na falta de uma ideologia revolucionária, e tendo permitido o desmantela
mento e a desqualificação de nossas organizações e agremiações pelo poder,
nossas populações ficaram aprisionadas na imobilidade, ou em mobilizações
maciças sem bússola nem sustentabilidade. Foi isso que Gramsci quis impli
car quando analisou, em seus Cadernos, o papel conservador da chamada
sociedade civil, quando ela funciona como um conjunto de fortificações da
opinião pública ligadas ao Estado dominante, ou manipuladas por seus agen
tes. Foi também o que quis expressar Agustín Cueva, quando apontou o exem
plo da sociedade civil dos Estados Unidos como a mais mobilizada e, ao mes
mo tempo, a mais conservadora. Portanto, a história nos está apresentando a
conta por termos arquivado as idéias de transformação profunda da sociedade
e a crítica aos fundamentos estruturais da ineqüidade que, a partir do século
XIX, foram forjadas nos dois lados do Atlântico, tanto no sul quanto no norte,
e que relegamos ao esquecimento, justificando essa imensa operação autodes-
trutiva pelo fracasso do socialismo real europeu e pelos componentes episte-
mológicos superáveis de doutrinas como o marxismo, que se equivocou em
muitos assuntos, mas acertou onde realmente importa.
Nas ciências sociais e na epidemiologia, essa orfandade de ideais utópicos
verdadeiramente emancipadores se fez sentir, e nos forçou a uma etapa confu
sa, ziguezagueante ou até regressiva do pensamento, em muitos casos, a qual
se prestou às acomodações e ao servilismo intelectuais.
É por esse motivo que sustentamos enfaticamente que a consolidação de
um projeto humanista popular - do qual tanto depende uma epidemiologia
crítica - passa pela recuperação seletiva das melhores idéias das doutrinas
emancipadoras, assim como pela recuperação, também seletiva, das melhores
idéias em prol da humanização da sociedade geradas a partir dos espaços não
acadêmicos e dos saberes dos outros. Esse processo de recuperação certamen
te não será fruto de um grupo de iluminados, nem tampouco de qualquer tipo
de elite. Seguindo Gramsci, cremos que esse processo será fruto do encontro
das massas organizadas de postura renovadora e dos intelectuais orgânicos
com os interesses estratégicos desses povos. E o que é válido para a dimensão
geral da construção do projeto neo-humanista popular é igualmente válido
para os espaços especializados de construção, como a epidemiologia e seu
objeto/conceito/campo (Gramsci, 2000).
187
Quanto à recuperação do saber dos outros, há muito trabalho a fazer em
nossa disciplina. Se formos coerentes com o desafio do segundo corte episte-
mológico do reencontro da ciência com o senso comum e os outros saberes
(Santos, 1995), o pensamento epidemiológico deverá incorporar uma parcela
maior desses 'outros saberes', e não se centrar exclusivamente na linha acadê
mica ‘ocidental’, por mais importante que ela possa ser. Só assim a epidemio-
logia poderá recuperar sua capacidade de também contribuir para a crítica dos
modelos de gestão, arejando o campo de análise através do rompimento da
camisa-de-força do enfoque do risco.
É em relação a tudo isso que ganha um novo sentido o trabalho de renova
ção teórica, metodológica e técnica da epidemiologia, ao ser articulado com
um modelo integrado de desenvolvimento humano e ao incorporar toda a ri
queza da atual mudança de paradigmas e da assimilação do pensamento hu
mano com um sentido multicultural. Propõe-se aqui a articulação conceituai e
prática do modelo de desenvolvimento com o modelo de intervenção e investi
gação na epidemiologia.
No campo sumamente condicionado do que é feito nas instituições oficiais
sob a égide da chamada ‘epidemiologia nos serviços’, há muito mais a fazer do
que apenas desenvolver uma ‘vigilância epidemiológica’ rotineira e burocratiza
da, pois, se a idéia de saúde coletiva é mais do que o somatório problemático
dos casos atendidos ou ‘de risco’, então, ao abrirmos o conceito de serviço
para a íntegra do desenvolvimento humano, encontramos diversos campos de
aplicação no planejamento participativo das ações em todos os campos de de
senvolvimento da necessidade social de saúde que descrevemos antes - consti
tuindo-se ele numa ferramenta de planejamento estratégico, de monitoramento
participativo dos processos críticos da saúde, de concepção de mecanismos de
controle e avaliação social e de reconstrução dos sistemas de informação, a
fim de superar a desvirtuação do conhecimento por informações mal cons
truídas, embora amplamente divulgadas, passo este que é necessário para
pensarmos no desenvolvimento humano e da epidemiologia a partir de uma
perspectiva emancipadora (Breilh, 1999e).
O cenário histórico da América Latina facilitou um reagrupamento das
forças de resistência dos povos e determinou a conseqüente recomposição
de sua luta. Agora fitamos o desafio de reagrupar democraticamente o ta
lento que existe em nossos países no campo da saúde coletiva, resgatando
a memória do movimento que começou a ser desmantelado devido ao terná
rio do BM, e recuperando criticamente a riqueza do pensamento que come
çou a ser seqüestrado e desconstruído pelo neofuncionalismo da saúde pú
blica internacional e oficial.
A segurança humana integral, o problema da igualdade necessária e trí
plice de acesso e participação - social, étnica e de gênero -, a conquista do
direito universal a serviços e programas da mais alta qualidade, o estímulo
188
urgente a um processo de humanização e proteção da vida em todas as suas
dimensões - de trabalho, de consumo, de reprodução cultural e subjetiva, de
promoção e defesa de uma ecologia saudável e de implementação de uma
construção multicultural das formas e sentidos da organização -, todos es
ses são pontos nodais da nova política pela qual lutou o movimento da medi
cina social latino-americana desde seu nascimento, na década de 1970, e
desde seu aparecimento formal no Congresso de Ouro Preto, em 1985, e que
agora, graças à alquimia de um punhado de tecnocratas submissos, apaga
ram-se das agendas, ou foram nelas transformados em simples elementos de
uma confusa retórica neofuncionalista.
Com base na perspectiva social que inspira nossa proposta, é importante
resgatar essa linha emancipadora e levar ao desenvolvimento de um projeto
de reforma alternativo, que já não se encarna nas instâncias que o apoiaram
nas duas décadas anteriores, mas se expressa na agenda ampliada do debate
social das assembléias e congressos dos povos, que têm formulado saídas
verdadeiramente inéditas para a armadilha em que caiu a América Latina.
Fazê-lo significa instituir uma separação entre a abordagem da reforma e a
lógica funcional e regressiva que se apoderou dos foros e centros de estudo
hegemonizados pela doutrina do BM, bem como de todas as agências de coo
peração que acabaram por se submeter à visão deste. Em outras palavras, é
preciso arejar os espaços de debate da reforma e revelar a lógica que está por
trás do súbito interesse institucional por esse tema, o qual, noutras épocas,
foi marginalizado do ideário oficial e debatido unicamente nas publicações
da literatura contra-hegemónica.
189
7
Da Epidemiologia Linear
à Epidemiologia Dialética
191
História da Saúde Pública, de que maneira primou, nos séculos XVI e XVII, a
teoria da ‘constituição epidêmica', que deu primazia à constelação de estados
climáticos e locais ligados à morbidez da época, e também a teoria do contá
gio, desde então referida à idéia difusa das ‘sementes químicas' ou ‘leveduras’
que se supunha provocarem a doença (Rosen, 1994). Mas o desenvolvimento
da observação científica possibilitou a constituição disciplinar da epidemiolo-
gia, mediante um processo que Ayres (1997) sintetizou em seu valioso ensaio.
O período constitutivo da epidemiologia ocorreu entre 1872, com o nasci
mento da Associação Norte-americana de Saúde Pública e o início dos anos da
Grande Depressão, em 1929. O nascimento da American Public Health Associa
tion foi produto da influência do pensamento humanitário, como reação ao
projeto socialmente despreocupado do liberalismo industrial que se seguiu à
Guerra da Secessão. Nesse período, o sanitarismo norte-americano moveu-se
entre três correntes.- ‘ambientalista’, articulada com a Universidade de Harvard
e a preocupação de cientistas, como William Sedgwick, com o saneamento do
‘meio externo'; ‘sociopoiítica’, vinculada à Universidade de Columbia, a trabalhos
como os de Winslow e às propostas de reforma legislativa e mudança dos
modos de vida; e uma corrente ‘biomédica’, ligada à Universidade Johns Hopkins
e à influência de cientistas como o biomédico Henry Welch, inspirado na higiene
científica alemã, que propugnava a ênfase biológico-experimental, a aplicação
da biometria e os modelos estatísticos mais rigorosos, ao que vieram somar-se
a corrente pedagógica do flexnerismo e a influência da Fundação Rockefeller,
que resultou na criação da Escola de Higiene e Saúde Pública. Esse ‘modelo
Hopkins’ acabou por se impor. O grande modelo inspirador dessa corrente foi o
alemão Pettenkofer, que reivindicava a higiene como ciência experimental e
usava o conceito de ‘meio’ como ferramenta para pensar sobre o ‘contágio’.
Pettenkofer ligou a economia físico-química do organismo individual à
economia do meio. Sua posição situou-se entre os extremos do contagionismo
e do anticontagionismo, sustentando que, para que ocorresse o produto ‘Z’ de
um veneno como o da cólera, era indispensável que se juntassem o fator ‘x’ do
germe e o chamado fator *y’, que seria o substrato de tempo e espaço capaz de
conferir aos agentes sua manifestação epidêmica. Winslow modificou essa
fórmula, enunciando-a como uma relação: A(alta2.... ax) - B(b,,b2.....bx) = C,
onde A é o poder do germe; a,,a2.... ax são os fatores variados que aumentam a
transmissibilidade; e b,,b2.....bx são os diversos fatores que aumentam a
resistência do hospedeiro. Nessa etapa, os procedimentos matemáticos tiveram
um lugar subalterno. Com o tempo, entretanto, a ênfase deslocou-se para ‘x’ e
se afastou do fator *y’ e das preocupações com o ‘meio’. O conceito de ‘risco’ foi
substituindo o de meio, embora, nessa década de 1920, ainda ocupasse um
lugar marginal. Na referida etapa, a idéia de risco estava ligada às de ‘ameaça’
ou ‘perigo’, mas não às de probabilidade e acaso; naquele momento, não
interessava a idéia de gradação. Esteve implícito, nessa fase, o resgate do
192
conceito sydenhamiano de ‘constituição epidêmica’, embora o conceito de
risco desempenhasse um papel periférico e de caráter basicamente descritivo.
Surgiu em seguida, segundo Ayres, a etapa da ‘epidemiologia da expo
sição’ (1930-1945). O período de depressão iniciado em 1929 esfacelou o
sonho norte-americano e foi de crise social (a época do ‘New Deal’), claman
do-se então pela centralização e pela intervenção do Estado. O conceito de
‘exposição’ apareceu nas décadas de 1930 e 1940, e o conceito de risco
adquiriu para ele um destaque maior e uma dimensão analítica: o risco,
nesse caso. referia-se às condições de susceptibilidade individual que de
terminavam o comportamento epidêmico das doenças infecciosas; o risco já
não qualificava uma condição populacional, mas indicava uma relação entre
fenômenos individuais e coletivos.
Veio finalmente a terceira etapa da epidemiologia do risco (1946-1965). Só
depois da Segunda Guerra Mundial - etapa do preventivismo do pós-guerra - é
que o conceito de risco pôde alcançar a plenitude de seu desenvolvimento e
uma centralidade plena na disciplina, como parte de uma concepção tecnicista
e de quantificação. Passou a designar as probabilidades de susceptibilidade
atribuíveis a qualquer indivíduo de um grupo particularizado, de acordo com
seu grau de exposição a agentes de interesse técnico ou científico.
Importantes saltos conceituais caracterizaram então as diferentes for
mas de incorporação do conceito de risco na conformação da epidemiologia
moderna. As práticas sanitárias do fim do século XVIII haviam facilitado os
primeiros sistemas de classificação demográfica da morbidez, surgidos no
alvorecer do capitalismo da Grande Indústria, época na qual foi despertado o
interesse pela quantificação dos fenômenos ligados à força de trabalho e aos
fenômenos socioeconômicos correlatos. Essa foi uma etapa em que a demo
grafia e a econometria começaram a se articular com os inventários de mor-
bidade/mortalidade e estabeleceram a relação dos fenômenos econômicos e
sociais com os eventos do adoecimento e da morte. Depois, em meados do
século XIX, quando os processos do âmbito público da vida passaram a ser
vistos como um espaço de facilitação ‘extra-orgânico’, ou ‘meio externo’ - no
qual ocorriam as causas dos fenômenos orgânicos do ‘meio interno’ -, aban
donou-se o enfoque das relações gerais entre o biológico, o político e o econô
mico, e o olhar da epidemiologia voltou-se para a ‘mecânica de meio interno/
meio externo’ para a qual Canguilhem havia chamado a atenção (Ayres, 1997).
Nesse momento, a idéia mais concreta e observável ou ‘visível' de ‘trans
missão’ colocou-se no centro do saber epidemiológico, substituindo a vaga
noção de contágio, referida a um medo impreciso e mais ligada aos sentidos do
tato e do olfato (Czeresnia, 1996). E somente em meados do século XX é que se
impôs a nova racionalidade do causalismo de base biológica, e então a idéia
naturalista dos fenômenos epidêmicos foi substituída pela idéia probabilística
da causalidade, traduzida na ‘idéia de risco’ (Almeida-Filho, 1989, 1992c).
193
A partir desse momento, surgiu o ‘paradigma do risco’, que identifica o
possível com o provável, o populacional com o amostrai e o populacional com
o individual. Inscreveram-se assim uma forma de reducionismo e um caminho
de constituição formal da cientificidade da epidemiologia que desfizeram os
vínculos entre os fenômenos epidemiológicos e os processos mais gerais.
No decorrer deste capítulo, passaremos em revista alguns detalhes e refle
xões críticas sobre esse argumento crucial, mas a partir de uma perspectiva
um pouco diferente. No centro de nossas ponderações colocaremos a idéia de
que, para o pensamento crítico, o ‘risco’ é uma idéia infeliz ou, pelo menos,
limitante, que nos pode atrelar a uma visão unilateral; é uma categoria que
não possui o sentido progressista que alguns autores lhe atribuem, mas está
profundamente marcada pelos princípios do positivismo. De qualquer modo, e
apesar do que foi dito e escrito sobre o paradigma do risco, é nossa opinião
que ainda é necessário nos aprofundarmos nesse tema, pois há cada vez mais
indícios de que ele constitui um obstáculo epistemológico e prático. Em suma,
nossa tese é que não se trata de avançar em direção a uma epistemologia do
risco, mas, ao contrário, rumo à sua superação.
194
A ‘hipótese de trabalho’ em que se baseia o conceito de risco seria assim
formulada: quanto mais exatas forem as medições do risco, mais claramente
se avaliará a necessidade de ajuda e melhor (ou mais eficaz) será a resposta.
Com o argumento de que seria preciso fazer uma discriminação positiva, no
sentido de dar maior assistência às necessidades com probabilidade mais alta
- ou seja, partindo de uma quantificação ou qualificação da prioridade confor
me a probabilidade -, o critério de priorização final seria: a maior necessidade
é o indicador, e a percentagem mais alta de variância também é explicada. A
epidemiologia se tornaria mais quantitativa, mais exata e mais científica, se
gundo a lógica dos autores.
O modelo descrito reifica nos chamados fatores de risco’ as ‘causas’ que a
ação deve combater e recomenda que as respostas sejam graduadas de acordo
com a contingência quantificada desses fatores (ver Gráfico 1):
R da população
>- 0 tema do livro:
como saber quais
constituem a, b e c
195
Antes de deixarmos assentados alguns questionamentos teóricos, sirva
mo-nos de um exemplo da recente resposta que se antepôs ao paradigma do
risco, para depois formularmos conceitualmente nossas ressalvas.
Um livro importante, recentemente publicado por uma das mais prestigio
sas universidades norte-americanas, estabelece a incapacidade do 'paradigma
do risco’ para enfrentar a proteção ecológica no tocante aos compostos clora
dos e, de modo geral, às substâncias químicas bioacumulativas - que são
praticamente a totalidade (Thornton, 2000).
Segundo o autor, a lógica paradigmática de enfrentar os fatores um a um,
admitindo sua descarga se e quando eles ultrapassarem um 'nível aceitável' de
contaminação, parte da falsa premissa de que os organismos, inclusive os dos
seres humanos, podem assimilar sem problemas um certo ‘grau ou nível do
fator’, com efeitos supostamente mínimos ou desprezíveis. Ou seja, a teoria
dos fatores de risco trabalha com conceitos quantitativos, como 'níveis' e ‘limi
ares’ de segurança.
Para estabelecer seus limiares aceitáveis ou de tolerância, o paradigma do
risco contempla o uso de índices ponderados quantitativos, a partir dos quais
se estabelecem os limites de descarga permitidos. Isso é feito por um processo
‘fator a fator'. É com base nesses critérios do paradigma que as indústrias, no
caso do exemplo fornecido, são obrigadas a implementar mecanismos termi
nais de controle {end-qf-the-pipe control devices) que captem os poluentes e os
transportem para outro lugar.
Thorton estabelece quatro tipos de motivos para o fracasso do paradigma
do risco.
Em primeiro lugar, essa abordagem do risco é uma abordagem terminal
(isnd-of-the-pipe), que invoca a ação já na fase final, depois que os poluentes
foram utilizados e estão por ser descarregados. Esse procedimento fracassa
por quatro motivos: a) quando o produto em si contém as substâncias quími
cas, os mecanismos terminais de controle não têm serventia; b) o que os meca
nismos de controle fazem é simplesmente tirar os poluentes de um local e
transpô-los para outro; c) as técnicas implícitas nos equipamentos de controle
deterioram-se e se perdem; d) os mecanismos de controle são concebidos para
filtrar os produtos até certo ponto, porque, para uma filtração ou extração
perfeitas, os custos seriam altíssimos.
Em segundo lugar, os conceitos de ‘capacidade de assimilação’ e ‘descar
ga aceitável’, que são os pilares do paradigma do risco, não servem para
fatores como as substâncias químicas que persistem ou se bioacumulam. Mais
adiante, veremos que não se trata apenas disso.
Em terceiro lugar, o conceito de ‘ponderação do risco’, outra ferramenta-
chave do paradigma do risco, não serve para sistemas complexos como os dos
organismos que vivem em ecossistemas, porque; a) não se dispõe da maior
parte das informações fundamentais para a ação preventiva-, b) as técnicas de
medição disponíveis são grosseiras, de modo que o caráter inócuo de um limi
196
ar estabelecido é muito duvidoso; c) sabe-se muito pouco sobre como funcio
nam os organismos em seus ecossistemas, de modo que é pouco o que se pode
realmente prever sobre o impacto de uma substância tóxica nesse contexto; d)
houve muitas surpresas com respeito a substâncias declaradas ‘seguras’ quanto
a um certo efeito, mas que depois se descobriu terem outros.
Por último, a quarta e poderosa razão - que se aproxima mais de nossa
linha de pensamento - é que, na melhor das hipóteses, o paradigma do risco foi
concebido para manejar ‘fatores’ bem definidos, localizados e de curto prazo de
ação, mas agir com essa lógica não impede que se dêem processos acumulati-
vos generalizados. Uma vez que ocorram os impactos generalizados, os siste
mas não estão orientados nem capacitados para enfrentá-los.
Em vista dos fracassos enunciados, o autor propõe um paradigma alterna
tivo, que denomina ‘paradigma ecológico’, o qual presume como ponto de par
tida o reconhecimento dos limites da ciência, porque a toxicologia, a epidemi-
ologia e a ecologia fornecem-nos chaves importantes para a ação, mas não
estão em condições de predizer ou diagnosticar os verdadeiros impactos dos
processos destrutivos. A única prática eticamente válida é a que se baseia no
‘princípio da precaução’, que consiste em evitar qualquer prática que tenha
um potencial destrutivo, inclusive aquelas em que a ciência não dispõe de
uma comprovação do impacto. Além disso, porém, o princípio citado deve ser
complementado pelos de ‘descarga zero’ (eliminação de e intolerância a subs
tâncias que se bioacumulem), ‘produção limpa' (reelaboração de produtos e
processos, para que eles fiquem livres de tóxicos) e ‘reversão do pagante’ (o
ônus econômico da demonstração da inocuidade de um produto ou substância
deve recair sobre o produtor, e não sobre a coletividade).
A crítica feita no exemplo anterior enfoca uma visão crítica do paradigma
do risco frente ao manejo de problemas de saúde derivados da contaminação,
porém há muito mais a dizer a esse respeito.
Castiel contribuiu para uma crítica da categoria de risco a partir da semi
ótica, utilizando a idéia de ‘quadrado semiótico’ (semiotic square), desenvolvi
da pela semiótica moderna e aplicada por Samaja à idéia de saúde (Castiel,
1999). Nessa operação lógica, primeiro se estabelece o termo ‘saudável’ ou
’sadio' {healthy), e depois se busca seu inverso, que seria o ‘enfermo’ ou ‘doen
te’ {diseased), mas também se depara com a contradição, que seria o ‘não-
saudável’ {non-healthy). Ora, aplicando as relações lógicas, podemos asseve
rar que o não saudável não corresponde exatamente ao enfermo, pois há situ
ações de vida em que as pessoas não estão doentes, mas se encontram em
condições destrutivas; seriam pessoas não saudáveis, ainda que não necessa
riamente enfermas. Desse modo, o autor chega à conclusão de que existe um
estado de ‘pré-enfermidade’ e de que haveria uma epidemia dessas 'pré-enfer-
197
midades’.40 Essa é uma elaboração de sumo interesse para o problema que nos
ocupa, porque aponta na direção de presumirmos, como parte do processo de
adoecimcnto, as referidas condições destrutivas, que só podemos separar em
piricamente da doença, e insinua a idéia de processo, do qual essas condições
de ‘pré-enfermidade’ fariam parte.
Castiel cita Pierce para questionar o reducionismo da epidemiologia do
risco (risk-ologic epidemiology)-. o descuido com a compreensão dos processos
econômicos, sociais e culturais, que faz recair numa visão reduzida; o re
ducionismo biofisiológico; a dependência da biomedicina; a falta de uma teo
rização rigorosa sobre a causação da doença; o pensamento dicotômico sobre
a saúde (doente/não doente); a massa de fatores de risco; a confusão entre
associações empíricas e causalidade; o dogmatismo sobre a validade de certos
desenhos epidemiológicos e a repetição excessiva dos estudos; com tudo isso,
esse tipo de enfoque utiliza mal os recursos limitados, culpabiliza as vítimas,
produz uma distorção das políticas referentes aos estilos de vida, descontextu-
aliza os comportamentos ‘arriscados’, quase nunca pondera a contribuição de
processos genéticos e sociais, e pode até recomendar intervenções perigosas
(Castiel, 1999).
Para além do indubitável avanço epistemológico, ético e político trazido
por subsídios como os que foram descritos, é possível formular outros ques
tionamentos profundos da lógica do risco.
198
ratura de uma moradia é reduzida mediante a colocação do termômetro dentro
de um cubo de gelo' (Kuhn).
A categoria do ‘risco’, como já foi dito, tem merecido uma atenção conside
rável no campo da cpidemiologia (Almeida-Filho, 1992c; Breilh, 1994; Ayres,
1997; Castiel, 1999), em campos afins, como o da saúde ocupacional (Freitas
& Gómez, 1997), e até no campo geral da sociologia (Beck, 1998), mas persiste
a necessidade de uma crítica profunda, seja para controverter certas avalia
ções histórico-epistemológicas, seja para complementá-las, porém, de qual
quer modo, na tarefa de expor o paradigma do risco como um instrumento
estratégico do causalismo positivista, claramente orientado para a instrumen
talização de um programa de saúde ligado à governabilidade.
O paradigma do risco, como toda formalização positivista, tem algumas
características, que são:
° esvaziamento do conteúdo histórico; reificação de 'fatores';
0 ausência de explicação dos processos generativos, ou reducionis-
mo probabilístico;
0 nivelamento ontológico, metodológico e praxiológico, no plano em
pírico, de fatores associados e manipuláveis;
° ambigüidade interpretativa.
A 'ambigüidade' assinalada refere-se ao fato de que o modelo interpretati-
vo recorta eventos de fácil identificação empírica, focalmente passíveis de pre
venção, aos quais outorga uma centralidade conceituai e prática, apesar de se
tratar apenas de processos terminais. Se o situarmos no modelo contemporâ
neo de Rothman e Greenland (1998), um fator de risco será aquele que mostra
uma alta prevalência de seu complemento causal.12 A causa suficiente seria
aquela que acarreta um mecanismo causal completo, isto é, aquela que reúne
um conjunto mínimo de condições para desencadear a doença.
O conceito de 'risco' centraliza etimologicamente a idéia de contingência
dos eventos causais considerados essencialmente ‘prováveis’. Mas a rigidez da
idéia de contingência não permite distinguir que, na geração das condições de
saúde, alguns processos atuam de forma estrutural ou permanente, outros
atuam de modo diário, embora não permanente, e outros, ainda, são de caráter
eventual. No caso ilustrativo sobre a epidemiologia da intoxicação que encerra
este capítulo, vemos a importância de distinguir na análise epidemiológica,
por exemplo, os padrões de exposição eventual, os de exposição crônica e os de
exposição permanente ou invariável, que preferimos designar por 'imposição'.
199
No quadro de referência do paradigma do risco, todos os processos a que
se alude com a designação de riscos seriam apenas ‘provavelmente’ destruti
vos; sua nocividade seria apenas contingente. E com isso se acaba por admitir
que, numa sociedade como a nossa, na qual a desigualdade se reproduz estru
turalmente, e na qual existe uma subjugação do humano ao produtivo e ao
mercantil, haveria margem para a plena reprodução da saúde - ou, pelo me
nos, para se ter esperança dessa possibilidade -, já que os riscos nela atuantes
seriam apenas prováveis, ou seja, seriam variáveis que poderíamos dominar
com o simples controle da variação de cada uma delas em níveis toleráveis. O
paradigma do risco, desse modo, enquadra-nos num mundo atomizado, no
qual os fatores de risco são variáveis, e sua variação é contingente; nenhum
deles faria parte de algo permanente nem teria na permanência uma de suas
qualidades, pois, nesse caso, deixaria de ser um ‘risco’ para se converter num
feito destrutivo. Em suma, nesse tipo de concepções, o contingente substitui o
determinado, em vez de se considerar o contingente e o regular como pólos de
um movimento dialético.
Se, por exemplo, aplicássemos a doutrina do risco a um processo de saú
de ocorrido num cenário produtivo de exploração monopolista e rigorosa lógi
ca da produtividade, como é a atual agroindústria de flores cultivadas para
exportação, e se examinássemos, com esse referencial interpretativo, o que
seriam os 'riscos do trabalhador’, estaríamos implicando que processos como
a triplicação das exigências de trabalho, a fim de suprir a demanda aumentada
em milhões de unidades de ‘flores perfeitas' para exportação, constituem ape
nas um ‘risco’ para a saúde, um dado de caráter eventual, quando, na verdade,
essa característica de tal atividade nada tem de eventual, porque é um proces
so inscrito na própria estrutura dessa forma de produção. Implicaríamos igual
mente, por exemplo, que a remuneração da força de trabalho abaixo dc seu
valor de reprodução em condições saudáveis é um ‘risco para a saúde', em vez
de reconhecê-la como uma forma econômica permanente, que faz parte do
modo de vida deteriorante dos trabalhadores. Em síntese, estaríamos convertendo
em 'riscos' ou ‘eventualidades’ aquilo que constitui processos destrutivos de
caráter permanente, e também estaríamos desvinculando esses ‘riscos’ do todo
que os reproduz e os explica.
Da mesma forma, usando a alquimia da teoria dos riscos no caso dos
exemplos já enunciados, estaríamos convertendo processos como a sobrecarga
de exigências do trabalho, ou como a remuneração abaixo de seu valor, em
‘riscos’, ou seja, em fatos ‘externos' à própria vida dos trabalhadores, e que só
podem agredi-los ocasionalmente, quando, na verdade, eles são inerentes ao
modo de vida dessa população trabalhadora e são, por conseguinte, uma parte
orgânica de seu sistema de reprodução social.
Por fim, e continuando com os processos de nosso exemplo, estaríamos
implicando uma concepção epidemiológica de relação linear - de causa e efei
to - entre os citados ‘riscos’ e as variáveis relacionadas com a saúde, com o
200
que reduziríamos a explicação a uma contingência ou a uma associação empí
rica demonstrável, quando, na realidade, trata-se de processos que, desmem
brados do movimento global do modo de vida que é sua explicação básica, são
automaticamente reificados em entidades desconexas e abstratas (ou fatores
de risco), as quais, com isso, perdem suas relações generativas.
A esse tipo de conclusões e críticas chegaram investigadores de diversos
campos. Tal como constatamos no exemplo anteriormente exposto da investi
gação ecológica das substâncias químicas bioacumuláveis, chegamos a estas
conclusões a partir da epidemiologia. As falácias do paradigma do risco que
enunciamos, ao nos referirmos à ecologia dos produtos químicos, tornam a se
apresentar quando analisamos epidemiologicamente os processos do modo de
vida, os processos laborais, os da vida de consumo cotidiano e os de relações
políticas, culturais e ecológicas caracterizadas por uma profunda ineqüidade e
discriminação social, bem como pelas incqüidades de gênero e etnoculturais.
E, por estarem baseados na ineqüidade, estes são processos restritos a formas de
remuneração injustas e infestados de estressores, de sobrecargas físicas e
de exposição a perigos, todos os quais seriam interpretados pelo paradigma
que aqui questionamos como ‘fatores de risco’, ou seja, como fragmentos con
tingentes de provável destrutividade, cujos efeitos poderíamos apenas atenuar
ou controlar, em vez de organizarmos nossas ações para eliminá-los, mudando
a própria estrutura ou a lógica essencial que os gera. Formulando isto nos
termos de uma contraposição de visões, o ‘paradigma do risco’ vem a ser o
paradigma do poder e da adaptação funcional de uma vida estruturalmente
insalubre, ao passo que o paradigma dialético da epidemiologia crítica se constrói
como uma visão contra-hegemônica que pretende modificar as bases mesmas
da vida social, tornando-a estruturalmentc propícia ao desenvolvimento da
saúde coletiva e individual.
A construção de um modelo de riscos, portanto, não passa de um processo
de mistificação que esconde a permanência da destrutividade do conjunto e
descontextualiza seus componentes.
As premissas estabelecidas nos parágrafos anteriores fazem cair por terra
os conceitos de ‘limiar’ e 'nível permissível', assim como o de ‘contingência de
risco’. Nos centros laborais concretos em que desenvolvemos nossa atividade,
nós, os epidemiologistas, quase sempre deparamos com empresários que de
fendem a contingência e a possibilidade de conservar limiares seguros, justi
ficando a persistência dos salários em níveis inferiores ao valor da força de
trabalho c, por fim, argumentando a favor de limiares e condições ‘possí
veis’ no arcabouço de um esquema de rentabilidade, enquanto os investiga
dores e a população afetada os denunciamos como processos destrutivos,
que apontam para necessidades permanentes de proteção da vida cujo não
atendimento cria grandes problemas de saúde. Trata-se de duas visões que
traduzem não apenas abordagens conceituais distintas, mas também inte
resses históricos distintos.
201
Além disso, como conseqüência lógica de sua concepção empirista e sua
estrutura formai associativa, o paradigma do risco, com seu modelo de aná
lise, reduz a realidade a um único plano - o dos fenômenos empíricos - e,
dentro desse arcabouço unidimensional, dá prioridade a ‘fatores causais' dis
tintos, de acordo com o critério probabilístico, quando, na realidade, essa
prioridade só poderia ser dada numa abordagem integrada, que analisasse
as condições objetivas e subjetivas da população como um espaço social,
com toda a sua complexidade.
A lógica do ‘paradigma do risco’ é vertical, com uma racionalidade centra
da no presente fatorial, um presente desvinculado dos processos históricos
de gênese (passado) e de emancipação (utopia), razão por que é uma teoria de
enorme utilidade para os modelos de gestão neoliberal e para a manipulação
da hegemonia na saúde. Ela é a base de uma epidemiologia sem memória e
sem sonhos de emancipação, presa à ditadura de um presente cuja persistência
é conseguida mediante mudanças de forma que chamamos de mudanças cos
méticas, as quais deixam intacta a estrutura insalubre.
Esses são motivos mais do que suficientes para nos empenharmos numa
crítica profunda de tal teoria, a partir da óptica da emancipação e da constru
ção de uma contra-hegemonia.
Pertence também à crítica do paradigma do risco o problema da superação
da negatividade do enfoque da saúde como ausência de doença, que já discuti
mos na introdução deste livro, e do correspondente desconhecimento do caráter
dialético e multidimensional da saúde, sobretudo no que diz respeito à con
tradição permanente entre os processos destrutivos e os processos protetores,
que explica a gênese das condições de saúde e de sua reprodução, ponto este que
abordaremos a seguir.
202
histórica) e uma idéia instrumental de futuro (utopia) articulados com uma
concepção clara do modelo humano.
O afastamento da idéia de ‘fator’, em prol da idéia de ‘processo’, leva à
ruptura com o princípio da identidade e à incorporação do princípio do movi
mento, recaindo essa mudança, em larga medida, no reconhecimento da natu
reza contraditória dos fenômenos da realidade.
As formas de devir que determinam a saúde desenvolvem-se mediante um
conjunto de 'processos'. Tais processos adquirem uma projeção distinta na
saúde conforme os condicionamentos sociais de cada espaço e tempo, ou seja,
de acordo com as relações sociais em que se desenrolam - condições que po
dem ser de construção da eqüidade, manutenção e aperfeiçoamento, ou que,
ao contrário, podem tornar-se elementos de ineqüidade, privação e deteriora
ção. Portanto, os processos em que se desenvolvem a sociedade e os modos de
vida grupais adquirem propriedades protetoras/benéficas (saudáveis) ou des-
trutivas/deteriorantes (insalubres). Quando um processo se torna benéfico, ele
se converte num favorecedor das defesas e suportes e estimula uma direciona-
lidade favorável à vida humana, individual ou coletiva, e, nesse caso, nós o
chamamos de ‘processo protetor’ ou benéfico, ao passo que, quando se torna
um elemento destrutivo e provoca privação ou deterioração da vida humana,
individual ou coletiva, nós o chamamos de ‘processo destrutivo’. Entende-se
que um processo pode corresponder a diferentes dimensões e campos da repro
dução social e pode, além disso, tornar-se protetor ou destrutivo, conforme as
condições históricas em que se desenvolva a coletividade correspondente.
Os processos epidemiologicamente ativos desenvolvem-se no seio de uma
formação social e são marcados pelas possibilidades reais de cada modo de
vida e suas relações, mas se materializam no movimento concreto de um estilo
de vida. Não se trata de que haja processos protetores e destrutivos separada
mente, mas de que, em seu desenvolvimento concreto, os processos da repro
dução social adquirem facetas e formas protetoras ou facetas e formas destru
tivas, conforme sua operação desencadeie mecanismos deste ou daquele tipo
nos genótipos e fenótipos humanos do grupo envolvido. Outrossim, a operação
num ou noutro sentido pode ter um caráter permanente, e não se modificar
enquanto o modo de vida não sofrer uma transformação profunda, ou pode ter
um caráter contingente ou até intermitente, quando há momentos em que
sua projeção tem uma ou outra natureza. Os processos, segundo sua im
portância na definição do caráter da vida e seu peso no modo de vida cor
respondente, podem provocar alterações de maior ou menor significação no
desenvolvimento epidemiológico.
O processo de trabalho, por exemplo, por ser um processo que afeta consi
deravelmente o padrão de vida, tem um impacto apreciável na configuração do
modo de vida e, quando adquire facetas ou formas destrutivas, costuma pro
vocar mudanças negativas profundas na saúde, ao passo que, por outro lado,
203
esse mesmo processo de trabalho desencadeia conseqüências protetoras im
portantes, mesmo quando se desenvolve em condições destrutivas. Isso equi
vale a dizer que um processo pode desencadear eventos dos dois tipos,
simultaneamente. O processo de trabalho ilustra o caráter contraditório da
vida social em relação à saúde: num caso hipotético, embora possa ser mal
remunerado e se realizar em condições estressantes, com sobrecarga da postura
física e exposição crônica a substâncias tóxicas (facetas destrutivas), contribui
simultaneamente, como qualquer trabalho, para a organização do tempo, a
aprendizagem, a construção de um sentido para a vida e para a obtenção de
um valor de mudança da força de trabalho (facetas protetoras).
Quais das facetas se expressam com mais força, ou se tornam mais osten
sivas no perfil epidemiológico, depende do modo de vida e da lógica que opera
na formação social correspondente. Sempre existe esse movimento de prote-
ção/destruição num determinado grupo, isto é, sempre estão em marcha os
momentos de proteção ou destruição da reprodução social, mas o fato de eles
se expressarem numa ou noutra direção, num dado grupo e num dado momen
to, depende do caráter ou da lógica com que funciona a reprodução social.
A investigação epidemiológica deve destacar alguns processos do perfil epi
demiológico como sendo de maior importância estratégica para a ação, quer no
sentido de evitar ou contrapor-se aos processos ou facetas destrutivos (preven
ção), quer no sentido de fomentar os processos ou facetas protetores (promoção
da saúde); a esses processos, selecionados por sua importância para a interven
ção e por sua capacidade de desencadear conseqüências significativas e susten
táveis no modo de vida, podemos dar o nome de ‘processos críticos’. Como em
toda contradição, o fato de um ou outro pólo não se fazer notar, ou não ser
empiricamente observável, não significa que ele não exista, mas apenas que,
nesse momento do desenvolvimento, encontra-se atenuado ou dominado. Esse
tipo de constatações, nós, epidemiologistas, o fazemos a todo momento, seja
quando enfrentamos nosso trabalho nos campos da epidemiologia trabalhista,
seja quando o fazemos no terreno dos problemas do consumo, ou também quan
do se trata de processos ecológicos.
Não se deve esquecer que, diferentemente da prevenção etiológica (como
no caso das vacinações ou da educação preventiva individual), a prevenção
epidemiológica profunda não necessariamente atua com pessoas, porém com
processos, e, quando mudamos um processo, ainda que não tenhamos visto
nem tocado numa única pessoa, criamos mudanças e impactos de enorme
transcendência para a saúde. A influência da lógica clínica ou assistencial faz
com que, muitas vezes, não se atente para essas ações de maior transcendên
cia, ou se invisibilizem os aspectos mais importantes da saúde, aqueles que
têm um impacto destrutivo ou protetor importante, ou seja, faz com que os
aspectos que continuam a ser determinantes-chave da saúde não sejam leva-
204
dos em conta, por se olhar a realidade num único plano e por não se aprender
a descobrir os processos gerativos subjacentes.
A epidemiologia empírica e o paradigma dos fatores de risco, ao reduzi
rem a realidade ao plano empírico, ao deterem o movimento e ao fracionarem
essa realidade, ficam inaptos a conhecer o movimento da determinação e a
ligação dos processos com a vida social em seu conjunto, e tanto uma limita
ção quanto a outra têm conseqüências importantes na atividade epidemiológi-
ca. O fato de não se permitir a compreensão da gênese dos processos e de se
ficar reduzido aos fenômenos 'terminais' é um grave obstáculo, como vimos
na epidemiologia ecológica; o fato de não se articularem diagnósticos que integrem
as determinações da saúde leva a uma lógica de focalização que contradiz
uma visão da saúde coletiva como âmbito emancipador.
A categoria do 'perfil epidemiológico’, desenvolvida em nossos trabalhos
anteriores (Breilh, 1979, 1997a), consiste, em larga medida, num recurso
para sistematizar, de acordo com as múltiplas dimensões da reprodução so
cial, os processos protetores e destrutivos que participam da definição da
forma de devir da saúde.
Nas versões originais de nossa formulação epidemiológica (Breilh, 1979),
optamos por designar essas dimensões protetoras e destrutivas dos processos
por 'valores' e 'contravalores', respectivamente, para implicar a ligação entre
o caráter benéfico ou destrutivo dos processos e sua qualidade como valores
de uso (bens que atendem à necessidade humana) ou sua negação, ligação esta
que deposita uma ênfase especial na dependência dessas características em
relação à economia política da reprodução social.
Neste ponto, convém ainda reforçar a compreensão do protetor e do des
trutivo, mas, acima de tudo, deve-se fazer um esforço metodológico de opera-
cionalização dessa renovação dialética.
No campo das propostas alternativas de planejamento de saúde, demos
impulso à articulação da epidemiologia crítica com o planejamento estraté
gico e, nesse terreno, a categoria de ‘processo crítico"13 é de grande utilida
de (Breilh, 2000).
205
deve projetar-se também numa crítica da categoria da ‘exposição’, pedra angu
lar do pensamento empírico da causalidade.
Na epidemiologia empírico-analítica, incorpora-se, sem nenhuma restri
ção, a categoria da ‘exposição’, que tem no verbo ‘expor’ duas acepções etimo
lógicas: ‘dispor uma coisa para que receba a ação de um agente ou influência’;
‘arriscar, pôr uma coisa numa contingência’.
Em cada uma dessas acepções, destacam-se, respectivamente, os concei
tos de ‘ação externa’ e de ‘arriscar', que constituem, a nosso ver, as pontes
semânticas para o paradigma do risco e a concepção causalista.
Com efeito, a ação de ‘expor’ é válida quanto às ações externas, implicando
uma relação externa de um ‘fator’ que atua ‘de fora para dentro'. Com essa catego
ria, é possível descrever ações externas como, por exemplo, a ação de uma causa
suficiente sobre um destinatário. A exposição de um trabalhador de culturas em
estufa a resíduos tóxicos de um pesticida é, à primeira vista, exclusivamente a
relação de uma substância tóxica externa com o organismo do trabalhador expos
to, mas não devemos esquecer que essa ligação de causa e efeito é apenas uma
das muitas formas de ligação ou relação dos processos nesse cenário, c que esse
vínculo de exposição não é isolado, nem sucede por uma simples contingência,
mas está inscrito num padrão de intoxicação que, por sua vez, adquire sua forma
e sua contundência epidemiológica no seio de um modo de vida grupai.
No paradigma empírico, essas outras categorias não fazem falta para
marcar a relação, porque, por definição, o paradigma só leva em conta as
relações associativas e causais. Todavia, quando se parte do paradigma da
epidemiologia crítica (realismo dialético), esse conceito se mostra pelo que é:
uma camisa-de-força rígida e reducionista, que impede a expressão das rela
ções não conjuntivas e das formas não contingentes.
Os processos destrutivos não são necessariamente externos, nem no nível
individual, nem no nível coletivo; sua materialidade destrutiva nem sempre é
exercida como uma noxa ou um agressor vindos de fora, mas é produto do
modo de devir contraditório, intrínseco ou ‘interno’, no qual as contradições
podem agir sem requerer mediações ou momentos de externalidade. Em outras
palavras, se o modo de conhecimento, isto é, o modo de ‘descrever para conhe
cer’, não começa segmentando pessoas e meios ‘expostos’ e ‘fatores’, mas
articula explicações integradas, em cujo movimento é possível estabelecer
entidades empíricas, é possível compreender as relações ‘internas’ do conjun
to e situar em seu bojo o movimento dessas entidades empíricas. No caso do
exemplo citado, a relação entre a substância tóxica e os trabalhadores não é
uma externalidade, mas uma relação inerente ao modo de vida e aos padrões
típicos de exposição, em cujo movimento, aí sim, a investigação pode reco
nhecer associações formais.
Uma segunda restrição que aparece ao analisarmos criticamente a catego
ria ‘exposição’ é que, quando não desarticulamos algumas possibilidades, ela
206
pode reduzir nosso espectro de análise ao que nos é apresentado como contin
gência. Não apenas somos ‘ex’postos aos processos, como também eles nos
são ‘im'postos. Ou seja, embora existam processos destrutivos que o indivíduo
se arrisca a sofrer como um problema contingente, isto é, como uma condição
que se pode dar ou não - mesma crítica que podemos fazer à categoria do
‘risco’-, existem, em contrapartida, modos de devir (formas de determinação)
que não nos ‘ex’poem como a uma eventualidade, mas nos são ‘im’postos cm
caráter permanente; nesses casos - que, aliás, são a maioria esmagadora das
situações epidemiológicas -, não existe contingência absoluta; não se trata,
por conseguinte, de saber se há uma intercorrência de tal ou qual evento isola
do, ou ‘risco’, que desencadeia o processo destrutivo com um certo grau de
liberdade probabilística, pois falamos aqui de um grau ‘zero’ de liberdade,
ou, melhor dizendo, de processos destrutivos permanentes, ou que, se não
são absolutamente permanentes, pelo menos manifestam contingências des
prezíveis. Daí resulta a necessidade de distinguir entre a exposição, como um
processo ‘ocasional’, ‘crônico’ ou diário, e a exposição (neste caso, mais
caberia dizer ‘im‘posição) como um processo permanente, contínuo ou inerente
ao modo de devir.
A distinção entre essas formas de ‘ex’posição, ou melhor, entre as for
mas de exposição ocasional e crônica e a ‘inVposição (ou exposição perma
nente ou intrínseca), é importante, porque permite separar os processos con
tingentes e tem um grau de probabilidade dos processos que são inerentes ao
modo de vida e atuam de forma invariável, e que, por conseguinte, têm zero
graus de liberdade. Estes últimos, para serem modificados - ou melhor, eli
minados - como determinantes epidemiológicos, requerem uma transforma
ção do modo de vida, porque os ajustes ou reformas superficiais não põem
fim a seu impacto.
Voltando ao exemplo da floricultura em fazendas de produção e exporta
ção de flores, devemos separar esses diferentes mecanismos de exposição. A
exposição ocasional a um pesticida, através de um mecanismo não ligado ao
modo de vida de um grupo - isto é, a um padrão de trabalho ou de consumo -,
nem tampouco a um estilo de vida cotidiano, é aquela que pode ocorrer, por
exemplo, quando um vendedor ambulante se expõe, ao se aproximar casual
mente de uma fazenda que esteja sendo fumigada. A exposição crônica é aque
la que adquire um padrão repetitivo, por estar inscrita num modo de vida
grupai, ou seja, ela implica regularidade e cotidianidade - é o caso da floricul-
tora que se expõe a um conjunto de pesticidas toda vez que entra na estufa,
diariamente, para realizar suas tarefas de cultivo. E, por fim, a imposição, ou
exposição intrínseca ou permanente, reflete-se, por exemplo, no padecimento
das conseqüências de um salário inferior ao valor de reprodução da força de
trabalho e na ampliação obrigatória da jornada de trabalho necessária, o que
constitui uma característica estrutural que está na base de um modo de vida
207
grupai e do sistema correspondente de contratação de trabalhadores, e acarreta
todo um cortejo permanente de processos destrutivos que deterioram a vida
dos integrantes do grupo, tais como a desnutrição, o déficit de repouso, a falta
de recreação e exercícios adequados às tarefas, a impossibilidade de maior
aperfeiçoamento físico e intelectual etc. Esse tipo de modo de vida acarreta
uma forma de reprodução social insalubre, e suas condições configuram um
verdadeiro padrão, que inclui ainda outros problemas que ocasionam uma
alta vulnerabilidade epidemiológica. tais como a falta de controle sobre o
processo produtivo.
Por tudo que vimos argumentando, podemos compreender que, no para
digma do risco, a concepção unilateral da ‘exposição' desempenha um papel
decisivo para completar uma visão reducionista. Também é possível deduzir
que este questionamento da preeminência das idéias de 'risco' e ‘exposição’
não significa que não possam existir 'riscos' e ‘exposições’ no decorrer da vida
- do mesmo modo que também existem causas. Outra coisa muito diferente,
no entanto, é elevar essas idéias ao stacus de princípio explicativo de toda a
epidemiologia, ou, pelo menos, de sua parte substancial.
<4 Vieira (1999) vê essas relações do ponto de vista de Bourdieu, que as enfoca como interações
dos indivíduos em meio à tríade ‘espaço social - campo - habitus', e observa as relações entre
as posições dos indivíduos no espaço social e as interações com outros indivíduos que parti
cipam de um mesmo campo de interações de seus estilos de vida, que seriam produto de seu
habitus. O habitus seria um princípio gerador de práticas objetivamente reconhecíveis e, ao
mesmo tempo, um sistema de segregação dessas práticas, e é com base nessas duas caracte
rísticas que se constituiria o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida.
208
São as ‘relações de poder’ que discriminam os grandes contrastes entre os
modos e estilos de vida dos grupos situados nos pólos sociais de uma socieda
de, bem como a capacidade de produção e negociação que têm os grupos para
a reprodução de sua vida em determinadas condições.
Para estudar a distribuição dos modos e estilos de vida (realmente existen
tes), que tanta importância tem para a epidemiologia, uma característica nodal
d a de ‘incqüidade’, que será explicada mais adiante. E, para a compreensão
cabal desta, é necessário abordar as características de ‘diversidade' e ‘desi
gualdade’, não só pela necessidade cognitiva de esclarecer seus significados
distintos, mas também porque elas são elementos inter-relacionados.
As sociedades não eqüitativas são aquelas em que existe um processo de
distribuição desigual do poder - não só do poder que controla a propriedade e
o uso das riquezas materiais, mas do poder requerido para definir e expandir a
identidade, os projetos e as aspirações a utopias.
A epidemiologia crítica é uma disciplina que se define como contra-hege-
mônica, o que significa que coloca seu arsenal conceituai e prático a serviço
dos ‘sem-poder’, que posiciona esse arsenal de maneira a lutar contra a ineqüi-
dade, e que se coloca a serviço do fortalecimento ou ‘capacitação' (empower-
m enty5 da subjetividade dos subalternos e explorados, bem como dos planos,
formas organizacionais e culturais que atendem a seus anseios históricos.
O que queremos situar com a imagem dos ’sem-poder' é o estado predomi
nante de subordinação ou de poder inferior que afeta a maior parte de um
grupo - de classe, étnico e de gênero - e que impede sua dominação sobre a
propriedade dos bens e riquezas, das formas de convocação da coletividade,
em seu conjunto, para os interesses próprios, da possibilidade real de moldar a
cultura e as formas de subjetividade, do manejo do saber e. como conseqüên-
cia, do acesso autárquico ao bem-estar e à liberdade plenos.
A opção da epidemiologia crítica pelos sem-poder não é apenas um ato
político sanitário, mas é também um ato epistemológico. O ponto de vista
dos sem-poder tem maior penetração na realidade, uma vez que, como dizía
mos há muitos anos, eles precisam utilizar no máximo grau possível a capa
cidade de autoconhecimento de sua sociedade, a fim de transformar uma
situação que os afeta (Breilh, 1979).
Em vários trabalhos anteriores, formulamos propostas de interpretação
de categorias indispensáveis para o conhecimento epidemiológico, como as de
diversidade, ineqüidade, desigualdade e diferença, bem como uma interpreta
ção da maneira como estas se desenvolvem no âmbito de uma estrutura de
poder na qual convergem as situações de classe, de gênero e etnonacionais
(Breilh, 1996, 1999e).
209
A ‘diversidade' dos atributos humanos, naturais e sociais dos diferentes
grupos de uma sociedade é uma característica consubstanciai da vida humana,
e nos ajuda a explicar o modo de devir ou a gênese da variação de característi
cas. Ela se materializa em processos como os de diferenciação de gênero, étnicos
e culturais. Os diferentes gêneros, etnicidades e grupos etários que fazem parte
da diversidade surgem de diferenças biológicas, como o sexo, a raça e a idade
biológica, em torno das quais se dão construções culturais e de poder.
Numa sociedade eqüitativa, o diverso frutifica como uma característica
enriquecedora e se constitui numa potência favorável, porque as relações entre
gêneros, interétnicas e interetárias são solidárias e cooperadoras, uma vez que
não há uma estrutura de poder que as rompa e que se alimente de sua ruptura.
Em outras palavras, o caráter heterogêneo da realidade e de seu movimento é
um princípio que faz parte da essência humana, na qual os vínculos e as
determinações recíprocas entre os grupos ocorrem por força da interdependên
cia e porque, embora exista a diversidade, existem também concatenações pro
fundas, que explicam o princípio da unidade entre os processos humanos soci
ais. A diversidade e a unidade se movem e se inter-relacionam dinamicamente.
Entretanto, quando aparece historicamente a ‘ineqüidade’, ou seja, a apro
priação do poder e sua concentração em determinadas classes, em um dos
gêneros e em algumas etnias, ao invés de ser fonte do avanço humano, a diver
sidade passa a ser um veículo de exploração e subordinação.
A ineqüidade não se refere à injustiça na repartição e no acesso, mas ao
processo intrínseco que a gera. A ineqüidade alude ao caráter e ao modo de
devir de uma sociedade que determinam a repartição e o acesso desiguais
(desigualdade social) que são sua conseqüência. Esta distinção é importan
tíssima, porque, se nossa análise estratégica se mantivesse no nível da desi
gualdade, reduziríamos ou desviaríamos nosso olhar para os efeitos, ao in
vés de enfocar seus determinantes.
A desigualdade, como fica explicado, é uma expressão observável, típica
e grupai da ineqüidade. Ela expressa um contraste - de uma característica ou
medida - produzido pela ineqüidade. É o caso da desigualdade salarial entre
classes sociais ou entre gêneros, que corresponde à ineqüidade no processo de
produção e distribuição econômica, ou o caso da desigualdade de acesso a um
serviço de saúde apropriado, entre as referidas classes, entre grupos etno-
nacionais ou entre homens e mulheres, que corresponde à ineqüidade do mercado
ou do comportamento distributivo do Estado. Portanto, a categoria da ‘desi
gualdade’ é a expressão observável de uma ineqüidade social.
A ‘ineqüidade’46 é uma categoria analítica que dá conta da essência do
problema, ao passo que a 'desigualdade' é uma evidência empírica que se
210
torna ostensiva nos conjuntos estatísticos, e para cuja compreensão adequada
é preciso desvendar a ineqüidade que a produz. A desigualdade é uma injustiça
ou iniqüidade (com ‘i’) no acesso, uma exclusão produzida com respeito à
fruição, uma disparidade na qualidade de vida, ao passo que a ineqüidade
(com ‘e') é a falta de eqüidade, ou seja, é a característica inerente a uma
sociedade que impede o bem comum e instaura a inviabilidade de uma
distribuição humana que outorgue a cada um conforme sua necessidade, e lhe
permita contribuir plenamente conforme sua capacidade (ver Quadro 8).
Por outro lado, à parte seu uso geral, designamos como ‘diferença' o pro
duto conjunto da diversidade e da ineqüidade, que, por sua vez, participa da
gênese da ineqüidade e da desigualdade e se expressa no âmbito da vida indi
vidual e biológica. No caso do estudo comparativo da vida e da saúde entre os
gêneros, é importante compreender que as diferenças observáveis que chegam
a se registrar são produto da combinação de uma configuração distinta do
genótipo com o fenótipo, que se desenvolve nas pessoas e em seu corpo, bem
como das formas de deterioração experimentadas.
PROCESSO EXPRESSÃO
CONTEXTO
GENÉTICO
(Oposição básica) Particular Individual
(Modo de devir)
SOLIDÁRIO DIVERSIDADE IGUALDADE DIFERENÇAS
Configuração
(Em meioà diferente das
diversidade) melhores
potencialidades
do geno-fenótipo
CONCENTRADOR INEQÜIDADE DESIGUALDADE DIFERENÇAS
(Acumulação de por deterioração
poder) desigual
211
rioração, as vulnerabilidades e as formas de resposta ou atitude frente à ação
são muito distintas entre os gêneros e entre os grupos etnoculturais.
Pois bem, cada uma dessas categorias pode ser desmembrada em subcate
gorias das quais a investigação epidemiológica pode lançar mão, para se apro
fundar nas determinações correspondentes.
212
Na prática, as coisas não são tão simples, pois nenhuma dessas fontes de
ineqüidade se desenvolve no isolamento; mas a verdade é que as ênfases unila
terais criaram um certo grau de confusão e um enfrentamento estéril, tanto no
plano acadêmico quanto no político. Expusemos em outro trabalho uma argu
mentação mais detalhada sobre essa polêmica (Breilh, 1996), mas cabe expor
aqui alguns argumentos que mantêm uma estreita relação com a tão necessária
reformulação da distribuição epidemiológica e com os procedimentos de estrati
ficação populacional que a epidemiologia crítica deve operacionalizar.
O primeiro contraste exibido por nossa formulação, em relação a outras
interpretações do assunto, é que os três processos de ineqüidade - classe,
gênero e etnicidade - guardam entre si unidade e movimento, sem com isso
implicar, de maneira alguma, que as categorias anteriormente enunciadas os
tentem o mesmo status hierárquico no conhecimento de nossa realidade. Esta
tese é importante para objetar à fragmentação inadequada das análises con
vencionais que manejam tais categorias separadamente, desmembrando ele
mentos que compõem a unidade de uma estrutura de poder, e que, embora
impliquem formas diversas de concentração e dominação, conservam uma es
treita intcr-relação em seu movimento (Breilh, 1979, 1996).
Um aspecto fundamental para nos aproximarmos dessa problemática, que
constitui como que um ponto de partida da análise, é distinguir ‘ineqüidade’ -
o processo que possibilita a concentração de poder - de ‘desigualdade’ - uma
manifestação empírica da ineqüidade, uma simples resultante. Lamentavel
mente, muitos estudos sobre o gênero e epidemiológicos são estudos sobre a
desigualdade resultante, mas desvinculados da análise da ineqüidade gerado
ra. Por isso, devemos conscientizar-nos de que uma investigação da desigual
dade, sem uma análise da ineqüidade, recai no mesmo erro de reduzir a reali
dade ao plano empírico ou fenomênico, sem ligá-la ao plano dos processos
generativos ou determinantes.
Em segundo lugar, as três fontes de ineqüidade - classe, etnicidade e gêne
ro - não são processos desvinculados. Isso porque, primeiro, os três processos
compartilham uma mesma raiz germinativa, que é a acumulação e concentra
ção de poder’, c segundo, porque os mecanismos de reprodução social dos três
tipos de ineqüidade se inter-relacionam. Da mesma forma que a ineqüidade de
gênero produz efeitos de injustiça para as próprias mulheres, ela alimenta, ao
mesmo tempo, relações subordinadoras que contribuem para reproduzir as
outras duas formas de concentração do poder, e introduz nas mais variadas
formas do cotidiano um campo de adaptação e aceitação da ineqüidade como
um modo natural de viver. Da mesma forma, a concentração da propriedade da
riqueza, que determina e mantém as classes sociais, é, em última instância,
uma concentração do poder de dominar, e dominar não é só uma questão de
213
despojar os subordinados dos bens e da riqueza, mas requer, para se susten
tar, ser sempre um processo de hegemonia e aceitação do domínio, mecanis
mo este do qual participam as relações culturais de dominação de gênero e
étnicas. O jogo entre exploração e hegemonia descoberto por Gramsci é que
nos permite compreender essa interdependência entre as três fontes de ineqüi-
dade. Em outras palavras, a dominação não é apenas classista, mas compõe
uma estrutura de poder que é perpassada e reproduzida tanto pelas relações
de apropriação e expropriação econômicas quanto por relações de subordina
ção étnica e de gênero.
Esta nossa abordagem coincide também com a de várias lutadoras do
movimento feminista. A afro-norte-americana Patrícia Hill Collins (1991) deno
minou ‘matriz de dominação’ essa estrutura de poder e de ineqüidade tríplice,
e, embora essa autora não explique as bases de tal união entre o econômico,
o cultural e o político, compartilhamos seu anseio de observar os ‘níveis’,
segundo ela, em que a dominação se reproduz - o das histórias pessoais de
vida, o das relações comunitárias e o das instituições gerais do sistema social
-, e assim, embora partindo de outro tipo de categorização, essa pensadora
do movimento feminista também descobre a necessidade de articular os citados
níveis e formas de reprodução da dominação social, destacando que não so
mente o poder se estrutura de cima para baixo, mas que também há espaço
para a construção de um contrapoder - um movimento que, em termos gra-
mscianos, seria chamado de contra-hegemonia. O fato de essa autora situar
a citada construção contra a corrente como um fenômeno individual, e não
da ordem coletiva, não diminui a concordância de seu trabalho com nossa
linha de investigação.
A fonte originária de toda ineqüidade, como dissemos, é a apropriação
do poder: a apropriação privada da riqueza, que deu origem às classes sociais;
a apropriação patriarcal do poder e a apropriação do poder por parte de grupos
étnicos historicamente situados em vantagem estratégica.
Durante alguns anos, houve confusão nas ciências sociais e na investiga
ção histórica sobre os processos proeminentes e precedentes na construção do
poder. Parte dessa confusão deveu-se ao desconhecimento dos planos da análi
se que devem ser diferenciados: a ordem histórica (cronológica) em que se dão
os eventos e a ordem ou hierarquia na determinação social deles. Analisando
essa diferença, podemos aperceber-nos de que fenômenos como a apropriação
de gênero e sua conseqüência, a dominação patriarcal como processo ampla
mente instituído, foram anteriores às outras duas formas de subordinação, e,
por sua vez, a apropriação do poder por certos grupos étnicos precedeu histo
ricamente a formação ampliada de classes sociais. Mas essa ordem histórica
não implica uma primazia ou uma hierarquia maior na determinação dos modos
2M
de vida de tais fenômenos mais antigos sobre o processo econômico da con
centração do poder. Isso ocorre, em primeiro lugar, porque, para que houvesse
acumulação de poder, inclusive acumulação de gênero ou étnica, foi preciso
que se desse a matéria básica, embora não suficiente, de tal concentração de
poder, que é a ‘apropriação do excedente econômico acumulado’.'18 Em segun
do lugar, porém, a ordem histórica anteriormente descrita não implica prima
zia ou stacus separado na determinação, pois a história tem demonstrado que
os processos culturais e as formas de poder simbólico não se estruturam sepa
radamente com respeito às formas de dominação económica.
O poder econômico expressa-se numa estrutura de classes. Ainda que,
para ser construída, a etapa classista da história tenha precisado passar
por fenômenos de gênero, como a divisão sexual do trabalho, ou pela domi
nação étnica, através da guerra, a verdade é que o que permitiu sua conso
lidação efetiva foram a economia privada e a apropriação econômica por
parte dos grupos que passaram a constituir as classes dominantes. Essa
estrutura reproduz-se diretamente através da institucionalização de um sis
tema de propriedade, mas, para ser legitimada, precisa de condições de
gênero e dominação cultural propícias. O poder patriarcal (de gênero) re
produz-se mediante a tradução de um poder econômico e político em poder
simbólico, e o mesmo acontece com o poder étnico. Não pode haver poder
de gênero ou poder étnico que se apoie exclusivamente em elementos sim
bólicos ou relações culturais, mas tem de haver, de permeio, a concentra
ção econômica e a dominação política.
Aliás, podemos ilustrar com um exemplo esse tipo de relações, na re
gião de Otavalo, na Sierra Norte do Equador, onde coabitam, com relações
interétnicas, desde a época colonial, os índios ‘otavalenos’ e os mestiços.
Até umas três décadas atrás, o controle da posse da terra c do comércio por
parte dos mestiços determinava sua dominação das populações indígenas,
uma dominação que se expressava numa estrutura de classes em que a
burguesia e a pequena burguesia eram quase exclusivamente mestiças, ao
passo que os índios constituíam a força de trabalho, submetida a relações
salariais ou de subassalariamento. Nessa época, o domínio dos aparelhos
políticos e culturais do Estado e do governo local por parte dos mestiços
era completo. Mas, quando as relações de propriedade se inverteram e sur
giu uma burguesia indígena, que entesourou bens graças ao comércio, pas
sando a controlar a posse da terra, bem como um ou outro segmento da
indústria, o comércio e as propriedades urbanas, começou a haver uma
mudança radical nas relações de poder político e cultural da região. Ou
48 Sabemos que a apropriação do trabalho social anterior acumulado pode dar-se pelo
entesouramento de uma riqueza material ostensiva ou pela acumulação do trabalho anterior
no saber, mas se dá, basicamente, pela primeira dessas duas causas.
215
seja, entre o poder econômico e o poder simbólico (em termos de Bourdieu)
existe um movimento dialético, e esse movimento também se expressa entre
a estrutura de classes e as relações de poder étnico ou de gênero. O poder
econômico concentra-se em algumas classes sociais e se expressa numa
estrutura de classes, mas a dominação econômica requer relações culturais
e uma estrutura simbólica adequadas, que viabilizem a hegemonia. Na or
dem individual, essas relações nem sempre se tornam visíveis e, muitas
vezes, aparecem sob a máscara de relações culturais.
Do ponto de vista da epidemiologia e do conhecimento da determinação
da reprodução social e da saúde, não se trata, portanto, de ‘escolher’ uma
categoria central e tomar partido da ‘classe’, do ‘gênero’ ou da ‘etnicidade’
como categoria privilegiada no sistema de análise, mas de entender seu rico
movimento e suas relações dialéticas como parte de uma estrutura de poder.
Além disso, não se deve confundir a centralidade na análise com a hie
rarquia na determinação. Segundo nossa perspectiva, a base ontológica pri
mordial de qualquer poder é a acumulação de riqueza, como já explicamos,
mas, quando se estuda a epidemiologia dos gêneros, a categoria especifica-
dora é o ‘gênero'; quando se procura conhecer os processos epidemiológicos
ligados ao etnonacional e cultural, a categoria especificadora que se destaca
na análise é a ‘etnicidade’; quando se trava conhecimento com os processos
particulares da saúde do adolescente, a categoria especificadora proeminente
é a ‘idade’. Nada disso significa, entretanto, que o gênero, no primeiro caso,
a etnicidade, no segundo, e a idade, no terceiro, sejam exclusivos nem princi
pais na explicação do movimento dessas populações específicas, porque elas
em si não configuram um grupo fechado às relações com o conjunto da soci
edade, e porque a compreensão dos processos culturais, do saber e dos mo
dos de vida não pode ser alcançada sem que eles sejam concatenados com os
processos do conjunto e com a base econômica, que são os que regem a
reprodução social. Por esse mesmo caráter dialético, as relações de gênero
ou étnicas nunca são um simples reflexo da estrutura, pois mantêm com
respeito a esta uma relativa autonomia e, além disso, têm a capacidade de
induzir mudanças nessa totalidade (Breilh, 1996).
Este último argumento remete-nos a um ponto já comentado - o do movi
mento em sentido inverso e concatenado que a análise dialética nos permite
reconhecer entre a gênese e a reprodução que vão do particular ao geral (ver
Quadro 9, no tocante ao tema que nos ocupa).
216
Quadro 9 - Domínios da estrutura do poder determinantes da distribuição epidemiológica
DOMÍNIO DETERMINAÇÕES
217
uma estrutura patriarcal, as relações econômicas e étnicas também se constroem
diante dessas demandas de poder de gênero, ainda mais quando surge um
processo contestador de empoderamento dos gêneros. Seja como for, entra em
ação esse rico movimento das relações de classe, de gênero e étnicas. É claro
que tais relações formam padrões distintos, conforme as combinações entre as
diferentes situações de classe social, de gênero e étnicas, questão esta que
mostra grande complexidade nas sociedades em que a estrutura de classes é
complexa, em que são matizadas as relações interétnicas e em que a luta de
gênero encontra-se num estado de desenvolvimento desigual.
Por último, é claro que os espaços onde se produz e se reproduz o poder
em geral e os poderes patriarcal e étnico, especificamente, tanto abarcam a
prática produtiva quanto a prática social doméstica e cotidiana e a prática de
gestão coletiva. Numa sociedade concreta, existem relações específicas entre
essas modalidades de práticas, relações estas cujo conteúdo, sentido e possibi
lidade são determinados, em grande medida, pelas relações de classe que de
terminam os modos de vida e, por meio destes, as condições epistêmicas do
saber, como vimos antes. Por isso, uma análise epidemiológica do gênero ou
da determinação étnica que seja feita à margem das relações de classe está
condenada a ser incompleta e tendenciosa. De igual maneira, porém, uma vi
são de classe que não reconheça as determinações específicas de gênero e etni-
cidade, e que as dissolva em simples relações económico-políticas, implica
também distorção e reducionismo.
A opressão de uma operária (categoria estrutural econômica), de uma ne
gra, hispana ou índia (categoria nacional étnica), ou de uma muçulmana, cató
lica, budista ou lésbica - ou homossexual, neste último caso - (categoria cultu
ral) não é emoldurada apenas por uma relação machista, mas pelas condições
de poder em que se desenvolve e se reproduz essa relação entre os gêneros.
A proposta conceituai que desenvolvemos neste capítulo tem implicações
decisivas para o trabalho de investigação e para o planejamento de ações.
Pleiteamos uma nova forma de trabalhar a análise da distribuição epide
miológica e das formas de estratificação derivadas. A idéia central seria que,
no plano fenomênico, a epidemiologia constata e contrasta desigualdades liga
das à determinação da qualidade de vida e da saúde, mas essas operações
empíricas devem articular-se com a análise da estrutura de ineqüidade que as
explica, a fim de gerar interpretações e resultados que impliquem um processo
emancipador integral; caso contrário, a epidemiologia reconheceria apenas
contrastes superficiais e secundários, que só inspiram operações cosméticas e
medidas funcionalistas, com as quais não se altera nem o sistema social, nem
a determinação epidemiológica em seu conjunto.
218
'letiva mais do que questões e reflexões: pelo viés da epidemiologia,
ta nova crítica, articulando o campo da ciência com a realidade política
de considerar seus aspectos éticos mediadores. Dessa forma, busca
ma epidemiologia referenciada na própria sociedade, através de ações
■mónicas, num lastro que vai dos sindicatos de trabalhadores às
s no interior do próprio Estado, passando por todos os
ciedade civil em que vicejem espaços democráticos, "para poder enfrentar
italista que se recria e se respalda a partir do próprio Estado, como
ie concentra e canaliza, nos planos jurídico e administrativo
: uma sociedade”.