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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

A UTOPIA DA PEQUENA ÁFRICA


Os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca

Roberta Sampaio Guimarães

RIO DE JANEIRO
Fevereiro de 2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

A UTOPIA DA PEQUENA ÁFRICA


Os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca

Roberta Sampaio Guimarães

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Antropologia / Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutora em Antropologia Cultural.

Orientador: Prof. José Reginaldo Santos Gonçalves

RIO DE JANEIRO
Fevereiro de 2011

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A UTOPIA DA PEQUENA ÁFRICA
Os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca

Roberta Sampaio Guimarães

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Antropologia / Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutora em Antropologia Cultrual.

Aprovada por:

___________________________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. José Reginaldo Santos Gonçalves – PPGSA/ UFRJ

___________________________________________________________________
Prof. Dra. Márcia Contins – PPCIS/ UERJ

___________________________________________________________________
Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva – PPGAS/ USP

___________________________________________________________________
Prof. Dra. Beatriz Maria Alasia de Heredia – PPGSA/ UFRJ

___________________________________________________________________
Prof. Dr. Peter Fry – PPGSA/ UFRJ

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Guimarães, Roberta Sampaio.
A Utopia da Pequena África. Os espaços do patrimônio na
Zona Portuária carioca / Roberta Sampaio Guimarães. Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS/PPGSA, 2011.
225 f.: il.
Orientador: Prof. Dr. José Reginaldo Santos Gonçalves.
Tese (doutorado em Antropologia Cultural), Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2011.
Referências Bibliográficas: f. 220-225.
1. Patrimônio. 2. Cultura afro-brasileira. 3. Memória. 4.
Projetos urbanísticos. 5. Zona Portuária do Rio de Janeiro. I.
Gonçalves, José Reginaldo Santos. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro/Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título.

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A todos os que habitam.

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AGRADECIMENTOS

Imaginar ser o mundo habitado por diversas espécies, entre deuses,


antepassados, homens, animais, plantas e vegetais, foi certamente o principal
aprendizado que a realização desta tese me trouxe. Assim, mais do que um exercício de
diversidade, a convivência com pessoas tão múltiplas me ofereceu um exercício de
criatividade: de perceber que o “sentido” do mundo, além de ser o significado que
atribuímos a ele, é também a forma como o vivenciamos sensivelmente. E, nesse
processo de pesquisa e aprendizado, algumas pessoas e instituições foram fundamentais
pelo apoio afetivo, intelectual e material que me ofereceram.
À minha família, agradeço por todo o incentivo aos meus estudos e crescimento
pessoal: meus pais, Silvia e Humberto (in memoriam); meus avós maternos, Maria de
Lourdes (in memoriam) e Jefferson (in memoriam); meus avós paternos, Isolina (in
memoriam) e Henrique (in memoriam); e meu irmão, Rodrigo. E pelo carinho, apoio e
comentários à tese, agradeço ao Joca.
Ao meu orientador, José Reginaldo Santos Gonçalves, agradeço pelo estímulo
criativo e pelo agradável ambiente de troca de suas aulas e seminários. Entre os
professores do PPGSA, também foram importantes na minha formação, através de
comentários e aulas, Beatriz Heredia, Marco Antônio Gonçalves, Maria Laura
Cavalcanti, Gláucia Villas Bôas e Ana Maria Galano (in memoriam).
Ao longo do doutorado, também contei com o apoio de diversos amigos, sendo
particularmente interessantes os diálogos acadêmicos que tive com Roberto Marques,
Nina Bitar e Alberto Goyena. Além deles, também foram fundamentais os amigos de
todas as horas Madalena Romeo, Elizete Ignácio, Leonardo Menezes, Luzimar Pereira e
Priscila Barreto. E as companheiras presenças de Bianca Brandão, Gustavo Autran e
José Maurício Arruti.
E, nos diversos espaços que frequentei durante o trabalho de campo, gostaria de
agradecer em especial às contribuições e convivências com Mãe Marlene d‟Oxum,
Nazaré, Luan, Wilson Silva, Carlos Machado, Cabeça Branca, Regina Branca, Tia
Creusa, Lissandro Garrido, Maurício Nolasco, Damião Braga, Adélia Vallis, Antônio
Agenor, Marcelo Abreu, Marcos Frigideira e Marcelo Frazão.
Agradeço, por fim, o apoio da secretaria do PPGSA nos encaminhamentos
burocráticos e à CAPES por ter me concedido uma bolsa de estudo e viabilizado
financeiramente a pesquisa.

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“Como sabeis que cada Pássaro que desliza nas asas da ventania
Não abarca um imenso universo de delícias, imerso em vossos cinco sentidos?”

William Blake
Uma Visão Memorável

O pensamento mágico não é uma estreia, um começo, um esboço, a parte de um todo


ainda não realizado; ele forma um sistema bem articulado; independente, nesse ponto
desse outro sistema que constitui a ciência, salvo a analogia formal que os aproxima e
que faz do primeiro uma espécie de expressão metafórica do segundo. Portanto, em
lugar de opor magia e ciência, seria melhor colocá-las em paralelo, como dois modos de
conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos (pois, desse ponto de
vista, é verdade que a ciência se sai melhor do que a magia, no sentido de que algumas
vezes ela também tem êxito), mas não devido à espécie de operações mentais que ambas
supõem e que diferem menos na natureza que na função dos tipos de fenômeno aos
quais são aplicadas.

Claude Lévi-Strauss
O Pensamento Selvagem

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RESUMO

A UTOPIA DA PEQUENA ÁFRICA


Os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca

Roberta Sampaio Guimarães

Orientador: Prof. José Reginaldo Santos Gonçalves

Nesta tese, apresento o estudo realizado sobre a divulgação e implantação de


projetos de “revitalização urbana” idealizados pela prefeitura carioca nos bairros
portuários da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Como o Morro da Conceição havia sido
definido o setor prioritário de criação de novas unidades habitacionais, desenvolvi nele
um trabalho de campo entre 2007 e 2009, quando percebi que seus espaços portavam
diferentes cosmologias e formas de habitar, cada qual estruturando seus espaços a partir
de múltiplas relações de oposição. Mas, na proposta elaborada pelos urbanistas da
prefeitura para a sua “revitalização”, os sobrados habitados por diferentes núcleos
familiares ligados ao trabalho no porto e ao pequeno ou informal comércio haviam sido
classificados como “insalubres”, “vazios” ou “invadidos”. Direcionei então a pesquisa
para grupos que se contra posicionavam às propostas e classificações da prefeitura, se
auto identificando herdeiros de um patrimônio “negro” e “do santo” e operando uma
cosmologia e imaginário próprios, que denominei de “mito da Pequena África”. Nesse
mito, os espaços do Morro da Conceição e da Zona Portuária não eram apenas um
território e natureza inanimados a serem dominados e explorados economicamente, mas
igualmente constituídos por humanos, animais, plantas, deuses e mortos, e em constante
criação e dissolução.

Palavras-chaves: Patrimônio; Cultura afro-brasileira; Memória; Projetos urbanísticos;


Zona Portuária do Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO
Fevereiro de 2011

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ABSTRACT

THE UTOPIA OF LITTLE AFRICA


The spaces of heritage in the Port Zone carioca

Roberta Sampaio Guimarães

Orientador: Prof. José Reginaldo Santos Gonçalves

In this thesis, I present the research on the dissemination and implementation of


"urban regeneration" projects devised by the carioca‟s port neighborhoods of Saúde,
Gamboa and Santo Cristo. As Morro da Conceição had been defined the priority sector
for the creation of new housing units, I development a fieldwork between 2007 and
2009, when I realized that their spaces were carrying different cosmologies and ways of
living, each one building its space from multiple relations of opposition. But in the
proposal drawn up by prefecture planners to its "revitalization", the townhouses
inhabited by different households connected to the work in the port and the small and
informal trade had been classified as "unhealthy", "empty" or "invaded". I directed then
the search for groups that are positioned against the proposals and classifications of the
prefecture, identifying themselves heirs to a heritage "black" and "holy" and operating
an own imagination and cosmology, which I called "myth of Little Africa." In this
myth, the spaces of the Morro da Conceição and Port Zone were not just a territory and
inanimate nature to be mastered and exploited economically, but also constituted by
humans, animals, plants, gods and dead, and in constant creation and dissolution.

Keywords: Heritage; African-Brazilian culture, Memory, Urban projects; Port Zone of


Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO
Fevereiro de 2011

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ÍNDICE

Lista de ilustrações. ___________________________________________________ 12

Introdução.

A “revitalização” da Zona Portuária e seus efeitos __________________________ 16

Apresentação da pesquisa ___________________________________________________ 16

De sítio histórico ao plano urbanístico Porto do Rio _______________________________ 20

O Morro da Conceição segundo o urbanismo municipal ____________________________ 30

O reencontro da Pequena África com Pereira Passos ______________________________ 42

Opções narrativas e divisão de capítulos ________________________________________ 50

Capítulo 1.

Um percurso por espaços, patrimônios e imaginários ________________________ 53

O primeiro contato com o morro ______________________________________________ 53

As festas e bares da parte alta ________________________________________________ 61

O conflito da Pedra do Sal ___________________________________________________ 70

O carnaval e o candomblé do Valongo _________________________________________ 83

Capítulo 2.

A “boa vizinhança” da parte alta ________________________________________ 91

A valorização cultural dos “moradores tradicionais” ______________________________ 91

O masculino e o feminino no Bar do Sérgio e na Capela __________________________ 103

Os “políticos” e suas mediações entre diferentes espaços __________________________ 109

Os espaços da reputação e dos projetos turísticos ________________________________ 121

10
Capítulo 3.

O “espírito quilombola” da Pedra do Sal _________________________________ 125

Os mediadores do Quilombo da Pedra do Sal ___________________________________ 125

Os diversos usos do “território étnico” ________________________________________ 137

O projeto franciscano para uma “população marginalizada”________________________ 147

O processo de transformação de residências em “obras sociais” _____________________ 157

Os espaços da reparação e das práticas do candomblé ____________________________ 165

Capítulo 4.

Os “fundamentos” do Valongo _________________________________________ 168

O Afoxé Filhos de Gandhi e o povo do santo ___________________________________ 168

O sagrado e o profano em desfile pelas ruas da cidade ____________________________ 178

O “mundo dos orixás” na casa de Mãe Marlene d‟Oxum __________________________ 188

Transformação e permanência nas diferentes “épocas” do Gandhi ___________________ 203

Os espaços da magia e da reciprocidade _______________________________________ 210

Conclusão.

Os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca _______________________ 213

Referências Bibliográficas ____________________________________________ 220

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

SIGLA DE IDENTIFICAÇÃO DAS IMAGENS


FA: fotografia da autora.
VA: vídeo da autora.
FSA: Fotografia de satélite do Google Earth com marcadores da autora.
PR: Imagem do plano urbanístico Porto do Rio/ Instituto Pereira Passos.
MC: Imagem do livro Morro da Conceição/ Instituto Pereira Passos.
VOT: Imagem da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência.

INTRODUÇÃO
Página 16 Bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. (PR)
Página 18 Localização da Pedra do Sal, da Igreja da Prainha, do Valongo e do
Largo da Santa. (FSA)
Página 26 Puerto Madero, Buenos Aires, Argentina. (PR)
Página 27 Sequência demonstrativa da área aterrada e do “traçado original” dos
bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. (PR)
Página 28 Morro de São Bento visto do Píer Mauá. (PR)
Página 29 “Núcleos estratégicos” de atuação urbanística nos bairros portuários.
(PR)
Página 32 Áreas portuária e central segundo o Plano Agache. (MC)
Página 33 Áreas portuária e central segundo o Plano Doxiadis. (MC)
Página 33 Áreas portuária e central segundo o PUB-RIO. Mapa ilustrado MC.
Página 34 Áreas portuária e central segundo o Plano Diretor de 1992. (MC)
Página 34 Bens preservados patrimonialmente no Morro da Conceição. (MC)
Página 39 “Segmentos das dinâmicas socioespaciais” do Morro da Conceição.
(MC)
Página 41 “Operações de reabilitação” do Morro da Conceição. (MC)
Página 48 Localização do Sambódromo e Terreirão do Samba, do monumento
a Zumbi dos Palmares, da Escola Tia Ciata, da Pedra do Sal, do
Centro Cultural José Bonifácio, do Instituto Pretos Novos, do
Instituto Batucadas Brasileiras e do Afoxé Filhos de Gandhi. (FSA)

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CAPÍTULO 1
Página 61 Largo da Santa e da entrada da Fortaleza. (FA)
Página 62 Rua Jogo da Bola com campanário da capela ao fundo. (FA)
Página 71 Pedra do Sal com Rua Argemiro Bulcão ao fundo. (FA)
Página 72 Largo da Prainha. (FA)
Página 73 Igreja da Prainha. (FA)
Página 74 Sobrados do Projeto Humanização do Bairro no Adro de São
Francisco. (FA)
Página 83 Fachada da sede do Afoxé Filhos de Gandhi na Rua Camerino. (FA)
Página 84 Jardim Suspenso do Valongo. (FA)
Página 87 Integrantes do Gandhi durante apresentação no monumento a Zumbi
dos Palmares, Praça Onze. (FA)
Página 88 Sequência de três integrantes do Gandhi e suas diferentes
vestimentas: Cabeça Branca, Nazaré e “Tia” Creusa. (FA)

CAPÍTULO 2
Página 91 Localização do Observatório do Valongo, da Capela da Rua Jogo da
Bola, do Bar do Sérgio, do Largo da Santa e do Bar do Geraldo.
(FSA)
Página 93 Sequência da Capela e do Bar do Sérgio no momento de saída da
procissão a Nossa Senhora da Conceição na Rua Jogo da Bola. (FA)
Página 94 Saída da Capela do andor de Virgem Maria. (FA)
Página 95 Passagem da procissão em frente ao Bar do Geraldo na Ladeira João
Homem. (FA)
Página 118 Escombros da Rua Major Daemon sendo pintado de purpurina
dourada durante evento do IPHAN. (FA)
Página 119 Ação artística na Rua Sacadura Cabral em evento do IPHAN. (FA)
Página 120 Velas de citronela sendo colocadas na Pedra do Sal em evento do
IPHAN. (FA)

CAPÍTULO 3
Página 127 Localização do Valongo, da Pedra do Sal, do Largo da Prainha, das
escolas da VOT e da Igreja da Prainha. (FSA)

13
Página 137 Restaurante Victoria Self Service e bar Bodega do Sal no Largo João
da Baiana. (FA)
Página 140 Centro Comunitário do Projeto Humanização do Bairro no Largo
João da Baiana. (FA)
Página 142 Sobrados e depósito de materiais na Rua São Francisco da Prainha.
(FA)
Página 142 Padaria Escola na Rua São Francisco da Prainha. (FA)
Página 155 Sobrados utilizados pelo Projeto Humanização do Bairro. (VOT)

CAPÍTULO 4
Página 176 Área interna da sede do Afoxé Filhos de Gandhi, com Praça dos
Estivadores ao fundo. (FA)
Página 178 Ritual de Mãe Torodi no lançamento do Projeto do Centro de
Cidadania Afoxé Filhos de Gandhi na sede do Gandhi. (VA)
Página 180 Preparo dos balaios para o Presente de Iemanjá por “Tia” Creusa e
Regina na sede do Gandhi. (VA)
Página 180 Canto para Exu na sede do Gandhi. (VA)
Página 181 Padê para Exu depositado por “Tia” Creusa, Machado e Carlinhos na
Rua Camerino. (VA)
Página 181 Sequência de Mãe Marlene d‟Oxum benzendo participantes na tenda
dos balaios e carro de som com músicos do Gandhi, ambos na
Cinelândia durante o Presente de Iemanjá. (VA)
Página 182 Percurso dos balaios da sede do Gandhi até a Cinelândia e do cortejo
até a Praça XV. (FSA)
Página 183 Estandarte do Gandhi com desfilantes ao fundo no Carnaval da
Avenida Rio Branco. (VA)
Página 184 Roda samba no final do desfile do Gandhi na Avenida Atlântica,
Copacabana. (VA)
Página 188 Mãe Marlene d‟Oxum trajando fantasia do Gandhi. (FA)
Página 192 Saudações dos filhos de santo da casa de candomblé de Marlene na
festa para Exu. (VA)
Página 193 Ogans da casa de candomblé de Marlene durante festa para Exu.
(VA)

14
Página 201 Sequência do afoxé do Presente das Iabás dos filhos de santo de
Marlene pela Rua dos Manjolos e depósito dos balaios por Marlene e
Nazaré na Baía de Guanabara. (VA)
Página 208 Percurso do desfile de carnaval do Gandhi na década de 1970 pelas
ruas do porto e do centro da cidade. (FSA)

15
Introdução.

A “revitalização” da Zona Portuária e seus efeitos

APRESENTAÇÃO DA PESQUISA

Em meados de 2007, iniciei um estudo sobre o Porto do Rio, projeto de


“revitalização urbana” idealizado pela prefeitura carioca para ser implantado nos bairros
portuários da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Naquele momento, a Zona Portuária
estava em processo de ressignificação perante a geografia moral da cidade, como
conceituada pela antropóloga Gary McDonogth (2003): nos imaginários construídos por
diferentes mídias, não estava mais sendo associada apenas à prostituição, ao tráfico de
drogas e às “favelas”, despontando notícias que positivavam alguns de seus espaços e
habitantes. Essa transformação da percepção da mídia se relacionava diretamente com a
instalação de alguns bares e casas de show voltadas para um público de classe média na
Rua Sacadura Cabral e também com a reforma do terminal de passageiros do porto, que
havia incentivado o desembarque de turistas de cruzeiros marítimos internacionais e
nacionais na cidade.
Dentro do amplo território dos bairros portuários, os urbanistas municipais
haviam definido como setor prioritário de atuação a Praça Mauá, o Píer Mauá e o Morro
da Conceição. Esses espaços estavam localizados na junção do bairro da Saúde com a

16
Avenida Rio Branco, via de concentração dos estabelecimentos financeiros da área
central da cidade, e neles foram previstos o desenvolvimento de atividades turísticas e a
criação de novas unidades habitacionais. Como, entre eles, o Morro da Conceição era o
único espaço ocupado de forma predominantemente residencial, o escolhi para a
realização de um trabalho de campo.
De acordo com os mapas utilizados pelos urbanistas, o território do morro era
delimitado por sua base e os encontros da Rua do Acre, Travessa do Liceu, Rua
Sacadura Cabral, Rua Camerino, Rua Senador Pompeu, Rua da Conceição, Rua Júlia
Lopes Almeida, Rua dos Andradas e Rua Leandro Martins. Não pretendia, no entanto,
tratar analiticamente o morro como um mero cenário de relações sociais ou suporte
físico racionalmente construído e observável. Pelo contrário, buscava diluir a própria
noção totalizante de “morro” operada pelo discurso administrativo da prefeitura e
ressaltar suas diferentes possibilidades de espaços, percursos e circuitos.
Pois o morro portava diferentes cosmologias e suas formas de habitar, cada qual
estruturando seus espaços a partir de múltiplas relações de oposição. Era, portanto, um
local fragmentado, uma heterotopia, conforme definido por Michel Foucault (2006):
uma referência espacial localizável que abarcava posicionamentos e contra
posicionamentos que se refletiam e se designavam. Essas diferentes maneiras com que
grupos e indivíduos estruturavam seus espaços movimentavam também sistemas
específicos de temporalidade, onde frequentemente seu passado era narrado a partir de
versões míticas que presentificavam eventos tidos como “históricos”. E com tais mitos,
como conceituado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss (1993 e 2005), eles buscavam
reconstituir uma noção de totalidade social e delimitar seus próprios tempos, espaços e
modos de vida.
Ao longo do trabalho de campo que desenvolvi durante dois anos, observei que,
a despeito dessa diversidade de habitantes, espacialidades e temporalidades, na proposta
elaborada pelos urbanistas da prefeitura para a “revitalização” do Morro da Conceição
os sobrados habitados por diferentes núcleos familiares ligados ao trabalho no porto e
ao pequeno ou informal comércio haviam sido classificados como “insalubres”,
“vazios” ou “invadidos”. E que essa classificação estava produzindo em seus espaços,
como efeito social, o acirramento de conflitos em torno dos seus usos, a atração de
projetos elaborados por entidades assistenciais voltados para o controle e ordenamento
da população classificada como “marginalizada” ou “criminosa”, e a movimentação de
narrativas de tradição para demarcar fronteiras identitárias e territoriais.

17
Dentre as várias formas de habitar e estruturar os espaços do morro, pesquisei
três que estavam sendo afetadas direta ou indiretamente pelos efeitos das propostas
urbanísticas da prefeitura: a dos moradores da “parte alta” que tiveram suas práticas
valorizadas e classificadas pelos urbanistas municipais como referentes a um patrimônio
“português e espanhol”; a dos moradores da base do morro que se auto identificaram
como portadores de um patrimônio “negro” após entrarem em conflito habitacional com
dirigentes de uma entidade católica que se auto atribuía uma patrimônio “franciscano”;
e a de integrantes de um grupo carnavalesco que se identificavam como portadores de
um patrimônio “do santo”, relacionado às práticas do candomblé, e buscavam a
regularização da ocupação de sua sede na região do morro denominada de Valongo.

Ao pesquisar grupos sociais a partir da noção de patrimônio, privilegiei a


observação de espaços que eram de uso predominantemente coletivo e se apresentavam
como seus centros de irradiação simbólica, ou pontos nodais, como definido pelo
urbanista Kevin Lynch (1999): espaços de conexão e/ou concentração de algum uso ou
característica física, que se apresentavam como foco ou síntese do morro, sendo, dele
próprio, símbolos. Em momentos ritualizados, eram esses espaços que os grupos
utilizavam para práticas sagradas que presentificavam suas narrativas míticas sobre o
passado do morro. Assim, estudei os moradores da parte alta a partir do Largo da Santa;
os do patrimônio negro a partir da Pedra do Sal e de sua interação conflituosa com os
portadores do patrimônio franciscano da Igreja da Prainha; e os do patrimônio do santo
a partir do antigo mercado de escravos do Valongo. Sendo que, cotidianamente, haviam

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espaços que eram correlacionados a cada um deles, como determinados bares, ruas e
imóveis.
Esses patrimônios, no entanto, nem sempre eram reconhecidos por medidas
governamentais de preservação “artística”, “histórica” ou “cultural” e, no cotidiano das
práticas de seus mediadores ou portadores, extrapolavam a concepção jurídica do termo.
Para conceituar então a noção de patrimônio, utilizei o estudo da antropóloga Annette
Weiner (1992), que propunha que objetos e práticas sociais podiam ser distinguidos
entre bens alienáveis e bens inalienáveis. Para ela, estes últimos eram vivenciados de
forma distinta por requererem uma conservação obrigatória, já que se trocados,
vendidos ou extintos poderiam desencadear uma mudança de status e posição social de
seus herdeiros frente à sua rede de relações. E, baseada no conceito de ressonância
definido pelo antropólogo José Reginaldo Santos Gonçalves (2007b), observei como e
por que tais patrimônios eram eficazes na evocação da apreciação de uma experiência
cultural única em seus proprietários e expectadores.
Esses bens inalienáveis e suas referências espaciais eram presentificados,
circulados, conservados e transmitidos não apenas através de usos e rituais, mas
também de produtos mediadores, como filmes, músicas, textos literários, matérias
jornalísticas, estudos acadêmicos, intervenções arquitetônicas, eventos culturais e ações
jurídicas, além das políticas oficiais de patrimonialização. Tais produtos mediavam
diferentes formas de representar e apresentar o morro, anulando, suspendendo ou
invertendo seus posicionamentos e contra posicionamentos através de suas inserções em
um fluxo de imagens que acentuava o que o antropólogo Bruno Latour (2008) chamou
de iconoclash: a incerteza sobre os efeitos da ação humana ao gerar um mediador, pois
este poderia simultaneamente expor, denunciar, desmascarar, entreter, manter ou
preservar uma crença, mito ou princípio.
Ao final da pesquisa, percebi que os grupos relacionados ao patrimônio negro e
do santo se contra posicionavam às propostas urbanísticas da prefeitura para o Morro da
Conceição e a Zona Portuária movimentando uma cosmologia e imaginário próprios,
através do que denominei de “mito da Pequena África”. Pois, para eles, seus espaços
não eram apenas um território e natureza inanimados a serem dominados e explorados
economicamente, mas formados por um mundo habitado, como proposto pelo
antropólogo Tim Ingold (2000): um espaço igualmente constituído por humanos,
animais, plantas, deuses e mortos, e em constante criação e dissolução.

19
DE SÍTIO HISTÓRICO AO PLANO URBANÍSTICO PORTO DO RIO

As primeiras informações que obtive sobre o plano urbanístico Porto do Rio


foram através de textos jornalísticos disponibilizados na internet. Em sua maioria, eles
abordavam o polêmico e frustrado projeto de construção do Museu Guggenheim,
idealizado para ocupar o Píer Mauá e considerado “a âncora” da revitalização da Zona
Portuária. As matérias jornalísticas indicavam o mês de novembro de 2000 como o
início das negociações para a implantação da primeira filial do museu na América
Latina. Nessa data, foi realizado um jantar na cidade-sede do museu, Nova Iorque, com
representantes das prefeituras de quatro cidades brasileiras: Recife, Curitiba, Salvador e
Rio de Janeiro. Eles disputavam a instalação do museu por considerá-lo um
dinamizador das atividades turísticas, pautados pelas experiências tidas como bem
sucedidas de construção do museu nas cidades de Bilbao, Berlim e Veneza.
Dois anos após esse jantar, a prefeitura carioca divulgou a finalização do projeto
do museu, concebido pelo arquiteto francês Jean Nouvel para ser construído no Píer
Mauá. No entanto, o contrato realizado entre a prefeitura e a fundação nova-iorquina foi
contestado por alguns vereadores e seus princípios construtivos também foram
questionados por diversos especialistas da arquitetura e urbanismo, ganhando uma
grande projeção na mídia nacional e internacional. Duas críticas se destacaram no
debate que se formou: a denúncia do “caráter de shopping center” do projeto, por ele
prever a instalação de centros comerciais, centros de convenções e estacionamentos; e a
avaliação de não haver necessidade de criação de um novo símbolo da cidade, por ela
possuir ícones consagrados como a Praia de Copacabana, o Pão de Açúcar, o
Corcovado e o Maracanã. Nos meses seguintes, a crise em torno da construção do
museu foi crescente, até que ela foi completamente inviabilizada jurídica e socialmente
em fevereiro de 2005. Duas outras construções de dimensões monumentais elaboradas
no âmbito do Porto do Rio, no entanto, lograram ser realizadas: a Vila Olímpica da
Gamboa, inaugurada em 2005, e a Cidade do Samba, inaugurada em 2006.
A minha escolha pelo estudo de um plano urbanístico não foi acidental. Durante
a realização da dissertação de mestrado (Guimarães, 2004), eu já havia pesquisado o
polêmico processo de transformação de diversos imóveis da economicamente
valorizada Zona Sul carioca em “patrimônios culturais”. Também uma iniciativa da
dupla gestão de Cesar Maia na prefeitura, entre os anos de 2001 e 2008, a decretação
das Áreas de Proteção ao Ambiente Cultural – APACs havia unido os interesses do

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poder público municipal e de algumas associações de moradores para que fosse inibida
a alteração das características urbanísticas, arquitetônicas, demográficas e sociais dessa
região, pressionando a indústria da construção civil a atuar em outros bairros da cidade.
Quando decidi desenvolver uma tese de doutorado sobre o Porto do Rio desejava,
assim, dar continuidade aos meus estudos sobre intervenções urbanísticas em amplas
áreas, mas desta vez focando a análise da noção oposta à de “preservação”, que era a de
“revitalização”.
Ao começar minha pesquisa sobre a Zona Portuária, não encontrei nenhum
estudo acadêmico que tivesse sido realizado nela a partir de um trabalho de campo de
duração prolongada, ausência também apontada pela revisão bibliográfica do geógrafo
Roberto Schmidt de Almeida (2005)1. Encontrei, no entanto, três pesquisadores que já
haviam analisado o plano Porto do Rio e que, em comum, utilizavam o conceito de
gentrificação2 para criticarem o papel econômico do que classificavam como “cidades
globais”. Cunhado em 1963 pela socióloga Ruth Glass, o conceito havia sido definido
originalmente como o processo de investimento, reabilitação e uso de moradias
desvalorizadas de bairros “operários ou populares” do centro de Londres por “camadas
médias assalariadas” (Bidou-Zachariasen, 2006). Posteriormente, várias pesquisas o
utilizaram para analisar as transformações de antigas áreas centrais e portuárias
causadas tanto por projetos urbanísticos voltados para a implantação de novos usos e
funções nesses espaços, quanto por iniciativas individuais de reabilitação de
edificações. Com sua difusão acadêmica, o conceito foi usado por estudiosos que
buscavam compreender fenômenos sociais em cidades distintas, como Buenos Aires,
Barcelona, Cidade do México, Lyon, Nápoles, Baltimore, Nova Iorque, Recife,
Salvador, São Paulo e Belém.
O uso deste conceito, no entanto, recorrentemente conduzia a uma pauta de
perguntas a serem respondidas pelo pesquisador e a categorias preconcebidas que o
direcionavam a posicionamentos políticos-programáticos, tais como: Quem eram os

1
Haviam publicados, porém, alguns textos que abordavam diferentes aspectos da Zona Portuária carioca,
como os que tinham como tema direto ou indireto o seu processo de urbanização, como os do geógrafo
Maurício Abreu (2006), do urbanista Sergio Lamarão (1991), dos historiadores Sidney Challoub (1996) e
Claudio Figueiredo (2005) e do arquiteto Henrique Barandier (2006); os sobre a ocupação e atividades da
população negra na região, como os dos historiadores Mary Karacsh (2000), Erika Bastos (2005) e Júlio
César Pereira (2007); e a coletânea de estudos Vozes do Porto: memória e história oral (orgs. Thiesen,
Barros e Santana, 2005), que reunia trabalhos de diversos especialistas das ciências humanas.
2
Na literatura brasileira que abordava projetos de “revitalização urbana”, havia duas traduções mais
correntes para o conceito gentrification, que eram “gentrificação” e “enobrecimento”. E uma variação do
conceito também podia ser encontrada no uso do termo “elitização”.

21
“gentrificadores” da área a ser revitalizada? Como o plano de revitalização conseguiria
garantir a diversidade social das áreas após a atratividade da classe média? Qual era o
plano de gestão dos recursos econômicos do plano? Como evitar que o capital privado
provocasse uma especulação imobiliária na área revitalizada? Como manter o
“patrimônio” e a “cultura popular” da área? Como articular os “movimentos sociais”
para realizarem uma “resistência” à gentrificação?
O primeiro texto que utilizava o conceito gentrificação para analisar o plano
Porto do Rio foi publicado pela urbanista Clarissa Moreira (2004). Ela propôs que havia
tensões entre as práticas de transformação urbanística e de preservação patrimonial e
que o plano poderia formar uma “urbanidade contemporânea”, que caracterizou como
marcada pela segregação e hierarquização do espaço social, pela produção em massa e
pelo simulacro estético. Em seguida, o geógrafo Julio César Santos (2005) apresentou
uma sequencia histórica que conectava o plano carioca à “modernização fordista”,
movimento global de reestruturação da produção capitalista iniciada na década de 1920.
E, por fim, a socióloga Maria Lobo (2006) mapeou os atores nacionais e regionais
envolvidos no plano e o comparou a outros projetos urbanísticos de diversas cidades do
mundo.
Embora possuíssem abordagens distintas, em uníssono as conclusões desses três
pesquisadores apontaram que o Porto do Rio era “global” e oposto a uma “realidade
local” que estava ameaçada de “desterritorialização” por causa da valorização
imobiliária da Zona Portuária e do encarecimento de seus serviços. E que sua
“comunidade popular e tradicional” seria expulsa após o fluxo residencial da classe
média desejosa por consumir equipamentos de lazer e cultura referenciados numa
“estética globalizada”. Ou seja, o uso acusatório do conceito gentrificação fez com que
seus estudos apresentassem de forma tipificada tanto a população residente quanto a
potencialmente atraída para a região após as intervenções urbanísticas. E também
operou oposições baseadas em modelos puros de realidade, como “povo” e “elite”,
“local” e “global”, “coletivo” e “individual”.
No entanto, essas oposições construíram premissas empiricamente frágeis, pois,
alertando para os perigos de uma suposta elitização da região, partiram da ideia de que
as transformações urbanas estariam em desacordo com os desejos de moradores também
supostamente tradicionais. Temendo a consolidação de uma forma de sociabilidade
urbana calcada no anonimato e na massificação cultural, idealizaram uma sociabilidade
baseada em relações de proximidade e vizinhança. Acreditando no poder de ação dos

22
interesses individuais, imaginaram interesses coletivos deles apartados. E, ao
denunciarem a implantação de uma arquitetura “globalizada”, operaram com um regime
de autenticidade onde elegeram materialidades relacionadas a técnicas construtivas
consideradas nativas.
Assim, esses três críticos do Porto do Rio trabalharam em suas análises com
modelos ideais de cidade, se aproximando de estudos como o do urbanista e historiador
da arte Giulio Argan (1992), que propunham uma normatização dos projetos de
transformação do espaço urbano. E, ao utilizarem grandes modelos formais para
compreenderem as cidades, ignoraram as atividades e redes de sociabilidade de seus
moradores e usuários, como criticado pelo antropólogo José Guilherme Magnani (2002)
em seu estudo sobre as tendências dos estudos da “questão urbana”. Operaram, ainda,
com recursos narrativos específicos, que afirmavam serem externas percepções
estruturadas discursivamente: como o sistema que percebia a “autenticidade” como
imanente ao próprio objeto, noção problematizada pelos antropólogos Richard Handler
(1985), José Reginaldo Santos Gonçalves (1988) e James Clifford (1994); e como a
retórica da perda que percebia a história como um processo incontrolável de destruição,
como conceituado também por Gonçalves (1996).
Foi em busca de uma alternativa analítica a esses estudos que analisei a forma
como os urbanistas municipais haviam estruturado mentalmente suas noções de espaço
e tempo no material de divulgação do plano Porto do Rio. Nessa análise, dois estudos
foram especialmente úteis: o do arquiteto Adrián Gorelik (2005), que pesquisou o
contexto político e ideológico dos que haviam planejado a construção de Brasília e
elaborou uma crítica aos estudos formalistas sobre espaços construídos; e o estudo do
antropólogo Paul Rabinow (2003), que comparou diferentes modelos mentais de
cidades planejadas para observar as variações urbanísticas de modalidades de poder.
O plano urbanístico Porto do Rio foi divulgado oficialmente em outubro de 2001
e assinado por quatro representantes do poder municipal. No segundo semestre de 2008,
conversei com três deles: Alfredo Sirkis, que na época do lançamento do plano era
secretário de urbanismo e presidente do órgão responsável por sua elaboração, o
Instituto Pereira Passos - IPP; Augusto Ivan Pinheiro, então diretor de urbanismo; e
Nina Rabha, que era gerente de urbanismo. Eles me contaram uma versão específica de
suas atuações na Zona Portuária, selecionando determinados fragmentos do passado
que, narrativamente organizados e compartilhados, compunham o passado mítico dos
urbanistas da prefeitura na região. E suas narrativas demonstraram, ainda, que a

23
mudança do imaginário sobre a Zona Portuária havia ocorrido gradualmente e a partir
de um processo de valorização de seus bairros como “bens culturais e históricos” da
cidade.
Segundo esses três urbanistas, as diretrizes de implantação de um amplo plano
urbanístico na Zona Portuária começaram a ser elaboradas por especialistas do
urbanismo e do patrimônio no final da década de 1970, quando foram criadas as
primeiras políticas públicas específicas para a preservação do espaço urbano carioca.
Até esse momento, já tinham havido algumas iniciativas do poder municipal de
controlar o desenvolvimento das áreas portuárias e centrais, como a legislação que
limitava em dois pavimentos as novas construções. Mas estas medidas visavam impedir
somente o aumento da volumetria das edificações, não obrigavam a manutenção de seus
aspectos físicos.
Um projeto que se referia diretamente ao desejo de demarcar uma “área de
interesse cultural” foi criado pela prefeitura em 1979: o Corredor Cultural do Centro,
que resultou na preservação patrimonial de cerca de 1.300 edificações. E, visando
também a valorização do patrimônio da área central da cidade, foi realizada em 1982
uma obra de restauro do Paço Imperial, mas desta vez a partir de uma iniciativa do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Objetivando
potencializar economicamente o espaço atrelando-o à atividade turística, esse projeto
fez com que o bem se tornasse um “equipamento cultural” voltado para o lazer e o
entretenimento, catalisando ainda a transformação urbana de seu entorno. E essas duas
iniciativas consolidaram o primeiro “sítio histórico” da cidade, difundindo a
possibilidade da relação entre a preservação de conjuntos edificados e a criação de
atrativos turísticos dinamizadores das economias locais.
De acordo com Augusto Ivan e Nina, foi também no início da década de 1980
que começaram as discussões e estudos para que parte da Zona Portuária fosse
transformada em “sítio histórico”. No ano de 1988, essa conversão simbólica foi
oficialmente realizada com a decretação da Área de Proteção Ambiental que ficou
conhecida como SAGAS, abreviação dos nomes dos bairros portuários contemplados:
Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Neles, foram preservados cerca de 2.000 bens,
localizados principalmente nos morros da Conceição, da Saúde, do Livramento e do
Pinto e em suas áreas planas circundantes.
O Morro da Providência, embora tenha sido incluído na área de preservação, não
teve bens pontualmente preservados. Já entre os bairros portuários, não foi contemplado

24
por essa preservação o Caju. E ficou ainda fora da preservação toda retro-área portuária
surgida no início do século XX com o aterro de parte da orla da Baía de Guanabara
realizado por Pereira Passos, onde foram instalados galpões, armazéns e ramais
ferroviários. A criação do SAGAS demarcou, assim, uma nova espacialidade
administrativa da Zona Portuária, que passou a distinguir temporalmente seus bens,
bairros e áreas como “históricos” e “não históricos”. E, ao longo da década de 1990,
essa oposição e suas formas de classificar os espaços foram utilizadas pelos urbanistas
municipais para segmentar suas ações em três linhas de intervenção: a valorização dos
aspectos “históricos e culturais” dos morros da Conceição, do Livramento, da Saúde e
do Pinto; o planejamento urbano das “favelas” do Morro da Providência e do Caju; e a
exploração imobiliária da retro-área portuária.
Como informou Nina, nessa época diretora da Região Administrativa da Zona
Portuária, no entorno dos morros classificados como históricos foram desenvolvidos
diversos mecanismos de controle e disciplinamento dos usos de seus espaços: a
identificação de “vazios” e imóveis “arruinados” que poderiam ser “reabilitados”; a
retirada de moradias “irregulares” construídas embaixo de viadutos; a criação ou
reforma de praças e largos, para que se tornassem pontos de referência urbanos; e a
restrição espacial de vendedores ambulantes. Já na “parte alta” desses morros, foram
realizados programas de “reabilitação patrimonial e habitacional” que visavam a
recuperação física dos casarios, a atração residencial de famílias de classe média e a
criação de novos locais de visitação turística.
Na retro-área portuária, a prefeitura também desenvolveu algumas iniciativas de
implantação de projetos monumentais. Em 1995, criou o Plano Estratégico do Rio de
Janeiro para viabilizar a realização de parcerias entre o poder público e a iniciativa
privada e procuraram se aliar à Associação Comercial do Rio de Janeiro, à Federação
das Indústrias do Rio de Janeiro e à autarquia federal Companhia Docas. No entanto, de
acordo com os estudos da urbanista Rose Campons (1998), as medidas de cooperação
iniciadas com a Docas, que possuía o direito de estabelecer contratos de arrendamento
para a exploração dos 500.000m² de instalações portuárias, foram interrompidas pelas
divergências entre suas concepções urbanísticas, fazendo com que cada uma elaborasse
seus próprios projetos para a transformação da região e tentasse agregar em torno deles
os investidores privados.
Buscando superar a sua insuficiente reserva patrimonial, a prefeitura negociou
então diretamente com os ministérios da Agricultura e da Fazenda, para que os imóveis

25
de propriedade federal fossem transferidos para o domínio municipal, e ofereceram à
iniciativa privada a possibilidade de exploração dos novos equipamentos e espaços
urbanos que fossem por ela financiados. E, tendo como principal meta essa
“revitalização urbana” da Zona Portuária, criou em 1998 o IPP que, segundo Sirkis,
deveria planejar as intervenções urbanísticas, divulgar o projeto para o empresariado
nacional e internacional e promover a interlocução com moradores, empresários e
demais agentes econômicos da área.
O Porto do Rio foi divulgado três anos após a criação do IPP, em material
disponibilizado na internet, e era composto por duas partes: “Um projeto para o porto”,
onde eram apresentadas concepções e objetivos gerais; e “Setor prioritário”, onde eram
simuladas visualmente as implantações de alguns dos projetos. Para compreender o
corpo de imagens e textos que apresentava as transformações idealizadas, analisei como
ele havia sido comunicativamente emoldurado através do uso de metáforas e
metonímias visuais e verbais, ou seja, dos aspectos metacomunicativos do seu discurso,
conforme proposto pelo antropólogo Gregory Bateson (1972).
A primeira imagem apresentada
neste material era a fotografia
panorâmica de uma orla clicada do ponto
de vista de uma pessoa embarcada,
realizada ao entardecer e que captava as
luzes acessas das vias e edificações,
demonstrando que naquele espaço eram
desenvolvidas atividades diurnas e noturnas. A legenda da foto informava que o espaço
era Puerto Madero, Buenos Aires, onde havia sido realizada uma experiência de
“revitalização” de área portuária considerada exemplar pelos urbanistas da prefeitura
carioca. E o texto que a acompanhava operava um regime de historicidade calcado na
valorização do futuro, utilizando termos como “velho”, “antigo”, “ocioso” e
“abandonado” para qualificar o espaço no tempo presente da Zona Portuária carioca, e
“novo”, “moderno”, “criativo” e “reciclado” para se referir ao futuro e a seus projetos
de transformação.
Em seguida, eram confrontados dois projetos idealizados para o espaço na
década de 1980. Com a inserção de uma ilustração publicada na capa da Revista da
Associação Comercial do Rio de Janeiro, era apresentada a proposta de instalação de
um “teleporto”, que ocuparia a retro-área portuária dos bairros da Saúde, Gamboa e

26
Santo Cristo com vias públicas amplas e edificações verticalizadas. O texto criticava
este projeto, acusando-o de descaracterizante das formas edificadas “carregadas de
tradição e passado” e, como contraponto a ele, citava a criação do projeto SAGAS e da
transformação desses bairros em “sítio histórico”. Os projetos do Porto do Rio eram
então apresentados como um avanço nas discussões sobre as intervenções urbanísticas
na área, já que conciliariam a “revitalização” com sua “preservação”.

Noções específicas de tempo e espaço eram também movimentadas para


articular a percepção do suposto “isolamento” urbano desses bairros. Na construção do
discurso visual, uma fotografia de satélite tratada digitalmente separava a região a ser
transformada da área central da cidade, a ela contígua. Depois, um mapa destacava
graficamente as áreas aterradas da orla (em amarelo) das áreas ocupadas pelos morros e
suas bases (em tons de verde), identificando essas últimas como o “traçado original” da
cidade. A esse mapa eram então adicionadas as vias públicas que foram construídas ao
longo do século XX - avenidas Presidente Vargas, Barão de Tefé, Francisco Bicalho e
31 de Março e Túnel João Ricardo - e que teriam, segundo a legenda da imagem,
provocado o isolamento da região (sugerido visualmente pela seta em semicírculo).
O texto que acompanhava estes mapas indicava dois fatores que teriam sido os
causadores desse isolamento e os classificava opositivamente como “naturais” e
“construídos”. Como fator natural, era apontada a morfologia do litoral composta pela
cadeia de colinas e que teria produzido uma barreira geográfica. E, como fatores
construídos, eram classificados os ramais ferroviários e metroviários e as grandes áreas
operacionais da atividade portuária. Essa divisão reforçava, assim, a percepção de que
natureza e sociedade eram aspectos distintos e impenetráveis, onde a primeira seria
referente a uma realidade dada e exterior à ação do homem e, a segunda, referente à
construção de homens plenamente conscientes de suas ações.
Após definida essa distinção entre o natural e o social, dados socioeconômicos
apresentavam os “bairros atingidos” pelo plano e expunham sua “situação fundiária”.

27
Linhas aplicadas em uma foto aérea demarcavam diferentes lotes de um quarteirão,
ilustrando o processo técnico denominado de georeferenciamento, através do qual as
diferentes propriedades desses bairros foram identificadas. No texto, era explicado que a
área aterrada havia sido atrelada ao controle legal da Marinha, por ter sido considerada
um acréscimo sob o espaço marítimo. E que o presente “abandonado” e “esvaziado” da
Zona Portuária era de responsabilidade do governo federal, detentor da maior parte dos
grandes terrenos que havia se tornado “obsoleta” com a desativação das atividades
portuárias e com a desocupação dos prédios ministeriais e órgãos federais após a
transferência da capital do país do Rio de Janeiro para Brasília.

Introduzindo as propostas de intervenção, era então exposta a única foto


panorâmica que partia da perspectiva visual de um pedestre, retratando a Baía de
Guanabara e o Centro da cidade. A legenda que acompanhava a imagem indicava a
localização de sua captura: A frente marítima em ângulo inusitado, com destaque para o
Mosteiro de São Bento, vista do Píer Mauá. Essa imagem e texto valorizavam mais uma
vez o tempo futuro, ao antecipar como seria fruída esteticamente a paisagem da orla da
baía depois de implantadas as transformações urbanas na região e seu “projeto
catalisador”, que era o aproveitamento turístico do píer.
Os “objetivos”, “diretrizes” e “metas” do Porto do Rio seguiam listados em
tópicos, pontuando as ideias anteriormente expostas e seus três “eixos de atuação”,
todos articulados pela noção de “renovação”: a estrutura urbana, o sistema de circulação
e a legislação urbana. Como os grandes empreendimentos eram propostos para a
ocupação da orla marítima, os seis “núcleos de interesse” de implantação de projetos
foram selecionados tendo como referência espacial os dezoito armazéns localizados ao
longo da Avenida Rodrigues Alves e que abarcavam 3,5 Km que se estendiam do Píer
Mauá à Rodoviária Novo Rio.
Uma sequência de mapas demonstrava então o sistema de transporte do presente
da Zona Portuária e o seu futuro idealizado. O projeto de transportes se baseava na

28
facilitação da conexão interna entre os bairros da Zona Portuária e na sua interligação
com a área central e a Zona Sul, regiões mais valorizadas economicamente na cidade.
Todo o sistema idealizado era demonstrado como “integrador”, em oposição ao
“isolamento” que se percebia da região, em um discurso que portava tanto a ideia
temporal de futuro quanto espacial de circuito.

A apresentação das propostas gerais do plano se encerrava com uma sequência


de fotos e mapas que visavam comprovar o “vazio” e o “abandono” da Zona Portuária e
embasar as proposta de alteração da legislação urbana. Mas, entre a classificação dos
locais “públicos”, “históricos” e “desativados” que deviam ser “criados”, “preservados”
ou “renovados”, permaneceram sem representação no Porto do Rio todos os outros
imóveis residenciais e comerciais, embora fossem ser também afetados por ele. A
ausência desses espaços era reforçada pelo olhar distanciado das vistas aéreas e das
fotos panorâmicas e de satélite, em detrimento do ponto de vista térreo, singular e
aproximado, impedindo que fosse percebida a existência humana cotidiana e sugerindo
ainda serem esses espaços social e culturalmente vazios. Assim, para os idealizadores

29
do plano os espaços da Zona Portuária figuravam apenas como um objeto, um solo
“degradado” que deveria ser economicamente “potencializado”.
E, em seu conjunto, a divulgação oficial do plano movimentava as noções de
“zona degradada”, “sítio histórico”, “patrimônio cultural” e “renovação urbana”,
produzindo um discurso sobre os espaços da Zona Portuária que construía o imaginário
de que eles eram “deteriorados” e que, por isso, seria necessária a substituição de seus
usos e funções. E, temporalmente, esse imaginário era reforçado pela representação do
passado da região como uma sucessão de erros que teriam levado à sua “degradação”,
do seu presente como a oportunidade de mudança dessa situação, e de seu futuro como a
realização de uma desejada “modernização”.
Esse discurso temporal e espacial produzia, assim, uma imagem ideologicamente
poderosa, que tornava as propostas de transformação da Zona Portuária uma ação social
aparentemente óbvia e inquestionável. Mas a força expressiva dos discursos que
estruturavam o Porto do Rio estava também ancorada na representação do espaço como
um objeto deslocado da sociedade, uma natureza a ser dominada e explorada, como se
natureza e sociedade fossem pertencentes a dois domínios distintos na constituição do
mundo, em um processo de purificação da relação humanos e coisas que apagava todos
os trabalhos de mediação. Pois, como argumentado por Bruno Latour (1994), tal
processo de apagamento da produção de híbridos construía um discurso retoricamente
imparcial e científico, colocando os urbanistas da prefeitura em uma posição de
interventores técnicos dessa natureza e, portanto, supostamente não ideológicos.

O MORRO DA CONCEIÇÃO SEGUNDO O URBANISMO MUNICIPAL

Entre as diversas publicações disponíveis na livraria do IPP3, o livro Morro da


Conceição (2000) se dedicava exclusivamente a divulgar um conjunto de estudos
realizado nos seus espaços por técnicos da prefeitura carioca e do governo francês entre
os anos de 1998 e 2000. O livro possuía uma encadernação de capa dura, impressão em
tinta colorida, papel brilhante, muitas ilustrações, fotografias, mapas, desenhos e
transparências. Sua elaborada produção editorial indicava, assim, que seus idealizadores
visavam alcançar um público de alto poder aquisitivo e mais amplo que o formado pelos
demais técnicos da prefeitura e por pesquisadores de urbanismo e arquitetura. Seu texto

3
Abordando especificamente projetos idealizados para a Zona Portuária carioca, havia a coletânea de
artigos Revitalização de centros urbanos em áreas portuárias (orgs. Schweisser e Cesario, 2004).

30
era de autoria de Márcia Frota Sigaud e de Claudia Maria Madureira de Pinho e
graficamente mesclado com inserções de letras de música e poesia, que fornecia um
contraponto poético ao tom denotativo dominante. Já os estudos eram assinados pela
diretora do instituto, Ana Luiza Petrik Magalhães, e pela administradora da Região
Administrativa da Zona Portuária, Nina Rabha, e pretendiam subsidiar projetos a serem
implantados no “patrimônio urbanístico, paisagístico e arquitetônico” do morro.
Na apresentação do livro, os espaços dos morros da Conceição, do Castelo, de
Santo Antônio e do São Bento eram miticamente narrados como o “núcleo original da
cidade” e tinham suas construções comparadas aos bairros lusitanos de Alfama e da
Moraria. Entre esses morros, apenas o Morro da Conceição estava administrativamente
classificado na Zona Portuária, os demais haviam sido classificados como pertencentes
à área central, sendo que os morros do Castelo e do Santo Antônio haviam sido
desmontados. E nessa narração era construída também uma hierarquia ente os ocupantes
de tais espaços, associando-os inicialmente ao povoamento português e, posteriormente,
às imigrações africanas e de outros países europeus.
Na narração mítica do passado da Zona Portuária, a conformação da região até o
século XIX era caracterizada pela presença de edificações como igrejas, fortificações,
cemitério, armazéns e mercado de escravos, e pela criação de aterros e trapiches. E a
hierarquia ocupacional era reafirmada: era citada a “herança lusitana” na formação da
cidade dos séculos XVI e XVIII e, depois, a expansão urbana ao final do século XIX e a
chegada de escravos recém libertos, imigrantes europeus e classe trabalhadora em geral.
O final da narrativa deste passado era demarcado pelas obras de urbanização e
aterramento de parte da orla da Baía de Guanabara realizadas no início do século XX
pelo prefeito Pereira Passos.
Em seguida, o passado do próprio Morro da Conceição era demarcado pelas
instalações de edificações católicas, militares e de apoio ao comércio escravista e pela
atuação do urbanismo municipal. Sua origem era narrada a partir do erguimento em seu
topo de uma ermida a Nossa Senhora da Conceição no início do século XVII, onde em
seguida foi instalado o Palácio Episcopal. Depois, eram citadas as instalações da Igreja
de São Francisco da Prainha no fim do século XVII, da Fortaleza da Conceição e do
mercado de escravos no Valongo no século XVIII, e a extinção desse mercado e
“nobilização” de sua área pela prefeitura durante o século XIX. O século XX era então
novamente narrado como o fim das transformações urbanas do morro e sua

31
“cristalização” como “foco de resistência residencial” e de “memória urbana”,
sugerindo que nele não mais haviam ocorrido modificações físicas ou habitacionais.
A exposição das propostas de transformação urbanística que se seguia era
baseada na afirmação da “degradação” física do morro e na estruturação da oposição
entre espaços “públicos” e “privados”. Como espaços públicos degradados eram
listados o Jardim Suspenso do Valongo, construído durante a reforma de Pereira Passos
como projeto de “embelezamento” do espaço anteriormente ocupado pelo mercado de
escravos; as instalações irregulares de fiação elétrica; e os calçamentos de cimento que
haviam substituído os de pedras e paralelepípedos. E eram citadas como degradação dos
espaços privados as alterações que os moradores haviam feito nas fachadas de suas
casas utilizando tecnologias construtivas entendidas como não originais. Partindo então
do pressuposto de que havia a necessidade de criação de uma política de “renovação
urbana”, os urbanistas propuseram um amplo programa para reverter o “processo de
degradação” do que denominavam de “sítio histórico”.
A apresentação do programa era iniciada com o levantamento dos projetos
urbanísticos que haviam incidido anteriormente sobre a Zona Portuária e o Morro da
Conceição e articulava o passado mítico dos próprios urbanistas nesses espaços. A
Reforma Pereira Passos, realizada entre 1903 e 1906 e citada até então como o final do
tempo passado da Zona Portuária e do Morro da Conceição, demarcava a origem dos
projetos urbanísticos nesses espaços: havia alargado diversas vias da área central, aberto
a Avenida Rio Branco, aterrado a orla para a ampliação das atividades portuárias e
incentivado a circulação com a Zona Sul da cidade. Qualificada como “embelezadora e
modernizadora” pelos urbanistas, essa reforma, no entanto, não propôs o zoneamento da
cidade ou critérios de uso e ocupação do solo.
O primeiro plano urbanístico a
definir tais critérios e zoneamento foi o
Plano Agache de 1930. Nele, foram
criadas a Avenida Presidente Vargas e
algumas ligações metroviárias e o
território do centro urbano foi dividido
nas categorias “bairro comercial” (em
azul), “bairro de negócios” (em verde) e
“bairro industrial” (em amarelo), este último tendo seus usos e funções totalmente
voltados para as atividades relacionadas ao porto. E as partes médias e altas do morro

32
foram classificadas como pertencentes ao bairro industrial e a maior parte de sua base
como ao bairro comercial.
Em 1965, após a transferência da
capital do país para Brasília e da
transformação do Rio de Janeiro em
Cidade-Estado da Guanabara, foi
elaborado o Plano Doxiadis, que propôs o
reordenamento do mesmo espaço
dividindo-o apenas em quatro: “área
portuária” (em azul), “área central de
negócios” (em amarelo), uma área branca não assinalada englobando o espaço do píer e
do Morro do São Bento, e outra também branca e não assinalada delimitada por uma
lado da margem da Avenida Presidente Vargas. O Morro da Conceição foi então
reclassificado como pertencente à área central, embora um trecho de sua base tenha
permanecido na área portuária.
O PUB-RIO foi concebido em 1977 após outra mudança administrativa do
território, que foi a fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Neste plano, os
morros da Conceição, Livramento, Providência e do Pinto foram destacados da “área
portuária” e “área central” e classificados
como “área de preservação ambiental e
paisagística” (em verde). A “área central”
manteve sua nomenclatura, embora tenha
sido subdividida em “área central de
negócios” (em amarelo) e “expansão da
área central de negócios” (em bege). E a
retro-área portuária permaneceu em
branco e não foi assinalada no mapa. E o Morro da Conceição, além de ter ganhado uma
nova classificação, teve sua base mais fragmentada, passando a pertencer a quatro
diferentes tipos de zoneamento do entorno.
O Plano Diretor de 1992 foi criado após a Constituição Federal de 1988 definir
que toda cidade com mais de 20 mil habitantes deveria ter um plano de diretrizes
aprovado pela Câmara Municipal de Vereadores. Neste plano, a cidade foi analisada de
forma setorial, com a indicação das políticas públicas a serem desenvolvidas e
classificadas por áreas de atuação: “meio ambiente e patrimônio cultural”, “habitação”,

33
“sistema viário e transportes”, “serviços
públicos e equipamentos urbanos” e
“atividades econômicas e patrimônio
imobiliário”. A “área central” ganhou
novas subdivisões (em tons de amarelo),
e a “área de proteção ambiental” (em
verde) foi ampliada e a “zona portuária”
(em azul) foi restrita aos espaços
aterrados, seguindo as demarcações do projeto SAGAS. E o Morro da Conceição foi
designado como “área integrada ao patrimônio paisagístico e cultural”, com suas
diretrizes de uso e ocupação do solo prevendo o incentivo ao uso residencial; o
desenvolvimento de atividades ligadas ao turismo, lazer e cultura; a melhoria das
condições ambientais; e a racionalização do sistema de transportes.

Após as mudanças da legislação urbanística, foram apresentadas no livro as


legislações de preservação patrimonial vigentes. Em um grande mapa, foram
assinalados em verde os tombamentos individuais do Jardim Suspenso do Valongo (1),
da Igreja de São Francisco da Prainha (3), da Fortaleza da Conceição (4) e do Palácio
Episcopal (5), realizados pelo IPHAN em 1938; e da Pedra do Sal (2) realizado pelo
governo estadual em 1987. E foi destacado em azul o tombamento de um cortiço e de
um sobrado pela prefeitura em 1988. Foram também assinalados em amarelo os
diversos imóveis que haviam sido preservados pelo município e em laranja os tutelados
pelo estado. E informado que todo o perímetro do morro havia sido tutelado pelo

34
governo federal em 1986, com a definição de gabarito máximo de dois pavimentos, e
que o projeto SAGAS havia restringido seus usos como residencial e como comercial e
de serviços voltados apenas para o atendimento local.
A apresentação de tais planos urbanísticos e legislações patrimoniais demarcava,
portanto, tempos e espaços referentes às distintas classificações administrativas que
haviam incidido sobre a área central, a Zona Portuária e, mais especificamente, o Morro
da Conceição. No entanto, no código cronológico operado era apenas brevemente citado
como tais leis urbanísticas e patrimoniais dialogavam entre si e não eram explicitados
quais os efeitos que essas distintas classificações e intervenções tiveram sobre os
espaços. O discurso dos urbanistas municipais sugeria, assim, que tais políticas de
ordenamento espacial inauguravam sempre uma nova época, da mesma forma como
havia sido articulado no material de divulgação do “novo” plano da prefeitura para a
Zona Portuária, o Porto do Rio.
Mas, ao longo da pesquisa que desenvolvi, observei que os efeitos dos diversos
planos urbanísticos perduravam e coexistiam na estruturação dos espaços do Morro da
Conceição. Nele estavam espacialmente justapostos, por exemplo, o Jardim Suspenso
do Valongo criado na Reforma Pereira Passos e as práticas de presentificação da
memória referente aos usos do antigo mercado de escravos. Viam-se também os
desdobramentos sociais, econômicos e culturais do aterramento da orla da Baía da
Guanabara e a especialização do espaço como dedicado às atividades portuárias, como a
divisão dos sobrados em cômodos para abrigar operários e funcionários da Marinha. Do
Plano Agache e do Plano Doxiadis, permaneciam os efeitos da classificação da base do
morro como área limítrofe de desenvolvimento de atividades comerciais, industriais ou
de negócios, que havia provocado sua setorização ocupacional.
Os tombamentos individuais feitos pelo IPHAN também haviam perpetuado o
imaginário do morro como espaço ligado às tradições militares, católicas e urbanísticas.
A ampliação da noção de preservação tinha sido ainda definida pelo PUB RIO, plano
que provocou como efeito a manutenção dos aspectos físicos dos sobrados, garantindo
sua “cristalização”, como enunciado no livro pelos urbanistas de forma naturalizada. E
essa manutenção foi posteriormente reforçada pela definição da volumetria dos
sobrados, efeito da tutela patrimonial de todo o perímetro do morro pelo IPHAN. A
separação das partes elevadas do morro, destinada ao uso residencial, das partes de sua
base, destinada aos usos comerciais “locais”, foram em seguida estipuladas pelo projeto
SAGAS, tendo como efeito a ocupação predominante desta última por lojas de artigos

35
para escritórios, restaurantes populares, gráficas, depósitos de produtos e
estacionamentos. E, por fim, o Plano Diretor ao regular as intervenções voltadas para o
turismo, a cultura, o lazer e o adensamento habitacional do morro, produziu como
efeitos a “renovação” de largos e praças e a própria eleição do morro como setor
prioritário de atuação na “revitalização urbana” da Zona Portuária.
Em seguida aos mapas, o livro expôs os resultados de quatro pesquisas
desenvolvidas pelos urbanistas no morro: arquitetônica, socioeconômica, fundiária,
imobiliária e arqueológica. A pesquisa arquitetônica se concentrou na parte externa das
edificações e nas vias do morro, classificando-as por “fachada” e por “ambiente
urbano”. Sua etapa posterior previa o estudo do interior das edificações e pretendia
analisar “seu valor quanto ao patrimônio”, incluindo os aspectos de sua “salubridade”,
“segurança”, “conforto” e “estado de conservação”. Sem definirem os critérios que
pautavam essas noções, os urbanistas enunciavam que, na conclusão dessa pesquisa,
desejavam dimensionar os custos da “reabilitação habitacional” a ser implantada, em
uma proposta que deixava pouco nítida a fronteira entre os poderes públicos e os
espaços privados das residências.
Já a pesquisa socioeconômica foi realizada através de visitas domiciliares e
buscou identificar sua quantidade, condições de ocupação, população, renda,
composição familiar e as atividades profissionais desenvolvidas pelos moradores.
Foram cadastrados cerca de 2.000 moradores nas edificações residenciais e
identificados 1.053 domicílios, sendo que, desses, 357 estavam localizados em três
edifícios de apartamentos situados na base do morro e 133 estavam fechados. Entre as
dificuldades apontadas para a execução das ações de “reabilitação” dos imóveis, estava
o alto índice de domicílios alugados, 48%, contra apenas 27,4% de ocupados por
proprietários, sendo que a pesquisa não esclarecia quem eram os moradores dos 24,6%
domicílios restantes, possivelmente ocupantes informais dos imóveis classificados como
“fechados”. A ênfase dessa pesquisa, assim, recaiu sobre os aspectos jurídicos e
administrativos que unia os moradores aos imóveis que habitavam, dividindo-os em
“proprietários”, “inquilinos” e irregulares, estes últimos indiretamente citados e não
oficialmente reconhecidos.
A pesquisa fundiária era um desdobramento dessa divisão e propunha a
identificação dos “proprietários” a partir de uma nova classificação: “instituições
religiosas”, “particulares” e “instituições governamentais”. Entre as instituições
religiosas, a que possuía mais propriedades era a Venerável Ordem Terceira de São

36
Francisco da Penitência - VOT e, entre as instituições governamentais, a com maior
propriedade no morro era a União Federal, por causa dos extensos territórios do
Observatório do Valongo da UFRJ, da Fortaleza da Conceição e do antigo Palácio
Episcopal, estas duas últimas edificações utilizadas pela Divisão de Levantamento
Cartográfico do Exército. Segundo os urbanistas, a pesquisa fundiária havia sido
dificultada pela impossibilidade de dimensionamento de diversos lotes e da constante
indefinição do que era área “pública” e “privada” que, como visto anteriormente, era um
de seus princípios de estruturação mental dos espaços do morro. Outro fator
considerado complicador da “reabilitação” foi a inexistência de registro em cartório de
inúmeros imóveis, que os urbanistas explicaram historicamente com o fato de o morro
ter sido dividido em três áreas foreiras: da União, da Ordem dos Beneditinos e da
Ordem Terceira da Penitência.
Na sequencia de pesquisas, a que tratava dos aspectos imobiliários do morro não
foi apresentada, foi feita apenas uma defesa de sua importância, que seria o
monitoramento do mercado imobiliário antes e depois da implantação do programa
urbanístico. E foram também expostos como objetivos dessa pesquisa a aquisição ou
desapropriação de algumas áreas pela prefeitura e o controle da valorização econômica
do morro, que visava garantir a manutenção de seus “ocupantes originais”, que somente
mais adiante, na caracterização da “organização comunitária”, seriam identificados
pelos urbanistas.
Os resultados da prospecção arqueológica, no entanto, ganharam grande
destaque ao abordarem a existência de um “sítio histórico” no morro, sendo o Jardim do
Valongo o espaço escolhido para iniciar a implantação do programa. O livro então
demonstrava, através de fotografias, a realização de dois anos de escavação, catalogação
e análise do material coletado, que resultaram na “recuperação” do jardim para seu
estado considerado “original”, que foi demarcado como o momento de sua construção
pela prefeitura de Pereira Passos. Antes dessa recuperação, o espaço foi qualificado
como “abandonado”, soterrado por entulho e lixo, invadido por vegetação, danificado
por ações de “vandalismo” e frequentado por “mendigos” e “desocupados”. No entanto,
o fato de ele ter sido construído em cima do antigo mercado de escravos não foi citado
nem constituiu uma meta da prospecção arqueológica e de sua recuperação.
Finalizando a apresentação dessas pesquisas, os urbanistas propuseram uma
“caracterização da área” que sintetizava os resultados encontrados e estruturavam mais
claramente suas percepções sobre os espaços do morro que deveriam ser transformados

37
ou preservados. Novamente era indicada a ocupação inicial do morro pelo Palácio
Episcopal, Igreja de São Francisco da Prainha e Fortaleza da Conceição, mas, desta vez,
a essa ocupação era feito um contraponto: apesar da instalação de “instituições
prestigiadas, ele [o morro] se viu obrigado a conviver com equipamentos indesejados
pela cidade”, que foram identificados como o comércio de escravos e as atividades de
exploração de pedreiras, comerciais, portuárias e ligadas aos estaleiros, fundições,
serralherias e ferrarias. No entanto, era omitido o papel dos próprios planos urbanísticos
municipais e de suas propostas de zoneamento e usos do solo na configuração desses
espaços do morro. E, associado a essas atividades “indesejadas”, era descrito o perfil de
população que elas atraíram e suas formas de habitar, também percebidas como
inadequadas: operários fabris e trabalhadores portuários que se abrigavam em “casas de
cômodo” e “cortiços”.
A partir da seleção desses eventos da ocupação do morro tidos como históricos e
das pesquisas que realizaram durante dois anos, os urbanistas apresentaram uma
classificação do que denominaram de “áreas sem uso ou uso precário”, ou seja, dos
espaços que seriam o foco de atuação dos projetos de transformação urbana. Elas foram
divididas em “área pública ou lote não identificado”, “lote com edificação precária”,
“ruína sem uso” e “ruína com uso”. Depois, foram classificadas as “áreas utilizadas para
lazer”, divididas como “pública ou de propriedade ignorada”, “privada” e
“institucional”. E, ainda para subsidiar as intervenções urbanísticas, foram identificados
os “pontos de visadas panorâmicas” do morro, seus “elementos da paisagem natural” e
os “perfis das vias”, que era o estudo das volumetrias, dos parcelamentos dos lotes e das
proporções entre as fachadas, com a intenção de definir parâmetros urbanísticos.
No último item de caracterização, a “organização comunitária”, os urbanistas
fundiram essas informações sobre os estados de conservação física dos imóveis e das
vias com uma classificação dos moradores, que foram apresentados a partir de três
categorias sociais e distribuídos espacialmente em cinco “segmentos das dinâmicas
socioespaciais”. A primeira categoria ocuparia o “eixo cume morro” (em azul) e seria
composta por “moradores antigos, muitos descendentes de portugueses e espanhóis”
ligados às atividades portuárias, que foram descritos como possuidores de uma “relação
afetiva intensa” com a área e predominantemente proprietários de imóveis. A segunda
categoria ocuparia o “flanco norte” do morro (em verde) e seria composta por
“moradores recentes, migrantes nordestinos em sua grande maioria”, apresentados como
responsáveis pelo seu “marcante processo de degradação física e social”, possuidores de

38
“uma relação meramente conjuntural” com o local e como predominantemente
locatários. E, a terceira categoria social, foi identificada como ocupante do “sopé
comercial” (em amarelo) e seria composta por “comerciantes instalados na base do
morro”, descritos como pessoas que não tinham necessidade “de transitar por seu
interior, de frequentar seus espaços, nem de compartilhar das mesmas expectativas” dos
moradores do morro.

A população estimada do morro é de 2.000 habitantes. Aí estão incluídos os


moradores antigos, muitos descendentes de portugueses e espanhóis, que tradicionalmente
estiveram ligados às atividades portuárias e cuja relação afetiva com a área é intensa,
traduzindo-se numa forte identidade socioespacial.
No entanto, a área vem sofrendo marcante processo de degradação, físico e social,
dada à proximidade com a Zona Portuária e todas as implicações que ela acarreta. Com
isso, a população original vem sendo substituída por migrantes de outros estados do país.
Aqueles que têm condições e desprendimento para abandonar a área, o fazem.
Os moradores recentes, migrantes nordestinos m sua grande maioria (35% segundo
pesquisa socioeconômica), têm uma relação com o Morro meramente conjuntural. Eles se
instalam aí por sua proximidade com o mercado de trabalho, pelos baixos preços do
mercado imobiliário e pelo conforto proporcionado pela disponibilidade da infraestrutura
urbana.
Há ainda a categoria dos comerciantes, que estão principalmente instalados na base
do Morro, cujos trajetos não implicam a necessidade de transitar por seu interior, de
frequentar seus espaços, nem de compartilhar das mesmas expectativas. Esta categoria está
muito mais voltada para as relações com a cidade do que com o próprio Morro. Essas são
basicamente as três grandes categorias sociais identificadas no Morro.

39
Os moradores antigos, geralmente ocupando as residências no cume do Morro, são
os próprios proprietários e não tem grande afinidade com os moradores mais recentes, estes
estabelecidos, sobretudo, na vertente norte do Morro e são, em grande parte, locatários.
Grande parte da tensão social existente no Morro, portanto, gira em torno dessas
duas categorias, de suas aspirações, suas identidades, de seus valores, que acabam por gerar
uma certa relação de hostilidade entre ambas as partes.

Na percepção desses urbanistas, portanto, a “comunidade” do morro estaria


dividida principalmente segundo seu tempo de moradia, sua relação econômica com o
imóvel, seu local de origem e o tipo de uso do solo, sendo estruturada a partir dos
dualismos “morador” e “comerciante”; morador “antigo” e “recente”; “proprietário” e
“locatário”; “português e espanhol” e “nordestino”. Esta divisão categórica da prefeitura
construía, assim, estereótipos baseados em identidades puras, em vez de propor uma
representação dos espaços do morro e de seus habitantes a partir de identidades
relacionais.
E, nesse sistema de autenticidade comunitária, era implicitamente afirmado que
os “descendentes de portugueses e espanhóis” deveriam ser os moradores preservados e
valorizados pelo programa de “revitalização” e os “migrantes nordestinos”,
responsabilizados pela “degradação” do morro, poderiam ser retirados, como se suas
origens e condições econômicas de locatários possuíssem uma relação de causalidade
com o estado físico das casas e vias. Sendo que era na afirmação de uma “hostilidade”
entre os moradores colocados nessas duas grandes categorias de “moradores” que a
intervenção urbanística se ancorava discursivamente, ao proclamar uma suposta
necessidade externa de mediação dos moradores para que fosse solucionada a “tensão
social” do morro. Mas, ao longo da pesquisa, observei que havia diversas outras formas
de seus habitantes estruturarem seus espaços e classificarem uns aos outros, que
passavam por uma gama mais ampla de locais de origens, de crenças religiosas, de
divisões de gênero e etárias, de atividades profissionais, entre outras.
Além dessa divisão estereotipada dos habitantes do morro, chamava a atenção
que os do “flanco sudeste” (em ocre e vermelho), onde estava localizado o Jardim
Suspenso do Valongo e a Ladeira Pedro Antônio, não tivessem sido descritos ou
citados. Era, no entanto, nesse espaço que a maioria dos imóveis tinha sido classificada
pelos urbanistas como “com potencial para operações de reabilitação” e eleitos
prioridade de implantação do programa. A não identificação desses habitantes na

40
pesquisa da “organização comunitária” era, assim, uma forma de representá-los como
inexistentes.

A hierarquia de intervenções propostas pelos urbanistas, ao final desse conjunto


de estudos, operou então com uma gradação entre os espaços considerados mais e
menos necessitados de “operações de reabilitação”, a partir da identificação de maior ou
menor quantidade de imóveis “vazios”, “vazios em reforma”, “fechados”, “invadidos”,
“insalubres” e “com risco estrutural”. Foi definido o “setor do Valongo” (em amarelo)
como prioridade de atuação e sugerido que nele fosse implantado empreendimentos
habitacionais e áreas de lazer e estacionamento. Em seguida, foi indicada a intervenção
urbanística no “setor da Rua Jogo da Bola/ Ladeira João Homem” (em rosa) e no “setor
da Ladeira Pedro Antônio” (em laranja).
No “setor do Adro de São Francisco” (em abóbora), foram identificados também
imóveis “vazios” e com “risco estrutural”, mas nele as intervenções dependiam de
negociações com a VOT, proprietária de grande parte dos imóveis, e da conclusão das
obras de ampliação de sua escola, a Padre Dr. Francisco da Motta. O “setor da
Fortaleza” (em pêssego) foi classificado como o “mais emblemático” no morro e
considerado necessitar de um amadurecimento da equipe para alterá-lo, e também era
onde havia mesmo imóveis “com potencial para operações de reabilitação”. E o “setor
do entorno” (em pontilhado), foi definido com última área a receber intervenções e
idealizado para interligar o morro a cidade e diminuir seu “isolamento”.
Concluindo as propostas de “reabilitação” dos imóveis, os urbanistas
apresentaram um texto que incentivava o turismo no morro a partir da valorização de
seus espaços como testemunho de uma “memória ímpar da cidade” e como um “sítio
depositário de um passado histórico”. E, defendendo o uso “pedagógico” do morro na

41
observação de como haviam funcionado as “sociedades precedentes” e o “patrimônio
que nos foi transmitido”, movimentaram a percepção de que seus espaços e bens eram
capazes de operar uma mediação entre um tempo e experiência passados. Por fim, na
definição de como seriam os observadores desse patrimônio, propagaram a implantação
de equipamentos voltados para a atividade de um “turismo atento, seleto e culto”,
sugerindo, portanto, que haveria uma noção de turismo voltado para uma massa inculta.

O REENCONTRO DA PEQUENA ÁFRICA COM PEREIRA PASSOS

A crescente divulgação do Morro da Conceição como atração turística e


potencialidade para empreendimentos habitacionais provocou tanto o aumento de
circulação de pessoas nos espaços classificados pelos urbanistas da prefeitura como
“eixo cume morro”, interessadas em fruir a arquitetura do casario e o “estilo de vida”
dos que estavam sendo identificados como “descendentes de portugueses e espanhóis”;
quanto a precipitação de um conflito travado entre dirigentes da VOT e moradores da
parte do morro que havia sido classificada como “sopé comercial”.
De grande visibilidade na mídia nacional, o auge desse conflito ocorreu quando
cinco moradores, classificados pela entidade católica como “invasores” e notificados de
ações de despejo e reintegração de posse, pleitearam judicialmente o reconhecimento de
vários imóveis da base do morro como “Comunidade de Remanescentes do Quilombo
da Pedra do Sal”. Atuantes no Movimento Negro Unificado - MNU, os moradores que
formaram esse “quilombo” acionaram então suas relações com o Estado para propor
uma interpretação étnica ao conflito que vivenciavam. E inseriram nos discursos de
autenticidade sobre os moradores do morro uma lógica patrimonial que propunha a
narração de seu passado a partir de outro mito de origem: o da formação da “Pequena
África”.
Dentre os múltiplos posicionamentos que encontrei no Morro da Conceição, a
Pequena África foi o único que se caracterizava por se relacionar com seus demais
espaços e patrimônios a partir de analogias que concebiam a sociedade de uma forma
aperfeiçoada, pautada por um modelo de ancestralidade africana e de identidade cultural
negra. O espaço da Pequena África era, assim, uma utopia, como também definido por
Foucault (2006): em comum com a heterotopia, abarcava posicionamentos e contra
posicionamentos, mas, em distinção, não era localizável. O passado da Pequena África

42
era narrado por habitantes do morro e também de outros espaços da Zona Portuária e do
Centro da cidade que dele se entendiam herdeiros.
Comparando algumas versões do que chamei de “mito da Pequena África”,
encontrei pontos de cruzamento que demarcavam eventos projetados sobre esses
espaços: a comercialização de escravos africanos no mercado do Valongo e o enterro no
bairro da Gamboa dos que haviam morrido na travessia marítima continental, os “pretos
novos”, a partir do século XVIII; a ocupação de casas no bairro da Saúde por migrantes
baianos em meados do século XIX; e, com as reformas urbanísticas realizadas pelo
prefeito Pereira Passos na virada do século XX, o deslocamento habitacional desses
migrantes baianos e africanos para a Cidade Nova e para as primeiras favelas e
subúrbios da cidade.
Para embasar juridicamente a territorialização dessa utópica Pequena África, os
moradores do morro que formaram o Quilombo da Pedra do Sal acionaram o Artigo 68
do Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitórios da Constituição Federal de 1988.
Esse artigo possibilitava que grupos que se entendessem “afrodescendentes”
pleiteassem perante o Estado o reconhecimento como “comunidades remanescentes de
quilombo” e a titulação de um território de uso coletivo. Em sua aplicabilidade, definida
apenas em 2003 através do Decreto 4.887, era qualificada como comunidade
quilombola os “grupos étnico-raciais” que assim se auto atribuíssem, que possuíssem
“trajetória histórica própria”, “relações territoriais específicas” e uma “ancestralidade
negra” relacionada com a “resistência à opressão histórica sofrida”.
De acordo com a sistematização do antropólogo José Maurício Arruti (2006), a
noção de “quilombo” desse artigo havia sido construída a partir da operação de três
conceitos: o de remanescentes, que equiparava a situação das comunidades negras à das
indígenas, colocando como centro de sua retórica a noção de “direito de memória”; o de
terras de uso comum, que caracterizava como áreas coletivas as que possuíam os
recursos básicos controlados por vários grupos familiares e regulados a partir de um
universo legal próprio; e o de etnicidade, que postulava como “quilombolas” os grupos
que assim se auto atribuíssem, que possuíssem uma identidade referenciada na partilha
de vivências e valores e que se percebessem contrastivamente em relação a outra
identidade em determinada situação de conflito fundiário.
Nos processos de reconhecimento de territórios étnicos que então surgiram por
todo o país, alguns mediadores específicos ligados ao poder público foram mobilizados.
Dentro do Poder Judiciário, os procuradores do Ministério Público Federal se

43
posicionaram como os agentes que desenvolviam Ações Civis Públicas para que fossem
assegurados os “direitos coletivamente gozáveis e de titularidade indeterminada” dos
grupos. A Defensoria Pública se posicionou como a instituição jurídica complementar
às ações dos procuradores, atuando em litígios individuais como nas ações de
reintegração de posse onde os pleiteantes dos territórios quilombolas eram citados como
réus. E, nos órgãos do Poder Executivo, os principais mediadores das comunidades
quilombolas se tornaram a Fundação Cultural Palmares, que emitia os certificados de
reconhecimento a partir da auto atribuição dos grupos, e o INCRA, que encaminhava o
processo de regularização fundiária através da produção de relatórios de “identificação e
delimitação territorial” contendo informações cartográficas, fundiárias, agronômicas,
ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas sobre as
comunidades4.
A presentificação do mito da Pequena África pelos integrantes do Quilombo da
Pedra do Sal não estava, portanto, ancorada apenas ao contexto carioca, remetendo às
discussões travadas em todo o país na década de 1980 que problematizavam o
centenário da abolição da escravidão e denunciavam a falta de políticas públicas de
inclusão dos “setores populares” da sociedade e, especificamente, dos “negros”. Havia
sido durante essas discussões que tinha se fortalecido o paradigma da implantação de
“políticas de reparação”, que pretendiam promover ações que permitissem a distribuição
de renda para esses setores classificados como socialmente marginalizados.
E, nas ações voltadas especificamente para a valorização da cultura e da
memória negra, ganharam destaque as práticas oficiais de preservação do patrimônio,
que a partir de então produziram imagens que perpetuavam, difundiam e expunham essa
cultura e que também rivalizavam com os mediadores das memórias estruturadas como
opostas, que eram as do “catolicismo”, da “elite” e dos “brancos”. Em uma perspectiva
institucional e política, convergiu para a realização desse embate de imaginários através
da oficialização de patrimônios a alteração da direção do IPHAN, que a partir da gestão
de Aloísio Magalhães incentivou o tombamento de bens entendidos relevantes por sua
“imaterialidade” e por seu pertencimento ao “cotidiano” das “comunidades”
(Gonçalves, 2002; Fonseca, 2005). Nas narrativas de integrantes do movimento negro

4
Sobre os aspectos jurídicos da noção de “comunidades de remanescentes de quilombo” definida pelo
Artigo 68, ver Arruti e Figueiredo, 2005.

44
brasileiro5, esse período foi demarcado como o gerador de duas importantes imagens
mediadas pelo instituto: a demarcação do Parque Histórico Nacional Zumbi em Serra da
Barriga/AL, onde havia existido o núcleo de resistência escrava Quilombo dos
Palmares; e o tombamento da Casa Branca do Engenho Velho em Salvador/BA,
primeiro terreiro de candomblé a se tornar patrimônio nacional.
No Rio de Janeiro, foi também nesse período que houve a divulgação do
primeiro produto mediador que organizava uma dramatização do mito da Pequena
África: o livro Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, escrito pelo cineasta
Roberto Moura e publicado em 1983 como resultado de um concurso de monografias
sobre personalidades ligadas à música popular brasileira realizado pela FUNARTE,
órgão ligado ao Ministério da Cultura6. Através desse livro, foram articuladas algumas
imagens do fim do século XX associadas ao mito: a moradia nos cortiços; a organização
de revoltas urbanas contra “posturas higienistas” da prefeitura; a celebração de festas
com ritmos percussivos; a ascensão do músico popular na indústria cultural e de
entretenimento; e a formação de vínculos sociais a partir dos cultos do candomblé e dos
sindicatos portuários7.
O recorte temporal demarcado pelo livro foi o ano de 1888, abolição da
escravidão no Brasil, evento que o autor afirmou ser o causador de uma ruptura do
mundo associativo e simbólico do negro. Na construção dos personagens do livro, ele
propôs que existia uma oposição racial entre “negros” e “brancos” antes da abolição e
que, após, ela foi justaposta a uma oposição de classes sociais, entre “populares”,
“oligarquia agrária” e “classes médias urbanas”. Essa justaposição teria sido decorrente
da introdução de uma ética de trabalho capitalista no país e da união classista de negros,
imigrantes e nordestinos – os que eram identificados genericamente pelo autor como
“populares”.

5
Tais narrativas podiam ser encontradas em diversos livros sobre políticas públicas de valorização e
afirmação da cultura e memória afro-brasileira, entre eles o organizado pelo fotógrafo Januário Garcia
(2008). E, especificamente sobre o processo de tombamento da Casa Branca, ver Velho, 2006.
6
Segundo reportagem de Aramis Millarch publicada no Estado do Paraná em 08 de abril de 1980, o
primeiro concurso do órgão governamental foi realizado em 1977, e teve como tema o músico
Pixinguinha. Posteriormente, foram realizadas monografias sobre Waldemar Henrique, Lupicínio
Rodrigues, Nelson Ferreira, Dorival Caymmi, Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Jararaca e Ratinho,
Candeia e Alcebíades Barcelos, até que Tia Ciata foi selecionada como tema do concurso no ano de 1980.
A primeira edição do livro foi publicada em 1983 pela própria FUNARTE e, em 1995, o livro foi
reeditado pela prefeitura em versão ampliada, com a inclusão do capítulo “Geografia musical da cidade”.
Para fins analíticos, no entanto, considerei a primeira edição, que possuía dez capítulos e que se tornou
referência para as demais versões do mito da Pequena África.
7
Publiquei uma versão inicial da análise desse livro de Roberto Moura e seus usos na proposta de
tombamento da Pedra do Sal nos anais da II Reunião Equatorial de Antropologia (Guimarães, 2009b).

45
Para acentuar as particularidades dos negros neste novo momento do país, o
autor apresentou as práticas culturais dos “afrodescendentes” que moravam em Salvador
décadas antes da abolição, dividindo-os por suas origens étnicas banto, ioruba e
islâmica. A cada uma dessas etnias, atribuiu então uma característica na formação do
que denominou ser uma “cultura urbana carioca”: a criação dos ranchos carnavalescos
seria assim uma herança da festividade dos bantos, o culto aos orixás uma herança da
religiosidade dos iorubas e as revoltas urbanas uma herança da belicosidade dos
islâmicos. E, na definição dos antagonistas narrativos, o autor colocou os “brancos da
elite portuguesa e da igreja católica” em oposição à “cultura africana”, equivalendo
assim as práticas e ideologias do capitalismo e do catolicismo para definir as fronteiras
identitárias dos “afrodescendentes” e retratá-los como uma totalidade sociocultural.
No desenvolvimento do livro, o autor narrou as práticas sociais dos
frequentadores das rodas de samba da casa de Ciata e da casa de candomblé de João
Alabá, denominando-os coletivamente de a “diáspora baiana na Pequena África”. E,
como fontes de informação, utilizou principalmente os depoimentos de Donga, João da
Baiana, Heitor dos Prazeres e Pixinguinha gravados pelo Museu da Imagem e do Som
na década de 1960, onde os sambistas narravam o desenvolvimento de suas carreiras
musicais e as relações sociais que haviam estabelecido na Zona Portuária e na Cidade
Nova no início do século XX.
Sendo que, na síntese dramática do livro, o autor construiu uma continuidade
histórica entre os integrantes da “diáspora baiana” e seus “herdeiros” na década de
1980, a partir de depoimentos de descendentes consanguíneos de Ciata e de uma de suas
irmãs de santo, Carmem do Xibuca. Através de suas falas, o autor articulou uma retórica
da perda onde foram enfatizados a troca dos ofícios tradicionais pelas atividades
industriais, o esfacelamento dos vínculos religiosos e recreativos ocorrido com a morte
das “tias” baianas e o fim dos ranchos carnavalescos, as relações conflituosas com a
indústria musical em desenvolvimento, as frustrações amorosas, os constantes
deslocamentos habitacionais e o aumento das restrições nas práticas do candomblé nas
festividades católicas. E reforçou a mensagem de que o “preconceito racial” havia
persistido durante anos e sido deixado aos descendentes da extinta diáspora como
herança visível na exclusão do negro do mercado de trabalho e na sua falta de acesso
aos recursos materiais.
Um ano após a publicação do livro, houve sua primeira apropriação por uma
política pública de valorização da cultura negra: o tombamento da Pedra do Sal em

46
1984, apresentada pelo presidente do Instituto Estadual de Patrimônio Cultural -
INEPAC, o arquiteto Ítalo Campofiorito, ao antropólogo Darcy Ribeiro, então vice-
governador e secretário de cultura do Rio de Janeiro. A proposta enfatizava que já havia
no Morro da Conceição bens católicos e militares tombados pelo IPHAN desde 1934 e
apontava a necessidade de ser instituída uma “nova hierarquia de valores” no morro.
Para o arquiteto, o reconhecimento da Pedra do Sal como “monumento negro e popular”
seria capaz de representar a religiosidade dos orixás, a migração baiana e o carnaval
carioca. Nos textos componentes da proposta de tombamento, o historiador Joel Rufino
apresentou os usos da Pedra do Sal e do casario de seu entorno no passado como
protagonistas narrativos. E a museóloga Mercedes Viegas utilizou o livro de Roberto
Moura como fonte de informação para a delimitação temporal da memória a ser
resgatada pelo tombamento: a virada do século XIX para o século XX, período por ele
narrado como de formação da “diáspora baiana”.
Tanto Joel como Mercedes articularam uma retórica da perda, argumentando que
a cidade passava por um processo de “descaracterização” causado pelas sucessivas
transformações urbanísticas e que essa alteração dos aspectos físicos dos logradouros e
imóveis ameaçava extinguir os “testemunhos do passado da cidade negra”. Assim,
enquanto a “igreja católica” foi retratada como uma antagonista simbólica, os “projetos
urbanísticos” foram apresentados como os antagonistas físicos pelas transformações
materiais que provocavam. Mas a principal diferença entre a narrativa sobre a Pequena
África elaborada por Roberto e a dos textos patrimoniais foi a exclusão, nestes últimos,
de qualquer interação social, conflituosa ou harmônica, dos “afrodescendentes” com
outros grupos sociais, bem como de transformações de suas práticas culturais com o
passar dos anos. Norteados pelos paradigmas discursivos patrimoniais da década de
1980, de retratar grupos como totalidades culturais na busca de enfatizar seus aspectos
considerados “autênticos”, eles não utilizaram, assim, qualquer informação que pudesse
questionar a legitimidade do tombamento proposto.
E, ao longo da década de 1980, essa clivagem das práticas de setores
governamentais em torno dos temas das relações raciais e dos patrimônios culturais
produziu, além do tombamento da Pedra do Sal, outros produtos mediadores na cidade
do Rio de Janeiro que operavam em analogia direta à utopia da Pequena África. O
entorno da extinta Praça Onze foi então escolhido como concentrador de símbolos
relacionados à cultura e à memória negra. A ressonância patrimonial desse espaço
provinha das narrativas de seu passado, que constantemente o relacionavam ao antigo

47
ponto de encontro de negros e sambistas da Cidade Nova do início do século XX e à sua
demolição pela prefeitura na década de 1940 para a criação da Avenida Presidente
Vargas, idealizada pelo Plano Agache.

Nos arredores da Praça Onze foram então criados o monumental Sambódromo


(ponto 1) e, ao seu lado, o Terreirão do Samba, que abrigaram, respectivamente, os
desfiles das escolas de samba e shows de pagode durante o carnaval, manifestações
associadas à musicalidade negra e à sua sociabilidade nos barracões de candomblé; o
monumento a Zumbi dos Palmares (ponto 2), um grande busto de ferro em homenagem
ao líder antiescravista negro; e a Escola Tia Ciata (ponto 3), voltada para o ensino de
história afro-brasileira e cujo nome homenageava a personagem central na genealogia
das “matriarcas” do samba e do candomblé carioca. E na Zona Portuária, além de ser
tombada a Pedra do Sal (ponto 4), foi criado na Gamboa o Centro Cultural José
Bonifácio (ponto 5), dedicado à preservação e difusão da memória negra.
Na virada para o século XXI, esses mediadores da utopia da Pequena África
foram movimentados por alguns grupos, mas dessa vez para territorializar pleitos
patrimoniais na Zona Portuária. E, nesse momento, a presentificação da utopia da
Pequena África foi uma reação direta aos espaços, patrimônio e mito dos urbanistas do
poder público municipal que em meados da década de 1990 haviam se organizado em
um instituto que em seu nome reverenciava o ícone do ex-prefeito Pereira Passos e
elaboraram o Porto do Rio. Denominei então de “herdeiros da Pequena África” os
48
grupos que se identificavam como portadores ou mediadores desse patrimônio “negro”,
que reivindicavam a retomada física e/ou simbólica dos espaços de referência do mito, e
que compartilhavam de uma gramática performática na realização de manifestações
públicas: tocavam ritmos percussivos, desenvolviam rituais de candomblé e ofertavam
comidas associadas à culinária negra, como feijoada, frango com quiabo, acarajé e angu.
Além dos moradores do Quilombo da Pedra do Sal, passaram a compor esse
circuito o Instituto Pretos Novos (ponto 6), centro de memória e pesquisa criado em um
sobrado da Gamboa após seus proprietários descobrirem a existência de um cemitério
de antigos escravos enterrados a poucos palmos do piso; a escola de música Instituto
Batucadas Brasileiras (ponto 7), localizada em frente à Praça dos Estivadores e que
buscava articular grupos de música percussiva; e o grupo de carnaval Afoxé Filhos de
Gandhi (ponto 8), localizado no antigo mercado de escravos do Valongo e cujos
integrantes se apresentavam em eventos políticos, culturais e religiosos com músicas e
coreografias referenciadas nos rituais do candomblé.
Ao longo da pesquisa, percebi que, dentre esses grupos, o Afoxé Filhos de
Gandhi era o único que aderia aos diversos eventos e reivindicações dos demais
herdeiros da Pequena África, participando tanto do “pleito étnico” do Quilombo da
Pedra do Sal, quanto dos “eventos ecumênicos” do Instituto Pretos Novos e dos
“projetos culturais” do Instituto Batucadas Brasileiras. Tal prestígio social e
disponibilidade de atuação do grupo me indicaram que ele era considerado capaz de
conferir legitimidade a outros discursos e práticas relacionados à cultura negra, por estar
no centro de circulação de uma ampla rede de trocas sociais, que envolvia variados
níveis sociais do “mundo dos homens” e do “mundo dos orixás”, incluindo mortos,
animais, vegetais e minerais.
Ao fim da pesquisa, compreendi que o mito da Pequena África presentificado
nos tempos de “revitalização urbana” da Zona Portuária estava intrinsecamente
relacionado à cosmologia do candomblé e à sua noção de reciprocidade. Pois era essa
possibilidade de mediação entre o mundo dos orixás e o dos homens que fazia com que
uma pedra, a esquina de uma rua ou um “morador-sem-teto” fossem inseridos em uma
hierarquização pautada por valores mágicos. Assim, através da lógica patrimonial desse
mito, era movimentada uma forma absolutamente distinta de estruturar mentalmente os
espaços habitados da Zona Portuária, que se opunha às formas de classificação do
urbanismo municipal e de outros grupos que não pertenciam ao “povo do santo”, como

49
eram chamados genericamente os que participavam dos cultos do candomblé e da
umbanda.

OPÇÕES NARRATIVAS E DIVISÃO DE CAPÍTULOS

Para narrar o meu percurso de pesquisa no Morro da Conceição, fiz algumas


escolhas referentes à etnografia. Optei por utilizar como tempo verbal o passado para
narrar encontros, espaços percorridos e usos e eventos observados, buscando acentuar
com isso a percepção de que pessoas, eventos, espaços e usos eram igualmente
contingentes, transitórios e sempre mediados por minha experiência concreta. Também
mantive o tempo passado nas análises de matérias jornalísticas, estudos acadêmicos,
legislações, artigos, livros, fotografias e filmes, buscando ressaltar as datas em que
foram produzidos e seus contextos de produção. No entanto, esta opção me conduziu a
uma tensão insolúvel, mesmo que analiticamente interessante: por estarem em um
suporte físico e serem reprodutíveis e portáteis, estes produtos possuíam o poder não
apenas de difundir, mas também de fixar imaginários, sendo constantemente passíveis
de presentificação.
Outra opção narrativa foi utilizar o nome verdadeiro das pessoas com que
convivi durante o trabalho de campo, por se tratar de um estudo em um local delimitado
aonde moradores e usuários se reconheceriam facilmente durante a apresentação dos
acontecimentos. Também desejava que posteriores pesquisas sobre a Zona Portuária
pudessem usar o estudo como referência e contexto, como sugerido pelo antropólogo
Márcio Goldman (2004). Recorri ao anonimato em poucos casos, apenas quando avaliei
que a identificação do autor da informação poderia precipitar um conflito local ainda
não manifesto. Nesses casos, optei por posicionar a informação em um dos múltiplos
espaços do morro, para que não se perdesse a relatividade de sua perspectiva.
Durante a tese, apresentei as pessoas de quatro maneiras diferentes: com seus
nomes e sobrenomes; só com o primeiro nome; com os apelidos correntemente usados;
e com os nomes correntemente entre o “povo do santo” para se referir aos seus “orixás
de cabeça”. Essas diferentes formas de identificação foram o resultado das
especificidades dos encontros possibilitados durante o trabalho de campo: normalmente
as pessoas que se apresentaram a mim através do nome e sobrenome possuíam alguma
forma de atuação profissional na Zona Portuária ou estavam envolvidas em algum
conflito judicial; as que só me disseram o primeiro nome eu havia encontrado em

50
situações informais; as que se apresentaram através de apelidos costumavam estar
envolvidas na realização de eventos festivos; e as pessoas que se apresentaram com os
nomes de seus orixás estavam envolvidas em atividades do candomblé.
Vale também mencionar que, no meu percurso de pesquisa, utilizei alguns
recursos tecnológicos: uma câmera fotográfica digital, que possibilitou que conhecesse
detalhadamente os aspectos físicos das vias e logradouros do morro e que memorizasse
possíveis trajetos; um gravador sonoro que utilizei em algumas conversas mais formais,
embora a maioria dos encontros tenha sido anotada em meu caderno de campo; e uma
câmera filmadora, que possibilitou que registrasse algumas festas e eventos
relacionados ao candomblé e descrevesse e analisasse cantos e gestos. As imagens e
citações de entrevistas que incluí ao longo da tese foram realizadas a partir desses
registros.
Para apresentar o trabalho de campo, dividi a tese em quatro capítulos. No
Capítulo 1. Um percurso por espaços, patrimônios e imaginários, descrevi os encontros
iniciais que tive com habitantes do Morro da Conceição e como eles determinaram o
percurso de pesquisa que desenvolvi entre as práticas e redes sociais dos grupos que
eram representados ou se identificavam como portadores de três patrimônios: o
“português e espanhol”, o “negro” e o “do santo”. E analisei como, nesses primeiros
diálogos, fui classificada por integrantes de tais grupos e também como eles articularam
algumas oposições mentais que estruturavam suas formas de perceber os espaços do
morro.
No Capítulo 2. A “boa vizinhança” da parte alta, descrevi os bares e
festividades frequentados ou organizados por moradores da “parte alta” do morro e
como suas práticas foram classificadas como patrimônio “português e espanhol” por
mediadores entre os espaços e habitantes do morro e os da cidade, que percebiam neles
a materialização de uma cultura “popular” e “autêntica”. E analisei como os moradores
desse espaço operavam as oposições “de dentro” e “de fora” e “masculino” e
“feminino” a partir de um rígido sistema de controle e reputação que diferenciava
práticas, espaços e habitantes de acordo com noções de virtude e vício.
No Capítulo 3. O “espírito quilombola” da Pedra do Sal, descrevi como o
conflito habitacional entre portadores de dois patrimônios no morro, o “negro” e o
“franciscano”, produziu um “pleito étnico” na base do morro que propôs a
“identificação e delimitação” jurídica de seus espaços como “território quilombola”. E
analisei como os portadores desse patrimônio negro, através de uma lógica de reparação

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e do mito da Pequena África, operavam as oposições “elite” e “popular”, “católico” e
“do santo” e “branco”e “negro” para diferenciar práticas, espaços e habitantes do morro
e sobrepor o imaginário que os classificava como “invasores” e “marginais”.
No Capítulo 4. Os “fundamentos” do Valongo, descrevi as práticas recreativas,
políticas e religiosas dos integrantes do grupo carnavalesco Afoxé Filhos de Gandhi,
que portavam no morro o patrimônio “do santo” e faziam parte do circuito mais amplo
de “herdeiros da Pequena África”. E analisei como eles operavam, a partir de um amplo
sistema de trocas entre humanos e não humanos, as oposições “bem” e “mal” e
“sagrado” e “profano” para diferenciar práticas, espaços e habitantes não apenas do
morro, mas também das casas de candomblé e dos grupos carnavalescos,
territorializando o mito da Pequena África a partir de uma hierarquia baseada em uma
lógica mágica, que sobrepunha às lógicas socioeconômicas e raciais.

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Capítulo 1.
Um percurso por espaços, patrimônios e imaginários

O PRIMEIRO CONTATO COM O MORRO

Para iniciar meu trabalho de campo no Morro da Conceição, procurei uma


mediação que não passasse por representantes de órgãos públicos ou de ONGs, já que
não queria ser influenciada por uma pauta institucional de pesquisa. Recorri então ao
meu círculo de amigos para entrar em contato com um de seus moradores e, através da
antropóloga Elizete Ignácio, obtive o telefone do casal de antropólogos Martin
Ossowicki e Alessandra Tosta. Em um domingo, dia 14 de outubro de 2007, tomei um
táxi e me guiei pelas dicas de percurso que Alessandra havia me oferecido para chegar
ao sobrado onde eles residiam localizado no topo do morro, na Rua Jogo da Bola.
O acesso de carro a essa área do morro era possível pela Rua do Acre, que
delimitava parte de sua base. A área de rodagem dessa rua permitia o tráfego de dois
veículos em um único sentido, da Avenida Marechal Floriano para a Avenida Rio
Branco. Apesar de ampla, a rua não era utilizada como rota de nenhum transporte
coletivo, nela havia somente um ponto de táxi e a liberação do uso das duas margens
para estacionamento de automóveis. No seu lado ímpar, o que contornava o morro, as
construções eram predominantemente casas assobradadas de dois andares, com a
presença de alguns prédios, entre eles o do Tribunal Regional da Justiça Federal, que
destoava do conjunto por ser muito alto, largo e de fachada espelhada. Já no lado par
ocorria o inverso, havia uma grande quantidade de prédios e poucos sobrados,
demarcando visualmente a transição para o centro comercial da cidade.
Em quase todos os andares térreos dos prédios e sobrados da rua estavam
instaladas pequenas lojas voltadas para a alimentação de baixo custo e para a venda de
materiais de escritório. Alguns dos sobrados eram também utilizados como hospedarias
populares, com diárias em torno de oito reais. Durante o período diurno dos dias da
semana, esse comércio movimentava uma grande quantidade de pessoas e uma de suas
características visuais mais marcantes era a divulgação de produtos em várias tabuletas
postas nas fachadas, que produziam um efeito colorido e tumultuado, dificultando

53
qualquer fixação do olhar. Entre pastelarias, lanchonetes, botequins e restaurantes de
“comida a quilo” e self service, no entanto, havia alguns estabelecimentos pertencentes
a redes comerciais e de preços mais elevados recentemente inaugurados e que
contrastavam em sobriedade de cores e no uso corrente de portas de vidro, oferecendo
ambientes climatizados e menos expostos ao movimento da rua que o das lojas abertas.
A segunda rua à esquerda da Rua do Acre era a Rua Major Daemon, que
conduzia ao topo do morro. A transição das vias era demarcada pela mudança de
calçamento, que de asfaltado passava a ser de paralelepípedos, impondo a desaceleração
do veículo e a consequente diminuição do ritmo fisiológico. Ocupada quase que
exclusivamente de forma residencial, a rua era íngreme e sinuosa e permitia o tráfego
em mão dupla de dois veículos. Em sua base havia alguns edifícios, mas, conforme se
subia, predominavam os sobrados de dois e três andares. Neste domingo em que
percorri a rua de táxi, o veículo precisou desviar dos escombros de um pequeno edifício
que tinha desabado havia poucos dias e que ocupavam parte da área de rodagem. Com a
aproximação do alto do morro, o táxi diminuiu ainda mais a velocidade, por causa de
uma placa que indicava o início de uma área militar e de uma trava de ferro pintada em
amarelo que fechava parcialmente a rua. Nessa área militar, duas edificações
arquitetonicamente imponentes dominavam a paisagem: o antigo Palácio Episcopal e a
Fortaleza da Conceição, ambos ocupados pelo Serviço Geográfico do Exército.
O Palácio Episcopal era um casarão branco de dois andares, destacado cerca de
um metro e meio do nível do chão e ornamentado com ferro, madeira e pedra. Do outro
lado da rua, um mirante delimitado por um muro baixo de cimento voltava-se para a
Igreja de Santa Rita, localizada na Avenida Visconde de Inhaúma. Mais à frente, havia
um amplo sobrado de padrão construtivo semelhante ao do casarão, porém menos
adornado, e um pequeno portão que conduzia a duas quadras de futebol no declive do
morro, uma de grama e outra de terra batida. Ao lado do palácio, o complexo edificado
da Fortaleza, apesar de ocupar uma grande área do morro, era apenas parcialmente
visível da rua, por estar ocultado por uma muralha de pedra de cerca de cinco metros.
O final da Rua Major Daemon era a Praça Major Valô, onde saltei do táxi e
caminhei até a casa de Alessandra e Martin na Rua Jogo da Bola. Nossa conversa foi
marcada por um tom informal, sendo quase toda realizada na cozinha, mas se
desenvolveu como um diálogo entre pares, com o uso de metáforas antropológicas para
a explicação das relações sociais do morro. E, apesar dos dois terem sido receptivos à
realização da pesquisa que iniciava, me avisaram que não desejavam participar dela

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como “nativos”, “informantes” ou “interlocutores”, me explicando terem alugado havia
pouco tempo aquele apartamento e ainda estarem se inserindo nas relações sociais da
vizinhança. Na opinião deles, se fossem identificados como “pesquisadores” essa
inserção poderia ser prejudicada, porque acabaria mediada por suas atuações
profissionais.
Ao longo do trabalho de campo no morro, atribuí em parte a preocupação do
casal à relação que alguns moradores tinham com a figura do “pesquisador”. Pois,
apesar de várias pessoas terem se mostrado solícitas à minha pesquisa, em alguns casos
encontrei um mal estar já instaurado pela presença constante em seus espaços de
jornalistas, fotógrafos, antropólogos, sociólogos, arquitetos, representantes de órgãos
públicos e turistas, muitas vezes atuando, inclusive, como mediadores de conflitos
locais. Em relação a mim, este mal estar se manifestou na recusa de alguns moradores
em conversar, na enunciação de discursos politicamente engajados sobre “identidade
cultural” e, eventualmente, em um desconforto com a minha presença em determinados
espaços do morro que eram usados pelos moradores de maneira liminar, oscilando entre
o público e o privado.
Durante a conversa, Alessandra contou que havia conhecido o morro ao
participar de um curso de fotografia oferecido pela UERJ e tinha decidido se mudar para
lá com Martin em 2004. Eles procuravam uma casa que não fosse localizada na Zona
Sul, onde não gostavam do “estilo de vida” e achavam os aluguéis muito caros, e nem
no subúrbio, considerado distante das atividades que já desenvolviam. Ao se mudarem,
Martin percebeu que a Rua Jogo da Bola oferecia “intimidade social”: todos os vizinhos
se conheciam, gerando um controle que tornava o local mais “seguro”, embora, em
contrapartida, houvesse uma grande movimentação de “fofoca”. Um exemplo que ele
ofereceu dessa segurança era o cuidado que todos tinham com as crianças uns dos
outros, possibilitando que elas brincassem nas ruas do morro sem a supervisão de um
adulto.
Na opinião de Martin, era a alteração lenta da vizinhança que fazia com que
alguns núcleos familiares que residiam na denominada “parte alta” do morro se
reconhecessem como “moradores tradicionais”. A parte alta era composta pela Ladeira
João Homem e pela Rua Jogo da Bola e considerada a “elite” do morro. Suas casas
raramente eram anunciadas para aluguel em corretoras de imóveis e, o mais comum, era
que fossem ocupadas pela indicação de algum morador. Nela, no entanto, havia também
uma diferenciação de espaços: os moradores da Ladeira João Homem eram, em sua

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maioria, pertencentes à classe média baixa, e os da Rua Jogo da Bola eram os que
possuíam a maior renda do morro. Ele me advertiu, no entanto, que esses moradores não
utilizavam usualmente a categoria “moradores tradicionais”, mas narrativas que
remetiam a essa tradição como, por exemplo: “Eu nasci aqui, casei com fulana da casa
tal...”.
Os dois me listaram três bares como sendo os principais espaços de
sociabilidade da parte alta e me ofereceram também a identificação dos grupos sociais
que os frequentavam. Na Rua Jogo da Bola havia o Bar do Beto, frequentado pelos
“nordestinos”, e o Bar do Sérgio, frequentado pelos “portugueses e espanhóis”. Já na
Ladeira João Homem havia o Bar do Geraldo, o único frequentado por “gente de fora” e
por grupos de jovens moradores. Os moradores tidos como referências da parte alta
eram o “Seu” René, comandante aposentado da Marinha, e “Seu” Luizinho, locador de
várias casas e mantenedor das atividades da Capela de Nossa Senhora da Conceição
juntamente com sua esposa, “Dona” Glorinha. Além desses dois, havia ainda Frigideira,
organizador de muitas das festas coletivas do morro.
Segundo Martin, os moradores mais velhos ligados à tradição que denominou de
portuguesa e espanhola consideravam que as condições sociais de moradia no morro
tinham piorado nos últimos anos por causa do aumento da criminalidade, da falta de
infraestrutura pública e da entrada de “novos” moradores, principalmente dos
“nordestinos”. Mas ele observou que havia uma tensão nessas relações de moradia, já
que a chegada ao morro desses moradores havia sido provocada pela própria ação dos
descendentes das famílias ditas tradicionais, pois foram elas que, ao longo dos anos,
dividiram seus sobrados para aluguel. Alguns conflitos sociais também tinham sido
gerados pela perda gradual do controle sobre os direitos de herança das casas e a não
regularização de suas propriedades, provocando a permanência informal de antigos
inquilinos nos imóveis. As casas divididas em cômodos para a moradia de vários
núcleos familiares ou informalmente ocupadas eram então muitas vezes apontadas como
causadoras da “favelização” do morro.
Mas, como me indicou a narrativa de Alessandra sobre sua adaptação à
vizinhança, as relações entre seus moradores não eram estruturadas apenas por
classificações de origem ou de condições de moradia, passavam de forma igualmente
relevante por distinções de gênero e etárias. Alessandra tinha considerado difícil sua
adaptação ao morro porque as relações da parte alta eram “machistas”, exemplificando
com o fato de que poucas mulheres circulavam por suas ruas e bares e sempre que havia

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sido convidada para alguma festa foi indiretamente, através de Martin. Ela também
observou que só as nordestinas frequentavam o Bar do Sérgio, as mulheres de
ascendência espanhola e portuguesa participavam com assiduidade apenas das
atividades da capela e a maior parte de seus filhos não se divertiam nos bares do morro,
preferiam ir a outros lugares da cidade.
O espaço oposto e correlato à parte alta era a denominada “parte baixa”,
composta pelas vias do morro ligadas à Rua Sacadura Cabral. O casal caracterizou seus
moradores como sendo principalmente inquilinos de classe baixa ou ocupantes
informais de imóveis abandonados, a maioria de origem nordestina, e muitos atuando
profissionalmente como garçons e empregadas domésticas. Nessa parte do morro,
muitos imóveis pertenciam à entidade católica Venerável Ordem Terceira de São
Francisco da Penitência – VOT que, nos últimos anos, estava despejando ou realocando
para moradias no Centro da cidade os antigos inquilinos. Após esvaziar os imóveis, a
entidade tinha ampliado a Escola Padre Dr. Francisco da Motta, criado o Colégio Sonja
Kill e instalado consultórios médicos e diversos cursos gratuitos, como informática,
música, moda, marcenaria e padaria, entre outros, em projeto que denominou de
Humanização do Bairro.
Todos os imóveis incluídos nesse projeto haviam passado por um processo de
restauração das fachadas e de seus interiores, em obras financiadas principalmente por
instituições europeias. Mas, segundo Alessandra, essa transformação dos imóveis
residenciais em assistenciais não teria sido vista de forma positiva pelo conjunto de
moradores do morro, já que tinha provocado o surgimento de espaços “desertos” à noite
e nos fins de semana, gerando “áreas perigosas” de possível atuação para roubos e para
consumo e tráfico de drogas. A iniciativa teria desagradado em especial os moradores
da parte alta, que consideraram as atividades do projeto um fator de atratividade dos
moradores do Morro da Providência, proximidade indesejada porque eles não queriam
ser reconhecidos como moradores da Zona Portuária e, principalmente, como
“favelados”.
Os processos de despejo para que o projeto fosse implantado também tinha
gerado um conflito com alguns moradores de outro espaço localizado na base do morro
que articulavam uma narrativa de tradição relacionada à origem negra, ao trabalho no
porto, ao movimento de sambistas e ao candomblé: a Pedra do Sal. Em 2005, após o
estivador e integrante do Movimento Negro Unificado, Damião Braga, ter sido
judicialmente retirado de sua casa pela VOT, um grupo de moradores ligados a essa

57
tradição negra solicitou, junto ao Governo Federal, o reconhecimento de um “território
remanescente de quilombo” no entorno da Pedra do Sal.
Por fim, o casal contou que, nos três anos em que estava morando no morro,
tinha observado duas transformações na vizinhança: um aumento do afluxo residencial
de estudantes de pós-graduação e a organização do Projeto Mauá, evento anual de
visitação de ateliês de artistas plásticos instalados, em sua maioria, em sobrados da
Ladeira João Homem. Perceberam também que havia se intensificado a visitação de
pessoas “de fora” ao morro, atribuindo o movimento aos ensaios do bloco de carnaval
Escravos da Mauá, que reunia centenas de pessoas no Largo de São Francisco da
Prainha; à divulgação em 2005 do documentário Morro da Conceição... da cineasta
Cristiana Grumbach, que abordava o que denominou de “tradição portuguesa” do
morro; e à abertura na Rua Sacadura Cabral das casas de shows Trapiche Gamboa e
Sacadura e da boate The Week, todas direcionadas ao público de classe média.
Ao me despedir, perguntei a eles se sabiam da existência de alguma casa no
morro que pudesse alugar temporariamente, pois pretendia observar as variações dos
usos dos espaços nos diferentes horários e dias da semana. Alessandra então me falou
que um amigo seu, o arquiteto Antônio Agenor, estava procurando alguém para dividir
uma casa de dois quartos, localizada também na Rua Jogo da Bola. Fomos até sua casa
e combinamos um encontro para o fim da tarde de 2ª feira, quando conversamos por
alguns minutos na sala.
Antônio foi muito solícito com a realização da pesquisa, mas nessa primeira
conversa me tratou com bastante formalidade e preocupação em expor as boas
qualidades do morro, como se estivesse informando a uma jornalista os aspectos
excepcionais do local. Ele era sergipano e alugava o segundo andar de um sobrado de
propriedade de “Seu” Luizinho. Costumava organizar no morro algumas aulas práticas
de arquitetura para seus alunos quando, em 2004, decidiu se mudar de Copacabana,
Zona Sul da cidade, por achar seu apartamento pequeno e caro. Procurou então “Seu”
Félix, morador da Ladeira João Homem que havia conhecido durante as aulas e que era
sergipano como ele. “Seu” Félix alugava a parte de cima de sua casa, mas, como estava
sem vaga naquele momento, anotou o telefone de Antônio caso soubesse de alguma
oportunidade de aluguel. Dois meses depois, ligou avisando que Maurício estava
alugando um apartamento na Rua Jogo da Bola.
Antônio então se mudou, mas ficou pouco tempo neste apartamento, por não ter
gostado das condições de conservação do imóvel. Mas, como já estava inserido na

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vizinhança, conseguiu alugar em seguida o sobrado onde estava morando. Ao falar
sobre sua acolhida na vizinhança, Antônio contou que, em 2006, sua mãe havia vindo
de Sergipe passar um mês de férias com ele, mas, durante a estadia, teve um grave
problema de saúde e permaneceu em sua casa se recuperando por vários meses. Como
era católica, passou a frequentar as missas que eram realizadas nas manhãs de domingo
na capela da Rua Jogo da Bola e, quando foi embora, as senhoras da capela continuaram
perguntando a Antônio sobre seu estado de saúde. Assim, ainda que ele não
frequentasse as missas, através de sua mãe havia passado a ser reconhecido e
cumprimentado por uma parcela maior de seus vizinhos.
Essa breve história de Antônio me indicou que as classificações de vizinhança
operadas na Rua Jogo da Bola não priorizavam a origem dos moradores, antes eram
uma combinação de classificações de condições de moradia, divisões de gênero e
práticas religiosas. Sendo que “nordestinos” era mais uma categoria moral de acusação
associada às oposições “morador” e “favelado” e “masculino” e “feminino”, que uma
referência ao fato dos moradores serem oriundos ou não da região Nordeste do país.
Assim, Antônio, que possuía uma situação regular de inquilinato e morava em um
espaço prestigiado da parte alta, e sua mãe, que frequentava o espaço entendido como
“católico” e “feminino”, foram bem aceitos nessa vizinhança, mesmo sendo
nordestinos.
Em seguida, fui com Antônio para a roda de samba que ocorria toda noite de 2ª
feira no Largo João da Baiana, em frente à Pedra do Sal. Quando chegamos ao samba,
por volta das 19 horas, já havia cerca de oitenta pessoas no largo, entre homens e
mulheres que conversavam em pé, que haviam se acomodado na pedra ou estavam
sentadas em cadeiras de alumínio em torno de mesinhas. Os músicos tocavam e
cantavam ao redor de uma grande mesa e o bar Bodega do Sal, em frente ao largo,
vendia petiscos fritos, caldos e bebidas aos frequentadores, sendo a cerveja de garrafa
muito consumida e adquirida diretamente no balcão, mediante pagamento imediato.
Antônio então me apresentou a Guenther Leyen, que estava no largo
conversando com Martin e Alessandra. Ele me contou que era gaúcho e dono de uma
empresa de informática, mas se considerava mais artista que empresário. Em 2005,
havia se mudado para um pequeno prédio na esquina da Rua Jogo da Bola com a
Travessa Coronel Julião e era, como Martin e Antônio, assíduo frequentador do Bar do
Sérgio. Antes de se mudar para o morro, morava na Fonte da Saudade, Zona Sul da
cidade, mas se queixou que mal conhecia os vizinhos. Em sua opinião, a vizinhança de

59
sua casa no morro era interessante por causa da “diversidade social”, exemplificando
essa característica listando suas variadas profissões, e não suas origens, seu gênero ou
condições de moradia: para ele, no local conviviam bem pipoqueiros, antropólogos,
artistas, policiais, empresários, estivadores etc. Essa forma diferenciada de estruturar a
vizinhança se explicava em parte pela forma como ele próprio havia se apresentado
perante os demais moradores, mediada principalmente pela sua atuação local como
artista plástico.
De forma parabólica, Guenther então narrou dois eventos que considerava
ilustrarem bem as relações de vizinhança. O primeiro evento foi o dia em que viajou
para Porto Alegre durante uma semana e deixou o carro estacionado em frente à sua
casa, avisando sua ausência apenas ao Sérgio, dono do bar. Quando retornou, Sérgio lhe
disse que o “seu senhorio” tinha ficado preocupado por não ter visto mais ele por lá e
por reparar que o carro tinha ficado no mesmo lugar: achou que ele poderia estar doente
ou com algum problema. Guenther foi então falar com o locador para, em suas palavras,
“fazer duas coisas: primeiro agradecer, por ter se preocupado comigo, segundo pedir
desculpas, por não ter te avisado”. Já a segunda história se referia a um acontecimento
que ele havia considerado desagradável: uma empregada doméstica que trabalhava em
sua casa e também era moradora do morro havia comentado com outro morador que ele
era “pão duro” porque, em um dia em que ela ficou doente e só pôde trabalhar meio
período, ele havia se recusado a pagar a diária inteira.
Após as duas histórias, Guenther afirmou que havia no morro uma convivência
entre vizinhos que permitia o estabelecimento de laços de amizade, mas que havia
também um lado negativo dessa convivência mais intensa, a fofoca, que podia ser
gerada e afetar a reputação de um “recém-chegado”. Além de movimentarem suas
percepções sobre o novo local de moradia, as duas narrativas também me forneceram
importantes informações: que na parte alta do morro havia empregadas domésticas,
patrões, inquilinos e proprietários que compartilhavam cotidianamente os mesmos
espaços, fazendo com que tanto as relações profissionais quanto as de inquilinato
fossem importantes na estruturação e hierarquização de suas relações de vizinhança.
Ainda na roda de samba, fui apresentada por Alessandra a Damião, morador que,
ao ser despejado de um imóvel da VOT, organizou o pleito de reconhecimento étnico do
Quilombo da Pedra do Sal. Ele também foi receptivo à pesquisa, mas não quis
conversar por muito tempo. Nos poucos minutos em que nos falamos, afirmou que o seu
despejo era decorrente do processo de “aburguesamento” do morro e que outras famílias

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também estavam resistindo a sair das casas, não só a dele. E, estendendo o conflito para
os urbanistas da prefeitura, disse que havia participado em 2003 de reuniões com Nina
Rabha e Augusto Ivan para discutir os projetos do Porto do Rio, mas se queixou que
depois não havia sabido de mais nenhuma outra reunião realizada entre a prefeitura e os
moradores. Nesse primeiro contato que tivemos, Damião se posicionou, portanto,
contrário aos que considerava serem os principais antagonistas do patrimônio não
apenas “negro”, mas também “popular”, que portava: a igreja católica e o urbanismo
municipal.
Quando me despedi dos moradores que havia conhecido nesta roda de samba,
Guenther me convidou para participar das reuniões de preparação do Projeto Mauá, que
seria realizado no mesmo fim de semana de dezembro em que era comemorado o dia da
“padroeira do morro”, Nossa Senhora da Conceição. E Damião disse que estava
ocupado acompanhando um fórum de discussões sobre a elaboração do novo Plano
Diretor da cidade, mas me forneceu o número de seu celular para que marcássemos um
encontro em novembro. Assim, após o contato que tive com o casal Alessandra e
Martin, fui inserida numa rede mais ampla de vizinhança e iniciaram-se dois percursos
de pesquisa e seus desdobramentos: os bares e festividades da parte alta do morro e as
diferentes formas de classificação dos que eram “de dentro” e “de fora” de sua
vizinhança; e o conflito habitacional entre o “movimento quilombola” e a VOT, sua
presentificação do mito da Pequena África e as práticas e cosmologia do candomblé.

AS FESTAS E BARES DA PARTE ALTA

O espaço de referência simbólica


da parte alta do morro era a Praça Major
Valô, correntemente denominada pelos
moradores de Largo da Santa por conter a
imagem esculpida de Nossa Senhora da
Conceição figurando sobre um mastro de
cerca de oito metros em frente ao portão
principal da Fortaleza da Conceição. O
espaço do largo era triangular: um dos vértices se conectava a Rua Major Daemon e era
ocupado pela muralha da Fortaleza; outro se conectava a Ladeira João Homem e era
ocupado por casas térreas utilizadas como garagem pelo Exército e como residências; e

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o terceiro se conectava a Rua Jogo da Bola e era ocupado pelos fundos de sobrados
residenciais. Não havia um calçamento específico nem uma elevação do chão
diferenciando o espaço do largo: ele era de paralelepípedos assim como as vias que para
ele convergiam. Durante os períodos diurnos e noturnos, o largo era utilizado para
estacionamento e passagem de veículos. E, eventualmente, era ocupado por festividades
organizadas pelos moradores do morro.
A Rua Jogo da Bola era a via mais extensa
do morro. Na extremidade que ficava conectada ao
Largo da Santa, ela era ligada também ao Beco das
Escadinhas da Conceição. A sua continuidade era
uma passagem estreita e sinuosa rente à muralha da
Fortaleza, onde apenas um carro por vez conseguia
trafegar e havia um mirante demarcado por uma
grade de ferro e voltado para a retro-área portuária.
Após essa curva, a muralha ainda ocupava um
trecho do lado esquerdo da rua enquanto, no outro,
havia sobrados e casas. Com o fim da muralha, os
dois lados eram ocupados unicamente por casas e sobrados. Como era estreita, a rua
possibilitava com dificuldades o tráfego de dois veículos e as janelas das casas ficavam
rentes às calçadas, sem área intermediária entre a via e a fachada, produzindo uma
fronteira pouco nítida entre espaços públicos e privados e gerando a sensação de
“intimidade social” citada pelos moradores.
Algumas das fachadas das casas e sobrados eram ornamentadas por azulejos,
gesso talhado e pedras, e exibiam emblemas no alto dos portais indicando terem sido
construídas entre o final do século XIX e o início do século XX. Muitas fachadas
também exibiam materiais construtivos de décadas posteriores, como esquadrias de
alumínio ou revestimento de cerâmica. E havia ainda outras onde a construção de
“puxadinhos” verticais produzia uma ruptura no padrão construtivo e decorativo entre a
parte inferior e a superior. Assim, tanto vistos em relação uns aos outros, como a partir
de suas composições individuais, os sobrados apresentavam um acúmulo de
temporalidades: os que estavam dispostos lado a lado tinham sido construídos em
períodos distintos; e em cada um deles eram visíveis as alterações causadas pelas
mudanças de usos e usuários.

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O Bar do Beto era o primeiro estabelecimento comercial para quem seguia a Rua
Jogo da Bola a partir do Largo da Santa, ficando do lado esquerdo. Sua parte interna era
pequena e ocupada por um balcão de atendimento, um banheiro ao fundo e uma
máquina de assar frangos utilizada apenas nos fins de semana. E suas cadeiras, mesas de
plástico e engradados de garrafas de cerveja ocupavam parcialmente a calçada da via.
Ultrapassando alguns sobrados, do lado esquerdo havia a escadaria da Travessa Coronel
Julião, que ligava a Rua Jogo da Bola à Rua Senador Pompeu, e mais a frente, à direita,
havia um acesso para a mais extensa via da parte baixa: a Rua Mato Grosso, cuja
continuação era a Rua do Escorrega.
Logo após esse acesso estava localizado, também à direita, o Bar do Sérgio, que
possuía uma área interna ampla com balcão, prateleiras com mercadorias, freezer com
picolés e algumas mesas e cadeiras de madeira, e que, do lado de fora, também dispunha
na calçada mesas e cadeiras de alumínio. Quase em frente ao bar, ficava a Capela Nossa
Senhora da Conceição, que possuía apenas um andar, uma torre e um portal adornado ao
alto com um azulejo decorado pela imagem da santa. Neste portal, havia ainda uma
placa informando que a capela havia sido fundada pela Irmandade de Nossa Senhora da
Conceição em 10 de julho de 1892.
Após mais alguns sobrados havia à direita a Praça Leopoldo Martins, chamada
pelos moradores apenas de “pracinha”. A praça era cerca de um metro e meio elevada
do nível do chão e composta por pisos de terra batida e de pedras portuguesas, algumas
árvores, bancos de cimentos, brinquedos e equipamentos de ginástica em madeira e
conjuntos de banquetas e mesinhas de cimento com tabuleiros desenhados. À sua frente,
havia uma passagem para a Travessa Joaquim Soares, que ligava a Rua Jogo da Bola ao
topo da Ladeira Pedro Antônio. Mais adiante, uma placa indicava aos motoristas que a
rua era sem saída e, à direita, havia ainda uma escadaria que conduzia à Travessa do
Sereno. Seguindo em frente, uma retenção de encosta ocupava todo o lado esquerdo e,
do lado direito, casas e sobrados eram distribuídos por uma curva. Essa extremidade da
rua se encerrava com a conexão com a Rua Argemiro Bulcão, que levava ao topo da
Pedra do Sal, cruzava a Rua Sacadura Cabral e seguia até a retro-área portuária.
A outra via pertencente à parte alta era a Ladeira João Homem. A ladeira era
sinuosa, calçada por paralelepípedos e ocupada por casas e sobrados que também
apresentavam em alguns de seus portais azulejos com imagens de santos católicos. Seu
único ponto comercial era o Bar do Geraldo, composto por balcão e algumas cadeiras de
plástico em sua área interna e também por algumas mesas, cadeiras e engradados na

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calçada. De fronte ao bar, havia dois sobrados em ruínas e somente com parte das
fachadas suspensas. Nenhuma via era perpendicular a ela, sua conexão com outros
espaços era possibilitada apenas por suas extremidades. Na base da ladeira, uma
escadaria a ligava à Travessa do Liceu, uma passagem estreita e exclusiva para
pedestres que interligava a Rua do Acre à Rua Sacadura Cabral.
Após os primeiros contatos que fiz no morro, tentei agendar no final de outubro
um encontro com a historiadora Érika Bastos através de um numero telefônico oferecido
por Martin e Alessandra. Quando conversamos em sua casa, eles haviam comentado
que, logo após a solicitação oficial de reconhecimento étnico do Quilombo da Pedra do
Sal, o INCRA havia iniciado o processo de sua “identificação” e “demarcação” através
da produção de um relatório histórico e antropológico, que deveria informar quem eram
os componentes do “grupo afrodescendente” e qual território ocupavam coletivamente.
Três pesquisadoras da UFF haviam então assumido a elaboração do relatório e
procurado alguns historiadores e antropólogos que residiam no morro para compor a
equipe de pesquisa. O casal havia sido convidado, mas recusou por avaliar que, sendo
morador, não possuía o distanciamento necessário para a realização de um trabalho
antropológico. Mas Érika tinha aceitado. Telefonei então para sua casa, mas ela não
estava e quem atendeu foi o historiador Mário Miranda. Ele dividia com ela o aluguel de
um sobrado na Ladeira Pedro Antônio e, em nossa breve conversa, comentou que iria
participar naquela noite de uma reunião de organização do Projeto Mauá. A reunião
seria realizada no Observatório do Valongo da UFRJ, localizado no alto da Ladeira
Pedro Antônio, e Mário me explicou como chegar ao espaço através de um percurso
possibilitado pela Rua Senador Pompeu.
Uma sequência de pequenos trechos de ruas delimitava o lado da base do morro
localizado entre a Rua do Acre e a Rua Senador Pompeu: os das ruas Leandro Martins,
dos Andradas, Julia Lopes Almeida e da Conceição. Não havia qualquer acesso que
interligasse essas ruas às vias mais altas do morro e todos os fundos de suas edificações
eram voltadas para uma encosta formada por pedreira e vegetação que se estendia até a
área da Fortaleza. Essas ruas eram majoritariamente ocupadas por sobrados, com
exceção da Rua Leandro Martins, onde predominavam os prédios altos. Mesmo durante
o período diurno, muitas lojas térreas permaneciam fechadas, possivelmente por estarem
ocupadas de forma residencial, e as que abriam eram utilizadas como depósitos de
bebidas, botequins, estacionamentos e venda de materiais de escritório. Havia ainda um

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comércio especializado em atividades gráficas e, na Rua Leandro Martins, três “centros
de lazer”, que eram pequenos sobrados utilizados como ponto de prostituição.
O trecho da Rua Senador Pompeu que compunha a base do morro era delimitado
pela conexão com a Rua da Conceição e pelo cruzamento da Rua Camerino. No
encontro com a Rua da Conceição, um amplo casarão era ocupado pela igreja
evangélica Deus é Amor e, ao longo da via, muitos sobrados e prédios serviam de
estacionamento de veículos. O único acesso ao alto do morro era a Travessa Coronel
Julião, que também tinha seu limite demarcado pela alteração do chão asfaltado para o
de paralelepípedos. Da base da Travessa Coronel Julião, dois caminhos podiam ser
percorridos: à direita, a Ladeira Pedro Antônio, ou, à frente, a longa escadaria que
desembocava na Rua Jogo da Bola.
A Ladeira Pedro Antônio era uma subida íngreme e retilínea ocupada por
sobrados e casas térreas e que possibilitava o tráfego de dois veículos. O único percurso
de entrada e saída de um automóvel no morro que podia ser realizado sem a necessidade
de manobras era o que ligava essa ladeira à Rua Major Daemon: subindo a Ladeira
Pedro Antônio, o automóvel devia dobrar à direita na Travessa Joaquim Soares, dobrar
novamente à direita na Rua Jogo da Bola, seguir até o Largo da Santa, e dobrar à direita
na Rua Major Daemon. Ou vice-versa, pois todas essas vias eram de mão-dupla. Ao fim
da ladeira, um muro branco com um portão vazado de ferro de cerca de três metros com
letras aplicadas em alumínio identificava o Observatório do Valongo. E, à esquerda do
muro, havia uma vegetação alta com acúmulo de sacos de lixo e um caminho de terra
batida na encosta do morro que desembocava no Jardim Suspenso do Valongo.
O portão do observatório permitia a circulação de pessoas e carros e era vigiado
por uma guarita localizada do lado de dentro. Ao ultrapassá-lo, havia um campus
universitário com um cuidadoso projeto paisagístico, área de rodagem de automóveis e
um prédio branco de dois andares onde eram ministradas aulas de astronomia. Fui
recepcionada por Carlos Rabaça, professor que coordenava a participação da instituição
pela primeira vez no Projeto Mauá. Enquanto caminhávamos pelo campus, ele contou
que frequentava o morro havia dez anos, primeiro como aluno do observatório e, depois,
como professor. Ao pararmos em frente ao muro baixo que era voltado para a Rua
Senador Pompeu e oferecia uma ampla vista de ruas do Centro e da Gamboa, ele me
mostrou a proximidade do Morro do Livramento, separado do Morro da Conceição
apenas pela Rua Camerino, destacando que ambos os morros não eram “favelas”. Logo
após o Morro do Livramento, e sem que houvesse uma demarcação nítida entre seus

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limites, estava o extenso e populoso Morro da Providência, o único da Zona Portuária
que ele considerava ser uma favela.
Rabaça então apontou o caminho de terra batida que passava rente ao muro do
observatório e conduzia ao Jardim Suspenso do Valongo, dizendo que ali era um terreno
“desocupado e perigoso”, aonde os funcionários da universidade já haviam encontrado
um cadáver e alguns estudantes do Colégio Pedro II fumavam maconha. E, em seguida,
Rabaça comentou sobre a “construção irregular” que havia ao lado da guarita de entrada
do observatório, contando que essa casa pertencia à UFRJ, mas tinha sido ocupada pela
família de um antigo segurança da universidade após ele se aposentar. Disse que a
universidade já tinha expulsado alguns moradores e demolido um “puxadinho” no
entorno do observatório, mas que não tinha conseguido solucionar todo o problema.
Segundo ele, os “moradores do morro” consideravam degradadas todas as casas
construídas no topo da Ladeira Pedro Antônio e na Travessa Joaquim Soares e
chamavam seus ocupantes de “sem terra”. Nessa travessa, havia algumas casas com os
tijolos aparentes que destoavam das demais fachadas do morro que, mesmo possuindo
padrões construtivos e decorativos diversos, eram revestidas. Mas Rabaça, ao se referir
aos “moradores do morro”, falava nitidamente dos que eram seus conhecidos na parte
alta, compartilhando com eles uma de suas formas de estruturar o espaço: por condições
de moradia.
A reunião dos integrantes do Projeto Mauá foi realizada em uma sala de aula e
composta por três professores do observatório, sete artistas, dois historiadores e um
filósofo. Sua condução foi feita por Rabaça e pelo gravurista Marcelo Frazão, que
iniciaram a conversa manifestando a preocupação de procurar a “comunidade do morro”
para saber se ela desejava que a procissão de Nossa Senhora da Conceição fosse
incluída na divulgação do evento. O grupo combinou que todos os ateliês ficariam
fechados durante a procissão e que entrariam em contato com seus organizadores,
Frigideira e “Seu” Luizinho, para propor que os moradores da Rua Jogo da Bola
pendurassem tecidos nas janelas de suas casas, remetendo às “festas de padroeira do
interior do país”. Os organizadores do Projeto Mauá consideravam, assim, ser um
importante atrativo do evento a “manifestação popular” da procissão, embora durante
suas falas nenhum deles tenha se incluído diretamente na noção de “comunidade do
morro”.
Outro assunto que mobilizou o grupo foi a seleção dos filmes que seriam
exibidos no observatório durante o evento. Eles haviam decidido que o tema dos filmes

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seria o morro e sugeriram a exibição do documentário Morro da Conceição..., que
abordava as memórias de alguns moradores idosos descendentes de portugueses. O
historiador Marcelo Abreu então sugeriu que fosse também exibido um curta-metragem
de sua autoria sobre uma “favela carioca”, mas a proposta foi prontamente recusada,
com o argumento de que não desejavam associar o evento à ideia de favela. Por fim,
houve um debate sobre as estratégias de divulgação do projeto na imprensa, onde a
maioria decidiu que seriam enviados releases aos jornais O Globo e Jornal do Brasil e à
Revista Veja, para privilegiar o público de classe alta e média da cidade, e que não seria
procurado o jornal O Dia, para não atrair a classe popular. Após a reunião, vários de
seus integrantes foram ao Bar do Sérgio conversar e beber cerveja, confirmando a
importância do espaço em suas relações cotidianas de vizinhança.
Duas semanas depois dessa reunião, combinei de encontrar o historiador
Marcelo, pois tinha percebido que ele desejava mediar diferentes espaços, patrimônios e
imaginários sobre o morro e que não operava com a oposição “morador” e “favelado”.
Inicialmente, marcamos um encontro de fim de tarde na casa de Antônio, mas
continuamos a conversa no Bar e Restaurante Glória, localizado na esquina da Rua do
Acre com a Travessa do Liceu. De dia, esse bar integrava o comércio de alimentação
popular da Rua do Acre voltado para os funcionários dos escritórios do entorno da
Avenida Rio Branco, mas, à noite, ele ficava na área periférica de prostituição da Praça
Mauá e suas mesas eram ocupadas também por diferentes moradores da região. E essa
alternância de tempos e usuários fazia desse próprio bar também um espaço de
mediação entre as diferenças da Zona Portuária.
Marcelo havia conhecido o morro em 1995, através de uma visita guiada por um
professor de história da UFF e, depois, tinha voltado outras três vezes à parte alta para
beber cerveja no Bar do Sérgio. Tinha também se tornado frequentador assíduo da base
do morro por causa dos ensaios do bloco Escravos da Mauá realizados no Largo São
Francisco da Prainha. Em 2005, ele decidiu alugar uma casa no Centro e arredores e
procurou o Bar do Sérgio. Soube então que os preços do aluguel no Morro da
Conceição eram os mesmos que no Morro da Providência, variando entre 400 e 800
reais. E que as casas de propriedade de “Seu” Luizinho ficavam localizadas na parte
baixa do morro e no final da Rua Jogo da Bola, mas não eram alugadas “para qualquer
um” e havia a exigência de apresentação de fiador.
A casa que Marcelo acabou por alugar não era localizada nem na parte alta nem
na parte baixa do morro, ficava na Ladeira Pedro Antônio, e ele a encontrou vendo uma

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placa afixada na fachada que informava o telefone de uma imobiliária. A casa que
alugou possuía três quartos e ele convidou os historiadores Mário e Érika, que eram
seus amigos desde a graduação na UFF, para dividirem o aluguel. Embora não tivesse
precisado conhecer algum morador para conseguir alugar essa casa, sua relação de
inquilinato também possuía regras: a imobiliária exigiu que Marcelo apresentasse um
fiador proprietário de dois imóveis.
Antes de sua mudança para o morro, Marcelo havia alugado um apartamento no
Grajaú, bairro da Zona Norte, e disse que antes era mais difícil ir ao cinema e receber a
visita de amigos, já que a maioria deles morava na Zona Sul e achava o bairro longe. E
que não gostava muito de seus vizinhos, porque “eles se comportavam como insulares,
se achavam a aristocracia da Zona Norte”. Reclamou também de no bairro só haver um
único bar e de sentir falta da convivência que o espaço possibilitava. E acabou por
ponderar que os moradores do morro também eram “insulares”, mas logo fez a ressalva
de que a visão que tinha era “a partir do Bar do Sérgio”. Foi então que ele falou mais
demoradamente sobre como sua inserção na vizinhança havia passado pela frequência
nesse bar. Marcelo contou que, logo que chegou, “Dona” Regina, mãe do Sérgio, o
ajudou a conhecer os vizinhos que frequentavam o bar quase todos os dias. Alguns deles
compunham a “turma do Aliado”, que era um jogo de tabuleiro onde participavam
apenas os “mais velhos” e seus filhos, ficando excluídos os considerados “de fora” e as
crianças. Quem confeccionava o tabuleiro era “Seu” René, mas ele também podia ser
comprado na Casa da Armada, loja localizada próxima ao Morro do São Bento.
Ao comparar dois bares da parte alta do morro, o do Sérgio e o do Geraldo,
Marcelo disse que achava o primeiro melhor porque era também frequentado por
crianças e mulheres; o outro era frequentado predominantemente por homens, embora
na Ladeira João Homem, assim como na Rua Jogo da Bola, também fosse comum que
crianças e mulheres conversassem em cadeiras domésticas dispostas na calçada de suas
casas. Marcelo havia percebido ainda que os moradores da Rua Jogo da Bola não
circulavam por outras partes do morro, que eram alguns dos moradores da Ladeira João
Homem e da parte baixa que se deslocavam para o Bar do Sérgio, exemplificando a
hierarquia entre os espaços e os grupos sociais do morro.
A vizinhança que frequentava o Bar do Sérgio costumava dizer que os
moradores da Ladeira Pedro Antônio tinham mais relação com os espaços da Rua da
Conceição e da Rua Senador Pompeu, não sendo considerados por isso “moradores do
morro”. Assim, Marcelo indicava que os limites geográficos e administrativos do morro

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não equivaliam aos limites de suas diferentes vizinhanças ou, como outros
denominavam, de suas “comunidades”. E que as categorias que usualmente
classificavam seus habitantes entre “de dentro” e “de fora” do morro não podiam ser
compreendidas apenas como territoriais: elas envolviam diversos outros aspectos, como
morais, sociais, legais, econômicos e estéticos. Um morador de uma das vias
administrativamente classificada pela prefeitura como Morro da Conceição podia,
portanto, ser entendido como um “de fora” tanto quanto alguém que morasse em outro
bairro ou região da cidade.
Segundo as observações de Marcelo, embora os moradores da Rua Jogo da Bola
costumassem dizer que no morro sempre havia circulado “gente que não era nascida e
criada aqui”, eles se incomodavam bastante com as mudanças de vizinhança. Para
exemplificar essa reatividade a novos moradores, narrou o dia em que o Bar do Sérgio
havia saído na coluna “Pé Limpo” do jornal O Globo sem que tivesse sido avisado pelo
jornalista. A propaganda inesperada foi muito mal recebida tanto por Sérgio quanto
pelos frequentadores do bar, porque eles não desejavam “turistas” nem “gente de fora”
por lá. Em sua opinião, mesmo os que eram proprietários de imóveis no morro, como
Sérgio, “Seu” René e “Seu” Luizinho, se posicionavam de forma contrária à sua
valorização econômica. Havia nessa fala de Marcelo, portanto, mais uma importante
diferenciação entre “turistas” e “de fora”: o primeiro sendo associado a uma maior
contingência em relação aos espaços do morro, por não permanecerem neles por muito
tempo nem estabelecerem vínculos sociais; e o segundo, mas temido, por ser associado
a um frequentador constante ou mesmo um morador que não compartilhasse dos
mesmos valores sociais e morais dos “moradores tradicionais”.
Assim, como Martin e Alessandra, ao se mudar para o morro Marcelo também
tinha decidido não atuar como “pesquisador”; mas se envolveu no Projeto Mauá por
avaliar que ele não iria causar a atração de “novos moradores” e poderia estimular o
investimento da prefeitura no entorno do morro, principalmente nas ruas Senador
Pompeu, da Conceição e do Acre, que considerava “abandonadas”, “sujas” e “sem
iluminação”. Ele tinha conhecido os artistas do projeto através de Guenther e comentou
que vários dos envolvidos nele eram também proprietários de casas no morro. Não sabia
exatamente como os demais moradores da parte alta percebiam o projeto, mas já tinha
ouvido falar que alguns achavam de “alto nível”.
Contou então que tinha havido outro encontro dos integrantes do Projeto Mauá
após o realizado no Observatório, e que novamente tinham recusado uma proposta sua:

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organizar um debate após a exibição do filme Morro da Conceição... com o historiador
Júlio César Pereira, que havia publicado em 2005 um livro sobre as atividades do
cemitério dos “pretos novos” e do mercado de escravos africanos na Zona Portuária.
Marcelo explicou que sua intenção era fazer um contraponto à participação da VOT no
evento, que havia disponibilizado o imóvel onde funcionava sua “casa de cultura” para
abrigar uma exposição coletiva de fotos. Em sua avaliação, a inclusão de um historiador
que falasse sobre a memória negra na região era uma forma de apoiar os moradores que
estavam reivindicando o reconhecimento do Quilombo da Pedra do Sal.
O pedido de reconhecimento da região como “território quilombola” era, na
opinião de Marcelo, “um pouco exagerado”, embora considerasse “inegável” a
existência de uma ligação histórica do passado negro com a Zona Portuária. Ele me
contou que conhecia algumas das famílias despejadas pela ordem franciscana e que
existiam moradores que ocupavam os imóveis havia mais de 70 anos. E que, quando
houve a solicitação de parte da base do morro como território étnico, o frei que
administrava a VOT chamou para uma reunião os alunos e pais da Escola Padre Dr.
Francisco da Motta e do recém-inaugurado Colégio Sonja Kill para dizer que os
“quilombolas” queriam tomar a área ocupada por esses estabelecimentos de ensino,
conseguindo dessa forma várias adesões a um abaixo-assinado contra o Quilombo da
Pedra do Sal.
No desenvolvimento do trabalho de campo, dividi o aluguel na casa de Antônio
durante algumas semanas entre os meses de novembro de 2007 e abril de 2008. Nessa
estadia, observei o cotidiano do Bar do Sérgio e a realização de algumas festas coletivas
organizadas por diferentes moradores da parte alta. Analisei então como estava sendo
valorizado turisticamente o que externamente ao morro estava sendo denominado
patrimônio “português e espanhol” e como seus moradores classificavam a “boa
vizinhança” através das categorias “de dentro” e “de fora”, a partir de uma gradação que
movimentava as figuras do “morador”, do “turista”, do “político”, do “malandro” e do
“criminoso”. E analisei, ainda, como suas formas de estruturar o morro passavam por
um rígido sistema de reputação que opunha “vício” e “virtude” e dividia os espaços em
“feminino” e “masculino”, cujas figuras extremas do imaginário negativo eram a
“prostituta” e o “viado”.

O CONFLITO DA PEDRA DO SAL

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O conflito entre os moradores que
solicitaram a “demarcação do território étnico” do
Quilombo da Pedra do Sal e os dirigentes da VOT
foi ocasionado pela superposição da área periférica
de dois centros de irradiação simbólica: a Pedra do
Sal e a Igreja de São Francisco da Prainha, ambas
localizadas no trecho da base do morro voltado para
a Rua Sacadura Cabral, via que percorria todo o
bairro da Saúde e parte do bairro da Gamboa. A
pedra era uma formação rochosa que possuía uma
área lisa e escorregadia e outra de escadaria
esculpida que facilitava a circulação de pedestres. Na base da pedra, estava o Largo
João da Baiana, cujos limites físicos eram também demarcados pela lateral do último
sobrado do lado ímpar da Rua São Francisco da Prainha; pelos sobrados do restaurante
Victoria Self Service e do bar Bodega do Sal; e por um muro alto e uma escadaria que
conduzia à Travessa do Sereno, onde dois sobrados tiveram suas fachadas unificadas e
foram ocupados pelo centro comunitário do Projeto Humanização do Bairro da VOT.
A calçada do largo era ornada por grandes pedras quadradas circundadas por
pequenas pedras portuguesas e possuía dois bancos de madeira e um coqueiro. Ao nível
do chão, havia um calçamento formado apenas por grandes pedras que separavam seu
espaço do das ruas São Francisco da Prainha e Argemiro Bulcão, ambas calçadas por
paralelepípedos. Na parede da Bodega do Sal, uma placa informava que, em 1987, a
Pedra do Sal havia sido tombada como monumento histórico e religioso afro-brasileiro
pelo INEPAC. Nos períodos diurnos, o largo era utilizado como área para
estacionamento de carros e ocupado principalmente pela movimentação do restaurante
e, nas noites de 2ª e 4ª feiras, eram realizadas nele rodas de samba organizadas pelo bar.
Eventualmente, no largo também eram realizadas festividades de moradores ou
relacionadas ao circuito de sambistas.
O trecho da Rua Sacadura Cabral que compunha a base do morro possuía dois
setores de características físicas e ocupacionais distintas, demarcados pela alteração da
direção do tráfego de automóveis em frente ao Largo São Francisco da Prainha. Esta
alteração era provocada pela conexão com a Rua Edgard Gordilho, que interligava a
Rua Sacadura Cabral à Avenida Rodrigues Alves, principal via de acesso da retro-área
portuária e por cima da qual passava a Avenida Perimetral. A conexão provocava uma

71
encruzilhada em frente ao largo, que fazia com que os motoristas tivessem que optar em
dobrar para a esquerda, em direção à Igreja da Prainha e à Praça Mauá, ou para a direita,
em direção à Pedra do Sal e à região do morro denominada de Valongo.
O Largo São Francisco da Prainha,
denominado por seus usuários apenas
como Largo da Prainha, era de formato
triangular e delimitado pelos cruzamentos
da Rua Sacadura Cabral com a Rua São
Francisco da Prainha e o Beco João
Ignácio. Seu espaço era demarcado por
um calçamento de paralelepípedo elevado
um palmo acima do nível do chão, onde se encontravam dispostos um jarrão com
plantas, bancos de madeira, árvores, postes e dois conjuntos de mesas em cimento com
tabuleiros pintados e banquetas também de cimento. Uma parte dos sobrados frontais ao
largo era de propriedade da VOT e estava desocupada, e a outra parte era utilizada como
depósito de bebidas ou para o funcionamento de bares e restaurantes populares. Durante
os períodos diurnos, o largo era usualmente tomado por estudantes, homens jogando
cartas, pessoas conversando e por muitos engradados de cerveja e recipientes de água
filtrada que eram vendidos pelos depósitos. À noite, o movimento de pessoas era menor
e apenas o bar da esquina da Rua São Francisco da Prainha com o Beco José Ignácio
funcionava. E, em algumas 6ª feiras, o espaço era tomado pelo ensaio do bloco de
carnaval Escravos da Mauá, que chegavam a atrair até duas mil pessoas.
A Rua São Francisco da Prainha continuava para além do Largo da Prainha,
interligando a Rua Sacadura Cabral ao Largo João da Baiana. No trecho da rua entre a
esquina do Beco João Ignácio e o Largo João da Baiana havia sobrados dos dois lados.
No lado ímpar, eles eram quase todos utilizados como residência por inquilinos da VOT
ou moradores informais, sendo que em um deles estava instalado o curso de padaria e,
no térreo de um pequeno edifício, estavam os cursos de marcenaria e gráfica, todos
componentes do Projeto Humanização do Bairro. As edificações desses três cursos
permaneciam quase sempre fechadas, e se destacavam visualmente das demais por
possuírem boas condições de conservação, fachadas pintadas em azul claro e uma placa
que expunha o nome do curso e as logomarcas dos realizadores do projeto.
No lado par da Rua São Francisco da Prainha, a maioria dos sobrados tinha suas
frentes voltadas para a Rua Sacadura Cabral e era ocupada por estacionamentos, sendo

72
alguns ocupados pelo pequeno comércio, entre eles o Mercadinho Pai D‟Égua e o
Restaurante Gracioso. Esse trecho da Rua Sacadura Cabral era definido pelo Beco João
Ignácio e a Rua Argemiro Bulcão e marcado pela presença, no outro lado da calçada, de
um estacionamento térreo que possibilitava a plena visão do prédio de oito andares da
Rua Venezuela utilizado pela “ocupação de moradores sem teto” Zumbi dos Palmares.
A Rua Argemiro Bulcão se conectava a Rua Venezuela, atravessava as ruas
Coelho e Castro e Sacadura Cabral e percorria a Pedra do Sal até encontrar com a Rua
Jogo da Bola. O trecho alto da pedra era ocupado por sobrados e casas e, próximo à sua
base, o lado esquerdo era totalmente tomado pela empena cega do edifício de mais de
doze andares da CEDAE e o lado direito era ocupado também por um edifício de altura
semelhante, utilizado por residências. No final do setor da Rua Sacadura Cabral que
contornava o morro, entre a Rua Argemiro Bulcão e a Rua Camerino, havia alguns
sobrados em ruínas ou fechados, outros que no período diurno eram utilizados como
estacionamento e alguns ocupados pelo pequeno comércio. Em um dos sobrados,
funcionava uma igreja evangélica Universal do Reino de Deus. E, de padrão construtivo
contrastante por possuir linhas arquitetônicas retas e janelas espelhadas, havia o prédio
de oito andares do hotel Villa Reggia. Ainda estavam localizadas neste setor as casas de
shows Trapiche Gamboa e Sacadura e a boate The Week, que só abriam à noite.
A partir do Largo da Prainha em direção à
Praça Mauá, após dois sobrados da Rua Sacadura
Cabral havia uma escadaria de acesso ao Adro de
São Francisco, um pátio retangular elevado cerca de
oito metros onde, ao centro, estava a pequena Igreja
de São Francisco da Prainha. Denominada pelos
usuários do morro como Igreja da Prainha, essa
edificação era o centro simbólico dos portadores do
patrimônio franciscano e foram nos espaços de seu
entorno que os dirigentes da VOT implantaram em
mais de trinta sobrados suas “obras” sociais e
educacionais: a Escola Padre Dr. Francisco da Motta, o Colégio Sonja Kill e o Projeto
Humanização do Bairro. Pintada de branca e com detalhes em pedra na fachada, a
igreja possuía uma placa datada de 1910 e afixada acima de seu portal informando que
sua construção havia começado no ano de 1696 pelo “grande benfeitor” Padre Dr.
Francisco da Motta, que em 1704 a “legou com o patrimônio da Prainha” à VOT. À

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frente da igreja, havia uma mureta branca que separava o adro da Rua Sacadura Cabral
e, em suas laterais e fundo, se alinhavam algumas casas térreas também de propriedade
da ordem franciscana. Atrás da igreja, à direita, um corredor levava à pequena escadaria
que demarcava o encontro da Rua do Escorrega com a Rua Mato Grosso e, ao lado dela,
uma passagem conduzia ao Beco João José. Nele, estavam localizadas as portas frontais
da Escola Padre Francisco Motta e do Colégio Sonja Kill, ambos pintados de azul e
branco. Juntas, essas instituições de ensino ocupavam todo o quarteirão delimitado
pelos becos João José e João Ignácio, pela Rua Mato Grosso e pelo adro.
As fachadas das casas do adro
eram pintadas de branco, mas cada
conjunto de portas e janelas era alternado
em verde, azul, amarelo e branco.
Algumas possuíam pequenas placas
afixadas no portal identificando as
atividades desenvolvidas pelo Projeto
Humanização do Bairro: “salão de
beleza”, “oficina das artes”, “escritório modelo”, “saúde para a comunidade”, “escola
popular de música”, “arte e bordado”, “cantinho da moda”, “casa de cultura do Morro
da Conceição”. Esse conjunto de construções era cuidadosamente pintado e seus tons de
cor pastéis e frios contrastavam com a profusão de cores da Rua Sacadura Cabral e das
demais vias da base do morro.
Neste trecho da Rua Sacadura Cabral que ficava entre o Largo da Prainha e a
Praça Mauá, havia um entroncamento no acesso ao morro que dividia o percurso entre a
escadaria do Adro de São Francisco e a escadaria da Rua Eduardo Jansen. Essa rua era
pouco extensa e desembocava na Rua do Escorrega, outra via que subia o morro e que,
unida à sua continuação, a Rua Mato Grosso, atravessava quase toda sua “parte baixa”
até alcançar a Rua Jogo da Bola. Nenhuma dessas ruas possuía um calçamento em
paralelepípedo, eram apenas asfaltadas. E, ao longo desse trecho da Rua Sacadura
Cabral, diversos transportes coletivos faziam ponto final de passageiros e os sobrados e
prédios eram utilizados de forma comercial, residencial e também como hospedarias.
Nos períodos diurnos, as lojas térreas ofereciam serviços de alimentação
popular, estacionamento de veículos, venda de bebidas ou produtos para escritório, entre
outros, e repetiam o visual colorido de tabuletas da Rua do Acre. Barracas credenciadas
pela prefeitura compunham na proximidade da Praça Mauá o “Comércio Popular

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Sacadura Cabral”, como podia ser lido em seus toldos de lona azul. À noite, este trecho
da rua era ocupado pelas atividades voltadas para a prostituição e o lazer em torno das
boates, botequins e barraquinhas ambulantes de comidas e bebidas. Três grandes boates
convidavam a entrada dos turistas estrangeiros afixando em suas fachadas os letreiros
“Welcome Club Florida. Show. Music. Dance. Bar. Girls”; “Boite Scandinavia. Night
Club. Shows e Strips”; ou simplesmente em luz neon “Kabaret Kalesa”. E, além desses
espaços de acolhimento sexual aos estrangeiros e migrantes, havia algumas construções
governamentais voltadas para seu atendimento e controle: Polícia Federal, Hospital José
da Costa Moreira, 1ª Delegacia de Polícia Civil, Terminal Rodoviário Mariano
Procópio, Arsenal da Marinha e Terminal de Passageiros do Porto.
Interligando essa extremidade da Rua Sacadura Cabral à Rua do Acre, estava a
Travessa do Liceu, que permitia o acesso à Ladeira João Homem. Essa travessa era
delimitada pelos fundos do edifício A Noite, de mais de vinte andares, e pela encosta do
morro. Ao longo da encosta, a travessa era ocupada por barracas credenciadas pela
prefeitura, que vendiam alimentos não perecíveis, como biscoitos, balas e chocolates, e
peças de vestuário e objetos para escritório. Estas barracas diminuíam ainda mais a
estreita área de passagem dos pedestres e mantinham a via permanentemente ocupada.
Já a lateral do edifício possuía algumas colunas de madeira que davam sustentação a sua
marquise. No período diurno, embaixo dela ficavam informalmente estacionadas motos
e bicicletas e pequenos grupos de usuários organizavam jogos de cartas e de tabuleiro.
Após conversar rapidamente com Damião na roda de samba da Pedra do Sal,
falei com ele ainda mais duas vezes ao telefone até conseguir encontrá-lo na manhã do
dia 13 de novembro de 2007. Ele morava com sua mulher, Marilúcia Luzia, em um
sobrado na Rua São Francisco da Prainha. Além deles, também morava nessa rua outro
integrante do “movimento quilombola”, Marquinhos, que trabalhava como vendedor de
cachorros-quentes numa barraca ambulante instalava no Largo da Prainha. Meu
encontro com Damião aconteceu na calçada em frente à sua casa e, logo que nos
cumprimentamos, ele me avisou que não poderia falar durante muito tempo comigo e
emitiu a opinião de que os “acadêmicos” atuavam quase sempre em favor dos interesses
da “elite”. Mas, embora tenha mantido uma postura desconfiada, conversamos por
quase uma hora.
Damião contou que trabalhava no porto e, além de ser presidente da Associação
de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal - ARQPEDRA, havia sido eleito na
semana anterior vice-presidente da Associação dos Quilombos do Estado do Rio de

75
Janeiro - AQUILERJ. Ele não quis me responder sobre sua trajetória habitacional até a
chegada ao morro, afirmou apenas que tinha sido criado na Zona Portuária e que a
primeira moradia dele no morro havia sido em uma casa da VOT na Travessa do
Sereno, onde tinha permanecido por dois anos sem ter qualquer contrato de aluguel.
Quando foi despejado através de uma ação judicial movida pela entidade, ocupou uma
casa na Rua São Francisco da Prainha, que também estava vazia e era de propriedade da
ordem franciscana. Embora ele próprio não pagasse aluguel, disse que outras famílias
que foram despejadas pela entidade tinham contrato de locação e acusou seus dirigentes
de terem feito algumas expulsões agressivas com o auxílio de policiais.
Disse então que a VOT não tinha documentos que comprovassem a propriedade
das casas da parte baixa do morro, porque aquela área da Rua Sacadura Cabral havia
sido aterrada e pertencia originalmente à União. E de ter começado a despejar os
moradores e reivindicar a propriedade dessas casas somente depois que a prefeitura
divulgou o plano urbanístico Porto do Rio, afirmando que a instalação dos cursos
profissionalizantes era apenas um pretexto para valorizá-las economicamente. Perguntei
então a ele quem eram os integrantes da “comunidade quilombola” e onde se reuniam
cotidianamente, mas Damião respondeu de forma genérica, repetindo que a Zona
Portuária era um espaço de ocupação histórica do negro e que durante anos essa
ocupação havia sido inibida pela atuação da igreja católica e dos planos urbanísticos.
E foi operando com esses grandes personagens míticos – os “negros”, a “igreja
católica” e os “urbanistas” - que ele informou que havia décadas nenhuma casa de
candomblé funcionava na área, já que todas haviam se deslocado para o subúrbio após
serem “perseguidas”. No entanto, em seguida Damião lembrou que até 2005 havia
funcionado um candomblé em uma das casas do Adro de São Francisco, mas que a casa
também tinha sido retomada pela VOT. Damião então perguntou qual era a minha
religião e eu respondi que não era praticante de nenhuma, mas que havia sido batizada
na umbanda, religião que, durante a minha infância, era a de minha mãe. Ele reagiu com
surpresa e disse que esperava que eu fosse católica, já que ele próprio era do candomblé,
mas batizado pela igreja católica, e não conhecia muitas pessoas que eram batizadas em
religião “do santo”.
Enquanto conversávamos, Mauro Rasta passou pela rua e parou para falar
conosco. Mauro organizava junto com Damião e Marilúcia o Projeto Sal do Samba, que
realizava apresentações musicais na Pedra do Sal, e avisou a Damião que o Canal
Futura tinha entrado em contato para fazer uma matéria televisiva com os integrantes do

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Quilombo da Pedra do Sal. Damião disse que já tinha recebido o convite, mas que não
havia aceitado porque o movimento quilombola nacional tinha deliberado não participar
de nenhuma matéria realizada por instituições ligadas à Rede Globo de Comunicações.
Explicou-me que esse posicionamento tinha sido tomado devido às “distorções” que os
jornalistas estavam fazendo ao narrarem os conflitos em torno dos “territórios étnicos”.
Perguntei então que instituições apoiavam o Quilombo da Pedra do Sal e ele me
falou que favoráveis ao pleito haviam apenas o Movimento Negro Unificado; a ONG
Comcat, voltada para a formação de líderes comunitários e sediada no Beco João José; a
ONG Koinonia, entidade carioca atuante no monitoramento e assessoria política dos
pleitos de reconhecimento de territórios quilombolas; e a ONG Centre On Housing
Rights and Evictions - COHRE, entidade paranaense voltada para a implantação de
projetos de moradia popular. Mas disse que a Comcat e a Koinonia haviam sido
pressionadas pela VOT, através da mediação de um representante da Comunidade
Européia, financiadora em comum das três entidades, para que elas não oferecessem
apoio formal ao movimento.
Ao conversar com Mauro sobre os eventos que pretendiam realizar na Pedra do
Sal no fim do ano, Damião me disse que o Projeto Sal da Pedra costumava comemorar
o dia da Consciência Negra, 20 de novembro, mas que naquele ano eles tinham decidido
não realizar nenhuma atividade porque estavam sem dinheiro. Mas que ele e Mauro
estavam organizando a festa de comemoração ao dia do Samba, 02 de dezembro, já que
tinham recebido o apoio de uma professora universitária que se prontificou a oferecer os
ingredientes para a produção de uma feijoada, pedindo em troca que eles organizassem
a apresentação de grupos de “dança afro”. Segundo Damião, havia dois anos que eles
não conseguiam realizar a festa de comemoração ao dia do Samba por causa das
despesas que tiveram com os embates judiciais com a VOT e que, antes do pleito de
reconhecimento étnico, nessa festa havia a “lavagem” da pedra com o auxílio de filhos
de santo seguida de uma roda de samba.
No final de nossa conversa, Damião sugeriu que eu consultasse o Relatório
Histórico e Antropológico sobre a Comunidade de Remanescente de Quilombo da
Pedra do Sal produzido pelo INCRA, dizendo que eu iria encontrar nele a história da
Zona Portuária e do pleito quilombola. Sugeriu ainda que a leitura da Proposta de
Tombamento da Pedra do Sal apresentada ao INEPAC em 1984. Quando nos
despedíamos, comentei com Damião que estava ainda em início de pesquisa e que
pretendia conversar também com os dirigentes da ordem franciscana para saber a versão

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deles sobre o conflito. Ele então respondeu que não havia “versões”, que ele estava
contando a “verdade”.
No início de dezembro, estava em um ensaio do bloco de carnaval Escravos da
Mauá no Largo da Prainha quando Marcelo me informou que, entre as diversas barracas
de venda de comida e bebida montadas no largo, a que ficava na esquina do Beco João
Ignácio pertencia ao Quilombo da Pedra do Sal. Fui então para essa barraca e me
apresentei como pesquisadora a Sonia, que estava organizando as vendas. Ela me disse
que havia morado na “ocupação de moradores sem teto” Chiquinha Gonzaga, localizada
em um edifício da Rua Barão de São Felix próximo à Central do Brasil, trabalhava na
ONG Rede de Vítimas de Violência de Comunidade e ajudava Lúcia, que era como
todos chamavam Marilúcia, a tomar conta da “barraca dos quilombolas”.
Sonia então apresentou-me Lúcia, que conversou rapidamente comigo, dizendo
que havia morado na Zona Portuária desde que nasceu, mas sem querer especificar
onde. Disse apenas que nem as ONGs e nem a igreja apoiavam o Quilombo da Pedra do
Sal, que eles só contavam com o apoio dos “grupos negros”. Amaury, amigo de Lúcia,
se aproximou da conversa e ela se afastou para falar com outras pessoas. Ele era
produtor cultural e trabalhava principalmente com sambistas, e disse que seu desejo era
articular o movimento quilombola com outros grupos dedicados ao samba da Zona
Portuária, como os blocos Prata Preta e Escravos da Mauá, mas que estava difícil unir
seus integrantes. Outro amigo do grupo, Renato Radical, entrou na conversa e, sabendo
que eu era pesquisadora, me perguntou, assim como havia feito Damião, se eu era
católica. Depois que soube do meu batismo na umbanda, Renato me reapresentou Lúcia,
enfatizando esse aspecto religioso, e conversamos por mais alguns minutos.
Ao mesmo tempo em que tentava estabelecer um contato com os moradores que
formaram o Quilombo da Pedra do Sal, tentei compreender como o “pleito étnico”
estava sendo conduzido pelo INCRA. Insisti assim em falar com Érika, historiadora que
tinha participado da elaboração do “relatório de identificação e delimitação”. Após
alguns desencontros, ela me convidou para ir à festa de comemoração de seu
aniversário. Chegando à sua casa, conversei por alguns poucos minutos com ela, que
contou que na elaboração do relatório sobre o Quilombo da Pedra do Sal tinha feito
entrevistas apenas com os moradores que solicitaram o reconhecimento étnico e um
levantamento histórico sobre a região; não havia entrevistado outros moradores que não
fizessem parte do grupo para saber o que achavam do pleito. E depois de entregue sua

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parte do trabalho, não havia acompanhado mais o processo de reconhecimento; só sabia
que o relatório já tinha sido enviado ao INCRA.
Alguns dias depois, fui convidada para um evento organizado por Mauro Rasta
na Pedra do Sal e, encontrando novamente Érika, compreendi o seu desconforto em
falar sobre o pleito. Era o aniversário de uma cantora de samba, que havia organizado
uma roda com alguns músicos e chamado seus amigos para a comemoração, a maioria
não moradora da região. Nesse evento, o movimento quilombola havia montado uma
barraca para a venda de caldo de feijão, de quiabo com frango e de cerveja, como forma
de angariar dinheiro para o movimento. Ao chegar e ver os músicos, os convidados e a
comida servida pela aniversariante, que era torradas com tabule, Érika criticou a festa,
dizendo que aquilo não era “movimento quilombola”, mas uma “manifestação para-
folclórica”. E percebi, assim, que durante a pesquisa ela havia ficado tensionada pela
sua própria percepção do que considerava ser um autêntico movimento quilombola.
Retomei o contato direto com integrantes do Quilombo da Pedra do Sal apenas
no início de abril de 2008, quando conheci Carmem durante um evento de arte
contemporânea organizado por um morador da parte alta do morro e patrocinado pelo
IPHAN. Parte das “intervenções artísticas” do evento havia ocupado a Pedra do Sal, e
encontrei Carmem porque ela explicava a um dos artistas o que era o movimento
quilombola. Ela então me contou que havia seis anos que residia em um imóvel na
Travessa do Sereno e que, antes mesmo de ter se tornado uma “quilombola”, já era
discriminada por outros moradores por ser da “parte baixa” e não da “parte alta”, que
ela identificava como a “elite do morro”. Acusou também a VOT de estar perseguindo
os integrantes do quilombo e de terem utilizado uma “milícia” formada por policiais a
paisana para expulsar os moradores dos imóveis e retirarem seus pertences. Segundo
ela, esses despejados eram em torno de cinquenta pessoas, mas poucos haviam
continuado a morar na Zona Portuária; morando no morro, haviam restado apenas os
que organizaram o movimento.
No dia 23 de abril, reencontrei Carmem na Pedra do Sal em uma festa em
comemoração ao dia de São Jorge. Quem havia me avisado do evento foi novamente
Mauro Rasta que, por telefone, explicou que ele estava sendo organizado coletivamente,
com a participação de amigos do movimento quilombola, de moradores da região e de
militantes do movimento negro e social. Ele tinha ficado encarregado de convidar as
pessoas e divulgar o evento, e Lúcia de comandar a barraca de bebidas e o preparo da
feijoada. Cheguei à festa no fim da manhã, quando a barraca com feijoada e bebida já

79
estava montada, mesas e cadeiras de alumínio haviam sido dispostas ao redor do largo
e, em seu centro, músicos se revezavam para cantar sambas.
Carmem então me apresentou ao historiador Luiz Torres, um dos integrantes do
movimento quilombola e, assim como já tinha ocorrido nos meus encontros com
Damião e Lúcia, ele também não foi muito receptivo, mas concordou em conversar.
Contou que o primeiro trabalho histórico apresentado ao INCRA foi de sua autoria, se
referindo ao material de auto atribuição do grupo entregue à Fundação Cultural
Palmares e que resultou em sua certificação. Luiz me explicou que a ideia do quilombo
estava associada a uma “resistência política” que tinha como intuito divulgar a história
da Pedra do Sal como ponto de referência da cultura africana para outros moradores da
Zona Portuária.
Considerava que a solicitação do reconhecimento étnico do quilombo não era
apenas um projeto para solucionar um conflito habitacional, mas também um desejo de
ampliar a atuação do MNU na região e fortalecer a memória negra, que ele entendia já
reconhecida através da criação do Cemitério dos Pretos Novos e do Centro Cultural José
Bonifácio. E disse que o tombamento da Pedra do Sal na década de 1980 não havia sido
uma iniciativa dos moradores que formaram o quilombo, mas uma iniciativa
exclusivamente “acadêmica”. E que havia sido sua iniciativa e de Damião tornar a Pedra
do Sal conhecida pelos moradores e pelos envolvidos nas atividades portuárias, nas
rodas de samba e entre o “povo do santo”. Tinha sido, assim, para produzirem um
“trabalho consciente de construção de identidade negra”, que eles haviam se
posicionado como seus “guardiões de memória”.
Luiz contou que, apesar de eles terem chamado outros moradores da região para
aderiram ao movimento, através da afixação de cartazes sobre a realização de reuniões
da ARQPEDRA, muitos não quiseram por não se sentirem identificados com a “causa
quilombola”. Perguntei então a ele como era o cotidiano do grupo de moradores que
tinham aderido ao movimento, se eles tinham algum ponto de encontro ou frequentavam
espaços comuns, como casas de candomblé. Luiz disse que eles só se encontravam em
eventos de comemoração e divulgação da cultura afrodescendente ou em reuniões onde
discutiam as estratégias do movimento, mas que eram dispersos. Por fim, Luiz disse que
só com o desenvolvimento do pleito foi que eles passaram a contar com apoio externo,
principalmente do Ministério Público, do Governo Federal, de ONGs e de
universidades. No entanto, não haviam contado em nenhum momento com o apoio de

80
“políticos”, partidos ou associações locais de moradores que, segundo ele, só se
interessavam em beneficiar pessoalmente seus integrantes.
No início da tarde, logo após a feijoada ter sido servida a cerca de cinquenta
pessoas, três homens vestidos com camisetas brancas com o nome do Afoxé Filhos de
Gandhi impresso em azul se sentaram em cadeiras dispostas em frente aos bares do
largo. Esse grupo carnavalesco também estava reivindicando a inclusão de sua sede,
localizada na Rua Camerino e de propriedade do governo estadual, no “território étnico”
do Quilombo da Pedra do Sal. Quando eles iniciaram o toque do ijexá, ritmo
caracterizado pelo som dos atabaques e a marcação do agogô e tocado em casas de
candomblé, parte das mulheres presentes se posicionou em roda no centro do largo e
algumas, para marcar a transição musical, envolveram o tronco por um “pano da costa”,
peça de vestuário dos rituais de candomblé.
Essas mulheres então acompanharam os atabaques cantando diferentes músicas
em português e ioruba e dançaram coreografias referenciadas também no candomblé:
cada uma dançou sozinha, andando em um círculo fechado, e seguiu o compasso dos
toques com passos breves e gestos suaves de mãos. O tom da apresentação, embora
mais solene que o anterior da roda de samba, continuou festivo, a diferença foi ter
atraído para a dança mulheres já idosas, as “tias” respeitadas por todos os presentes no
evento. Depois da apresentação do Gandhi, como era geralmente chamado o grupo,
outros músicos voltaram a tocar samba e, ao longo da tarde, a festa ficou mais cheia
com a chegada de outras dezenas de pessoas de vários locais da cidade, algumas
vestidas de branco e vermelho, cores associadas ao santo homenageado.
Essa apresentação do Gandhi havia, portanto, evidenciado a dimensão religiosa
do “pleito quilombola”, produzindo uma mediação social e cultural entre os integrantes
do movimento, sua rede de relações e os próprios usuários do morro, fossem eles
moradores ou frequentadores de outros locais da cidade. Pois, através da comida
associada aos hábitos alimentares dos escravos afrodescendentes, do ritmo musical, da
coreografia e da vestimenta referenciados nos rituais do candomblé, a “comunidade
quilombola” tinha operado a conversão simbólica da Pedra do Sal e do Largo João da
Baiana em “território étnico”, mas não na acepção jurídica e política do termo, e sim em
sua noção mágica. E era essa noção mágica que tinha feito com que outras pessoas
presentes à festa de São Jorge, mas que não estavam diretamente envolvidas com o
conflito habitacional no morro, compartilhassem da reivindicação do grupo: pois elas,

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assim como os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, faziam parte do “povo do
santo”.
A partir desses diálogos iniciais, comecei a entender que os moradores que
haviam formado o Quilombo da Pedra do Sal possuíam sua principal rede de relações
sociais para fora dos limites físicos do morro: uma rede formada por integrantes de
organizações e movimentos políticos que atuavam junto às “minorias étnicas” e aos
conflitos de “moradia popular” e pelo “povo do santo”. E que, para tornar o conflito
habitacional com a VOT um “pleito étnico”, o grupo havia tido de acionar diferentes
mediadores dos poderes públicos, como historiadores, antropólogos, advogados e
promotores, além de se posicionar frente aos demais moradores do morro com quem
estavam em relação direta de vizinhança.
Mas, nessa judicialização do conflito, o grupo era constantemente avaliado a
partir de um sistema de autenticidade sobre as características culturais de um “grupo
afrodescendente”, avaliação que a própria gramática jurídica e política havia imposto
durante o processo público de “certificação e titulação” do “território étnico”. No
entanto, na concepção dos moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal, a
etnicidade dos espaços do morro era articulada por oposições estruturais não previstas
na legislação que regulava o reconhecimento de “comunidades quilombolas”. Para eles,
as oposições “povo” e “elite” e “povo do santo” e “católicos” eram as que os
diferenciavam dos demais moradores do morro e principalmente da VOT, sendo as
práticas do candomblé, como veria ao longo do trabalho de campo, as que constituíam a
principal base cosmológica e de pertencimento do grupo.
Após esses contatos iniciais com os integrantes do movimento quilombola,
houve uma contínua resistência deles em conversar comigo ou permitir que eu
desenvolvesse uma pesquisa entre eles. Busquei então conhecer alguns de seus
mediadores, como a ONG Koinonia e o INCRA e, apesar de não ter conseguido agendar
uma conversa com as pesquisadoras que haviam coordenado o Relatório Histórico e
Antropológico sobre a Comunidade de Remanescente de Quilombo da Pedra do Sal,
também me detive na análise de seu discurso. Nela, busquei compreender como o mito
da Pequena África estava sendo presentificado para operar a conversão simbólica dos
moradores do morro em um “grupo étnico” capaz de ser juridicamente “identificado”.
Por fim, entrei também em contato com usuários e funcionários de atividades da
VOT no morro e realizei três entrevistas com seus dirigentes: a coordenadora geral do
Projeto Humanização do Bairro; a advogada que organizou as ações de remanejamento,

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despejo e reintegração de posse dos sobrados da parte baixa do morro para que eles
abrigassem o projeto; e o arquiteto que comandou suas reformas. E, através dessas
conversas, busquei compreender o processo de implantação das “obras sociais e
educacionais” no morro e o contexto de surgimento do conflito com os moradores que
se intitularam Quilombo da Pedra do Sal.

O CARNAVAL E O CANDOMBLÉ DO VALONGO

O Gandhi, bloco carnavalesco que


havia aderido ao “pleito quilombola”,
estava sediado na parte do morro onde
havia funcionado o antigo mercado de
escravos do Valongo e que era, além da
Pedra do Sal, o outro espaço simbólico
dos portadores do patrimônio negro
localizado no morro. Esse antigo mercado
havia ocupado toda sua base voltada para a Rua Camerino, entre as esquinas das ruas
Sacadura Cabral e Senador Pompeu, trecho onde haviam alguns sobrados com usos
diversos, como estacionamento, hotel e venda de móveis para escritório. Quase metade
do quarteirão era ocupada pelo monumental Jardim Suspenso do Valongo, construído
pela prefeitura de Pereira Passos. Era no sobrado de dois andares que ficava em uma das
extremidades do jardim e defronte à Praça dos Estivadores que estava a sede do Afoxé
Filhos de Gandhi, identificada por uma tabuleta branca pregada na fachada com os
dizeres em azul: “Ass. Cultural e Recreativa „Afoxé‟ Filhos de Gandhi – RJ. Aulas de:
Capoeira - Dança Afro - Percussão”.
No lado ímpar do trecho da Rua Camerino que contornava o morro e fazia
esquina com a Rua Sacadura Cabral, havia um pequeno comércio ocupando alguns
sobrados, a base da Ladeira do Morro do Valongo, que se conectava ao alto da Ladeira
Pedro Antônio, e a extensa murada de pedra do Jardim Suspenso do Valongo. No lado
par desse trecho também havia um pequeno comércio e a Ladeira Madre de Deus, de
acesso ao Morro do Livramento e, logo adiante, havia o trecho da Rua Barão de São
Félix que seguia em direção à Central do Brasil. Ao lado dessa rua, estava a Praça dos
Estivadores, em formato triangular, calçada por pedras portuguesas e terra batida,
composta por bancos, equipamentos de ginástica em madeira e por um ponto de ônibus.

83
Três vértices delimitavam seu espaço: a Rua Sacadura Cabral, a Rua Barão de São
Felix, e uma sequência de sobrados, onde dois possuíam identificação em suas
fachadas: “Batucadas Brasileiras Orquestra de Percussão Robertinho Silva” e “Centro
Cultural do Sindicato dos Rodoviários”.
Elevado cerca de dez metros da
rua, ao centro do Jardim Suspenso do
Valongo havia uma escadaria de pedra,
estreita e muito íngreme que conectava a
Rua Camerino ao muro lateral do
Observatório do Valongo. Duas placas
estavam afixadas na base dessa escadaria:
uma era em aço e havia sido posta pelo
órgão patrimonial municipal para informar que o jardim havia sido inaugurado em 1906
e que as quatro estátuas que nele figuravam tinham sido trazidas do Cais da Imperatriz,
atracadouro que foi assim batizado ao ser reformado para a chegada da noiva do
imperador Dom Pedro II em meados do século XIX; e outra placa, maior e esculpida em
pedra, que informava apenas o ano de construção do jardim e ter sido ele obra da
“Prefeitura do Districto Federal”. No jardim, ao lado direito da escadaria havia dois
pedestais de pedra de um metro e meio sem qualquer estátua em cima e, do lado
esquerdo, um sobrado de dois andares, outros dois pedestais vazios, um caminho que
conduzia a uma fonte de água que não funcionava, uma área onde estava pichado em
vermelho “É proibido cagar”, e uma murada que permitia o acesso à Ladeira do Morro
do Valongo. Além dessa pichação, havia no jardim muitas que eram apenas rubricas e
outras com as letras “CV”, que demarcavam o espaço como de atuação do Comando
Vermelho, grupo que geria o tráfico de drogas do Morro da Providência.
Assisti pela primeira vez a uma apresentação do Gandhi durante a comemoração
ao dia de São Jorge organizada pelos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal. Mas só
comecei a perceber que o grupo era um importante articulador do que denominei de
circuito de “herdeiros da Pequena África” quando presenciei, em seguida, outra
apresentação ritualmente semelhante do grupo, desta vez na abertura de um evento do
Instituto Pretos Novos. O instituto era um centro de estudos arqueológicos e de
divulgação da cultura e memória negra localizado na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa. E
quem me apresentou a sua diretora, Mercedes, foi o guia turístico José Motta, com
quem tinha feito contato durante uma de suas visitas ao Morro da Conceição. Ele havia

84
comentado comigo que fazia também um roteiro de “turismo étnico” pela “Pequena
África”, incluindo o Centro Cultural José Bonifácio, o Instituto Pretos Novos, a Igreja
Nossa Senhora da Saúde, o Valongo e a Pedra do Sal.
Em maio, poucos dias depois de percorrer esse roteiro, voltei ao instituto e
Mercedes me contou que ele havia sido fundado após sua família ter descoberto, durante
uma reforma nos cômodos de sua casa, em 1996, vários ossos enterrados pertencentes a
um antigo cemitério de escravos. E que, no início da gestão de César Maia na prefeitura,
em 2001, havia sido feita uma grande festa no dia da Consciência Negra anunciando a
realização de uma prospecção arqueológica e expondo em painéis algumas fotos de
escavações que já haviam sido realizadas no local pelos arqueólogos municipais. Após
essa divulgação, a casa de Mercedes começou a receber a visitação de pesquisadores e
pessoas ligadas à valorização da cultura negra, se tornando um dos espaços da Zona
Portuária considerado parte desse patrimônio. Em 2005, a pesquisa anunciada pela
prefeitura ainda não havia sido realizada e, no dia 13 de maio, data de comemoração da
lei que aboliu a escravidão, Mercedes decidiu organizar uma exposição de esculturas na
casa e criar a ONG Instituto Pretos Novos. E foi na comemoração dos três anos de seu
funcionamento do instituto que assisti à apresentação do Gandhi, em evento que teve
ainda uma roda de samba e a oferta de feijoada.
No entanto, tive contato direto com os integrantes do grupo carnavalesco
somente após começar a frequentar, em junho, as reuniões do Porto Cultural,
movimento que estava reunindo a “sociedade civil” da Zona Portuária para discutir as
propostas de “revitalização urbana”. Soube da existência desse movimento através de
uma amiga, Madalena Romeo, que era jornalista de O Dia e havia recebido um convite
por e-mail para participar dessas reuniões. O movimento havia surgido em dezembro de
2007 e agregava cerca de vinte instituições8, além de pesquisadores e moradores da
região, sendo liderado pelo Instituto Batucadas Brasileiras, chamado usualmente apenas
de Batucadas. Essa ONG ficava sediada em um sobrado de três andares na Praça dos
Estivadores e era uma escola de música percussiva ministrada por Robertinho Silva e
dirigida pelo jornalista Maurício Nolasco E, assim como os demais espaços
8
Compunham o Porto Cultural as seguintes instituições: Afoxé Filhos de Gandhi, Associação de
Serviços Ambientais, Associação de Bandas Carnavalescas do Rio de Janeiro, Associação de Moradores e
Amigos da Gamboa, Banda do Morro da Conceição, CAPA – Casa do Artista Plástico Afrodescendente,
Companhia Aplauso, Caboon, Centro Cultural Ação da Cidadania, Cia. Brasileira de Mystérios e
Novidades, bloco Escravos da Mauá, INT – Instituto Nacional de Tecnologia, IBB – Instituto Bandeira
Branca/ Batucadas Brasileiras, IPN - Instituto Pretos Novos, Instituto Sociocultural Favelarte, IPPUR/
UFRJ, Pequena Central, Projeto Mauá, Sindicato dos Estivadores, Sindicato dos Portuários, Sparta –
Associação Esportiva da Providência, Spectaculu, Topinheco07 e Observatório do Valongo/ UFRJ.

85
frequentados pelo Gandhi, também propagava a valorização da cultura negra na Zona
Portuária.
Na quarta reunião do Porto Cultural, ocorrida em julho no Batucadas, Nolasco
anunciou que sua organização e o Gandhi haviam assinado um termo de cooperação
técnica para desenvolver um projeto de recuperação da sede do grupo carnavalesco. E,
como a sede era de propriedade do governo estadual, as duas entidades estavam
coletando assinaturas de instituições locais para solicitar ao governador Sérgio Cabral
Filho que ele decretasse sua doação definitiva para o Gandhi. Em seguida, Nolasco
propôs que o Porto Cultural apoiasse nas eleições daquele ano as candidaturas dos
vereadores Stephan Nercessian e Alfredo Sirkis, que estavam interessados em atuar,
respectivamente, nos projetos “culturais” e de “revitalização urbana” da Zona Portuária.
Mas a maioria dos presentes foi contrária ao apoio, e o debate sobre as diferenças entre
“politizar” e “partidarizar” já estava ficando acalorado quando Carlos Machado,
presidente do Gandhi, pediu a palavra. Nesse momento, os demais participantes ficaram
em silêncio, demonstrando que ele era socialmente reconhecido não só entre os
envolvidos com o “povo do santo” e a “cultura negra”, mas também entre o conjunto de
representantes de entidades que atuava na Zona Portuária.
Machado então explicou que a ideia de formação do Porto Cultural era evitar
que houvesse um crescimento desordenado da “expansão cultural” da região e
comentou o “desrespeito” à legislação que foi feita para “preservar o morador”, se
referindo à criação da área de proteção ambiental SAGAS. Contou que o intuito dessa
preservação patrimonial era impedir que os sobrados fossem unificados para brigar
grandes casas de espetáculo e “espigões”, numa referência aos prédios verticalizados,
alertando que havia empresas da construção civil que possuíam uma reserva de terrenos
na região. E fez em seguida a defesa do envolvimento da “comunidade” no processo de
transformação da região, dizendo que o movimento podia tentar garantir a permanência
principalmente dos “mais humildes”, que se fossem retirados daqueles bairros iriam
morar em “um lugar cada vez pior”. A fala de Machado operava, assim, uma inversão
em relação aos discursos dos urbanistas da prefeitura sobre a Zona Portuária,
percebendo como construções “regulares” as que mantinham suas fachadas preservadas
e eram ocupadas pela moradia “popular” e, como “irregulares”, as “revitalizadas” e
ocupadas por grandes e lucrativos empreendimentos comerciais.
Passadas algumas reuniões do Porto Cultural, soube através do fotógrafo
Lissandro Garrrido que Machado estava procurando técnicos para realizar um

86
documentário para a comemoração dos 60 anos do grupo, que ocorreria em 2011. Fui
então em novembro a uma reunião da diretoria do grupo no Batucadas e, quando
cheguei, havia cerca de oito pessoas discutindo a organização dos eventos da semana
seguinte, dedicada às comemorações do dia da Consciência Negra. Eles combinavam
quantos integrantes participariam dos eventos e que vestimentas usariam, cujas opções
eram “camiseta” e “fantasia completa” do Gandhi. Também foi discutido o retorno do
grupo para o desfile de carnaval no Sambódromo, já que fazia alguns anos que o
Gandhi só desfilava “na rua”. Ao fim da reunião, todos os presentes ficaram em círculo
e deram as mãos, fazendo uma saudação que era o grito da palavra “Ajaiô”.
Em seguida, conversei com Machado e com
um dos diretores do grupo, Ulisses, durante alguns
minutos na Praça dos Estivadores e combinamos
que eu começaria a acompanhar e filmar seus
eventos a partir daquela semana. E, para que eu
começasse a entender como funcionava o grupo,
enfatizaram que havia espaços diferenciados para
homens e mulheres e “fundamentos” e “segredos”
do candomblé que eram precisos ser seguidos e
conhecidos para que os integrantes do Gandhi, ao se
apresentarem, ficassem “protegidos”. Em novembro
e dezembro de 2008, assisti então a algumas apresentações em que a diretoria do
Gandhi foi convidada para tocar e dançar em eventos de valorização da “cultura negra”
ou dos “cultos afros”. Inicialmente, assisti aos eventos relacionados à semana de
comemoração da Consciência Negra. Nela, o Gandhi se apresentou em um salão da
Câmara de Vereadores no encerramento do seminário “Políticas públicas municipais de
promoção da igualdade e o combate à discriminação racial”. Depois, no próprio dia 20
de novembro, participou de um grande evento do governo estadual realizado no
monumento a Zumbi dos Palmares, na Praça Onze. Nele, a pista da Avenida Presidente
Vargas foi fechada e dois palcos forma armados: um em frente ao monumento, onde se
apresentaram, além do Gandhi, capoeiristas e “blocos afros”; e outro, maior e equipado
com uma potente aparelhagem de som, onde se apresentarem cantores e grupos
musicais. No dia seguinte, o Gandhi se apresentou em evento que contou com a
participação de vários representantes religiosos no Instituto Pretos Novos e, à noite, na
eleição da “Deusa do Ébano” do bloco afro Orùnmilá no Circo Voador. Até o fim do

87
ano, o Gandhi se apresentou ainda no encerramento da Feira da Providência, em um
“quilombo” em Cachoeira de Macacu, no dia do Samba organizado pelo Quilombo da
Pedra do Sal, na festa de lançamento do Porto Cultural realizada no Largo da Santa do
Morro da Conceição, e no Presente de Iemanjá oferecido pelo Mercadão de Madureira.

Nessas apresentações, normalmente os músicos da charanga vestiam uma calça


comprida branca, uma camiseta branca com o nome do grupo e o turbante. Alguns
homens e mulheres vestiam a fantasia completa do Gandhi: uma longa bata branca,
chamada por alguns de “lençol”, com o nome do grupo impresso em azul e amarrada
por faixa também azul; colares de contas grandes atravessadas no tronco nas cores azul
e branco; duas fitinhas brancas para amarrar as mangas da bata; um turbante de tecido
de toalha branco com o nome do grupo impresso em azul e enfeitado ao centro da testa
por um arranjo redondo de lantejoulas azuis, e sandálias brancas. Mas havia mulheres
que preferissem se vestir de “baianas”: com batas, saias e “ojás”, que eram uma espécie
de turbante de tecido branco liso ou bordado. Os turbantes e ojás eram amarrados de
forma diferente por homens e mulheres: nos homens, envolvia toda a cabeça e apenas
uma de suas pontas cobria o pescoço; nas mulheres, o tecido era envolto de forma
circular na cabeça, deixando para fora os cabelos, e algumas deixavam as duas pontas
para se projetarem na altura das orelhas. Muitos integrantes colocavam também
adornos como colares, pulseiras e braceletes de palha, búzios e contas.
Todas essas apresentações do grupo que presenciei duraram cerca de meia hora,
foram realizadas para um público que variava entre trinta e duzentas pessoas e seguiram
um padrão ritual. A “charanga”, que era como denominavam o conjunto de músicos do
grupo formado por babalorixás e ogans das casas de candomblé, posicionava seu

88
atabaques, cabaças e agogô em cima de um palco, ou à frente da plateia quando não
havia palco, e sempre havia um equipamento de amplificação de som para o cantor, que
ficava um pouco projetado em relação aos demais músicos. Na frente da charanga, as
mulheres que nas casas de candomblé eram ialorixás, ekedis e iaôs faziam uma roda e
dançavam coreografias referenciadas no ritual do candomblé.
A maioria das músicas cantadas pelo grupo tinha letra em português com
algumas palavras em ioruba, se referia ao toque do ijexá e a marcação musical do
agogô e cantava as qualidades associadas ao grupo, que eram a “paz”, o “ser guerreiro”,
a “beleza”, o “amor”, a “liberdade” e o “não preconceito de cor”. Parte das letras das
músicas era composta apenas por uma estrofe, repetida pelo grupo diversas vezes.
Também diversas vezes ao longo da apresentação o cantor gritava “Ajaiô!” e as
mulheres que dançavam respondiam “Ê!” e levantavam as mãos. E o grupo iniciava
sempre suas apresentações com a música “Exu Mensageiro”, quando era pedido que ele
“abrisse caminho” para o grupo e era listado o “panteão” dos orixás.

Exu mensageiro vai ligeiro


Abre caminho para a passagem do afoxé
Nosso candomblé de rua com muitos anos de axé
Ogum Balogun
Odé caçador
Ossanhe das folhas, do axé e do amor
Nanã (...), Omolu e Oxunmaré
Lá vem o Gandhi com a benção do Orun
Filhos de Gandhi, panteão do Ilê Aiyê
Awédé
Sobe e desce ladeira
Entra em beco, sai em beco
Oyá, Oxum, Obá
As mulheres de Xangô
Vai buscar o seu senhor
Para ver Gandhi passar
Ogum menino vem no toque de ijexá
Demonstrar nossa beleza para a deusa negra Ewá
Odúduwá, Iemanjá, com as suas forças do Olókún
Guerreiro Oxanguian, Babá Oxalufan
Filhos de Gandhi com as benções do Olórún

89
Ao final das apresentações, era feito um canto em ioruba para Oxalá, momento
em que as pessoas que dançavam na roda dobravam seus joelhos e ficavam com as
cabeças voltadas para o chão. Após esse canto, os músicos faziam um repique de
atabaques e o cantor falava palavras em ioruba e português pedindo paz, amor e
prosperidade. A apresentação se encerrava com todos batendo palmas, com as mulheres
da roda se levantando e com vários gritos “Ajaiô!”. Em alguns eventos, ainda era
cantada depois uma música de despedida, quando os músicos e dançarinos faziam uma
única roda e acenavam com as mãos. E, em outros, após a apresentação ritual do
Gandhi, a charanga cantava sambas de umbigada.
A partir desse contato inicial, percebi que os integrantes do Gandhi estruturavam
os espaços do morro e da Zona Portuária através com oposições que diferenciavam
“sagrado” e “profano”, “povo” e “elite” e “masculino” e “feminino”. E que o grupo era
formado por integrantes de diferentes casas de candomblé, distribuídas pelo subúrbio e
Baixada Fluminense, e se baseava em “fundamentos” religiosos para se apresentar
musical e coreograficamente, colocando-se como um mediador entre os desejos “deste
mundo” e do “mundo dos orixás”. Percebi ainda que, para o grupo, as fronteiras
territoriais eram fluidas e as trocas não apenas horizontais, mas verticais, entre “deuses”
e “humanos” e “mortos” e “vivos”. E que sua rede de relações se estendia para outros
grupos e instituições que atuavam na região e também por um amplo sistema de
filiações do candomblé denominado de “povo do santo”.
No desenvolvimento do trabalho de campo, acompanhei as atividades do grupo
nos preparativos para o cortejo denominado de Presente de Iemanjá, suas apresentações
durante o Carnaval e as articulações que fizeram para que esse amplo sistema de trocas
possibilitasse a propriedade definitiva e a reforma de sua sede na Rua Camerino. Por
fim, frequentei a casa de candomblé de uma de suas integrantes, Mãe Marlene d‟Oxum,
no Morro do Boogie Woogie, bairro da Ilha do Governador; e conversei com dois
integrantes do grupo entre as décadas de 1960 e 1990 sobre a “origem” e os
“fundamentos” do Gandhi, o ogan Índio o babalorixá Hélio Tozan. E, através desse
percurso, busquei compreender como a cosmologia do candomblé era socialmente
eficaz e conferia aspectos mágicos ao mito da Pequena África.

90
Capítulo 2.
A “boa vizinhança” da parte alta

A VALORIZAÇÃO CULTURAL DOS “MORADORES TRADICIONAIS”

A denominada por seus moradores de “parte alta” do morro era composta pela
Rua Jogo da Bola e a Ladeira João Homem. No primeiro fim de semana de dezembro de
2007, nela foi realizado o Projeto Mauá junto com a celebração da festa para Nossa
Senhora da Conceição, organizada pela capela da Rua Jogo da Bola. Nos três dias do
Projeto Mauá os ateliês de alguns artistas foram abertos; houve quatro visitas gratuitas
pelo morro; a Fortaleza da Conceição e o Observatório do Valongo abriram para
visitação; foram realizadas exposições coletivas de fotografia e artes plásticas na Casa
de Cultura da VOT e no Centro Cultural da Associação de Servidores da Justiça Federal
– SERJUS; e o documentário Morro da Conceição... foi exibido no Observatório.
Na manhã de sábado, acompanhei o grupo de pessoas que se inscreveu para
participar da primeira visita guiada realizada por Marcelo e Antônio, cujo ponto de
encontro era um edifício localizado no início da Avenida Rio Branco. O grupo que se
formou foi composto por cerca de 20 pessoas, entre arquitetos, psicólogos, guias
turísticos, jornalistas e cientistas sociais, e haviam sabido do evento através da
divulgação de notas no jornal O Globo, no Jornal do Brasil e na Revista Veja e de e-
mails enviados por Frazão e Marcelo. Antes de a visita ser iniciada, Marcelo e Antônio

91
narraram suas versões do mito de origem do morro através da “história da cidade”
organizada pelos urbanistas da prefeitura na publicação Morro da Conceição,, que
demarcava a ocupação dos portugueses nos morros da Conceição, de São Bento, de
Santo Antônio e do Castelo.
Depois, conduziram o grupo pela Ladeira João Homem, parando para conversar
com Seu Félix e no Bar do Geraldo. No topo do morro, visitaram a Fortaleza, o Palácio
Episcopal e o mirante voltado para a Igreja de Santa Rita, seguindo para a Rua Jogo da
Bola, onde pararam no Bar do Sérgio e na pracinha. Foram então para o Observatório
do Valongo e, no muro voltado para o Morro da Providência, comentaram sobre o
surgimento do que era considerada a “primeira favela do Rio de Janeiro”. E desceram
para a Pedra do Sal, onde comentaram a presença do samba na região e a existência do
movimento quilombola. A visita se encerrou no adro da Igreja da Prainha, com uma
visita à exposição de fotografias na Casa de Cultura da VOT e a exibição de dois mapas
sobre os aterramentos da orla portuária no início do século XX.
Marcelo e Antônio haviam organizado, assim, um roteiro onde foram visitados
todos os bens do morro preservados pelos órgãos patrimoniais e valorizados seus
conhecimentos e sociabilidade como “moradores” da vizinhança da parte alta. E
também incluídos espaços e patrimônios que eram por alguns moradores negativamente
associados ao “perigo”, às “drogas” ou às moradias “irregulares”, como o Morro da
Providência e o movimento quilombola. Em suas falas, no entanto, tais pessoas, espaços
e grupos foram apresentados de forma positiva, como parte das características do morro
e de uma autenticidade relacionada à “diversidade cultural”, à experiência “popular” e à
“história negra”.
A proposta inicial era que as demais visitas guiadas seguissem esse roteiro. No
entanto, a partir da segunda visita os artistas pediram aos dois que fosse priorizada a
entrada nos ateliês no percurso. Havia seis ateliês localizados na Ladeira João Homem e
dois na Rua Jogo da Bola, que durante os dias do Projeto Mauá foram identificados por
faixas expostas nas fachadas. Os artistas haviam distribuído as obras pelos cômodos de
suas casas, vendendo-as com preços que variavam entre 200 e 5.000 reais. Mas os
objetos que foram mais comprados pelos visitantes tinham preços módicos e remetiam
principalmente à “experiência cultural” de caminhar pelo morro e à procissão de Nossa
Senhora da Conceição, sendo deles um souvenir: camisetas e canecas com a logomarca
do evento, que era uma composição com placas de sinalização de algumas vias do
morro, e caixinhas de fósforo decoradas com a imagem da santa.

92
Na tarde de sábado, as atividades do projeto foram interrompidas para a
passagem da procissão de Nossa Senhora da Conceição. A procissão estava programada
para sair às 16 horas da capela, percorrer o trecho da Rua Jogo da Bola até o Largo da
Santa, o trecho da Ladeira João Homem até o Bar do Geraldo, e retornar ao largo, onde
seria realizada uma missa campal em homenagem à santa. Mas, um pouco antes desse
horário, uma família que morava na Rua Jogo da Bola, na altura do Bar do Beto, tinha
organizado sua mudança de residência e ocupava metade da estreita rua com um
pequeno caminhão de frete onde estavam seus móveis e pertences.
Passando pela rua, ouvi então a dona da mudança reclamar com outros
moradores que os organizadores da procissão tinham falado para ela retirar o caminhão
para que “a santa passasse”, mas que ela tinha respondido para eles “passarem por
cima”. Comentei o incidente com Antônio e ele me explicou que existia na Rua Jogo da
Bola uma convenção criada por “moradores antigos” de que os fretes de mudança só
podiam ser realizados aos sábados. A moradora estava assim aborrecida por já estar
cumprindo com uma convenção sobre o uso do espaço criada pelos mesmos que
organizavam a procissão e exigiam que ela retirasse o caminhão da rua.

Enquanto isso, no interior da capela, flores enfeitavam os bancos, um coral de


jovens afinava seus instrumentos e três andores sustentavam imagens esculpidas em
gesso de Virgem Maria, São Sebastião e Jesus Cristo. Na rua, mulheres se aglomeravam
na porta da capela, alguns homens armavam três mesas de alumínio na calçada e
senhoras distribuíram as letras impressas dos cânticos que seriam entoados e velas
envoltas por copinhos de plástico, para que as chamas não fossem apagadas durante o
percurso. Acomodados em cadeiras de praia, alguns moradores idosos assistiam ao

93
movimento. E, no Bar do Sérgio, localizado quase em frente à capela, visitantes e
moradores conversavam e bebiam cerveja enquanto aguardavam a procissão.
Por volta das 16h30min, a moradora de mudança retirou o caminhão da rua,
desobstruindo o percurso da procissão. As imagens e alguns participantes saíram então
aos poucos de dentro da capela: uma menina vestida de branco e com asas coladas nas
costas; jovens mulheres carregando o andor de Virgem Maria e trajando por cima dos
ombros um tecido azul com uma fita dourada aplicada na borda; jovens homens
carregando os andores de São Sebastião e Jesus
Cristo, trajando nos ombros um tecido vermelho
também com uma fita dourada aplicada na borda.
No momento em que as imagens tomaram a Rua
Jogo da Bola, outros moradores se alinharam nas
calçadas e jogaram pétalas de rosas. As vestimentas
padronizadas sacralizavam as funções dos
moradores que carregavam as imagens e também os
distinguiam dos demais, separando duas formas dela
participar, entre “devotos” e “público”. Da mesma
forma, as pétalas de rosa convertiam a rua em
religioso e investido dos poderes mágicos da capela. E as imagens esculpidas
materializavam o patrimônio católico dos moradores e mediavam suas relações entre o
“céu” e a “terra”.
O cortejo que se formou atrás dessas imagens foi majoritariamente composto por
mulheres e crianças, demonstrando ser o espaço da capela predominantemente
feminino. Alguns visitantes e jornalistas também acompanharam a procissão fazendo
fotos e filmagens, apreciando naquela procissão o que consideraram ser uma
manifestação cultural autêntica dos “moradores do morro”. Ao todo, cerca de sessenta
pessoas tomaram a rua em direção ao Largo da Santa. Mas, quando a procissão dobrou a
curva da muralha da Fortaleza e entrou no largo, houve uma surpresa: o caminhão de
mudança havia sido estacionado ao pé do mastro da imagem de Nossa Senhora da
Conceição, impossibilitando a celebração da missa campal. Em torno do caminhão não
havia qualquer responsável pela mudança que pudesse ser convencido de retirá-lo, e
formou-se então um clima de tensão entre os participantes da procissão.

94
Após a procissão parar por alguns
minutos no Largo da Santa, seus
participantes seguiram para a Ladeira
João Homem. Chegando ao Bar do
Geraldo, encontraram vários homens
reunidos, fazendo churrasco e portando
troféus e medalhas: eles comemoravam o
fim do campeonato de futebol entre
moradores e militares, disputado pela manhã nas quadras do Exército. Alguns dos
homens estavam sem camisa e todos bebiam cerveja, numa imagem de extrema
informalidade que contrastava com a solenidade religiosa. Essa informalidade, no
entanto, não era, como no caso do caminhão de mudanças, uma forma de confrontar os
moradores que celebravam o dia da santa, apenas a explicitação do limite espacial da
ressonância daquela manifestação cultural na parte alta do morro.
Os participantes da procissão retornaram então diretamente para a capela para
celebrarem a missa em seu interior, depositando os três andores em cima das mesas de
alumínio armadas à sua frente. O padre que conduziu a procissão e a missa era o que
comandava a Igreja de Santa Rita, paróquia da qual a capela fazia parte. A missa teve
duas horas de duração e, durante parte dela, o padre pregou contra a devoção a outras
religiões e agradeceu a Deus por não existir nenhuma igreja evangélica no morro.
Referia-se, no entanto, aos espaços construídos da parte alta, já que, na base do morro,
havia duas igrejas evangélicas e espaços dedicados aos cultos aos orixás.
Após a celebração da missa, o Projeto Mauá organizou a apresentação de um
grupo de músicos de choro composto por alunos do Observatório do Valongo na
calçada ao lado do Bar do Sérgio. De grande impacto sonoro por causa do uso de
amplificadores, essa apresentação manteve cerca de cinquenta pessoas, entre visitantes e
moradores, aglomeradas em frente ao bar. Mas, embora Sérgio soubesse do projeto e da
intensificação da circulação de pessoas nesse fim de semana, não fez qualquer pedido
extra de suprimento de cervejas, que acabou rapidamente, fazendo com que o bar
encerrasse suas atividades uma hora antes do usual e os visitantes fossem embora.
Assim, a propriedade familiar do bar ajudava no controle dos usos dos espaços por sua
“vizinhança” em dias de maior movimento de “turistas”.
Durante o domingo, o movimento de visitantes do Projeto Mauá foi menor,
confirmando que o maior atrativo do evento tinha sido mesmo a procissão e a percepção

95
de ser ela uma experiência cultural autêntica. Mas, como atração especial, foi exibido no
Observatório do Valongo o documentário Morro da Conceição..., dirigido por Cristiana
Grumbach 9 . Lançado no Rio de Janeiro em outubro de 2005, o filme valorizava a
ocupação portuguesa do morro, fosse do ponto de vista de sua arquitetura ou das
memórias de seus descendentes. E tinha se tornado um marco das narrativas dos
moradores da parte alta sobre o morro, sendo na época de seu lançamento comercial
projetado na muralha da Fortaleza voltada para o Largo da Santa. Mas o documentário
mobilizava opiniões diversas.
A crítica mais comum que ouvi era de que ele teria sido parcial na representação
dos moradores, entrevistando apenas idosos descendentes diretos de portugueses e que
haviam nascido e morado sempre no morro, excluindo a “mistura” das origens
familiares que era valorizada por muitos moradores. Como havia ouvido em uma roda
de samba organizada no Bar do Geraldo: “português mesmo, aquele que veio de
Portugal, isso não tem mais no morro desde a década de 1970, quando a Revolução dos
Cravos fez com que os portugueses parassem de vir para cá. Aqui já está todo mundo
misturado”. E quem havia me dito a frase era Abílio, morador “nascido e vivido” na
Ladeira João Homem e pertencente a uma família que descendia, em parte, de
portugueses.
Além dos efeitos sociais locais, o filme também produziu uma mediação entre os
espaços e moradores do morro e os da cidade. Como informado pelo site da produtora
da cineasta (www.crisisprodutivas.com) Morro da Conceição... foi lançado em uma das
salas de exibição do Unibanco Arteplex, cinema localizado no bairro de Botafogo, Zona
Sul da cidade, e permaneceu em cartaz por sete semanas. Na semana de lançamento, o
filme recebeu críticas positivas nos jornais O Globo e Jornal do Brasil, na Revista Veja
Rio e em sites especializados em cinema. O filme também foi divulgado através de um
encarte em papel jornal colorido, composto por quatro páginas, que continham breves
resenhas laudatórias elaboradas por especialistas da antropologia, comunicação, da
educação, da psicanálise, do cinema e do urbanismo municipal.
Assistente de direção de alguns filmes de Eduardo Coutinho10, Cristiana definiu
sua filmagem no morro a partir de uma metodologia que o documentarista denominava
de “dispositivo”: um conjunto de procedimentos formais que tendia à escolha de uma

9
Publiquei uma versão ampliada da análise do filme em capítulo do livro Devires Imagéticos: a
etnografia, o outro e suas imagens (Guimarães, 2009a).
10
Cristiana foi assistente de direção de Eduardo Coutinho nos documentários O Fim e o Princípio (2004),
Peões (2002/2003), Edifício Master (2002), Babilônia 2000 (2000) e Santo Forte (1999).

96
locação única, do formato do vídeo e da aparição da equipe de filmagem durante as
entrevistas (Lins, 2004). Mas adotou um procedimento a mais, não utilizado por
Coutinho, que era a delimitação sociocultural dos entrevistados: “os mais velhos, com
idades que chegam a 97 anos, nascidos no morro e filhos de portugueses”, como dizia a
sinopse do filme, transcrita abaixo.

Após 5 anos de visitas ao Morro da Conceição uma equipe de cinema filmou conversas
com apenas 8 dos cerca de 4 mil moradores – os mais velhos, com idades que chegam a 97
anos, nascidos no morro e filhos de portugueses. Esses senhores e senhoras narram histórias
de suas vidas inevitavelmente atravessadas pelas histórias da cidade e do país. A construção
desse imaginário devolve ao Rio de Janeiro um filme que trata da sua memória e do seu
esquecimento.

Embora não tendo sido idealizado ou financiado pela prefeitura, o imaginário


propagado por Morro da Conceição... foi compartilhado com seus urbanistas, e seus
efeitos sociais foram visíveis na sua recepção pelo público especializado, que o
comentou através de criticas jornalísticas e das breves resenhas de seu material de
divulgação. Nos textos desses especialistas, muitas vezes a sutil distinção entre o recorte
arbitrário da realidade produzido pela cineasta e a diversidade sociocultural dos que
habitavam o morro não foi absorvida: o que deveria ser a representação da parte se
tornou a representação do todo, ou seja, em alguns moradores de ascendência
portuguesa foi visto o “povo” e o “patrimônio imaterial” do Morro da Conceição.

Marco da ocupação original do Rio de Janeiro, a partir de 1565, o Morro da Conceição


compunha um quadrilátero com os morros do Castelo, de Santo Antônio e de São Bento,
com construções tipicamente portuguesas. Derrubaram-se os outros morros, espigões
subiram ao redor, mas o povo e o estilo de vida da Conceição mantiveram-se (Marco
Antônio Barbosa, Jornal do Brasil, 28.10.2005).

Este filme é um registro eloquente do caráter notável do Morro da Conceição, expondo seu
valor intangível, sua colocação como patrimônio imaterial. É uma iniciativa que perpetua
sentimentos, relações, amores. Registra lembranças, nostalgia, solidão, alegria. Recupera
sons matinais dos pássaros e a ave-maria vespertina. Apresenta a paisagem em luz e
sombra. Junta tempo e espaço, para compreender a história de um lugar habitado por gente,
não por personagens. E alerta para perdas. E se mesmo assim, com tanto amor, um dia, do
Morro da Conceição restar apenas uma paisagem, animada por novos usos e outros
moradores e usuários, será possível recuperar o patrimônio cultural vendo e ouvindo dona

97
Iria, seu Feijão, seu João, seu Chapéu, dona Duda, dona Alzira... (Nina Rabha, material de
divulgação do filme, 2005).

O Rio de hoje há muito rompeu com o Rio de “Morro da Conceição”. O maior feito de
Grumbach é o de capturar este último antes da inevitável queda, num carinhoso gesto de
arqueologia urbana preventiva (Amir Labaki, site do Festival É Tudo Verdade, 2007).

A escolha por retratar moradores do morro relacionados à ocupação portuguesa e


a presença no material de divulgação do filme de uma resenha de Nina Rabha, uma das
idealizadoras do plano urbanístico Porto do Rio, indicavam, no entanto, que as
afinidades eletivas de Cristiana com o urbanismo municipal não eram exatamente frutos
de um acaso. Em uma matéria publicada no Jornal do Brasil (28.10.2005), a cineasta
narrou que havia sido apresentada aos espaços e moradores do morro no ano de 2000,
através de uma mediação realizada por arquitetos e urbanistas da prefeitura. Convidada
para realizar o documentário Nós, brasileiros e portugueses, registro de um seminário
organizado pelo IPP sobre as experiências de “reabilitação de patrimônios históricos”
no Brasil e em Portugal, foi através de uma sugestão do organizador desse evento que a
cineasta foi entrevistar um arquiteto português no Morro da Conceição, em contato que
a fez perceber o local como a “origem da cidade”.

E ele me disse: “Aqui parece que estou em Lisboa!‟‟. Aquele lugar remetia à origem da
cidade, do país. E ainda mantendo as características originais. Quando se arrasa uma área
como aquela (como aconteceu com o Morro do Castelo), arrasa-se também toda carga
simbólica que aquelas casas e prédios tinham. A cidade foi sendo apagada em nome do
progresso. Isso sempre me incomodou.

Incomodada pela sensação de perda dessa origem da cidade, que atribuía de


forma difusa ao “progresso”, Cristiana decidiu então voltar ao local para documentar o
que considerou estar mais ameaçado: a “carga simbólica” contida no casario do morro.
E, para construir o contraste perceptivo em relação ao espaço urbano “moderno”,
presentificou através das lembranças de oito moradores idosos a chegada de seus
antepassados portugueses ao morro, as festas comunitárias e as práticas religiosas e
recreativas transmitidas aos descendentes, os casamentos, nascimentos e mortes que
marcaram suas vidas familiares, e as transformações físicas e os eventos do morro e da
cidade que vivenciaram.

98
Com imagens panorâmicas e fixas de logradouros do morro, com duração de um
minuto cada, a cineasta delimitou alguns blocos de entrevistas. Os primeiros
logradouros retratados no filme foram a Rua Jogo da Bola e a Ladeira João Homem, que
compunham o que seus moradores denominavam de “parte alta” e o que os urbanistas
da prefeitura haviam denominado no livro Morro da Conceição de “eixo cume morro” e
associado à ocupação portuguesa e espanhola. Em seguida, foram retratados alguns
logradouros que compunham o que os moradores denominavam de “parte baixa” e o
que os urbanistas denominaram de “flanco norte” e associaram à ocupação nordestina: a
Rua Mato Grosso, a Rua do Escorrega, a Rua Eduardo Jansen, o Beco João José e o
Adro de São Francisco. E, assim como no estudo do urbanismo municipal sobre a
“organização comunitária” dos moradores, os demais espaços que eram
administrativamente classificados como pertencentes ao morro foram excluídos da
representação fílmica, reforçando o discurso que os associavam a espaços sociais e
culturais vazios.
Todos os logradouros incluídos foram gravados em horários de pouco
movimento, sugerindo que no morro o tempo cotidiano era mais lento que no resto da
cidade. E a sonoplastia de suas tomadas valorizou o silêncio e o canto dos passarinhos,
transmitindo a ideia de que o morro era “bucólico, pacato, comunitário”, como
comentado na resenha da antropóloga Andréa Moraes Alves publicada no material de
divulgação do filme. Esse morro idílico, no entanto, só pôde ser narrativamente
construído através da exclusão visual, verbal e sonora de alguns espaços e suas
características, como o tráfego de veículos do centro da cidade que subiam algumas das
vias, as fachadas altamente deterioradas de muitas casas, os diversos estilos musicais
escutados em alto volume nas residências, a movimentação das crianças e de seus
familiares na entrada e saída das escolas, os bares festivamente ocupados por jovens e
demais moradores, o comércio de sua base etc. Era a exclusão desses espaços e usos que
reforçava o imaginário de que o morro era um espaço harmonioso e socialmente
homogêneo, sem conflitos ou diferenças socioculturais.
Dentro de sua estrutura dramática, a introdução expôs as doces lembranças
desses idosos sobre a chegada de seus antepassados portugueses ao morro e as festas
coletivas que realizavam. Quase todos os idosos foram entrevistados sozinhos e dentro
de suas casas e os trechos de seus discursos selecionados na edição do filme eram
repletos de melancolia e saudosismo, sugerindo que eles e a cidade sofriam de um
constante processo de perda de suas belezas físicas e de seus laços sociais. No primeiro

99
diálogo do filme, era dito por Dona Iria que, neste tempo passado, moravam ali somente
portugueses e funcionários da Marinha e que, a convivência no morro tinha mudado
muito com a chegada da “gente do Norte”, reforçando o discurso que opunha a
ocupação portuguesa e espanhola a uma ocupação “conjuntural” do morro pelos
“migrantes nordestinos”, como os moradores do morro haviam sido caracterizados pelos
urbanistas da prefeitura.

Cristiana: Todo mundo se conhece aqui, não é Dona Iria?


Dona Iria: Ah se conhece, aqui é uma família, ainda tem muita gente... Mas é pena que já
não tem como era antigamente, agora tá vindo muita gente do Norte para aqui. Mas
antigamente eram só portugueses que comandavam isso aqui. Comandavam não, que
moravam, né? Era uma união que se você visse... As pessoas ficavam na porta conversando
à noite, a gente dançava, a gente fazia roda, cantava as músicas da roda...

O giro dramático era marcado pela quebra da suave nostalgia dos depoimentos
introdutórios, com a percepção de que a velhice era ruim se comparada à juventude. No
desenvolvimento do filme, o tempo passado era então valorizado e retratado como um
tempo harmônico e ideal. E, através das noções de “festas”, “práticas religiosas” e
“ancestrais” abordadas e editadas em bloco pela cineasta, o espectador era conduzido a
perceber naqueles idosos uma identidade compartilhada e que diria respeito a um
“tempo original” do morro. No desfecho do filme, a cineasta resumia sua mensagem:
havia entres esses idosos um estado de solidão e de perda gradual da memória, mas que
eram passíveis de serem revertidos através das narrativas que presentificavam tal
passado mítico.
Em janeiro, um mês depois de encerrado o Projeto Mauá, conversei com dois
artistas que haviam participado do evento para tentar compreender quais eram os pontos
de conexão e de afastamento entre os moradores “antigos” que frequentavam o Bar do
Sergio e a Capela de Nossa Senhora da Conceição e os que se identificavam com eles,
mas deles se percebiam diferenciados. Primeiro, fui à casa de Frazão na Ladeira João
Homem, que me recebeu na sala do primeiro andar onde estava instalado seu ateliê de
gravuras. Ele tinha nascido em Copacabana e morado sempre em edifícios nesse bairro
até decidir procurar uma casa onde pudesse expandir seu ateliê e, como estava com
pouco dinheiro, começou a pesquisar em bairros fora da Zona Sul.
Sua primeira opção foi Santa Teresa, bairro da área central da cidade onde
moravam amigos seus que também eram artistas e organizavam o evento Santa Teresa

100
de Portas Abertas, precursor carioca na divulgação de abertura de ateliês para visitação.
Mas Frazão achou os preços das casas do bairro também muito altos e desistiu. Sua
segunda opção foi o Morro da Conceição, que tinha conhecido através do escultor
Claudio Aun, morador da Ladeira João Homem. Auxiliado assim por sua rede de
relações formada através das artes plásticas, Frazão soube da venda da casa Villa Olivia,
que já era utilizada de forma mista como residência e ateliê. Como a propriedade estava
com toda a documentação regularizada, ele conseguiu comprá-la em 1998 apresentando
uma carta de crédito de financiamento. E, dois anos depois, começou a oferecer
workshops de gravura.
Em 2001, organizou a primeira edição do Projeto Mauá, que se tornou bienal. A
proposta inicial era que o evento fosse semelhante ao que ocorria em Santa Teresa,
quando artistas residentes ou com ateliês localizados no bairro expunham e vendiam
suas peças. No entanto, Frazão contou que em 2003 o projeto havia passado por uma
discussão conceitua: os artistas Paulo Dallier e Claudio Aun propuseram incluir
expositores que avaliaram atrair um público maior, mas que não eram moradores nem
tinham ateliês no morro. Frazão se posicionou contrário a esse modelo de evento,
chamando-o de “galeria de arte”, e foi o único artista do morro que não abriu seu ateliê.
Segundo Frazão, nesse ano o projeto havia sido um fracasso e, depois, todos
concordaram em fazer o evento apenas com os “artistas do morro”.
Opondo essas duas categorias, “galeria de arte” e “artistas do morro”, Frazão
buscava ressaltar a arbitrariedade que percebia na exposição de obras de artistas não
vinculados socialmente ao morro, afirmando que tais obras poderiam estar expostas em
qualquer outro lugar. E, assim, pensava o morro como um espaço a ser valorizado por
sua “autenticidade cultural”, ao querer remeter os visitantes do projeto à apreciação do
que nele seria único: a produção artística de um “morador”, como se sua localização no
morro conferisse um aspecto mágico aos artefatos produzidos. E, em seu sistema de
autenticidade cultural, a manifestação que ele e a maior parte dos integrantes do projeto
consideraram mais legítima era a “festa da padroeira”.
Ao falar sobre o aumento do fluxo de visitantes no morro, Frazão disse que não
desejava que o local fosse “invadido por curiosos” e ficasse “protegido da violência e
dos marginais da cidade”, apesar de considerar o próprio Projeto Mauá um atrativo
turístico capaz de incentivar também a sua especulação imobiliária no morro. Mas, em
sua opinião, o projeto era mais cuidadoso do que outras iniciativas de tornar o morro um
espaço valorizado culturalmente, dando como exemplo negativo os guias que estavam

101
cobrando para levar “turistas” para conhecer o morro: suas visitas eram feitas “com
pressa” e tratava pessoas e fachadas “como um zoológico”, sem pedir autorização aos
moradores para fazer fotografias ou circular nas vias. Em seu uso do termo “turista”, ele
criticava assim os visitantes que não estabeleciam vínculos com os “moradores” do
morro, percebendo seus espaços de forma liminar entre o público e o privado, e
articulava um medo difuso da figura do “de fora”, associando-a a criminalidade, ao
perigo e ao vício.
E, como havia percebido durante a preparação e realização do Projeto Mauá que
existia uma resistência da maioria de seus integrantes em fazer qualquer referência ao
“movimento quilombola” e ao patrimônio negro que portavam, perguntei a opinião de
Frazão sobre a reivindicação de transformar parte da base do morro em “território
étnico”. Ele me respondeu que os moradores e espaços relacionados ao movimento
quilombola não foram incluídos no projeto por causa do apoio que os artistas estavam
recebendo da VOT e que, além disso, achava que a área reivindicada nunca havia sido
um “quilombo” e que a proposta do movimento era “racista”. Em sua opinião, os
despejos faziam parte das relações entre “inquilinos” e “proprietários”: sendo a VOT a
proprietária dos imóveis, ela podia dispor deles da maneira que desejasse.
Frazão articulava assim algumas formas específicas de estruturar os espaços do
morro e também de operar com o sistema de autenticidade sobre os que nele habitavam.
Sua percepção do que era um “quilombo” era informada por uma ideia de passado que
utilizava o termo para se referir ao agrupamento de escravos fugidos na época em que o
país era colônia de Portugal. Ele não conhecia, ou não reconhecia, a interpretação dada
ao termo pela Constituição Federal de 1988, que possibilitava que grupos que se
entendessem “afrodescendentes” pleiteassem perante o Estado seus reconhecimentos
como “comunidades remanescentes de quilombo”.
A percepção de que o movimento era “racista” era, assim, devida a Frazão não
estruturar os espaços do morro através das oposições “negros” e “brancos”, “pobres” e
“ricos” e “povo do santo” e “católicos”, como era a forma dos integrantes do
movimento quilombola. E sua compreensão da categoria, além de não ser mediada por
uma concepção tida como histórica, e não jurídica e política, passava também por sua
experiência cotidiana como morador da parte alta do morro que se identificava com os
que dela faziam parte e pela estruturação de que seus espaços através de oposições
referentes às condições de moradia, entre “regular” e “irregular” e “proprietário” e
“inquilino”.

102
Mas as práticas culturais dos moradores do morro reconhecidas como
“autênticas” por Frazão não eram compartilhadas por todos os artistas que haviam
participado do Projeto Mauá. A pintora Helenice Dornelles, moradora de uma casa no
Largo da Santa, contou sobre sua frustração com o novo local de moradia, que ocupava
havia apenas um ano. Helenice tinha nascido em Santa Maria, no estado do Rio Grande
do Sul, e morado durante doze anos em Nova Iorque, onde trabalhou confeccionando
bolsas e pintando quadros. Ao retornar ao Brasil, ela e seu marido construíram uma casa
na Praia da Ferradura, município de Búzios, mas se separaram dois anos depois. Com as
expectativas de ter um espaço para trabalhar, de se inserir em um movimento de ateliês
e de começar novas relações de amizade, Helenice alugou a casa no morro, que havia
conhecido através de seu amigo Frazão.
Mas alguns fatores a desagradaram, como achar a Zona Portuária muito
“isolada” do resto da cidade e as ruas do entorno “sujas” e “abandonadas”. As relações
de vizinhança também haviam sido determinantes para seu descontentamento: Helenice
se queixou de que não tinha conseguido fazer amigos no morro, porque os moradores só
eram solidários para beber cerveja e a “vida cultural” era “desanimada”. Em tom de
ironia, disse que tinha muita gente que tinha ido morar no morro por gostar da ideia de
estar inserido em uma “comunidade” e por achar “romântico” ficar conversando com
“moradores antigos” como “Seu” René. Mas seu desejo era se mudar logo para
Copacabana e voltar para “o meio do agito”, o que fez um mês depois de nossa
conversa. Helenice invertia assim os valores que eram divulgados pelo Projeto Mauá,
classificando de forma negativa como “isolamento” e “desanimação” o que muitos
consideravam sinônimo de tranquilidade, e como “romantismo” as relações de
vizinhança e a sociabilidade que eram percebidas como genuínas e autênticas.

O MASCULINO E O FEMININO NO BAR DO SÉRGIO E NA CAPELA

Em novembro de 2007, logo que aluguei um quarto no apartamento de Antônio


me apresentei a Sérgio, dono do bar que compunha juntamente com a capela os espaços
cotidianos de sociabilidade da Rua Jogo da Bola. Era uma tarde de 6ª feira e o
estabelecimento estava com pouco movimento, tinha apenas um casal com uma criança
assistindo televisão e uma mulher no balcão. Expliquei a Sérgio que era pesquisadora e
que gostaria de saber algumas informações sobre o bar e combinamos de conversar na
3ª feira às 09 horas, horário que ele escolheu por ser depois da entrega do pão, quando o

103
movimento de fregueses diminuía, e antes das 11 horas, quando sua mãe o substituía
para que ele levasse a filha à escola.
Voltei na data acertada e, embora Sérgio não tenha se recusado a conversar,
pediu para que eu não me alongasse nas perguntas. Ele morava na Rua Jogo da Bola e
abria o bar durante a semana das 06h30min às 23 horas e, nos fins de semana, até às 02
horas. Além de bebidas, servia salgados durante o dia e, no período da noite, caldo
verde, sanduíches, batata frita e porções de queijo. Eventualmente nos fins de semana,
sua mãe, “Dona” Regina, preparava um prato para almoço, como lasanha, baião de dois
e estrogonofe. O bar tinha sido alugado em 1968 por seu pai, “Seu” Odílio, que era de
origem espanhola. Sérgio havia nascido dois anos depois, começando a ajudar o pai no
bar a partir dos 14 anos de idade. Em seguida, havia trabalhado em uma agência de
corretagem de contêineres de navios no porto e também na RIOTUR. Quando o pai
morreu, em 1997, Sérgio assumiu o bar com a ajuda da mãe e da esposa, mantendo
assim o negócio em propriedade de sua família.
Minha conversa com ele se desenvolveu como se fosse uma reportagem
jornalística: eu fazia uma pergunta e ele respondia de forma breve, sem entrar em
detalhes. Dois comentários que fez, no entanto, abordaram suas relações de vizinhança.
Disse que, havia pouco tempo, uma moradora tinha “desvirtuado” e estava começando a
“estragar a vizinhança” com a organização de bailes funks no Largo da Santa, mas que
“graças a Deus” ela já tinha ido embora. E que era costume de sua família apoiar,
através da oferta de salgados ou dinheiro, duas festividades: a procissão no dia de Nossa
Senhora da Conceição e a festa junina da Rua Jogo da Bola, ambas organizadas por
“Seu” Luizinho e “Dona” Glorinha. Sérgio demarcava assim os limites físicos de sua
vizinhança como sendo a Rua Jogo da Bola e duas formas de interação que considerava
serem negativa e positiva: os bailes funks, correntemente associados ao imaginário das
“favelas”; e o espaço católico da capela e as festas organizadas por seus mantenedores.
Poucos dias depois, presenciei um evento atípico no Bar do Sérgio: em uma
noite de novembro, Marcos Portella, professor de um curso do Ateliê da Imagem, escola
de fotografia situada na Urca, Zona Sul da cidade, organizou no espaço uma projeção de
fotografias realizadas por seus alunos em diferentes vias do morro. Soube desta
projeção na véspera e não através de um dos moradores, mas de amigos fotógrafos, Ana
Luiza Abreu e Fabrício Cavalcanti, que me enviaram um e-mail divulgando o evento.
Era, portanto, uma festividade organizada por pessoas que não moravam no morro e

104
divulgada dentro de um circuito que passava pelos vínculos sociais dos fotógrafos
expositores.
Cheguei ao bar na companhia desse casal de fotógrafos e cerca de quarenta
pessoas assistiam às fotografias que eram continuamente projetadas em um telão
pendurado em sua parede interna. Sérgio, para colaborar com a projeção, havia deixado
apagadas as luzes do bar. Fui apresentada pelo casal a Portella, que me explicou que
fazia visitas fotográficas no morro havia quatro anos e sempre parava no Bar do Sérgio
para tomar uma cerveja com seus alunos. Por isso havia tido a idéia de fazer ali a
exposição, denominada Conceição, eu me lembro muito bem em alusão a uma música
interpretada pelo cantor Cauby Peixoto. Portella também me disse que Sérgio tinha
gostado da proposta do evento, dando a entender que havia estabelecido uma relação
mais constante com o dono do bar, o que significava, portanto, que não eram quaisquer
“de fora” que o desagradavam: havia mediações possíveis de serem realizadas, como a
solicitação para o uso do espaço do bar, mesmo que informal, e ser dele um
frequentador, ainda que ocasional.
Após conversar com Portella, me juntei à roda formada por alguns de seus
frequentadores mais assíduos, que assistiam à exposição de pé e do lado de fora do bar.
E ouvi Marcelo e Martin dizerem, em tom jocoso, que o espaço havia se tornado o
“Baixo Morro da Conceição”, numa referência ao Baixo Gávea, ponto de encontro de
jovens da Zona Sul. O sentido de ironia do comentário estava no fato de que ambos, ao
se mudarem para o morro, compartilhavam a expectativa de saírem do que
consideravam ser o “estilo de vida da Zona Sul”. E de estarem reconhecendo, naquele
evento, visitantes que os remetiam a esse estilo, embora nenhum dos dois tenha
explicitado quais características exatamente os faziam ter a sensação de alteração do
cotidiano do bar.
Mas, ao longo da conversa, Marcelo me falou de um acontecimento que me
ajudou a compreender melhor as distinções que eles consideravam haver entre os que
eram “de dentro” e “de fora” do que entendiam ser sua vizinhança, através da categoria
“turista”. Ele contou que, durante a semana, havia oferecido junto com “Seu” René e
Martin uma palestra sobre “patrimônio histórico” para alunos da faculdade de turismo
da Universidade Veiga de Almeida, onde Martin lecionava. Durante a palestra, “Seu”
René havia dito em tom de brincadeira que ambos eram “turistas permanentes” do
morro. E percebi que o contentamento causado por essa classificação adveio da
demarcação que eles não eram “de dentro”, por não serem “antigos”, mas eram

105
considerados parte da vizinhança. Esse acontecimento confirmava ainda ser “Seu” René
um dos detentores de autoridade moral da Rua Jogo da Bola, “morador antigo” cuja fala
era considerada um testemunho positivo do estilo de vida do morro e que também podia
alterar a reputação de um morador “novo” entre a vizinhança.
E a gradação de percepções de pertencimento - entre ser um “de dentro”, um
“turista permanente”, um “turista” e um “de fora” - parecia ser o que os dois desejavam
ressaltar com os comentários jocosos que faziam, diferenciando suas próprias formas de
inserção no morro como “moradores”, categoria que associavam a uma experiência
autêntica de vizinhança. Assim, ser um “de dentro” era diferente de ser um “turista”
que, embora apreciasse o morro e tivesse dele uma imagem positiva, buscava apenas
uma fruição estética e não estabelecia vínculos sociais duradouros com seus habitantes.
A categoria “de fora” era a mais desvalorizada e não designava apenas quem não
morava no morro: ela se referia tanto a quem tinha do morro uma imagem negativa, que
o associava à favela, ao perigo e ao vício; quanto a moradores que eram classificados
como portadores dessas características. Ouvi duas narrativas sobre os “de fora” ainda
nesta noite quando Antônio, também opondo as ideias de “morro” e “Zona Sul”, contou
de forma parabólica a vez em que uma amiga da escola de sua filha, que morava com a
mãe no Jardim Botânico, tinha ido brincar com ela na pracinha da Rua Jogo da Bola.
Segundo ele, era comum que as crianças da vizinhança brincassem sem a supervisão
direta de um adulto, que costumavam ficar reunidos a poucos metros no Bar do Sérgio.
Mas, depois de um tempo, a menina havia chegado chorando ao bar e dito a Antônio
que estava com medo porque nunca tinha ficado sem um adulto por perto. Ele então
concluiu a história comentando como as crianças que cresciam em “apartamentos da
Zona Sul” criavam inseguranças tolas.
Essa sua fala articulava assim mais uma das qualidades que era correntemente
associada à Rua Jogo da Bola, que era sua “segurança”. Mas Antônio contou em
seguida outra história que se referia à percepção negativa que muitas pessoas “de fora”
tinham sobre os que moravam no morro: quando ele foi abrir um crediário nas Casas
Bahia e colocou o endereço de sua casa, o vendedor comentou “Esse é malandro
mesmo! Mora no Centro e numa rua chamada Jogo da Bola!”. Sua história explicitava
assim as tensões e ambiguidades que haviam na classificação do morro como um espaço
de “autenticidade cultural”: ela podia se referir tanto a noção de segurança, como às de
perigo e vício, mesmo que relacionada comicamente ao imaginário do “malandro”.

106
E, nesse ambiente ao mesmo tempo descontraído e de demarcações de
pertencimento de vizinhança, conversei com “Seu” René, que também estava em pé do
lado de fora do bar observando o movimento gerado pela exposição fotográfica.
Morador da Rua Jogo da Bola, “Seu” René era aposentado da Marinha, onde havia
trabalhado como analista de sistemas. Ele costumava jogar no bar o Jogo do Aliado,
cujo nome tinha sido uma alteração do original, que era Jogo do Oleado, termo que
designava a lona impermeável usada em navios. Ao me mostrar um tabuleiro que estava
guardado no bar e que ele mesmo havia confeccionado, me explicou que era um “jogo
de embarcados” e que não conhecia outras pessoas que o jogassem fora do morro ou da
Marinha. E, ao dizer brincando que Sérgio não “colocava no salão” aquele tabuleiro
porque tinha “ciúmes” da peça, afirmou que ia fazer outro para deixar no bar, já que o
tabuleiro que permaneceu em uso já estava bem gasto.
“Seu” René ressaltava assim o que, para ele, caracterizava a particularidade da
relação dos “moradores antigos” do morro com o Bar do Sérgio, que era a detenção do
conhecimento sobre o Jogo do Aliado e a participação em seus torneios. E me indicou
que tais moradores possuíam uma importante conexão com a proximidade do morro
com a orla da Baía da Guanabara e as instalações da Marinha, localizadas próximas ao
Píer Mauá; conexão essa que extrapolava seus aspectos profissionais e se constituía em
uma das formas de construção de suas subjetividades. Assim, o “ciúme” que narrou em
torno do tabuleiro do jogo não era devido apenas ao fato de ele ser considerado único:
mas principalmente por ser um objeto mediador de suas relações sociais, que desejavam
que ficassem conservadas e não expostas “no salão”, movimentando uma forma de
colocar tanto o objeto quanto a “vizinhança” que o utilizava fora de circulação.
No período de cinco meses em realizei o trabalho de campo na parte alta do
morro, fui ainda cerca de duas dezenas de vezes ao Bar do Sérgio, fosse para conversar,
beber cerveja, almoçar ou ver um jogo de futebol no fim de semana. Normalmente ia
durante alguma festividade ou acompanhada de um ou mais moradores nos períodos em
que o bar estava mais cheio, que eram durante a semana no início da noite, e nos fins de
semana, à tarde. Além das vezes em que entrei no bar. Observei então que a maioria dos
moradores que o frequentavam diariamente eram homens com idade superior a 40 anos
e que as mulheres que faziam parte das famílias desses frequentadores costumavam ir
ao bar somente quando acompanhadas de seus maridos, pais ou filhos e, principalmente,
nas festas e nos almoços de fim de semana.

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Muitas das narrativas que escutei dos frequentadores do bar sobre os espaços do
morro e sua vizinhança indicavam o medo de uma possível contaminação social e
moral, oposta à sensação de “segurança” que buscavam construir. Esse medo era
entendido como uma ameaça externa ao morro e canalizada pela figura distante do
“bandido” e também pela figura dos “favelados” da Zona Portuária, especialmente do
Morro da Providência, cuja proximidade física fazia com que fossem constantemente
citados em narrativas de distinção. E esses medos expressos pelos moradores que
frequentavam o bar visavam definir regras de conduta moral para os usos dos próprios
espaços da parte alta e, principalmente, da Rua Jogo da Bola.
Entre as narrativas de “perigo” e “vício” que ouvi, a mais corrente era sobre os
usos de alguns espaços do morro para o consumo de drogas por jovens moradores e as
tentativas frustradas de implantação de um tráfico de drogas com o apoio do Comando
Vermelho, grupo que atuava no Morro da Providência. Havia também um boato de que
os traficantes do Morro da Providência estavam querendo “invadir” terrenos baldios da
Ladeira João Homem para estabelecer neles pontos de consumo de drogas e que alguns
desses terrenos estavam sendo utilizados por “mendigos” da região, outro tipo de
habitante considerado indesejado.
As “casas vazias” e “terrenos baldios” da parte alta, por causa desses usos
classificados como “criminosos” e “irregulares”, eram espaços liminares e motivos
constante de preocupação e de acusações morais. Um dos frequentadores do Bar do
Sérgio me disse que várias casas ao lado do Bar do Geraldo haviam sido ocupadas
irregularmente por “paraíbas”, unindo assim, na mesma narrativa, condições de moradia
e uma categoria acusatória sobre a procedência dos moradores considerados
indesejados. E outro frequentador me informou que havia um sobrado na Rua Jogo da
Bola, na altura do Bar do Beto, que estava sendo utilizado como “casa de cômodos” e
gerando constantemente brigas e discussões.
Escutei também falas que indicavam haver no trecho da Rua Jogo da Bola
próximo ao Bar do Sérgio e à capela um grande controle social exercido por seus
moradores. Um deles me contou que presenciou a vez em que um rapaz ia passando em
frente ao bar fumando maconha e um frequentador repreendeu alto: “Aqui é a Jogo da
Bola, vai fumar baseado em casa!”. Este mesmo controle também havia ocorrido em
relação à inibição da construção de um “barraco” na pedreira acessada pela Travessa
Coronel Julião, que ligava a Rua Jogo da Bola à Rua Senador Pompeu. Alguns
frequentadores do bar teriam se organizado para inibir a instalação desses moradores,

108
avisando que, se continuassem a construção, iriam derrubar a casa, o que resultou na sua
interrupção.
A “prostituição” era outra categoria acusatória igualmente utilizada no
estabelecimento de um rígido padrão moral de conduta, que separava os espaços da
parte alta do morro entre “femininos” e “masculinos”. O código moral tácito era de que
os bares eram um espaço predominantemente masculino, sendo que um morador que já
tinha ouvido outro dizer explicitamente que considerava ser “prostituta” a mulher que
frequentava bar. Outro morador me narrou também que um dia estava vendo um menino
brincar na pracinha da Rua Jogo da Bola e, como ele estava fazendo muita bagunça, sua
avó o repreendeu dizendo que parecia que a mãe dele “morava na Praça Mauá”, numa
ofensa que aludia às atividades de prostituição do local.
Durante os meses em que circulei pela Rua Jogo da Bola, observei ainda que
havia uma estreita relação de vizinhança estabelecida entre os frequentadores do Bar do
Sérgio e da Capela de Nossa Senhora da Conceição. E que, através dessa separação e
relação, eram articuladas duas formas opostas de estruturar esses espaços, que se
unificavam na “festa da padroeira”: a que os dividia entre “masculino” e “feminino”. A
divisão dos espaços por gênero era, assim, como elaborado pelo antropólogo Marcel
Granet (1997), um princípio de organização e inteligibilidade regido pelas ideias de
complementaridade e alternância que permitia a manutenção de uma noção de
totalidade social a esses moradores.
Além dessa divisão de gênero, as condições de moradia “regular” e “irregular”
era outra oposição articulada entre os frequentadores desses espaços da Rua Jogo da
Bola. Assim, as casas ocupadas por muitos núcleos familiares, sem vínculo de
propriedade ou não mediadas por contrato de inquilinato; os terrenos sem espaço
construído e com crescimento descontrolado da vegetação; e as casas não regularizadas
em órgãos municipais e construídas com materiais de pouca durabilidade eram postos
na mesma categoria acusatória de “favelização”. E tanto as divisões de gênero quanto a
de condições de moradia se baseavam em um padrão de moralidade que opunha a
“virtude” ao “vício”, que aparecia através nas categorias “de fora”, “favelado”,
“traficante” e “prostituta”, contra o imaginário do que deveria ser o bom morador do
morro.

OS “POLÍTICOS” E SUAS MEDIAÇÕES ENTRE DIFERENTES ESPAÇOS

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Ao acompanhar a organização de duas outras festividades coletivas na parte
alta, as diferenças e multiplicidades de formas dos moradores estruturarem seus espaços
ficaram mais explícitas. A primeira que acompanhei foi a retomada da Banda da
Conceição organizada pelo Marcos “Frigideira”, morador da Ladeira João Homem. Em
uma conversar no Bar do Geraldo, Frigideira me contou que, quando nasceu, seu pai
morava no morro e sua mãe em Caxias, na Baixada Fluminense. Aos cinco anos de
idade, ela ficou doente e o deixou aos cuidados do pai, que era descendente de
portugueses. De suas experiências como jovem no morro, Frigideira se lembrava com
afeto das participações nas festas juninas e de São Cosme e Damião, nos campeonatos
de futebol, na Banda da Conceição e nas boates da Rua Sacadura Cabral. E, quando
adulto, havia trabalhado durante dez anos em uma seguradora e outros dez anos como
conferente no porto. Considerava que esse trabalho portuário tinha dado “esperteza” a
ele, porque o havia feito conseguir circular por qualquer lugar e cumprimentar “todo
mundo”, “fazendo de conta” que não via nada nem sabia de nada, se referindo
implicitamente às práticas classificadas como ilícitas e clandestinas.
Ao me contar que seu grande sonho era ser jogador de futebol, Frigideira me
explicou que, “antigamente”, os campeonatos de futebol no morro eram realizados com
o enfrentamento de dois times: o da Conceição, onde jogavam os moradores da Rua
Jogo da Bola; e o da União, onde jogavam os da Ladeira João Homem. E narrou que,
nessa época, a “tradição espanhola e portuguesa” era muito mais forte no morro e os
moradores da Rua Jogo da Bola eram “fechados” e “filhinhos de papai”. Como
exemplo desse fechamento, disse que quando Odílio, pai de Sérgio, comandava o bar,
não se podia nem jogar “porrinha”, que era a denominação comum de um jogo de
palitos organizado por rodadas de apostas e onde podiam participar vários jogadores. E,
havia poucos anos, os moradores dessa rua não gostavam de samba nem frequentavam
os ensaios do bloco de carnaval Escravos da Mauá. Mas, com o passar do tempo,
muitos desses moradores se mudaram e o “pessoal de lá” ficou mais “aberto”, acabando
com a divisão que existia entre as duas vias da parte alta do morro.
Seu projeto de reorganização da Banda da Conceição tinha como principal
referência, portanto, a vizinhança da Ladeira João Homem. E, ao narrar suas
características, Frigideira a colocava em oposição à vizinhança dos moradores da Rua
Jogo da Bola, se referindo especialmente ao Bar do Sérgio, e articulava as noções de
“aberto” e “fechado”, “popular” e “elite”. Assim, apesar de muitos dos moradores das
duas vias da parte alta possuírem ascendência portuguesa e espanhola e se entenderem

110
como “tradicionais”, nem todos articulavam um discurso de vizinhança que distinguia
valorativamente os “de dentro” e os “de fora” do morro: havia os que se posicionavam
favoráveis à “mistura”, ou à “união”, como era denominado o time de futebol.
E essa mistura era movimentada por Frigideira nas festas e atividades coletivas
que organizava: nelas, moradores de diferentes espaços do morro e do entorno
participavam e não havia um conhecimento restrito e nem uma participação distintiva,
como o Jogo do Aliado e a procissão de Nossa Senhora da Conceição. Nas festas
juninas, campeonatos de futebol e banda de carnaval qualquer pessoa que quisesse
podia participar e era mesmo desejado que isso acontecesse; e assim estava sendo feito
na rearticulação da Banda da Conceição, que havia sido extinta na década de 1970 e que
Frigideira pretendia “botar na rua” no carnaval de 2008.
Para tanto, ele havia conseguido apoios de diversas pessoas e instituições. Para
atuarem como músicos da banda, Frigideira tinha feito um acordo com bateristas da
escola de samba Unidos da Tijuca que ensaiavam na Rua Venezuela, que aceitaram
tocar em troca de cerveja. O aluguel de um carro de som ele tinha conseguido com
Vinicius, presidente do Sindicato dos Bancários que ia se candidatar a vereador nas
eleições de outubro. As “Frigiletes”, que era como ele e outros moradores do morro
chamavam duas moradoras do Valongo que costumavam ajudá-lo na organização de
festas, tinham viabilizado a confecção das camisas do bloco recolhendo contribuições
entre comerciantes da região. E com Frazão ele tinha combinado de tratar digitalmente
algumas fotos familiares realizadas durante o desfile da banda no carnaval de 1975, para
que fossem divulgadas como “imagens antigas” do morro. E também pretendia convidar
Guenther para fazer as fotos do desfile daquele ano, sugerindo que as vendesse.
Frigideira planejava, ainda, angariar mais recursos para a banda com a organização de
ensaios no Largo da Prainha e com de bingos e feijoadas no centro cultural da SERJUS.
E era essa circulação por diferentes espaços do morro e da cidade a que
Frigideira se referia e valorizava através da categoria “esperteza”, por ele percebida
como positiva por permitir que falasse “com todo mundo”, e não sendo associada,
portanto, às ideias negativas de perigo, vício ou ilegalidade. Assim, Frigideira havia
conseguido estabelecer relações sociais com o circuito de sambistas que atuavam no
entorno do morro; com as moradoras de um espaço estigmatizado por muitos da parte
alta, que era o Valongo; e com os que valorizavam o “patrimônio cultural” do morro
associado aos moradores da parte alta, como era o caso de Frazão e Guenther e suas

111
atuações como divulgadores de imagens mediadoras do tempo passado e das
manifestações entendidas como “autênticas”.
Mas essa capacidade de circulação de Frigideira muitas vezes era vista com
parcimônia, principalmente porque ela incluía também “políticos”, outra categoria
correntemente utilizada por moradores da parte alta de forma acusatória e que se referia
tanto aos especialistas de órgãos públicos, quanto aos candidatos a cargos legislativos e
executivos que buscavam apoio eleitoral. Mas essa categoria também podia se referir a
pessoas como Frigideira, que circulavam e mediavam diferentes espaços.
Ao me explicar como havia sido o convite para a participação do candidato a
vereador na retomada da banda, Frigideira disse que Vinicius tinha patrocinado os
troféus do campeonato de futebol de 2007 e que, por isso, tinha decidido “dar uma
força” a ele nas eleições. E contou que, anos atrás, havia participado da Associação de
Moradores do Morro da Conceição, mas que, com o tempo, a entidade tinha se
desarticulado. Mas pediu para não nos prolongássemos nesse assunto, me explicando
que as Frigiletes, que estavam no bar ao nosso lado, haviam feito parte da associação e
eram amigas da sua ex-mulher, a antiga presidente. Disse que as Frigiletes possuíam
“interesses políticos” na rearticulação da banda, mas que ele estava controlando a
participação delas para não deixar que ninguém “pegasse carona” em seu projeto.
Só compreendi o que Frigideira quis dizer com “interesses políticos” quando
conversei com Luís, que também estava participando da organização da Banda da
Conceição. Nascido no município de Campo Grande e militante do PT, ele havia se
mudado para a cidade do Rio de Janeiro em 1985, convidado para trabalhar no
Sindicato dos Portuários. Ao se separar da esposa, em 2000, conheceu através de um
amigo do porto a parte alta do morro e alugou a casa em que morava na Rua Jogo da
Bola. Mas Luís em contou que tinha se decepcionado com os “políticos” e considerava
que o modelo das associações de moradores estava gasto por causa do crescente
envolvimento dos partidos, explicando que a antiga associação dos moradores do morro
tinha sido bastante atuante durante um tempo, mas que a presidente usava a entidade
para obter “benefícios pessoais”. E, como exemplo desse uso, contou que muitas vezes
equipes de cinema ou de comerciais de televisão iam gravar no morro e os produtores
procuravam a associação para autorizar a utilização de locações públicas. Mas que o
dinheiro pago nunca era revertido para “fins sociais”, era repartido entre os integrantes
da associação, qualificando assim o tipo de “interesse político” a que se referia
Frigideira como a obtenção de vantagens individuais através da representação coletiva.

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Filho de Abílio e primo de Frigideira, Gustavo também se referiu, durante uma
conversa no Bar do Sérgio, a uma ação da extinta associação de moradores que tinha
reprovado e que possibilitava um dimensionamento da rejeição que a figura do
“político” possuía entre os moradores da parte alta. Disse que a Praça Leandro Martins,
a que todos os moradores da Rua Jogo da Bola denominavam apenas de “pracinha”,
tinha sido reformada através de uma mediação de seus integrantes. E havia sido assim
denominada para homenagear um falecido morador do morro que, segundo ele, “não era
importante”: mas, como sua filha tinha um “contato político” com a prefeitura, ela havia
conseguido impor o nome.
Também ouvi de outros moradores um “boato” de que essa antiga associação
tinha uma ligação com o tráfico do Morro da Providência e estaria ajudando a implantá-
lo no Morro da Conceição, fala anônima que era mais uma forma de controle dos
espaços do morro, mas que, diferencialmente de outras formas, unia as ideias do vício e
do perigo a essa outra figura indesejada que era a dos “políticos”. E por causa dessa
forma negativa de perceber a atuação dos “políticos” no morro, Luís, Marcelo e Frazão,
que estavam participando das reuniões de retomada da Banda da Conceição no final de
2007, desistiram de sua organização ao saberem que Frigideira queria receber o
patrocínio do candidato a vereador e colocar o nome dele na camiseta da banda. A
banda, no entanto, foi organizada e voltou a ser mais uma das festividades associada ao
passado carnavalesco dos moradores da Ladeira João Homem, se apresentando em
outras atividades locais que não apenas o carnaval.
O assunto da participação de “políticos” era, portanto, constante entre a
vizinhança de moradores da parte alta do morro e observei mais um evento onde sua
figura foi posta em movimento para estruturar as oposições de seus espaços. Ainda em
dezembro, durante a abertura da exposição fotográfica do Projeto Mauá na Casa de
Cultura da VOT, Frazão havia me apresentado ao professor de história da arte Rafael
Cardoso, morador de um sobrado na Rua Jogo da Bola. Ele havia se tornado assunto
entre os artistas plásticos do morro por ter ganhado um apoio financeiro do IPHAN de
100 mil reais ao ser selecionado no edital público Projeto Arte e Patrimônio com a
proposta de realização, durante o segundo final de semana de abril, de “intervenções de
arte contemporânea” no morro. Seu projeto havia sido encaminhado pela galeria de arte
A Gentil Carioca, localizada na Praça Tiradentes, e tinha sido selecionado junto com
mais outros nove distribuídos pelo país.

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O projeto previa um número limitado de trabalhos a serem expostos e uma
curadoria, não estando assim todos os “artistas do morro” automaticamente aceitos, o
que suspendia o sistema de autenticidade entre moradia e artefato cultural que os
integrantes do Projeto Mauá articulavam. Na proposta de Rafael, foi idealizada a
realização de dezoito intervenções nos espaços do morro, divididas por três categorias
de produtores: seis “artistas novos”, seis “artistas consagrados” e outros seis “artistas do
morro”. Essa forma de classificação estava, assim, voltada principalmente para as
formas de estruturação do próprio circuito das artes plásticas ao qual Rafael pertencia;
sendo que a categoria “artistas do morro” era uma mediação entre esse circuito de artes
plásticas e a noção de patrimônio do IPHAN, que articulava valores associados às ideias
de “comunidade” e “popular” desde a inflexão de suas práticas políticas na virada da
década de 1980.
No mês de março soube através da lista de e-mails do Projeto Mauá que Rafael
realizaria uma reunião com “moradores” no salão da capela da Rua Jogo da Bola, com o
objetivo de expor as concepções do evento e sua programação oficial e também de
conseguir adesões para sua programação extraoficial. Todos os participantes da reunião
se distribuíram pelos bancos do salão, formando um círculo irregular. Além de mim,
tinham ido também dois “artistas novos”; três artistas que possuíam um ateliê coletivo
no andar térreo do sobrado do Rafael e que conheci somente nesse dia; dois artistas do
Projeto Mauá, Renato Santana e Frazão; e os moradores Frigideira, Mário, Gustavo,
Abílio e Simone, filha de “Seu” René. Soube então que na categoria “artistas do morro”
Rafael havia proposto a inclusão dessa coletividade que utilizava o andar térreo de seu
sobrado como ateliê de “arte contemporânea”, mas não costumava frequentar os bares
da parte alta. Assim, na programação oficial do evento, haviam sido incluídos quatro
artistas ligados a esse ateliê e, do Projeto Mauá, apenas os dois que compareceram à
reunião.
Rafael iniciou a reunião dizendo que morava no morro havia oito anos e nunca
tinha proposto desenvolver nenhuma ação junto à sua “comunidade”. Mas, ao saber do
edital do IPHAN, se inscreveu por considerar que o instituto não costumava investir nos
bens que havia tombado no morro. E, comparando-o com Santa Teresa, disse achar que
a “arte”, mais que o “turismo”, podia trazer dinheiro para o morro, porque ele tinha
“vocação” para a “cultura” mais do que para a “festa”. Rafael movimentava assim, em
sua fala inicial, alguns valores e figuras próprias dos moradores da parte alta: a
valorização dos pedidos informais de “autorização” para atuar junto à “comunidade” do

114
morro; a insatisfação com a atuação patrimonial do IPHAN, considerada punitiva e não
investidora; e a crítica à valorização turística e a produção de festas para um público
numeroso.
Entre as instituições do morro, apoiavam o projeto o Observatório do Valongo e
a VOT, que iam comportar algumas das obras em seus espaços, e a Fortaleza, que
abriria para visitação. Mas a maioria das obras estaria distribuída pelo Largo da Santa e
pela Pedra do Sal, pois o projeto pretendia privilegiar o uso dos espaços considerados
“públicos”, em detrimento dos “privados”. Rafael então conclamou a “participação da
comunidade: banda, bloco, pipoqueiro, cerveja no bar...” e dos artistas do morro que
não haviam entrado na programação oficial, explicando que, embora não pudesse incluir
esta participação no orçamento do projeto, elas seriam divulgadas na imprensa. Assim,
seu projeto propunha uma mediação entre diferentes espaços do morro e buscava ser
legitimado pela participação da “comunidade”, que ele associava não apenas às
manifestações tidas como populares, como também à noção de “rua”.
Após as explicações de Rafael sobre o projeto, Abílio foi o primeiro a falar. E,
compreendendo-o como um representante do IPHAN, reclamou do lixo e do entulho
que estavam sendo depositados por comerciantes na Rua Major Daemon, perguntando
se o projeto podia ajudar a resolver o problema. Também se queixou de terem retirado o
ponto do “jogo do bicho” que ficava na base da Ladeira João Homem, porque ele
assegurava que ninguém usasse a via para depositar lixo, e dos caramujos africanos que
haviam se proliferado no entorno da Fortaleza. Ao responder, Rafael se comprometeu a
abordar essas questões em uma reunião que teria com a secretaria municipal de
urbanismo, mantendo fluidas as distinções entre poderes públicos e privados e se
posicionando como um mediador com “políticos”, assumindo com isso a proximidade
com uma das figuras mais desvalorizadas entre os moradores da parte alta do morro.
Mário perguntou, em seguida, qual era o posicionamento de Rafael em relação à
possibilidade de projetos como o dele acelerarem a mudança dos moradores do morro
que, em sua opinião, já estaria ocorrendo desde a divulgação das propostas de
revitalização urbana da Zona Portuária. Mas, antes que ele respondesse, Abílio
interveio, falando que muitos moradores gostavam do movimento que era gerado pela
mídia e que muitos não gostavam, não havendo, portanto, uma única posição sobre tais
projetos. O diálogo entre os dois confrontava assim as oposições “de dentro” e “de fora”
e “misturado” e “puro” que eram movimentados na Rua Jogo da Bola e na Ladeira João

115
Homem, fazendo com que o tema da “revitalização urbana” da região fosse apenas mais
um catalisador das estruturações dos espaços do morro existentes.
No início de abril, encontrei com Rafael em sua casa e, logo no início da
conversa, ele me disse que estava achando divertido ter se tornado um “objeto de
estudo”, demonstrando assim ter um bom conhecimento sobre o trabalho antropológico
e, consequentemente, sobre a narrativa que ele próprio estava produzindo. Rafael tinha
nascido em Copacabana e, quando se casou, foi morar no bairro de Laranjeiras. Doze
anos depois se separou e comprou a casa no morro, em um momento em que disse estar
reavaliando sua vida. Antes de se mudar, já frequentava eventualmente o Bar do Sérgio
e costumava perguntar a ele se havia alguma casa para vender.
Em 1998, soube que Marco Aurélio estava vendendo sua casa e, em uma visita,
viu que o imóvel estava “mal conservado” interna e externamente. O andar de baixo era
alugado para a Marinha e, segundo ele, durante alguns períodos chegava a acomodar até
vinte marinheiros, se constituindo em uma “cabeça de porco”. Ao comprar a casa,
passou dois anos refazendo o chão e a fachada, em uma reforma que triplicou seu
investimento inicial: a casa havia sido comprada por 50 mil reais e, nas obras, ele
calculou ter gasto cerca de 100 mil reais. Mas, em sua percepção, tinha sido
principalmente a reforma da fachada que havia feito com que ele fosse bem aceito pelos
vizinhos. A história de aceitação de Rafael na “vizinhança” da Rua Jogo da Bola
operava assim com suas oposições estruturais relacionadas às condições de moradia:
pois, além de “proprietário”, ele havia transformado uma casa associada a uma forma de
habitar classificada como “favelizada” em um espaço “regular”.
Com o início dos preparativos para a implantação do projeto do IPHAN, Rafael
disse ter conhecido outros espaços e habitantes do morro com os quais, durante seus dez
anos de moradia, ele não havia interagido: a Fortaleza, os dirigentes da VOT e alguns
moradores do trecho da Rua Argemiro Bulcão que ficava no topo da Pedra do Sal.
Perguntei se ele havia procurado também os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal,
mas Rafael disse que não sabia do conflito habitacional com a VOT e achava que o
quilombo que existia ali era uma “coisa meio folclórica”, se referindo às festividades
que realizavam com rodas de samba. E, para participar da programação extraoficial do
evento, disse que tinha conseguido a adesão da Banda da Conceição, dos artistas do
Projeto Mauá e de uma rádio amadora organizada por não eram moradores do morro.
Só havia tido problema com o Observatório Valongo, que desistiu de apoiar o evento
devido a um desentendimento entre sua direção e um artista que ia expor no jardim.

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Sua circulação por diferentes espaços do morro e a mediação que seu evento
estava propondo realizar entre tantos patrimônios, no entanto, não passou despercebida
pelos mecanismos de controle da “vizinhança”. Rafael me contou que um morador da
Rua Jogo da Bola havia perguntado se ele pretendia, depois do projeto, se candidatar a
algum cargo político. Essa percepção de que ele estava atuando como um “político”
também havia sido manifestada quando Rafael, para divulgar a reunião no salão da
capela, havia colado cerca de quarenta cartazes nos postes na Rua Jogo da Bola: cinco
haviam sido retirados e alguns pichados a caneta com o número “171”. Esse número era
uma referência ao artigo do código penal que definia o delito do estelionato, que pelo
senso comum era associado à figura do “trambiqueiro”, do que desejava tirar vantagem
econômica prejudicando outra pessoa através de algum artifício. E, como tinha as
narrativas sobre a retomada da Banda da Conceição haviam demonstrado, as definições
do “político” e do “malandro” eram muito próximas entre os moradores da parte alta do
morro, sendo a categoria do “trambiqueiro” uma forma de gradação entre elas.
Rafael, no entanto, não sabia quem o estava acusando de agir de má fé, mas
cogitou algumas possibilidades, todas elas referentes às formas como essa parte da
vizinhança estruturava os espaços do morro. Em sua opinião, podiam ser pessoas que
não queriam que fosse realizado no morro nada ligado ao poder público e reagiram à
logomarca do IPHAN que havia no cartaz; podiam ser pessoas que associavam arte a
“coisa de viado”; ou podia ser algum integrante aborrecido do Projeto Mauá, mas
achava essa terceira opção a menos provável. Assim, ele explicitava que havia uma
resistência às iniciativas do poder público que fazia com que a “vizinhança” da parte
alta percebesse negativamente os moradores que se envolviam com “políticos”.
Também indicava que essa mesma vizinhança se sentia confrontada por variações de
seus rígidos papéis de gênero e que, assim como alguns moradores podiam considerar
“prostituta” uma mulher que frequentava bar, podiam também considerar “viado” um
homem que organizava evento artístico. Por fim, a subversão da noção articulada por
integrantes do Projeto Mauá do que era um “artista do morro” também podia ter gerado
descontentamento, embora, no código moral local, fosse a menos ofensiva.
Logo depois de nossa conversa, Rafael me enviou por e-mail o release do evento
encaminhado aos jornais, onde o projeto era apresentado como um “revitalizador” do
Morro da Conceição e o associava à “tradição cultural” de Montmartre. Conhecido por
seu estilo de vida boêmio, esse bairro parisiense era recorrentemente aludido em
matérias jornalísticas e turísticas aos bairros da Lapa e de Santa Teresa, ambos

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localizados na área central da cidade, por causa da localização de ateliês de artistas e da
movimentação dos bares. E com a divulgação do plano Porto do Rio o morro estava
sendo propagado por alguns jornalistas e também pelos urbanistas da prefeitura como a
“nova Montmarte carioca”. E era com esse imaginário que Rafael dialogava ao enviar
sua divulgação do evento para o conjunto dos habitantes da cidade.
Acompanhei os dois dias do evento e percebi que, entre as dezoito “intervenções
artísticas” que haviam sido montadas, algumas não possuíam apenas propostas
plásticas: elas também articulavam um discurso sobre o morro e a Zona Portuária. Essas
instalações estavam distribuídas por diversos espaços do morro e propunham um
confronto entre imaginários difundidos pela geografia moral da cidade, pelos urbanistas
da prefeitura e pelos diversos habitantes do morro. No espaço que era o centro de
irradiação simbólica do patrimônio português e espanhol do morro, que era o Largo da
Santa, as duas únicas intervenções artísticas realizadas tiveram uma preocupação
plástica, não propondo qualquer confronto de imaginários sobre o morro.
Mas em dois espaços periféricos
da parte alta, que eram a Rua Major
Daemon, correlata a ela por sua conexão
com o Largo da Santa, e o Observatório
do Valongo, correlato por sua relação
com os frequentadores do Bar do Sérgio,
foram montadas intervenções que
dialogavam com os diferentes imaginários
sobre o morro. Na Rua Major Daemon, um artista pintou os escombros de um sobrado
que havia desabado com a ajuda de uma grua e um jato de tinta, espalhando uma grossa
camada de purpurina dourada sobre as ruínas. Ele valorizava, assim, outra característica
do morro considerada problemática pelos moradores da parte alta, que eram os
desabamentos das edificações sem conservação física, que os remetia ao imaginário da
“favelização”.
Em frente ao portão do Observatório do Valongo, havia sido instalado um
grande letreiro luminoso com o dizer “Feliz Ano Novo”, em uma referência aos letreiros
usualmente colocados pelo tráfico de drogas nos topos dos morros. Assim, a obra
expunha uma compreensão do espaço a partir da geografia moral da cidade, só que
positivando o que para muitos moradores era um de seus principais incômodos: a
possibilidade de sua percepção como uma “favela”. E estabelecia ainda uma

118
comunicação com os moradores do Morro da Providência, que ficava na direção para
onde o letreiro estava voltado e era o espaço mais negativado pelos moradores da parte
alta.
Na base do morro, distribuídas pelo Adro de São Francisco e na Pedra do Sal, foi
realizada a maior parte das intervenções que dialogava com seus imaginários. No adro,
foi montada uma instalação composta por um feixe de linhas vermelhas amarradas na
janela de uma de suas casas e que atravessava o acesso da escadaria, deslizava sobre o
muro, até alcançar um poste na Rua Sacadura Cabral. No alto desse poste, as linhas
foram atadas e suas pontas dispostas, uma parte sobre a calçada de paralelepípedos e,
outra parte, sobre o asfalto. O acúmulo de linhas no chão remetia visualmente a uma
poça de sangue e à ideia da cena de um crime, em uma analogia à violência que a
geografia moral da cidade percebia na Zona Portuária.
Na noite de sábado, uma artista
também realizou no adro uma intervenção
em que caminhava calada e
pausadamente vestida com um camisolão
branco e segurando em uma das mãos um
lençol e, na outra, uma lamparina acesa.
Enquanto andava, algumas pessoas que
visitavam o morro a seguiram com ar
solene e religioso. Assim percorreram um trecho da Rua Jogo da Bola, a Rua Mato
Grosso e a Rua do Escorrega, até chegarem à Rua Sacadura Cabral, por onde subiram a
escadaria do adro. Na frente da Igreja da Prainha, que estava com sua porta principal
coberta por um véu composto de retalhos de plástico branco, a artista depositou a
lamparina e o lençol sobre seu beiral, deitou-se e dormiu. O conjunto da cena composta
remeteu a duas imagens: os solenes cortejos católicos e os mendigos que dormiam nas
portas das igrejas, provocando um choque entre imaginários positivos e negativos.
Já no interior de uma das casas do adro, Frazão expôs um painel composto por
120 fotos de rostos em close de usuários do morro. Seu impacto visual advinha do
conjunto e das distorções na proporção dos rostos, causadas pela extrema proximidade
do fotógrafo no momento do clique e do uso de uma lente grande angular. Em frente ao
painel, ele dispôs algumas cadeiras para que as pessoas pudessem contemplar as faces e,
durante o evento, registrou os depoimentos dos retratados com uma câmera, fazendo
perguntas breves, como nome, profissão, idade e o que tinham achado de sua

119
intervenção artística. Sua exposição buscava enfatizar a proximidade que ele tinha com
as pessoas retratadas e valorizava, assim, os artistas que moravam no morro e os
vínculos sociais estabelecidos com sua vizinhança.
Na Pedra do Sal, um artista
montou uma “instalação sonora”
composta por uma caixa de som que
reproduzia o barulho do mar, em uma
alusão à época anterior ao aterramento da
Zona Portuária, quando as ondas batiam
diretamente na pedra. Outra referência ao
planejamento urbano da cidade foi a
instalação onde um artista distribuiu velas de citronela dentro de copos de vidro pela
pedra, dizendo ser uma ação para “espantar a dengue”: assim ele propôs uma
abordagem irônica a um dos problemas sanitários mais graves do morro e também da
cidade, ao mesmo tempo em que se referia ao espaço dos “despachos” do candomblé.
Ainda na pedra, outro artista conectou mangueiras azuis e vermelhas a bicas de quatro
casas da subida da Rua Argemiro Bulcão e as espalhou pelo chão. Ao fim da tarde de
sábado, essas mangueiras jorraram água, produzindo uma “lavagem” da pedra que se
referia simbolicamente às oferendas aos orixás e valorizava também as práticas
relacionadas ao candomblé.
E outro artista dispôs duas mesinhas de madeira no Largo João da Baiana com
uma maquete, um pequeno equipamento de som com fones e alguns encartes impressos.
A maquete simulava a demolição do altíssimo prédio da CEDAE, ação que
possibilitaria a abertura da visão da Pedra do Sal. Denominou sua instalação de
“tombamento”, produzindo assim uma ironia com a noção, que podia designar tanto a
preservação de um patrimônio como a demolição de uma edificação. Nos fones, os
visitantes podiam ouvir alguns sambas antigos, fazendo referência ao uso do espaço por
sambistas e, nos encartes, era mostrada a “árvore genealógica” das afiliações de santo
de antigos frequentadores da pedra ligados ao candomblé, como Tia Ciata e João Alabá.
Todas as intervenções se referiam, assim, ao “patrimônio negro” do morro que estava
sendo reivindicado de territorialização pelo movimento do Quilombo da Pedra do Sal, o
qual diversos moradores da parte alta do morro não reconheciam como “étnico”, mas
como composto por “invasores” ou moradores “irregulares”.

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Na programação extraoficial do evento, pequenos cartazes foram afixados nos
postes da Rua Jogo da Bola divulgando a festa da radio amadora que se denominava La
Rica e que ocorreu domingo na pracinha. O nome da festa, ampliado e colado no poste,
estampava com ar festivo um dos principais desconfortos entre muitos dos que
moravam na parte alta do morro, que era a associação do local ao consumo e tráfico de
drogas: pois “larica” era uma das gírias mais conhecidas entre os jovens da cidade que
fumavam maconha. Já no Largo da Santa, houve a apresentação da Banda da Conceição
na noite de sábado e, na Fortaleza, foi montada a exposição “Casa de Armas”, indicando
que o Exército havia decidido participar do evento valorizando sua própria ocupação
dos espaços do morro e não apenas abrindo-a para visitação. Assim também fez a VOT,
que montou na Casa de Cultura uma exposição sobre sua história e os “projetos sociais”
que desenvolvia no morro.
Mas houve também um posicionamento explicitamente dissonante em relação ao
evento, que proferiu claramente um discurso contrário à utilização dos espaços do
morro por projetos classificados como “culturais” ou “turísticos”. Gustavo montou uma
exposição em frente à sua casa, pendurando três painéis fotográficos na porta e armando
um projetor de filmes em cima de uma mesa de alumínio que exibia outras fotografias
na parede. Embora as imagens não emitissem qualquer mensagem contestatória, seu
posicionamento o fazia: ele não havia combinado sua participação no evento com
Rafael, e me disse que, como estava utilizando a sua casa, não precisava pedir qualquer
“permissão”, questionando, portanto, a autoridade do “curador”. Falou então que achava
que os moradores tinham que pensar melhor sobre os projetos que usavam os espaços
do morro e suas histórias e começar a ganhar alguma coisa com esse tipo de exposição,
se referindo a algum tipo de pagamento ou reconhecimento de autoria. Articulou, assim,
uma avaliação desses projetos próxima à noção negativa da “malandragem”.

OS ESPAÇOS DA REPUTAÇÃO E DOS PROJETOS TURÍSTICOS

Quando iniciei o trabalho de campo na parte alta do morro, o espaço estava


sendo valorizado pelos urbanistas da prefeitura e divulgado por matérias jornalísticas,
que difundia a percepção de que nele habitavam moradores “tradicionais” que eram
“descendentes de portugueses e espanhóis”. Ao longo da convivência cotidiana nos
bares e festas deste espaço, percebi que esse “patrimônio” não passava pelas concepções
jurídicas ou políticas do termo, não havendo qualquer legislação que a certificasse ou

121
tornasse símbolo da cidade ou da nação. E que tampouco havia uma referência explícita
na fala dos moradores a uma identidade construída em torno dessas origens, mesmo
daqueles que possuíam ascendência portuguesa e espanhola. Eram, assim, diversas as
maneiras que os moradores possuíam de estruturar os espaços da parte alta e do
conjunto do morro, variáveis também de acordo com a perspectiva de observação e
pertencimento do “morador”, fazendo com que o próprio imaginário do que era esse
morador fosse continuamente deslocado, refeito, suspenso, negado ou confirmado.
O que encontrei como uma característica constante em diferentes narrativas e
práticas vinculadas à parte alta do morro foi uma noção de “vizinhança” construída a
partir principalmente da reputação, como conceituado pelo antropólogo Frederik
Bailey (1971): como um princípio formado pelo grau e intensidade da interação de cada
indivíduo na vida coletiva dos moradores, tanto em grupos de interesses quanto em
conflitos locais. Assim, quanto maior era o nível de interação, mas importante era sua
reputação na vizinhança, o que não tinha qualquer relação direta com as qualidades
positivas ou negativas que esse indivíduo possuía, mas sim com o que os outros
pensavam dele e informavam sobre ele. As demarcações de proximidades e distâncias
sociais que os moradores da parte alta produziam, portanto, sempre confirmavam a
existência de relações sociais, fossem elas de maior ou menor intensidade.
Assim, através da definição da “boa vizinhança” se operavam as distinções
morais dos espaços e práticas. No caso dos frequentadores do Bar do Sergio e da capela,
os espaços eram estruturados a partir das oposições “vício” e “virtude” e “perigoso” e
“seguro”, delimitando fronteiras que diferenciavam gradativamente os habitantes que
eram “de dentro” e “de fora” do morro e os espaços que eram “masculinos” e
“femininos”. Mas, quando essa distinção era construída por moradores referenciados no
Bar do Geraldo, essa forma de estruturar os espaços do morro operava principalmente as
oposições “misturado” e “puro” e “aberto” e “fechado”. E a partir das narrativas de
reputação que eram movimentadas na parte alta e que incluíam recorrentemente às
figuras do “turista”, do “político”, do “traficante”, da “prostituta”, do “invasor” e do
“malandro”, fossem essas categorias ditas de forma positiva ou negativa, percebi que
havia muitas conexões entre esse espaço do morro e outros espaços do próprio morro e
da Zona Portuária.
Mais conexões do que os urbanistas da prefeitura que idealizavam sua
“renovação” apresentaram na classificação da “organização comunitária” dos moradores
do morro que, esquemática e ideologicamente, os dividiu em “descendentes de

122
portugueses e espanhóis” com “vínculo afetivo”; “nordestinos” com uma “relação
conjuntural com o espaço”; e “comerciantes” que “não frequentavam seus espaços”. A
representação do morro que os urbanistas da prefeitura haviam apresentado ao conjunto
da população da cidade e que afirmava que seus “moradores antigos” eram associados à
ocupação portuguesa e espanhola da parte alta produzia, assim, uma série de
apagamentos de conflitos, tensões e de outras formas de estruturar não apenas dos
múltiplos espaços do morro como dessa própria parte alta. Pois o Morro da Conceição
era vivenciado, mesmo por aqueles que estavam habitando seus imóveis mais
valorizados turística e economicamente, como uma experiência sempre limítrofe: uma
experiência carregada de ambivalência, que podia se referir tanto a uma noção positiva
de moradia, associada à autenticidade cultural e a intimidade social; quanto a uma noção
negativa, ligada à decadência, perigo e vício.
Assim, contrastando o discurso dos urbanistas da prefeitura a partir das
observações que realizei durante o trabalho de campo, concluí que o proclamado
“patrimônio cultural do Morro da Conceição” dizia mais respeito aos desejos de
intervenção desses próprios urbanistas do que a uma suposta coletividade de moradores
compreendida de forma totalizante, harmônica e coesa. E que, se no morro os
“descendentes de portugueses e espanhóis” foram eleitos para serem preservados em
suas moradias, foi para que se tornasse legítima a modificação que esses urbanistas
desejavam fazer de todos os demais classificados como moradores “inautênticos”.
Essa eleição do Morro da Conceição como setor prioritário de implantação de
políticas de “revitalização urbana” da Zona Portuária era ainda sustentada por diversos
mediadores: os urbanistas de outros países que exportavam projetos e métodos de
gestão urbana; os agentes locais de turismo, que difundiam as atrações da cidade e suas
“identidades culturais”; os agentes imobiliários, que valorizavam os imóveis onde havia
projetos associados à preservação de sítios históricos; e os cineastas, críticos de jornais
e especialistas do patrimônio que compartilhavam das sensibilidades desses gestores na
procura de uma “cultura popular” tida como genuína e retoricamente percebida como
ameaçada de extinção. E era essa rede de relações que movimentava e presentificava
determinadas narrativas de tradição e passado, inserindo-as em uma lógica do mercado
inerente aos processos de patrimonialização de bens culturais.
Pois a divulgação dos projetos do Porto do Rio promovia no Morro da
Conceição uma junção entre preservação de sítio histórico, valorização imobiliária e
desenvolvimento turístico. Mas, para que a “revitalização urbana” fosse potencializada

123
era necessário que seu “patrimônio” representasse uma “cultura autêntica”, já que a
noção de turismo era vinculada à construção de complexos exibicionários da
diversidade cultural, constituindo-se em uma indústria particular dentro da indústria
cultural. Pois, como apontado por diversos pesquisadores, todo projeto turístico buscava
oferecer uma experiência diferente da que a pessoa vivenciava em seu cotidiano,
experiência que podia estar ancorada nas noções de passado histórico, de culturas
populares, regionais e primitivas ou mesmo de culturas empresariais, métodos
produtivos e aventuras em paisagens naturais (Gonçalves, 2007a; Kirshenblatt-
Gimblett, 1998; MacCannel, 1976). E, no Morro da Conceição, a cultura não apenas
eleita como autêntica, mas discursivamente construída como uma totalidade, foi a dos
denominados “descendentes de portugueses e espanhóis”.

124
Capítulo 3.
O “espírito quilombola” da Pedra do Sal

OS MEDIADORES DO QUILOMBO DA PEDRA DO SAL

Em outubro de 2007, o processo de “titulação” do Quilombo da Pedra do Sal


que concederia a propriedade definitiva do “território étnico” pleiteado pelos
integrantes do grupo, estava no auge de sua projeção pública, sendo discutida em
diferentes jornais e revistas de circulação nacional. Na internet, encontrei textos que
haviam divulgado desde o início o conflito habitacional vivido entre os moradores que
formaram esse “quilombo” e a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da
Penitência - VOT.
A iniciativa de procurar a imprensa havia partido dos próprios integrantes do
movimento quilombola que, logo após sua certificação pela Fundação Cultural
Palmares, em dezembro de 2005, enviaram uma nota para ONGs que divulgavam
conflitos envolvendo os temas do “direito à moradia” e de “afirmação étnica”, como o
site do Observatório Quilombola da ONG Koinonia (www.koinonia.org.br). No texto
então redigido pela jornalista Lígia Coelho, a VOT era acusada de ter despejado “30
famílias da comunidade da Pedra do Sal” com a intenção de valorizar seus imóveis
após o anúncio do projeto da prefeitura de “revitalização” da Zona Portuária. Assim,
todos os moradores despejados ou realocados pela VOT eram reunidos na noção de
“comunidade”, sugerindo que possuíam a mesma forma de estruturar seus espaços e se
relacionarem com a entidade católica.
Era também informado que o território quilombola era composto por toda a base
do Morro da Conceição margeada pela Rua Sacadura Cabral. A defesa do pleito
articulada pelo grupo abordava uma noção jurídica de patrimônio, ao dizer que o
território reivindicado era sua herança porque havia sido criado a partir de um aterro
realizado por “escravos” e “assalariados” durante as obras de construção do cais do
porto no início do século XIX. O grupo, portanto, se apresentava como herdeiros de
“escravos” e “assalariados”, estruturando os espaços pleiteados a partir das oposições
com “escravos” e “libertos” e a “povo” e “elite”.

125
Mas o conflito ganhou projeção midiática apenas um ano depois, quando o
INCRA constituiu uma equipe para elaborar o relatório antropológico de caracterização
histórica, econômica e sociocultural do território. Em matéria assinada e divulgada em
fevereiro de 2007 pelo site do Boletim Quilombola da COHRE (www.cohre.org), o
“pleito étnico” era descrito enfatizando não mais os aspectos jurídicos, mas as origens
do grupo de moradores e as práticas culturais desenvolvidas no território: os moradores
eram caracterizados como composto por “famílias de descendentes de negros
escravizados oriundos da Bahia e da África”; e o espaço como “de sociabilidade para
prática de rituais, cultos religiosos, batuques e roda de capoeira”. E, após a categoria
“comunidade” ser associada à ideia de “cultura popular”, o mito da Pequena África era
presentificado para demarcar o bairro da Saúde como o espaço do comércio de escravos
durante os séculos XVIII e XIX e da “convergência de negros” como efeito do “bota
abaixo” de Pereira Passos no início do século XX.

Situado ao pé do Morro da Conceição, no bairro da Saúde próximo à Praça Mauá, o


Quilombo da Pedra do Sal é formado por famílias descendentes de negros escravizados,
oriundos da Bahia e da África. O bairro da Saúde reunia toda infraestrutura do comércio de
escravos durante os séculos XVIII e XIX. Após o período escravista, os negros continuaram
vinculados ao local próximo ao porto do Rio de Janeiro. A área foi apropriada como espaço
de sociabilidade para prática de rituais, cultos religiosos, batuques e roda de capoeira. A
cultura popular carioca floresceu em torno da Pedra do Sal e sambistas tradicionais
buscavam inspiração na comunidade. Além de Donga, Pixinguinha e João da Baiana,
Machado de Assis também viveu no bairro. O terreno estava localizado à beira mar e
recebeu esta denominação por ser o ponto de desembarque do sal comercializado no
mercado da capital. Nessa mesma zona portuária foi formada a “Pequena África no Brasil”,
área de convergência de negros que fugiam do “bota abaixo”, programa de reforma urbana
implantado por Pereira Passos nas primeiras décadas do século XX.

Em maio, uma matéria assinada pelo jornalista Oscar Henrique Cardoso e


publicada no site da Fundação Cultural Palmares, www.palmares.gov.br, oferecia um
resumo de uma entrevista concedida no dia anterior pelo presidente da entidade, Zulu
Araújo, ao Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão. O texto destacava que a
comunidade quilombola da Pedra do Sal era “realmente remanescente de quilombo” e
sugeria que a autenticidade da reivindicação do grupo estava sendo questionada pelos
jornalistas e pela VOT. Segundo a defesa de Zulu, o processo de tombamento da Pedra
do Sal como “monumento histórico e religioso afro-brasileiro” pelo INEPAC tinha sido

126
a primeira certificação concedida ao grupo: ele argumentava assim que a
territorialização desse quilombo era decorrente do reconhecimento de um símbolo
cultural que havia sido criado para representar, de forma difusa, a figura do
“afrodescendente” articulada pelo mito da Pequena África.

Ainda em maio, o Jornal Nacional replicou esta entrevista, caracterizando os


130 imóveis que haviam entrado no pedido de titulação territorial como pertencentes à
VOT e localizados “em torno da igreja São Francisco da Prainha, tombada como
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”, defendendo assim a entidade também por
meio de uma ação oficial de patrimonialização. A matéria trazia a declaração de um frei,
que afirmava que as casas estavam quase todas alugadas ou eram usadas em “projetos
sociais e uma escola”, onde eram atendidos “mil alunos de bairros pobres”.
Já na caracterização da comunidade quilombola o jornal assumiu um tom de
denúncia, dizendo que o grupo reivindicante era composto por sete moradores “que se
dizem descendentes de escravos”. Conferindo autoridade à denúncia, seguia a fala do
historiador Milton Teixeira, contratado pela ordem franciscana para contestar o pleito,
que dizia não haver encontrado “registros de um quilombo na área em disputa” nos
arquivos da Biblioteca Nacional, da Igreja e do Exército, operando assim com a noção
colonial de “quilombo”, definida como um agrupamento de escravos fugidos.
E, durante a troca de acusações, o espaço mediador do Observatório Quilombola
de Koinonia acabou por se conformar em uma extensão dos espaços do conflito. Em
julho, uma nova matéria assinada pela ARQPEDRA, associação formada pelo
movimento quilombola, foi enviada à ONG, onde o grupo acusava outro frei de ter

127
usado de “artifício ardil” ao convocar uma reunião com pais e alunos das escolas da
VOT para informar que os quilombolas queriam tomá-las, recebendo, com isso, o apoio
contra o pleito étnico. Dias depois, a VOT exigiu de Koinonia um “direito de resposta”
a essa carta e teve seu texto divulgado em agosto, onde afirmou ser favorável ao
“movimento quilombola”, só que apenas ao “verdadeiro”, reforçando o questionamento
da autenticidade cultural do grupo. E, após listar as atividades educacionais e
assistenciais que desenvolvia no morro, acusou os integrantes do movimento de
“invasores”, opondo estruturalmente a eles as pessoas “sérias”, “dignas” e “de bem” que
identificavam como sendo os “pais de alunos” e os “moradores antigos” do morro.

Nenhum “circo foi armado”, pois estávamos falando para pessoas sérias, pais de alunos,
moradores antigos, pessoas dignas que sempre viveram do suor do seu trabalho enquanto
seus filhos eram educados na escola da Ordem da Penitência. Falávamos também para
algumas pessoas que sempre moraram em imóveis da entidade e, como pessoas de bem,
honravam as suas obrigações locatícias, com isso viabilizando a manutenção não só da
escola Pe. Francisco da Motta, mas de toda obra social mantida secularmente pela Ordem da
Penitência! Não falávamos para invasores ou pessoas que a custa do sacrifício de muitos,
buscam locupletar morando anos a fio sem pagar qualquer aluguel.

Em agosto, foi a jornalista Fabiana Cimieri do Estado de São Paulo quem


noticiou o conflito, mas de uma forma diferente da que estava sendo feita até então: na
sua matéria, haviam sido incluídas falas não apenas dos diretamente envolvidos, mas
também de “moradores do morro”. E foi articulada então, pela primeira vez na mídia, a
oposição “maioria portuguesa” e “minoria negra” para se referir aos que habitavam o
morro, incluindo na polêmica os depoimentos de alguns moradores que afirmavam ser
ali uma “colônia portuguesa”.
Dias depois, foi o jornalista Francisco Alves Filho da Revista Isto É quem
publicou uma matéria sobre a Pedra do Sal, onde focou sobre a discussão da própria
noção de quilombo e a ocorrência de pleitos étnicos em áreas urbanas. O jornalista, no
entanto, buscou realizar uma mediação entre a noção histórica do termo e a jurídica e
política, confrontando os argumentos apresentados pela VOT, sobre a inexistência no
passado de um acampamento de escravos fugidos no Morro da Conceição, aos
apresentados pela Fundação Cultural Palmares, que defendia a noção de quilombo que a
relacionada à identidade cultural de grupos negros e sua reprodução física, econômica e
sociocultural.

128
Mas o auge da exposição midiática do processo de reconhecimento do Quilombo
da Pedra do Sal ocorreu no final de outubro, quando o filósofo Denis Lerrer Rosenfield
publicou o mesmo artigo em dois jornais de circulação nacional, O Globo e o Estado de
São Paulo. Intitulado “Quilombos Urbanos”, o texto denunciava que havia ocorrido
uma “proliferação de quilombolas” no país após a Constituição de 1988 por causa do
que chamou de um “artifício meramente jurídico”. As acusações eram também
direcionadas aos “laudos ditos antropológicos” solicitados a ONGs e a pesquisadores
“comprometidos com a causa dos movimentos sociais”. E, como caso exemplar, era
exposto o Quilombo da Pedra do Sal, que o filósofo identificava como “invasores” que
queriam obter imóveis. Segundo ele, sua titulação iria prejudicar a VOT e os serviços
educacionais e cursos profissionalizantes que ofereciam a chance de adultos “refazerem
suas vidas”, em um discurso que valorizava o disciplinamento dos espaços da Zona
Portuária e os caracterizava como marcados pelo “narcotráfico”.
Posteriormente e até o final de 2009, não houve mais nenhuma matéria que
tivesse repercussão nacional ou local, sendo veiculadas apenas pequenas notas no site
da Fundação Cultural Palmares informando tecnicamente o andamento judicial do
processo de reconhecimento do “território étnico”. E, assim, nesse conjunto de matérias,
artigos e cartas publicados durante os dois primeiros anos de formação do Quilombo da
Pedra do Sal, predominou a articulação de uma noção jurídica para definir o que seria
“patrimônio”, tanto por parte do grupo quilombola quanto da VOT. Mas essa noção
também movimentava um sistema de autenticidade que se referia, e questionava, tanto à
validade histórica e cultural do grupo quilombola, quanto as motivações sociais e
religiosas da ordem franciscana.
Na busca por compreender como estavam se posicionando alguns dos
mediadores do conflito entre os moradores do morro e a entidade franciscana, no início
de dezembro de 2007 fui à sede de Koinonia, localizada no bairro da Glória, área central
da cidade. Quem me recebeu foi a historiadora Ana Gualberto, que me explicou que a
ONG tinha como foco principal de atuação a titulação de “comunidades quilombolas”
no meio rural, mas que recentemente estava havendo também um interesse de
acompanhamento de dois pleitos das áreas urbanas da cidade do Rio de Janeiro: o da
Pedra do Sal e o de Sacopã, localizado no bairro da Lagoa, Zona Sul da cidade. Mas, em
sua opinião, a comunidade quilombola de Sacopã tinha mais possibilidade de obter a
titulação do território, porque seus moradores já possuíam uma usucapião de mais de 40
anos, o que fornecia um maior reconhecimento jurídico.

129
Em relação ao Quilombo da Pedra do Sal, Ana contou que havia uma
notoriedade do pleito no Governo Federal porque era objetivo do MNU aumentar sua
atuação na Zona Portuária, onde já existiam como “referências da cultura negra” o
Centro Cultural José Bonifácio e o Cemitério dos Pretos Novos. E disse que, desde a
certificação Damião mandava notícias para serem divulgadas no Observatório
Quilombola, mas negou à acusação de que a ONG teria recebido uma “pressão”
financeira da Comunidade Europeia para não apoiar o Quilombo da Pedra do Sal ou não
noticiar mais o conflito. Ana contou que Koinonia apenas tinha sido procurada por uma
representante da entidade para que dessem um “direito de resposta” à VOT em relação a
uma carta enviada pelo grupo onde eram feitas acusações aos dirigentes da entidade
franciscana. Mas afirmou que tinha sido um posicionamento da própria organização não
se envolver diretamente no conflito da Pedra do Sal, fazer somente seu
“monitoramento”, e que os dirigentes do COHRE tinham adotado a mesma posição
política.
Logo em seguida, à tarde, fui à sede do INCRA, localizada também na Glória.
Conheci então Miguel Cardoso, antropólogo responsável pela titulação dos territórios
quilombolas no Estado do Rio de Janeiro. Bastante técnico em nossa primeira conversa,
ele informou que o Relatório Histórico e Antropológico ainda estava em fase de revisão
pelas pesquisadoras da UFF que haviam sido contratadas pelo instituto em 2006. E que
a VOT havia contestado na Justiça o pedido de reconhecimento do quilombo,
conseguindo uma liminar que havia paralisado todo o processo de identificação,
incluindo os estudos técnicos. Mas a procuradora do INCRA estava tentando anular essa
liminar e Damião acreditava que a atuação política do MNU junto ao Governo Federal
iria ajudar nessa suspensão.
Miguel então solicitou que eu fizesse um requerimento oficial da UFRJ para
consultar o “relatório preliminar”, me explicando que ele ainda não havia sido
publicado oficialmente pelo INCRA. Só após essa publicação era que os proprietários
“confrontantes” e “ocupantes” do território pleiteado seriam notificados, desapropriados
e indenizados pelas “terras e benfeitorias”, utilizando assim um vocabulário jurídico
para se referir ao processo de titulação do quilombo. E contou que o único caso de
“quilombo urbano” que havia sido titulado no país estava no Rio Grande do Sul. No Rio
de Janeiro, mesmo na área rural apenas um quilombo havia sido titulado, o de
Campinho, em um processo que havia sido encaminhado pelo ITERJ e que Miguel tinha
considerado de fácil solução porque a terra desapropriada era do governo estadual.

130
Retornei ao INCRA na semana seguinte e, nessa minha segunda visita, Miguel
falou mais sobre o próprio grupo e os espaços que desejava ocupar. Ele explicou que o
território pretendido pelos quilombolas se localizava no entorno da Pedra do Sal e era
composto por cerca de quinze imóveis e, embora alguns dos integrantes do movimento
quisessem ampliar o número de imóveis solicitados, ele achava improvável que isso
acontecesse. Miguel então disse que era o “santo” o que unia os integrantes do
movimento, porque todos participavam de cultos do candomblé. E me deu um exemplo
de como essa ligação era fundamental falando de Marquinhos que, apesar de ser
“nordestino, branco e homossexual”, frequentava o mesmo barracão de candomblé dos
demais integrantes.
Nessa fala de Miguel ficava assim mais fluida a definição jurídica de quilombo,
que restringia a classificação das “comunidades quilombolas” como “grupos de
afrodescendentes”. Mas, embora essa característica enfatizada pelo antropólogo não
fosse juridicamente adequada, ela operava com um imaginário sobre a cultura negra
baseado em um sistema próprio de autenticidade cultural, onde às práticas dos cultos do
candomblé possuíam grande ressonância. E a movimentação das figuras do
“nordestino” e “homossexual” operava discursivamente com a proposta de uma
inversão de valores nos espaços da Zona Portuária, já que buscava a positivação dessas
categorias como símbolos da “opressão” e do “popular”, em vez do imaginário oposto,
que as associava negativamente às ideias de “decadência” e “desvio”.
Como nesse dia apresentei o ofício da universidade atestando que eu era uma
pesquisadora a ela vinculada, pude consultar o Relatório Histórico e Antropológico
sobre o Quilombo da Pedra do Sal que havia sido recentemente elaborado pelas
historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu e pela antropóloga Eliane Cantarino 11. A
construção narrativa do relatório tinha como diretrizes as definições do Artigo 68 e do
Decreto 4.887, que qualificava como “comunidade quilombola” os “grupos étnico-
raciais” que assim se auto atribuíssem, que possuíssem “trajetória histórica própria”,

11
Após a consulta do relatório, Tentei agendar entre os meses de junho e setembro de 2008 uma conversa
com as relatoras e acessar as entrevistas realizadas com os integrantes da comunidade quilombola que
haviam sido armazenadas no Laboratório de História Oral e Imagem da UFF. Enviei e-mails para a
historiadora Hebe Mattos, que se recusou a marcar uma conversa argumentando que o processo judicial
ainda estava em andamento e que qualquer palavra dela poderia ser utilizada como um acréscimo ao texto
do relatório. Já o e-mail que enviei para a antropóloga Eliane Cantarino não foi respondido. E, no
laboratório da universidade, apesar do atencioso atendimento, após algumas ligações telefônicas e trocas
de e-mails o acesso às entrevistas também foi negado, com o mesmo argumento de se tratar de um
conflito não concluído judicialmente.

131
“relações territoriais específicas” e uma “ancestralidade negra” relacionada com a
“resistência à opressão histórica sofrida”.
E, para operar essas noções na “defesa” do pleito do Quilombo da Pedra do Sal,
propôs que havia uma tríade identitária que unia seus integrantes: o “porto”, que era a
ligação com as atividades e sindicatos portuários; o “samba”, que era a participação nas
escolas e blocos carnavalescos; e o “santo”, que era as práticas do candomblé. A
abordagem histórica era referenciada nas noções de “direito de reparação” e de “dever
de memória”, buscando revelar o que as relatoras entenderam ser o passado traumático
vivenciado por essa comunidade quilombola. E, a antropológica, era referenciada na
noção de “formação de identidades sociais coletivas opostas”, e identificava o
tombamento da Pedra do Sal em 1987 como sendo o início da oposição entre a
comunidade quilombola e os dirigentes da VOT.
As relatoras postularam que a importância do reconhecimento do Quilombo da
Pedra do Sal era a defesa da memória afro-brasileira na Zona Portuária e a visibilidade
do “patrimônio cultural herdado de seus antepassados escravos e africanos”. E
identificaram esse ano de 1987 como o começo da implantação de uma “nova política
imobiliária” pela direção administrativa da VOT, marcada pela gestão do Frei Eckart
Höfling. Ao descreveram essa política, afirmaram haver ocorrido um processo de
reajustes de aluguéis dos imóveis da entidade franciscana no morro tendo como base os
preços de mercado; e que nesse processo teriam sido realizadas algumas ações de
despejo, a realocação de moradores que não podiam arcar com os novos custos e a
expulsão dos que os ocupavam informalmente. Segundo as relatoras, antes dessas
medidas muitos moradores de baixo poder aquisitivo entendiam a política imobiliária da
VOT como “filantrópica”: pagavam aluguéis considerados “simbólicos” ou ocupavam
informalmente as casas com a anuência da entidade, sendo que algumas famílias
moravam havia mais de 50 anos sob essas condições.
Na década de 1990, após o esvaziamento de vários imóveis, a Associação de
Moradores e Amigos da Saúde havia liderado a ocupação informal de alguns deles sob a
liderança de Damião, então presidente da associação, que em seguida passou a residir
em um imóvel localizado na Travessa do Sereno. Sua esposa Lúcia também ocupou
com a família de sua mãe um imóvel na Rua São Francisco da Prainha. Mas, de acordo
com as relatoras, após a divulgação dos planos urbanísticos da prefeitura para a Zona
Portuária, outros inquilinos e moradores informais foram novamente expulsos de seus
imóveis por meio de ação policial ou de processos de reintegração de posse.

132
Na percepção dos moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal, o
projeto Humanização do Bairro implantado pela VOT tinha como objetivo converter os
moradores da Zona Portuária para os “valores católicos” e desejavam expulsar em
especial aqueles pertencentes às “religiões do santo”. E consideravam que a entidade
franciscana e os urbanistas da prefeitura possuíam uma concepção preconceituosa do
conjunto dos moradores da Zona Portuária, por considerá-los desestruturados
socialmente e por, no Morro da Conceição, reconhecerem como tradicional apenas a
ocupação portuguesa e espanhola. E, colocando-se como representante de uma
coletividade de moradores, o grupo afirmava que havia sido por causa do despejo em
2005 de trinta famílias de um sobrado na Rua Mato Grosso, conhecido pelo nome de
Palácio das Águias, que eles haviam decidido pleitear o reconhecimento do “território
étnico”.
Após explicarem o conflito e apresentarem as percepções do grupo sobre ele, as
relatoras articularam os “fundamentos históricos” do pleito da comunidade quilombola.
Percebi então que essa narrativa era a presentificação do que denominei de “mito da
Pequena África” ao observar que ela se baseava principalmente em dois textos que
articulavam, cada qual, uma versão específica dele: o livro Tia Ciata e a Pequena
África no Rio de Janeiro, do cineasta Roberto Moura; e a Proposta de Tombamento da
Pedra do Sal do INEPAC, elaborada pelo historiador Joel Rufino e inventariada pela
museóloga Mercedes Viegas. E, para compreender as diferentes versões do mito,
comparei esses dois textos ao das relatoras, procurando fazer uma qualificação das
variações identitárias, espaciais e temporais da memória “afrodescendente” e “popular”
que estavam sendo articuladas por eles e de suas diferentes retóricas da perda.
Em seu livro, Roberto havia delimitado como sendo o território da Pequena
África o espaço ocupado por negros de Salvador no bairro da Saúde a partir da segunda
metade do século XIX e, após as reformas urbanísticas realizadas na Zona Portuária por
Pereira Passos no início do século XX, estendeu este espaço para a Cidade Nova, cujo
centro de referência era a Praça Onze. Nesse território, ele havia reunido não apenas
“africanos” e “baianos”, mas também indivíduos de diversas origens e religiões que
participavam das atividades econômicas e recreativas que chamou de “populares”.
Assim, na versão mítica de Moura, a “diáspora baiana” estaria incluída na “Pequena
África”, mas as duas categorias não eram simétricas.
Em sua versão da Pequena África, o autor havia afirmado que buscava evitar a
perda da “memória subalterna e negra” da cidade do Rio de Janeiro através da narração

133
desta história, para que o conjunto da sociedade pudesse refletir sobre as desigualdades
raciais e sociais decorrentes do passado escravista do país. Na rede de transmissores e
herdeiros desta memória que construiu, Roberto conectou os escravos africanos
chegados em Salvador, os negros baianos migrados para o Rio de Janeiro após a
abolição, os participantes dos sambas da casa de Ciata e dos cultos de candomblé da
casa de João Alabá no início do século XX, até seus descendentes consanguíneos e de
família de santo nas décadas de 1970 e 80. E, com seu livro, o autor inseriu a noção de
Pequena África em uma lógica de patrimonialização, ao organizar e difundir um
conjunto específico de genealogias, mitos de origem, ancestrais sagrados e deuses.
Na proposta de tombamento da Pedra do Sal, o livro de Roberto foi utilizado
como fonte primordial de informação, mas os termos “diáspora baiana” e “Pequena
África” foram definidos pelos especialistas do patrimônio com a inclusão de algumas
nuances em relação à narrativa do cineasta. Joel afirmou que a Saúde era uma “pequena
Bahia”, e que era a Bahia uma “pequena África”, articulando assim um sistema de
autenticidade de origens culturais. E o termo “diáspora baiana” foi definido por
Mercedes também operando a separação entre “baianos” e “africanos”, já que ela
identificava como frequentadores da Pedra do Sal dois distintos “grupos negros”, com
especificidades territoriais e identitárias: os baianos que tinham ocupado as casas
próximas à Praça Onze e ao cais do porto e que participavam das festas de candomblé
lideradas por João Alabá; e os africanos que moravam no alto da Pedra do Sal e
participavam dos cultos mulçumanos conduzidos por Assumano Mina. Assim, na
patrimonialização da Pedra do Sal a memória “subalterna e negra” da Pequena África
organizada por Roberto havia sido presentificada para evitar a perda do “local de
memória”, só que representando somente os “afrodescendentes” e excluindo, portanto,
a noção mais abrangente de “populares”.
No Relatório Histórico e Antropológico sobre o Quilombo da Pedra do Sal, o
mito da Pequena África ganhou uma versão com variações narrativas que buscavam dar
conta do conflito vivenciado pelos pleiteantes do “reconhecimento étnico” e de suas
características sociais específicas. Nessa versão, o encontro mítico entre o prefeito
Pereira Passos, os integrantes da “diáspora baiana” e os “brancos católicos da elite” foi
presentificado e personificado pelos urbanistas do Porto do Rio, os integrantes do
Quilombo da Pedra do Sal e os dirigentes da VOT. Foi articulando essa narrativa mítica
que as relatoras comprovaram a “continuidade histórica” no território pleiteado dos
moradores que haviam formado a comunidade quilombola. Pois, como não havia uma

134
ocupação de seus integrantes em um mesmo espaço ao longo do tempo que fosse
baseada em uma “trajetória histórica própria”, como era definida pela noção jurídica do
termo “comunidade remanescente de quilombo”, as relatoras argumentaram que o
direito dos quilombolas estava ancorado em uma noção de “reparação histórica”: por
serem eles emblemas de uma “resistência” cultural e política contra o que afirmaram
ser uma sucessão histórica de opressões que teria impedido os afrodescendentes de
permanecerem morando nos bairros portuários e centrais da cidade.
A passagem da memória dos afrodescendentes que no passado moraram nesses
bairros para a identificação de um grupo de pessoas específicas que seriam herdeiras de
tal memória foi então operada pelas relatoras a partir de múltiplas conexões simbólicas,
divididas em três “momentos históricos”. O primeiro momento abrangeu o período do
século XVIII até 1850 e abordou aspectos da conformação urbana da Pedra do Sal e da
comercialização de escravos que chegaram pelo porto. No segundo momento, que
abarcou o período entre 1850 e 1950, a narrativa de Roberto Moura sobre a Pequena
África foi utilizada para delimitar o território que teria sido ocupado pelos
“antepassados do grupo quilombola” e para qualificar esse “legado cultural”: as rodas
de samba, os ranchos carnavalescos, o trabalho no porto, o culto aos orixás, as
habitações populares e as revoltas urbanas.

Mesmo que sua presença na área sempre fosse precária e transitória, posto que ali estavam
como inquilinos, moradores de barracos, ou trabalhadores temporários, os afrodescendentes
impingiram ao local, neste momento histórico, entre as últimas três décadas do século XIX e
as primeira do século XX, um reduto cultural reconhecidamente negro. A população
residente nos distritos da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Santana e Cidade Nova organizou-
se para ganhar a vida na capital do Império e, depois da República, através da herança
comum afro-brasileira “de trabalho, festa e religião” (Moura, 1983, 81). Enfrentando o
preconceito e a segregação, o legado cultural hoje reivindicado pela comunidade do
Quilombo da Pedra do Sal foi fundamentalmente construído neste momento.

As relatoras então listaram todos os personagens da “diáspora baiana” citados na


narrativa de Roberto e dos “baianos” e “africanos” da narrativa dos especialistas do
patrimônio. No entanto, incluíram em sua versão do mito da Pequena África mais um
“antepassado”: Mano Eloi, portuário nascido no Vale do Paraíba fluminense e, portanto,
não classificável como “baiano” ou “africano”. A inclusão deste antepassado, no
entanto, buscava estabelecer uma conexão com as características socioculturais de parte

135
dos integrantes da comunidade quilombola da Pedra do Sal, já que alguns deles se
apresentavam como “afrodescendentes”, “do santo”, “portuários” e “sambistas”, mas
eram procedentes de famílias do interior do Estado do Rio de Janeiro.
No terceiro momento histórico, que percorria a década de 1950 até o presente, as
relatoras descreveram a “ruptura da continuidade espacial da Pequena África” após a
separação dos bairros da Cidade Nova e da Saúde provocada pela abertura da Avenida
Presidente Vargas. E apresentaram as “tradições negras” da Zona Portuária que haviam
sido “renovadas” com o passar dos anos e se encontravam presentificadas nos
integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e do bloco carnavalesco Afoxé Filhos de
Gandhi. E com a afirmação dessa “renovação da tradição” era feita a passagem narrativa
para a apresentação dos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal: duas “matriarcas”
que foram morar na Zona Portuária na década de 1950 e cinco moradores qualificados
como “militantes negros e de movimentos comunitários”, descendentes da “última
geração de africanos escravizados para a expansão cafeeira no Rio de Janeiro
oitocentista” e/ou de “estivadores negros chegados à Região Portuária logo após a
abolição”, “do santo” e “do samba”. E, por último, eram citados mais cinco integrantes
que não possuíam todos os elementos da “identidade étnica” articulada pela noção
jurídica de comunidade quilombola, mas que haviam aderido ao pleito por estarem
igualmente em conflito com a VOT e por possuírem um “espírito quilombola”, que era
definido como o desejo por uma “vida comunitária”.

Hoje, os novos conflitos na região incidem diretamente nas possibilidades de continuidade


dos afrodescendentes neste espaço simbólico africano. Com as novas ameaças de expulsão,
são as próprias vozes dos herdeiros desse patrimônio que precisam ser protegidas e
garantidas. Seu patrimônio imaterial, entendido como suas história e memória em torno da
Pedra do Sal, é a base de sustentação para a defesa e continuidade da presença da
comunidade no território reivindicado para titulação.

Encerrando sua versão do mito as relatoras articularam discursivamente que a


perda eminente que o pleito de reconhecimento étnico do Quilombo da Pedra do Sal
desejava evitar era a dos “herdeiros do local de memória”, ou seja, de indivíduos que
encarnariam a memória e os valores culturais dos antepassados míticos da Pequena
África. E, nessa versão, era proposta uma nova dramatização da continuidade histórica
entre os transmissores e herdeiros: de escravos e africanos aportados na Zona Portuária;
aos negros baianos e fluminenses que frequentavam a Pedra do Sal após a escravidão;

136
até os moradores despejados pela ordem franciscana comprometidos com a manutenção
do “espírito quilombola”.
E, nela, o território da Pequena África também se modificou: na proposta de
delimitação do território étnico foram incluídos a Pedra do Sal e o Largo João da
Baiana, alguns imóveis do entorno do largo e da Rua São Francisco da Prainha e a sede
do Afoxé Filhos de Gandhi localizada na Rua Camerino. Além desse território, as
relatoras também indicaram o reconhecimento de alguns espaços como “marcos
simbólicos e territoriais identificados com a memória e a história negras”: toda a área
contida entre o Largo da Prainha e o Morro da Saúde, incluindo o antigo mercado de
escravos do Valongo, o cemitério dos Pretos Novos e a retro-área portuária dos bairros
da Saúde e Gamboa; excluíram, no entanto, a Cidade Nova.

OS DIVERSOS USOS DO “TERRITÓRIO ÉTNICO”

Em abril de 2008, o antropólogo do INCRA, Miguel, me informou por telefone


que o território étnico que havia sido delimitado ficou composto pelos imóveis
localizados no lado ímpar do trecho da Rua São Francisco da Prainha entre os largos da
Prainha e João da Baiana; por quatro imóveis localizados no entorno do Largo João da
Baiana; e pelo sobrado que sediava o Afoxé Filhos de Gandhi e que meses depois
soube, através de seus componentes, ser de propriedade do governo estadual e haver um
órgão interessado em retomar sua posse.
Dos imóveis localizados no
entorno do Largo João da Baiana, foram
pleiteados os números 27 e 29 da
Travessa do Sereno, utilizados pelo
Centro Comunitário do Projeto
Humanização do Bairro, e os sobrados 43
e 45, que ficavam atrás do bar Bodega do
Sal e do restaurante Victoria Self Service
e eram ocupados por moradores. Esses dois estabelecimentos comerciais, no entanto,
tinham ficado fora do território pleiteado. Conversei então em maio com seus
proprietários para conhecer suas atividades e saber como percebiam e se relacionavam
com os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal.

137
O Victoria Self Service só abria nos dias de semana no horário do almoço e era
comandado por Irene, que desde 1980 morava no sobrado: primeiro como sublocadora
de uma “vaga” e, depois, como proprietária do imóvel. Quando era inquilina, no
segundo andar do sobrado eram oferecidas vagas para “marinheiros” e, no primeiro
andar, funcionava uma loja de estofado. Ao se casar com um funcionário da Marinha,
em 1993, eles compraram o imóvel por 20 mil dólares e, três anos depois, abriram um
“restaurante a quilo” no andar térreo. No ano de 2000, ela e o marido se separaram e
Irene continuou a cuidar do restaurante com a ajuda de um de seus filhos.
Irene me disse que já tinha ouvido falar sobre o movimento quilombola, mas
nenhum de seus integrantes a havia chamado para participar de qualquer reunião ou do
próprio pleito étnico. Conhecia apenas Lúcia e as festas que realizava no largo em
comemoração aos dias de São Jorge, da Consciência Negra e do Samba, ocasiões em
que pedia o seu consentimento para armar uma barraca de venda de cerveja. Em relação
à VOT e às suas atividades educacionais e sociais, Irene contou que nunca tinha
conseguido uma vaga para qualquer um de seus três filhos nas escolas franciscanas,
embora tivesse tentado: uma vez havia ficado de madrugada na fila para fazer a
inscrição na Escola Padre Dr. Francisco da Motta, mas não foi chamada, e muitos outros
moradores do morro também tinham tentado uma vaga e não tinham conseguido.
A fala de Irene demonstrava assim que ela não possuía um relacionamento
constante com os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, embora houvesse um
código estabelecido de respeito mútuo sobre suas formas de habitar: Lúcia pedia sua
autorização informal para realizar as festas do grupo no largo e Irene não articulava
qualquer discurso sobre os integrantes do grupo serem “invasores”, moradores
“irregulares”, ou “inautênticos” em sua reivindicação. E era esse reconhecimento e
respeito que provavelmente havia determinado a não inclusão do imóvel no “pleito
étnico”, mesmo estando ele no centro simbólico da “comunidade quilombola”. Irene
tampouco articulava uma narrativa contrária à presença da VOT no morro, embora se
ressentisse de não ter conseguido usufruir, assim como outros, das atividades
educacionais desenvolvidas pela entidade.
A Bodega do Sal só abria nas noites de 2ª e 4ª feiras, quando organizava rodas
de samba, e foi em uma delas que conheci seu dono, Leonardo. Ele me contou que
morava em Niterói e trabalhava desde 1999 no prédio da CEDAE, ao lado do largo. E
que, nessa época, funcionava naquele sobrado um “botequim” que vendia cachaça,
cerveja e sardinha frita e era composto por um balcão longitudinal, um mictório e um

138
banheiro para mulheres em “péssimas condições”. Esse sobrado era de propriedade da
Irmandade Santa Cruz dos Militares, entidade católica sediada na região central da
cidade, e em 2002 havia sido fechado por causa da falência e despejo de seu
comerciante. Leonardo então procurou a irmandade e negociou um contrato de aluguel
onde trocou os três primeiros anos de pagamento por obras nas partes elétricas,
hidráulicas e de fachada do imóvel.
Em sua avaliação, tinha sido o “cenário” da Pedra do Sal e seu passado
associado ao samba que tinha feito com que músicos se interessassem por tocar no
largo. A roda de samba de 2ª feira havia surgido em 2006, através da iniciativa de
músicos que procuravam um local que não cobrasse ingresso para se apresentarem com
seu grupo, o Batuque na Cozinha. Com o sucesso de público dessa roda, outro grupo
musical propôs a Leonardo a organização de um evento de apresentação de
composições musicais inéditas nas noites de 4ª feira, que foi denominado Samba na
Fonte. Seu bar se colocado, assim, como um ponto de encontro de pessoas que
trabalhavam nas áreas portuárias e centrais e que já percebiam ser o largo uma
referência histórica do samba.
Enquanto fazia a reforma do bar, Leonardo me disse que havia se dedicado a
pesquisar textos sobre a Zona Portuária para se “adaptar socialmente”, narrando em
seguida uma versão do passado do Morro da Conceição que demarcava sua origem pela
colonização portuguesa. E, ao falar sobre a absorção da mão de obra escrava na cidade
no fim do século XIX, comentou o pleito do Quilombo da Pedra do Sal. Em sua
opinião, a história da abolição da escravidão não estava sendo bem utilizada no pedido
de reconhecimento daquela área como quilombo: mesmo tendo sido a Zona Portuária
ocupada por um comércio de negros e por “pessoas excluídas ou menos afortunadas”,
achava um exagero afirmar que “tribos” haviam se estabelecido ali. Por isso
considerava os integrantes do grupo “oportunistas”, se comparados aos “verdadeiros
quilombolas” da Chapada da Diamantina, dos Veadeiros ou do Espírito Santo. Pois,
para ele, não era possível garantir a perpetuação de “uma cultura, uma etnia, um hábito,
um costume” em uma área urbana que qualificava como formada “no meio de uma
argamassa de cimento, pequenos cômodos”.
Leonardo associava, assim, o termo “quilombo” a uma noção de agrupamentos
humanos tidos por isolados ou primitivos, colocando-o em um sistema de autenticidade
cujo extremo mais negativo eram os “oportunistas”, que entedia como pessoas que se
apropriavam indevidamente da identidade cultural negra para obter benefícios pessoais.

139
E, para me demonstrar o que classificava ser um oportunismo, disse que Damião havia
tentado fundar uma associação de moradores da Pedra do Sal, mas era apenas “invasor”
de uma casa e pertencente a um “movimento de sem tetos”. Estruturava, portanto, a sua
percepção do espaço articulando as oposições “moradores” e “invasores” e questionava
com argumentos semelhantes aos da VOT a autenticidade cultural e histórica do
movimento quilombola. E, ao incluir em seu discurso as condições de moradia que
considerava negativas, percebia as casas de “pequenos cômodos” da Zona Portuária
ocupadas por vários núcleos familiares não como também uma forma de habitar, mas
apenas como decorrente de uma situação de “exclusão social”.
Assim, o posicionamento de Leonardo, embora valorizasse o passado do Largo
João da Baiana e da Pedra do Sal associado ao samba, não compartilhava da percepção
de que o ritmo era herança de uma forma específica de habitar ou de um “grupo de
afrodescendentes”. No entanto, a despeito de suas opiniões, o uso contínuo de seu bar
por sambistas possibilitava que o largo permanecesse como um espaço passível de ser
associado à cultura negra e ressonante entre seus frequentadores e expectadores. E
parecia ser pelo desejo de manutenção desse uso que os integrantes do movimento
quilombola não incluíram o imóvel no território étnico pleiteado, evitando, assim, que
ele fosse fechado e desapropriado.
Mas o principal usuário do
território étnico pleiteado pelos moradores
que formaram o Quilombo da Pedra era a
VOT, que possuía muitos dos imóveis do
entorno da Pedra do Sal. E, para conhecer
a atuação da entidade no morro, visitei o
Centro Comunitário do Projeto
Humanização do Bairro, cuja fachada era
identificada por uma grande faixa de plástico com as logomarcas de seus realizadores e
financiadores. O centro era instalado em dois sobrados unificados na Travessa do
Sereno, em frente ao Largo João da Baiana, e quando entrei nele fui recepcionada por
Ioná. Advogada e coordenadora operacional do projeto, ela conversou comigo
articulando uma fala institucionalizada sobre as realizações dos franciscanos no morro,
explicando que o projeto havia sido patrocinado por “organizações alemãs” durante os
anos de 2002 e 2007 e que esse financiamento havia possibilitado as reformas das

140
casas, a compra de maquinário e mobiliário e o pagamento de funcionários; mas que,
passado esse período, era a verba da própria VOT que o mantinha.
O projeto era composto por cursos de profissionalização e por programas
voltados para a “saúde da mulher e da criança”, incluindo atendimento médico.
Segundo Ioná, o perfil socioeconômico dos atendidos era de baixa escolaridade e
composto principalmente por “mulheres vindas das regiões Norte e Nordeste do país,
sem marido e com filhos”, muitas moradoras dos morros da Providência e do Pinto. Os
cursos duravam 100 horas, eram realizados por cerca de três meses, possuíam em média
quinze alunos e eram gratuitos, incluindo o material didático. Seus critérios de inscrição
eram a residência na Zona Portuária ou no Centro e a idade superior a 14 anos. Já o
atendimento odontológico era disponibilizado apenas aos alunos das escolas da VOT,
às mulheres grávidas e às crianças de até 14 anos e suas mães. Tais critérios
estruturavam, assim, os espaços das “obras franciscanas” a partir das oposições
“feminino” e “masculino”, “criança” e “adulto” e, dentro da classificação de “criança”,
distinguia “alunos” e “não alunos” das escolas da VOT. E, na compreensão de
“morador” e “não morador”, estendia a noção para uma área mais abrangente que a do
Morro da Conceição, incluindo nela todos os que residiam nos bairros portuários e
centrais da cidade.
Toda a parte financeira do projeto era controlada pela sede administrativa que
ficava no hospital na Usina, no morro não era movimentado dinheiro por “questão de
segurança”, já que o sobrado do centro comunitário havia sido arrombado e seus
equipamentos roubados pouco dias após sua abertura em 2004. Depois desse
arrombamento, os integrantes da VOT decidiram colocar grades em todas as janelas e
portas das casas reformadas pelo projeto, mas, segundo Ioná, esse não era o principal
problema que enfrentavam: a situação que mais interferia nas suas atividades eram os
tiroteios no Morro da Providência, quando o comando do tráfico de drogas mandava
fechar o centro comunitário e as escolas para evitar a circulação das crianças.
Ioná então me mostrou algumas fotos expostas em um mural na parede, onde
figurava o sobrado do centro comunitário “antes e depois” da reforma realizada pela
entidade, exibindo assim o projeto como um demarcador de temporalidade e
materialidade do imóvel. E contou que, “antes”, ali era uma “cabeça de porco”: residiam
muitas pessoas, havia tráfico de drogas e prostituição e já tinha ocorrido um homicídio.
As demais casas utilizadas pelo projeto foram descritas por Ioná como ocupadas por
“moradores”, mas ela considerava que o fim do uso residencial para a instalação das

141
“obras sociais” havia gerado “um bem maior”. A fala de Ioná fazia, assim, uma
recorrente referência ao que considerava serem os “perigos” dos espaços da Zona
Portuária, os associando principalmente às ideias de criminalidade, prostituição e
condições precárias de moradia. E opunha discursivamente “traficantes e prostitutas” a
“moradores” e “bem individual” a “bem coletivo”.
Mas era na Rua São Francisco da Prainha
onde estava a maior parte dos imóveis pleiteados
como território étnico. No trecho reivindicado
haviam nove sobrados de dois andares que eram
utilizados como moradia ou de forma mista, com o
desenvolvimento de algum tipo de atividade
comercial no térreo, como espaço de depósito de
produtos e equipamentos por comerciantes
ambulantes de comida e bebida. Dispostos a sua
frente, havia engradados de cerveja, transportadores
manuais de produtos denominados usualmente de
“burros sem rabo”, carrinhos para venda de angu, churrasquinho e cachorro quente, e
cadeiras e mesas plásticas. Na maioria deles, a fiação elétrica percorria o lado externo
da fachada, o revestimento e a pintura estavam parcialmente deteriorados e havia vidros
de janelas quebrados; e, no topo de todos, o emblema da igreja católica identificava os
imóveis como pertencentes à VOT. Havia ainda mais três imóveis que eram utilizados
de forma exclusivamente comercial: um que havia recebido o acréscimo de um terceiro
andar e que, no térreo, uma tabuleta de chão indicava ser a Pensão Marie; e dois que
haviam sido unificados em um grande galpão para abrigar uma oficina de papel.
Compondo um único e amplo
conjunto visual, outros três imóveis
estavam desocupados e ostentavam na
fachada um letreiro que os identificavam
como a sede da administração da VOT em
1897. E dois imóveis eram ocupados por
cursos de profissionalização do Projeto
Humanização do Bairro: um pela Padaria

142
Escola e outro pela Gráfica Escola e a Marcenaria Escola. Ioná havia me informado que,
naquele momento, estavam em funcionamento apenas os de padaria e marcenaria, o de
gráfica estava sem turma.
Fui conhecer o curso de padaria durante o horário de aula e o professor Marcos
solicitou que a aluna Joana me mostrasse suas instalações. No primeiro andar do
sobrado ficavam os mantimentos e o maquinário de fabricação dos pães; no segundo,
havia banheiros, uma cozinha e cortadores de pão; e, no terceiro, uma sala com cadeiras
de aula e banheiros com chuveiro. O curso funcionava três vezes por semana, com
duração de três horas e meia cada aula e, ao final, o aluno saía formado como ajudante
de padaria. Segundo Joana, todos os cursos de profissionalização que a VOT oferecia no
morro eram introdutórios e quem quisesse se aperfeiçoar precisava fazer aulas
complementares em outros cursos. Aquela turma da padaria era a terceira: a primeira
turma havia sido criada em dezembro 2007 e composta por alunos do Colégio Sonja
Kill e, a partir da segunda, já estavam sendo compostas pela “comunidade”. Os alunos
da padaria não recebiam qualquer pagamento pela produção dos pães nas aulas, que era
de 600 unidades por dia e destinada ao café da manhã das escolas da VOT. Havia ainda
um projeto para que essa produção fosse aumentada e servisse também à creche e ao
hospital da entidade na Usina e, progressivamente, ao conjunto dos projetos que possuía
no Estado do Rio de Janeiro; e outro para que fosse aberta uma loja para
comercialização dos produtos.
Durante nossa conversa, Joana me contou que trabalhava no porto e havia cinco
anos que morava na Gamboa. Ela possuía um de seus filhos matriculado na Escola
Padre Dr. Francisco da Motta e, toda 5ª feira, organizava voluntariamente junto com
outras mães de alunos um almoço para os comerciantes que participavam do Rotary
Club, uma das instituições financiadoras do projeto de ampliação da escola. Havia sido
durante um desses almoços que ela tinha sabido da existência do Quilombo da Pedra do
Sal, quando uma equipe contratada pelo Rotary e formada por advogado, historiador e
antropólogo foi apresentar à “comunidade escolar” documentos para comprovar que o
território que o grupo estava reivindicando era de propriedade da VOT. Na opinião de
Joana, o pedido de reconhecimento do território quilombola era “sem eira nem beira” e
tinha lhe causado especial estranhamento um dos integrantes do movimento ter um filho
matriculado na escola.
Logo após, fui ao sobrado onde havia sido instalado o curso de marcenaria.
Cheguei fora do horário de aula e o professor Paulo me recebeu e contou que as aulas

143
estavam sendo oferecidas havia dois anos e que, assim como no de padaria, o curso
funcionava três vezes por semana e tinha três horas e meia de duração por dia. No
primeiro andar do sobrado, funcionavam uma cozinha e a oficina de marcenaria e, no
segundo, havia um banheiro e uma sala de aula. Durante o curso, os alunos faziam
trabalhos manuais em madeira e, apenas ao final, usavam as máquinas voltadas para a
produção em fábrica. Eles já tinham conseguido produzir diversos objetos, como
gabinetes para computador, lixeiras, balcão e portas, que foram utilizados para equipar
as escolas, o curso de informática, e a biblioteca da VOT. Os produtos gerados no curso
de marcenaria também não eram remunerados.
O projeto da entidade era incentivar que os alunos abrissem seus próprios
negócios, mas, até aquele momento, apenas um ex-aluno que já trabalhava
anteriormente com máquina e madeira tinha conseguido organizar uma empresa. A
maioria declarava ter como interesse apenas a realização de pequenos trabalhos e
consertos domésticos, sendo que as mulheres normalmente se voltavam para a produção
de objetos artesanais. Paulo também contou que a ideia inicial era que o curso fosse
frequentado apenas pelos moradores da Zona Portuária, mas, por causa do baixo
interesse, havia sido aberta a possibilidade de inscrição de moradores de outras regiões
da cidade. Em sua avaliação, os cursos profissionalizantes da VOT não eram muito
procurados porque as pessoas consideravam pouco importantes as profissões oferecidas,
por isso apenas o de informática havia tido um grande número de inscritos.
Essas conversas com frequentadores dos espaços da VOT no morro indicaram,
assim, que a ideia dos “cursos de profissionalização” não estava encontrando
ressonância entre os que deveriam ser o seu público, que eram os “moradores pobres”
da Zona Portuária, por serem introdutórios e voltados para atividades consideradas
pouco lucrativas. Além disso, também demonstravam que o Projeto Humanização do
Bairro voltava-se principalmente para a manutenção das escolas e a formação e
assistência complementar de seus alunos, movimentando uma noção de coletividade
expressa pelo termo “comunidade escolar”. E que, nessa comunidade, havia uma
expectativa de compartilhamento com a visão de mundo e as maneiras de estruturar os
espaços dos franciscanos, como podia ser percebido no espanto de Joana ao saber que
um “pai de aluno” tinha organizado uma reivindicação contrária à VOT.
A partir do conhecimento inicial do Projeto Humanização do Bairro, percebi
que “as escolas” eram o principal espaço de referência dos franciscanos no morro, e
agendei um encontro com Cristina, coordenadora de educação infantil da Escola Padre

144
Dr. Francisco da Motta, cuja entrada ficava no Beco João José. Ela trabalhava na escola
havia 32 anos e conversou comigo rapidamente, me passando algumas informações
sobre seu funcionamento. Naquele ano, havia 1.100 alunos matriculados na escola e 120
alunos no Colégio Sonja Kill, sendo que todos estudavam durante um período do dia e,
no outro, faziam os cursos oferecidos pela VOT nas casas do Adro de São Francisco.
Além dessas atividades, em um sábado por mês os pais dos alunos se reuniam na escola
para debater algum assunto ou para realizar aulas de educação física. As escolas
possuíam três distintos critérios de admissão: ser morador da Zona Portuária, ser filho
de funcionário da entidade ou ser irmão de um aluno já matriculado. E tais critérios
tornavam, assim, os vínculos já estabelecidos com a própria entidade o principal
elemento de seleção.
Sobre os almoços que eram organizados na escola, Cristina explicou que a
diretora geral, Regina, era a presidente do Rotary Club da Saúde e que essa instituição
era um “clube de ação comunitária” sem vínculo religioso e composto por comerciantes
e moradores da região. Os almoços eram “eventos beneficentes” onde ocorriam
palestras e discussões sobre a Zona Portuária e seus participantes pagavam pela comida
e bebida consumida, angariando dinheiro para a escola. Além desses almoços, uma vez
por mês, também às 5ª feiras, entidades atuantes na região como a VOT, o Rotary Club,
a CEDAE, a Light, algumas associações de moradores, o Moinho Fluminense e os
dirigentes de igrejas católicas organizavam um café da manhã com representantes da
secretaria estadual de segurança pública para discutir “problemas da comunidade”.
Assim, através das escolas a VOT movimentava uma ampla rede de relações, que
extrapolava as situações educacionais e os limites físicos do morro.
Na saída da escola, fui apresentada por Cristina a Perci, que além de inspetor
dos alunos era o “zelador” da Igreja da Prainha e um dos últimos moradores de uma das
casas do Adro de São Francisco, já que a maioria tinha sido desocupada para instalar
cursos do Projeto Humanização do Bairro. Combinei com ele um encontro na igreja no
domingo seguinte, quando foi celebrada uma missa em homenagem ao dia das Mães.
Ao fim da celebração, Perci me explicou que as missas ocorriam apenas nas manhãs de
domingo e eram os alunos das escolas da VOT e suas mães que a frequentavam, os
demais moradores e usuários católicos do morro costumavam ir à capela da Rua Jogo da
Bola ou à Igreja de Santa Rita. Todos os alunos das escolas tinham aulas obrigatórias de
religião e os que estavam fazendo a primeira comunhão deviam comprovar a ida à igreja
todo domingo. Assim como na organização dos almoços do Rotary na escola, eram as

145
mães dos alunos que voluntariamente se encarregavam da limpeza da igreja, fazendo
um mutirão mensal depois da missa.
Perci também era voluntário da igreja e me disse que considerava esse trabalho
um “prestamento de contas a Deus”. Sua família era formada por trabalhadores rurais de
Itapiruna, município do Norte Fluminense, e sua relação com a VOT havia começado
em 1968, quando ele tinha 18 anos de idade. Um “compadre” de seu pai morava em
Belford Roxo, município da Baixada Fluminense, e ofereceu a moradia em sua casa
para que ele estudasse na cidade do Rio de Janeiro. A ideia inicial de Perci era se
sustentar economicamente entrando para o Exército, mas ele não foi convocado. Então a
filha desse compadre, que era governanta na casa de Ataíde, administrador da VOT que
morava no Adro de São Francisco, conseguiu um emprego para Perci na Escola Padre
Dr. Francisco da Motta, que estava sendo reformada. Ele foi contratado como servente,
mas, ao fim da obra, Ataíde disse que, para continuar trabalhando na escola, tinha que
completar os estudos.
Ao aceitar a condição, Perci se tornou faxineiro da escola e passou a morar nela
para evitar a locomoção diária para Belford Roxo. Quando chegou ao morro, ele só
tinha estudado até a 3ª série e, nos anos que seguiram, conseguiu concluir o primário e o
supletivo do 2º grau e se tornar auxiliar de secretaria da escola. Emocionado, Perci
contou que Ataíde o tratava “como um filho”: olhava seus cadernos escolares e
eventualmente o chamava para almoçar junto de sua família. Em 1985, Perci se casou,
alugou uma casa da entidade, sua esposa foi trabalhar na escola e os dois filhos que teve
estudaram nela, sendo que sua filha Priscila também se tornou funcionária da VOT. E,
através dessa conversa com Perci, pude compreender que os envolvidos nos projetos
sociais e educacionais franciscanos se inseriam em um amplo sistema de trocas, onde
havia ações tanto “voluntárias” quanto “obrigatórias” e onde os vínculos não apenas
educacionais, mas também religiosos e de trabalho baseavam as relações sociais.
E, com a observação desses diversos usos do território pleiteado pelo Quilombo
da Pedra do Sal, percebi que esse espaço do morro contido entre os centros de irradiação
simbólica do “patrimônio franciscano” da Igreja da Prainha e do “patrimônio negro” da
Pedra do Sal era instável e liminar: variava de acordo com os dias da semana e com os
períodos diurnos e noturnos,e comportava diferentes atividades, como residenciais,
comerciais, recreativas, assistenciais e religiosas. E concluí que era a estabilização
desses usos que se encontrava em disputa por seus diferentes habitantes, sendo o
confronto entre a VOT e os moradores ligados ao MNU e unidos pelo “santo” que

146
organizaram o pleito étnico a precipitação de uma crise habitacional local anterior ao
plano urbanístico Porto do Rio, ainda que por esse projeto catalisada.

O PROJETO FRANCISCANO PARA UMA “POPULAÇÃO MARGINALIZADA”

Segundo estudo do historiador William Martins (2006), a Ordem Terceira de


São Francisco havia surgido no continente europeu no século XIII com o intuito de
tornar interdependentes os diferentes membros que compunham a igreja católica e a
sociedade leiga. Foi denominada de Terceira porque já existiam a Ordem Primeira,
formada pelos frades, e a Ordem Segunda, composta pelas freiras. Na cidade do Rio de
Janeiro, a instalação dos religiosos franciscanos havia ocorrido no início do século
XVII, quando construíram um convento no Morro de Santo Antônio, local
posteriormente transformado no Largo da Carioca. Durante o período colonial
brasileiro, os frades franciscanos seguiram as diretrizes adotadas em Portugal, que
postulavam a simplicidade material e a prestação de serviços espirituais, como sermões,
ladainhas e missas. E à VOT foi incumbida a responsabilidade de administrar os
legados que esses frades recebiam, o que fez com que se tornasse, no início do século
XIX, a principal proprietária de imóveis urbanos da cidade.
Em 2008, a entidade se apresentava em seu site institucional, www.vot.com.br,
como uma sociedade civil, de caráter religioso, beneficente, educacional, cultural,
assistencial e filantrópico. Sediada na Usina, Zona Norte da cidade, onde possuía um
grande hospital e uma creche, a entidade ainda administrava “obras sociais” no Vidigal,
Zona Sul da cidade, e no município de Duque de Caxias, um cemitério no Caju e a
Igreja São Francisco da Penitência no Largo da Carioca. E a “missão” que se atribuía
era o cuidado com o “doente” através do tratamento de seu “corpo” e “espírito”, em um
discurso que conferia uma noção religiosa às atividades que desenvolvia e estruturava o
mundo opondo as ideias de “material” e “imaterial” e de “saúde” e “doença”.
A ocupação da entidade no Morro da Conceição era narrada por seu site
institucional através da apresentação de antepassados, momento fundador das “obras
sociais” e “missões”. Segundo essa narrativa mítica, em 1696 o advogado português
Padre Francisco da Motta havia recebido um terreno na Rua da Prainha como forma de
pagamento de uma grande ação judicial movida contra os beneditinos situados no
Morro do São Bento. Construiu nele a Igreja de São Francisco da Prainha e, ao morrer
em 1704, fez a doação testamentária da igreja à VOT. Em 1897, a entidade então criou

147
em uma sala dessa igreja uma pequena escola com duas turmas de alunos que, em seu
nome, homenageava o padre. E, em 1922, essa escola foi transferida para um prédio
construído nos fundos do Adro de São Francisco, no Beco João José, e manteve turmas
da pré-escola à 4ª série do ensino fundamental que atendiam a 250 alunos.
O momento de transformação da atuação da VOT no morro era demarcado
como sendo o ano de 1999, quando a entidade elaborou um projeto de expansão do
ensino e de implantação de programas de assistência social e médica. Com a execução
do projeto, em 2003 a entidade ampliou a escola para o ensino fundamental completo e
passou a atender mais de 900 alunos. Também foi implantado nesse período o Projeto
Humanização do Bairro, composto por “programas de saúde, profissionalização e
atendimento a mulheres” que, segundo o site, incluíam consultas nas áreas de clínica
médica, pediatria, ginecologia, dermatologia e odontologia, palestras de
aconselhamento familiar e psicológico, atendimento jurídico e cursos de informática,
cabeleireiro, costura, marcenaria, manicure, artesanato, padaria, entre outros. E, em
2005, a entidade iniciou as atividades do Colégio Sonja Kill, que passou a oferecer o
ensino médio aos alunos egressos da escola.
Nessa clivagem de atuação, o site citava a “luta incansável” de Frei Eckart.
Nascido na Alemanha e ordenado sacerdote em 1966 na Ordem Franciscana dos Frades
Menores na cidade de Rodeio, Estado de Santa Catarina, esse frei assumiu em 1987 a
Superintendência Geral da VOT na cidade do Rio de Janeiro. E, através de sua rede
social, fundou em sua cidade natal a Associação de Amigos do Padre Eckart e
conseguiu o financiamento de organizações alemãs e europeias para os projetos no
morro. A ampliação da escola foi então custeada por Rotary Clubs do Rio de Janeiro e
da Alemanha e pelos governos da Alemanha e do Estado da Baviera. A construção do
colégio foi financiada pela Fundação Sonja Kill, entidade alemã atuante em projetos
para “crianças e jovens” em áreas de “tráfico, prostituição e de outras formas de
escravidão”. E o Projeto Humanização do Bairro foi financiado pela Comunidade
Europeia, por Rotary Clubs, por entidades católicas europeias e pelos governos da
Alemanha e da Baviera, visando atender à população exposta à “contravenção” e à
“imoralidade”.
Mas a VOT não era a única entidade da Zona Portuária que estruturava seus
espaços a partir de um imaginário que os conectava ao tráfico de drogas e à
prostituição. Ao conversar com Cristina, diretora pedagógica da escola, soube da
realização de um dos cafés da manhã mensais do Conselho Comunitário de Segurança

148
Pública que abrangia os bairros portuários. A reunião do conselho no mês de maio foi
realizada na sede do Banco Central, localizado na Avenida Rio Branco. Em seu
auditório, o presidente do conselho e representantes da segurança pública estadual se
posicionaram em cima de um tablado a frente dos demais presentes, que eram em torno
de quarenta pessoas, e conduziram as inscrições das falas. E, durante duas horas de
reunião, o debate que se desenvolveu abordou os usos dos espaços da Zona Portuária e
os mecanismos de “controle” e “segurança” que precisavam ser criados durante a
implantação dos projetos de “revitalização urbana”.
O debate foi iniciado por Darcy Birger, que se apresentou como integrante do
Rotary Club da Saúde e dos projetos da VOT no Morro da Conceição. Ele manifestou a
preocupação com o incentivo aos usos noturnos da Rua Sacadura Cabral, por considerá-
los uma influência negativa aos alunos das escolas da entidade. Em sua opinião, o fim
das atividades portuárias tinha sido positivo por ter diminuído as possibilidades de
“desvios” como o “meretrício”, mas o aumento de concessões para a instalação de
bares poderia trazer “tudo o mais”. Embora Darcy tenha deixado esta expressão sem
definição, seu significado implícito foi facilmente compreendido pelos presentes: logo
em seguida, o presidente do conselho e empresário do mercado imobiliário, José Maria,
conclamou as entidades a se oporem à proposta da vereadora Leila do Flamengo de
incentivar a criação de um polo de turismo na Zona Portuária que atraísse “os
homossexuais e os travestis de Copacabana e Ipanema”. Assim, o “tudo o mais” dito
por Darcy e associado à ideia de “desvio” e “usos noturnos”, estendeu-se para as
sexualidades entendidas como “imorais” e catalisada pela figura do “homossexual”.
Milton San Roman, presidente do Polo Empresarial da Rua Larga, que incluía os
comerciantes e empresários instalados na Avenida Marechal Floriano, na Rua Sacadura
Cabral e no Morro da Conceição, afirmou então que tinha conversado com algumas
“pessoas tradicionais e que acordam cedo” e que elas relataram se sentirem agredidas ao
verem homossexuais se beijando na Rua Sacadura Cabral, se referindo aos
frequentadores da boate The Week. Em sua opinião, os “ambientes noturnos” deviam
ser controlados porque podiam ainda movimentar o consumo de drogas. E informou que
sua entidade estava planejando a implantação de um projeto de “segurança” em toda a
Av. Marechal Floriano, que previa a instalação de câmeras de monitoramento e visava
“reeducar ou estabelecer limites àquelas pessoas que têm agredido às comunidades”.
Sua fala reforçava, assim, a estruturação dos espaços da região através das oposições

149
“diurno” e “noturno”, sendo o primeiro considerado “seguro” e ocupado por “moradores
tradicionais” e, o segundo, “perigoso” e frequentado por “homossexuais”.
O vereador Luís Alberto, que havia sido convidado para a reunião por ter atuado
durante dois anos como secretário de habitação do prefeito César Maia, propôs então
um posicionamento conciliador entre as noções de “segurança”, “moralidade” e
“revitalização” ao colocar como mediadora entre elas a noção de “riqueza”.
Concordando que o crescimento do comércio trazia sempre um pouco de “transtorno”,
contra argumentou que, se fosse “controlada a desordem”, haveriam também
“benefícios econômicos” na transformação de um “porto decadente” em um “porto
voltado para a cidade” que oferecesse equipamentos urbanos de comércio, cultura e
lazer, e ofereceu como exemplos Buenos Aires e Barcelona. E, com essa fala, uniu
como opostas às propostas de revitalização urbana tanto as ideias de “imoralidade” e
“desordem” quanto às de “pobreza” e “decadência”.
E foi a essa “pobreza” que Gabriel Catarina e Eduardo Pedro, ambos
representantes da Associação de Moradores e Amigos da Gamboa, se referiram a seguir.
Como forma de demonstrar o “desrespeito” da proposta da vereadora Leila do
Flamengo e de outros “políticos” com a Zona Portuária, Gabriel comentou que havia
existido tempos atrás uma proposta de remoção da Vila Mimosa12 para um dos galpões
da retro-área portuária. E Eduardo completou, também em tom de denúncia, que já
havia sido feito um recolhimento de “mendigos” e “menores abandonados” da Zona Sul
para serem encaminhado para a região. Outra integrante do Rotary Club da Saúde,
Carmelina, se dirigiu então para o vereador Luís Alberto e criticou a escolha constante
da prefeitura de concentrar no porto essas atividades da cidade que não eram “bem
vistas”. Na sequência de falas, os três tinham operado, portanto, com uma geografia
moral da cidade mais ampla, que valorizava social e economicamente os bairros que
conseguiam expulsar seus habitantes tidos como indesejados e associados aos
imaginários da criminalidade e do desvio.
Encerrando a reunião, o responsável pelo Grupamento de Policiamento em
Áreas Especiais no Morro da Providência, capitão Zuma, disse que considerava a
ocupação militar desse morro fundamental no processo de “revitalização” da Zona
Portuária. E que, para combater o tráfico de drogas do local, sua meta era “recrutar” os

12
A Vila Mimosa era um espaço de prostituição localizado, até a década de 1990, no bairro do Estácio,
Centro da cidade. Com sua remoção, foi construído no local o centro administrativo da prefeitura, que
passou a ser popularmente chamado de “piranhão”, numa associação irônica entre a prostituição e a
prática política. E a Vila Mimosa foi transferida para a Praça da Bandeira, Zona Norte.

150
jovens para que eles não se tornassem “traficantes”. Ele achava que o distanciamento
dos jovens em relação ao trafico de drogas já estava acontecendo com a ocupação
militar do morro, porque muitos traficantes estavam sendo mortos ou presos, o que
anteriormente não ocorria por causa da “impunidade”. E, após falar do combate dessa
figura tida como a mais “perigosa” associada à região, que era o “traficante”, Zuma
solicitou que o conselho elaborasse um relatório sobre o projeto de revitalização para
que ele fizesse um pedido de aumento de efetivo do seu grupamento militar.
Com o término da reunião, me apresentei a Regina, presidente do Rotary Club
da Saúde e diretora geral da Escola Padre Dr. Francisco da Motta, e também a
Carmelina, que iria assumir a presidência do clube em 2009. E, ao explicar que estava
realizando uma pesquisa no Morro da Conceição, fui convidada para participar do
almoço do Rotary na escola, que ocorria sempre na mesma 5ª feira do mês em que se
reunia o Conselho Comunitário de Segurança. Quando chegamos ao terraço da escola,
nele estavam dispostas mesas e cadeiras de alumínio decoradas por toalhas e, em uma
de suas quinas, havia uma tribuna com um microfone. Dos cerca de trinta sócios do
Rotary e convidados que participaram do almoço, a maioria tinha estado também na
reunião do conselho e, quando todos se acomodaram, Carmelina apresentou o
palestrante do dia. O sociólogo Maurício Fabião, coordenador de um projeto
educacional da ONG Ação da Cidadania, localizada na Avenida Barão de Tefé, proferiu
então uma palestra sobre os programas Fome Zero e Bolsa Família do Governo Federal.
Esse almoço completava assim o circuito das relações sociais da VOT na Zona
Portuária que era mediado por sua “comunidade escolar” sediada no morro. Através
desse circuito, a entidade se articulava com instituições da segurança pública, católicas,
comerciais, empresariais, assistenciais e de representação política de moradores que, em
comum, desejavam o “controle” dos espaços da região através de ações de “punição”,
“educação” e “assistência” dos que os habitavam. Em suas formas de estruturar tais
espaços, a população era percebida em uma gradação entre “morador”, “marginal”,
“desviante” e “criminoso”: eram positivados como “moradores” os que possuíam
hábitos diurnos e condições de moradia e relações sociais consideradas boas e regulares;
classificados como “marginais” as “prostitutas”, os “dependentes químicos”, os
“favelados”, os “menores abandonados” e os “mendigos”, figuras para as quais estas
instituições elaboravam projetos que os convertessem a uma moralidade tida como
positiva; como “desviantes” os “homossexuais”, que buscavam ser evitados na

151
convivência da “vizinhança”; e como “criminosos” os “traficantes”, que possuíam como
projetos a prisão ou a morte.
Após ter conhecido esse circuito da VOT, consegui agendar no final de agosto
uma conversa com a coordenadora geral do Projeto Humanização do Bairro, Adélia
Vallis. Nosso encontro ocorreu na escola, quando ela então solicitou que eu
apresentasse uma carta da UFRJ endereçada à VOT e um “roteiro de pesquisa” para que
me fornecesse um crachá de acesso às escolas e aos cursos do morro, demonstrando que
esses espaços eram rigidamente controlados. Essa nossa primeira conversa foi breve e
Adélia sugeriu que eu também pesquisasse o dia a dia do Conselho Comunitário de
Segurança.
Ela me explicou que, quando suas atividades foram iniciadas, o café da manhã
era sempre organizado no Batalhão da Polícia Militar, localizado na Praça da Harmonia,
na Gamboa. Mas, como algumas pessoas tinham medo de entrar no batalhão e serem
chamadas de “X9”, gíria que em seu uso comum denominava as pessoas que delatavam
para a polícia práticas consideradas ilícitas, as instituições que participavam do conselho
decidiram organizar o evento de forma itinerante. O uso dessa gíria, no entanto,
indicava que as classificações de determinados habitantes da Zona Portuária como
“marginais”, “criminosos” e “desviantes” possuíam contra posicionamentos e
produziam, igualmente, classificações que negativavam os mecanismos de controle.
Por sugestão de Adélia, nos encontramos dois dias depois no Hospital da Usina,
onde estavam os relatórios fotográficos e financeiros de implantação dos projetos
sociais da VOT no morro. Adélia iniciou a conversa narrando a ocupação do morro pela
entidade de forma semelhante ao site institucional, mas apresentando duas variações
específicas. A primeira foi a delimitação do território doado pelo Padre Francisco da
Motta à entidade, que havia se tornado relevante dentro da disputa que a entidade
travava com os moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal. Segundo Adélia,
no testamento do padre estavam incluídos, além da igreja, 53 escravos, algumas casas,
um trapiche e um território que se estendia por toda região da Prainha, percorrendo o
trecho da Rua Sacadura Cabral entre a Praça Mauá e a Pedra do Sal, formação rochosa
que antes de ser parcialmente dinamitada adentrava o mar e separava essa região da
Gamboa.
E a segunda variação narrativa foi sobre a “nova etapa” dos projetos
educacionais e assistenciais desenvolvidos pela VOT no morro, que Adélia contou
como uma sequência de eventos que relacionava a reformulação administrativa da

152
entidade, a entrada de Frei Eckart na sua superintendência e o início da parceira da
entidade com o Rotary Club. Segundo Adélia, até o início do século XX o hospital da
VOT estava instalado na base do Morro de Santo Antônio, mas com o desmonte
realizado pela reforma urbanística de Pereira Passos suas instalações foram deslocadas
para duas chácaras na Usina. Com o passar dos anos, o estabelecimento ficou
reconhecido como um centro de maternidade, mas, como os descendentes dos
beneficiários que haviam financiado o hospital já estavam na terceira ou quarta geração
e não pagavam por sua utilização, em 1987 o hospital iniciou um processo de falência:
os que então administravam o hospital deviam cerca de 600 causas trabalhistas e, por
não conseguirem sanar as dívidas, entregaram todos os bens da entidade ao Cardeal
Dom Eugenio Salles.
O cardeal decidiu transmiti-los à ordem primeira dos freis sediada em São Paulo
e Frei Eckart, que era o responsável por seu setor jurídico, foi transferido para o Rio de
Janeiro como interventor do hospital. O frei então negociou as dívidas trabalhistas e
criou um estatuto para a gestão do hospital; transformou-o de maternidade em hospital
geral; cancelou o convênio com o instituto previdenciário do governo e fez acordos com
diversos planos privados de saúde. Ao reorganizar a atuação administrativa, jurídica,
econômica e médica do hospital, o frei também buscou desonerá-lo da manutenção
financeira da Escola Padre Dr. Francisco da Motta, fazendo um empréstimo no banco
católico Pax-Bank que a sustentou por quase dez anos. E, para pagar esse empréstimo,
criou na Alemanha duas organizações que recebiam doações: a Fundação de Amigos do
Padre Francisco da Motta e a Associação dos Amigos do Frei Eckart.
Em 1998, o frei e Adélia se conheceram durante a Conferência Pan-Americana
da Paz realizada em um centro de convenções da cidade. Adélia estava sendo
empossada naquele ano governadora do Rotary do Rio de Janeiro, o que a tornaria
responsável pela administração de sessenta Rotary Clubs, e foi então procurada por dois
governadores rotarianos da Alemanha e apresentada ao frei. Ele a convidou para apoiar
a ampliação da escola e Adélia aceitou, colocando como condição a implantação de
alguns “padrões educacionais”, que foram definidos a partir de sua percepção de quais
seriam as características de uma escola localizada na Zona Portuária.
Na opinião de Adélia, os alunos que saíam da Escola Padre Dr. Francisco da
Motta com 10 anos de idade “iam para rua”, porque não havia escolas públicas locais

153
que as absorvessem. E, remetendo-se ao “massacre na Candelária”13, quando seis jovens
haviam sido assassinados, disse que “possivelmente alguns deles fossem ex-alunos” da
escola, colocando-os assim dentro de um imaginário relacionado à falta de controle
familiar e ao perigo. A proposta educacional encaminhada por Adélia previu então a
extensão do ensino até a 8ª série, o atendimento de 800 alunos, a oferta de alimentação e
de programas de “inclusão digital” e capacitação profissional e a obrigatoriedade da
presença do aluno nos turnos da manhã e da tarde.
Para ampliar a escola, a VOT uniu internamente várias casas de sua propriedade
que eram a ela contíguas e comprou mais oito casas. Adélia, que estava administrando a
parte financeira do projeto, disse que, quando iniciou a obra, os 400 mil dólares doados
pelos rotarianos do Rio de Janeiro, da Alemanha e dos Estados Unidos não haviam sido
suficientes: começou a brotar água da pedra que ficava na base das casas e foi muito
oneroso remover o entulho gerado pelas obras e o lixo que havia no terreno atrás da
escola. Para complementar esses custos que não estavam previstos no orçamento, os
parceiros alemães do projeto procuraram o Ministério de Ação Social da Alemanha, que
concordou em contribuir com mais 500 mil dólares, e o governo do Estado da Baviera
também doou 85 mil dólares para instalar uma cisterna. A expansão de 3.500 m² da
escola foi finalizada em 2003 e, em 2008, o seu custo mensal de manutenção era de 200
mil reais. O Colégio Sonja Kill foi construído em seguida ao lado da escola e foi
financiado unicamente pela Fundação Sonja Kill, iniciando suas atividades em 2005.
Durante a expansão das atividades educacionais, a VOT também implantou o
Projeto Humanização do Bairro. Segundo Adélia, o aumento do número de alunos
havia gerado também um aumento do número de pais e, como metade deles era
composta por moradores do Morro da Providência, precisavam ser “capacitados
profissionalmente”. O projeto foi orçado em 1,7 milhões de euros e o Rotary foi
convidado mais uma vez para apoiá-lo. As duas entidades então apresentaram o projeto
à Comunidade Europeia, argumentando que ele visava atuar em um espaço classificado
pelo governo brasileiro como habitado por uma “população marginalizada”, devido a
pouca oferta de serviços públicos.
Assim, articulando novamente um discurso que associava a Zona Portuária a um
espaço carente por “projetos sociais”, a VOT teve o projeto aprovado em 2000. A

13
A “chacina da Candelária”, como ficou conhecida, ocorreu em uma madrugada de julho de 1993,
quando policiais militares pararam em frente à Igreja da Candelária e atiraram em mais de setenta
crianças e adolescentes que estavam dormindo. Como resultado da chacina, seis menores e dois maiores
morreram e várias crianças e adolescentes ficaram feridos.

154
Comunidade Europeia, no entanto, financiou apenas 75% dele, exigindo que os demais
15% fossem financiados por uma ONG europeia, que deveria ser também a responsável
por sua administração financeira. Entraram então como parceiros do projeto uma missão
franciscana alemã e a Caritas Obra Papal. À VOT, coube sua execução e a
disponibilização de trinta imóveis de sua propriedade. E o Rotary contribuiu com a
doação de equipamentos para os cursos de marcenaria, padaria, gráfica e computação e
para os laboratórios que funcionavam na escola. A maior parte dos cursos
profissionalizantes abriu turmas nos anos de 2005 e 2006 utilizando vinte e um imóveis.
Os nove imóveis restantes estavam localizados no Adro de São Francisco e na Rua São
Francisco da Prainha e ficaram aguardando a captação de novos recursos financeiros
para instalação de outros cursos.
Ao fim da conversa, fui encaminhada para Michele, designer que trabalhava na
VOT desde agosto de 2005 fazendo as peças gráficas de seus projetos sociais. Ela me
mostrou a apresentação audiovisual do Projeto Humanização do Bairro que havia sido
elaborada para prestar contas aos auditores da Comunidade Europeia e contou que o
projeto havia sido feito baseado em um modelo dessa organização e registrado com o
nome Promoção do desenvolvimento para grupos de população marginalizada da Zona
Portuária do Rio de Janeiro; mas, como os dirigentes da VOT acharam que utilizar o
termo “população marginalizada” conferiria a ele uma conotação pejorativa associada à
criminalidade, o nomearam Projeto Humanização do Bairro.

155
O projeto foi composto por seis subprojetos e Michele me mostrou sua
distribuição pelas casas do morro através de uma foto aérea com marcadores gráficos.
No Centro Comunitário (casa 1) localizado em frente ao Largo João da Baiana, ficou
concentrado o núcleo de inscrição do subprojeto Cursos de Formação Profissional.
Segundo Michele, as maiores procuras haviam sido para os cursos de técnicas artesanais
(casas 4 e 14), música (casa 5), cabeleireiro e manicure (casa 10), corte e costura (casa
11), informática e telemarketing (casa 15), todos esses localizados nas casas do adro; e
para os cursos de padaria (casa 19), artes gráficas (casa 20) e marcenaria (casa 21),
localizados na Rua São Francisco da Prainha. No entanto, também houve cursos que
não tinham tido um funcionamento regular por falta de inscritos ou de professores
especializados, como os de auxiliar administrativo, gestão e microcrédito (casa 07), de
eletrônica e eletricidade (casa 08), camareira (casa 12), pintor e ladrilheiro (casa 09) e
tecelagem (casa 13).
O subprojeto Centro de Crianças com Estrutura Familiar tinha como objetivo
atender às crianças “em risco” que ficassem sob a tutela da VOT. Montado na casa 18,
esse centro seria gerenciado por funcionários denominados de “pais sociais” e as
crianças seriam atendidas pela escola e cursos da entidade. Michele então explicou que
a VOT já possuía um projeto nesse formato em Tanguá, município de Rio Bonito, e que
nem todas as crianças atendidas por ele eram órfãs, muitas os pais tinham perdido a
guarda legal através do Juizado da Criança e do Adolescente, por causa de “maus tratos,
violência ou negligência”. Ela então exemplificou o tipo de crianças que o projeto
pretendia atender na Zona Portuária narrando o caso de três alunos da escola que eram
filhos de uma “prostituta” que morreu e que, por na falta de parentes para abrigá-los,
foram adotadas informalmente pelos próprios “pais da comunidade”. Mas, Adélia
informou que esse subprojeto não pôde ser implantado porque um acordo entre a
prefeitura e a Juizado da Criança e Adolescência da cidade do Rio de Janeiro havia
proibido que instituições possuíssem a guarda ou adotassem crianças.
O subprojeto Saúde Básica ocupou o centro comunitário, onde foram oferecidos
os atendimentos odontológicos, e a casa 06, onde foram montados os consultórios de
ginecologia, clínica médica, pediatria e o atendimento inicial de oftalmologia e
dermatologia, que depois eram encaminhados para o hospital da Usina. O subprojeto
Promoção de Mulheres, também instalado no centro comunitário, tinha como objetivo
fornecer cursos de nutrição, cuidado com o bebê, cuidado com idosos e atendimento
jurídico. Fazia ainda parte dele a creche que foi instalada dentro da escola. E o

156
subprojeto Centro de Contato e Informação tinha como objetivo a “prevenção à
dependência química de drogas ilícitas e lícitas”, como álcool e cigarro. A VOT fez
então uma parceria com a Secretaria Especial de Dependência Química da prefeitura e
ofereceu um curso para “multiplicadores” da região, com a presença de representantes
das igrejas, de empresas e dos institutos educacionais. E ofereceu atendimento
psicológico individual ou em dinâmicas de grupo.
E o subprojeto Centro de Tradição e Cultura construiu a Casa de Cultura (casa
03), que funcionava quando tinha alguma exposição; a biblioteca (casa 16); e o
cineteatro no sobrado que era denominado de Palácio das Águias (casa 17), que ainda
estava sendo reformado e teria uma lotação de 100 pessoas e um espaço utilizado como
centro de convivência. E, embora não tenha sido incluída diretamente em nenhum dos
subprojetos, a casa 02 havia sido disponibilizada para o Conselho Comunitário de
Segurança Pública, com a intenção de que abrigasse uma secretaria com sua “memória”
e documentação.
Assim, através de atividades educacionais e assistências desenvolvidas no
morro, a entidade propôs a inserção da “população marginalizada” da Zona Portuária
em um “mercado formal” de trabalho que se opunha estruturalmente às atividades que
articulava como “criminosas” e “imorais”: o tráfico de drogas e a prostituição. E,
relacionando seus espaços à noção de “perigo”, ofereceu às “crianças em risco”, que
seriam os filhos dessa população marginalizada, uma “estrutura familiar” que
identificavam como inexistente ou precária.
Opondo as noções de “saúde” e “doença”, que eram a base de estruturação de
sua “missão”, a entidade operou ainda uma divisão de espaços entre “femininos” e
associados aos cuidados familiares, e “masculinos” e associados à dependência química.
E, para divulgar a “tradição” e a “cultura” que consideravam positivas, idealizou
espaços para a exposição de produtos mediadores como livros, fotografias, artes
plásticas, filmes e peças teatrais. Através desses espaços era ainda mais ampliada sua
rede de relações locais, fosse oferecendo um local para o funcionamento do conselho
comunitário de segurança, fosse para abrigar outras instituições e eventos que
estruturavam de forma semelhante os espaços da Zona Portuária, como os que eram
realizados por alguns dos moradores da parte alta do morro.

O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DE RESIDÊNCIAS EM “OBRAS SOCIAIS”

157
A narrativa de Adélia era predominantemente voltada para os aspectos
administrativos e financeiros dos projetos da VOT no morro e, buscando conhecer seus
aspectos jurídicos, fisiológicos e estéticos, agendei em setembro dois encontros com
especialistas da entidade: com o engenheiro civil e industrial Carlos Pinheiro,
responsável pela idealização e execução do projeto arquitetônico de reforma das casas;
e com a advogada Tatiana Brandão, que realizou os acordos e ações para que os
moradores dos imóveis que seriam utilizados pelos projetos fossem despejados ou
realocados e estava enfrentando judicialmente o pleito do Quilombo da Pedra do Sal.
Pinheiro trabalhava para a VOT desde 1997, mas assumiu o projeto de reforma
das casas do morro apenas em 2001, quando ele já havia sido elaborado, mas precisava
de modificações para atender a exigências do órgão patrimonial municipal. O projeto
arquitetônico que então propôs teve como diretrizes recuperar fisicamente o casario
sem alterar sua volumetria e desníveis e valorizar a “beleza” e a “limpeza”, noções por
ele operadas em oposição ao que entendia ser um espaço “triste” e associado ao “lixo”.
Ele me explicou que a VOT possuía cerca de 800 imóveis na cidade, sendo que mais de
120 estavam localizados na parte do Morro da Conceição voltada para a Rua Sacadura
Cabral. Quando começou a implantação do conjunto de projetos, algumas casas eram
alugadas, mas cerca de 70% eram ocupadas irregularmente. Tinha sido somente após a
entrada do Frei Eckart na administração da entidade que os “invasores” do conjunto dos
imóveis que ela possuía na cidade foram sendo gradualmente retirados e as casas
“restauradas”.
Quase todas as casas que foram utilizadas pelos projetos educacionais e sociais
da VOT eram de dois andares e, segundo Pinheiro, estavam ocupadas por “inquilinos”
ou “invasores” e se encontravam em “péssimo estado”, que ele qualificou como
construídas com técnica de pau a pique e alteradas do “original” por reformas internas.
Assim, embora Pinheiro articulasse uma oposição entre “inquilino” e “invasor”, ela era
apenas econômica e jurídica, já que, mediado por suas categorias sensíveis, ele
relacionava todos aqueles espaços ao “sujo” e ao “feio”. O material das casas era
percebido por ele também como instável e perecível, por fazer com que, no momento
de demolição das paredes internas, a estrutura da casa fosse abalada e ela ruísse.
O primeiro conjunto de casas foi desocupado para a ampliação da Escola Padre
Dr. Francisco da Motta e para a criação do Colégio Sonja Kill. Antes, a escola
funcionava em uma casa na esquina do Adro de São Francisco e do Beco João José.
Após as obras, foram anexadas à sua edificação treze casas contíguas do beco e dois

158
terrenos da Rua Mato Grosso, fazendo com que a escola e o colégio ocupassem todo
um quarteirão do morro. A escolha dos materiais utilizados durante as reformas foi
pautada pelo desejo de “conservação”, com a adoção dos considerados de “alta
qualidade” e “durabilidade” e valorizando a “riqueza” em oposição ao que Pinheiro
percebia ser a “pobreza” da Zona Portuária.
Todas as paredes de pau a pique foram derrubadas e substituídas por blocos de
cimento, as lajes de madeira foram trocadas por pré-fabricadas de concreto, as telhas
foram feitas com “madeira de primeira”, o piso recebeu um revestimento de granito e
foram construídos banheiros “de qualidade” e uma grande cisterna para abastecer de
água todo o complexo. No caso das madeiras, muitas foram reaproveitadas por serem
em pinho de riga, madeira considerada de boa qualidade, mas em todos os materiais foi
feito uma alteração ou dado um novo tratamento físico ou químico que possibilitasse
sua retirada da realidade anterior considerada “decadente” e o inserisse naquela “nova”
temporalidade e espacialidade “bela” e “limpa”. Para Pinheiro, a ação de “reforma” era,
portanto, não apenas a demarcação de um novo tempo dos espaços do morro, mas
também um embate cosmológico entre os ideais franciscanos e as características que
percebia negativamente como estruturantes dos espaços habitacionais da Zona
Portuária.
Segundo Pinheiro, o processo de reforma das casas do morro havia sido um
período muito difícil de sua vida, que provocou nele duas paradas cardíacas. Na véspera
de um dos enfartes, ele estava na obra e pegou “um monte de troço de piolho, pulga,
uma coisa horrível”, mas disse que teve uma recuperação boa “graças a Deus e São
Francisco”. Assim, ao se deparar com a presença não só de humanos, mas também de
piolhos e pulgas que ele percebia como uma extensão da “sujeira”, “pobreza” e “feiura”
dos espaços, Pinheiro recorreu à entidade espiritual do patriarca mítico dos
franciscanos. E havia sido também a partir de uma motivação religiosa e da percepção
de que havia um “perigo” externo que ele pintou as paredes da escola e do colégio na
cor azul claro, para que os “mantos de Nossa Senhora” oferecessem “proteção”.
Os momentos de dificuldade das reformas foram então narrados por Pinheiro
como ultrapassados e recompensados com o que considerou ter sido uma das melhores
criações do projeto de ampliação da escola, que foi a construção de uma área de lazer
ao ar livre para os alunos brincarem. Ele falou da criação desse novo espaço
enfatizando também seu aspecto religioso, como uma “inspiração de São Francisco”
que foi dada ao Frei Eckart. Segundo Pinheiro, a equipe de obra estava instalando a laje

159
para colocar o telhado no segundo andar de duas casas, mas tiveram de aguardar o
tempo da laje “descurar”, que variava entre 17 e 28 dias, dependendo da umidade do ar.
Nesse tempo, os alunos da escola soltaram pipa e brincaram de roda na laje e, quando o
frei viu esse uso, decidiu que ali não seria colocado um telhado, mas feito um terraço.
Essa alteração do projeto, no entanto, não era permitida pelas legislações
patrimoniais municipal e federal, porque aumentava a volumetria da edificação. E,
apesar de Pinheiro ter sido contra a ideia, falou que concordou em fazê-la porque devia
uma “dupla lealdade” ao Frei Eckart, como funcionário da VOT e por ser ele seu
“dirigente espiritual”. Pinheiro então levantou o telhado um pouco mais de dois metros
acima do chão e fez um terraço em todas as casas da parte ampliada da escola E, por
causa dessa alteração, havia seis anos que a prefeitura emitia ordens de demolição dos
terraços e se recusava a fornecer o “habite-se” da escola.
Articulando uma oposição entre as noções de “uso” e “forma” das casas
utilizadas pela escola, Pinheiro argumentou que a VOT trabalhava em favor da
primeira, dizendo que os imóveis haviam sido reformados para a coletividade que
chamou de “o povo” e que estaria “acima dos interesses individuais” e das exigências
“formais” dos órgãos patrimoniais. Segundo ele, o espaço das escolas era importante
para que as crianças não fossem “para a rua”, considerando, portanto, em oposição, ser
esse espaço a “casa” delas. E, para evitar “invasões”, Pinheiro estava estudando uma
forma de transformar a área da escola em um “condomínio fechado”, com a colocação
de três portões nas suas vias de acesso, embora soubesse que havia implicações
jurídicas nesse procedimento de tornar vias públicas em privadas.
Durante a execução do Projeto Humanização do Bairro, Pinheiro manteve a
volumetria de todas as casas para evitar mais atrito com os órgãos públicos. E os
exemplos que Pinheiro ofereceu de casas em “péssimo estado” uniam os aspectos
físicos dos imóveis a uma avaliação moral de seus usos e usuários. Ele contou que os
números 27 e 29 da Travessa do Sereno, que foram unificados para a instalação do
centro comunitário, e o Palácio das Águias, que foi ocupado pelo cineteatro, antes eram
um “ponto de atuação do tráfico de drogas”. Disse que, no início das reformas, tinha
“levado revólver no rosto” três vezes, porque muitos moradores eram contrários à
implantação do projeto nas casas e outros eram “da noite” e, como as obras iniciavam
às 07 horas, horário em que estavam dormindo, eles ameaçavam os funcionários e
exigiam que só produzissem barulho a partir das 14 horas.

160
Segundo sua percepção, antes da implantação dos projetos ocorria assaltos e
roubos mesmo no período diurno e as pessoas eram “violentas” e “agressivas”. Mas,
por causa das reformas, das escolas e dos cursos, houve uma “evolução social da
comunidade”, que ficou mais “educada” e “tranquila”. Em sua opinião, a “pedagogia
com a espiritualidade franciscana” tinha produzido uma “miscigenação entre os
meninos”, que era como chamava os alunos e qualificava a interação social dos “filhos
de prostituas, de mulheres do local” com outros alunos. E afirmou, em seguida, que os
cursos tinham como intuito dar treinamento para que as mulheres pudessem ter “outra
profissão” e fossem “salvas”.
O processo de transformação nas casas do morro pela VOT podia, portanto, ser
entendido a partir do uso que Pinheiro fazia da noção de “reforma”, que se opunha ao
tempo passado do imóvel, caracterizado como “deteriorado”. Também operada pelos
termos “resgate”, “recuperação”, “restauração”, “reaproveitamento” e “salvação”, essa
noção de reforma podia tanto se referir a ações de intervenção nos aspectos físicos das
casas, como nos aspectos morais e sociais dos moradores da Zona Portuária. E, como
categoria mediadora do tempo passado para o futuro, ele operava a noção de
“inauguração”, que era o momento fundador onde se considerava alterada a realidade
tida como degradada e iniciada uma nova temporalidade e espacialidade. De acordo
com o arquiteto, a fase mais difícil de implantação dos projetos arquitetônicos era a da
“conservação” da qualidade da obra ou, como ele havia expressado, de deixar os
imóveis “parecendo sempre que vão inaugurar”.
Pinheiro por fim comentou que a entidade ainda pretendia implantar o Projeto
Humanização do Bairro 2 em seis imóveis contíguos da Rua São Francisco da Prainha
que ficavam defronte para o Largo da Prainha. A ideia era unificar a parte de cima de
todos os sobrados e instalar um salão para a escola de música funcionar e se apresentar
e, no andar térreo, instalar “centros gastronômicos” e cursos para a formação de
cozinheiros. Já no trecho da Rua São Francisco da Prainha entre os largos da Prainha e
João da Baiana, onde estava a maior parte dos imóveis pleiteados pelo movimento
quilombola, a ideia era notificar os inquilinos para a saída dos imóveis da entidade e
utilizá-los para a oferta de outros cursos. Nesse trecho da rua, o único imóvel que não
era de propriedade da entidade era onde funcionava a Pensão Marie, mas eles tinham
planos de negociar suas compra.
Depois dessa expansão dos cursos, o projeto da VOT era captar recursos para
reformar a Igreja da Prainha e criar um “mendigódromo”, que foi como se referiu ao

161
projeto de abrigar moradores de rua em um prédio que a entidade possuía próximo à
Rodoviária Novo Rio. Além desses projetos, o frei também estava captando recursos na
Alemanha para fazer um “hotel escola” e ocupar outro prédio da entidade na Avenida
Barão de Tefé, em frente ao Hospital dos Servidores. A proposta era que se tornasse um
“hotel franciscano” que oferecesse cursos de camareira, abrigasse “encontros de retiro”
e absorvesse como mão de obra os alunos saídos do Colégio Sonja Kill. Ainda com a
intenção de utilizar essa mão de obra, o frei estava idealizando criar uma faculdade de
enfermagem. Segundo Pinheiro, a grande “obsessão” do frei era “tirar as crianças da
rua”, para que elas não fossem trabalhar para o tráfico.
Como havia sido demonstrado pela fala de Pinheiro, a transformação dos usos
residenciais dos imóveis em projetos educacionais e assistências não tinham sido um
processo social harmônico, movimentando diversos conflitos entre os moradores e a
entidade. E foi sobre esses conflitos que conversei com a advogada Tatiana no escritório
jurídico que também era sediado no hospital da Usina. Ela trabalhava na VOT havia seis
anos e tinha acompanhado desde o começo a formação do Quilombo da Pedra do Sal.
Logo no início da conversa, Tatiana fez uma ressalva ao termo que eu estava usando
para se referir à formação do quilombo, dizendo que não havia nenhum “conflito”,
apenas “problemas judiciais”. Sua distinção de termos demarcava assim duas formas
diferentes de perceber o pleito desses moradores: na percepção dos dirigentes da VOT,
ele era uma questão “habitacional” referente às leis de inquilinato, e não uma questão
“étnica” referente a leis de promoção da igualdade racial e de reparação histórica.
Tatiana contou que, quando ela começou a trabalhar na entidade, a maioria dos
imóveis do morro era destinada para a locação e, como havia muitos “inquilinos
inadimplentes” e “invasores”, foram desenvolvidas ações de despejo e reintegração de
posse. Mas nunca tinha havido uma política de aumento de aluguéis da entidade para
que fosse aproveitada a divulgação dos projetos de “revitalização urbana” da Zona
Portuária, apenas havia sido feita uma revisão de preços baseada no valor de mercado
dos imóveis. Segundo Tatiana, o perfil dos inquilinos da entidade no morro era de
“baixa renda” e muitos moravam lá havia vários anos e trabalhavam no cais do porto,
como “camelô” ou no comércio do Centro da cidade.
Havia sido somente após a entidade resolver utilizar alguns imóveis para a
ampliação das atividades educacionais e para a implantação do Projeto Humanização
do Bairro que os moradores “inadimplentes” foram notificados de despejo e os que
tinham um “bom relacionamento” e pagavam regularmente o aluguel foram realocados

162
para outros imóveis da entidade localizados nas ruas São Francisco da Prainha,
Sacadura Cabral e Eduardo Jansen. E foi assim, diferenciando “bons inquilinos”,
“inquilinos inadimplentes” e “invasores”, que ela contou que o único “problema sério”
que havia enfrentado no morro tinha sido a desocupação do casarão Palácio das Águias,
localizado na Rua Mato Grosso.
Segundo Tatiana, foi a inquilina desse casarão que quis rescindir a locação que
tinha com a VOT havia mais de 40 anos, alegando que havia sublocado o imóvel e que
os moradores estavam devendo a ela. A equipe jurídica da entidade foi então conversar
com os que sublocavam o casarão e deram um prazo para que desocupassem o imóvel.
Mas, como eles não aceitaram sair, a entidade desenvolveu a ação de despejo judicial,
cujos moradores Tatiana caracterizou dizendo que “tinha angolano lá dentro, gente sem
documento nenhum, gente que só tinha um colchonete e que botou nas costas e foi
embora”, associando assim a noção de “inadimplente” à falta de documentos ou bens.
Sobre os moradores que tinham formado o Quilombo da Pedra do Sal, Tatiana
contou que, quando a VOT iniciou uma ação judicial de reintegração de posse do
imóvel que Damião ocupava de “forma ilegal” na Travessa do Sereno, Lúcia tinha
procurado ela para negociar sua permanência. Tatiana argumentou que queria reaver o
imóvel porque ele estava “caindo” e precisando de obras, explicando que a falta de
cuidado com o imóvel era outra característica “do pessoal da Praça Mauá”. E havia sido
um pouco depois desse seu encontro com Lúcia que cinco moradores apresentaram o
certificado da Fundação Cultural Palmares se autodenominando comunidade
quilombola. Mas, segundo Tatiana, nunca tinha existido um “movimento”, o grupo era
formado apenas por pessoas que não queriam pagar aluguel; sendo que um dos que
assinaram o certificado nem mesmo era inquilino da VOT e outro que havia aderido
depois ao movimento era “um chileno” que no momento do despejo reivindicou ser
“quilombola”.
Depois da certificação, o INCRA havia movido uma Ação Civil Pública para
impedir que a VOT pudesse alterar os usos de seus imóveis até que fosse concluído o
processo de “identificação e delimitação” do Quilombo da Pedra do Sal. Mas a entidade
havia entrado com um “mandato de segurança” para impedir esse processo, concedido
em primeira instância porque o juiz havia considerado que o Relatório Histórico e
Antropológico apresentado, além de ser “preliminar”, não demonstrava a existência de
um quilombo na região. No entanto, em segunda instância, a entidade havia perdido, e
estava ainda aguardando o resultado do recurso que apresentou. Assim, na fala de

163
Tatiana nada diferenciava os moradores que haviam formado o Quilombo da Pedra do
Sal dos demais que ela classificava como “inadimplentes”, “ilegais” e “invasores”, e a
solicitação de “reconhecimento étnico” era considerada apenas um artifício jurídico
para que eles conseguissem permanecer de forma “irregular” nos imóveis da entidade.
Operando então com um regime de autenticidade sobre os habitantes do morro,
Tatiana disse que os “moradores” do morro também eram contrários ao reconhecimento
do quilombo e que ela possuía um abaixo-assinado com duas mil assinaturas
explicitando esse posicionamento. Em seguida, mostrou um mapa contido no relatório
de delimitação e identificação produzido pelo INCRA, onde estava demarcada o
território que o quilombo havia solicitado e que incluía imóveis na Rua Sacadura
Cabral, Rua do Escorrega, Travessa Mato Grosso, Rua São Francisco da Prainha,
Travessa do Sereno, Rua Argemiro Bulcão, Rua Camerino e o Observatório do
Valongo. E acentuou que eles tinham excluído desse território apenas o Adro de São
Francisco e o quarteirão onde estavam a escola e o colégio, porque, em sua opinião,
desejavam que a entidade continuasse mantendo as obras educacionais e sociais que
desenvolvia no morro.
E, para desqualificar o pleito do Quilombo da Pedra do Sal, Tatiana afirmou que
a titulação de um grande território só se justificava em casos onde havia uma
“comunidade” que vivia economicamente da terra, se referindo à “plantação, pesca e
artesanato”. Em sua avaliação, o relatório apresentado pelo INCRA narrava apenas as
histórias de vida de Lúcia, Damião e Luiz Torres. Mas, além deles, havia outros
integrantes do quilombo que não tinham suas historias conhecidas: Marcos Evangelista
(Marquinhos) e o “chileno” Ernan, ambos moradores da Rua São Francisco da Prainha;
Rafael, morador de uma casa no Adro de São Francisco; e Getúlio Brasil, morador da
Rua do Escorrega. E ela não reconhecia haver entre eles a formação de uma
“comunidade”, alegando que eles não possuíam um cotidiano em comum nem um
“líder comunitário” ou atividades como festas e celebrações, tendo se unificado apenas
para evitar as ações de despejo.
Tatiana então contou que havia se encontrado com as historiadoras e a
antropóloga que tinham produzido o relatório para o INCRA, e que elas haviam
defendido o pleito do grupo argumentando que o termo “quilombo” definido
juridicamente era relacionado à “preservação da cultura negra”. Mas ela considerava
que o movimento dos trabalhadores do cais do porto e a “batucada” que faziam na hora
do almoço não podiam ser classificados historicamente como um movimento

164
quilombola. E, para rebater a afirmação de que havia uma ocupação do morro por
afrodescendentes, narrou o que acreditava ser sua ocupação “tradicional”: a dos
franciscanos, demarcada pela Igreja da Prainha; e a dos portugueses que foram morar
na sua “parte alta”.
E, se referindo à noção de “Pequena África”, afirmou que ela ficava localizada
na Praça Onze, local onde estavam o monumento a Zumbi dos Palmares e a escola
municipal Tia Ciata, construções que em sua opinião comprovavam que era naquele
espaço que “os escravos iam fazer os batuques”. Sobre o tráfico negreiro que ocorria no
Valongo, ela respondeu que esse era um espaço diferente do pleiteado, voltado para a
Rua Camerino e o Morro da Providência. E, em relação a ter sido a Pedra do Sal um
espaço de rituais do candomblé, Tatiana argumentou que, se fosse considerar na cidade
como marco territorial de comunidade quilombola um espaço de oferenda, “qualquer
esquina, qualquer cruzamento virou quilombo”.

OS ESPAÇOS DA REPARAÇÃO E DAS PRÁTICAS DO CANDOMBLÉ

Tendo como referência espacial a Pedra do Sal, tombada pelo INEPAC na


década de 1980 como monumento de representação da cultura afro-brasileira, a
Comunidade de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal havia surgido duas
décadas depois, em um contexto onde as propostas de transformação urbanística e de
valorização fundiária da Zona Portuária fizeram eclodir diferentes movimentos
habitacionais que reivindicavam um espaço para a “moradia popular” da região.
Havia sido após a divulgação do Porto do Rio que surgiram, por exemplo, três
ocupações de “moradores sem tetos”, todas elas trazendo em seus nomes referências ao
movimento abolicionista brasileiro: a Ocupação Chiquinha Gonzaga, criada em julho de
2004 em um prédio na Rua Barão de São Felix pertencente ao INCRA; a Ocupação
Zumbi dos Palmares, surgida em abril de 2005 em um edifício na Avenida Venezuela
do Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS; e a Ocupação Quilombo das
Guerreiras, realizada em outubro de 2006 em um prédio da Companhia Docas na
Avenida Francisco Bicalho. Mas, nesses “movimentos de moradores sem-teto” havia
tido apenas o uso simbólico da escravidão e da exclusão do negro no país para que fosse
reivindicada uma política habitacional “popular”.
Já o Quilombo da Pedra do Sal se organizou em torno da noção de “identidade
étnico-racial” e pleiteou juridicamente uma “reparação histórica” concedida através da

165
titulação territorial. E, através da operação da noção mítica de Pequena África, seus
integrantes propuseram uma nova forma de percepção dos espaços do Morro da
Conceição e da Zona Portuária, que os conectavam à memória negra, à moradia popular,
ao trabalho portuário, ao samba e às práticas de candomblé. E, no conflito que travaram
com a VOT, entidade por ele identificada como oposta à sua identidade e ocupação
habitacional, duas formas distintas de estruturar os espaços do morro e da Zona
Portuária foram movimentadas.
Para os integrantes do Quilombo da Pedra do Sal, a pedra era considerada uma
importante referência de seu passado mítico e vivenciada cotidianamente de forma tanto
profana quanto sagrada. Nas noites em que havia as rodas de samba organizadas pela
Bodega do Sal, eles armavam uma barraca de comidas e bebidas no local e atuavam
como vendedores ambulantes. E, nas datas comemorativas consideradas estruturantes
para a formação da identidade que denominavam de “espírito quilombola”, que eram os
dias de São Jorge, da Consciência Negra e do Samba, organizavam festas coletivas onde
ritualizam a presença habitacional dos orixás e dos antepassados mortos dos escravos,
sambistas e portuários que, ao longo dos anos, haviam frequentado a pedra. E para a
VOT, a Pedra do Sal e seu entorno era um espaço periférico de seu centro simbólico, a
Igreja da Prainha, e onde seus dirigentes desejavam implantar o Projeto Humanização
do Bairro, que era pautado pelas noções de “reforma” e “salvação” e baseado em uma
moralidade que percebia o conjunto da população da Zona Portuária como
“marginalizada” e exposta à “criminalidade” e ao “desvio”.
Mas suas formas distintas de estruturar os espaços do entorno da Pedra do Sal
podiam ser compreendidos também pela maneira como vivenciavam suas vida religiosa
e como elas ordenavam o mundo pelos fundamentos católicos ou do candomblé; pois
havia uma série de oposições entre os espaços considerados por ambos os grupos como
sagrados. A Pedra do Sal era um espaço aberto, na “rua”, onde se desenvolviam
relações igualitárias. Os rituais que eram nela realizados mediavam humanos, mortos e
deuses, reverenciando assim os espaços do solo, subsolo e céu, e utilizavam objetos
portáteis e sacralizados pelo próprio ato ritual, como quartinhas, velas e alguidares, cujo
princípio era o consumo e, portanto, a perenidade. Já a Igreja da Prainha era um espaço
fechado, uma “casa”, onde se desenvolviam relações hierarquizadas. Os rituais que nela
eram realizados mediavam humanos e um único deus e dividiam o mundo em apenas
dois espaços verticalizados, a terra e o céu. E utilizavam objetivos entendidos como

166
portadores de uma aura sagrada e que deviam manter-se conservados, não sendo,
portanto, vivenciados como perecíveis.
Mas, apesar dos aspectos religiosos e culturais que a “comunidade quilombola”
movimentava através das práticas do candomblé, o Quilombo da Pedra do Sal se
apresentava jurídica e politicamente como um pleito de reconhecimento étnico polêmico
entre acadêmicos, integrantes de movimentos sociais e moradores da Zona Portuária.
Pois, para se adequar às especificidades do Artigo 68 da Constituição Federal e da sua
regulamentação pelo Decreto 4.887, o grupo e os mediadores de seu conflito com a
VOT articularam sua legitimidade reinterpretando as noções de “território”, “trajetória
histórica” e “ancestralidade negra”; e conferiram ao tombamento oficial de um
patrimônio uma relevância incomum nos processos de reconhecimento de “territórios
étnicos”.
Até o final de 2009, o Quilombo da Pedra do Sal não havia sido titulado e o
território delimitado na primeira versão do Relatório Histórico e Antropológico ainda
passava por modificações, mas a narrativa mítica sobre a Pequena África nele contida
permaneceu operada pelos quilombolas e pelos mediadores envolvidos no processo de
reconhecimento étnico. O vencedor da contenda entre o Quilombo da Pedra do Sal e a
VOT ainda estava, portanto, por ser decidido, e apontavam para o fato de que o
reconhecimento e estabilização de ambos os patrimônios não dependeriam apenas de
suas estratégias políticas e jurídicas, mas também da ressonância de suas narrativas
míticas frente à sociedade, ou seja, na capacidade que teriam de evocar experiências
culturais que proclamavam como “autênticas”.

167
Capítulo 4.
Os “fundamentos” do Valongo

O AFOXÉ FILHOS DE GANDHI E O POVO DO SANTO

O grupo carnavalesco Afoxé Filhos de Gandhi possuía duas formas básicas de


divisão: cotidianamente era formado por sua “diretoria” e, no período do Carnaval, a
essa diretoria se agregavam os “desfilantes”14. A diretoria se apresentava em eventos de
valorização e reconhecimento político da “cultura negra” ou dos “cultos afros” que eram
organizados por institutos, órgãos públicos, deputados, vereadores ou movimentos
sociais. Já os desfilantes eram um grupo mais amplo composto pelo “povo do santo” de
diferentes casas de candomblé e que participava de forma numericamente mais
expressiva nos desfiles de Carnaval do Gandhi na Avenida Rio Branco e na orla da
Praia de Copacabana.
A diretoria possuía cerca de quinze integrantes, que se responsabilizavam pela
organização dos eventos do grupo e pela manutenção de seus preceitos religiosos. No
Carnaval de 2009, ela era composta pelo presidente Carlos Machado; pelo vice-
presidente Carlinhos; pelo diretor de patrimônio Ulisses; pela produtora Regina Branca;
pela diretora de departamento feminino “Tia” Creusa; e por Nato, diretor de charanga,
que era composta ainda pelos músicos Cabeça Branca, Galeto, Roberto, Alfredo,
Cotoquinho e Luan. E, dançando e cantando, também participavam constantemente das
apresentações Mãe Marlene d‟Oxum, Nazaré, Gustavo, Márcia, Dona Rosa e Elizete.
A localização da sede do Gandhi, os “fundamentos” religiosos de suas
apresentações e a relação que possuía com o “povo do santo” foram explicados a mim
por Carlos Machado em duas conversas que tivemos no final de novembro de 2008 no
Castelinho, centro cultural localizado no Flamengo onde ele trabalhava como
administrador público. Segundo Machado, o Gandhi havia sido fundado no Rio de
Janeiro em 1951, por iniciativa de trabalhadores do porto e com a participação de alguns
integrantes do Ijexá Filhos de Gandhi de Salvador, fundado dois anos antes. Antes de

14
Publiquei uma análise inicial desse grupo carnavalesco em artigo componente dos anais do XXXIII
Encontro Nacional da ANPOCS (Guimarães, 2009c).

168
ocupar a sede na Rua Camerino, o grupo havia ensaiado em diferentes espaços cedidos
por outras entidades, todos localizados nas áreas central e portuária da cidade por causa
da facilidade com que seus frequentadores, a maioria moradora da Baixada Fluminense
e dos subúrbios, tinham em se deslocar para a região.
Tanto ele como, percebi depois, outros integrantes do grupo, demarcava as
diferentes “épocas do Gandhi” vinculando-as aos seus presidentes, às “versões” que
tinham realizado do grupo carnavalesco e aos espaços onde haviam ensaiado. Assim,
Machado me narrou que o primeiro presidente “oficial” do Gandhi havia sido Alberto
Sales Pontes, que teve a iniciativa de organizar o grupo juridicamente em 1961. Nessa
época, o grupo tocava predominantemente músicas do candomblé e seu ponto de
encontro era na Central do Brasil em um local chamado de Palácio de Alumínio,
estrutura armada que depois foi demolida para a construção de um terminal metroviário.
Na década de 1970, Aureliano Gervásio da Encarnação assumiu a gestão do
Gandhi e dirigiu o que Machado considerava ter sido a “fase áurea” do Gandhi, porque
no Carnaval ele conseguia “colocar na rua” até quatro mil desfilantes vindos de diversas
casas de santo. Para ele, tamanha popularidade era devida principalmente ao seu
prestígio no meio religioso, pois, além de ser ogan da casa de Pai Ninô d‟Ogum,
reconhecido babalorixá da cidade, Encarnação era baiano e havia sido “feito no santo”
em Salvador. Na gestão de Encarnação, o grupo havia ensaiado no antigo Clube do
Brasil, localizado atrás da Central do Brasil, e, depois, no sobrado do rancho
carnavalesco Recreio das Flores localizado na Praça da Harmonia, na Gamboa.
Na virada da década de 1980, Encarnação faleceu e o babalorixá Índio assumiu a
presidência do grupo, conseguindo um espaço de ensaios em um terreno na Praça Onze,
onde posteriormente foi construída a Escola Tia Ciata. Foi nessa década também,
durante os anos que transcorreram entre os debates e a decretação efetiva do projeto de
preservação patrimonial SAGAS, que a direção do Gandhi iniciou a procura de um
espaço na Zona Portuária que pudesse abrigar seus ensaios. Índio então contatou e
elegeu como “presidente de honra” do grupo Albino Pinheiro, fundador da Banda de
Ipanema, para ajudá-lo na obtenção da cessão de uso de um dos imóveis da região que
eram de propriedade do governo estadual.
Machado conheceu as atividades do Gandhi nesse período, em 1985, quando era
o presidente da Associação de Moradores e Amigos da Saúde e participava ativamente
do processo de criação do projeto SAGAS. Segundo Machado, o seu conhecimento
sobre a situação imobiliária da Zona Portuária fez com que Índio também o procurasse

169
para saber quais imóveis do governo estavam desocupados e podiam ser solicitados pelo
grupo. No lento processo de obtenção da cessão de uso de um imóvel na Zona Portuária,
o grupo não pôde mais ensaiar na Praça Onze e transferiu suas atividades para o Centro
Cultural José Bonifácio, que na época abrigava em suas dependências diferentes
associações e entidades.
Em 1988, Machado foi candidato a vereador e, mesmo não sendo eleito, sua
expressiva votação nos bairros portuários fez com que fosse indicado para dirigir esse
centro cultural. E, nesse ano, o Gandhi passou a ser dirigido pelo Guerra, que construiu
afinidades com Machado e o convidou para ser seu vice-presidente. Os dois então
retomaram as articulações para obter uma sede para o grupo e, em 1992, Albino
Pinheiro conseguiu juntamente com Sérgio Cabral a cessão de uso do imóvel da Rua
Camerino. O imóvel, no entanto, encontrava-se ocupado informalmente por 32 pessoas
e não havia qualquer ação de reintegração de posse sendo movida pelo poder público,
fazendo com que o Gandhi não conseguisse se instalar nele.
Com a mudança do governo estadual na virada do ano, o prédio foi novamente
cedido, só que desta vez para a prefeitura, que tinha aprovar recentemente uma lei que
possibilitava o desenvolvimento de projetos específicos de “estruturação urbana” dos
bairros da Saúde e da Gamboa. Os moradores informais foram então retirados, mas o
imóvel permaneceu lacrado e sem qualquer uso. Findada essa gestão da prefeitura, o
grupo procurou o secretário de governo da nova gestão e soube que ela não estava
interessada em permanecer com o imóvel, já que o custo de sua reforma seria elevado.
Segundo Machado, este secretário então sugeriu que os integrantes do Gandhi
invadissem o imóvel antes que a prefeitura o devolvesse para o estado, já que depois
seria mais difícil negociar o uso do espaço. E foi assim que, em 1997, o grupo se
apossou da sede e reiniciou uma negociação com o governo estadual para que fosse
regularizada sua cessão de uso.
Além de sua atuação política como representante da associação de moradores da
Saúde, Machado também possuía sua trajetória de vida marcada pela presidência da
escola de samba Vizinha Faladeira, sediada no Santo Cristo. E, em 1998, Guerra propôs
a ele que assumisse a presidência do Gandhi, que passava por um período de grande
desarticulação: no carnaval desse ano, o grupo havia desfilado com apenas seis
integrantes de “velha guarda” na Avenida Rio Branco. No entanto, Machado recebeu o
convite com preocupação, já que não era iniciado no candomblé, e a conversa que teve
com Guerra sobre isso foi narrada por ele da seguinte forma:

170
Eu falei (Machado): “Você vai me criar um problema sério. Eu não sou da religião, eu não
tenho nenhum tipo de experiência”. Ele disse (Guerra): “Mas você administra como se
fosse um bloco”. (Machado): “Mas o Gandhi não é um bloco, você sabe que não é um
bloco, e você sabe que eu vou levar bordoada a torto e a direito”. Ele parou, pensou.
(Machado): “Se eu não assumir você não vai entregar pra ninguém?”. (Guerra): “Não, não
vou entregar pra ninguém”. (Machado): “Então me dá um tempo, que eu vou tomar as
minhas providências”. Foi aonde eu procurei um zelador de santo pra poder me confirmar,
pra poder aprender as defesas mínimas pra me proteger.

Machado me explicou que, no Gandhi, não era obrigatório que seus participantes
fossem do candomblé, embora quase todos fossem. E, por isso, para assumir sua
presidência em 2000 ele se iniciou no candomblé aos 49 anos de idade, em uma casa da
“nação” de Jeje Mahi localizada em Itaguaí, Baixada Fluminense. Segundo me
explicou, as nações do candomblé se diferenciavam pelo dialeto, pelas formas de tocar
os atabaques e por seus fundamentos religiosos. Para exemplificar essas diferenças,
disse que na nação Jeje Mahi eram cultuados os Voduns, que os Orixás eram cultuados
apenas na nação Ketu e, na nação Angola, eram cultuados os Nkisi. Mas, como havia
tido uma popularização da nação Ketu, houve uma “adaptação” aos seus termos e seus
orixás. Assim, me disse que seu vodun, “em analogia”, tinha as qualidades do orixá
Xangô, mas era diferente na forma de cultuar.
Em sua avaliação, ser vice-presidente do Gandhi sem ter iniciação não era um
problema, mas como era o presidente quem devia “proteger” o conjunto de seus
integrantes e também o que sofria mais com as críticas e inimizades políticas, ele devia
fortalecer seu “ori”, termo iorubano que significava cabeça, local onde se acreditava
ficar o orixá pessoal dos filhos de santo. E disse que não costumava frequentar
candomblé em outras casas, só eventualmente comparecia à casa de Renato d‟Obaluaê,
que era uma “pessoa amiga”.
No discurso de Machado, as oposições “bem” e do “mal” eram constantemente
articuladas, junto com a dos “amigos” e “inimigos”, o que fazia com que recorresse
constantemente à noção de “proteção”, também presente nas letras das músicas cantadas
pelo grupo. Para Machado, a ocorrência do “mal” nas práticas do candomblé era uma
ação mágica que visava prejudicar outra pessoa e podia ser realizada apenas com o
pensamento: mesmo que a pessoa não recorresse a um “trabalho”, ou seja, que pedisse a

171
um orixá a realização de determinado acontecimento através da oferta de comidas,
bebidas, objetos e palavras rituais, ela podia fazer o mal se assim o desejasse.

Eu como um religioso, se eu desejar o mal de alguém, desejar, dentro do meu coração,


quero fazer mal a fulano, só essa vontade, dependendo do tipo de pessoa, eu já estou
praticando um mal pra ela e ela vai sofrer alguma coisa. E na frente do Gandhi você adquire
muitas inimizades desse tipo. De pessoas que não vão fazer nenhum trabalho pra te
derrubar, porque quando você faz um mal você recebe uma reação no sentido contrário na
mesma intensidade, o que bater lá vai bater em você também. É dividido. Então muitas
vezes as pessoas não fazem, mas pensam. Pecam pelo pensamento. Quando você faz uma
oferenda, “bota o nome de fulano aqui, acende uma vela”, a vela é um pagamento pra fazer
um mal àquele que você botou o nome dele ali. Aquilo que você pediu para aquele fulano,
pode estar certo que uma parte daquilo ali vai voltar pra você. Então, como as pessoas
sabem disso, elas preferem não fazer. Mas pensam. E no que pensam, a força da cabeça
dele, a força do ori, que é a cabeça, a força dos orixás, pode provocar também um estrago.

Comparando as religiões afro à religião católica, disse que a primeira era


“palpável”, porque acreditava em uma “energia que trabalhava por você ou contra
você”, e havia “provas” de que as coisas aconteciam. Já na religião católica, “você vai à
igreja, ajoelha, reza, acende uma vela, aí fica esperando”. Considerava, assim, que era
possível acessar essa “força” através de rituais e ultrapassar as dificuldades da vida
prática através da religião. E, ao me explicar a saudação a Exu, o “mensageiro”, no
início das apresentações do Gandhi, falou dessa mediação que os orixás eram capazes
de fazer em relação aos desejos dos homens.
Machado disse que, quando os integrantes do Gandhi “davam de comer” para
Exu antes das apresentações, era para que ele pedisse a Ogum, orixá responsável pela
“proteção” do grupo, que lhe “abrisse caminho”, ou seja, que permitisse que suas
atividades transcorressem de forma pacífica e sem acidentes. Frisando existirem muitas
versões sobre essa figura no candomblé, disse que acreditava que Exu não era o
“diabo”, mas um “espírito de luz” que estava buscando o nível de elevação espiritual de
um orixá. Só os Exus das encruzilhadas faziam o “mal”, porque ainda não tinham “luz”
suficiente para recusarem os pedidos que eram “pagos” pelos homens, se referindo aos
rituais de oferta de comida e bebida.
Ogum era outra figura simbólica central para o grupo, reverenciada no início e
durante o desenvolvimento das apresentações e desfiles do Gandhi a cada vez que seu
cantor pronunciava “Ajaiô!”. Segundo Machado, o sentido geral desse termo era

172
“amuleto de paz”, mas, em uma tradução literal do ioruba, era uma referência a “adja”,
termo que significava cachorro. Explicou então que o cachorro era a maior oferenda que
podia ser dada a Ogum e que esse orixá era o “senhor da estrada”. Assim, quando se
ofertava um cachorro, o que se desejava em troca era a “paz para caminhar”.
Completando o rol das principais figuras simbólicas do grupo estava Xangô, orixá que
era seu “patrono”, e as “iabás”, termo para designar os orixás femininos, como Iemanjá,
Obá, Oxum, Oyá e Nanã, entre outras.
Ao me explicar a formação da diretoria do Gandhi, Machado falou que ela se
dava “por afinidade”, que as pessoas se aproximavam ou se afastavam conforme
concordavam ou não com a “versão do Gandhi” que estava sendo feita pelo presidente.
E que, ao longo dos anos, muitos integrantes saíram do grupo formaram seus próprios
afoxés ou blocos afros. Machado então contou que a última eleição que havia sido
realizada para a diretoria tinha ocorrido na sede do grupo, em 2003, quando foram
montadas quatro chapas. E ele havia sido reeleito com 56% dos quase 600 votos, mas,
como demonstrou sua narrativa, o processo eleitoral não havia sido harmônico e havia
envolvido também sua reputação como “morador antigo” da Zona Portuária.
Machado contou que um dos integrantes do Gandhi que havia montado uma
chapa concorrente tinha sido ajudado por ele a se estabelecer na cidade, através do
custeio de sua passagem de Salvador, do abrigo em sua casa e da obtenção de um
emprego. E que, ao sair candidato a presidência do grupo, havia falado “besteiras de
mim para quem não devia” e sido quase morto, não fosse a intervenção de seu filho, que
o levou até a Central do Brasil para pegar um ônibus e ir embora. Machado então
explicou que ele morava havia 40 anos na Gamboa e que as pessoas do Morro da
Providência não se referiam a ele como sendo o presidente do Gandhi, mas como sendo
o “Seu” Machado. E que os valores “do pessoal que vive na bandidagem” eram muito
rígidos, sendo o “respeito” e a “lealdade” dois dos mais importantes.

As pessoas lá no morro quando se referem a mim não se referem ao presidente do Gandhi


ou ao Machado. Se referem ao Seu Machado. E quando eu passo, se o cara tiver armado,
ele esconde a arma. Ele sabe que eu não tenho que ficar olhando pra arma dele. Se eles
tiverem fumando ou tiverem cheirando, eles se afastam para que eu não veja eles fumando
nem cheirando. Eles têm respeito por mim. Então, uma pessoa que é respeitada, você
chegar e falar mal dele já é complicado. As pessoas sabendo que você tá comendo e
bebendo às minhas custas, tá falando mal de mim, o negócio complica mais ainda. Os
valores do pessoal que vive na bandidagem, eles têm determinados valores que são muito

173
rígidos. De uma certa forma até errado, mas são rígidos. A lealdade é uma delas, se você
não é leal você deve morrer. E foi por causa disso que ele quase morreu.

Entre os motivos que Machado avaliou terem sido os causadores de algumas


inimizades e discordâncias entre os integrantes do Gandhi que se afastaram do grupo
após ele assumir a presidência, era ele ser “branco” e não “negro”, não ser antigo no
candomblé e ter implantado algumas modificações na forma do grupo se apresentar,
principalmente no que dizia respeito às suas músicas e letras. Machado contou que sua
“versão do Gandhi” havia começado a ser elaborada logo que assumiu a presidência do
grupo em 2000. Nesse ano, o então ministro da cultura e integrante do Ijexá Filhos de
Gandhi de Salvador, Gilberto Gil, procurou o colunista de um jornal carioca e solicitou
que o ajudasse a encontrar o Filhos de Gandhi carioca publicando uma reportagem. Sua
intenção era apoiar as comemorações dos 50 anos do grupo oferecendo um
financiamento do governo.
Após Machado contatar Gil, ele articulou o uso gratuito do Clube dos Portuários,
localizado no Santo Cristo, para que o Gandhi realizasse os ensaios do Carnaval de
2001. E montou uma grande estrutura para esses ensaios, com camarotes, aparelhagem
de som e iluminação, um equipamento que Machado calculou ter custado por semana
cerca de cinco mil reais. A combinação era que o próprio Gil frequentasse os ensaios do
grupo e chamasse convidados para atrair o público, mas isso não ocorreu. E, como o
Gandhi tinha se desarticulado no final da gestão de Guerra, essa grande estrutura acabou
ficando subutilizada durante os ensaios, que só chegaram a reunir cerca de trinta
pessoas por semana.
Apesar do fracasso, a visita que Machado fez nesse ano ao presidente do Gandhi
soteropolitano o influenciou a iniciar algumas alterações no grupo. Segundo Machado,
foi nela que ele percebeu que o sucesso popular conseguido pelo Gandhi de Salvador,
que colocava na rua cerca de dezesseis mil desfilantes fantasiados no Carnaval, era a
prática que tinha de cantar músicas de sucesso radiofônico em português e adaptados
para o ritmo ijexá, e não cantigas em ioruba como era feito no Rio de Janeiro. Com isso,
todos os foliões conseguiam acompanhar as canções durante o desfile, mesmo não
sendo do candomblé.
Quando propôs alterar as apresentações do Gandhi, o desejo de Machado era
“popularizar” e “profissionalizar” as apresentações do grupo. E a mudança das letras das
músicas para o português e a aceleração de seu andamento visavam resolver ainda três

174
aspectos que ele considerava negativos na cantoria do candomblé na rua: as pessoas que
não eram da religião e assistiam ao grupo não sabiam o que fazer durante os cânticos;
havia a possibilidade de elas serem negativamente afetadas pela energia das músicas; e a
forma própria de cantar essas músicas requeria uma entonação mais severa que retirava
“a alegria do profano”. Após sua ida a Salvador, o processo de convencimento do grupo
em relação à mudança nas músicas foi gradativo e Machado contou que só começou a
dar resultados havia cerca de três anos. Mas essas inovações não significavam, em sua
opinião, que o Gandhi tivesse deixado de ser um “candomblé de rua”, já que ele
continuava a realizar seus preceitos religiosos antes das apresentações.

Quando você tem um afoxé desfilando, ou indo pra rua, se ele realmente é um afoxé ele é
um candomblé de rua. Ainda que ele não cante as cantigas de candomblé na rua, como os
Filhos de Gandhi eu faço questão hoje de não cantar, só levar a parte cultural, mas para
colocar o Gandhi na rua eu tenho um preceito religioso que tem que ser cumprido. Então na
realidade ele não deixa de ser um candomblé de rua, mesmo ele sendo um afoxé cultural.

Assim, no sistema de autenticidade operado por Machado, sua “versão do


Gandhi” não havia retirado o que considerava ser a principal característica do grupo,
que eram as práticas religiosas do candomblé. Sua opção por desenvolver um “afoxé
cultural” era justificada mais pelo desejo de tornar o grupo e sua tradição “populares” e
passíveis de concorrerem no disputado mercado dos blocos carnavalescos15 do que de
alterar os preceitos religiosos que tinham feito o Gandhi ser reconhecido como uma
herança cultural entre o povo do santo e também entre os habitantes da Zona Portuária.
Na opinião de Machado, o prestígio social do Gandhi entre as entidades que
valorizavam a “cultura negra” e os “cultos afros” era devido à sua abordagem “profana”
da prática religiosa do candomblé; e, quando um vereador ou deputado realizava um
evento relacionado a esses temas, chamava o Gandhi para se apresentar e levar um
“canto de paz”. Mas ele se queixou da visão que as entidades e partidos políticos tinham
do Gandhi, que em sua opinião era tratado como uma “casa de caridade” e não como
um grupo que se apresentava “profissionalmente” e devia receber um bom cachê. No
entanto, ele também considerava que o processo de profissionalização do Gandhi não
estava consolidado, tanto por motivos externos, que ele atribuía à falta de

15
Sobre a introdução de uma lógica de comercialização e profissionalização nas práticas carnavalescas,
ver Cavalcanti, 1994.

175
reconhecimento de sua tradição religiosa e cultural, quanto por internos, referentes à
própria organização do grupo.
Reclamando da falta de “profissionalismo” dos integrantes do grupo, Machado
contou que muitas vezes pagava as passagens de ônibus e o jantar ou almoço para que
os integrantes da diretoria participassem dos eventos. E também precisava que a
produtora do grupo, Regina, se responsabilizasse pelas fantasias, lavando-as e passando-
as. A falta de dinheiro e os baixos cachês que o grupo recebia eram recorrentemente
motivos para troca de acusações de “roubo”, já que muitos integrantes se queixavam de
não receber nada para tocar e dançar, embora Machado contra argumentasse que todo o
pouco dinheiro que entrava cobria as pequenas despesas de manutenção do Gandhi.
Muitos também se queixavam dos constantes atrasos nas apresentações do grupo,
havendo mesmo quem fizesse piada, dizendo que era “bloco de baiano”, associando
assim o atraso a uma suposta característica cultural e regional.
E, nesse projeto de tornar o grupo
“profissional”, a posse definitiva da sede
da Rua Camerino e sua reforma eram
tidas como as principais realizações que
Machado desejava para sua gestão. Para
tanto, em 2007 o Gandhi se aliou à ONG
Batucadas Brasileiras, dirigida pelo
jornalista Maurício Nolasco, e elaborou
um projeto de transformação do sobrado da sede, que estava sem telhado e com as
estruturas comprometidas, em Centro de Cidadania Afoxé Filhos de Gandhi.
Esse projeto pretendia, além de reformar o imóvel, preservar e divulgar o
Gandhi como “patrimônio imaterial carioca” ligado à “cultura afro”, através das
instalações de um Centro de Memória do Afoxé Filhos de Gandhi que reunisse um
acervo de documentos sobre o grupo; de um Memorial da Abolição na Praça dos
Estivadores que exibisse painéis com imagens e textos sobre a contribuição das “etnias
negras” na formação da sociedade brasileira e possuísse uma concha acústica para a
apresentação de shows de “música popular brasileira”; e de um Monumento aos
Estivadores que deveria ser uma escultura escolhida por concurso público e pretendia
valorizar as atividades portuárias.
Todos os subprojetos do Centro de Cidadania Afoxé Filhos de Gandhi tinham
como base argumentativa a necessidade de criação de símbolos que se sobrepusessem

176
“à memória negativa dos tempos lamentáveis da escravidão”, como era argumentado no
projeto. Como sugerido pelo estudo sobre práticas de memória do crítico literário
Andreas Huyssen (2000), as ações monumentais idealizadas pelo Gandhi e pelo
Batucadas Brasileiras buscavam, assim, construir na Zona Portuária espaços de
redenção dessa memória, associada ao evento histórico da escravidão, classificado
como traumático pela sociedade brasileira. E se diferenciava, portanto, da ação de
“reparação” articulada pelos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal.
Juntos, o Gandhi e o Batucadas haviam conseguido, em 2008, o apoio de um
novo personagem político para seus projetos: a atriz Zezé Motta, antiga integrante do
Movimento Negro Unificado e responsável pela Secretária Estadual de Promoção da
Igualdade Racial – SEPIR. E, repetindo a estratégia de apadrinhamento bem-sucedida
com Albino Pinheiro, o Gandhi a convidou para ser a nova “madrinha” do grupo. E,
durante o ano de 2009, presencie duas ocasiões em que integrantes da diretoria do
Gandhi buscaram obter a cessão definitiva do imóvel e recursos para sua reforma.
Em abril, acompanhei a visita de assessores das secretarias municipais de obras e
de cultura, que foram recebidos por Machado, Nato, “Tia” Creusa e Carlinhos. Mas
apesar das grandes expectativas do grupo, eles foram informados de que as secretarias
não poderiam realizar a reforma, já que qualquer obra precisava de licitação e de
comprovação da propriedade do imóvel. Ao longo da conversa, um dos assessores
perguntou a Machado o porquê do grupo estar querendo ficar naquele espaço e observei,
então, ele articular um discurso que movimentava o mito da Pequena África.
Segundo Machado, o espaço era importante para o grupo por causa de sua
“energia”, já que ali tinha sido o mercado de escravos e, no sobrado em frente, havia
sido fundado o primeiro sindicato do país, que era o dos estivadores. E que, por causa
dessas atividades do mercado dos escravos e do porto, o espaço havia se tornado
conhecido como Pequena África. Um dos assessores então ressaltou que o grupo reunia
várias casas de candomblé e, em seguida, Machado entoou uma das músicas do Gandhi,
que falava de sua conexão com o mundo dos orixás e com a cidade do Rio de Janeiro. E
o outro assessor contou que gostava de “batuque” porque a avó dele havia sido da
umbanda, confirmando a ressonância que o grupo possuía a partir de sua conexão com
as religiões do santo.
Em junho, acompanhei também o lançamento do Projeto do Centro de
Cidadania Afoxé Filhos de Gandhi, que contou com a presença de sambistas,
prestigiados religiosos do candomblé e da umbanda, e representantes dos governos

177
municipais, estaduais e federais, entre
eles a do presidente da Fundação Cultural
Palmares, Zulu Araújo, e a de Zezé
Motta. O evento foi iniciado pela manhã,
com um ritual na sede, onde Mãe Torodi
buscou estabelecer uma conexão com os
espíritos dos escravos do antigo mercado do Valongo para que eles parassem de impedir
que o Gandhi “caminhasse” e realizasse a reforma da sede, auxiliando o grupo na
transformação daquele espaço em um centro de referência da memória negra. Após a
realização de uma oferenda para Exu e de um culto para o fogo, através do acendimento
de uma fogueira que visava atrair a prosperidade para os participantes do ritual, Torodi
entoou cânticos com o auxílio de filhos de santos de sua casa e fez alguns sacrifícios de
animais.
E encerrou o ritual dizendo que Machado e Nolasco deveriam organizar a
distribuição de quentinhas de comida aos moradores de rua da Zona Portuária,
explicando que o agradecimento deles iria ajudá-los. Depois, foi realizado um debate na
sede do Batucadas Brasileiras com breves falas dos presentes e servida uma feijoada no
almoço. Nesse único evento haviam sido articulados, assim, orixás, elementos da
natureza, mortos, plantas, animais e diferentes representantes do “mundo dos homens”,
dos moradores de rua aos seus mais prestigiados representantes religiosos, culturais e
governamentais.

O SAGRADO E O PROFANO EM DESFILE PELAS RUAS DA CIDADE

O primeiro evento em que observei o Gandhi desfilando foi o Presente de


Iemanjá, festejado no dia 02 de fevereiro com um grande cortejo pelas ruas do Centro da
cidade. Nessa festa, se reuniram os integrantes de diversas casas de candomblé, cada
qual participando com a elaboração e oferta de seu próprio “presente”, que eram
oferendas para as iabás, simbolicamente associadas às águas. Todo evento realizado na
rua pelo Gandhi era precedido por “um agrado” a Exu e, na véspera do Presente de
Iemanjá, era feita a maior oferenda do ano para que o orixá trouxesse, através de sua
mediação com Ogum, “proteção” ao grupo durante os desfiles de Carnaval e o conjunto
de suas apresentações.
Assim, a preparação do Presente de Iemanjá do Gandhi se iniciava cerca de um

178
mês antes com a abertura de diferentes jogos de búzios por três integrantes da diretoria
do grupo, para saber que oferenda Exu iria “comer”. No Presente de 2009, estes jogos
foram feitos separadamente por Machado, Carlinhos e Ulisses e, do conjunto de
resultados, foi definido o que seria ofertado. Machado me explicou que “agrado” era o
que as pessoas normalmente denominavam de “sacrifício” ou “matança”, e consistia em
uma troca de “energia”, também chamada de “axé”, através do sangue e de alguns
órgãos do animal. Somente o axé era oferecido nas oferendas para os orixás, as demais
partes do animal deviam ser consumidas pelos participantes e convidados do ritual, por
isso comumente eram servidos pratos elaborados com frangos, cabritos, patos e pombos
nas casas de candomblé. Mas, no caso da oferenda para Exu, todo o corpo do animal era
ofertado no sacrifício e, dependendo do jogo de búzios, ele podia querer comer em sua
“mesa”, outra maneira de se referir ao despacho, um “bicho de quatro pernas”, um
“bicho de duas pernas e pena” ou “comida seca”, que eram as que não tinham sangue,
como as frutas e legumes, além de beber cachaça.
Na véspera do dia do cortejo, os homens da diretoria do Gandhi fizeram várias
oferendas a Exu por todas as esquinas da Zona Portuária e do Centro da cidade por onde
iriam passar os “balaios” do grupo até que fossem colocados na Baía de Guanabara.
Machado não concordou que eu participasse deste ritual, mas permitiu que eu assistisse
a feitura dos balaios, que eram cestos de palha preparados com comidas, folhas e flores
para que neles fossem colocadas as oferendas. Cheguei à sede às 07 horas e, por causa
do horário de verão, o sol ainda despontava no horizonte. A porta da sede estava aberta
e dentro dela já se encontravam Regina, “Tia” Creusa, Carlinhos, Galeto e Nato, além
dos dois cachorros vira-latas que moravam no local.
Havia uma divisão entre as atividades consideradas femininas e masculinas.
Regina e “Tia” Creusa se movimentavam em torno de uma mesa improvisada com a
colocação de uma tábua de madeira sobre um enorme carretel. Nela, estavam dispostos
três grandes “balaios” e as comidas e enfeites que seriam ofertados para Iemanjá, Oxum
e Oyá, que Regina explicou serem as iabás ligadas à ideia de maternidade. Regina
estava vestida com uma camiseta de pijama e calça azuis claros e, ao longo do ritual,
envolveu com um pano da costa sua cintura, e “Tia” Creusa estava de blusa de regatas
brancas e uma saia rodada azul e florida que lhe cobria do peito até as pernas. Ambas
estavam de cabelos presos. Carlinhos e Galeto e Nato foram vestidos com camisetas,
calças ou bermudas, e circulavam pelo interior e o exterior da sede, mas sem
interferirem diretamente na feitura dos balaios.

179
Dentro dos balaios, foram postas
canjicas cozidas e flores de palmas
brancas dispostas de maneira circular,
fazendo uma coroa no cesto, entrepostas
por miúdas flores brancas chamadas de
“chuveirinho”. Ao redor do balaio de
Iemanjá, havia flores de pano, entre grandes azuis e miúdas brancas, colocadas por cima
de um farto arranjo de filó branco. Os enfeites externos dos outros dois balaios diferiam
do de Iemanjá, por não possuírem flores de pano e por terem sido feitos com cetim das
cores lilás e rosa. Assim, mesmo ornados, obedeciam a uma hierarquia no Presente
oferecido, onde Iemanjá, considerada a mãe de todos os orixás, possuía maior
importância. Regina me explicou que as oferendas para as iabás seriam colocadas por
cima da canjica, e podiam ser perfumes, espelhos, bijuterias ou mesmo moedas.
Enquanto elas terminavam a preparação dos balaios, havia certa agitação no
grupo porque Machado ainda não havia chegado com as velas e a “reza dos balaios”
precisava começar. “Tia” Creusa então reclamou que era necessário “tocar para Exu”
antes que o sol invadisse a sede sem teto e atingisse os balaios. Mas Carlinhos preferiu
aguardar, argumentando que não podia “botar Exu sem luz” e despachar “padê
apagado”, utilizando o termo que designava o “despacho” específico para Exu e se
referindo à falta de velas. Galeto então recolheu algumas folhas de bananeira e com elas
limpou o chão em frente à mesa e, junto com Nato, colocou duas quartinhas no chão,
uma com um líquido branco turvo e a
outra com folhas; dois alguidares, um
com farinha branca e outro com farinha
misturada com azeite de dendê; e uma
pequena jarra de cerâmica. Carlinhos foi
ao mercado e rapidamente voltou com as
velas, as acendendo em diferentes locais
da sede, uma delas em frente ao padê. Ao fim da colocação, Carlinhos bateu palma
cinco vezes para Exu, “Tia” Creusa respondeu “Aleluia” e Galeto bateu o atabaque.
Machado chegou logo depois e todos entoaram várias cantigas para Exu,
acompanhados do toque dos atabaques de Nato e Galeto. Até que Carlinhos, Machado e
“Tia” Creusa levaram o padê para fora da sede, atravessaram a Rua Camerino, e o
depositaram em um dos vértices da Praça dos Estivadores, na esquina com a Rua Barão

180
de São Felix. Regina e “Tia” Creusa
pegaram então uma bacia de plástico com
vários acaçás, que eram um alimento
feito com uma folha de bananeira
dobrada em um pequeno triângulo, onde
dentro havia uma goma branca de milho.
E todos os que estavam na sede participando da feitura do presente passaram pelo corpo
os acaçás, os despejando em uma bacia em seguida, gesto que Regina me explicou ser
de purificação.
Elizete chegou e auxiliou na finalização dos enfeites dos balaios. Após os balaios
ficarem prontos, eles foram portados em cima da cabeça pelas mulheres e conduzidos
até o carro de Machado, que estava estacionado na porta da sede. A concentração do
cortejo estava marcada para as 11 horas na Cinelândia, e sua saída para a estação de
barcas da Praça XV para as 13 horas. O carro então percorreu a Rua Camerino até a
Avenida Marechal Floriano, entrou na Avenida Passos, atravessou a Avenida Presidente
Vargas, seguiu até a Avenida República do Paraguai, passou por baixo dos Arcos da
Lapa e dobrou na Rua Evaristo da Veiga, encontrando a Cinelândia (percurso assinalado
em amarelo na foto aérea seguinte). Segundo Machado, havia sido em cada uma das
esquinas desse trajeto que foram feitos despachos para Exu na noite anterior.

Os participantes do cortejo já começavam a se concentrar na Cinelândia, vindos


de diversas casas de candomblé do estado, cada qual trazendo o seu balaio. Na praça
também estava estacionado um carro de som, onde a charanga do Gandhi junto com
outros ogans cantava músicas do grupo e outras músicas populares que faziam
referência às figuras das iabás. Os diversos balaios foram depositados embaixo de
tendas de plástico desmontáveis brancas e, protegendo-os, havia iaôs e ialorixás, sendo
que essas também jogavam perfume e benziam, através de breves rezas e com a

181
passagem de flores nos braços, os participantes que aguardavam em pequenas filas para
oferecer sua flor ou objeto.
Nessa concentração, que durou cerca de duas horas, uma grande roda de dança
foi feita na praça em frente ao carro de som, composta por participantes vestidos
predominantemente de roupas brancas. O evento foi extremamente festivo e o único
momento em que imperou um tom mais solene foi na saída do cortejo da Cinelândia,
quando mulheres trajadas de “baianas” carregaram os balaios nas cabeças, em uma
fileira horizontal à frente de todos os participantes, e caminharam em direção à Praça
XV (percurso indicado em vermelho na foto aérea). Nem todas as cerca de mil pessoas
que acompanharam o cortejo entraram na barca da Baía de Guanabara, já que muitos
haviam aproveitado o horário livre do almoço para participarem do presente e tiveram
que retornar aos seus trabalhos.

Os que entraram na barca, no entanto, intensificaram o toque dos atabaques, as


danças e cantos, sendo que alguns “viraram no santo” durante a travessia. Enquanto a
barca navegava, muitos jogaram flores e bebidas espumantes nas águas. E, no momento
em que a barca parou no meio da Baía, foram ofertados os balaios nas suas duas saídas
laterais. Os participantes então se aglomeram nas janelas das barcas para assistirem a
entrega dos balaios e baterem palmas e fotógrafos e cinegrafistas se acotovelaram para
conseguir uma boa imagem. Encerrando o evento, a barca retornou à Praça XV, onde os

182
participantes do cortejo ficaram em torno de barraquinhas de bebida e comida, enquanto
o carro de som tocava samba.
Alguns dias depois, começou o Carnaval. No dia 21 de fevereiro, sábado, houve
o desfile considerado mais importante pelos integrantes do Gandhi, que era o realizado
no fim da tarde na Avenida Rio Branco. Ao meio-dia, integrantes do grupo ajudavam
Regina a separar e distribuir os kits com as fantasias completas na Praça da Harmonia;
Pratinha estirava no gramado da praça as fantasias que ainda estavam com a tinta da
impressão secando; e Machado ia e vinha com seu carro trazendo da casa da costureira
mais fantasias para receberem a serigrafia. E, na meia hora em que fiquei na praça,
várias pessoas passaram e pegaram suas fantasias.
A concentração do grupo estava marcada para as 15 horas, na esquina da
Avenida Rio Branco com a Rua da Alfândega, horário em que a avenida estava repleta
de blocos afros. Depois de alguns minutos, os integrantes do Gandhi começaram a
chegar, reunidos em grupos de amigos, de casas de candomblé, de moradia e familiares.
Vestiram suas fantasias e, enquanto todos aguardavam o horário do desfile, foi feita
uma roda de samba. Havia uma grande quantidade de pessoas naquele desfile, que tinha
conseguido reunir também “dissidentes” do grupo e críticos à presidência do Machado.
As fantasias trajadas, embora fossem todas do grupo, eram de carnavais distintos, o que
possibilitava a percepção concreta da permanência do grupo no tempo.
O desfile começou por volta das
17 horas com cerca de 200 integrantes,
com o Gandhi encerrando o dia reservado
pela RIOTUR, órgão de turismo
municipal, para as apresentações dos
afoxés e blocos afros. Na frente dos
desfilantes, ficaram o estandarte do grupo e os cantores, em um revezamento de vozes
no carro de som entre Cotoquinho, Ulisses e Machado. Os músicos da charanga, com
cerca de cinquenta instrumentos, se posicionaram na primeira ala do desfile e, na
segunda ala, vieram os demais homens e mulheres do grupo.
O batuque da charanga produzia um som muito alto e compassado e, na frente
do desfile, vários foliões embriagados brincavam fazendo gestuais que remetiam aos
transes do candomblé, demonstrando que compartilhavam de seus rituais. Os
desfilantes, no entanto, ao mesmo tempo em que estavam festivos, mantiveram um
gestual e comportamento mais comedido, no limite entre o sagrado e o profano. Quando

183
o desfile chegou ao fim da avenida, na altura da Cinelândia, alguns integrantes se
reuniram em frente à estátua de Mahatma Gandhi e Machado fez um breve discurso
sobre os ideais de paz do grupo.
Dois dias depois desse desfile, houve outro na orla da Praia de Copacabana, com
concentração marcada para as 14 horas no Posto 6. A grande novidade do dia foi a
estreia de Edejô como porta-estandarte, que Machado me explicou ser um reconhecido
dançarino de ritmos afros. Edejô participava recebendo cachê do bloco afro
Maxambomba da Baixada Fluminense, mas tinha aceitado desfilar de graça pelo
Gandhi, confirmando o prestígio do grupo entre os afoxés e blocos afros da cidade. O
desfile saiu às 17 horas em direção ao Posto 5 da praia. E, nele, Carlinhos me disse que
havia uma disputa muito grande pela presidência do Gandhi, que entre os participantes
da diretoria havia quem quisesse montar uma chapa para concorrer com Machado, como
“Tia” Creusa e Cotoquinho.
Ao final do percurso, foi formada uma roda de samba de umbigada na pista da
praia, quando os músicos da charanga se alinharam de um lado e, à sua frente, as
mulheres do Gandhi dançaram. Depois que a pista foi aberta aos carros, às 18 horas,
formou-se uma “roda de macumba” no calçadão. Na roda de samba, várias pessoas que
não eram integrantes do grupo
participaram dançando, principalmente
mulheres. Já na roda de macumba, havia
um controle para que apenas os
integrantes do Gandhi participassem, já
que as músicas tocadas possuíam regras
quanto aos papéis de gênero e suas danças e também previam a execução de
determinados movimentos. Assim, embora fosse experenciada como uma brincadeira,
essa roda definia os limites do próprio grupo e também do povo do santo, que eram os
capazes de compreender suas coreografias e mesmo as piadas que eram feitas a partir de
inversões deliberadamente propostas, como a entrada jocosa de um ogan em uma
música que devia ser dançada somente por mulheres.
O último grande evento carnavalesco do Gandhi ocorreu no dia seguinte, terça-
feira de Carnaval: a participação no desfile de um bloco afro no Sambódromo de Juiz de
Fora. O encontro dos integrantes ocorreu às 08 horas na sede e quando cheguei, com
meia hora de atraso, muitos já estavam dentro de um ônibus bem equipado para viagens
de estrada, com poltronas, ar condicionado, copinhos de água e banheiro. Antes de

184
sairmos, “Tia” Creusa reclamou dos integrantes que não foram de roupas claras para o
encontro porque, segundo ela, era esperado do povo do santo que ele levasse uma
“mensagem de paz” e chegassem todos de roupas brancas.
Ainda aguardamos cerca de uma hora para sairmos, já que alguns integrantes
estavam retidos na Linha Amarela por causa de um tiroteio em Jacarepaguá. Quando o
ônibus saiu já eram quase 11 horas e havia nele menos de trinta pessoas, sendo que
tinham se inscrito previamente para participar da atividade quarenta, fato que Machado
criticou no discurso de partida, retomando sua argumentação de que o grupo tinha de se
“profissionalizar”. Durante a viagem, alguns dormiram e outros ficaram conversando,
sempre com muitas brincadeiras, e Dona Rosa ofereceu a todos salgadinhos feitos por
ela, como coxinhas, empadas, bolinhos de aipim e de carne. A mulher de Roberto
também levou salgadinhos e compartilhou com os mais próximos de sua poltrona.
Havia assim uma convivência, e também uma tensão, entre as práticas religiosas,
profissionais e recreativas do Gandhi, fazendo com que muitos participassem dos
desfiles para se divertir e estabelecer laços de amizade e outros, principalmente a
diretoria e os músicos, desejassem um maior reconhecimento social, fosse como
representantes da cultura negra e dos cultos afros, fosse como grupo comercial.
Chegando a Juiz de Fora, o ônibus se direcionou para um morro ocupado por
habitações populares onde, no alto, estava localizada a casa de candomblé do babalorixá
e presidente do Afoxé Vinda do Povo na Rua, que havia convidado o Gandhi para
desfilar. Fomos recepcionados por ele e por sua esposa, que Machado me contou serem
ambos baianos. Na casa, havia dois cômodos com mesas arrumadas para o almoço: no
cômodo menor e próximo à entrada da casa, ficaram a diretoria do grupo e os músicos
da charanga com suas esposas; e no maior e mais ao fundo, ficaram os demais
desfilantes. O almoço era dobradinha com agrião e, na mesa, estavam dispostos farinha,
pão e pimenta. Os pratos já vinham fartamente prontos da cozinha e foram servidos por
mulheres da casa. Para beber havia cerveja e cachaça.
Começou então uma série de brincadeiras entre Machado e o babalorixá da casa,
às vezes em um tom competitivo, que abordaram os fundamentos e práticas do
candomblé que eram considerados certos e errados. Ao mesmo tempo, as mulheres dos
dois trocavam simpatias e presentes, como uma flor de pano que foi entregue a
Helenice, namorada de Machado. Estas trocas e provocações fazia com que a interação
dos dois casais ganhasse destaque entre os presentes no almoço, fossem desfilantes ou

185
filhos de santo da casa, reforçando as figuras de autoridade e de beleza de ambos os
grupos, associadas à oposição masculino e feminino.
Machado colocou muita pimenta em seu prato e foi debochado por Nato e
Alfredo, que contaram antigas histórias sobre integrantes que, de tanto usarem pimenta
no prato, na hora de tocar ficaram suando. Bebi um pouco de cachaça e de cerveja, após
ter observado que havia outras mulheres fazendo o mesmo, mas Nato me disse que eu já
estava ficando com o “olho baixo” e devia parar de beber. E lembrei-me de ter ouvido
alguns vezes comentários entre os integrantes do grupo sobre o uso de bebidas e drogas
nos dias de desfile, que se referiam sempre a uma necessidade de controle para que o
imaginário sobre os aspectos sagrados que o Gandhi portava não fossem questionados
por um comportamento ofensivo e associado ao “excesso”, noção onde se incluía
também a comida.
Após o almoço, foi combinado um intervalo de uma hora até a saída para o
desfile, onde alguns foram passear nas redondezas, dormir no ônibus ou conversar. Ao
final do intervalo, os integrantes do Gandhi começaram a vestir as fantasias, e Gustavo
auxiliou algumas de seus amigos a amarrarem os turbantes. Alfredo, que estava distante
de Gustavo, comentou então comigo, em tom de ironia e desaprovação, que não ia para
o lado dele porque “batia uma brisa muito fresca”, se referindo a Gustavo e seus amigos
serem homossexuais. Não apenas desta vez, mas em situações envolvendo outros
integrantes do grupo ou na configuração de alas dos desfiles carnavalescos, havia nas
divisões dos papéis masculinos e femininos uma afirmação constante de espaços.
Assim, homens heterossexuais e homossexuais eram separados em agrupamentos e
espaços de “macho” ou de “viado”.
E, nos espaços femininos, as diferenciações ocorriam entre os valores associados
à beleza: já que as fantasias eram iguais para todos, as mulheres buscavam se distinguir
através da maquiagem, da altura dos saltos dos sapatos, de enfeites como braceletes,
colares e brincos, e no uso de apliques nos cabelos e amarrações especiais dos turbantes.
Embora nessa valorização da noção de beleza o “excesso” do “luxo” ou da exposição do
corpo também fosse visto com reprovação.
O ônibus então se dirigiu até o Sambódromo da cidade e, no caminho, Machado
entoou algumas músicas no microfone do ônibus e também disse palavras de incentivo,
para que os integrantes fizessem um espetáculo bonito. Em outro ônibus, foram os cerca
de cinquenta integrantes do Afoxé Vinda do Povo na Rua, que eram todos da casa de
candomblé onde havia sido oferecido o almoço. Na concentração do desfile, seu

186
babalorixá disse que preferia convidar para desfilar o Gandhi a chamar pessoas de
outras casas de candomblé de Juiz de Fora, já que havia muita “traição” no local,
repetindo, assim, as falas de Machado sobre proteção, maldade e inimizade no
candomblé. Ficamos cerca de uma hora concentrados e, durante este período, os
músicos da charanga tocaram e Roberto fez alguns movimentos de capoeira em uma
roda, mas foi repreendido por já estar vestido com a fantasia do Gandhi e parou.
Na entrada na avenida, na primeira ala desfilaram os integrantes dos dois afoxés.
Os do Vinda do Povo na Rua vestiram fantasias que não seguiam o mesmo padrão e que
remetiam ao imaginário da cultura africana e dos cultos do candomblé, composto por
“caçadores”, “baianas”, “sacerdotes” e vestidos estampados com folhas ou decorados
com búzios. Os integrantes do Gandhi desfilaram com as fantasias completas. Após os
desfilantes, estava a ala da charanga, composta por músicos dos dois afoxés e um carro
de som. E, por último, havia uma ala de capoeiristas. Até a metade da passarela, foi
entoada a mesma música do Afoxé Vinda do Povo na Rua, que tinha como enredo
“Oxossi Caçador”. Em seguida, Ulisses e Machado cantaram diversas cantigas do
Gandhi. O Gandhi era, assim, de central importância na apresentação do afoxé mineiro,
fosse por possuir um grande prestígio entre às entidades locais ligadas à cultura negra e
ao candomblé, fosse quantitativamente em seu desfile.
No entanto, as arquibancadas do Sambódromo estavam muito vazias,
demonstrando que, a despeito desse prestígio, dentro do sistema do próprio carnaval os
afoxés não eram tão valorizados. O combinado era que ao fim do desfile fosse feita uma
roda de samba na dispersão do Sambódromo, mas o espaço estava muito tumultuado
com participantes de outros blocos e a roda não foi realizada. Machado então reuniu os
integrantes do Gandhi, que voltaram para jantar na casa de candomblé. O jantar, no
entanto, não se prolongou e, enquanto todos se organizavam no ônibus para partir, Dona
Rosa cantou alguns partidos altos e sambas e outra senhora cantou antigas serestas.
Quando o ônibus saiu, ainda houve um pouco de brincadeira, mas logo todos ficaram
quietos pelo cansaço e alguns dormiram.
Além desses desfiles, a diretoria do Gandhi havia ainda participado nesse
Carnaval de 2009 em um bloco em Santa Teresa e em um desfile da escola de samba
Cubango, do Grupo I dos desfiles oficiais cariocas no Sambódromo. E, no conjunto das
atividades que acompanhei, percebi como as noções de espaço para o Gandhi se
estendiam para fora dos limites territoriais do Morro da Conceição: incluíam locais da
cidade considerados politicamente importantes dentro do circuito de valorização da

187
cultura negra, como a Câmara dos Vereadores e os marcos territoriais associados à
Pequena África; e espaços utilizados durante o período de carnaval, como a Avenida
Rio Branco e os “sambódromos”; e também os ocupados pelo circuito do povo do santo,
que eram as casas de candomblé e afoxés. E, em cada um desses espaços, os seres não
humanos, como a Pedra do Sal, as esquinas das ruas, as águas da Baía de Guanabara, os
animais, as folhas e flores foram importantes participantes nas apresentações do grupo;
pois, através da mediação que eles possibilitavam, seus integrantes pediam “caminho
para passar” e se conectavam com seus orixás e ancestrais.

O “MUNDO DOS ORIXÁS” NA CASA DE MÃE MARLENE D‟OXUM

Para compreender os aspectos religiosos e


mágicos que estavam sendo movimentados com a
utilização da noção de Pequena África pelos
integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e pela
diretoria do Afoxé Filhos de Gandhi, solicitei à Mãe
Marlene d‟Oxum que frequentasse sua casa de
candomblé. Marlene era participante assídua dos
eventos do Gandhi e sua casa ficava localizada no
Morro do Boogie Woogie, bairro da Ilha do
Governador. Ligados a sua casa de candomblé
como filhos de santo, havia também outros
participantes constantes das atividades do Gandhi: Nazaré, Luan, Juan, Bebel e
Gustavo. Além deles, também visitavam sua casa em dia de festa os ogans Nato, Galeto
e Ulisses.
Comecei a frequentar a casa no início de 2009, enquanto acompanhava as
atividades carnavalescas do Gandhi. Para chegar a ela, tomava o ônibus 324 - Ribeira,
que saía do Castelo e passava pela Central do Brasil. Ao saltar do ônibus no segundo
sinal da Vila Pan-Americana, andava em direção à Rua dos Manjolos onde, na esquina
de um bar, à esquerda, estava a entrada para o Beco dos Manjolos, que conduzia para
uma ladeira estreita com trechos em degraus e cercada por diversas casas, entre elas a de
Marlene. Todo o percurso, da Central do Brasil até a casa, levava cerca de uma hora e
meia e era o que usualmente Marlene fazia para ir às atividades do Gandhi.

188
O portão de ferro do barracão de Marlene costumava permanecer fechado, mas
nos dias de festa ficava aberto. Passado o portão, havia um pequeno jardim onde ficava
o assentamento de Exu, espaço sagrado formado por diversos objetos. Virando à direita
desse jardim, havia a porta de entrada da sala da casa: ao centro, ficava um mastro de
madeira; ao lado direito, três bancos de madeira perfilados eram destinados à
“assistência”, denominação dos convidados das festas; e, na parede contrária, um
tablado elevava do nível do chão os ogans e seus atabaques, diferenciando-os da roda de
dança que se formava à sua frente e ao redor do mastro. As paredes da sala eram ainda o
suporte de um quadro pintado com uma figura de Oxum, de duas fotos da Casa Branca,
e de uma foto de seu filho Marcelo, principal autoridade masculina da casa. Nesta sala
principal havia três portais, todos eles ornados com uma franja de capim que, após a
passagem do tempo, haviam se tornaram palha. Ao lado esquerdo da entrada principal
tinha uma porta que permanecia quase sempre fechada por uma cortina amarela e que
conduzia ao cômodo considerado mais restrito e sagrado da casa, contendo diversas
imagens de santo, quartinhas e objetos rituais.
Mais adiante, uma porta levava para a copa, que possuía uma mesa grande e
cadeiras. E nesta copa havia outra porta que conduzia à cozinha, espaço frequentado
principalmente pelas mulheres. No meio da cozinha, mais uma porta ligava ao quarto
onde os filhos de santo se vestiam e onde os orixás eram “desincorporados”, ou seja,
onde os filhos de santo eram retirados do estado de transe. Neste quarto, um pequeno
banheiro servia ainda de local para os banhos de folhas que os filhos de santo tomavam
durante determinados momentos do ritual.
Tanto da cozinha quanto da sala da casa havia uma porta que levava ao quintal
dos fundos. Nele, duas portas conduziam a pequenos quartos com assentamentos para
orixás e, na área ao ar livre, eram feitos os sacrifícios rituais e havia uma árvore com
oferendas para Ogum. Havia ainda um pequeno banheiro que era usado para guardar os
animais vivos, antes do sacrifício, e utilizado pela assistência durante a realização das
festas. Era também nesse espaço do quintal que, durante as festas, ficavam reunidos os
homens e, após, se realizava uma roda de samba.
Ainda no andar térreo, havia espaços diferenciados por seus usos profanos
relacionados ao cotidiano doméstico, já que Marlene também morava na casa. Na
parede ao lado da cozinha do candomblé estava a cozinha doméstica, que durante as
festas era utilizada para que os filhos de santo fizessem pequenas refeições e lavassem a
louça. Dela, era possível acessar ainda um quarto usado para guardar mantimentos e

189
uma sala com sofás e televisão ligada ao jardim da frente, que ficava à esquerda em
relação a quem entrava pelo porta da sala do candomblé. Na cozinha doméstica, uma
escada permitia o acesso ao segundo andar, onde estavam distribuídos os quartos de
Marlene e de Nazaré; a sala de costura; e uma área aberta para lavagem e secagem de
roupas. E o terceiro andar era ocupado pela família de Marcelo e Tânia, pais de Luan e
Juan.
Entre janeiro e outubro de 2009 acompanhei algumas festas e rituais da casa e
Marlene permitiu que eu fizesse algumas imagens com uma filmadora somente no
início das rodas, não poderia mais filmar logo que os orixás “descessem” nos filhos de
santo. Durante esses meses de convivência, Marlene me contou que havia “feito a
cabeça” no candomblé havia 40 anos na Casa Branca, em Salvador, barracão que
visitava uma vez por ano para “receber axé”. E que, no Rio de Janeiro, ela havia se
tornado filha de santo da casa de Mãe Meninazinha d‟Oxum, sediada no município de
São Mateus, no Rio de Janeiro. Explicitando o sistema hierárquico do candomblé, me
disse que em sua casa ela era mãe de santo, mas na casa de Mãe Meninazinha ela era iaô
e ficava na cozinha como todas as outras filhas de santo.
Ao me mostrar fotos da Casa Branca que estavam penduradas nas paredes de sua
sala, ela me explicou que haviam sido princesas africanas que tinham fundado o
candomblé na Bahia e afirmou que candomblé era “coisa de mulher”, criticando em
seguida as casas que eram dirigidas por homens. Marlene também comentou diversas
vezes comigo que não concordava com as casas que faziam festas muito “luxuosas” e
vestiam com roupas caras os orixás, porque se todos deviam dançar com o pé no chão o
princípio religioso não era o luxo. Sua principal preocupação nas festas era servir
sempre uma comida “bem feita”, “gostosa” e “bonita” para as pessoas e os orixás. Suas
noções de “riqueza” e “beleza” eram, portanto, associadas ao cuidado nos enfeites
utilizados em sua casa e no preparo das comidas servidas, e contrárias à ideia de
excesso.
Nas festas e rituais da casa sempre participavam os três filhos consanguíneos de
Marlene, que eram Nazaré, Pedro Armando e Marcelo; seus três netos Thomas, Luan e
Juan; suas noras Márcia e Tânia; e os filhos de santo Angélica, “Dona” Madalena,
“Dona” Marlene, Gustavo, Bebel e Manuelzinho. Os preparativos para as festas se
iniciavam durante a semana, com Marlene convocando os filhos de santo, avisando aos
convidados e organizando as comidas que seriam preparadas e os objetos rituais.
Nazaré, que era a mãe pequena do barracão, a função de maior prestígio depois da

190
ialorixá, auxiliava nessa semana que antecedia à festa e cuidava das roupas que seriam
usadas pelos filhos de santo, as lavando, passando e engomando.
No dia da festa, os filhos de santo começavam a chegar por volta das 07 horas,
comiam normalmente um café com biscoito na cozinha doméstica de Marlene e, em
seguida, faziam um ritual para iniciar suas atividades, que era composto por um banho
de folhas e a troca por uma roupa de trabalho onde predominavam as cores claras. Essa
roupa era, para as mulheres, uma camiseta envolta por um pano da costa longo e
estampado e uma saia larga e comprida e, para os homens, uma bermuda e camiseta. Em
seguida, cada filho de santo fazia uma saudação inicial a todos os assentamentos de
orixás da casa e aos outros filhos de santo que já estavam presentes.
Nessa saudação, o filho de santo se ajoelhava, encostava as duas laterais do
corpo no chão, virando os quadris; colocava as mãos cerradas uma em cima da outra as
posicionando entre a testa e o chão; e alternavam a ordem das mãos três vezes enquanto
projetavam o corpo para frente, até que ele ficasse inteiramente deitado. Na hierarquia
das saudações, o filho de santo começava pelos assentamentos dos orixás e depois
seguia para a mãe de santo, a mãe pequena até os mais antigos feitos no santo. Os novos
eram saudados apenas com uma leve inclinação de tronco e dobra de joelhos, um beijo
nas costas das mãos e o pedido e a oferta de bênção, que era realizada pela fala das
palavras “minha mãe te abençoe” ou “meu pai te abençoe”, dependendo do gênero do
orixá de cabeça do filho de santo, se masculino ou feminino. Nessas saudações, ao
mesmo tempo em que era pedida também era oferecida uma benção, movimentando
assim um sistema circular e recíproco de dádivas.
Depois, os filhos de santo trabalhavam no preparo da festa: as mulheres
elaboravam os alimentos na cozinha ou decoravam a sala principal; enquanto os homens
compravam as bebidas, faziam pequenos reparos nos cômodos e organizavam os
atabaques. O momento de realização dos rituais de sacrifício dos animais ofertados ao
orixá da festa era extremamente sacralizado. Iniciava-se com um padê para Exu,
seguido do toque de cantigas para os orixás e uma roda de dança formada pelas
mulheres. Os homens se dividiam entre o toque dos atabaques e do agogô, e faziam os
cortes nos animais, que variam de acordo com cada orixá. Quem comandava a
“matança” era Marlene, definindo que músicas seriam entoadas e em que ordem os
animais seriam sacrificados. As partes dos animais eram então separadas: ao orixá era
dado o sangue, onde estava o seu axé, e algumas penas, no caso de aves; e o restante da
carne era depois preparado e servido ao fim da festa.

191
A assistência normalmente chegava para a festa no início da tarde, quando os
filhos de santo já estavam preparando suas vestimentas do ritual. As ekedis eram as
filhas de santo que não incorporavam e que ajudavam a conduzir, desincorporar e
preparar as vestimentas dos filhos de santo que recebiam os orixás, e usavam um
vestido estampado com poucos ornamentos e um ojá na cabeça. Os filhos de santo que
incorporavam eram genericamente chamados de iaôs e, sendo mulheres, vestiam roupas
de baiana, composta de camisu, saias rodadas, calçolão, ojá e pano da costa e, sendo
homens, envolviam o tronco com um pano da costa e usavam calças. Os ogans, assim
como as ekedis, não incorporavam, e vestiam calças e batas claras.
A festa se iniciava com os ogans tocando e os filhos de santo entrando descalços
na sala e fazendo uma roda em torno do mastro. Eles repetiam o gestual de saudação
feito quando iniciavam suas atividades na casa, mas cumprimentavam os diferentes
espaços da sala e os que estavam nela presentes: primeiro era saudado o mastro, depois
o portal de passagem para o jardim, o portal do cômodo com objetos sagrados,
novamente o mastro, a mãe de santo, os ogans e as ekedis. E eram feitos os breves
cumprimentos a cada um dos iaôs que estavam na roda, pedindo e oferecendo benção
aos orixás de cabeça.
A primeira festa do ano foi
realizada para Exu em fevereiro, e
Marlene me explicou que ela sempre
antecedia ao Carnaval. Nessa festa,
observei a partir do espaço reservado à
assistência. O mastro havia sido enfeitado
com palmas brancas e vermelhas e com laços grandes de um tecido azul que tinha na
barra quatro fitas brancas e de um tecido dourado. Nove pessoas compuseram a roda e
sete ogans se revezaram nos toques de atabaques enquanto Marlene, vestida de baiana,
estava sentada em uma cadeira posta ao lado dos ogans e em frente à roda. Todas as
músicas do início do ritual foram cantadas em iorubá e dedicadas a um orixá. Ao fim
das saudações iniciais, Marlene entrou também na roda e a música mudou: houve a
aceleração da batida dos atabaques e foram cantadas letras em português para Exu e
Pomba Gira, citados também através das figuras Rosa Vermelha, Maria Padilha,
Ciganinha, Tranca Rua e Zé Pelintra.

192
Sequencialmente, os iaôs viraram no santo e abraçaram com os dois lados do
corpo integrantes da assistência, que era composta por cerca de vinte pessoas que
cantavam as músicas e batiam palmas.
Depois de algumas músicas, a batida do
atabaque se intensificou novamente e
Marlene se posicionou em frente aos
ogans e virou no santo, passando então a
segurar uma cigarrilha na mão. Os iaôs
incorporados pararam de dançar e ficaram em semicírculo aberto assistindo à dança da
mãe de santo. Ao final da dança, as ekedis os retiraram da sala pela porta que levava à
copa. Marlene saiu por último e voltou vestida de Pomba Gira, com um vestido rodado
vermelho escarlate e um pano da costa dourado, que demarcavam sua transição para o
estado de transe.
Depois, os iaôs da casa retornaram para a roda com suas roupas de transe e
muitos dos que estavam na assistência também viraram no santo e vestiram roupas que
estavam guardadas na casa, sendo suas participações, portanto, previstas no ritual.
Todas roupas eram referenciadas nas figuras associadas a Exu e Pomba Gira que
estavam sendo entoadas nas músicas e complementadas com acessórios de mão como
flores, taças e cigarrilhas. Ao longo da festa, os que haviam incorporado dançaram na
roda e também conversaram com os convidados que não viraram no santo, dando
principalmente conselhos amorosos. E observei que a figura espacial da encruzilhada
era recorrentemente citada nas letras das músicas e nos conselhos amorosos, sendo os
Exus e Pombas Giras os orixás associados a esses espaços e à passagem para um
caminho e suas escolhas. Já tarde da noite, os iaôs incorporados foram retirados da sala
e a última a sair foi Marlene. Foi servido então um jantar a todos e se iniciou uma roda
de samba no quintal.
Após a festa para Exu, houve o Carnaval e até o fim de fevereiro mantive
contato com Marlene e seus filhos de santo através das atividades do Gandhi. No início
de abril, telefonei para sua casa para saber se ela já havia marcado a data da festa para
Ogum, mas Marlene não estava e quem atendeu foi Nazaré. Ela me disse que tinha
chegado naquela semana de Salvador, onde tinha passado quinze dias com Marlene e
Juan. E que faziam essa viagem todo ano para “tomarem o axé” da Casa Branca,
visitarem a Praia da Barra, assistirem às apresentações de blocos afros e comerem as
comidas baianas. Enquanto preparava um feijão, Nazaré conversou comigo sobre o

193
hábito que tinha de anotar em um caderno suas experiências de viagens, para poder
esquecer o que não tinha sido positivo. E comentou que fazia a mesma coisa quando
escutava as pessoas que se consultavam com ela tanto religiosamente, quanto na época
em que era enfermeira: ouvia tudo e depois esquecia.
E, a partir desse diálogo, conversamos sobre meus dilemas afetivos, utilizando
metáforas que envolviam experiências cotidianas e socialmente compartilhadas: sobre
as diferentes funções de guardar e apagar dados do computador; a necessidade de doar
roupas velhas e sem uso do armário para abrir espaço para novas; a variação do tempero
e dos alimentos na dieta culinária; e os diferentes modos de locomoção com
automóveis, com suas possibilidades de um ou mais passageiros e de controle da
condução. Durante a conversa, brincamos com as ambiguidades de sentido que essas
metáforas geravam e Nazaré me disse que muitas pessoas que se consultavam com ela
não gostavam de conversar de maneira abstrata, queriam dar nomes e contar detalhes
sobre as situações que estavam vivenciando. Mas ela preferia a forma metafórica,
porque achava que não era preciso saber detalhes para dar um bom conselho, já que as
pessoas buscavam principalmente alguém que as escutasse, mais do que lhes dissessem
o que deviam fazer. Quando nos despedimos, combinei de ligar para ela assim que
conseguisse um “bom carro”. E percebi que esta havia sido a minha primeira consulta
religiosa.
Poucos dias depois, falei com Marlene e ela me disse que estava distante das
atividades do Gandhi porque estava ocupada como as aulas de dança que fazia e os
eventos políticos em que solicitavam sua presença. E me explicou que, além de
participar dos eventos do grupo, também frequentava a ONG Centro de Tradições Afro-
Brasileiras, onde sua casa estava cadastrada e ganhava cestas básicas que eram
distribuídas entre casas de candomblé. Os alimentos dessa cesta ela utilizava no preparo
das comidas dos rituais e também distribuía no morro onde morava.
Nos dias que se seguiram, conversamos mais algumas vezes sobre sua atuação
política e os movimentos relacionados à valorização da cultura negra e das religiões do
santo. Marlene então me contou que havia nascido na Bahia, mas chegado jovem ao Rio
de Janeiro e, quando era criança, sua mãe biológica trabalhava como governanta em
uma casa em Copacabana, onde os filhos dos donos da casa a chamavam de “bá”.
Segundo Marlene, todos da casa tratavam muito bem à sua família: ela nunca havia
andado em elevador de serviço; quando tinha grandes festas na casa, era chamada para
participar; e ela e seus irmãos brincavam “com igualdade” com os filhos dos patrões.

194
Marlene não se recordava de haver “distinção social ou de cor” nessa casa onde
havia passado sua infância, e essa sua experiência vivenciada como igualitária tinha
feito com que discordasse das políticas públicas baseadas na noção de raça. Ela me
contou que participava de vários eventos políticos, mas que não se considerava uma
“militante”, porque sabia que ninguém queria ouvir que o negro era “racista”. Em sua
opinião, as pessoas tinham que se esforçar para ter uma vida melhor, em vez de pleitear
benefícios do governo, sendo que o importante era que o ser humano fosse “bom”, e não
sua “cor”. Marlene tinha, assim, um posicionamento contrário à noção de reparação
histórica, articulando um discurso que valorizava a oposição “bom” e “mau” e evitava
operar com as oposições “rico” e “pobre” e “branco” e “negro”.
Em meados de maio, Marlene me convidou para participar de outro ritual de sua
casa, denominado “borí”. Perguntei a ela se poderia oferecer alguma coisa para o ritual
e Marlene falou que poderia levar três velas de sete dias, flores brancas miúdas
chamadas de “chuveirinho” e um bolo de massa clara que podia ter um enfeite de
morango. E pediu para que eu fosse de vestido ou de saia de cores claras. O ritual estava
marcado para iniciar às 14 horas e, quando cheguei, soube que ele havia sido uma
encomenda de uma de suas filhas de santo, Cíntia. Além dos filhos da casa, estavam
presentes no ritual apenas o pai, a mãe e a irmã de Cíntia, não havia assistência.
No quintal, havia uma sequência de sete alguidares no chão, cada qual com um
tipo diferente de comida, entre os quais reconheci a farinha misturada com dendê, o
feijão, o acaçá e a canjica. Cíntia estava com uma camiseta e uma calça brancas e com
os ombros encobertos por uma folha de jornal. Prato por prato de comida, Marlene
jogou seus conteúdos pelo corpo de Cíntia, com especial atenção para a cabeça, os
braços e as mãos, enquanto cantava e rezava, sempre acompanhada do agogô e com a
ajuda de uma filha de santo. Ao fim desse ritual, Marlene incensou toda a casa e Cíntia
foi tomar um banho de água fria no banheiro do quintal. Enquanto Cíntia ficou dentro
da casa sendo preparada para o ritual, que não presenciei, Marlene me explicou que borí
era um termo que unia as palavras “ebó” (comida) e “orí” (cabeça). Seu objetivo era dar
comida para a cabeça, fortalecendo o orixá do filho de santo, que Marlene também
chamou de “anjo da guarda”. E que aquele ritual que havia acabado de assistir era de
“purificação”, para que Cíntia pudesse receber o borí.
Enquanto conversávamos, Cíntia entrou na sala virada no santo, vestindo uma
roupa branca e sendo guiada pelo som de um adjá tocado por Nazaré, que era um
instrumento musical formado por duas campânulas de metal. E fez as saudações aos

195
espaços sacralizados da sala e a Marlene, entrando em seguida novamente para a copa.
Alguns minuto depois, Marlene foi se vestir para o ritual e, enquanto isso, no quintal
Marcelo e Luan lavaram os pés de uma galinha de angola que estava presa em uma
gaiola, de duas galinhas brancas e de um pombo. Em um canto da sala, Nazaré e Márcia
arrumaram um lençol branco e colocaram vários doces em uma de suas extremidades:
manjar, doce de coco, dois bolos brancos com cobertura de morango e uma travessa
com frutas diversas, como goiaba, mamão, manga, uva e banana. Havia também alguns
potes de louça branca e uma vela acesa.
Cíntia entrou na sala e se sentou sobre o lençol com as pernas esticadas para
frente, ficando os pratos de doce aos seus pés. Estava com um lenço branco amarrado
no peito, que era fechado em um grande laço nas costas, e com uma calça branca.
Marlene então começou a cantar e rezar com a ajuda do coro das mulheres presentes e
do ogan que tocava o agogô. Cíntia virou novamente no santo e Marlene pegou cada um
dos pratos de doces e passou pelo seu corpo. Fez o mesmo com as galinhas brancas, a
galinha de angola e o pombo, que depois retornaram para as mãos dos homens.
Cada um dos animais foi então degolado com uma faca por Marcelo e dado para
Marlene, que deixou jorrar parte do sangue sobre um dos potes de louça e sobre os
doces expostos aos pés de Cíntia. Em seguida, o corpo de cada animal foi levado sobre
sua cabeça e braços, onde jorrou o restante do sangue. Quando o sangue estancou, os
corpos foram postos ao lado dos demais pratos de alimento. Após o sacrifício de todas
as aves, algumas de suas penas foram retiradas e colocadas sobre a cabeça de Cíntia,
sobre suas mãos e debaixo do lençol onde estava sentada. E Marlene enrolou um pano
branco fechando a cabeça de Cíntia, que se deitou. Foram retiradas pequenas porções
dos doces e frutas e postas no mesmo pote de louça com o sangue e as penas.
Depois, o ambiente foi todo limpo, incluindo as comidas que receberam o
sangue das aves, e as filhas de santo se retiraram com as aves para preparar o jantar.
Enquanto eu e a família de Cíntia esperávamos na sala, seus pais me contaram que ela
tinha sido iniciada em outra casa de santo e que já tinha tomado um borí naquele ano.
Mas, como estava enfrentando dificuldades na vida, havia decidido procurar Marlene,
que aceitou dar outro borí desde que Cíntia passasse a ser filha de santo de sua casa.
Marlene depois comentou comigo que muitas casas faziam os rituais de forma
errada por não conhecerem bem a religião. E me explicou que não era necessário que o
borí fosse “suntuoso”, com várias comidas e objetos, porque o ritual era de
fortalecimento da cabeça e não uma festa de orixá. Falava isso porque o outro borí feito

196
em Cíntia tinha tido o sacrifício de um “bicho de quatro patas”, se referindo ao cabrito,
e achava que este tipo de suntuosidade era feito por quem não entendia o significado de
cada ritual e acabava por dificultar sua realização, já que todas as despesas deviam ser
pagas por quem estava tendo sua cabeça fortalecida e muitas vezes as pessoas não
tinham tanto dinheiro. E com essa informação demarcava, mais uma vez, sua forma de
perceber a prática do candomblé, que negava o que considerava ser excessivo em prol
da eficácia do ritual.
Cerca de três horas depois, as filhas de santo trouxeram pedaços de galinhas
assados em uma bandeja de prata, que foi repousada em cima do pote de louça com o
conjunto das oferendas. Marlene então destroçou pedaços do assado com as mãos e os
colocou em pratos, servindo primeiro o pai de Cíntia, depois a mãe, depois a mim, a
irmã de Cíntia e as filhas de santo. Comemos o assado e em seguida foi servido um
pirão com pedaços de galinha cozidos. Desta vez quem serviu os pratos foi “Dona”
Madalena, a filha de santo mais antiga, e começou pelos homens. Depois foram
servidos por Nazaré pratos fartos com os diversos doces do ritual. No final do dia,
Marlene me explicou que, comendo da comida do ritual, eu estava compartilhando de
seu axé e me beneficiando, e me disse que as flores e a torta que eu havia levado
possibilitaram que eu trocasse com as pessoas que estavam participando do ritual e que
usaria as velas para rezar por mim e abrir os meus caminhos. E que essa troca era boa
para todos.
Em 11 de junho, fui convidada para participar da matança para Ogum, realizada
dois dias antes de sua festa. Cheguei à casa de Marlene ao meio-dia e contribuí com a
festa ofertando dinheiro para a compra de uma galinha. Mas, desta vez, quando
perguntei se podia ajudar, Tânia, que estava comandando as mulheres que trabalhavam
na cozinha preparando as comidas do ritual, disse que eu podia lavar a louça. E Nazaré
me deu um pano da costa florido e o enrolou acima do meu peito, explicando que ele
impediria de sujar minha roupa. Acompanhei então o preparo do acaçá vermelho, que
era uma farinha de canjica amarela cozida até escurecer e ficar na consistência de um
mingau, posta em tiras de folhas de bananeira anteriormente queimadas no fogo,
formando o conjunto pequenas trouxinhas verdes recheadas.
E, enquanto era esperada a chegada das galinhas para começar o ritual da
matança, fiquei com as filhas de santo conversando na copa. Angélica me mostrou um
colar feito de palha, e me explicou que só o usava quem tinha mais de sete anos de
iniciada no santo. Na sala, Nazaré substituía as varas de capim que enfeitavam cada

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portal por novas, e Marlene me explicou que elas eram trocadas uma vez por ano e
sempre na festa de Ogum. No banheiro do quintal, estavam presos o cabrito e duas
galinhas e, engaioladas, havia uma conquém e um pombo branco. Marlene havia saído
para comprar mais quatro galinhas para o ritual, mas Marcelo já tinha percorrido as
redondezas e não havia encontrado, explicando que o caminhão que devia abastecer de
galinhas a região havia quebrado na Avenida Brasil. E, como várias casas de candomblé
estavam festejando o dia de Ogum, faltavam galinhas no mercado e nem mesmo em
Madureira havia mais galinhas para vender.
Quase no fim da tarde, Marlene conseguiu chegar com três galinhas e disse que
eram suficientes para o ritual daquele dia. No quintal, Luan lavou os pés e bicos das
galinhas e do cabrito. Marcelo trocou a lâmpada do cômodo dedicado a Ogum e Oxossi
e Marlene e Nazaré prepararam o espaço lavando todos os objetos rituais em ferro.
Depois, juntaram todas as guias para Ogum dos filhos de santo da casa, que eram
colares feitos de contas azuis-marinhos e podiam ser de diversos tamanhos e materiais,
como louça, cristal ou plástico. Marlene me explicou que todos em sua casa tinham uma
guia de Ogum, porque ela era para “proteção” e devia ser usada independente dos santos
que regiam cada cabeça.
Aos poucos as comidas foram sendo postas dentro de alguidares no quintal.
Marlene chamou todas as filhas de santo e cada uma pegou uma ave, com exceção da
conquém, que era muito arredia e ficou na gaiola. Fui chamada para participar do ritual
e fiquei na fila de mulheres, sendo que as mais antigas da casa ficaram na frente e as
mais novas no final. Marlene começou a entoar músicas enquanto Manuelzinho tocava
o agogô e Marcelo e Nazaré matavam as aves e, por fim, o cabrito. O sangue de cada
animal foi jorrado sobre alguidares e o sacrifício do cabrito foi celebrado de forma mais
elaborada: todos da casa encostaram a cabeça em sua testa antes de ele ser morto. E,
toda vez que um dos bichos era sacrificado, o toque do agogô ficava mais intenso e as
mulheres cantavam mais alto as músicas.
Após esse ritual, todos os filhos de santo foram para a sala. Os homens
começaram a tocar o “xirê”, que era uma sequência de toques e cantigas
especificamente executada durante as festas para Ogum. Marlene se sentou em sua
cadeira e chamou as filhas de santo para dançarem, me convidando a entrar também no
círculo das mulheres. As iaôs foram aos poucos entrando em transe e as ekedis Márcia e
Nazaré me ajudaram a desenvolver a dança demonstrando os gestos correspondentes a
cada toque de atabaques, que variavam de tempos em tempos, de acordo com o orixá

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que estava sendo louvado. A cada toque de orixá, a coreografia variava na marcação dos
pés, nos gestuais das mãos e no ritmo. Percebi então que o toque dos atabaques também
induzia a uma aceleração do batimento cardíaco e que, para incorporar um orixá, tinha
um papel central a experiência na roda e o aprendizado corporal das danças, com suas
modulações individuais das coreografias e a concentração exigida.
No fim da tarde, após a dança de vários toques de atabaques, Marlene encerrou o
ritual e as mulheres foram para a cozinha preparar as aves e os homens ficaram no
quintal para retirar a pele e cortar o cabrito. Nazaré brincou comigo enquanto eu
depenava as galinhas, dizendo que havia “branco no terreiro achando que era preto”,
demarcando assim as diferenças de cor de uma forma jocosa que as suspendiam, ao
invés de confrontá-las. No início da noite, jantamos risoto de galinha e pirão; o cabrito
foi separado para ser servido na festa de Ogum. Marcelo foi comprar cerveja e todos
beberam e, na despedida, Marlene e Nazaré devolveram para cada um suas guias de
Ogum que haviam ficado no quarto dedicado ao orixá.
A festa para Ogum foi realizada dois dias depois e, quando cheguei à casa de
Marlene às 09 horas, me ofereci novamente para trabalhar e Márcia falou que eu podia
pegar o mesmo pano florido do dia da matança, que havia sido guardado no quarto onde
os filhos de santo se vestiam. Nesse quarto, tinham muitas roupas de orixás penduradas
nos cabides e ela me explicou que haviam sido todas costuradas na casa. Perguntei se
havia cores específicas de roupas para cada orixá, e ela me falou que não, que a única
cor que era proibida era a preta, porque significava a ausência de cor. Enrolei o tecido
acima do peito e fui para a cozinha, onde outras mulheres começavam a preparar o
salpicão que seria servido no almoço para os filhos de santo.
No quintal, foram sacrificadas duas galinhas e, ao fim da matança, cada
participante do ritual teve a cabeça, a nuca e a garganta embebidas pelo sangue das
aves, enquanto Marlene fazia uma oração pedindo fartura e que Ogum e Oxossi
abrissem os caminhos. Depois, Marlene chamou todos para tocar e dançar na sala, mas,
antes do xirê começar, pediu para que nos abaixássemos que ela queria falar: em tom
solene, disse que a partir das 10 horas o terreiro da Casa Branca fazia o mesmo ritual,
com todos os orixás já incorporados subindo as escadarias para tocar o xirê de Ogum. E,
após essa fala que propunha uma conexão simbólica entre o espaço de sua própria casa
e o de sua casa de origem, iniciou o xirê e a dança.
Todos os filhos de santo almoçaram por volta das 14 horas e depois foram
colocar suas roupas rituais. Marlene me ofereceu uma roupa igual a das ekedi para

199
vestir. Na cozinha doméstica, conversei com Nazaré sobre a dança, porque não havia
entendido em quais momentos do ritual deveria entrar ou não na roda e nem a sequência
de saudações que deveria fazer. Ela então me disse que eu poderia entrar e sair quando
quisesse, que não havia uma regra e, ao me ensinar como se amarrava o tojá, disse que,
se eu quisesse tirar por estar incomodando, não tinha problema. Assim, demonstrava
que o ritual da festa, embora seguisse uma sequência de eventos predeterminados e
socialmente compartilhados, permitia uma grande autonomia individual.
Após a assistência se acomodar nos bancos, as iaôs da casa entraram na sala
vestidas de baianas e, durante os cânticos, alguns convidados também foram dançar e,
um a um, incorporaram quando tocou a música de seu orixá de cabeça. Quando todos já
estavam virados no santo, o batuque acabou e eles saíram para o quarto de vestir. Ao
voltarem, cada qual estava vestido com a roupa de seu orixá. Todos os iaôs foram
acomodados em cadeiras e, a cada toque de orixá, a pessoa do santo correspondente se
levantava e dançava durante vários minutos, enquanto os demais continuavam sentados.
Ao final da festa, com os santos já desincorporados, foi servido o jantar de cabrito,
realizado um batuque no quintal e feito um churrasco.
Dias depois, no fim de junho, Marlene me chamou para ir à sua casa conversar.
Era um dia de semana à tarde, e ela me atendeu em uma mesa e cadeira posta na sala em
frente ao cômodo com objetos rituais. Levei então uma guia que havia combinado de
fazer para Ogum, em contas azuis-marinhos, que ela colocou em uma infusão de folhas
sacralizando-a. Marlene queria saber se eu queria continuar frequentando a casa como
“amiga” ou se iria me tornar “filha”. Na conversa que tive com ela, contei sobre minha
tradição familiar na umbanda, mas que não estava certa se desejava ser filha de santo da
casa.
Combinamos então que, enquanto eu pensava, faria uma roupa para a próxima
festa, de culto ao Caboclo, e que passaria a usar por um ano as contas de Ogum, que era
o que iriam fazer todos os filhos da casa. Iniciei então a preparação de uma roupa toda
branca de baiana: comprei um morim para fazer anágua; um tecido mais maleável para
o calçolão e a parte da blusa que ficava de dentro da saia; e um tecido de algodão com
flores miúdas bordadas para a blusa, o tojá, o pano da costa e a saia rodada; e um
bordado inglês para dar o acabamento às peças. Quem fez a roupa foi Nazaré, e visitei a
casa ainda por duas vezes para que ela tirasse minhas medidas e para experimentar a
roupa.

200
Em julho, foi participando da festa para o Caboclo como filha de santo que
compreendi como a casa se dividia em assentamentos, que todos os filhos tomavam um
banho de folhas antes de colocar a roupa de trabalho e que, após, era tomado outro
banho, desta vez comum, para que fosse colocada a roupa do ritual. Através da
experiência de vestir a roupa de baiana, percebi com ela era extremamente pesada e
quente, fazendo com que houvesse fisicamente uma transição para o momento sagrado
da festa. E aprendi a saudar os orixás assentados e os filhos de santo de acordo com a
hierarquia da casa e que o trabalho das mulheres era concentrado na cozinha e na roda
de dança da sala. Em relação à divisão de papéis de gênero, observei que as mulheres
trabalhavam por muitas horas em pé e que essa posição corporal era muito valorizada
por demonstrar o “sacrifício” que faziam para servir a casa e seus orixás. E que,
enquanto as mulheres “organizavam” a festa e “serviam” aos convidados, os homens
ofereciam “proteção” e “recursos” para o barracão, além da divisão ritual entre dança e
música e de espaços preferencialmente habitados por cada um dos papéis.
A última festa da casa da qual participei era a considerada a mais importante e
ocorreu em meados de outubro: o Presente das Iabás, onde o orixá que dirigia a casa,
Oxum, era homenageado. Para essa festa, confeccionei uma nova roupa com Nazaré,
desta vez florida, com a qual participei do ritual. A festa foi realizada parcialmente
dentro da casa, com as saudações e os toques de algumas cantigas. Depois, todos os
filhos de santo saíram em “afoxé”, que era como denominavam o candomblé que era
feito na rua para que fosse realizada uma oferenda ou algum ritual ao ar livre.

Esse afoxé caminhou pelas ruas do bairro em direção à orla da Baía de


Guanabara, que era próxima da casa. Chegando à baía, todos os filhos de santo entraram
em um pequeno barco com os atabaques e quatro balaios e, após alguns toques e
cantigas onde todos os iaôs viraram no santo, depositaram os balaios fartamente floridos
e decorados nas águas. Ao fim da oferenda, adormeci sentada no banco do barco por
alguns minutos e, quando acordei, me disseram que eu havia entrado em transe.

201
Depois dessa festa, conversei novamente com Marlene sobre minhas dúvidas em
relação a me tornar filha de santo e me afastei das atividades da casa. Mas, após
acompanhar essas festas e rituais em sua casa, compreendi melhor a cosmologia do
candomblé que estava sendo operada na Zona Portuária pelos diferentes herdeiros da
Pequena África e, em especial, pelos integrantes do Afoxé Filhos de Gandhi. Pois, na
casa de Marlene, as classificações socioeconômicas, de origem, de gênero e etárias eram
ressignificadas pela personificação de cada orixá e sua conexão com as esferas
cósmicas; e as formas de estruturar mentalmente o mundo e seus habitantes eram mais
pautadas pelas noções de “bom” e “mau” do que pelas de “negro” e “branco” ou
“pobre” e “rico”. E todos os rituais e festas propunham a ampliação dos poderes
mágicos dos filhos de santo e os orientavam para as realizações da vida prática.
Analisando a formação social e espacial dos integrantes do Gandhi a partir dessa
experiência, percebi que ela era referenciada no candomblé pois, assim como na casa de
Marlene, quando eles chegavam aos pontos de encontro, muitos beijavam as mãos dos
presentes e ofereciam e pediam para serem abençoados. E havia especial deferência às
pessoas mais antigas no santo, como “Tia” Creusa. Espacialmente, os ogans e seus
atabaques ficavam destacados e elevados dos iaôs e das ekedis que dançavam à sua
frente. E essa elevação dos homens em um tablado os deixava mais próximos do céu,
porém contidos uns ao lado dos outros, fazendo uma figura linear e fixa que mirava para
a porta principal de entrada e saída da casa, espaço que simbolicamente permitia a troca
com o “mundo dos homens”. Em oposição e complementaridade, as mulheres
mantinham os pés em contato com o chão e realizavam um movimento amplo e
constante que, no entanto, por ser circular e em torno do mastro, mantinha como
referência espacial o centro da casa e o “mundo dos orixás”.
No Gandhi, assim como no candomblé, havia também uma nítida divisão não só
de espaços, mas de atividades consideradas masculinas e femininas. As mulheres eram
incumbidas do preparo dos alimentos para os integrantes do grupo e para os orixás e das
roupas dos desfilantes, e os homens eram os responsáveis por arrumarem as condições
físicas da sede e de fazerem as articulações com o “mundo dos homens” para que o
grupo obtivesse prestígio e abundância. Essa abundância, no entanto, era controlada
para que não se tornasse um “excesso”, fosse através do “luxo” ou pelo consumo de
comida e bebida; preocupação que, na casa de Marlene, se estendia para a negação de
uma “suntuosidade” nas festas e rituais.

202
A formação linear e circular dos rituais do candomblé só era desfeita quando os
integrantes “saiam em afoxé”, assim como nas apresentações consideradas mais
importantes do Gandhi, que eram quando seus integrantes caminhavam nos desfiles de
carnaval e no cortejo do Presente de Iemanjá. E, no “afoxé cultural”, as figuras da
assistência e dos filhos de santo eram espacial e funcionalmente substituídas pelas do
“público” e dos “desfilantes”. Nessas apresentações “de rua” do grupo, a maior parte
dos sacrifícios também ocorria na véspera e a primeira atividade ritual era o padê para
Exu. E, tanto após o candomblé quanto o “afoxé cultural” do Gandhi, era realizada uma
roda de samba onde homens e mulheres se reuniam no mesmo espaço, possibilitando
uma troca menos regrada, mais ritualmente prevista, entre os gêneros.

TRANSFORMAÇÃO E PERMANÊNCIA NAS DIFERENTES “ÉPOCAS” DO GANDHI

No final de outubro de 2009, através de um convite da antropóloga Nina Bitar,


que estava desenvolvendo uma pesquisa sobre as práticas das baianas de acarajé e suas
apropriações dos espaços públicos da cidade (Bitar, 2010), fui a um “festival do
acarajé” organizado por Ciça em um clube no Centro da cidade. Nessa festa, Nina me
apresentou a Wilson Silva, que havia sido integrante do Gandhi durante a gestão de
Guerra, antecessor de Machado na presidência do grupo. Wilson era ogan da casa Pai
Ninô d‟Ogum e, em novembro, gentilmente marcou e realizou comigo duas conversas
com integrantes do Gandhi atuantes entre as décadas de 1970 e 1990: o ogan Índio, que
havia sido presidente do grupo entre as gestões de Encarnação e Guerra, e o babalorixá
Helio Tozan, que havia sido vice-presidente de Guerra. Nas duas conversas, a presença
e mediação de Wilson foram fundamentais na elaboração de perguntas sobre os
“fundamentos” que o Gandhi havia anteriormente seguido e na rememoração de eventos
passados.
Nosso primeiro encontro foi com Índio em um bar em Realengo, na Zona Oeste
da cidade. Ao narrar sua versão da origem do Gandhi, Índio disse que o grupo havia
surgido em 1949 em Salvador por iniciativa de trabalhadores da estiva e, no Rio de
Janeiro, havia sido fundado dois anos depois por iniciativa de dois baianos: Milton
“Sapateiro” e Rubens “Sapateiro”, que trabalhavam juntos em uma oficina no Palácio
do Alumínio, estrutura metálica armada na Central do Brasil. Mas o afoxé só havia
desfilado em 1952, com onze homens vestindo “lençóis”, entre os quais se lembrava de
Le Paz, Alberto Sales Pontes, Vavá Palmé, Felipe, Mudinho e Prato Raso.

203
Índio me explicou que os baianos que fundaram o Gandhi se reuniam na Central
do Brasil para oferecer a possíveis fregueses da cidade trabalhos manuais e técnicos,
como de pintor, pedreiro, marceneiro, carpinteiro, estucador, ferramenteiro, chapeleiro e
ourives. Havia ainda entre os integrantes do grupo alguns estivadores e cariocas, mas o
principal elo entre todos era participarem do candomblé. O primeiro presidente do
Gandhi havia sido Le Paz: estivador, carioca e feito no candomblé da casa do Opô
Afonjá, em Salvador. E Alberto Sales Pontes, eleito depois, tinha sido o segundo, mas o
primeiro a ser oficialmente empossado. O terceiro presidente do Gandhi havia sido
Encarnação, ogan confirmado na casa do Bate Folha, em Salvador e, no Rio de Janeiro,
filho de santo da casa de Pai Ninô d‟Ogum.
Índio havia começado a participar do Gandhi na gestão de Encarnação, na
década de 1970, e contou que seus integrantes não moravam perto da Central e nem na
Zona Portuária, eram moradores de Nova Iguaçu, Itaguaí, Niterói, entre outros locais.
Como no sábado à noite geralmente tinha candomblé nas casas mais conhecidas do Rio
de Janeiro, o Gandhi deixava para ensaiar domingo à tarde. Os candomblés eram
localizados principalmente na Baixada Fluminense e os ogans do grupo muitas vezes
iam a três casas de candomblé em uma única noite e, na alvorada, iam pra casa,
descansavam e, à tarde, ensaiavam no Gandhi. Além da casa de Pai Ninô d‟Ogum,
outros candomblés também eram bastante frequentados pelos integrantes do Gandhi,
como os de Mafalda, Joaquim, Regina, Detinha de Xangô e Madalena.
Quando o Gandhi foi fundado, Índio contou que só homem podia desfilar. A
primeira mulher a desfilar no Gandhi foi Valdete, que era amante do Le Paz e saiu
escondida, travestida de índio. As mulheres começaram a ter permissão para “entrar na
avenida” somente na gestão de Encarnação, para “responder” às cantigas de candomblé.
A divisão do desfile do Gandhi em alas também havia sido uma criação de Encarnação
e tinha surgido a partir de sua amizade com Jurandir, que foi convidada para ser a
diretora artística e carnavalesca do grupo. Comparando ao Gandhi de Salvador, disse
que lá essa divisão em alas nunca havia sido feita, nem sido permitido o desfile de
mulheres.
Na época do Encarnação, Índio contou que o antropólogo Raul Lody havia sido
um de seus integrantes e importante incentivador do grupo através das mediações que
realizava como funcionário da FUNARTE, órgão federal ligado ao Ministério da
Cultura. Raul era carioca, mas ainda jovem havia sido confirmado no santo por Nicinha
na casa do Bogum, em Salvador, e havia conseguido que o Gandhi começasse a se

204
apresentar em eventos culturais e folclóricos em diferentes espaços da cidade e do país,
como Minas Gerais, Paraíba e Alagoas. Nesses eventos, após cantarem o ijexá os
integrantes do Gandhi faziam uma roda de samba de umbigada, com finalidade
recreativa. Quando conversei com Machado, um ano antes, ele também havia me dito
que Raul tinha sido o responsável pela consolidação do termo “candomblé de rua” para
definir as práticas dos afoxés, termo que posteriormente foi incorporado às letras
musicais do grupo.
Eram de autoria de Raul os únicos dois textos que encontrei publicados sobre o
Gandhi carioca, um datado de 1976 e, outro, de 1993. Neles, o autor tecia pontos de
comparação entre diferentes afoxés carnavalescos do país em diversas épocas e
articulava um sistema de autenticidade cultural baseado na noção de “africanidade”. E,
em sua descrição das práticas do Gandhi carioca, abordava algumas que no trabalho de
campo percebi que haviam permanecido ao longo do tempo, como o padê para Exu no
início das apresentações do grupo e os cantos para Oxalá ao final, as coreografias
inspiradas nas danças para os orixás e a música marcada pelo toque de atabaques,
agogôs e cabaças. E Raul também narrava práticas que haviam se modificado, como os
cânticos em iorubá para cada orixá.
Índio havia sido feito no santo em Salvador ainda na barriga da mãe, que tinha
se iniciado no candomblé sem saber que estava grávida, e assumiu a presidência do
Gandhi após a morte de Encarnação, em dezembro de 1978. Ele contou que, nessa
época, alguns de seus integrantes diziam que quem não tinha pelo menos sete anos de
feitos no santo não podia fazer parte do grupo. Mas, em sua opinião, qualquer um podia
participar porque ele era “folclórico”, embora logo em seguida tenha feito a ressalva de
que havia um “fundamento”: antes dos eventos, era obrigatório que fosse dada comida
para Exu. E me contou que havia dois Exus assentados do Gandhi: o Bará Jiquitiriri,
que tinha ficado na casa de Aderman, em Jacarepaguá; e o Tucumã, que havia ficado na
casa de Ninô. Além do casal de Exus, Índio disse que antes de colocar o Gandhi na rua
também devia ser dado de comer a Babá Egum, para “encaminhar os ancestrais” do
grupo, porque muitos de seus integrantes já haviam falecido.
O Presente de Iemanjá havia sido, segundo Índio, uma criação sua no calendário
do Gandhi. E, para contar o surgimento deste evento, Índio se referiu a sua busca e de
Encarnação para conseguir uma sede para o grupo. Contou-me que, no início da década
de 1970, o grupo havia perdido o espaço de ensaio em um clube de “carteado” chamado
Recreativo Brasil, localizado na Esplanada do Castelo, entre o Largo da Carioca e a

205
Praça XV. Esse clube havia sido demolido com a substituição do terminal de ônibus
Erasmo Braga pelo Edifício Garagem Menezes Cortes, inaugurado em 1973. E, no
início da década de 1980, o Gandhi permanecia sem sede e utilizando a casa de
candomblé de Magnólia para ensaiar e guardar os instrumentos, fantasias e estandarte.
Hélio Tozan então se ofereceu para falar com Gentil, diretor da escola de samba Unidos
de São Carlos, posteriormente nomeada Estácio de Sá e localizada no bairro do Estácio,
Centro da cidade, e conseguiu que a diretoria cedesse a quadra para os ensaios de
domingo do Gandhi.
No primeiro dia de ensaio nesta quadra, realizado em 01 de fevereiro, um dos
integrantes do Gandhi, Roberto, tinha dado um borí para Xangozinho, que era de
Iemanjá. E pediu para Índio convidar os demais integrantes para irem à missa de
Iemanjá no dia seguinte, que ia ser realizada na Igreja de Santa Ifigênia, na Rua da
Alfândega, Centro da cidade. Depois da missa, Hélio sugeriu que fosse feita uma festa
do Saveiro e Índio propôs que ela saísse da Cinelândia, para divulgar o Gandhi para a
população e os vereadores. Os dois então convidaram os outros fiéis que estavam na
missa, que Índio me explicou serem todos “macumbeiros”, e esses fiéis queriam levar
bijuteria, perfume e sabonete para oferecer a Iemanjá durante a festa. Embora Índio
insistisse que eles queriam realizar não um Presente para Iemanjá, mas uma Festa do
Saveiro, que era apenas uma comemoração realizada na sede, foi tanta a insistência que
virou Presente.
Os integrantes do Gandhi foram pelos mercados do Centro procurar um balaio
para depositar os objetos que estavam sendo ofertados pelos fiéis, mas acharam apenas
no Mercado de Madureira, onde também compraram um prato de louça raso, uma faca,
e um “obi”, que era uma noz de cola utilizada para jogo divinatório. Outro integrante foi
procurar um barco para levar o presente e duas mulheres ficaram incumbidas de fazer os
enfeites do balaio. Às 15h30min eles se encontraram na Cinelândia, Índio jogou o obi
para saber se o grupo podia desfilar, fizeram a roda de canto e dança em frente à
Câmara dos Vereadores e partiram tocando afoxé até o Museu de Arte Moderna -
MAM, porque estava acertada a saída de um barco na Marina da Glória. E assim me
narrou o primeiro Presente de Iemanjá do Gandhi, no dia 02 de fevereiro de 1981.
Logo depois, surgiu o primeiro “grupo afro” criado como “dissidência” do
Gandhi, em um conflito motivado por diferenças formas de perceber as divisões de
gênero no grupo. O Filhos de Dan foi organizado após o Carnaval de 1982, ano em que
o Gandhi participou com uma ala do desfile da Unidos de São Carlos, que tinha como

206
enredo a “mulher rendeira”. Segundo Índio, a diretora artística do grupo, Jurandir, havia
montado uma ala numerosa composta por homossexuais e apresentado um figurino que
era todo de renda e com um calçolão. Mas, quando os integrantes desfilaram, alguns
homens vestiram só a roupa de renda e um “tapa sexo”, ficando assim com o corpo
muito exposto. Rubens Confete, que era um reconhecido jornalista e comentador
carnavalesco da Rádio Nacional, criticou muito o figurino e, na reunião de diretoria
realizada após o Carnaval, Índio exigiu que todo o figurino do Gandhi dali por diante
fosse aprovado por ele. Os que não concordaram foram os que eram próximos de
Jurandir e fundaram o bloco afro Filhos de Dan. E Índio e Wilson me explicaram da
seguinte maneira as diferenças dos dois tipos de grupo carnavalesco: o bloco afro era
também “de negro”, mas geralmente cantava só músicas em português e não seguia
fundamentos do candomblé; e o afoxé fazia rituais ijexá e era o “lado profano” das
casas de candomblé.
O último ano de gestão de Índio foi 1988, e ele contou que havia decidido sair
do Gandhi também após o Carnaval, quando o grupo desfilou no Sambódromo na
escola de samba Vila Isabel, quando ela ganhou o campeonato com o enredo Kizomba,
a festa da raça, que abordava os 100 anos de Abolição da Escravidão. Os diretores da
escola haviam pedido a Índio que levasse 100 figurantes para desfilar e apareceu o
dobro com a roupa do Gandhi. E, quando o Salgueiro solicitou 50 pessoas, apareceram
300. Essas pessoas que estavam surgindo nos desfiles, segundo Índio, não participavam
normalmente do Gandhi, só estavam comprando a fantasia de outros integrantes para
desfilar nas escolas de samba. Ele ficou então chateado com essa falta de controle dos
desfilantes e pediu para que Guerra assumisse a presidência do grupo.
À tarde, Wilson me levou para a casa de Hélio, em Bangu, também Zona Oeste
da cidade. Hélio narrou uma versão semelhante a de Índio em relação à origem do
Gandhi carioca, mas com a inclusão das trocas do grupo com o circuito do Carnaval
carioca desde sua fundação. Ele contou que o Gandhi logo que foi criado havia
conseguido uma sede para ensaiar através de um contato com sambistas do Morro da
Mangueira, já que Alberto Sales, o segundo presidente do grupo, era genro de Cartola.
E sua versão do início da participação das mulheres nos desfiles do grupo também
ofereceu alguns detalhes e variações em relação à de Índio.
Segundo Hélio, antes de desfilarem, algumas filhas de santo vestidas como
“baianas de acarajé” já seguiam os homens do grupo no final do Gandhi, levando
bolsas, comida, bebida e suas navalhas, caso houvesse briga. Mas essas baianas eram

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fundamentais não só para apoiarem os músicos, mas também para cantarem os cânticos
do Gandhi. A primeira mulher que havia saído fantasiada de índio tinha sido “Dona”
Dulce, que tinha utilizado do artifício para que seu marido, o ogan Le Paz, não saísse
com outras mulheres durante o desfile. Depois que descobriram, aos poucos os
integrantes do grupo foram permitindo a formação de alas femininas no grupo. A
primeira havia sido formada pelas jovens filhas dos integrantes, que saíram fantasiadas
de “escravas”. Mas, depois, foi também liberado o desfile das baianas. Mas, frisou
quem, antes do Machado, nunca havia sido permitido que mulheres desfilassem de
“lençol”, vestuário considerado parte da tradição masculina; só eram permitidas as
roupas de baianas.

Hélio também narrou a década de 1970 como os “tempos áureos” do Gandhi,


quando o grupo era chamado para desfilar em quatro ou cinco escolas de samba por
Carnaval, porque toda a escola que elaborava um enredo de “tema africano” chamava o
Gandhi para compor uma ala. Segundo Hélio, até esse período o Gandhi “parava a
cidade” quando desfilava, percorrendo um circuito fechado que incluía a Rua Barão de
São Felix, a Rua Camerino, a travessia da Presidente Vargas, a Praça Tiradentes e o
retorno à Central do Brasil. Durante os anos 1980, na gestão de Índio, o Gandhi já
estava com grande prestígio na cidade e, através de uma mediação de Hélio, que
trabalhava na RIOTUR, o grupo havia sido convidado para fazer o desfile de abertura

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oficial do Carnaval realizado na Avenida Rio Branco.
Quando o desfile foi transferido para a Avenida Marques de Sapucaí, onde
posteriormente foi construído o Sambódromo, o Gandhi ainda manteve três anos
consecutivos o seu desfile de abertura. Mas, segundo Hélio, a falta de organização do
grupo, com seus recorrentes atrasos e não cumprimento de contratos, fez com que ele
perdesse, a partir de meados da década de 1990 e já na gestão de Guerra, parte do
prestígio que havia obtido, não sendo mais convidado para a abertura oficial do
Carnaval. Entre outras perdas consideradas por Hélio e Wilson, estava também a do
controle da organização do Presente de Iemanjá no dia 02 de fevereiro, que era até então
comandada pelo Gandhi e, depois, passou a ser um evento organizado pela RIOTUR em
conjunto com a Federação dos Grupos Afro-Brasileiros.
Mas Hélio também percebia outras perdas, relativas à ligação do grupo com as
casas de candomblé e à sua “tradição”. Segundo ele, os integrantes do Gandhi tinham
perdido gradualmente o contato com as diferentes casas de candomblé da cidade, que
até o início da gestão do Guerra eram frequentemente visitadas e convidadas para
participarem dos desfiles do grupo. E em torno de quinze outros blocos afros dissidentes
do Gandhi haviam surgido nesse momento, rupturas que Hélio creditava a dois fatores:
muitos integrantes estavam chegando “bêbados” para desfilar; e tinha havido uma
“invasão de homossexuais” no grupo. Para Hélio, esse aumento de homens
homossexuais tinha feito com que muitos dos integrantes ligados à capoeira, à estiva e à
Marinha se afastassem do grupo, porque consideravam ser o Gandhi uma “tradição”
masculina: nas primeiras gestões, só “homem valente” podia presidir o grupo e dançar
com o estandarte. A entrada de homossexuais era vista, assim, como uma perda de sua
autenticidade cultural.

Aí quem não era [homossexual], que não fazia parte do grupo, se afastou. Porque o Gandhi
antigamente era coisa de valente, era coisa de “homem, sim senhor”, capoeirista, gente que
dançava com o estandarte. Não se admitia homem de torcinho na cabeça, homem que não
era homem dançando com o estandarte do Afoxé Filhos de Gandhi. Hoje o estandarte do
Filhos de Gandhi, que sempre foi respeitado, hoje é elaborado por quem nós chamamos de
Adé Fontofe, homossexual. A gente não tem nada a ver com isso. Cada um na sua. Mas era
tradição de não poder. Por exemplo, Gandhi em Salvador é coisa de estivador. Continua
sendo gente de estiva, gente de Marinha, como era aqui a mesma coisa. E de repente aqui
no Rio o Gandhi se perdeu. Ele se perdeu em todos os sentidos.

209
Como “solução” para o que percebiam serem perdas relacionadas aos aspectos
tradicionais do grupo, Hélio e Wilson consideravam que o grupo deveria retornar para a
gestão da “família de Encarnação”, se referindo tanto aos parentes consanguíneos
quanto aos filhos de santo que foram a ele ligados. Em suas avaliações, se o grupo
retornasse para essa família, os “antigos” voltariam a se interessar pelo Gandhi e a
integrar seus desfiles. E, para eles, mesmo que ainda houvesse mulheres de épocas
anteriores desfilando no grupo, como Creusa e Rosa, elas não eram capazes de,
sozinhas, resgatarem o que consideravam ser essa tradição perdida, pois fazia parte de
suas noções de tradicionalidade o grupo ser comandado por homens.
Assim, através dos textos de Raul Lody e das falas de Índio, Hélio e Wilson,
pude compreender as permanências dos fundamentos religiosos tidos como
estruturantes das práticas do grupo, bem como o impacto na noção de “tradicionalidade”
que as alterações propostas por Machado estava ocasionando: a aceleração do ritmo
musical; as cantigas com letras em português; as mulheres desfilando fantasiadas de
lençol; e a aceitação de homossexuais portando o estandarte do grupo, seu objeto
material considerado mais sagrado. Mas essas alterações de sua “tradição” já haviam
acontecido anteriormente a Machado e faziam parte mesmo da “versão” que cada
presidente operava do grupo e de suas transformações ao longo dos anos: a permissão
de participação das mulheres nos desfiles; a participação de pessoas não feitas do santo
no grupo; a divisão de alas; e a inclusão das rodas de samba de umbigada ao final das
apresentações.
E eram através dessas retóricas de perda que seus integrantes de “épocas”
anteriores demarcavam tais transformações, definindo assim o que era considerado
“tradicional” não apenas a partir de suas permanências, mas também em contraste,
percebendo suas modificações. No entanto, ao ouvir a narração de todas as alterações
implantadas nas diferentes “épocas” do Gandhi, percebi que sua constante
transformação fazia parte de suas noções de circulação e reciprocidade, já que
buscavam ampliar os espaços frequentados pelo grupo e o número de seus integrantes.
E que era nessa tensão dialética entre preservar e transformar que o patrimônio do
Gandhi mantinha como bem inalienável seus aspectos mágicos ligados às práticas do
candomblé.

OS ESPAÇOS DA MAGIA E DA RECIPROCIDADE

210
O sistema de pensamento dos integrantes do Afoxé Filhos de Gandhi era
pautado pelas noções de magia e de reciprocidade: as trocas por eles movimentadas se
baseavam nas práticas das casas de candomblé, que envolviam o mundo dos homens e
dos orixás através de rituais que visavam trazer proteção e benefícios no cotidiano.
Essas trocas também se expandiam para as relações entre as casas de candomblé, já que
a maioria dos integrantes do Gandhi estabelecia uma rede de amizades em torno das
práticas do candomblé e de suas noções de magia para além dos eventos do grupo, que
eram consolidadas nas festas de culto aos orixás. E era a circulação dos filhos de santo
entre as diferentes casas de candomblé que possibilitava a densidade social observada
no Presente de Iemanjá e nos desfiles de Carnaval do grupo e que os mantinha
participantes em eventos de divulgação da “cultura negra” e dos “cultos afros”.
Esse amplo sistema de trocas movimentado pelo grupo, além de ser
estruturante de sua forma de pensamento e no estabelecimento de suas relações sociais,
também era movimentado quando seus integrantes operavam com as noções de
transformação e permanência de suas práticas: através da busca de um maior
reconhecimento público do Gandhi como representante da cultura afro-brasileira, do
aumento de participação de filhos de santo em seus desfiles e de profissionalização de
sua diretoria e seus músicos.
Assim, acompanhando as atividades e projetos do Gandhi, compreendi que o
“patrimônio imaterial” que ele articulava buscava constantemente o equilíbrio entre a
manutenção dos “fundamentos” do grupo, relacionados às práticas do candomblé, e a
transformação das práticas consideradas alienáveis e capazes de aumentar sua circulação
e mediação entre diferentes espaços e mundos. E que a trajetória do Gandhi ligada às
casas de candomblé possuía uma base histórica onde residia a eficácia simbólica e a
ressonância de seu patrimônio, como visto nas narrativas sobre as origens e
transformações de suas práticas ao longo de seis décadas.
E, por ser um afoxé, ou seja, por desfilar seguindo determinados fundamentos
religiosos do candomblé, o Gandhi, apesar de portar seu patrimônio movimentado um
amplo sistema de trocas e de circulação, precisava ter um ponto de referência espacial
para seus ensaios e rituais. E havia concentrado, ao longo do tempo, suas atividades em
diferentes espaços da Zona Portuária e do Centro da cidade, fazendo com que tais
regiões fossem para o grupo parte constitutiva desse patrimônio.
Assim, era somente aparente o paradoxo entre a circulação e fixação desse grupo
carnavalesco em um território, já que, para que ele existisse, ambos os movimentos

211
eram necessários: o de seus “desfiles” e de sua “sede”, cada qual se complementando e
alternando em funções. Sendo que, entre os espaços que ao longo da trajetória do
Gandhi haviam sido utilizados como sede do grupo, o antigo mercado de escravos do
Valongo era entendido por seus integrantes como de especial valor, devido aos aspectos
mágicos que movimentava por sua conexão com os mortos e o mito da Pequena África.

212
Conclusão.
Os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca

Após o final dos dois anos de trabalho de campo, percebi que os planos
urbanísticos da prefeitura para a Zona Portuária carioca não começaram com o Porto do
Rio, mas fizeram parte de um processo histórico que teve suas bases consolidadas no
primeiro grande plano urbanístico idealizado para a cidade, que foi a Reforma Pereira
Passos. As áreas portuária e central se tornaram então espaços de constantes
planejamentos e definições de usos do solo, tendo sido repensadas e modificadas ao
longo do século por diversos outros planos.
O plano urbanístico Porto do Rio, a despeito de sua autoproclamada “novidade”,
se apresentava, assim, como uma continuidade de imaginários e práticas. No entanto, a
emergência das noções de “sítio histórico” e de “área de preservação cultural” a partir
da década de 1970 nas políticas públicas nacionais e regionais voltadas para a
identificação de patrimônios, redefiniram as classificações que estavam incidindo sobre
essas áreas portuária e central, propondo uma clivagem de sua funcionalidade dentro da
dinâmica da cidade. Assim, os bairros que até então eram predominantemente
destinados aos usos comerciais, industriais e de serviços, começaram a ser valorizados
por seus aspectos “culturais”. E, a partir desse momento, foi a definição do conceito de
cultura que entrou em disputa por seus diferentes usuários: gestores públicos,
especialistas das áreas de arquitetura, urbanismo, história, sociologia, geografia e
antropologia, moradores, associações de bairro, sociais e recreativas, comerciantes,
empresários, entre outros.
Ao invés de desenvolver minha pesquisa buscando propor uma normatização ou
programa de usos dos espaços da Zona Portuária, optei por compreender como eles
estavam sendo estruturados por seus diversos habitantes. E, ao escolher o Morro da
Conceição como recorte territorial para a realização de meu trabalho de campo, espaço
que estava sendo privilegiado pelos urbanistas da prefeitura em suas ações de
“renovação urbana”, me deparei com os efeitos sociais locais dos planos urbanísticos e
as disputas que, direta ou indiretamente, eles estavam provocando.

213
E, ao tentar dar conta da diversidade de formas de habitar e estruturar
mentalmente o morro, acabei por me deslocar da noção territorial totalizante que havia
sido proposta pela prefeitura: pois, se havia algo em comum entre os espaços da “parte
alta”, da “parte baixa”, da Pedra do Sal e do Valongo, era suas proximidades físicas e o
estabelecimento que permitiam de uma noção, embora difusa, de “vizinhança”. Mas tal
vizinhança podia, dependendo do ponto de vista dos grupos e indivíduos que habitavam
seus espaços, incluir ou excluir outros espaços, como o Morro da Providência, os
bairros da Gamboa e Santo Cristo, o Centro da cidade, e até mesmo os fisicamente
distantes subúrbios e municípios da Baixa Fluminense, que eram aproximados devido às
conexões possibilitadas pelas linhas rodoviárias e metroviárias da Central do Brasil.
A definição do Morro da Conceição reconhecida administrativamente pelos
urbanistas da prefeitura era, assim, baseada em uma noção geográfica da ideia de
planalto. E, para unificar os diferentes espaços desse planalto em um único projeto de
“renovação urbana”, percebi que tais urbanistas haviam estruturado o morro a partir da
noção metafórica de “casa”. Apesar dos urbanistas da prefeitura não utilizarem
explicitamente essa metáfora em seus discursos, ela era operada inconscientemente pela
distinção que faziam entre o que denominavam de “morro” e de “cidade”. Assim, para
eles, era a ideia de “casa” que constituía a noção de “morro”, sendo suas ruas e
logradouros classificados pelos diferentes usos que possuíam e possibilitavam; enquanto
a ideia de “rua” era associada aos espaços circundantes do planalto e genericamente
denominados de “cidade”.
Como sugerido pelo urbanista Amos Rapoport (1969), a noção de casa era
universal, embora variasse de acordo com cada contexto cultural. E, como proposto
ainda pelos estudos do sociólogo Pierre Bourdieu (2003) e da antropóloga Suzanne
Blier (1987), o que unificava a noção de casa era a série de oposições e correlações que
operavam entre espaços, como “interior” e “exterior”, “coletivo” e “individual”,
“sagrado” e “profano”, “puro” e “impuro” etc. Eram, portanto, essas oposições que
estruturavam a percepção dos limites de uma totalidade territorial imaginada. E, tendo
como referência as elaborações de Lévi-Strauss (2008), percebi que os espaços do que
se definia por morro haviam sido formalmente estruturados pelos urbanistas da
prefeitura como dualismos concêntricos hierarquizados entre si: pois, tinha sido a partir
do principio lógico da oposição “centro” e “periferia”, que cinco regiões haviam sido
identificadas como componentes de uma “dinâmica socioespacial” no livro Morro da
Conceição.

214
No entendimento espacial e social do morro pelos urbanistas, havia sido
proposta uma gradação entre os espaços classificados como mais e menos
“comunitários” e “regulares” em suas ocupações. Assim, foi percebido como centro o
que foi classificado de “eixo cume morro”, região onde estavam a localmente
denominada “parte alta” e as edificações da Fortaleza e do Palácio Episcopal e a qual os
urbanistas associaram à ocupação dos “descendentes de portugueses e espanhóis”. A
região classificada como “flanco norte” era o que localmente se denominava “parte
baixa”, e foi onde os urbanistas identificaram a ocupação dos “migrantes nordestinos” e
a predominância fundiária da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da
Penitência. Como “flanco sudeste” foi identificado a região onde estava localizada o
Jardim Suspenso do Valongo e a Ladeira Pedro Antônio, espaços onde não foi proposta
qualquer caracterização de sua ocupação, sugerindo serem social e culturalmente vazios.
E, como o extremo da periferia, foi identificada quase toda a base do morro, incluindo o
Largo João da Baiana e a Rua São Francisco da Prainha, sendo classificadas como
“sopé comercial” e caracterizadas como ocupada por “comerciantes” sem vínculos
sociais com os moradores do morro.
Analisando essas classificações dos urbanistas da prefeitura a partir das noções
de “casa/ morro” e “rua/ cidade” e de “centro” e “periferia”, percebi que nelas estavam
sendo operadas outras oposições espaciais específicas: as que diferenciavam a
localização vertical “alto” e “baixo”; a localização horizontal “área central” e “área
portuária”; seus usos “privado” e “público”; suas funções “residencial” e “comercial”; e
as categorias estéticas, econômicas e morais “recuperado” e “decadente”.
Trocando em miúdos, quanto mais alto se localizava um espaço do “morro” e
menos relação possuía com a “cidade”, acentuando-se seu caráter de espaço privado e
residencial, mais ele era percebido como central. Inversamente, quanto mais um espaço
estava localizado próximo à sua base e possibilitava diversas conexões com outros
espaços da cidade, acentuando-se seu caráter de espaço público e comercial, mais ele
era entendido como área periférica. A partir desse princípio tinham sido, portanto,
classificados o “eixo cume morro”, os “flancos” e o “sopé”.
Cumulativamente, haviam sido ainda entendidos como mais centrais os espaços
voltados para a área do Centro da cidade, associados a espaços “recuperados”, e como
mais periféricos aqueles voltados para a Zona Portuária, associados a espaços
“decadentes”. Assim, a Rua Major Daemon e a Ladeira João Homem, vias de acesso
mais rápido à Avenida Rio Branco, ocupada por prédios de arquitetura “moderna” e

215
pelas atividades financeiras e empresariais, foram incluídas no “eixo cume morro”;
enquanto a Ladeira Pedro Antonio foi incluída perifericamente no “flanco sudeste”,
composto por sobrados utilizados pelo pequeno comércio e por habitações coletivas e
voltado para o bairro da Gamboa e o Morro da Providência. E, no meio dessa gradação,
foi classificado o “flanco norte”, que permitia a conexão entre ambas as regiões.
Como os espaços do morro haviam sido inconscientemente estruturados pela
noção metafórica de casa, suas “portas” e “janelas” foram consideradas espaços
liminares de interligação do morro à cidade, possibilitando movimentos alternados de
entrada e saída, aproximação e afastamento, interior e exterior. E foi para demarcar esse
movimento de alternância que os urbanistas propuseram que todas as vias do morro
tivessem seus pisos revestidos por pedras e não por asfalto, como era o caso de algumas
de acesso componentes da parte baixa. Tal demarcação física seria, assim, uma
delimitação simbólica de espaços.
E, na operação da oposição “público” e “privado”, os espaços foram ainda
diferenciados pelo uso coletivo ou individual que possibilitavam, sendo assim
estruturados pelas diferenciações entre “sala de visita” e “quarto de dormir”. Foram
classificados como públicos os espaços que possibilitavam o encontro entre diferentes
tipos de usuários, como vias, largos e praças; e “privados” os restritos ao uso dos grupos
familiares e suas residências. E, por operaram com essa oposição, havia causado
incômodo aos urbanistas a indefinição de algumas áreas do morro entre os usos públicos
e privados; pois, para muitos dos habitantes, algumas vias que os urbanistas percebiam
como espaços coletivos eram vivenciados como de circulação restrita, onde a presença
de qualquer pessoa entendida como “de fora” provocava desconfiança.
Assim, embora os urbanistas da prefeitura possuíssem uma forma própria de
delimitar e identificar o morro e seus habitantes, no cotidiano das práticas e experiências
desses habitantes os espaços eram estruturados a partir de diferentes lógicas de “casa” e
“rua”, que em algumas classificações podiam se assemelhar à dos urbanistas e, em
outras, suspendê-las, invertê-las ou anulá-las. E, igualmente, as noções de centro e
periferia variavam de acordo com cada grupo e seus espaços considerados e utilizados
como sagrados.
Era o caso de alguns moradores da parte alta e sua centralidade simbólica no
Largo da Santa, que operavam suas distinções espaciais e sociais a partir das noções de
“virtude” e “vício”, “regular” e “irregular”, “masculino” e “feminino” e “puro” e
“misturado”. Assim como dos dirigentes da VOT, cujo centro simbólico estava na

216
Igreja da Prainha e para os quais a noção de “casa” era associada a um espaço regrado e
de relações hierarquizadas, sendo a noção de “rua” associada aos espaços e habitantes
que não compartilhavam de seus padrões religiosos e de conduta moral, produzindo
uma gradação entre as classificações de “morador”, “marginal”, “desviante” e
“criminoso”. E dos integrantes do Quilombo da Pedra do Sal e do Afoxé Filhos de
Gandhi, centrados respectivamente na Pedra do Sal e no antigo mercado de escravos do
Valongo, e que, apesar de suas diferenças, eram unificados pela cosmologia do
candomblé e percebiam o espaço da “rua” como de troca com o mundo dos homens e
dos orixás através da mediação física de esquinas, pedras, águas, plantas e animais; e
para os quais o espaço da “casa” era de estabelecimento de relações de amizade a partir
de uma hierarquia pautada por valores mágicos.
Permeando estes diferentes grupos, encontrei direta ou indiretamente
pronunciada a noção de patrimônio, mas que também variava de acordo com cada
contexto e formas de estruturar os espaços. Ao iniciar a minha pesquisa pela parte alta
do morro, que estava sendo proclamada pela prefeitura como de ocupação dos
“descendentes de portugueses e espanhóis”, tinha a expectativa de que encontraria
narrativas de patrimonialização voltadas para a presentificação dessa memória. Mas,
neste primeiro espaço pesquisado, percebi que os discursos de “patrimônio” eram
principalmente externos, referentes aos próprios urbanistas da prefeitura e a pessoas que
percebiam nele um modo de vida “popular” e “autêntico”. E, de forma apenas
aparentemente paradoxal, foi nesse espaço valorizado cultural, econômica e
turisticamente que encontrei discursos menos articulados sobre identidades e pleitos
territoriais: pois era essa valorização mesma que legitimava seus moradores e fazia com
que não precisassem articular discursos de “visibilidade”, apenas práticas de controle
dos usos do espaço e da “vizinhança”.
Assim, foi justamente entre os habitantes do morro que não haviam sido
contemplados na representação da “organização comunitária” proposta pelos urbanistas
da prefeitura, e para cujos espaços estavam sendo idealizadas as principais ações de
“renovação urbana”, que encontrei a noção de patrimônio sendo operada em pleitos
territoriais e narrativas bem articuladas sobre tradição e identidade. Pois, tais narrativas
e pleitos era uma reação a essa invisibilidade difusa que estava sendo articulada por
mediadores de imaginários que associavam a presente ocupação do morro como
relacionada a portugueses e espanhóis, migrantes nordestinos e franciscanos: mas que
excluíam a ocupação e memória espacial dos “negros” e do “povo do santo”.

217
Direcionei então minha pesquisa para dois grupos que não tiveram suas formas
de habitar reconhecidas pelos urbanistas em suas representações de “morro”: o dos
moradores que haviam formado o Quilombo da Pedra do Sal e o dos integrantes do
Afoxé Filhos de Gandhi. E, percebi que ambos haviam proposto nessa busca de uma
territorialização a estruturação dos espaços do morro e da Zona Portuária a partir da
noção de Pequena África: pois, através dela, eram reconhecidas e valorizadas a
ocupação “negra”, “popular” e “do santo” ligadas à moradia popular, aos ritmos
percussivos, aos grupos carnavalescos, às práticas do candomblé e às atividades
portuárias.
Os moradores que formaram o Quilombo da Pedra do Sal pleitearam alguns
imóveis do entorno do Largo João da Baiana argumentando pretenderem defender e
preservar da memória negra que estava materializada e oficialmente reconhecida pelo
tombamento da Pedra do Sal como “monumento afro-brasileiro”. E, através de suas
conexões com alguns movimentos sociais e órgãos estatais, buscaram sua
territorialização se baseando no dispositivo jurídico que articulava a noção de
“reparação histórica” e reconhecia como “comunidades remanescente de quilombo”
“grupos de afrodescendentes” que assim se auto atribuíssem e que possuíssem uma
“trajetória histórica própria”, “relações territoriais específicas” e uma “ancestralidade
negra” relacionada com a “resistência à opressão histórica sofrida”.
Já os integrantes do Afoxé Filhos de Gandhi, além de se unirem ao pleito do
movimento quilombola, desenvolveram concomitantemente formas próprias de atuação
para conseguirem a propriedade definitiva de sua sede na Rua Camerino, considerada de
relevante valor simbólico por estar localizada no espaço onde havia funcionado o
mercado de escravos do Valongo. E, embora o “patrimônio” que propalassem não
tivesse sido reconhecido oficialmente por leis de preservação, era por eles chamado de
“imaterial” e associado às práticas do candomblé e do carnaval. Mas, em suas formas de
articular seu pleito territorial, as noções de redenção da memória da escravidão e de
reciprocidade fizeram com que ampliassem seu sistema de trocas e de circulação,
através do aumento de mediadores: “madrinhas”, “patronos”, “amigos”, “parceiros”,
além de humanos, antepassados, orixás, plantas, minerais e animais, foram assim por
eles operados e conectados.
Quando finalizei a pesquisa em novembro de 2009, os pleitos territoriais de tais
grupos pertencentes ao circuito de herdeiros da Pequena África permaneceram sem
resolução jurídica, embora seus patrimônios fossem ressonantes em parcela da

218
população da cidade. No início desse ano havia ocorrido ainda a transição da gestão da
prefeitura e a divulgação de um “novo” plano urbanístico para a Zona Portuária, o Porto
Maravilha, que passou a incluir como área de intervenção o bairro portuário do Caju e
parte dos bairros do Centro, Cidade Nova e São Cristovão. A aprovação do Rio de
Janeiro como sede das Olimpíadas de 2016 também havia provocado o substancial
aumento de investimentos do Governo Federal nos projetos de “revitalização urbana” da
prefeitura. E, nessa mudança de contexto político e administrativo, era imponderável o
quanto os herdeiros da Pequena África conseguiriam alcançar o reconhecimento de seus
patrimônios e sua territorialização na Zona Portuária.

219
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