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Revisão: Wanderson Ciambroni – Bona Littera Assessoria Linguística
Capa: Sônia Maria Borba

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte


Porto, Rosane Teresinha Carvalho
P853 Justiça Restaurativa & Gênero: por uma humanização que desarticule a
violência [recurso eletrônico] / Rosane Teresinha Carvalho Porto e Marli
Marlene Moraes da Costa – Curitiba: Multideia, 2014.
154 p.; 21 cm
ISBN 978-85-86265-99-0
(VERSÃO ELETRÔNICA)
1. Justiça restaurativa. 2. Violência contra as mulheres. I. Costa, Marli
Marlene Moraes da. II. Título.
CDD 345(22.ed)
CDU 344

É de inteira responsabilidade dos autores a emissão dos conceitos aqui apresentados.


Autorizamos a reprodução dos textos, desde que citada a fonte.
Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98.
ROSANE TERESINHA CARVALHO PORTO
MARLI MARLENE MORAES DA COSTA

JUSTIÇA RESTAURATIVA
&
GÊNERO
Por uma humanização
que desarticule a violência

Curitiba

2014
PREFÁCIO

Tive privilégio ao receber convite para ser o primeiro lei-


tor desta encantadora obra sobre Justiça Restaurativa e Gênero
que, a partir de uma abordagem transdisciplinar, articula ques-
tões sobre o poder feminino na lógica do outro generalizado, a
transversalidade do gênero nas políticas públicas como estra-
tégia de superação da violência e das assimetrias nas relações
entre homens e mulheres, propondo uma visão que alcança
múltiplos sentidos e a própria multidimensionalidade da justi-
ça restaurativa.
As autoras são pioneiras na pesquisa acadêmica sobre
justiça restaurativa no Brasil com produção qualificada sobre o
tema reconhecida inclusive no exterior. Registro, também, a
oportunidade que tive em 2010 de compartilhar a autoria do
livro “Justiça Restaurativa e Políticas Públicas: uma análise a
partir da teoria da proteção integral” que estudou as primeiras
iniciativas sobre o tema no âmbito da Justiça da Infância e da
Juventude no país.
Agora, as autoras nos oferecem novas possibilidades de
reflexão na medida em que articulam temas complexos como
gênero, violência, políticas públicas e justiça restaurativa,
abordagens estas que resultam das pesquisas desenvolvidas no
âmbito do Grupo de Estudos Direito, Cidadania e Políticas Pú-
blicas do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e
Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
A obra aprofunda, no contexto da sociedade contemporâ-
nea, os processos históricos de coisificação e dominação sobre
a mulher que produziram estruturas sociais de subordinação e
hierarquização de gênero, gerando estigmas e práticas sociais
discriminatórias e intolerantes. Assim, os desafios da transver-
salidade de gênero nas políticas públicas, bem como a articula-
ção interinstitucional da rede de proteção, atendimento e justi-
ça colocam-se como imperativos para a consolidação de estra-
tégias de emancipação.
O consistente rigor técnico, científico e metodológico des-
te livro não elimina o potencial criativo das autoras, que nos
oferecem a deliciosa abordagem pela via das metáforas como
“Penélope, a charmosa” e “Dormindo com o Inimigo” utilizan-
do-as para evidenciar, não só as desigualdades de gênero, mas
as complexas relações de poder e expectativas de normalização
de comportamento público e privado impostos sobre as mulhe-
res, desfiando os sutis enlaces das violências cotidianas e o po-
der da violência simbólica.
Na abordagem sobre políticas públicas demonstram que
o reconhecimento jurídico dos direitos humanos não é ponto
de partida para a garantia de equidade, mas caminho necessá-
rio para um sentido de vida multidimensional e, portanto, de
justiça social. Contudo, não são quaisquer práticas de justiça
que têm potencial para enfrentar estas novas formas de domi-
nação, mas aquelas que sejam capazes de restaurar sensibili-
dades e rearticular a fragmentação das relações sociais partin-
do da comunidade.
Assim nos ensinam que enfrentar os pontos cegos das po-
líticas públicas depende do aspecto mais fundamental da de-
mocracia, que é a emancipação humana, permitindo, com a lei-
tura da obra, pensar novas formas de encantar os resignados e
resistentes num mundo de assimetrias e desigualdades geracio-
nais e de gênero.

Prof. André Viana Custódio


Professor do PPGD/UNISC
Pós-Doutor em Direito – Universidade de Sevilha/Espanha
Doutor em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina
SUMÁRIO

PREMISSAS INTRODUTÓRIAS..................................................................... 7

Capítulo 1
O PODER FEMININO NA LÓGICA DO OUTRO
GENERALIZADO E DE AFETO NO ÂMBITO PÚBLICO ........................ 17
1.1 Esboços da genealogia de dominação do discurso
masculino nas histórias do feminino ........................................... 19
1.2 A corrida maluca da Penélope Charmosa: a cultura
feminina das aparências no ideário de consumo em
desvelar-se, revelar-se, descobrir-se ........................................... 25
1.3 Dormindo com o inimigo: o poder simbólico
masculino e o flagelo da violência doméstica ........................... 34

Capítulo 2
TRANSVERSALIDADE DE GÊNERO NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DADA A RUPTURA PELA VIOLÊNCIA DA
ASSIMETRIA NAS RELAÇÕES ENTRE HOMENS E MULHERES ...... 51
2.1 Os direitos humanos e fundamentais da mulher na
ordem internacional............................................................................ 52
2.2 Transversalidade nas políticas públicas de gênero ............... 75
2.3 A dimensão de gênero, ponto cego das políticas
públicas?................................................................................................... 82

Capítulo 3
O SENTIDO MULTIDIMENSIONAL DE ABORDAGEM DA
JUSTIÇA RESTAURATIVA “PARA E ALÉM DOS GÊNEROS”.............. 93
3.1 Aportes teóricos sobre justiça restaurativa:
considerações essenciais................................................................... 95
3.2 Implementando na matriz curricular a disciplina
restaurativa nas escolas em face à prevenção da
violência de gênero e a humanização do outro dotado
de gêneros: “ser um homem masculino e feminino não
perde o seu lado masculino…” ...................................................... 106
3.3 O uso das práticas restaurativas para construir
relacionamentos saudáveis: o círculo
masculino/feminino ......................................................................... 121

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 141

REFERÊNCIAS ................................................................................................. 145


“Nenhuma luta jamais logrará êxito sem que as
mulheres participem lado a lado com os homens. Há duas
forças no mundo: uma é a espada e a outra é a caneta.
Há uma terceira força, mais poderosa: a das mulheres.”1

1 YOUSAFZAI, Malala. Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direi-


to à educação e foi baleada pelo Talibã. Malala Yousafzai com Christina Lamb.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 39.
Desde a conquista do sufrágio universal, o voto em 1932
pelas mulheres, incitadas pelo movimento feminista, muitas
mudanças significativas se deram na sociedade, em especial a
retomada do controle do próprio corpo com questões em torno
da fecundidade e da libido. Em face disso, é associada a neces-
sidade de inserção no mercado de trabalho, em um movimento
que se deu a partir do período pós-industrial, quando elas ocu-
param as fábricas e desumanamente foram exploradas pelo
capital, que tinha como seu dirigente a autoridade masculina.
O que atualmente se indaga é se o capital tem gênero ou
independe daquele que possa servi-lo ou servir-se dele. De
qualquer sorte, não há de se negar que, a partir do sufrágio
universal e da ocupação da mulher pelo feminino nas fábricas,
espaço até então exclusivamente masculino, o olhar falocêntri-
co em relação ao feminino não seria mais o mesmo, passando,
mais do que nunca, ao rememoramento do período fálico e um
sentimento de perda de objeto e insegurança, por não ser mais
o único provedor pelo âmbito doméstico, o que desvelou a bar-
bárie de dominação e subjugação, subversão do feminino em
um embate desproporcional no campo simbólico.
12
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Nesse aspecto é que se perquire a arquitetura do poder


jurídico e político (sociojurídico) nas relações assimétricas en-
tre o homem e a mulher. É interessante desconstruir esse po-
der que, categoricamente, tem em seu núcleo dimensões do
saber conforme convenções preestabelecidas na sociedade,
para melhor clareza e percepção da complexidade, retroali-
mentado sistematicamente pela cultura patriarcal que, em vir-
tude da dimensão, pode estar contaminando, interferindo na
identidade da mulher Beauvoir, o que, com o movimento femi-
nista, pode ter sofrido um esvaziamento de sentido, aumentan-
do ainda mais o distanciamento entre os universos feminino e
masculino.
Existem, sim, diferenças entre ambos, que, ligadas inde-
vidamente ao gênero, podem não tratar de equidade, igualdade
e justiça, mas aumentar ainda mais a discriminação entre os
seres humanos. É sabido que gênero e mulher, assim como ou-
tras categorias construídas socialmente, ultrapassam a relação
masculino/feminino e podem ser redefinidos socialmente no
campo simbólico, em conformidade com o subjetivo do sujeito
e com a perspectiva histórica de uma sociedade. Portanto, gê-
nero não é determinado individualmente e nem socialmente,
basta verificar que, cotidianamente, as pessoas fazem interfe-
rências no seu corpo, inclusive nos lugares considerados sagra-
dos pela sociedade, que são os órgãos genitais. Logo, está ultra-
passada a ideia de reduzir gênero às categorias sexo e biológico.
A coexistência da mulher e do homem está na comple-
mentaridade e no respeito à complexidade do pensamento de
um e de outro. Indo mais além, denota-se cuidado com o dis-
curso do poder para não manipular os sujeitos, esperando efei-
to-respostas como resultado de controle nas condutas de com-
portamento. O poder-saber das instituições constitui a arquite-
tura de pensamento de uma sociedade, cabendo ao Direito re-
definir e desconstruir tudo isso. Cada instituição exerce deter-
minado poder, o qual perpassa de geração em geração pela
13
Justiça Restaurativa & Gênero

repetição de papéis – representações dadas a cada sujeito no


espaço doméstico (privado) e público. Esta prática implica con-
sequências em relação a esse ímpeto exercício, a citar, por
exemplo, a violência como forma de estratégia primária con-
forme o olhar eficaz de dominação sobre o outro.
Para pensar sobre as representações sociais que os sujei-
tos (o homem e a mulher) exercem dentro da comunidade ou
da sociedade, o que preliminarmente leva à hipótese de cons-
trução cultural do papel feminino, Foucault contribui dentro
dessa abordagem, apresentando categorias significativas na
linguagem, como o poder do discurso: o disciplinador que doci-
liza os corpos, por meio de padrões culturais, enfatizando e
conduzindo na formação do certo e do errado, o que, contem-
poraneamente, leva ao aprisionamento efetivo dos sujeitos,
afastando o livre arbítrio e a autonomia do sujeito – bem traba-
lhada nos tempos atuais por Amartya Kumar Sen. Ao encontro
disso, têm-se ainda contribuições riquíssimas de Pierre Bour-
dieu, que investe sua abordagem no poder simbólico sobre os
corpos, e o enfrentamento disso correlaciona-se à violência
simbólica quando sujeitos (homens e mulheres) aprisionados
em seus papéis vivenciam o habitus constituído de capitais: o
econômico, o social e o cultural. Esses capitais são “moedas de
trocas entre os indivíduos na sociedade, que, cada vez mais”,
segundo Bauman, está individualizada, fragilizando e tornando
as relações ainda mais artificiais.
Perscrutando a historicidade das conquistas da cidadania
da mulher, observou-se, na antiguidade, que as mulheres esti-
veram no centro do poder e, com a descoberta (consciência) do
homem sobre o seu papel na fecundação e na vida do ser hu-
mano, elas passaram a ser coisificadas e dominadas. Com isso, o
homem demonstrou que não soube compartilhar espaços de
poder, ao contrário, deixou evidente que a mulher deveria ape-
nas servi-lo.
14
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Categoricamente, o sentido de gênero dentro da justiça


restaurativa está sob a luz da humanização de justiça social,
que reconhece o homem e a mulher como protagonistas de sua
própria história e sujeitos de direitos, por isso o olhar multidi-
mensional da justiça parte do enfoque comunitário. Pelo fenô-
meno da globalização, ambos os gêneros sofrem fraturas e fla-
gelos de violência na sua identidade e individualidade; assim, a
reflexão proposta nesta obra, embasada em ideias ou estudos
de cunho qualitativo e caráter bibliográfico, procura, inicial-
mente, em seu primeiro capítulo, descrever a genealogia de
dominação masculina em arranjos históricos da concatenação
de esquemas sociais, culturais, políticos e econômicos, com o
propósito de desconstituir e desconstruir o poder feminino
enquanto outro generalizado e de afeto no âmbito público. Da-
do o suporte do movimento feminista com o sufrágio universal
e o controle da fecundidade, a mulher reconquista a sua cida-
dania feminina na sociedade.
Porém, outros desafios surgem na sua trajetória que es-
tremecem nos dias atuais o seu poder. Esses desafios estão re-
lacionados ao mercado de consumo, que cobra o culto ao belo e
a eternidade da juventude, bem como o adiamento da materni-
dade. Dentro desse quadro, observa-se que a violência toma
outra forma, mesmo que, historicamente, ela tenha diminuído
na humanidade por conta da revolução e humanização dos di-
reitos. Ou seja, o homem continua aniquilando o outro feminino
como reflexo de esvaziamento de sentir-se incapaz de conduzir
sua própria história e de não conseguir dentro da posse conti-
nuar escravizando ou sendo servido. Nessa esteira de pensa-
mento, dada a contribuição dos direitos humanos e fundamen-
tais da mulher na ordem internacional, é que se abordou no
segundo capítulo a transversalidade de gênero nas políticas
públicas em face da violência de gênero. Por conta disso, reco-
nhece-se que pensar em política de gênero é legítimo, porque
15
Justiça Restaurativa & Gênero

contempla a leitura, o olhar sobre como as políticas públicas


devem ser construídas no trato das relações entre as mulheres
e os homens e quais são as repercussões que isso acarreta.
No cenário brasileiro, a incorporação da política de pro-
moção da igualdade das mulheres via “transversalidade de gê-
nero” deve significar aos gestores públicos não unicamente a
incorporação dessa perspectiva em um ministério ou secretaria
específica de atuação na área da mulher, mas deve se comuni-
car com todas as políticas públicas propostas pelo Estado, le-
vando em consideração as especificidades e as demandas das
mulheres2. Neste aspecto, o terceiro capítulo propõe refletir o
sentido multidimensional de abordagem da justiça restaurativa
“para e além dos gêneros” como propositura, observando nas
escolas que a adolescente jovem é a nova vítima da violência
doméstica – a implementação na matriz curricular da disciplina
restaurativa nas escolas em face da prevenção da violência de
gênero e a humanização do outro dotado de gênero. Dessa for-
ma, o uso das práticas restaurativas (os círculos de construção
de paz) é importante para estabelecer relacionamentos saudá-
veis no ambiente escolar entre meninos e meninas. Em outras
palavras, a justiça e a educação são uma parceria para o resgate
da cidadania.

2 SECRETARIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES. Políticas públi-


cas para as mulheres, 2012. Disponível em: <http://spm.gov.br/ publicacoes-
teste/publicacoes/2012/politicas_publicas_mulheres>. Acesso em: 26 dez.
2013.
O PODER FEMININO NA LÓGICA DO
OUTRO GENERALIZADO E DE AFETO
NO ÂMBITO PÚBLICO

Este primeiro capítulo irá refletir acerca do poder femi-


nino que pode instaurar-se no espaço público e que muito
avançou, quando se observam as mulheres ocupando lugares
no mercado de trabalho. No entanto, o problema maior e pon-
tual está nas estratégias de dominação pelo discurso do outro:
e esse outro está, ou pelo menos deve estar, além do masculino.
Não se quer aqui estabelecer um diálogo de disputas entre se-
xos, construídas histórica e culturalmente; ao contrário, objeti-
va-se estabelecer algumas ligações axiológicas e paradigmáti-
cas, em um primeiro momento, sobre a denegação da condição
feminina de equidade pelo poder dominante e simbólico, cen-
trado na figura do masculino. Insta revelado pela teoria crítica
feminista que o eu desprendido e reconhecido como “abstrato
portador de direitos é prejudicado pela desigualdade, assime-
tria e dominação que permeia a identidade privada desse eu
como sujeito dotado de gênero”3. Ao encontro disso, Marx se
preocupou em estudar sobre a luta de classes: na relação desi-
gual e de exploração entre os homens; sua discussão estava
acima da questão de gênero, perpassava pela lógica a instru-

3 BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como Crítica da


Modernidade. Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. São Paulo: Rosa dos
Tempos, 1987. p. 17.
18
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

mentalização do ser humano explorado e visto como objeto


pelo capitalismo. Significa dizer a relação objeto x objeto: a coi-
sificação e subjugação do ser humano. De qualquer sorte, não
se analisou o gênero, e sim o ser humano enquanto objeto de
produção e exploração capitalista. Por isso, é importante notar
que, como o conceito marxista de “classe” repousa numa estrei-
ta tradução de “produção” e econômico4, a crítica feminista ao
marxismo pouco contribui para a compreensão da cadeia es-
truturante e alienante do capital que reduziu o homem a en-
grenagem de máquina na fábrica, pouco importando ser ho-
mem ou mulher. Isto tanto é verídico que as mulheres foram
recrutadas pelas fábricas, tendo sua mão de obra explorada5.
Nesses espaços de âmbito público, as condições de trabalho,
tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, eram desumanas,
e foi nesse contexto que 129 mulheres tecelãs da Fábrica de
Tecido Cotton, de Nova Iorque, em 1857, decidiram fazer rei-
vindicações, o que resultou na primeira greve conduzida por
mulheres. Isso gerou revolta nos patrões, que decidiram por
queimá-las vivas6. Em 1910, Clara Zetkin, grande defensora dos
direitos da mulher, propôs que o dia 8 de março, data em que
ocorreu o massacre das operárias tecelãs em Nova Iorque, fos-
se dedicado à comemoração do Dia Internacional da Mulher.
Perscrutando a partir desse recorte histórico, das operárias
tecelãs, de fato, quer-se analisar se, diante de avanços e con-
quistas das mulheres pela sua cidadania feminina, realmente,
nos atuais dias, a genealogia de dominação nas relações sociais
estão além do gênero, ou isso, no que tange ao seu reconheci-

4 NICHOLSON, Linda. Feminismo e Marx: Integrando o parentesco com o eco-


nômico. In: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como
Crítica da Modernidade. Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. São Paulo:
Rosa dos Tempos, 1987.
5 Idem, ibidem.
6 MONTEIRO, A.; LEAL, G. B. Mulher da luta e dos direitos. Brasília: Instituto
Teotonio Vilela, 1998. (Coleção Brasil 3).
19
Justiça Restaurativa & Gênero

mento no discurso como um outro de afeto que pode orbitar no


espaço público, é um obstáculo a ser superado.
Nesse delineamento, exige-se ainda vincular aos efeitos
do que decorre tudo isso a violência simbólica contra o femini-
no, tanto no âmbito doméstico quanto no público, necessitando
de construções mais consolidadas e epistemológicas a respeito
o tema, para concatenar que a resistência do outro, ao sobre-
por-se ao eu feminino pela violência, é uma falha da razão hu-
mana no sentido de justiça. Desse modo, a ideia de uma justiça
social que reavalie e contemple o outro generalizado na comu-
nidade pode ser dimensionado dentro da justiça restaurativa.

1.1 ESBOÇOS DA GENEALOGIA DE DOMINAÇÃO DO


DISCURSO MASCULINO NAS HISTÓRIAS DO FEMININO

O modo como a anatomia do indivíduo é revestida é que


define o sujeito de gênero e não propriamente o corpo. Nesse
sentido, os papéis sociais do feminino e do masculino são cons-
truídos culturalmente pelo poder simbólico dominante e mas-
culino, que se reproduz e se perpetua nas relações entre os
gêneros no âmbito privado e no espaço público. Significa tam-
bém dizer que, segundo as feministas, o núcleo familiar en-
quanto espaço privado ou doméstico não é apenas local de re-
produção simbólica, descrito por Habermas, é também espaço
de reprodução material, pois sofre interferências e também
influencia tomada de decisões no espaço público7. Percebe-se,
com isso, a tendência de naturalização e distinção de masculino
e feminino, evidências de ordem biológica, que se reproduzem
em todos os espaços sociais. Nesse viés, Butlher prossegue:

7 NICHOLSON, Linda. Feminismo e Marx: Integrando o parentesco com o eco-


nômico. In: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como
Crítica da Modernidade. Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. São Paulo:
Rosa dos Tempos, 1987.
20
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

As figuras do homem e da mulher, no entanto, não se


restringem absolutamente à condição do ser do macho e
do ser da fêmea, mas ultrapassam bastante esses limia-
res. Trata-se, com efeito, de construções sociais e cultu-
rais de grande complexidade, modeladas que são por re-
gras e códigos simbólicos meticulosos. Em decorrência
disso, preferiu-se criticar na contemporaneidade a cate-
goria de sexo, marcada que seria essa concepção equivo-
cada, para enunciar a de gênero, a fim de que se possam
reconhecer efetivamente os procedimentos que lhe são
constitutivos. Formulou-se, assim, um projeto teórico de
produção da identidade, que teve como condição históri-
ca de possibilidade os movimentos gay e feminista, que
relançaram num outro comprimento de onda os jogos de
verdade (Foucault) constituídos pelo Ocidente.8

Via de regra, a história do ego masculino autônomo é a


saga desse sentido inicial de perda no confronto com o outro,
pela experiência real da guerra, do medo, da dominação, ansie-
dade e morte, bem como pelo estabelecimento da lei para go-
vernar tudo9. É necessário realçar que a constituição da autori-
dade política civiliza a rivalidade do homem com o outro ao
deslocar a atenção da guerra para a propriedade, da conquista
para a ostentação. Nesse aspecto, a lei reduz a insegurança, o
medo de ser mergulhado pelo outro, ao definir o meu e o teu10.
Segundo Butler, a dependência radical do sujeito masculino
diante do “Outro” feminino expôs subitamente o caráter ilusó-
rio de sua autonomia, significando fragilidade e fragmentação
da identidade do homem, que busca se autoafirmar valendo-se

8 BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
9 BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como Crítica da
Modernidade. Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. São Paulo: Rosa dos
Tempos, 1987. p. 95.
10 idem, p. 96.
21
Justiça Restaurativa & Gênero

da dominação11. No modo de vida patriarcal, o outro é tudo que


está além do ego. Nossas próprias dimensões inconscientes são
vistas como ameaças que precisam ser reprimidas. As outras
pessoas são consideradas meros figurantes no espetáculo do
mundo. É necessário explorá-las e extrair delas o mais que se
puder, descartando-as em seguida, como fazemos com a terra e
os seus frutos12. Foi, portanto, de Freud a Piaget que o relacio-
namento com o outro ou o irmão é visto como experiência hu-
manizadora que ensina os seres humanos a tornarem-se sociá-
veis e adultos responsáveis. Como consequência dessa metáfo-
ra sobre a imaginação e a consciência humana, também se her-
daram muitos preconceitos filosóficos, que de certa forma não
reconheceram a magnitude do poder feminino13. Sob esse
prisma é a própria constituição de uma esfera de discurso do
poder que bane a mulher da história, empurrando-a para o
domínio da natureza, da luz do público para o ambiente domés-
tico, para o repetitivo fardo imposto culturalmente de alimen-
tar e reproduzir. Por sua vez, a esfera pública, a esfera da justiça,
dá-se na historicidade, ao passo que a esfera privada, a esfera
do cuidado e da intimidade, é imutável e interminável. Nessas
esferas, a vida é reproduzida e internalizada pelo ego masculino.
Indo ao encontro do que foi dito, o conteúdo do outro generali-
zado e do outro concreto é constituído por essa caracterização
dicotômica, herdada da tradição moderna. O ponto de vista do
outro generalizado exige que enxergue o todo e cada indivíduo
como um ser racional habilitado aos mesmos direitos e deveres
que se deseja atribuir a si mesmo. Ao reconhecer o ponto de

11 BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 8.
12 MARIOTTI, Humberto. As paixões do ego: complexidade, política e solidarie-
dade. São Paulo: Palas Athenas, 2000. p. 43.
13 BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como Crítica da
Modernidade. Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. São Paulo: Rosa dos
Tempos, 1987. p. 96.
22
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

vista do outro, se abstrai a individualidade e a identidade con-


creta do outro14.
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abis-
sal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis,
sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções
invisíveis são estabelecidas por linhas radicais que dividem a
realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste
lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é
tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade,
torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente.
Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser
relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como
inexistente é excluído de forma radical porque permanece ex-
terior ao universo que a própria concepção aceita de inclusão,
considera como sendo o Outro. A característica fundamental do
pensamento abissal é a impossibilidade da copresença dos dois
lados da linha. Essa distinção visível fundamenta e caracteriza a
modernidade ocidental como paradigma fundado na tensão
entre a regulação e a emancipação social15.
Nesse contexto, reconhecer a essencialidade do outro
fundamenta o profundo apelo humanístico. “Estou falando de
algo que possa livrar-nos de um padrão de vida segundo o qual
em muitos casos a palavra é separada do real, a justiça se preo-
cupa menos com o sofrimento dos homens do que com a letra
da lei, e esta, não raro, busca verdades que pouco ou nada têm a
ver com o cotidiano das pessoas”16. Ninguém faz nada sozinho.

14 BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo Como Crítica da


Modernidade. Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. São Paulo: Rosa dos
Tempos, 1987. p. 101.
15 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas
globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa;
MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010.
p. 32.
16 MARIOTTI, Humberto. As paixões do Ego: Complexidade, política e solidarie-
dade. São Paulo: Palas Athenas, 2000. p. 27.
23
Justiça Restaurativa & Gênero

Precisamos do outro desde que nascemos: é ele quem confirma


a nossa existência e a recíproca é verdadeira. Vislumbra-se,
assim, que: “No patriarcado, ser pobre é considerado o sinal
máximo de fraqueza. Não dar sinais de debilidade é um impera-
tivo: é proibido não ter dinheiro ou aparentar esse estado. Na
perspectiva patriarcal, a pobreza é explicável pela falta de
‘competitividade’ e agressividade”17. Tendo essa perspectiva
em mente, “a expressão ‘matrística’ foi introduzida pela ar-
queóloga lituana Marija Gimbutas, para designar culturas nas
quais homens e mulheres viviam em cooperação e livres de
diferenças hierárquicas de parte a parte”18. Por outro lado, re-
força-se a cultura do patriarcado como sendo modo de apro-
priação, atitude exploradora e extrativista com a terra, fertili-
dade e procriação que influencia homens, mulheres e crianças
ao longo de toda a vida19. Dentro da metáfora do outro concreto
que repudia associar e compartilhar o poder com o outro femi-
nino, o poder simbólico masculino, quando propaga alguns dis-
cursos estratégicos universais, como conduta de comportamento
a ser seguida entre os indivíduos, materializa e aprisiona con-
ceitos críticos dentro de ideologias, sendo nós, na relação, o
outro concreto, que se distancia do “não pensado, não visto e
não ouvido”20. Muito embora as comunidades precisem de
normas morais e universais, é importante reexaminar o “não
pensado”, abrindo o canal de diálogo e do discurso para instau-
ração do outro generalizado feminino, que também consegue
lidar com o afeto21. Em contrapartida, o feminismo é identificado

17 MARIOTTI, Humberto. As paixões do Ego: Complexidade, política e solidarie-


dade. São Paulo: Palas Athenas, 2000. p.42-43.
18 Idem, p. 42-43.
19 Idem, p. 42-43.
20 Idem, p. 42-43.
21 BENHABIB, Seyla. O Outro Generalizado e o Outro Concreto. A controvérsia
Kohlberg-Gilligan e a Teoria Feminista. In: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Dru-
cilla (Coords.). Feminismo Como Crítica da Modernidade. Tradução de Natha-
nael da Costa Caixeiro. São Paulo: Rosa dos Tempos, 1987. p. 103.
24
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

com a negatividade, uma espécie de confinamento categórico


do outro feminino no discurso falocêntrico. Isso permeia a se-
guinte indagação: quem é o feminino? Um outro desmedido à
onipresença do eu masculino. Nesse viés, destaca-se no inter-
subjetivo feminino a sequela da mutilação do caráter social da
mulher. Por sua vez, Freud, no que tange à sexualidade, trata da
castração dos corpos, de ambos os sexos, pois estes ingressam
no reino simbólico pelo mecanismo da “castração”, bem como
da virilidade masculina22. Seguindo essa compreensão, a dife-
rença biológica entre o sexo masculino e o feminino dá-se pela
construção social, de matrizes universais que formam arranjos
por meio de símbolos convencionais e estruturantes entre o
óvulo, “símbolo por excelência da fecundidade feminina, e o
falo pela virilidade – potência sexual, mais os testículos”23. Por
sua vez, a relação de dominação–dominado e àquilo que os
domina – pressupõe percepções estruturantes impostas, de-
sencadeando no dominado “atos de conhecimento”, inevita-
velmente atos de reconhecimento, de submissão24. Tendo essa
perspectiva em mente, Bakhtin (1986, 1993, p. 54), mencionado
por Santos, aduz “que a arquitetura concreta do mundo atual dos
atos realizados tem três momentos básicos: o Eu-para-mim
mesmo; o Outro-para-mim; o Eu-para-o-outro”. E, desse modo,
constroem-se e refazem-se os valores, mediante um processo
incessante de interação25. O que se preze na dicotomia da ativi-
dade racional e simbólica dos espaços que os sujeitos se inter-

22 CORNELL, Drucilla; THURSCHWELL, Adam. Feminismo, Negatividade, Inter-


subjetividade. In: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coords.). Feminismo
como crítica da modernidade. Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987. p. 172.
23 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena
Kühner. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 22.
24 Idem, p. 22.
25 SANTOS, Milton. O lugar e o cotidiano. In: SANTOS, Boaventura de Sousa;
MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010.
p. 586.
25
Justiça Restaurativa & Gênero

laçam, a globalização tende, nos atuais dias, a despersonalizá-


-los e adoecê-los.
Nessa ótica, ressalta a lógica do outro generalizado e de
afeto está em agir como indivíduo e ver o outro como tal, sem a
maquiagem dos gêneros que o mundo lá fora enfia goela abaixo,
deixando tudo mais suave, pacífico e democrático26. Por conta
disso, o jeito é desvelar, revelar e descobrir o que esconde a
cultura feminina envolta da corrida para ocupação e manuten-
ção de poder nos espaços sociais.

1.2 A CORRIDA MALUCA DA PENÉLOPE CHARMOSA:


A CULTURA FEMININA DAS APARÊNCIAS NO
IDEÁRIO DE CONSUMO EM DESVELAR-SE,
REVELAR-SE, DESCOBRIR-SE

A projeção do outro feminino, de si próprio, é o maior de-


safio a ser enfrentado na sociedade do consumo que trabalha
com o imaginário social e dissipa a identidade do indivíduo. Por
isso, deve-se rememorar o poder da mulher na antiguidade até
sua queda quando da ascensão do poder fálico; e em dado mo-
mento histórico ela retoma o seu lugar no espaço público, dado
o seu reconhecimento de cidadania, pelo direito ao voto, mas
principalmente quando retoma o controle da reprodução hu-
mana, ou seja, do próprio corpo. Com a descoberta da pílula,
essa mulher encontra em seu caminho outro caminho a percor-
rer: a inserção do mercado de trabalho e o falso mito da beleza
e da jovialidade. A história da humanidade iniciou com o ser
feminino, em que a mulher foi quem carregou o cromossoma
humano primitivo, como o faz até os dias atuais. Assim, devido
a sua adaptação aos mais diversos ambientes, garantiu a sobre-
vivência e o sucesso da espécie, uma vez que também era

26 BENSIMON, Carol. Dormindo com o inimigo. Zero-Hora, sábado, 7 de setem-


bro de 2013.
26
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

incumbida da maternidade e, por força disso, forneceu o estí-


mulo cerebral imprescindível para o diálogo entre os seres
humanos e a sua organização social27. Contudo, devido a sua
grande importância na evolução da humanidade, já que somente
elas poderiam produzir novas vidas, eram reverenciadas, tidas
como deusas da natureza, ou seja, o domínio da natureza e da
evolução das espécies pertencia a elas. Desse modo, em comu-
nidades primitivas, as mulheres eram, com grande frequência,
menos subjugadas em relação aos homens. Em virtude desse
fato, essas mulheres “tinham frequentemente melhores opor-
tunidade de liberdade, dignidade e significação do que muitas
de suas descendentes femininas em sociedades mais avança-
das”28. Entretanto, com a destruição da imagem da maternidade
e da fertilidade ligada às mulheres, a dominação masculina ini-
ciou o seu processo, outorgando o patamar de inferioridade à
mulher, tornando natural essa condição e denegando-lhe até
mesmo a qualidade de ser humano. Nesse sentido, o eu mascu-
lino levantou-se para aceitar o desafio do poder feminino; e
iniciando a guerra que haveria de dividir os sexos e as socieda-
des por milênios à frente, o homem buscou autoafirmação de
sua masculinidade pela morte e destruição de tudo o que fizera
da mulher a Grande Mãe, Deusa, guerreira, amante e rainha.
Instaura-se a vingança do Falo, com o surgimento da sociedade
falocrata29. Por outro lado, com a retomada do poder feminino,
em meio à conquista do sufrágio universal ou do corpo político,
a mulher retoma espaços na sociedade, em especial pela sua
criatividade e as habilidades, que não se encontram mais exclu-
sivamente na força física. Com efeito, “a tecnologia de controle
da natalidade possibilita à mulher escolher quantos filhos quer
ter, e quando. A mulher deixou de dedicar a maior parte de sua

27 MILES, Rosalino. A História do Mundo pela mulher. Tradução de Barbara He-


liodora. Rio de Janeiro: LTC/Casa-Maria Editorial, 1989. p. 19.
28 Idem, p. 35.
29 Idem, p. 47.
27
Justiça Restaurativa & Gênero

vida adulta à força muscular. Como estava fadado a acontecer, o


monopólio masculino da política começou a ruir”30. Como afir-
ma Del Priore31, o século XXI é das mulheres – quem informa
são os filósofos, assim,
[…] de fato, elas estão em toda parte, cada vez mais visí-
veis e atuantes. Saíram de casa, ganharam a rua e a vida.
Hoje trabalham, sustentam a família, vêm e vão, cuidam
da alma e do corpo, ganham e gastam, amam e odeiam.
Quebraram tabus e tradições. Não é pouco para quem há
cinquenta anos só tinha um objetivo na vida: casar e ter
filhos. Ser feliz? Ao arrumar uma aliança no dedo, a feli-
cidade vinha junto.

Sob esse enfoque e com as diversas mudanças no seio da


sociedade, questiona-se como se passa de um mundo ao outro.
É sabido que a tecnologia e a educação auxiliaram, mas não
acompanharam toda a evolução humana. Contemporaneamente,
as pessoas estão inseridas na sociedade das aparências pelos
ideários midiáticos e de consumo, pois o sinônimo de felicidade
e sucesso está relacionado a estereótipos e padrões de beleza.
Nessa direção, o culto ao corpo, a intolerância à velhice e à obe-
sidade passa a ser reconhecido como nova forma de estigmação
e controle das mulheres. Por sua vez, as conquistas dos movi-
mentos feministas parecem estar reduzidas a meras ilusões32.
Insta dizer que o diagnóstico das revoluções femininas
até o século XX é ambíguo, pois, além de apontar para conquis-
30 INGLEHART, Ronald; WEZEL, Christian. Modernização, mudança cultural e
democracia: a sequência do desenvolvimento humano. Tradução de Hilda
Maria Lemos Pantoja Coelho. São Paulo: Francis, 2009. p. 327.
31 DEL PRIORE, Mary. Conversas e histórias de mulher. São Paulo: Planeta, 2013.
p. 5.
32 CABEDA, Sonia T. Lisboa. A Ilusão do Corpo Perfeito: O Discurso Médico na
Mídia. In: STREY, Marlene Neves; CABEDA, Sonia T. Lisboa; PREHN, Denise
Rodrigues (Orgs.). Gênero e cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004. p. 149.
28
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

tas, também aponta para as armadilhas. Também no campo da


aparência, da sexualidade, do trabalho e da família, deram-se
conquistas, mas também frustrações. De igual modo, “a tirania
da perfeição física empurrou a mulher não para a busca de uma
identidade, mas de identificação”33. Pois
[…] o corpo da mulher era visto com as marcas da exclu-
são e da inferioridade. Cristalizada pelas formas de pen-
sar de uma sociedade masculina, a evocação das imagens
do corpo e da identidade feminina, na pluma de diferen-
tes autores, refletia apenas a subordinação: ele era me-
nor, os ossos pequenos, as carnes moles e esponjosas, e o
caráter débil. A subordinação expressava-se, ainda, na
capacidade de reproduzir, quando solicitada pelos ho-
mens. Contudo, na outra ponta dessa submissão, a mu-
lher era senhora de beleza e sensualidade – aliás, beleza
considerada perigosa, pois capaz de perverter os ho-
mens; sensualidade mortal, pois se comparava a vagina a
um poço sem fundo, no qual o sexo oposto naufragava.
As noções de feminilidade e corporeidade sempre esti-
veram, portanto, muito ligadas em nossa cultura.34

Seguindo essa compreensão, a representação do corpo no


imaginário social é percebida hoje como “matéria-prima” ou
máquina imperfeita e frágil que pode ser reconstruída e torna-
da “perfeita” pela ciência e pela tecnologia. Nos dias atuais,
existem muitas mulheres viciadas em cirurgia, “escravas do
bisturi”. Independentemente dos custos financeiros, dor, con-
tusões grotescas, pós-operatórios complicados, elas não se
afastam do projeto de perfeição do corpo. Crucialmente, reme-
te-as ao outro lado do mito da beleza, “o reforço à representa-
ção que circula na sociedade sobre a relação de hostilidade e

33 DEL PRIORE, Mary. Conversas e histórias de mulher. São Paulo: Planeta, 2013.
p. 176.
34 Idem, p. 177.
29
Justiça Restaurativa & Gênero

inveja entre as mulheres”35. Nesse contexto, a cultura do narci-


sismo, vista como projeto existencial típico da contemporanei-
dade, gera um esvaziamento histórico, arruinando o sentido de
uma continuidade histórica, fato que compromete a comunica-
ção e as referências intergerenciais, culminando em solidão do
indivíduo. Assim, segundo a autora, o sujeito perde “o interesse
pelo futuro, que tem como meta abolir a velhice e prolongar a
vida indefinidamente. O indivíduo é, assim, induzido a buscar
uma eterna juventude e a construir um projeto existencial mar-
cado pela subjetivação narcisista”36. Na busca por esse ideal,
aumenta extraordinariamente o número de cirurgias plásticas
entre as mulheres, sendo este fenômeno decifrado como nova
estratégia de estigmatização, domínio e desqualificação da fe-
minilidade, produzindo reações embravecidas dos movimentos
feministas e significativa produção teórica a respeito da temá-
tica – hoje a mulher está restringida à sua beleza37. A partir da
década de oitenta, as mulheres entraram na briga por maior
independência na sociedade, contudo, ao invés de verem-se
livres de regras, padrões, comportamentos sociais, o que parece
ter acontecido é, na realidade, outra forma de aprisionamento,
de discurso de dominação e de construção social pela busca do
corpo perfeito, por meio de ritos saudáveis como a boa alimen-
tação, prática de exercícios, uma vez que seus corpos não foram
mais vistos sob a ótica da biologia, das ciências naturais, ou
seja, um organismo que exerce uma série de funções orgânicas.
Assim, o que surpreendeu é que se deu maior atenção, “muitas
vezes, à possibilidade do corpo servir como precioso veículo
para a manifestação de uma série de preocupações, caracterís-

35 CABEDA, Sonia T. Lisboa. A Ilusão do Corpo Perfeito: O Discurso Médico na


Mídia. In: STREY, Marlene Neves; CABEDA, Sonia T. Lisboa; PREHN, Denise
Rodrigues (Orgs.). Gênero e cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004. p. 166.
36 Idem, p. 155.
37 Idem, p. 155.
30
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

ticas e reflexos sociais das épocas”38. E, nos dias atuais, ainda que
se busque uma aceitação dos diversos modos de viver, o que se
percebe é, na verdade, a reprodução de determinados padrões
que são implicados às mulheres. E esses padrões referem-se, de
acordo com Araújo39, principalmente “à maneira de se compor-
tar, de se vestir, insinuando, inclusive, a forma que o corpo fe-
minino deve ter. A propagação destes padrões desejados/suge-
ridos pelos grupos, atualmente, é realizado, muitas vezes, pela
publicidade”, que se apresenta como canal extremamente efi-
caz, atingindo diversos grupos sociais – suscitando, em muitos
eventos, mudanças de comportamentos.
Essa utópica beleza do corpo feminino é um dos produtos
mais oferecidos pela publicidade, e com grande sucesso. Con-
tudo, esse corpo costumeiramente vem revestido de uma série
de exigências que transcendem a estética e a moda, beirando
aquilo que é avaliado como o ideal das mulheres, inclusive
mostrando explicitamente modificações culturais das socieda-
des. Portanto, “percebe-se que o corpo feminino, muito mais
que o masculino, tem evidenciado as transformações pelas
quais as sociedades têm se deparado”40. Desse modo, há intensa
presença de anúncios publicitários que utilizam a imagem de
corpos simplesmente como enfeites para a venda de produtos,
não existindo relação alguma entre o objeto anunciado e o corpo
exibido. Assim, ao atribuir à mulher a preocupação com o mo-
delo exteriorizado, ou seja, essas mulheres que somente figu-
ram como padrões de beleza em comercias, enfatizam os pra-
zeres de ser bela e demonstram a necessidade de se obter pro-
dutos que possam também corrigir algo que não foi concebido

38 ARAUJO, Denise Castilhos de. Corpo Feminino: construção da mídia? Lecturas,


Educación Física y Deportes – Revista Digital, Buenos Aires, ano 13, n. 120,
maio 2008.
39 Idem,
40 Idem.
31
Justiça Restaurativa & Gênero

pela natureza. Uma vez que a beleza deixa de ser um dom dos
deuses para algo que depende exclusivamente de cada mulher,
ou seja, a beleza estaria ligada estritamente com a busca cons-
tante por essa beleza. Portanto, segundo Santanna41, o embele-
zamento representa mais do que somente acabar com a feiura,
ele também reflete a promessa de poder encontrar-se com ela
mesma, visto que “resistir à compra de cosméticos, às aulas de
ginástica, aos regimes, às cirurgias, entre outros, significa, sobre-
tudo, resistir a proporcionar para si mesma um prazer suple-
mentar”. A partir disso, na publicidade, há todo um estudo no
sentido de tentar retomar aqueles estereótipos tidos como os
mais populares. Contudo, essa busca incansável por padrões de
beleza levam as mulheres, de certa forma, a se afastarem da
realidade social em que estão inseridas. Para isso, a mídia
bombardeia quase todo o tempo fórmulas para se lograr os
padrões de beleza, os estereótipos perfeitos, e são inúmeras as
pessoas que tentam dia e noite alcançá-los, mas são poucas as
que obtêm sucesso.
Nesse ínterim, faz-se mister refletir sobre o que o mercado
tem oferecido e vendido às mulheres enquanto ideal de beleza,
saúde e jovialidade. Também no âmbito do trabalho, as exigên-
cias são cada vez maiores associando beleza, jovialidade e com-
petência. A Penélope Charmosa, criada por William Hanna e Jo-
seph Barbera nos anos 70, do desenho animado Corrida Malu-
ca, ilustra bem o outro lado da questão nodal da corrida aos
bisturis: é a necessidade de manter-se e consolidar-se no mer-
cado de trabalho. A personagem é apresentada como uma bo-
nequinha rica herdeira. Não se abala com nada! Usa as armas
da sedução e da fragilidade e nunca deixa de pedir ajuda quan-
do precisa. Porém, quando se vê sozinha e em apuros, ela se

41 SANT’ANNA, D. B. Cuidados de si e embelezamento feminino. In: ______ (Org.).


Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. p. 137.
32
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

vira com artifícios espertos e soluções inusitadas. Seu grampo


de cabelo é usado em último caso, para não desfazer seu pentea-
do. Qualidades femininas? Sim! A criatividade, quando inventa
e dá outra finalidade para as coisas42.
Por conta disso, em que ponto do ideal feminino Penélope
Charmosa toca? Aquilo que o ideal clássico feminino se refere à
sua função de enfeite e sedução; ou, no ideal moderno feminino,
como participante da corrida fálica? Talvez se conjuguem os dois
ideais, na dupla exigência que a sociedade faz hoje à mulher: que
participe da corrida, lute para ganhá-la, mas não esqueça o ba-
tom! Só o batom? E o rímel? E o blush? As luzes? O corpo per-
feito? E a roupa correta e na moda?43 Por outro lado, a sedução
pela mulher também é uma arma de acesso ao poder, por isso o
culto ao corpo perfeito requer uma aprendizagem simbólica,
desde a postura, trajes, penteados propícios ao contexto44.
A nova dominação, como o movimento de afirmação das
mulheres, é de orientação individualista, mas é esta dominação
que transforma a mulher como consumidora, tornada mais
vulnerável ainda por sua libertação provocada pela indepen-
dência financeira que lhe abre outros horizontes, maiores do
que o casamento e a maternidade. Uma parcela crescente da
publicidade recorre de bom grado ao tema da mulher “libera-
da”, que busca seduzir e agradar, preocupada em manter seu
corpo em forma e torná-lo capaz de suscitar o desejo masculi-
no. É necessário traçar o mais claramente possível a fronteira
entre essa mulher consumidora de bens e de utensílios, con-
sumidora de produtos de beleza ou aqueles usados em acade-

42 BRASIL, Maria Ângela Cardaci. Penélope Charmosa. In: APPOA (Associação


Psicanalítica de Porto Alegre). O valor simbólico do trabalho e o sujeito con-
temporâneo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000. p. 111.
43 Idem, p. 111.
44 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena
Kühner. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 38.
33
Justiça Restaurativa & Gênero

mias, e a mulher que se constrói ela mesma contra as forças de


pressão social e adquire uma consciência de si. Consumo cons-
truído pelo sistema de oferta, já que as pesquisas de marketing
permitem antecipar a maior parte dos comportamentos45. O
corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e recusado, mani-
festa a disponibilidade simbólica que, como demonstraram
inúmeros trabalhos feministas, convém à mulher, e que combina
um poder de atração e de sedução conhecido e reconhecido por
todos, homens ou mulheres, e adequado a honrar os homens de
quem ela depende ou aos quais está ligada, com um dever de
recusa seletiva que acrescenta ao efeito de “consumo ostenta-
tório”, o preço da exclusividade46.
Evidentemente, na linguagem corporal ditada pelos pa-
drões da moda, há um consenso: é preciso diferenciar-se de
duas figuras clássicas do feminino, a prostituta e a mãe. Pe-
nélope Charmosa também está sempre impecável e jamais de-
siste da corrida, o que na vida real também pode desencadear
uma série de complicações psíquicas ou à saúde da mulher, a
qual se cobra para não sair e continuar sendo trapaceada nessa
corrida maluca. Algumas adiam e renunciam à maternidade,
outras abdicam de relações duradouras ou estáveis para foca-
rem suas potencialidades no trabalho. No desenho animado, a
personagem Penélope retira do seu carro cor-de-rosa enguiçado
um monte de peças, à procura daquela que teria provocado o
problema; quando a encontra, conserta-o com seu grampo, dei-
xando todas as outras peças fora do carro e arrancando para a
corrida velozmente. Percebe-se, com isso, que ela pode contor-
nar a falta e livrar-se daquilo que parecia tão necessário, mas
que, como é o mais frequente, não passa de inflação imaginária.

45 TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Tradução de Francisco Morás. Pe-


trópolis: Vozes, 2007. p. 49.
46 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena
Kühner. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 41.
34
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Com essa metáfora, quer-se mais que as mulheres investidas da


Penélope usem mais seu grampinho para seguir na corrida,
sem precisar desfazer por amor o trajeto já conquistado47. Não
fazendo escolhas e renúncias, mas agregando tudo ao seu car-
rinho maluco: filhos, marido, estudos e trabalho.
Dada a situação, as mulheres, ao escolherem ou agrega-
rem à sua vida o amor romântico, por uma questão paradoxal,
diferenças culturais, insistências de manutenção e aplicação de
estratégias de dominação masculina, não percebem cotidiana-
mente que, além de habitar uma casa de forma mútua, dividem
uma cama. Por isso, a metáfora de se dizer que as mulheres
dormem com o inimigo, quando este se vale do flagelo da vio-
lência e denega a cidadania, mutila de igual maneira a condição
feminina, bem como a possibilidade de se pensar em homem e
mulher, sujeitos dotados da condição além do gênero.

1.3 DORMINDO COM O INIMIGO: O PODER SIMBÓLICO


MASCULINO E O FLAGELO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A situação das mulheres mudou. Mudanças lentas, sem


dúvida. Os anos 1970 e 1980 foram emblemáticos: elas entra-
ram no mercado de trabalho, tomaram pílula e queimaram su-
tiãs. A revolução não ficou sem resposta. O nível de violência
contra mulheres aumentou e houve até quem matasse a sua
por usar biquíni, fumar ou assistir Malu Mader, série de televi-
são sobre uma médica divorciada e emancipada. Contra as mu-
danças, o que foi considerado “castigo de pecados” caiu dos
céus como um raio48. A palavra violência, por si só, tem sido

47 BRASIL, Maria Ângela Cardaci. Penélope Charmosa. In: APPOA (Associação


Psicanalítica de Porto Alegre). O valor simbólico do trabalho e o sujeito con-
temporâneo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000. p. 115.
48 DEL PRIORE, Mary. Conversas e histórias de mulher. São Paulo: Planeta, 2013.
p. 6.
35
Justiça Restaurativa & Gênero

muito utilizada para expressar comportamentos de se viver em


sociedade e, aparentemente, tornou-se “um predicativo do jeito
humano de ser”49. De igual modo, também é um fenômeno que
está interligado à vivência comunitária50. Sob essa lógica, tem-
-se a violência perpetrada contra a mulher, destacando aqui
que os estudiosos utilizam termos distintos, entre eles: violên-
cia contra a mulher, violência doméstica, violência intrafamiliar
e violência de gênero. No entanto, essas divisões categóricas
devem ser tratadas como sinônimos, pois, se observados de um
ponto mais genérico, acabam complementando-se.
É interessante destacar o conceito trazido por alguns
doutrinadores. A violência contra a mulher refere-se ao alvo
contra o qual a violência é dirigida. “É uma violência que não
tem sujeito, só objeto; acentua o lugar da vítima, além de suge-
rir a unilateralidade do ato. Não se inscreve, portanto, em um
contexto relacional”51. Por outro lado, a violência doméstica é
própria do espaço privado, ocorre, pois, no âmbito doméstico,
“independente do sujeito, do objeto ou do vetor da ação”52. Po-
de-se enfatizar que o processo de ocultamento da violência
perpetuada no espaço protegido da casa guarda intrínseca re-
lação com a naturalização dessa forma de violência – facilmente
mesclada ou superposta ao disciplinamento vinculado a práti-
cas de socialização – e com a sua cronificação, potenciada por
um espaço simbolicamente estruturado, tendo como corolário
a escalada da impunidade53. Em contrapartida, a violência intra-

49 STREY, Marlene Neves. Violência e Gênero: um casamento que tem tudo para
dar certo. In: GROSSI; Patrícia Krieger; WERBA, Graziela C. Violências e Gêne-
ro: coisas que a gente não gostaria de saber. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. p.
47.
50 GUIMARÃES, Issac Sabbá; MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Lei Maria da
Penha: aspectos criminológicos, de política criminal e do procedimento penal.
Salvador: Juspodivm, 2009. p. 11.
51 ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violência mal-dita. In: ALMEIDA, Suely Souza
de. Violência de Gênero e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 23.
52 Idem, p. 23.
53 Idem, p. 25.
36
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

familiar ou familiar aproxima-se e confunde-se com a categoria


anterior, além de levar em consideração o espaço em que se
reproduz, trata-se de uma forma de violência que se processa
dentro da família54. A própria legislação optou por utilizar o
termo violência doméstica e familiar contra a mulher. Concei-
tuando-a como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero
que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicoló-
gico e dano moral ou patrimonial” e que ocorra no âmbito da
unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação
íntima de afeto55.
Observa-se, neste contexto, que a violência é um fenôme-
no multifacetal, às vezes disfarçado de tradição ou moralidade,
outras, dispensando qualquer máscara, mas o que se analisa é
que todas as formas possuem algum tipo de poder que permite
violentar. Gênero, na sua acepção antropológica, é uma forma
culturalmente elaborada para explicar a diferença sexual em
cada sociedade, manifestando-se nos papéis atribuídos a cada
sexo. Assim, esses papéis não são inatos, mas são adquiridos.
Embora a categoria gênero não esteja ligada ao sexo ou à
categoria social mulher, considera-se que, juntamente a outras
terminologias, o sentido de grito de dor é a incessante busca
pelo reconhecimento enquanto sujeitos históricos portadores
de desejos e de direitos56. A partir da ideia de que ‘sexo’ é uma
construção social e inacabada, as feministas substituíram em
seu lugar o termo “gênero”, que em inglês é gender. O uso desse
termo possibilita a análise das identidades, feminino e mascu-
lino, sem reduzi-las ao plano biológico, identificando essas
identidades conforme o período histórico57. Nos anos 1990, as
54 ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violência mal-dita. In: ALMEIDA, Suely Souza
de. Violência de Gênero e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 24.
55 Art. 5º da Lei 11.340/06.
56 FINCO, Daniela; VIANNA, Cláudia Consuelo. Meninas e meninos. In: PINTO,
Graziela (Coord.). A mente do bebê: o fascinante processo de formação do cé-
rebro e da personalidade. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Duetto, 2008.
57 SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitu-
ra externa do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
37
Justiça Restaurativa & Gênero

pesquisas da historiadora americana Joan Scott contribuíram


com os estudos brasileiros sobre as questões de gênero, a partir
de críticas acerca do saber produzido pelas diferenças sexuais e
dos sentidos dados nos diversos espaços de socialização, desta-
cando as instituições educacionais58. Era preciso compreender
que o espaço social é construído pela função e posição econô-
mica e cultural dos seus agentes e que a educação distinta dada
aos homens e às mulheres equivaleria às distâncias sociais59.
Historicamente, gênero e sexo foram usados como sinônimos
destinados a constituir a identidade de um indivíduo. O sexo é
definido por características físicas, biológicas e fisiológicas que
separam seres humanos em homens e mulheres, enquanto o
gênero é associado à identidade social e expressa um conjunto
de fatores que vai além da simples diferença biológica ou física.
Sob esse enfoque, o sexo estaria ligado exclusivamente à função
reprodutiva e o gênero seria referente à organização social das
relações humanas, a partir da maneira com que cada cultura
trata a diferenciação sexual e impõe determinado tipo de com-
portamento para cada um dos sexos. Por conta disso, ao abordar
o tema gênero e sexo, não se pode deixar de tratar outro con-
ceito – a sexualidade –, visto a proximidade entre os conceitos e
os temas.
Para Foucault60, os significados atribuídos à sexualidade
são construídos por discursos que visam estabelecer parâme-
tros sobre o sujeito e sua relação com seu próprio corpo, inclu-
indo seus desejos e prazeres. As práticas discursivas buscam
definir as representações do masculino e do feminino por meio
do modelo heterossexista e monogâmico, fazendo com que o
indivíduo deixe de ser um ser naturalizado para se tornar um

58 FINCO, Daniela; VIANNA, Cláudia Consuelo. Meninas e meninos. In: PINTO,


Graziela (Coord.). A mente do bebê: o fascinante processo de formação do cé-
rebro e da personalidade. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Duetto, 2008.
59 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Campinas: Papirus, 1996.
60 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 18. ed. Rio
de Janeiro: Graal, 2007.
38
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

objeto controlado. Por sua vez, a necessidade de concepção não


linear entre sexualidade, sexo e gênero é enfatizada por Britz-
man61, uma vez que a quebra da linearidade é vista como trans-
gressão. Além disso, é importante observar que os sujeitos po-
dem exercer a sua sexualidade de diversas formas. A aceitação
de que as pessoas podem criar seu conceito próprio de sexuali-
dade, seja este qual for, conduz ao reconhecimento da autoi-
dentidade como algo inerente à constituição do indivíduo e à
afirmação de que não só a sexualidade normativa é aceitável.
Logo, pela clássica definição de gênero, é o conjunto de normas,
valores e práticas, por meio das quais as diferenças biológicas
entre homens e mulheres é culturalmente significada. Portanto,
é um elemento constitutivo das relações sociais construídas
com base nas diferenças percebidas entre os sexos62.
Ao encontro disso, tem-se bem presente nas sociedades a
tendência à naturalização das relações sociais, com base na
fisiologia dos corpos, que pela percepção social têm identida-
des e papéis bem definidos, ou seja, o que culturalmente com-
pete ao homem e a mulher63. A cada um é definido um papel de
atuação na sociedade, pois, segundo Maturana64, as diferenças
de gênero são somente formas culturais específicas de vida,
redes específicas de conversações. Portanto, as diferenças de
gênero atribuídas pela cultura patriarcal não têm fundamento
biológico. Verifica-se, pois, algumas vezes, ainda presentes na

61 BRITZMAN, Deborah. O que é essa coisa chamada amor – identidade homos-


sexual, educação e currículo. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 21, n. 1, p.
71-96, jan./jun. 1996.
62 SCOTT, Joan. Gênero: uma Categoria Útil de Análise Histórica. Educação e
Realidade, Porto Alegre, Pannonica, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.
63 FINCO, Daniela; VIANNA, Cláudia Consuelo. Meninas e meninos. In: PINTO,
Graziela (Coord.). A mente do bebê: o fascinante processo de formação do cé-
rebro e da personalidade. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Duetto, 2008.
64 MATURANA, Humberto R.; VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e brincar: funda-
mentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin.
São Paulo: Palas Athena, 2004.
39
Justiça Restaurativa & Gênero

sociedade a subserviência, a hierarquização das relações e o


patriarcalismo, mormente porque muitas situações pragmáti-
cas se traduzem na arraigada submissão. Sob esse prisma, é es-
sencial circunscrever a presente pesquisa em uma abordagem
crítica e consistente, despindo-se de preconceitos, discrimina-
ções e modelos obsoletos, levando-se sempre em considera-
ção as habilidades humanas, notadamente no que se relaciona
à capacidade que possuem, em todas as áreas. O estudo do uso
do termo gênero encontra explicações não somente pela impor-
tância do movimento feminista nesse processo, mas por seu
conteúdo, modernamente falando, crítico em relação às siste-
máticas sociais e a opressão de determinados indivíduos. A
obra de Beauvoir (O segundo sexo) é um referencial histórico e
delimitador de uma nova visão ou nova percepção, significando
o abandono da visão que inferiorizava as mulheres em relação
aos homens, muito embora seja imperioso ressaltar que a obra
mais importante para o feminismo tenha sido de Judith Butler
(Gender Trouble). O que leva à seguinte observação: o desen-
volvimento do pensamento científico e reflexivo para trans-
formações do universo feminino surgiram de uma gama de
pesquisadores e pesquisadoras, de maneira que até hoje o pro-
cesso de transformação e reconhecimento da cidadania femini-
na não está pronto e nem acabado65. É indiscutível que o con-
ceito de gênero tem ganhado força e destaque enquanto ins-
trumento de fomento e de análise das condições das mulheres.
Porém, não deve ser utilizado apenas como sinônimo de “mu-
lher”. O conceito é usado tanto para distinguir e descrever as
categorias relacionais de mulher–feminino e de homem–
masculino, ao mesmo tempo para examinar as relações de de-
sigualdades e de poder estabelecidas entre ambos, assim como

65 DIAS, Felipe da Veiga; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Sistema Punitivo e
Gênero. Uma abordagem alternativa a partir dos direitos humanos. Rio de Ja-
neiro: Lumen Juris, 2013.
40
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

para identificar as relações desiguais intragênero presentes,


sobretudo, entre as mulheres, seja de condição socioeconômica,
racial, geracional, étnica, religiosa, regional entre outras66. Dessa
forma, o assunto ora posto na pauta de discussão configura-se
de extrema importância, eis que não se pode continuar imerso,
aguardando uma democratização nas situações práticas, mas o
inverso, revigorar-se na busca de instrumentos potencializado-
res e medidas eficazes de verdadeira igualdade entre homens e
mulheres. Para tanto, é indispensável que se compreenda a
historicidade desse movimento feminista, uma vez que é co-
nhecendo o passado que se podem propor alternativas para um
protagonismo feminino em todas as ambiências. Para que isso
seja possível, a abordagem acerca da perspectiva de gênero,
seja de dimensão distributiva ou de reconhecimento, precisa se
transitar sobremaneira substancial no terreno árido das políti-
cas públicas, que muito embora sua menção e pesquisas no
espaço acadêmico e público sejam recentes e também com ex-
periências mediáticas; não há como refutar a fundamentalidade
da participação política dos atores sociais nesse cenário fragili-
zado e que carece ainda de maior interesse também por parte
da coletividade.
O movimento feminista muito contribuiu no Estado De-
mocrático de Direito para o reconhecimento da cidadania fe-
minina e pauperizada, assim, é relevante dentro desse debate
distinguir as políticas públicas para as mulheres de políticas de
gênero, salientando que há uma relação conceitual da dimen-
são distributiva nas políticas para as mulheres, bem como vê-se
a dimensão de reconhecimento nas políticas de gênero, pelo
menos esse é o ideário ou propósito quando se prima pela con-

66 BRASIL. Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres. Políticas públicas


para as mulheres, 2012, p. 2. Disponível em: <http://spm.gov.br/publica co-
es-teste/publicacoes/2012/politicas_publicas_mulheres>. Acesso em: 26 dez.
2013.
41
Justiça Restaurativa & Gênero

solidação da cidadania feminina e, por sua vez, o empodera-


mento da mulher. Assim, ao reunirem-se os conceitos de vio-
lência e gênero, neste terceiro conceito, de gênero, que o pró-
prio termo gênero pressupõe certa pressão sobre os indivíduos
para que aceitem os padrões culturais sobre o que é ser homem
ou mulher, tem-se nas relações de gênero a presença involun-
tária de poder, ou seja, prevalência de um sexo sobre o outro67.
Almeida alerta para a ideia de que gênero possui duas catego-
rias, a analítica e a histórica. A primeira porque “gênero não
constitui um campo específico de estudos”, tratando-se de ca-
tegoria que fortalece a preocupação para a complexidade das
relações sociais. A segunda porque as relações de gênero dão-
-se de acordo com a organização dessa vida social, e com o pas-
sar dos tempos, ou seja, ao longo da história, vão se estrutu-
rando os lugares sociais de forma sexuada, surgindo as “dico-
tomias público x privado, produção x reprodução, político x
pessoal”68. O conceito de violência de gênero deve ser entendi-
do, portanto, como uma relação de poder. Demonstra-se que os
papéis impostos aos homens e às mulheres pressupõem rela-
ções violentas entre os sexos, fruto do processo de socialização
das pessoas69. Ressalte-se que essa prática de violência é
transmitida de geração a geração.
A violência de gênero se apresenta como forma mais ex-
tensa e se generalizou como expressão utilizada para fazer re-
ferência aos diversos atos praticados contra mulheres como
forma de submetê-las a sofrimento físico, sexual e psicológico,
aí incluídas as diversas formas de ameaças, não só no âmbito

67 STREY, Marlene Neves. Violência e Gênero: um casamento que tem tudo para
dar certo. In: GROSSI; Patrícia Krieger; WERBA, Graziela C. Violências e Gêne-
ro: coisas que a gente não gostaria de saber. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
p. 59.
68 ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violência mal-dita. In: ALMEIDA, Suely Souza
de. Violência de Gênero e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 26.
69 TELES, Maria Amélia de Almeida; TELES, Mônica de Melo. O que é violência
contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003. (Coleção Primeiros Passos),
p. 18.
42
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

intrafamiliar, mas também abrangendo a sua participação social


em geral, com ênfase para as suas relações de trabalho, sob
pretensão de imposição de uma subordinação ao controle do
gênero. A violência de gênero se apresenta, assim, como um
‘gênero’, do qual as demais são espécies70.
Para tanto, a violência de gênero acontece num cenário
de disputa pelo poder, o que representa dizer que o uso da for-
ça torna-se um aliado necessário para se manter a dominação.
Entretanto, essa forma de violência se mantém somente com a
presença da violência simbólica, proporcionando a legitimação
para as relações de força. Nas relações íntimas, essa dimensão
simbólica acaba sendo potencializada, pois ocorre num espaço
privado71. A família e o ambiente doméstico representam o
campo perfeito para a reprodução da violência de gênero.
Quando a violência se instala nas relações familiares, sob a óti-
ca da dimensão simbólica, ela se reproduz e se amplia. Pode-se
concluir que essa forma de violência tem por objetivo a efetiva-
ção da dominação, não se restringindo apenas aos dominados.
Isso tudo acaba provocando a fragilidade da autoestima dos
atores sociais, causando transtornos psicossomáticos e certa
passividade por parte das vítimas.
Acontece que o impacto dessa violência crônica acaba
causando depressão, ansiedade e diversas manifestações de
mal-estar para essas vítimas passivas, muitas vezes em razão
da culpa absorvida pela própria mulher. Por essa razão, é im-
prescindível destacar que a violência compõe-se de três fases
distintas. A primeira acontece com a construção da tensão, co-
meçando com agressões verbais, ciúmes, ameaças e até des-
truição de alguns objetos. Nessa fase, a mulher procura acalmar
o agressor, acreditando que pode fazer alguma coisa para im-

70 SOUZA, Sérgio Ricardo. Comentários à lei de combate à violência contra a


mulher. Curitiba: Juruá, 2007. p. 35.
71 ALMEIDA, Suely Souza de. Essa violência mal-dita. In: ALMEIDA, Suely Souza
de. Violência de Gênero e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 29.
43
Justiça Restaurativa & Gênero

pedir os atos violentos do marido. Nesse momento, surge a


sensação de culpa da mulher; ela realmente acredita que, de
alguma maneira, é responsável pelos atos do companheiro72.
Em seguida, inicia-se a segunda fase, marcada por agressões
mais graves, geralmente agressões físicas. Esse momento é re-
cheado de descontrole e destruição. Essa é a mais breve, pois,
ao cessarem os ataques violentos, o agressor mostra-se arre-
pendido, com medo de perder a companheira. Inicia-se então a
terceira fase. O homem pede perdão, compra presentes e jura
que jamais acontecerá de novo. Eis, novamente, o homem por
quem um dia a vítima se apaixonou. A terceira fase, também
conhecida como fase da lua-de-mel, é marcada por um período
de calmaria, sem tensão acumulada. O próprio agressor acredi-
ta que não mais cometerá atos violentos contra a mulher que
ama73. Portanto, nessas relações sociais conflituosas, que acon-
tecem no reservado ambiente doméstico, observa-se que as
mulheres aprenderam sua identidade de gênero, silenciadas
pela própria sociedade, aceitam caladas os abusos cometidos.
Esse complexo processo de naturalizar essas relações conturba-
das é facilitada74 pela dinâmica de se aprenderem/compreen-
derem/reproduzirem interações entre seres sociais que reatua-
lizam desigualdades de classe, gênero e étnico-raciais. A violên-
cia simbólica é, contudo, a forma perfeita para se exercer a do-
minação masculina, em virtude, justamente, de obstaculizar a
capacidade de reação das mulheres e dos próprios homens, em
razão, principalmente, do modo de ser e fazer o gênero mascu-
lino e feminino. A divisão entre os sexos parece estar “na or-
dem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é
normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao

72 SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres Invisíveis: violência conjugal e novas


políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 141.
73 Idem, p. 141.
74 POUGY, Lilia Guimarães. Saúde e violência de gênero. In: ALMEIDA, Suely
Souza de. Violência de Gênero e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
p. 74.
44
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por


exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo
social e, em estado incorporado, nos corpos e no habitus dos
agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percep-
ção, de pensamento e de ação75. Nessa seara, torna-se necessá-
rio definir o habitus, em outros termos, tem a ver com a forma
de disposição praticamente apresentada como natural que re-
side nas relações, nos espaços e nos campos; constitui-se pelos
rituais, pelos costumes, como também pelos mecanismos de
poder. Assim, o sistema social é como um emaranhado de tentá-
culos predisposto em campos constituídos por capitais de ordem
social, econômica, política, cultural, formando entre si o capital
simbólico e, devido à influência que estes exercem como signos e
figuras simbólicas nas relações pessoais, de tal maneira que pro-
porcionam para que existam as trocas entre os agentes, a domi-
nação masculina delimita e estabelece posições ou papéis.
Daí a afirmativa “eu sou uma mulher” nos fez aprender
que não existe identidade entre o eu que cria, que ama ou que
rejeita, e o eu que já está constituído e que, por consciência, é
visto pelo outro e se define por suas relações com o outro. As
mulheres ainda estão muito presas ao mundo feminino tal co-
mo ele foi criado pelos homens para formar um gênero que as
submeteu ao interesse superior da dualidade homem–mulher
e, consequentemente, da heterossexualidade. Ser uma mulher
para si, construir-se como mulher é, ao contrário, transformar
esta mulher para o outro em mulher para si. Sim, as mulheres
são seres sexuados, fêmeas, às quais os homens deram certos
atributos e tentam dominá-los, ao passo que elas querem trans-
formar-se em mulheres criadas por mulheres e, antes e acima
de tudo, por elas mesmas76. A relação entre a mulher e o ho-

75 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena


Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p.17.
76 TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Tradução de Francisco Morás. Pe-
trópolis: Vozes, 2007. p. 41.
45
Justiça Restaurativa & Gênero

mem é cercada de paradoxos constituídos pelo processo cultu-


ral, e que, na contemporaneidade, se luta pela mudança estru-
tural e igualdade de gênero. Mas o que se tem constatado é a
resistência masculina em dominar77, mesmo que pelo emprego
da violência doméstica. Não se quer aqui colocar a mulher ex-
clusivamente no papel de vitimização, ao contrário, existem
mulheres que também são responsáveis pelo desencadeamento
dessa circunstância oprimente, eis que num primeiro momento
não se reconhecem como agentes portadoras de direitos ou
incorporam o papel masculino, vislumbrando a dominação.
Acontece que as mulheres vítimas de violência das mais diver-
sas maneiras são rotuladas e estigmatizadas por alguns, se não
a sua maioria, membros da comunidade. O entendimento dis-
criminador é que estar nessas condições é uma escolha pessoal,
que, se caso assim a mulher desejasse, poderia deixar de sofrer
nas “mãos” do seu agressor. A indiferença que se dá à violência
doméstica é preocupante; verifica-se nessa relação uma das
piores violências enraizadas nas questões de dominação mas-
culina: a violência simbólica definida por Bourdieu como sendo
uma violência suave, insensível, invisível a suas próprias víti-
mas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente sim-
bólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisa-
mente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última
instância, do sentimento78.
Para Bourdieu, a relação homem e mulher se dá no cam-
po social, mais precisamente no campo familiar, pelo menos no
que se refere à violência doméstica. Logo, cada indivíduo, pelo
princípio de diferenciação, tem suas distinções que podem ser
caracterizadas como “capital”, o que quer dizer que cada um é
constituído de capital econômico (diferenças financeiras ou
equivalentes), capital cultural (educação), capital social e capi-

77 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena


Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 22.
78 Idem, p. 7-8.
46
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

tal simbólico79. Assim, os diferentes tipos de capital, em especial


o econômico e o cultural, aproximam ou distanciam socialmen-
te os agentes sociais. Entretanto, o campo em que convivem,
devido ao capital peculiar de cada um, torna-se espaço de dispu-
tas simbólicas. Consequentemente, quando o desequilíbrio ou o
poder de dominação impera, de tal maneira que a parte frágil
da relação não dá conta, surge a violência simbólica, a qual jun-
tamente à alienação do sujeito não deixa perceber a dominação
que advém do outro.
Nesse contexto, a dominação masculina é vista como um
habitus, aceito por todos os integrantes do campo social como
algo natural, inclusive a mulher acaba reconhecendo essa supe-
rioridade, mas a entende normal. Essa visão de normalidade
que se organiza nas diferenças de gênero, masculino e femini-
no, instituindo o que cabe ao homem e aquilo que pertence à
mulher, faz com que os dominados compactuem com essa sutil
violência, construindo-se dois mundos sociais hierarquizados.
Os efeitos desse tipo de dominação se exercem mediante
a percepção e a avaliação do que constitui o habitus, assim, a
lógica da dominação masculina e da submissão feminina torna-
-se espontânea e extorquida ao mesmo tempo, podendo ser
compreendida somente permanecendo-se atento aos efeitos
duradouros que essa ordem social acaba exercendo nas mulhe-
res e nos homens, harmônicas nessa invisível imposição80. Ob-
serva-se que as condições sociais que reproduzem essas ten-
dências fazem com que os dominados adotem o ponto de vista
dos dominantes, efetivando-se alheio à vontade, demonstrando
um poder também simbólico nas suas manifestações. Verifica-
-se que a dominação só se perpetua por meio dessa cumplici-
dade e que as mulheres acabam sendo excluídas do sistema

79 BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Tradução de Sergio Miceli. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 204.
80 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena
Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 49-50.
47
Justiça Restaurativa & Gênero

social. Também é possível a reprodução dessas formas de ex-


clusão, na própria família, na escola, na igreja e na divisão do
trabalho, enfim, nas disposições ditas femininas e masculinas.
Segundo Pinker, a violência faz parte da história da natu-
reza humana, observando seis tendências de diminuição do
fenômeno multifacetal e relacionando-as com cinco forças his-
tóricas, que servem de contributo para complementar o enten-
dimento discorrido anteriormente sobre a violência de gênero,
que fragmenta o outro generalizado, identificado aqui como o
poder feminino. Tal poder ainda tem sofrido incursões negati-
vas pelo falo, que, mesmo em ruínas, encontra estratégias de
discurso e dominação para aniquilar a mulher. Nessa direção,
na perspectiva das seis tendências, a primeira delas se deu na
escala milenar, demarcando a transição da anarquia das socie-
dades caçadoras, coletoras e horticultoras, nas quais a espécie
humana atravessou a maior parte da sua história evolutiva,
para as primeiras civilizações agrícolas com cidades e gover-
nos, iniciados por volta de cinco mil anos atrás, sendo denomi-
nada processo de pacificação de imposição de paz81. A segunda
tendência, chamada de processo civilizador, abrangeu mais de
um milênio e está documentada na Europa. Entre o final da
Idade Média e o século XX, os países europeus tiveram um de-
clínio de 10 a 20 vezes em suas taxas de homicídios. Também
ocorreu o declínio de territórios feudais em grandes reinos com
autoridade centralizada e infraestrutura de comércio82. Por sua
vez, a terceira tendência, intitulada revolução humanitária,
ocorreu na escala superior e teve início na época da Idade da
Razão e do Iluminismo europeu nos séculos XVII e XVIII. Esse
foi o momento dos primeiros movimentos organizados para
abolir as formas de violência socialmente sancionadas como o

81 PINKER, Steven. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu.
Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.
22.
82 Idem, p. 23.
48
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

despotismo, a escravidão, o duelo, a tortura judicial, a execução


supersticiosa, as punições sádicas e a crueldade com animais, e
foi também a época dos primeiros frêmitos do pacifismo siste-
mático83. Após a Segunda Guerra Mundial, deu-se a quarta ten-
dência, denominada pelos historiadores “estado de coisas de
longa paz”. Os dois terços de século decorridos desde então
viram um avanço histórico, as grandes potências e os Estados
desenvolvidos em geral pararam de guerrear entre si84. Nesse
contexto, a quinta tendência, chamada de nova paz, diz respeito
ao combate armado, porém é mais sutil. Embora para os leito-
res de notícias possa ser mais difícil acreditar, desde o fim da
Guerra Fria, em 1989, todos os tipos de conflitos organizados –
guerras civis, genocídios, repressão por governos autocráticos
e ataques terroristas – diminuíram no mundo85. Para encerrar,
a sexta tendência, identificada como a revolução de direitos,
deu-se a partir da era pós-guerra, inaugurada simbolicamente
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, e
testemunhou uma crescente repulsa pela agressão em escalas
menores. Relacionando as seis tendências, têm-se as cinco for-
ças históricas, que são a fusão da psicologia e da história, iden-
tificando forças exógenas que favoreceram os motivos pacíficos
do ser humano e que pautaram os múltiplos declínios da vio-
lência, quais sejam: o Leviatã, o comércio, a feminização (pro-
cesso no qual as culturas aumentaram seu respeito pelos inte-
resses das mulheres), forças do cosmopolitismo e a escala ro-
lante da razão, que pode forçar as pessoas a reconhecerem a
futilidade dos ciclos de violência86. Por outro lado, continua
assustador o paradoxo entre a feminização e o femicídio, ainda
mais quando se observam índices crescentes de violência con-

83 PINKER, Steven. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu.
Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.
23.
84 Idem, p. 23.
85 Idem, p. 23.
86 Idem, p. 26.
49
Justiça Restaurativa & Gênero

tra as mulheres jovens no Brasil, o que adiante será abordado.


Perscrutando segundo um recorte histórico das seis tendên-
cias, em especial um olhar na feminização, não se pode olvidar
que a humanidade tem investido mecanismos para redução da
violência. No entanto, a trajetória não encerra e muito há a se
fazer, conquistar e, principalmente, transformar os sujeitos
pela educação, de maneira que reconheçam as futilidades dos
ciclos de violência. Por conta disso, e em busca de alternativas,
bem como dos avanços nas questões de gênero, analisar-se-ão
as implicações das normativas internacionais e nacionais no
reconhecimento da cidadania feminina, diante da feminização e
em face da desigualdade de gênero. Percebe-se que, em alguns
Estados e países, o outro fora reconhecido pelo processo da
revolução de direitos, por outro lado, o desafio está em efetivar
uma convivência compartilhada na comunidade por meio de
políticas públicas.
TRANSVERSALIDADE DE GÊNERO
NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DADA A
RUPTURA PELA VIOLÊNCIA DA
ASSIMETRIA NAS RELAÇÕES ENTRE
HOMENS E MULHERES

Muito embora os direitos humanos celebrem a condição


de cidadania da mulher, o seu eu feminino continua fragmenta-
do pelas violações decorrentes das diversas faces da violência
que encontra na sua gênese o poder de dominação simbólico.
Por conta disso, há necessidade de refletir sobre a efetividade
dessas normativas internacionais que entornam a cidadania da
mulher, segundo a perspectiva do movimento feminista, que
influenciou significativamente elaboração de políticas públicas
de gênero. De igual modo, também requer a concatenação da
cidadania aos esquemas sociais, culturais, políticos e econômi-
cos, tendo como aporte teórico a História e a hierarquização
das relações estabelecidas entre homens e mulheres. Quando
se fala em cidadania, não basta apenas compreender a trajetó-
ria histórica, é preciso ir além e entender o emaranhado com-
plexo de interconexões ou a multidimensionalidade entre His-
tória, Sociologia, Antropologia, Psicologia e Política, dentre ou-
tras significativas áreas. Assim, a cidadania, antes de vindicar
direitos, deve eficazmente salvaguardá-los. Ao encontro disso
tudo, conectam-se as políticas públicas, que em síntese são a
materialização da cidadania feminina dos sujeitos.
52
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

2.1 OS DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS DA MULHER


NA ORDEM INTERNACIONAL

Na ordem internacional, tem se debatido muito sobre os


direitos humanos e fundamentais da mulher, a partir da Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e os demais
tratados e pactos, os quais, concatenados a ela, formam um
sistema normativo global de proteção dos direitos humanos, no
âmbito das Nações Unidas, com o objetivo de assegurar a dig-
nidade da pessoa humana87. Nos últimos tempos, a ideia de di-
reitos humanos tem avançado significativamente, adquirindo
uma espécie de status oficial no discurso internacional, também
se tornando parte importante da literatura do desenvolvimen-
to. Entretanto, essa aparente vitória da ideia e do uso dos direi-
tos humanos coexiste com certo ceticismo real, em círculos
criticamente exigentes, quanto à profundidade e coerência des-
sa abordagem. Suspeita-se que exista certa ingenuidade em
toda a estrutura conceitual que fundamenta o discurso sobre
direitos humanos88.
O sistema normativo dos direitos humanos, por sua vez, é
integrado por instrumentos de alcance geral (como os Pactos
Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais de 1966) e por instrumentos de
alcance específico, como as convenções internacionais que bus-
cam responder determinadas violações de direitos humanos,
como a discriminação racial, a discriminação contra a mulher, a
violação dos direitos da criança, dentre outras formas de viola-
ção89. Com o processo de especificação do sujeito de direito,
87 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
263.
88 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura
Teixeira Motta: revisão técnica Ricardo Doniselli Mendes. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2000, p. 261.
89 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
263-264.
53
Justiça Restaurativa & Gênero

mostra-se insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica,


geral e abstrata, pois as mulheres devem ser percebidas e iden-
tificadas nas especificidades e peculiaridades de sua condição
social. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que
lhes assegura um tratamento especial. Nesse contexto é que se
referencia o significativo papel do movimento feminista en-
quanto movimento social, na incursão de conquistar os direitos
de cidadania feminina na órbita dos direitos humanos e fun-
damentais, concatenando algumas construções elaboradas so-
bre os aportes teóricos de cidadania, tendo-se, em sentido am-
plo, a cidadania como o gozo pelas pessoas dos direitos civis,
sociais e políticos.
Seguindo o entendimento estrito de Scott, a ideia de cida-
dania refere-se às regras conferidas à pertença nacional, que
podem ser baseadas na linhagem (jus sanguinis), no território
(jus soli) ou numa combinação de ambos90. Faz-se necessário
ressaltar que o fator espaço-temporal influencia na concepção
de cidadania, a qual é, muitas vezes, confundida com a catego-
ria de democracia, ou seja, com o direito de participação políti-
ca, de votar e ser votado. Porém, nem o voto é garantia de cida-
dania, nem a cidadania pode ser sintetizada ao exercício do
voto. Entretanto, Manzini-Covre91 defende que, para o exercício
pleno da democracia, os direitos políticos são o pilar para a
conquista dos direitos sociais e civis que auxiliam a definir a
cidadania. Segundo Scott92, uma conceituação bastante usual do
termo cidadania é a de T. H. Marshall93, encontrada em sua obra

90 SCOTT, John (Org.). Sociologia: conceitos-chave. Traduzido por Carlos Alberto


Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 41.
91 MANZINI-COVRE, Maria de Lourdes. O Que é Cidadania? 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1998.
92 SCOTT, John (Org.). Sociologia: conceitos-chave. Tradução de Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 41.
93 MARSHALL, T. H. Citizenship and Social Class. Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press, 1950.
54
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Citizenship and Social Class, na qual preceituava que os direitos


sociais desempenhavam papel fundamental na minimização da
tensão entre capital e cidadania, e a possibilidade de que a
igualdade de status (via cidadania) pudesse sobrepujar as desi-
gualdades materiais de classe social. Os deveres, como contra-
partida necessária aos direitos, receberam breve menção, par-
ticularmente o direito ao trabalho, embora Marshall acreditas-
se que a mudança se tivesse dado dos deveres para os direitos.
Ele também reconhecia que os ideais de cidadania tinham sido
alcançados de modo imperfeito e que os próprios direitos vin-
culados funcionavam como base para diversos tipos de desi-
gualdades. Entre as questões interessantes que ele apresentou,
estava a de saber se existiam limites que a disposição moderna
pela igualdade não pudesse ultrapassar.
Em outro sentido, Touraine94 destaca que a cidadania não
é nacionalidade, pois, segundo ele, a nacionalidade designa a
filiação a um Estado nacional, enquanto a cidadania fundamen-
ta o direito de participar, direta ou indiretamente, na gestão da
sociedade. Sob essa perspectiva, Santos95 assinala que o espaço-
tempo da cidadania compreende, ainda, como dimensão relati-
vamente autônoma, a comunidade, ou seja, o conjunto das rela-
ções sociais por via das quais se criam identidades coletivas de
vizinhança, de região, de raça, de etnia, de religião, que vincu-
lam os indivíduos a territórios físicos ou simbólicos e a tempo-
ralidades partilhadas passadas, presentes e futuras. O conceito
de cidadania envolve um leque amplo de direitos, tais como
direitos políticos, civis, socioeconômicos, sendo extremamente
complexo chegar a um conceito único, pois tanto a cidadania
quanto os direitos estão sempre em processo de construção e
de transformação.

94 TOURAINE, Alain. O Que é Democracia? Traduzido por Guilherme João de


Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 30.
95 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-
modernidade. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1997. p. 313.
55
Justiça Restaurativa & Gênero

Herbert96, descrevendo a cidadania em Freire, aduz que


esta é compreendida como apropriação da realidade para nela
atuar, participando conscientemente em favor da emancipação.
Todo ser humano pode e necessita ser consciente de sua cida-
dania. A cidadania, em Freire, tem características de coletivida-
de. Como “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozi-
nho: os homens se libertam em comunhão”, segundo Freire97.
Na visão de Freire, portanto, a cidadania se manifesta pelo
rompimento com o sistema repressivo, desaparecendo a rela-
ção de opressor–oprimido.
Na abordagem aqui realizada, a noção de cidadania femi-
nina, correlacionada à consciência de pertencer à comunidade,
é fruto de conquistas das primeiras organizações do movimen-
to feminista, entre os anos 1850 e 1950. Perfilhando esse en-
tendimento, em 1891, a Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil, de forma confusa, declarava em seu artigo 70:
“São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistaram
na forma da lei”. Os intérpretes homens concluíram que, diante
desse texto, o direito a voto não tinha sido concedido às mulhe-
res, mas somente aos cidadãos masculinos, conforme texto da
lei. Com a fundação do Partido Republicano Feminino em 1910,
no Rio de Janeiro, por Deolinda Daltro, teve início no Brasil a
luta pelo sufrágio universal, que se fortaleceu ainda mais com a
criação da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher, por
Bertha Lutz, em 1919, transformada na Federação Brasileira
pelo Progresso Feminino, em 192298. Nesse contexto, foi no

96 HERBERT, Sérgio Pedro. Cidadania. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides;
ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed., rev. amp. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010. p. 67-68.
97 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 27. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1999. p. 52.
98 CARVALHO, Lisandra Arantes. O movimento feminista no Brasil, suas con-
quistas e desafios. O empoderamento da mulher como instrumento de inter-
venção social. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI,
56
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Estado do Rio Grande do Norte que as mulheres brasileiras


puderam votar pela primeira vez, em 1928; porém, foi somente
em 1932, com a promulgação de um novo Código Eleitoral Bra-
sileiro (Dec. 21.076/32), que todas as mulheres brasileiras fi-
nalmente tiveram garantido seu direito ao voto. A conquista do
direito ao voto possibilitou a incorporação de metade da popu-
lação (as mulheres) na dinâmica da democracia representativa,
iniciando um processo de aproximação da mulher aos poderes
do Estado, abrindo-se, enfim, a possibilidade de influenciarem
efetivamente o destino do país99. Ampliadas as possibilidades
de participação da mulher no poder como forma de exercício
de sua cidadania política, nos idos de 1970, o movimento femi-
nista voltou-se a outras e novas questões, desta vez, intima-
mente relacionadas com a sua sexualidade e ao corpo feminino,
emergindo pautas sobre métodos contraceptivos, amor e sexo
livre, modificando os padrões culturais de fertilidade e valores
sexuais100. Vislumbra-se, da perspectiva histórica brasileira,
que, desde a Colônia, se tiveram vozes femininas que preconi-
zavam a abolição dos escravos, a instauração da República, a
introdução do sufrágio universal. Unidas por um elo de solida-
riedade feminina, pode-se vincular a inglesa Mary Wollstone-
craft à francesa Flora Tristan e à brasileira Nísia Floresta. O
direito à cidadania política – o direito ao voto – é alcançado
pelas brasileiras em 1932, antes de vários países da Europa,
como França e Itália. No entanto, não se pode deixar de reco-
nhecer que as aspirações à cidadania no mundo do trabalho, as
que buscam proporcionar iguais oportunidades entre homens e

Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da seguran-


ça. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006. p. 203-204.
99 CARVALHO, Lisandra Arantes. O movimento feminista no Brasil, suas con-
quistas e desafios. O empoderamento da mulher como instrumento de inter-
venção social. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI,
Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da seguran-
ça. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006. p. 204.
100 Idem, p. 203.
57
Justiça Restaurativa & Gênero

mulheres, passam por um demorado silêncio, interrompido


entre 1979 e 1985, como destaca Giulani101. Foi nessa mesma
década que começaram a surgir no Brasil as primeiras organi-
zações não governamentais feministas. Esse período foi marca-
do por conquistas pontuais do movimento feminista. Em 1977,
instituiu-se finalmente o divórcio no país, após árduo enfren-
tamento de diversos segmentos da Igreja Católica, que tenta-
ram impedir de todas as formas tal progresso102.
É nesse cenário que as Nações Unidas aprovam, em 1979,
a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discri-
minação contra a Mulher, ratificada pelo Brasil em 1984. Essa
Convenção foi impulsionada pela proclamação de 1975 como
Ano Internacional da Mulher e pela realização da primeira Con-
ferência Mundial sobre a Mulher, no México, também em
1975103.
Nesse iter procedimental, de acordo Giulani104, o processo
de formação da cidadania começa no Brasil com a superação da
ideologia do laissez-faire, característica da Primeira República.
Fundada na divisão do trabalho e na estratificação profissional,
a cidadania se estabelece, portanto, de forma restrita. Ocorre
que as transformações no modelo de cidadania fundado na di-
visão sexual do trabalho e na estratificação profissional inicia-
ram a partir dos anos 1980, com a ruptura de paradigmas vi-

101 GIULANI, Paola Cappellin. Os Movimentos de Trabalhadoras e a Sociedade


Brasileira. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 7. ed.
São Paulo: Contexto, 2004.p. 644.
102 CARVALHO, Lisandra Arantes. O movimento feminista no Brasil, suas con-
quistas e desafios. O empoderamento da mulher como instrumento de inter-
venção social. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI,
Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da seguran-
ça. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006. p. 204.
103 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
264.
104 GIULANI, Paola Cappellin. Os Movimentos de Trabalhadoras e a Sociedade
Brasileira. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 7. ed.
São Paulo: Contexto, 2004.p. 640.
58
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

gentes e disputa por melhores condições de vida e iguais opor-


tunidades. Seguindo essa compreensão acerca dos movimentos
sindicais inaugurados pelas mulheres, Beauvoir105 destaca que
somente quando as mulheres se integraram na vida sindical é
que puderam defender seus próprios interesses e deixaram de
pôr em perigo os da classe operária em seu conjunto. Foram
muitas as conquistas havidas pelo movimento feminista, porém
as relações de gênero na sociedade ainda estão muito longe de
serem consideradas paritárias. Permanece o sexismo e o an-
drocentrismo nas muitas formas de educação e de socialização
do indivíduo, relações estabelecidas pela cultura patriarcal106.
Como mostrou a Segunda Onda do Movimento das Mulheres na
Europa e nos Estados Unidos, para entender e combater a
opressão das mulheres, já não basta exigir apenas emancipação
política e econômica das mulheres, é necessário também ques-
tionar aquelas relações psicossexuais nos espaços de âmbito
doméstico e privado, onde a identidade de gênero é reproduzi-
da. Para explicar a opressão das mulheres, é preciso revelar o
poder daqueles símbolos, mitos e fantasias que enredam ambos
os sexos no mundo inquestionado dos papéis de gênero107.
O desenvolvimento do movimento de mulheres se consti-
tuiu em uma poderosa narrativa de desconstrução da estrutura
patriarcal, das desigualdades históricas estabelecidas entre
homens e mulheres a partir da denúncia sobre sua posição se-

105 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Fatos e Mitos. Traduzido por Sérgio
Milliet. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. v. 1, p. 161.
106 CARVALHO, Lisandra Arantes. O movimento feminista no Brasil, suas con-
quistas e desafios. O empoderamento da mulher como instrumento de inter-
venção social. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI,
Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da seguran-
ça. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006.
107 BENHABIB, Seyla. O Outro Generalizado e o Outro Concreto. A controvérsia
Kohlberg-Gilligan e a Teoria Feminista. In: BENHABIB, Seyla; CORNELL, Dru-
cilla (Coords.). Feminismo Como Crítica da Modernidade. Tradução de Natha-
nael da Costa Caixeiro. São Paulo: Rosa dos Tempos, 1987. p. 106.
59
Justiça Restaurativa & Gênero

cundária na sociedade. Tantos caminhos foram percorridos por


mulheres nas lutas por cidadania – Marias, Clotildes, Severinas,
Antonias, Franciscas e Terezas –, anônimas de todas as cores e
de todos os recantos deste país participaram dessa empreitada.
O feminismo lhes possibilitou sair do lugar de invisibilidade e
apostar na persecução da transformação do mundo arcaico em
um novo mundo, de afirmação de direitos de todos e todas108.
Somente em 1993, na Conferência Mundial de Direitos
Humanos, realizada em Viena, os direitos das mulheres foram
reconhecidos como direitos humanos. Finalmente, em 12 de
março de 1999, a 43ª sessão da Comissão do Status da Mulher
da ONU adotou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mu-
lher. O Protocolo institui dois mecanismos de monitoramento:
a) o mecanismo de petição, que permite o encaminhamento de
denúncias de violação de direitos enunciados na Convenção à
apreciação do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação
contra a Mulher e b) um procedimento investigativo, que habi-
lita o Comitê a existência de grave e sistemática violação aos
direitos humanos das mulheres. Para acionar esses mecanis-
mos de monitoramento, é necessário que o Estado tenha ratifi-
cado o Protocolo Facultativo. Note-se que o Protocolo entrou
em vigor em 22 de dezembro de 2001, tendo sido ratificado
pelo Brasil em 28 de junho de 2002109. Outro avanço na prote-
ção internacional dos direitos das mulheres foi a aprovação da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher. Essa Convenção foi editada, no âm-

108 BANDEIRA, Lourdes; MELLO, Hiledete Pereira de. Memórias das Lutas Femi-
nistas no Brasil. In: BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas
para as Mulheres. Tempos e Memórias do Feminismo no Brasil. Brasília: SPM,
2010. p. 8.
109 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
270.
60
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

bito da OEA, em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995110. A


Convenção de Belém do Pará é o primeiro tratado internacional
de proteção dos direitos humanos a reconhecer, de forma enfá-
tica, a violência contra a mulher como fenômeno generalizado,
que alcança, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou
qualquer outra condição, um elevado número de mulheres. Sob
a perspectiva de gênero, a Convenção elenca importante catá-
logo de direitos a serem assegurados às mulheres, para que
tenham uma vida livre de violência111. Não há ainda, no Brasil e
em diversos outros países, a garantia dos direitos reprodutivos
das mulheres, já reconhecidos como direitos humanos, em es-
pecial no Plano de Ação da Conferência Mundial de População e
Desenvolvimento – Cairo 1994, que, apesar de não ter força de
lei, possui poder normativo, porque interpreta e traça diretri-
zes para implementação das leis internacionais no campo das
políticas públicas112. Nesse viés, a convenção se fundamenta na
dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a
igualdade. A convenção trata do princípio da igualdade, seja
como obrigação vinculante, seja como objetivo. Para a conven-
ção, a discriminação contra a mulher significa “toda distinção,
exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto
ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo,
exercício pela mulher, independentemente de seu estado ci-
vil113. Dentre suas previsões, a Convenção consagra a urgência
de se erradicar todas as formas de discriminação contra as mu-

110 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
270.
111 Idem, p. 271.
112 CARVALHO, Lisandra Arantes. O movimento feminista no Brasil, suas con-
quistas e desafios. O empoderamento da mulher como instrumento de inter-
venção social. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI,
Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da seguran-
ça. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006. p. 204-205.
113 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
264.
61
Justiça Restaurativa & Gênero

lheres, a fim de que se garanta o pleno exercício de seus direi-


tos civis e políticos, como também de seus direitos sociais,
econômicos e culturais. Acolhe-se, assim, a tônica da Declara-
ção Universal, com relação à indivisibilidade dos direitos hu-
manos114. Para o alcance da igualdade, não basta a proibição da
discriminação. No entender da Convenção, a eliminação da dis-
criminação não é suficiente para assegurar a igualdade entre os
gêneros. Prevê, assim, a possibilidade da adoção das medidas
afirmativas – “ações afirmativas” – como importantes medidas
a serem adotadas pelos Estados para acelerar o processo de
obtenção de igualdade. Combina a proibição da discriminação
com políticas compensatórias que acelerem a igualdade en-
quanto processo; ainda estabelece, como mecanismo de im-
plementação dos direitos que enuncia, a sistemática dos relató-
rios. Ineditamente, os Estados-partes têm que encaminhar rela-
tórios ao Comitê das Nações Unidas para Eliminação de todas
as formas de Discriminação contra a Mulher. Nesses relatórios,
devem evidenciar o modo pelo qual estão implementando a
Convenção – quais medidas legislativas, administrativas e judi-
ciárias adotadas para esse fim115. Poder-se-ia afirmar que esses
relatórios são um mecanismo de monitoramento dos direitos
humanos, tanto é verdade que o relatório final elaborado pela
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a
Mulher apresenta vários aspectos negativos que demonstram a
fragilidade no que tange a efetivação da Lei Maria da Penha na
sociedade brasileira.
A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) é reconhecida pela
ONU como uma das três melhores legislações do mundo no
enfrentamento à violência contra as mulheres. Resultou de uma
luta histórica dos movimentos feministas e de mulheres por

114 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
265-266.
115 Idem, p. 267.
62
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

uma legislação contra a impunidade no cenário nacional de


violência doméstica e familiar contra a mulher116.
Embora a lei tenha apoio significativo de toda a socieda-
de, sua implementação trouxe à tona muitas resistências. Resis-
tências que conviviam com a aceitação da violência doméstica
como crime de menor poder ofensivo e reforçavam as relações
de dominação do sistema patriarcal. Assim, a Lei Maria da Pe-
nha representou verdadeira guinada na história da impunida-
de. Por meio dela, vidas que seriam perdidas passaram a ser
preservadas; mulheres em situação de violência ganharam di-
reito e proteção; fortaleceu-se a autonomia das mulheres. Com
isso, a lei cria meios de atendimento humanizado às mulheres,
agrega valores de direitos humanos à política pública e contri-
bui para educar toda a sociedade117.
O fato de o Brasil ser signatário dos tratados internacio-
nais sobre as questões de gênero não basta por si só para con-
siderar que o país seja desenvolvido e democrático em termos
de valores e civilidade com as questões de gênero. Dados do
relatório final elaborado pela Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito da Violência contra a Mulher118 trazem informações
surpreendentes que demonstram a tolerância ou o descaso no
país com a violência doméstica. O que de fato evidencia algu-
mas falhas no desenvolvimento humano, por não enfatizar na
cultura a autonomia humana e os valores de autoexpressão,
caracterizando, assim, uma cultura de conformismo, pois a fai-
xa de escolha autônoma (mesmo que para um sexo: as mulhe-

116 MENICUCCI, Eleoanar (Prefácio). Lei Maria da Penha. Mulheres ganharam


direito e proteção. Lei Maria da Penha. Lei 11.340, de 7 de agosto 2006. Secre-
taria de Políticas Públicas para as Mulheres. Presidência da República: Brasí-
lia-DF, 2012, p. 7-8.
117 Idem, p. 7-8.
118 BRASIL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-
lher: Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 2013. p. 648.
63
Justiça Restaurativa & Gênero

res) permanece estreita, excluindo opções potencialmente im-


portantes119.
O último Relatório Sobre o Peso Mundial da Violência
Armada120 dedica o quarto capítulo ao tema, sob o título Quando
a vítima é uma mulher, arrolando e analisando dados internaci-
onais, que corroboram as análises até aqui desenvolvidas. Con-
clui o Relatório: os feminicídios geralmente acontecem na esfera
doméstica. Nesse caso, verificou-se que em 68,8% dos atendi-
mentos a mulheres vítimas de violência, a agressão aconteceu
na residência da vítima; em pouco menos da metade dos casos, o
perpetrador é o parceiro ou ex-parceiro da mulher. No país, foi
possível verificar que 42,5% do total de agressões contra a mu-
lher enquadram-se nessa situação. Mais ainda, se observada a
faixa dos 20 aos 49 anos, acima de 65% das agressões tiveram
autoria do parceiro ou do ex.
Se compartilhadas muitas das características das agres-
sões contra as mulheres que encontramos em outros países do
mundo, a situação brasileira apresenta diversos sinais que evi-
denciam a complexidade do problema nacional: entre os 84
países do mundo que conseguimos dados a partir do sistema de
estatísticas da OMS, o Brasil, com sua taxa de 4,4 homicídios
para cada 100 mil mulheres, ocupa a 7ª colocação, como um
dos países de elevados níveis de feminicídio.
Não resta dúvida de que a elaboração de estratégias mais
efetivas de prevenção e redução dessa violência contra a mu-
lher vai depender da disponibilidade de dados confiáveis e vá-
lidos das condições e circunstâncias de produção dessas agres-
sões. É nesse sentido que deveremos continuar elaborando
nossos estudos, como subsídio às diversas organizações que

119 INGLEHART, Ronald; WEZEL, Christian. Modernização, mudança cultural e


democracia: a sequência do desenvolvimento humano. Tradução de Hilda
Maria Lemos Pantoja Coelho. São Paulo: Francis, 2009. p. 337.
120 GENEVA DECLARATION SECRETARIAT. Global Burden of Armed Violence
2011. Lethal Encounters. Suíça, 2011.
64
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

enfrentam esse problema121. É necessário realçar, nesse plano,


que os estudos mais recentes apresentam que a vitimização
homicida no Brasil é quase que exclusivamente masculina, a
qual representa aproximadamente 92% das ocorrências. Mes-
mo assim, apesar do baixo índice de homicídios praticados con-
tra mulheres, no último ano, mais de 4,5 mil mulheres foram
vítimas desse tipo de massacre. Ou ainda, entre 1980 e 2011,
morreram assassinadas 96.612 mulheres, lembrando que esses
são os dados que chegam até as autoridades, o número real
pode ser ainda maior122.
Nesse cenário, analisando os dados apresentados pelo re-
latório Juventude Viva123, entre os anos 1980 e 1996, houve
uma alta significativa nas taxas de homicídios contra as mulhe-
res, cerca de 4,5% ao ano. A partir dessa data, as taxas entram
em leve declínio, com ritmo de 0,9% ao ano. Já no que se refere
ao ano de 2007, houve uma queda significativa, o que dura so-
mente um ano, pois em 2008 as taxas tendem a aumentar, in-
clusive ultrapassando níveis anteriores. Ainda, os dados apre-
sentam maior discrepância quando se separam por Unidades
da Federação, em que o estado mais violento – Espírito Santo –
obteve, em 2011, taxa de 9,2% de vítimas de homicídio a cada
100 mil mulheres. Enquanto o estado de Piauí, com o menor
índice, apresentou taxa de 2,6%, ou seja, resultado quatro ve-
zes menos que o estado do Espírito Santo.
Assim, outro fato interessante apresentado pelo referido
relatório é que o número de homicídios praticados contra as
mulheres aumentou cerca de 17% na década, enquanto o nú-

121 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012. Atualização: Homicídio de


Mulheres no Brasil. Disponível em: <www.mapaviolenciaorg.br>. Acesso em:
25 jan. 2014.
122 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Juventude Viva: Homicídios e juventude no Brasil –
Mapa da Violência 2013. Brasília: Secretaria Geral da Presidência da Repúbli-
ca, 2013. p. 74.
123 Ver mais em: WAISELFISZ, Julio Jacobo. Juventude Viva: Homicídios e juven-
tude no Brasil – Mapa da Violência 2013. Brasília: Secretaria Geral da Presi-
dência da República, 2013.
65
Justiça Restaurativa & Gênero

mero de assassinatos masculinos foi de 8,1%, o que representa


quase o metade daquele. Ainda, nos estados da Bahia e Paraíba,
na última década, o número de homicídios de mulheres mais
que triplicou, e nos estados de Tocantins, Alagoas, Maranhão,
Rio Grande do Norte e Goiás duplicam ou mais o número desse
tipo de homicídio124. Contudo, pode-se observar ainda que o
número de homicídios femininos na população jovem vem au-
mentando, e que se têm os estados do Espírito Santo, Alagoas e
Distrito Federal ocupando o topo das taxas (21,4%, 13,3% e
12,4%, respectivamente), e, no outro extremo da lista, têm-se
os estados de São Paulo, Santa Catarina e Piauí com os menores
índices (3,8%, 3,6% e 2,0, respectivamente)125.
Analisando o número de homicídios das mulheres para
cada idade simples ocorridos no ano de 2011, percebe-se que
existe uma espécie de pico em forma de platô irregular, no qual
a faixa entre 17 e 31 anos de idade apresenta em torno de 140
homicídios anuais para cada idade da vítima126.
Nesse cenário, ainda se pode observar que existe uma
acentuada diferença nas taxas de homicídio entre as mulheres
jovens e as demais faixas etárias127, e que, em alguns casos, as
taxas referentes às jovens praticamente duplicam na compara-
ção com as não jovens, como, por exemplo, no ano de 2011, no
qual a taxa de homicídios perpetrados contra mulheres não
jovens foi de 4,1%, já a de mulheres jovens foi de 7,1%128.

124 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Juventude Viva: Homicídios e juventude no Brasil –


Mapa da Violência 2013. Brasília: Secretaria Geral da Presidência da Repúbli-
ca, 2013. p. 77.
125 Idem, p. 80.
126 Idem, p. 80.
127 Considera-se jovem aquele indivíduo entre 15 e 24 anos de idade, e não jo-
vem mulheres que ainda não completaram 15 anos de idade, ou que ultrapas-
saram os 24 anos.
128 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Juventude Viva: Homicídios e juventude no Brasil –
Mapa da Violência 2013. Brasília: Secretaria Geral da Presidência da Repúbli-
ca, 2013. p. 82.
66
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Conforme o IBGE, Censo 2010, no Rio Grande do Sul, a


população feminina gira em torno de 5.489.827, correspon-
dendo a 51,33% da população total do estado, cuja posição no
ranking de violência contra a mulher é o 19º lugar, com taxa de
4,1 homicídios femininos por 100 mil mulheres (CEBELA, Mapa
da Violência 2012)129. No Estado, os municípios ilustrados no
Quadro 1 abaixo se destacam com as maiores taxas de homicí-
dio feminino.

Quadro 1: Maiores taxas de homicídio feminino no estado do RS


Taxa de homi-
População
cídio feminino
Ranking Município feminina em
(em 100 mil
2010
mulheres)
18º Taquara 27.777 14,4
97º Guaíba 49.051 8,2
98º Lajeado 36.714 8,2
Fonte: CEBELA, Mapa da Violência 2012.

No âmbito do estado, existe a Secretaria de Políticas para


as Mulheres (SPM/RS), criada por lei em 2011, e o Comitê Ges-
tor de Políticas de Gênero, coordenado pela SPM/RS e integra-
do por representantes de todas as pastas do Governo. No âmbi-
to dos municípios, três possuem a respectiva Secretaria de Polí-
ticas para as Mulheres (São Leopoldo, Trindade do Sul e Três
de Maio) e outros 110 constituíram Coordenadorias para cui-
dar do tema130.
O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do RS
(CEDM/RS) existe desde 1986, quando foi criado por decreto, e
hoje se vincula à SPM/RS. Funciona em Porto Alegre e atual-
mente está em fase de reestruturação. Existem, ainda, 52 Con-

129 BRASIL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-


lher: Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 2013, p. 648.
130 Idem, p. 649.
67
Justiça Restaurativa & Gênero

selhos Municipais da Mulher (COMDIM): Alegrete, Alvorada,


Arroio do Tigre, Balneário, Pinhal, Barra do Ribeiro, Bento Gon-
çalves, Bom Retiro do Sul, Cachoeirinha, Calbaté, Campo Novo,
Canela, Canguçu, Canoas, Caxias do Sul, Charqueadas, Cruz Alta,
Erechim, Fortaleza dos Valos, Guaíba, Getúlio Vargas, Giruá,
Gravataí, Ibirubá, Lajeado, Montenegro, Nova Petrópolis, Novo
Hamburgo, Panambi, Pelotas, Piratini, Porto Alegre, Rio Grande,
Rio Pardo, Santana do Livramento, Santo Ângelo, Santo Antônio
da Patrulha, Santa Cruz do Sul, Santa Maria, Santa Rosa Santo
Augusto, Santo Cristo, São Leopoldo, Seberi, Soledade, Taquara,
Tapes, Tramandaí, Três de maio, Vacaria, Venâncio Aires, Vera
Cruz e Viamão131.
O Estado conta com 16 Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (DEAM), que estão localizadas em: Ben-
to Gonçalves (ainda não inaugurada, por falta de liberação de
um prédio para sediá-la), Canoas, Caxias do Sul, Cruz Alta, Ere-
chim, Gravataí, Ijuí, Lajeado, Novo Hamburgo, Passo Fundo,
Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Santa Cruz do Sul, Santa Ma-
ria e Santa Rosa132.

Quadro 2: Registros de ocorrências das DEAMs em 2012


TIPO QUANTIDADE
Crimes 36.233
Contravenções 6.304
Outros Fatos 2.514
Fonte: Elaboração própria, com base em informação do Governo do RS.

A respeito dos dados ilustrados no quadro 2, a Secretaria


de Políticas para Mulheres do Rio Grande do Sul (SPM–RS) in-
formou que, apesar do número elevado de ocorrências, não há

131 BRASIL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-


lher: Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 2013, p. 649.
132 Idem, p. 650.
68
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

classificação dos tipos de crimes. Fica prejudicada, assim, a


busca de informações acerca do número de inquéritos instau-
rados pela autoridade policial para investigar casos de violên-
cia doméstica e familiar; e acerca do número de homicídios de
mulheres identificados como “crimes de gênero” nos últimos
cinco anos133.
Junto ao Centro de Referência da Mulher Vânia Araújo
Machado, há o Serviço Escuta-Lilás, que consiste em uma cen-
tral de atendimento à mulher, da Secretaria de Políticas para as
Mulheres do RS, acessada pelo telefone gratuito 0800-541-
0803134.
A respeito das informações orçamentárias do Rio Grande
do Sul, remarca-se o papel histórico do Estado na transparência
e participação da população na definição do uso dos recursos
públicos. No entanto, os dados apresentados não permitem
inferências sobre o percentual desses valores que foi realmente
executado. Ademais, conforme informações levantadas pela
CPMIVCM, a SPM/RS é a unidade com menor dotação orçamen-
tária entre as secretarias governamentais do Estado135.
A Secretaria de Segurança Pública (SSP), por meio do De-
partamento de Criminalística, informou que o número de mu-
lheres submetidas a exame de corpo de delito, na clínica do
Departamento Médico-Legal em Porto Alegre, gira em torno de
40 por dia. As lesões mais constatadas são: escoriações, equi-
moses e hematomas, sendo mais frequentes em áreas cobertas
pelas vestimentas, couro cabeludo e membros superiores e
inferiores136.

133 BRASIL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-


lher: Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 2013, p. 650.
134 Idem, p. 652.
135 Idem, p. 662.
136 Idem, p .663.
69
Justiça Restaurativa & Gênero

Quadro 3: Recursos orçamentários para políticas de proteção às


mulheres, 2013
SECRETARIA DE ESTADO DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES
PROGRAMA AÇÃO VERBA em R$
Remuneração do Pessoal, Apoio
Programa de Apoio
Administrativo e Publicidade 4.030.401,00
Administrativo
Institucional
Apoio a Criação e Fortalecimento
de Conselhos e Organismos de 155.325,00
Políticas para as Mulheres
Cidadania e Efeti- Realização de Campanhas, Capa-
vação de Direitos citação e Produção de Conheci-
100.000,00
das Mulheres mentos sobre Temáticas de
Gênero
Fortalecimento do Conselho
100.000,00
Estadual de Direitos da Mulher
Mulheres
Promoção de Capacitação Profis-
Construindo 2.854.960,00
sional para o Mundo do Trabalho
Autonomia
Apoio às Iniciativas de Prevenção
à Violência contra Mulheres e 1.470.297,00
Meninas
Qualificação e Fortalecimento de
Rede de Atendimento às Mulhe- 550.000,00
Prevenção e
res em Situação de Violência
Enfrentamento da
Criação e Gerenciamento de o
Violência contra as
Observatório da Violência contra 100.000,00
Mulheres
a Mulher
Reordenamento Institucional do
Centro de Referência Vânia Araújo
309.002,00
e Fortalecimento de Centros
Municipais de Referência
SUBTOTAL – Secretaria de Políticas para as Mulheres 9.669.985,00
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados obtidos pela CPMIVCM.

Devido ao aumento do número de mulheres presas no Es-


tado, foram criadas duas Coordenadorias Especiais de Mulhe-
70
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

res, uma na Superintendência das Penitenciárias e outra na


Polícia Civil. Também foi criada a Penitenciária Feminina, no
município de Guaíba, onde estão sendo implementados os re-
quisitos da legislação sobre criação de berçários. As estatísticas
no Rio Grande do Sul apontam que 85% dos homens e 48% das
mulheres assassinados são mortos por armas de fogo. Isso sig-
nifica que os 52% restantes das mulheres morrem por armas
brancas, o que indica causa de morte doméstica137.
Na página da Secretaria de Segurança Pública do Estado,
citado no relatório138, análise dos dados referentes à violência
contra as mulheres destaca que “os inquéritos instaurados cu-
jas vítimas foram mulheres […] diminuíram de 61.810 casos, no
2º semestre de 2010, para 57.664 no mesmo período do ano de
2011 (variação de 6,71%)”. Também informa ter havido uma
“diminuição na quantidade de inquéritos remetidos cujas víti-
mas foram mulheres: no segundo semestre de 2010, computa-
ram-se 52.796 casos contra 52.793 no 2º semestre de 2011”139.
O documento informa, ainda, que existem 27 Postos Poli-
ciais de Atendimento à Mulher, localizados em Alvorada, Ale-
grete, Cachoeira do Sul, Cachoeirinha, Camaquã, Canela, Caça-
pava do Sul, Carazinho, Esteio, Guaíba, Ibirubá, Lagoa Verme-
lha, Montenegro, Palmeira das Missões, Parobé, Santana do
Livramento, Santiago, Santo Ângelo, São Leopoldo, São Luiz
Gonzaga, Sapucaia do Sul, Sobradinho, Torres, Tramandaí, Três
Passos, Uruguaiana, Vacaria, e Venâncio Aires. No entanto, a
CPMI recebeu a informação de que o Posto de Santana do Li-
vramento não está em funcionamento, razão pela qual não o
contabilizou. Aponta a existência da Rede Integral de Saúde no

137 BRASIL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-


lher: Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 2013, p. 663.
138 Idem, p. 663.
139 RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Segurança Pública. Departamento de
Gestão da Estratégia Operacional. Sistema Estatístico da SSP/RS. Disponível
em: <http://www.ssp.rs.gov.br/upload/20120326141845lei_postal_1__se
mestre_de_2011___versao_final.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2014.
71
Justiça Restaurativa & Gênero

Rio Grande do Sul 290, chamada de Rede Chimarrão, planejada


para integrar as Políticas de Saúde, entre as quais se encontra a
Saúde da Mulher, executada em parceria com as Secretarias da
Justiça, da Segurança e de Políticas para as Mulheres140.
Menciona, ainda, haver quatro hospitais que fazem o
abortamento legal no Estado, quais sejam: Hospital Presidente
Vargas, Hospital de Clínicas, Hospital Fêmina e Hospital Con-
ceição. Disse que há um projeto da Secretaria para que haja ao
menos um hospital grande que preste esse serviço em cada
uma das dezenove Coordenadorias. A Secretaria, após ter diag-
nosticado o despreparo de todos que fazem atendimento à mu-
lher vítima de violência sexual, tem procurado capacitar os pro-
fissionais e criar instrumentos para coletar esses dados141.
As maiores dificuldades apontadas pelas instituições são:
falta de recursos humanos básicos, como apoio administrativo,
quadro técnico fixo, de caráter multidisciplinar, psicólogos e
assistentes sociais, de efetivo de segurança pública e de defenso-
res no acesso à justiça. Além disso, foram destacadas a falta de
capacitação, ou a capacitação descontinuada, a rotatividade de
pessoal com desmonte de equipes, bem como a falta de infraes-
trutura adequada, como viaturas, retaguarda e espaço físico142.
A respeito do atendimento proporcionado pela Rede, o
relatório apontou que apenas 15% consideram que os casos
são bem solucionados, pouco mais de um quarto (26%) não
sabe o que ocorreu depois do encaminhamento e 43% admitem
que “há dificuldades”. O problema, segundo as respostas, não é
de má vontade para atender. Na avaliação dos serviços, a saúde
e a segurança pública foram considerados os piores. A seguran-
ça obteve a pior avaliação (ruim), por 30% dos respondentes143.

140 BRASIL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-


lher: Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 2013, p. 665.
141 Idem, p. 665.
142 Idem, p. 665.
143 Idem, p. 668.
72
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Quadro 4: Qualidade dos serviços da Rede


SERVIÇO BOM REGULAR RUIM TOTAL
Assistência 44 43 13 100
Saúde 23 50 27 100
Judiciário 30 59 11 100
Polícia/Segurança 25 45 30 100
Pública
Ministério Público 48 43 09 100
Defensoria Pública 35 49 16 100
Fonte: Núcleo de Violência, Secretaria Municipal de Saúde.

Embora o Tribunal de Justiça tenha encaminhado infor-


mações à CPMI, estas são incompletas e precárias, pois não in-
formam os dados anualmente, não estão desagregadas por tipo
de crime, e nem destacam as principais medidas protetivas
concedidas. Assim, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
informou à CPI que foram contabilizados, no estado, entre 2007
e 2012, os seguintes processos com réus denunciados144.

Quadro 5: Processos com réus denunciados, entre 2007 e 2012, no


estado do RS
PROCEDIMENTO (2007-2012)
Violência Doméstica 017.324
Crimes contra a Liberdade 002.352
Sexual
Medidas Protetivas – Violência Doméstica 156.919
Fonte: Tribunal de Justiça.

Há, na agenda do Judiciário, um projeto de criação de


uma Vara de Violência Doméstica em cada uma das comarcas

144 BRASIL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-


lher: Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 2013, p. 667.
73
Justiça Restaurativa & Gênero

maiores do Estado, mas ressaltou a necessidade de lei para


criação de varas ou novos juizados. No entanto, não mencionou
quando a agenda do Tribunal de Justiça irá, de fato, ser cum-
prida e enviar o projeto de lei à Assembleia Legislativa para a
criação de novos juizados e varas. Dessa forma, nenhuma atitu-
de é percebida para a concretização da agenda, revelando o
descaso do Tribunal pela violência contra mulheres. A desem-
bargadora também mencionou que há plantões no Tribunal de
Justiça e no Foro Central, 24h por dia, todos os dias da semana.
Nos plantões dos fins de semana, o maior número de atendi-
mentos se refere a fatos de violência doméstica, devido ser nes-
sa ocasião que os casais ficam mais tempo juntos em casa145.
O Dossiê aponta ainda os obstáculos que devem ser supe-
rados quando o assunto é violência contra mulheres no estado:
falta de prioridade para as políticas de enfrentamento às desi-
gualdades de gênero, articuladas com o racismo, com outras
formas de discriminação por raça, orientação sexual, idade,
crenças religiosas, locais de moradia, entre muitas outras; falta
de dados e estatísticas com bases comuns que permitam identi-
ficar o problema, conhecer a sua magnitude e a forma como se
apresentam em cada instância; orçamentos insuficientes e/ou
inexistentes; desconhecimento por parte dos agentes públicos
e políticos da legislação existente nacional e internacional e da
obrigação de atuar na sua implementação; falta de continuida-
de das políticas públicas; redes de atendimento, quando exis-
tentes, fragmentadas, sem fluxos e protocolos; falta de efetivi-
dade nas ações dos serviços, levando mulheres a morrer mes-
mo tendo medidas protetivas; resistência por parte dos agentes
políticos na instalação de Juizados; falta de políticas para a in-
formação da sociedade sobre os direitos humanos das mulhe-
res e em particular sobre o direito a uma vida sem violência;
falta de recursos humanos capacitados para atuar; falta de vi-

145 BRASIL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-


lher: Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 2013, p. 670.
74
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

são de atenção integral, em rede; falta de planejamento das


políticas em rede e capacitação sobre redes; banalização da
violência contra as mulheres, inclusive a violência sexual, le-
vando ao descrédito de sua palavra; baixa capacidade da socie-
dade de monitorar e incidir sobre as políticas, pela ausência de
canais de participação e controle social eficazes; concepções
patriarcais, machistas e racistas como parte da formação cultu-
ral brasileira; impunidade dos agressores e criminosos em geral
contra as mulheres146.
Nesse cenário, é difícil a implementação da justiça restau-
rativa (mais adiante será tratada) como prática de enfrenta-
mento à agressão conjugal mútua, todavia, cabe ressaltar que a
abordagem restaurativa se coaduna com a Lei 11.340/06,
mesmo com muitas questões a formular e muitas outras a res-
ponder. Entretanto, é preciso compreender que a forma como a
Lei Maria da Penha está sendo aplicada (ou não está sendo
aplicada) em casos de agressão conjugal mútua revivifica a di-
cotomia homem/agressor x mulher/vítima – ação que pode
promover injustiças de desqualificar as partes como protago-
nistas de suas vidas147.
Diante de o Brasil ser um estado-signatário, reconhecen-
do a Lei Maria da Penha como um importante aparato jurídico
que pode dar suporte às políticas públicas de gênero e de en-
frentamento à violência doméstica e intrafamiliar, pairam ain-
da desafios no que tange à efetividade de seu conteúdo, sobre-
maneira a auxiliar que os atores envolvidos consigam perceber
que a violência fragiliza a razão humana, escraviza e destrói o
outro. Nesse sentido, para que a lei realmente seja instrumento
de transformação dos sujeitos, ela precisa da articulação e o
comprometimento do Poder público, da sociedade civil e dos

146 BRASIL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mu-


lher: Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 2013, p. 681.
147 GRANJEIRO, Ivonete. Agressão conjugal mútua: justiça restaurativa e Lei
Maria da Penha. Curitiba: Juruá, 2012. p. 220.
75
Justiça Restaurativa & Gênero

próprios protagonistas da violência de gênero no processo de


mudança cultural e do desenvolvimento no ciclo civilizacional.
Por isso, não basta pensar na Lei Maria da Penha como política
pública, além disso, o caminho está na efetivação dos mecanis-
mos propostos em si pela transversalidade que requer uma
política pública dotada dessa natureza.

2.2 TRANSVERSALIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE


GÊNERO

De maneira mais abrangente, a expressão “política públi-


ca” assume os mais diversos sentidos, ora indicando um campo
de atividade, ora um propósito político, e outras vezes progra-
mas de ação com resultados específicos. Importa destacar que
as políticas devem orientar as ações do Estado, com a finalida-
de de enfrentar problemas decorrentes de um regime em pro-
cesso de democratização e continuamente interrompido pela
renovação periódica dos governantes148.
As políticas públicas traduzem, no seu processo de elabo-
ração e implantação – mas, sobretudo, em seus resultados –,
formas de exercício do poder político, envolvendo a distribui-
ção e redistribuição de poder e de recursos. Sistematizam o
papel das tensões e do conflito social nos processos de decisão
e na partição e repartição de custos e benefícios sociais. Como o
poder é uma relação social não linear que envolve vários e dife-
rentes atores sociais e políticos com projetos e interesses dife-
renciados e até mesmo contraditórios, há necessidade de medi-
adores e mediadoras sociais e institucionais, cujo papel ou fun-
ção cabe também ao bom desempenho dos servidores e servi-
doras públicos (da área técnica, de gestão etc.) para que se pos-

148 SCHMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceitu-
ais e metodológicos. In: REIS, Jorge R.; LEAL, Rogerio G. Direitos Sociais e Polí-
ticas Públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008.
Tomo 8.
76
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

sa obter um mínimo de consenso com vistas a que as políticas


públicas possam ser legitimadas e obter eficácia149.
As políticas públicas são o resultado do
[...] conjunto de processos mediante os quais as demandas
sociais se transformam em opções políticas e em tema de
decisão das autoridades públicas, por isso não podem ser
consideradas meros atos administrativos do poder cen-
tral, senão produtos sociais emanados de um contexto
cultural e econômico determinado em certas estruturas
de poder e em um projeto político específico150.

Geralmente, as políticas públicas no Brasil, quando são


elaboradas especificamente às mulheres, não recepcionam a
perspectiva de gênero. Políticas públicas de gênero são diferen-
tes de políticas públicas para as mulheres. Estas consideram,
inegavelmente, a diversidade dos processos de socialização
para homens e para mulheres, cujas consequências estão pre-
sentes de forma individual e coletiva.
Para tanto, é fundamental distinguir entre o que são polí-
ticas que têm a perspectiva da igualdade de gênero e aquelas
que têm por alvo preferencial as mulheres, e o que são progra-
mas com perspectiva de gênero ou de enfrentamento das desi-
gualdades de gênero. O fato de as mulheres serem centrais nos
programas não significa que exista certa perspectiva de gênero
ou propriamente um enfoque nesse sentido. Por exemplo, polí-
ticas que reforçam o papel tradicional das mulheres como mães

149 BRASIL. Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres. Políticas públicas


para as mulheres, 2012. Disponível em: <http://spm.gov. br/publicacoes-
teste/publicacoes/2012/politicas_publicas_mulheres>. Acesso em: 26 dez.
2013.
150 AGUIRRE, R.; BATTHYÁNY, K. (Coords.). Trabajo, género y ciudadanía en los
países del Cono Sur. Montevideo: Cinterfor, 2001. SILVEIRA, Sara. Políticas
públicas de equidad de género en el trabajo en los países del Cono Sur. In:
AGUIRRE, R; BATTHYÁNY, K. (Coords.). Trabajo, género y ciudadanía en los
países del Cono Sur. Montevideo: Cinterfor, 2001. p. 307.
77
Justiça Restaurativa & Gênero

e cuidadoras dos filhos e das pessoas idosas, sem dar alternati-


vas e/ou suporte para essas funções, não são políticas que bus-
cam transformar o papel tradicional das mulheres – ou seja,
não contribuem para transformar as relações de gênero151. Ao
encontro disso, Fraser acredita que se trata de uma concepção
de gênero bidimensional, e propõe um olhar de gênero bifocal,
aparecendo “como um eixo de categoria, que alcança duas di-
mensões do ordenamento social: a dimensão da distribuição e a
dimensão do reconhecimento”152.
Contextualizando, ainda, é correto afirmar que as políti-
cas para as mulheres não são excludentes das políticas de gê-
nero, mesmo que sua perspectiva seja de menor amplitude.
Tem-se que, no longo prazo, as políticas para as mulheres po-
dem se consolidar e fundamentar a formulação de uma política
de gênero.
Nessa perspectiva, as políticas públicas não devem ser
entendidas como programas que se dividem por setores de
acordo com as necessidades do Estado; ao contrário, elas de-
vem estar interligadas de maneira contínua e serem compre-
endidas a partir da própria construção de instituição e proces-
so políticos, os quais estão intimamente interligados com todas
as questões que regem uma sociedade.
Desse modo, resta, em última análise, mas não com o fito
de esgotar a matéria, contextualizar a terminologia transversa-
lidade, elemento constitutivo das políticas públicas; e também
observar de maneira sucinta as manifestações de assimetrias

151 BRASIL. Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres. Políticas públicas


para as mulheres, 2012, p. 5. Disponível em: <http://spm.gov.br/publicacoes-
teste/publicacoes/2012/politicas_publicas_mulheres>. Acesso em: 26 dez.
2013.
152 FRASER, apud CARLOTO, Cássia Maria. Ruptura ou reforço da dominação:
gênero em perspectiva. São Paulo. Prefeitura Municipal. Coordenadoria Espe-
cial da Mulher; Secretaria do Governo Municipal. In: GODINHO, Tatau;
SILVEIRA, Maria Lúcia da (Orgs.). Políticas públicas e igualdade de gênero. São
Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, 2004. p. 188.
78
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

de gênero e pobreza enquanto desafio da redução da miséria


no espaço local. A transversalidade de gênero tem sua origem
histórica e conceitual a partir do contexto internacional dos
movimentos de mulheres, frente aos Estados soberanos153.
No contexto mundial, a política de promoção das mulhe-
res, por meio da “transversalidade de gênero”, significou aos
governos não unicamente a incorporação dessa perspectiva em
um ministério ou secretaria específica de atuação na área da
mulher, senão que seu impacto vinculante deva ser assimilado
por todas as políticas públicas propostas pelo Estado e desen-
volvidas em cada área governamental, considerando as especi-
ficidades das mulheres e dos homens. As ações políticas com
especificidade de gênero devem vincular-se e relacionar-se
com todas as áreas das ações governamentais e devem questi-
onar a ideia de que existem áreas nas políticas públicas as
quais estariam desvinculadas – ou se consideram neutras – em
relação à condição de gênero.
Para Vázquez154, a articulação entre os atores coletivos é o
triângulo do empoderamento. Na literatura, têm-se algumas
autoras estudiosas das políticas de gênero, que vão desde a
ótica do relacionamento até diversas autoras feministas. Em
obra sobre o processo de formulação das políticas públicas na
Europa, América Latina e Caribe, Vargas e Weringa desenvolve-
ram um conceito de “triângulo de empoderamento”, fazendo
uma análise comparativa dos processos que tramitaram até o
final em diferentes países.

153 MONTEIRO, A.; LEAL, G. B. Mulher da luta e dos direitos. Brasília: Instituto
Teotonio Vilela, 1998. (Coleção Brasil 3). MULLER, Jean-Marie. Não-Violência
na Educação. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2006.
154 VÁZQUEZ, Suzana. Gênero e Democracia Participativa (III Curso para Gradu-
ados 2007). In: _______. Gênero: Violência e equidade. Participação e exclusão.
Montevideo: Ideas, 2007.
79
Justiça Restaurativa & Gênero

Ao encontro de tudo o que foi dito, para Niki Johnson155, a


transversalização, sob a perspectiva de gênero, se traduz, na
prática, em uma ideia de que todos os atores sociais que nor-
malmente incidem no processo de elaboração das políticas pú-
blicas tenham que incluir, nessas mesmas políticas, uma pers-
pectiva de gênero. Ainda para Johnson156, no que diz respeito à
ideia da transversalização, todas as políticas públicas que se
implementam devem ter uma perspectiva de gênero: que exis-
ta, desde o momento de identificação do problema, a consciên-
cia de que esse problema pode afetar de maneira diferente ho-
mens e mulheres e que, para tanto, as soluções também podem
ter impacto diferenciado.
De igual modo, por transversalidade de gênero nas políti-
cas públicas, entende-se a ideia de elaborar uma matriz que
permita orientar nova visão de competências (políticas, institu-
cionais e administrativas) e a responsabilização dos agentes
públicos em relação à superação das assimetrias de gênero, nas
e entre as distintas esferas do governo. Essa transversalidade
garantiria uma ação integrada e sustentável entre as diversas
instâncias governamentais e, consequentemente, o aumento da
eficácia das políticas públicas157.
A proposição da Lei Maria da Penha deve convergir para
a perspectiva de transversalizar e de intersetorializar as políti-
cas públicas voltadas às mulheres. Nesse sentido, as políticas
públicas podem ser definidas como sendo diretrizes e princí-
pios norteadores de ação do poder público. Ao mesmo tempo,
transformam-se ou organizam-se em regras e procedimentos e
ações entre o poder público, a sociedade e o Estado. Políticas
públicas se constituem em uma das formas de interação e de
diálogo entre o Estado e a sociedade civil, por meio da trans-
155 JOHNSON, Niki. Institucionalidade e atores nas políticas públicas com perspec-
tiva de gênero. Montevideo: Ideas, 2007.
156 Idem.
157 KABEER, Naila. Desde as Contribuições Feministas, para um Quadro Analítico.
As Desigualdades de Gênero em Perspectiva Institucional. Mimeo, [s/d]. p. 97.
80
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

formação de diretrizes e princípios norteadores em ações, re-


gras e procedimentos que (re)constroem a realidade158.
Este apanhado sobre a categoria de gênero pode indicar
as diversas trajetórias e posições institucionais no campo das
políticas públicas, não apenas pela inclusão de nova linguagem,
mas, sobretudo, pelas diferenças nos usos e nos sentidos dados
ao conceito de gênero. O que aglutina e costura esses diferentes
usos e significados é a condição de desenvolvimento, justiça
social e de cidadania para as mulheres159.
A função de um Estado democrático é justamente elabo-
rar políticas que reconheçam as desigualdades econômicas e
políticas entre homens e mulheres. É legítimo atuar pensando
em uma lógica de políticas públicas de “gênero” que considere
o impacto diferenciado para homens e mulheres, e que também
reconheça a legitimidade a ações específicas voltadas para o
fortalecimento das mulheres que, enquanto grupo social dife-
renciado, estão em condições subordinadas na sociedade160.
Além da eficácia de políticas públicas voltadas para a re-
dução das assimetrias de gênero, para a condição de haver mu-
dança no perfil da institucionalização vigente, há de se reco-
nhecer a influência de outros fatores estruturais na reprodução
e ampliação dessas assimetrias: as mudanças sociodemográfi-
cas que interferem no perfil do emprego; as mudanças do papel
do Estado no mundo globalizado; os desafios colocados pela
diversidade racial/étnica; as alterações que vêm ocorrendo na
estrutura da família com os múltiplos arranjos familiares; e,

158 ALMEIDA, Tânia Mara C. de; BANDEIRA, Lourdes. Políticas públicas destina-
das ao combate da violência contra as mulheres – por uma perspectiva femi-
nista, de gênero e de direitos humanos. In: BANDEIRA, Lourdes; ALMEIDA,
Tânia Mara et al. (Orgs.). Violência contra as mulheres: a experiência de capa-
citação das DEAMs da Região Centro-Oeste. Brasília, Cadernos AGENDE, n. 5,
dez. 2004.
159 Políticas públicas para as mulheres. Secretaria de Políticas Públicas para as
Mulheres, 2012, p. 6. Disponível em: http://www.spm.gov.br/publicacoes-
teste/publicacoes-2013. Acesso em: 26 dez. 2013.
160 Idem.
81
Justiça Restaurativa & Gênero

ainda, as mudanças no tradicional padrão da divisão sexual do


trabalho e nos padrões da sexualidade, entre outros.
O primeiro dos desafios para as políticas é superar os li-
mites dos programas e projetos nos aspectos que reforçam os
papéis tradicionais das mulheres e não contribuem para sua
autonomia e empoderamento161. Junto a esse desafio, está levar
em consideração a diversidade das mulheres, reconhecer que é
preciso atender às necessidades específicas. É preciso priorizar
as creches e escolas públicas em período integral; programas
de saúde numa visão integral e não meramente reduzida à esfe-
ra reprodutiva, restrita a programas de planejamento familiar de
qualidade e coberturas questionáveis, moradia digna; restau-
rantes populares; atividades de lazer e cultura, criação de redes
de economia solidária redimensionando a atuação das mulhe-
res nos chamados programas de geração de renda, acesso das
mulheres aos recursos financeiros, acesso à propriedade da
casa, acesso à propriedade da terra. Em cada uma dessas ações,
deve-se levar em consideração quem são essas mulheres: ne-
gras, trabalhadoras rurais, trabalhadoras urbanas, mulheres
lésbicas, mulheres jovens, mulheres idosas.
Trabalhar com indicadores pode se constituir em outro
desafio; porém, os indicadores podem evidenciar: se houve ou
está havendo mudanças na divisão sexual do trabalho domésti-
co; se as jovens e as meninas da família deixaram de ser res-
ponsáveis pelo trabalho doméstico e pelo cuidado dos irmãos
menores; indicar se há diminuição ou não da violência domés-
tica; se a formação e capacitação profissional das mulheres
possibilitam acesso ao trabalho e a algum tipo de geração de
renda; entre outras informações necessárias para acompanha-
mento do que se realiza162. Em face dos resultados negativos da

161 BRASIL. Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres. Políticas públicas


para as mulheres, 2012, p. 9-10. Disponível em: <http://spm.gov.br/ publica-
coes-teste/publicacoes/2012/politicas_publicas_mulheres>. Acesso em: 26
dez. 2013.
162 Idem, p. 9-10.
82
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

não diminuição da violência doméstica, no dia 14 de dezembro


de 2013, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul acolheu o
Projeto encaminhado pela Secretaria das Mulheres, de Lei
278/2013, que dispõe sobre o monitoramento de agressores de
mulheres, por meio de tornozeleiras eletrônicas, a fim de ofere-
cer segurança às mulheres vítimas de violência, auxiliando na
fiscalização das medidas protetivas de urgência.

2.3 A DIMENSÃO DE GÊNERO, PONTO CEGO DAS POLÍTICAS


PÚBLICAS?

A dimensão de gênero precisa denotar a perspectiva da


transversalização com coerência e coesão, contemplando as es-
feras públicas e privadas, ao contrário, os embates permanece-
rão reproduzindo ainda mais pontos cegos nas políticas públicas.
Entende-se por pontos cegos os problemas como o desemprego,
a questão raça/etnia, a escolaridade, a taxa de fecundidade, a
feminização, o femicídio, entre outros, que não são percebidos e
relacionados entre si, ao se propor mensurar a dimensão de gê-
nero nas relações entre o homem e a mulher. De acordo com o
que foi discutido, compreende-se que o Programa de Transfe-
rência Condicionada de Renda Bolsa Família é uma das ações da
política pública de assistência social com enfoque de gênero e, a
partir dos seus desdobramentos, implica a inclusão da criança na
escola, o empoderamento e a autonomia da mulher na adminis-
tração do recurso e o controle na fecundidade163.
Alves e Cavenaghi, com base na pesquisa “Impactos do
Bolsa Família na Reconfiguração dos Arranjos Familiares, nas
Assimetrias de Gênero e na Individuação das Mulheres”, reali-
zada na cidade do Recife em 2007–2008, mostram que não

163 ALVES, Eustáquio Diniz; CAVENAGHI, Suzana. O programa bolsa família e as


taxas de fecundidade no Brasil. In: CAMPELLO, Tereza; NERI, Marcelo Côrtes
(Orgs.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasí-
lia: Ipea, 2013.
83
Justiça Restaurativa & Gênero

existe diferença significativa no comportamento reprodutivo


entre as mulheres que vivem em famílias cadastradas no Ca-
dastro Único, beneficiadas e não beneficiadas pelo PBF. Embora
haja tendência de as famílias beneficiadas terem fecundidade
ligeiramente maior, assim como proporção um pouco maior de
mulheres com três ou mais filhos (22,7% contra 16,4% das não
beneficiárias), fato é que o maior número de crianças tende a
reduzir a renda per capita, aumentando a probabilidade das
famílias se tornarem elegíveis aos benefícios do programa164.
A fecundidade mais elevada entre a população pobre,
menos escolarizada, com menor nível de consumo e piores
condições habitacionais é uma realidade constatada em todas
as pesquisas sobre o comportamento reprodutivo no Brasil. A
literatura mostra que, em grande parte, a maior fecundidade se
deve à falta de acesso aos serviços de saúde sexual e reproduti-
va, mas também acontece devido à falta de perspectivas profis-
sionais e educacionais, assim como de um projeto de vida que
possibilite o progresso cultural e material dessas mulheres jo-
vens165.
É certo afirmar que as mulheres com menor nível de ren-
da e educação no Brasil começam a ter filhos mais cedo – fe-
nômeno do rejuvenescimento da fecundidade –, e fazem um
“controle por terminação” precoce após se atingir determinado
tamanho da prole. E pelas dificuldades para obter métodos de
regulação da fecundidade de forma eficiente e constante, aca-
bam recorrendo às esterilizações. Das quase 90 mil mulheres
em idade reprodutiva e que recebiam o benefício do PBF na
cidade do Recife, 44,0% estavam esterilizadas no momento da
pesquisa, assim como mais da metade das 14 mil mulheres que
estavam registradas no Cadastro Único, mas se encontravam

164 ALVES, Eustáquio Diniz; CAVENAGHI, Suzana. O programa bolsa família e as


taxas de fecundidade no Brasil. In: CAMPELLO, Tereza; NERI, Marcelo Côrtes
(Orgs.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasí-
lia: Ipea, 2013.
165 Idem, p. 235.
84
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

em famílias que não recebiam benefícios. Com base no verifica-


do, mesmo a população de baixa renda tem apresentado redu-
ção no número médio de filhos à medida que o país vai se ur-
banizando e a população vai tendo acesso às políticas públicas
de educação e saúde. Tanto as mulheres que recebem quanto as
que não recebem os benefícios do PBF desejam ter menos fi-
lhos e possuem alto índice de gravidez não planejada. Mas ain-
da falta muito para o Sistema Único de Saúde (SUS) universali-
zar, na prática, os serviços de saúde sexual e reprodutivo. Em
outras palavras, da transversalização dessa política pública ser
eficiente166.
Longe de discursos ideológicos, a bolsa família é uma po-
lítica pública transversal que surgiu da necessidade de o Estado
assegurar direitos mínimos de sobrevivência à família, valen-
do-se desse fomento para estimular as pessoas a transforma-
rem seu entorno por meio da educação. No entanto, com o fe-
nômeno da globalização, o poder e a política estão separados,
com isso fragilizando a soberania e a efetivação de políticas
públicas pelos Estados. Complementando, ainda, Bauman aduz
que “o poder e a política ocupam espaços diferentes. O espaço
físico, geográfico continua sendo a casa da política. Enquanto o
capital e a informação habitam o ciberespaço, no qual o espaço
físico é abolido ou neutralizado”. De igual modo, globalização
significa, entre outras coisas, a progressiva separação entre
poder e política167.
Por outro lado, o Brasil está longe de ser o único país que
apresenta pontos cegos nas políticas públicas de gênero. Muito
embora a União Europeia e os países do Cone Sul tenham dado
alguns avanços sobre os direitos da mulher, ainda tem-se muito

166 ALVES, Eustáquio Diniz; CAVENAGHI, Suzana. O programa bolsa família e as


taxas de fecundidade no Brasil. In: CAMPELLO, Tereza; NERI, Marcelo Côrtes
(Orgs.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. Brasí-
lia: Ipea, 2013. p. 236-237.
167 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Tradução de Marcus Penchel. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 124-125.
85
Justiça Restaurativa & Gênero

a fazer a respeito do tema. Nos anos setenta, influenciados pelo


movimento feminista, essas políticas se centraram na igualdade
de oportunidades em matéria de emprego e nas diferentes
questões sociais relacionadas ao universo familiar. O problema
da igualdade em matéria de representação política se imple-
mentou nos anos 90; por sua vez, o balanço dessas políticas
segue sendo moderado. No rol da União Europeia, a evolução
das relações entre os gêneros consistiu, ante toda a adoção, por
parte de vários países, de medidas de ordem socioeconômica.
Em 1957, aprovou-se a primeira recomendação do Conselho de
Ministros sobre igualdade salarial entre homens e mulheres.
Em 1996, foi aprovado um projeto que incluiria a igualdade em
política168.
Com relação às limitações da União Europeia sob a pers-
pectiva de gênero, existem as chamadas políticas “duras”, que
se apoiam em regulamentações e que têm caráter obrigatório;
por outro lado, as chamadas políticas flexíveis ou brandas, que
traduzem as recomendações, diretrizes, porém, não são coati-
vas. Este segundo tipo de políticas se refere, principalmente, a
medidas tendentes a melhorar a situação da mulher e cuja im-
plementação obedece ao princípio da subsidiariedade, princí-
pio segundo o qual se reconhece a preponderância dos Estados
nacionais em algumas áreas, sobretudo sociais. Contudo, a apli-
cação das diretrizes depende da boa vontade das autoridades
nacionais pertinentes169.
A reflexão sobre a articulação entre âmbito público e pri-
vado está longe de êxito na União Europeia. Em geral, a dimen-
são de gênero fica como um ponto cego em todo o conjunto de
departamentos e ministérios da Comissão, como, por exemplo,
da agricultura; as imigrantes, para as quais as medidas de ação

168 HEINEN, Jacqueline. Políticas de la Unión Europea en materia de integración


social y política de las mujeres. In: AGUIRRE, R.; BATTHYÁNY, K. (Coords.).
Trabajo, género y ciudadanía en los países del Cono Sur. Montevideo: Cinterfor,
2001. p. 271.
169 Idem, p. 272.
86
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

tem uma singular importância, formam a fila de trabalhadoras


mais exploradas (serviços domésticos; negras, em particular)170.
Notoriamente, a agenda da equidade de gênero na Améri-
ca Latina na segunda metade do século XX tem registrado im-
portantes avanços, o que, de qualquer sorte, não tem implicado
na eliminação ou superação das desigualdades de gênero. No
Cone Sul, houve alguns avanços em termos de programas, por
exemplo: Argentina – o Conselho Nacional da Mulher (CNM),
dependente da Presidência e do Conselho Federal da Mulher;
Brasil – o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM),
atualmente Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres;
Chile – o Serviço Nacional da Mulher (SERNAM), cuja Diretora
tem cargo de Ministra do Estado; Paraguai – a Secretaria da
Mulher, dependente da Presidência e cuja diretora tem cargo
de Ministra; e Uruguai – o Instituto Nacional da Família e da
Mulher, no âmbito do Ministério de Educação e Cultura e sem
pressuposto próprio171.
Igualmente, todos os países tem ratificado a Convenção
sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra
a Mulher (CEDAW), que recorre a toda a normativa precedente
respeito aos direitos das mulheres, produzindo importantes
reformas legais para eliminar diversas manifestações de dis-
criminação e suscitando os Convênios Internacionais do Traba-
lho da OIT nº 100, sobre igualdade de remuneração, e a nº 111,
que trata da Discriminação no emprego e na ocupação, em que
promove a igualdade de direitos entre homens e mulheres no
plano laboral e engloba a discriminação baseada em motivos
distintos do sexo172.

170 HEINEN, Jacqueline. Políticas de la Unión Europea en materia de integración


social y política de las mujeres. In: AGUIRRE, R.; BATTHYÁNY, K. (Coords.).
Trabajo, género y ciudadanía en los países del Cono Sur. Montevideo: Cinterfor,
2001. p. 272.
171 Idem, p. 310.
172 SILVEIRA, Sara. Políticas públicas de equidad de género en el trabajo en los
países del Cono Sur. In: AGUIRRE, R; BATTHYÁNY, K. (Coords.). Trabajo,
87
Justiça Restaurativa & Gênero

Ainda hoje, as mulheres enfrentam desvantagens societá-


rias que tornam mais difícil para elas do que para os homens
desenvolverem seus talentos em carreiras fora do ambiente
doméstico. Objetivamente, mulheres e homens têm os mesmos
talentos e poderiam desenvolvê-los além de seus papéis tradi-
cionalmente limitados. Subjetivamente, elas foram socializadas
para aceitar essas limitações de papéis ao longo da história173.
Nessa esteira de pensamento, o trabalho reprodutivo po-
de ser entendido como algo para além da produção de bens e
mercadorias: é, no fundo, o trabalho de manutenção da vida e
reprodução das pessoas, o chamado trabalho da reprodução
social. Por sua vez, contribui para a perpetuação da violência
na esfera do emprego, o que se manifesta tanto por meio do
assédio moral como do assédio sexual, podendo levar ao adoe-
cimento, assim como à sobrecarga de trabalho e à falta de tem-
po para o lazer. As desigualdades salariais, a fragilidade dos
vínculos empregatícios e a invisibilidade do trabalho das mu-
lheres estimulam a interrupção das carreiras profissionais, o
que também redunda na subutilização das diferentes capacida-
des de trabalho das mulheres, novamente reforçando a repro-
dução dos estereótipos de gênero, o que lhes constrange o
exercício pleno da cidadania.
É certo afirmar, à guisa dessas considerações, que as de-
sigualdades entre homens e mulheres no âmbito da sociedade
brasileira ainda são numerosas. A única esfera em que as mu-
lheres contam com indicadores melhores que os dos homens é
a da educação. Entretanto, mesmo com mais anos de estudo,
elas não apresentam menores taxas de participação no merca-
do de trabalho; como recebem salários menores, estão empre-
gadas em condições mais precárias, enfrentam os fantasmas da

género y ciudadanía en los países del Cono Sur. Montevideo: Cinterfor, 2001. p.
311.
173 INGLEHART, Ronald; WEZEL, Christian. Modernização, mudança cultural e
democracia: a sequência do desenvolvimento humano. Tradução de Hilda
Maria Lemos Pantoja Coelho. São Paulo: Francis, 2009.
88
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

segregação ocupacional e do sexismo institucional, sofrem com


o assédio moral, encontram menos incentivos para progredir
profissionalmente que os homens, ocupam menos postos de
chefia e direção. Ou seja: as mulheres ainda têm uma vivência
marginal no mercado de trabalho brasileiro contemporâneo.
Permanecem como cidadãs de segunda classe, apesar de todos
os avanços até aqui alcançados. Além disso, no ambiente do-
méstico, têm de lidar com uma cultura machista, que perpetua
papéis sociais inadequados à realidade atual, seja pela perma-
nência do modelo de família tradicional, seja pela propagação
de ideias obsoletas e mesquinhas, como a que afirma que ne-
cessariamente cabe às mulheres as tarefas do cuidado com a
casa, as crianças, os idosos. A reprodução social não é tarefa
exclusiva do gênero feminino, tampouco favorece somente as
mulheres: trata-se, ao contrário, de atividade essencial para a
manutenção da vida cotidiana e que, por isso mesmo, merece-
ria ser mais valorizada174.
Notoriamente, mudanças culturais estão transformando a
própria definição de democracia, e a igualdade de gênero está
se tornando componente central daquilo que constitui a demo-
cracia175. Nas sociedades ricas, tem-se dado ênfase cada vez
mais à igualdade de gênero, por meio de reposição intergeraci-
onal. Consequentemente, encontram-se grandes diferenças de
idade, com membros das gerações mais jovens muito menos
propensos do que as gerações mais velhas a acreditar na supe-
rioridade masculina. Essas diferenças também são muito maio-
res do que as diferenças de gênero: homens mais jovens em
sociedades mais ricas têm orientações de gênero mais igualitá-
rias do que mulheres mais idosas em sociedades ricas. Isso ex-

174 BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as


Mulheres. Relatório Anual do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero
2010/2011. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2011. p. 26-27.
175 INGLEHART, Ronald; WEZEL, Christian. Modernização, mudança cultural e
democracia: a sequência do desenvolvimento humano. Tradução de Hilda
Maria Lemos Pantoja Coelho. São Paulo: Francis, 2009. p. 323.
89
Justiça Restaurativa & Gênero

plica por que a questão de gênero ganhou projeção apenas re-


centemente: as mudanças que a impulsionam estão agindo há
algum tempo, mas ela surgiu como força política poderosa so-
mente após a ocorrência de uma reposição geracional suficien-
te para transformar o eleitorado adulto176.
A respeito do relato de Anand e Sen177, o desenvolvimento
humano está centrado nas condições objetivas que moldam a
escolha humana, tais como recursos socioeconômicos e direitos
civis e políticos. Mas a escolha não é apenas questão de fatores
objetivos como recursos e direitos jurídicos, visto que se vive
em uma cultura que enfatiza a sobrevivência acima de qualquer
outra coisa, e por isso a liberdade de escolha não é priorizada.
Em uma cultura de conformismo, as pessoas tendem a ter a
mente fechada, excluindo opções potencialmente importantes.
A faixa de escolha autônoma permanece estreita. Uma socieda-
de propícia à escolha requer cultura que enfatize a autonomia
humana e os valores de autoexpressão.
Castoriadis, citado por Bauman178, insistiu em afirmar que
uma sociedade realmente autônoma (não apenas uma socieda-
de que presta reverência formal ao princípio de autonomia,
assim entendido, ou uma sociedade que recusa seu próprio
convite à autonomia) é feita de indivíduos autônomos. Não há
autonomia social se não há autonomia dos indivíduos que a
compõem.
Mas o que é um “indivíduo autoconstituído”? É o reco-
nhecimento de que o indivíduo não recebeu pronta a sua iden-
tidade, que a identidade é algo a ser construído pelo próprio

176 INGLEHART, Ronald; WEZEL, Christian. Modernização, mudança cultural e


democracia: a sequência do desenvolvimento humano. Tradução de Hilda
Maria Lemos Pantoja Coelho. São Paulo: Francis, 2009. p. 324.
177 Apud INGLEHART, Ronald; WEZEL, Christian. Modernização, mudança cultu-
ral e democracia: a sequência do desenvolvimento humano. Tradução de Hil-
da Maria Lemos Pantoja Coelho. São Paulo: Francis, 2009. p. 337.
178 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Tradução de Marcus Penchel. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 143.
90
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

indivíduo, que assumiu responsabilidade por ela. Mais do que


“ter uma identidade”, os indivíduos são confrontados com a
longa e árdua identificação de si próprios, jamais concluída. O
tradicionalismo é uma sintonia da sociedade envergonhada da
própria autonomia, que não se sente à vontade com isso e so-
nha em escapar dessa liberdade. Assim como a hipocrisia é um
tributo indireto pago à verdade pela mentira, da mesma forma
o tradicionalismo é um tributo enviesado, embaraçado e enver-
gonhado pago à autonomia pela heteronomia179.
Em complemento a essa compreensão, as oportunidades
para fazer escolhas autônomas estão estreitamente ligadas à
felicidade humana. Esse fato se comprova, sistematicamente, no
âmbito das culturas, pois em todas as zonas culturais, as socie-
dades que oferecem aos seus cidadãos mais espaço para a esco-
lha produzem níveis mais altos de satisfação geral com a vida e
felicidade. A aspiração humana de escolha é seriamente restrin-
gida por normas culturais rígidas em muitos lugares. Assim, as
culturas foram bem-sucedidas, em diferentes graus, na imposi-
ção de restrições à escolha humana. Mas se “bem-sucedido”, nes-
se sentido, acarreta custos humanos, por esse “sucesso” se reduz
o bem-estar: a criatividade e produtividade180.
A finalidade da democracia é aumentar o poder das pes-
soas e das instituições democráticas de tal forma que façam
com que a vida comunitária implique escolhas humanas autô-
nomas; sobremaneira, é saber viver em comunidade refletindo
sobre as escolhas, concatenadas a valores de autoexpressão,
que manifestem o empoderamento e refletem o desenvolvi-
mento humano mais o desenvolvimento socioeconômico. À luz

179 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Tradução de Marcus Penchel. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 141.
180 INGLEHART, Ronald; WEZEL, Christian. Modernização, mudança cultural e
democracia: a sequência do desenvolvimento humano. Tradução de Hilda
Maria Lemos Pantoja Coelho. São Paulo: Francis, 2009. p. 339.
91
Justiça Restaurativa & Gênero

dessa constatação, o aspecto mais fundamental da democracia


é a emancipação humana181.
[…] o ministro Velloso vê o desenvolvimento como uma
corrida de longa distância. E enxerga nela um elemento
de solidão: na busca obstinada do próprio caminho; nos
dilemas da escolha das opções corretas; no próprio es-
forço empregado em sua consecução, que sempre envol-
ve novas e criativas transformações. […] para que o Bra-
sil se torne, em poucas décadas, um país desenvolvido,
duas coisas, basicamente, são pressupostos necessários.
Primeiro, um alto conteúdo de capital humano, obtido
por meio de educação permanente e de qualidade. Se-
gundo, levar o conhecimento, sob todas as formas, à eco-
nomia, à sociedade, ao governo.182

Nesse contexto, a igualdade de gênero é uma medida sen-


sível do avanço do desenvolvimento humano em uma socieda-
de. Por conta disso, não basta apenas a elaboração e a imple-
mentação de leis sobre o assunto no ordenamento jurídico bra-
sileiro para findar os nodos cegos ainda incorporados às políti-
cas públicas. É preciso avançar, buscando alternativas plausí-
veis que auxiliem na emancipação dos sujeitos, atrelando a isso
o empoderamento social e a cidadania. Ainda dentro dessa ló-
gica, acredita-se na educação como propulsora para o desen-
volvimento humano e o desenvolvimento socioeconômico.

181 INGLEHART, Ronald; WEZEL, Christian. Modernização, mudança cultural e


democracia: a sequência do desenvolvimento humano. Tradução de Hilda
Maria Lemos Pantoja Coelho. São Paulo: Francis, 2009. p. 353.
182 VELLOSO, João Paulo dos Reis. A solidão do corredor de longa distância: Brasil
– novo modelo de desenvolvimento, para criar a “era das grandes oportuni-
dades, rumo ao país desenvolvido”. Apresentação, de Marcio Pochmann. Bra-
sília: Ipea, 2011. p. 13.
O SENTIDO MULTIDIMENSIONAL
DE ABORDAGEM DA
JUSTIÇA RESTAURATIVA
“PARA E ALÉM DOS GÊNEROS”

Contemporaneamente, tem-se assistido, em diversas lo-


calidades do Brasil, à instalação de programas, projetos dos
mais variados em práticas restaurativas. O receio está no im-
pacto que pode causar na própria justiça restaurativa, que, em
tese, significa uma justiça voltada “a” e “para” a comunidade.
Um redirecionamento da corresponsabilização dos sujeitos e
do senso cívico e crítico de comunidade. Em virtude da cultura
jurídica brasileira, o imediatismo e a ideia de positivar com leis,
como uma espécie de aprisionamento jurídico, podem acabar
com a principiologia restaurativa, que, na sua essência, foca a
condição humana, melhor dizendo, a essência humana. Nesse
ínterim, rememora-se a reflexão: qual o sentido de justiça de
gênero na justiça restaurativa? Em meio a tudo isso, permeia a
herança cultural jurídica portuguesa, a diversidade cultural das
etnias e raças, que se retroalimentam e ao mesmo tempo se
repelem enquanto arranjos que coabitam um espaço público
também sob os efeitos nefastos da globalização. Assim, maiores
são as probabilidades de importar as experiências sociais res-
taurativas, sem melhor análise daquilo que é possível e viável à
sociedade brasileira. O risco da colonização da linguagem e de
instalação nos mesmos espaços precários e viciosos é imenso, a
94
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

citar o exemplo do que ocorrera com a Lei 9.099/95 (Lei dos


Juizados Cíveis e Criminais).
Todas as sociedades são fábricas de significados. Até mais
do que isso: são as sementeiras da vida com sentido183. Então, as
abordagens de justiça e as demais ressignificações que se po-
dem dar a ela são oriundas dessa sociedade, que, em face da
globalização, com as relações sociais fragilizadas entre os seus
indivíduos, busca ir ao encontro da felicidade. Felicidade que
independente do Estado e está na convivência social com o ou-
tro, a partir do amor, e não da razão utilizada para usar ou ins-
trumentalizar o sujeito.
Captando a comunicação, pela emancipação e pelo empo-
deramento dos sujeitos, é possível acreditar no ressuscitamen-
to da razão humana, sendo esta o maior legado da modernida-
de, pois, para Habermas, citado por Leal184:
As promessas da modernidade não se esgotaram. Logo, o
que vem a ser essa razão humana? Que o ser humano é
capaz de reger a vida como base no seu entendimento,
assentado em valores e princípios que são: a vida, a
igualdade, a fraternidade, o bem, a justiça. Valores esses
universais. Por conta disso, mister tornar a ação comum:
ação comunicativa, no sentido de partilha, de gestão
compartida em um universo de valores e princípios. Essa
ação precisa de mecanismos, de nível de entendimento
entre os envolvidos, por isso, a administração dela se
vale da emancipação humana. Tendo que se dar pela va-
lidade ou justificação de seus argumentos.

Assim, deve-se acreditar na razão humana como meio de


emancipação, responsabilidade de valores e diretrizes. Oportu-

183 BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias


vividas. Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 8.
184 LEAL, Rogério Gesta. Informação prestada durante a aula de (disciplina) do
curso de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do
Sul – UNISC, 2013.
95
Justiça Restaurativa & Gênero

no, ainda, é o outro eixo de discussão que complementa o pri-


meiro, tratando da multidimensionalidade da justiça e do seu
flexionamento um tanto abissal com a administração da razão
humana como via de emancipação. Este, por sua vez, remonta
ou remete para o sofrimento enquanto um dos desafios de su-
peração para a consolidação da justiça social como princípio
efetivo da comunidade, que incita acreditar na razão humana
também como mecanismo de emancipação social.
Nessa direção, o sentido de justiça restaurativa no gênero
a ser construído dar-se-ia com a transformação do pensamento
linear e patriarcal para o pensamento complexo, em que se
começa a pensar naquilo que é possível também dentro das
partes das prováveis impossibilidades, vislumbrando uma cul-
tura humanística. Por conta disso, é importante rememorar os
aportes teóricos da justiça restaurativa, bem como as metodo-
logias utilizadas pelos facilitadores de conflitos que se valem
dela para possibilitar o exercício do diálogo para trilhar o ca-
minho de uma cultura humanística, reconhecedora das limita-
ções do outro, mas com este também sendo parte imprescindí-
vel no tecido social chamado comunidade. Com isso, também se
quer estabelecer um diálogo com a educação, que, não sendo
ideológica, é transformadora e libertadora do sujeito. De igual
forma, se reconhece que a multidimensionalidade da justiça
está na abordagem comunitária e seus desdobramentos de sen-
tido de justiça entre os sujeitos dotado de gênero.

3.1 APORTES TEÓRICOS SOBRE JUSTIÇA RESTAURATIVA:


CONSIDERAÇÕES ESSENCIAIS

Das definições consideradas mais importantes de Justiça


Restaurativa, está a do advogado norte-americano Howard
Zher, considerado um dos fundadores e principais teóricos so-
bre a Justiça Restaurativa no mundo. Zher desenvolveu um es-
tudo detalhado a respeito das concepções fundamentais das
96
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

práticas restaurativas, destacando os seguintes aspetos: o cri-


me é fundamentalmente uma violação de pessoas e relações
interpessoais; as violações criam obrigações e responsabilida-
des; e a justiça restaurativa busca curar e corrigir injustiças185.
De qualquer sorte, as dificuldades em conceituá-la pode ser
vista sob uma lógica positiva, no que tange à reflexão sob a sua
flexibilidade e adaptabilidade às práticas restaurativas que dela
provêm e podem ser trabalhadas. Uma das principais caracte-
rísticas da justiça restaurativa é a sua multiplicidade, por se
estar diante de um conceito aberto, ou ainda, nos dizeres de
Sica186, de um “conjunto de práticas em busca de uma teoria”.
A justiça restaurativa, por ser um processo comunitário, tam-
bém é multidimensional, pois, além de dispor de no mínimo
três concepções – encontro, reparação e transformação das
pessoas –, associa no seu núcleo possibilidades de reflexão
acerca do próprio sentido de justiça dotada da própria aborda-
gem comunitária. Por isso, muito enriquece a direção dada pelo
sentido, que Sandel aduz: “para saber se uma sociedade é justa,
basta perguntar como ela distribui as coisas que valoriza – ren-
da e riqueza, deveres e direitos, poderes e oportunidades, car-
gos e honrarias”187. Independentemente do modelo estatal que
impera – seja do bem-estar social ou do liberal, afetos pela glo-
balização –, a sociedade é, para Bauman, um grande aparelho
para concordar e compartilhar, mas também de poder pelo que
faz com aquilo que foi acertado e compartilhado. Por isso, ele
ainda aduz: “Viver em sociedade”, concordando, compartilhan-

185 COSTA, Marli Marlene Moraes da; PORTO, Rosane Teresinha Carvalho. A
justiça restaurativa e a possibilidade de consenso entre os atores sociais: uma
abordagem a partir da comunicação não-violenta e da ação comunicativa. In:
COSTA, Marli Marlene Moraes da. Direito, cidadania e políticas públicas. Porto
Alegre: Imprensa Livre, 2005. v. 2, p. 158.
186 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de
Justiça Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
p. 10.
187 SANDEL, Michel J. O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e
Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 28.
97
Justiça Restaurativa & Gênero

do e respeitando o que se compartilha com o outro, é a única


receita para se viver feliz, se não felizes para sempre188.
Nessa lógica, comunidade não é exclusivamente um local,
em vez disso, é um sentimento, uma percepção. Quando as pes-
soas se veem como pertencentes a ela, sentem-se conectadas e
solidárias. Assim, a comunidade pode ser definida como um
conjunto de relações carregadas de laços de afeto e uma cota de
compromisso com valores compartilhados em face da relação
eu–tu (eu–nós)189. Nessa esteira de pensamento, a palavra co-
munidade carrega uma sensação boa, por conta de suas acep-
ções positivas: um lugar cálido, confortável, pode-se confiar nas
pessoas e contar com sua solidariedade190.
O que é próprio da comunidade é o tratamento dos confli-
tos no âmbito dos vínculos, compromissos e valores que defi-
nem o seu entorno. As desigualdades também são próprias da
comunidade, por isso, Etzioni não acredita nem propõe uma
visão igualitarista completa, mas postula que a perspectiva co-
munitária é em favor da redução das desigualdades e da garan-
tia de um mínimo de riqueza a todos191. Nesse sentido, coaduna
a justiça restaurativa em âmbito local, quando se consideram
compatíveis os princípios de comunidade e justiça.
Esse paradigma, que não se reconhece nem de esquerda
nem de direita, busca superar a clássica dicotomia públi-
co/privado e Estado/mercado. Tem entre suas premissas cen-
trais a afirmação do equilíbrio entre Estado, comunidade e
mercado e do equilíbrio entre autonomia individual e a ordem
social. O que significa pensar melhor sobre a acepção comuni-

188 BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias


vividas. Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 9.
189 ETZIONI, Amitai. La nueva regla de oro: comunidad y moralidad en una socie-
dad democrática. Barcelona e Buenos Aires: Paidós, 1999.
190 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.
Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 8-9.
191 ETZIONI, Amitai. La nueva regla de oro: comunidad y moralidad en una socie-
dad democrática. Barcelona e Buenos Aires: Paidós, 1999.
98
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

tária, para se estabelecerem trocas cooperativas sobremaneira


se delimitando o princípio de justiça e de fraternidades nas
relações entre os atores sociais e os indivíduos.
Com relação à cooperação, esta pode ser definida “sucin-
tamente como uma troca em que as partes se beneficiam”, re-
quer a habilidade de mostrar-se receptivo ao outro para agir
em conjunto, mas o processo é cheio de desafios a serem supe-
rados, e não raro leva a consequências destrutivas192. Nessa
perspectiva, a justiça restaurativa, em sentido amplo, possibili-
ta um espaço de ressignificação às pessoas envolvidas pelo ato
delituoso, ligadas pelo sentimento de cooperação e responsabi-
lidade. De qualquer sorte, a realização de reuniões restaurati-
vas, recorte de uma prática, cria um sentimento de participação
e de conexão entre as pessoas. Isso pode auxiliar a renovar o
sentimento de comunidade193.
As práticas restaurativas propriamente ditas se valem da
comunicação não violenta e dos círculos de construção da paz,
e priorizam a harmonia e o (r)estabelecimento da comunicação
e das relações sociais entre os cidadãos. A partir disso, rompe-
-se com paradoxos punitivos e retributivos que voltam-se ape-
nas para o autor do fato delituoso, uma vez que apenas essa
punição não é suficiente para garantir os direitos humanos e
fundamentais dos indivíduos atingidos pelo dano194. Dentro
desse viés, a justiça restaurativa é um processo de encontro,
que é um método de lidar com o crime e a injustiça que inclui

192 SENNERT, Richard. Juntos. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Re-
cord, 2012. p. 15.
193 WACHTEL, Ted; O’CONNELL, Terry; WACHTEL, Ben. Reuniões de Justiça
Restaurativa. Real Justice (Justiça Verdadeira) e Guia de Reuniões Restaurati-
vas. International Institute For Restorative Practices, publicado em colabora-
ção com The Piper’s Press, Pipersville, Pensilvânia, EUA. Primeira edição Im-
presso no Peru, Lima. Tradução ao Português: Gisele Klein e Edilaine Grando-
lpho. Revisão técnica: Jean Schimitz, 2010. p. 151.
194 COSTA, Marli Marlene Moraes da. Justiça restaurativa e alienação social. In:
LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge. Direitos sociais e políticas públicas. Santa
Cruz do Sul: EdUnisc, 2010. Tomo 10. p. 3.180.
99
Justiça Restaurativa & Gênero

os interessados na decisão sobre o que efetivamente deve ser


feito. Para outros, significa mudança na concepção de justiça,
que pretende ignorar o dano causado pelo delito e prefere a
reparação à imposição de uma pena. Outros entendem que se
trata de um rol de valores centrados na cooperação e na reso-
lução do conflito, forma de concepção reparativa. “Por fim, há
quem diga que busca uma transformação nas estruturas da
sociedade e na forma de interação entre os seres humanos e
destes com o meio ambiente”195. Trata-se de uma aproximação
que pretende enfrentar o fenômeno da criminalidade privilegi-
ando “toda forma de ação, individual ou coletiva, visando corri-
gir as consequências vivenciadas por ocasião de uma infração,
a resolução de um conflito ou a reconciliação das partes ligadas
a um conflito”. Surge, portanto, como alternativa à falência es-
trutural do modelo tradicional de sistema criminal, tendo como
desafio retrabalhar os dogmas da justiça criminal, a fim de res-
taurar o máximo possível do status quo anterior ao delito196.
Para a implementação das práticas restaurativas, é essen-
cial a existência de democracia participativa, mecanismo capaz
de fortalecer as relações entre indivíduos e comunidade, contri-
buindo para que os próprios cidadãos assumam o papel de paci-
ficar seus próprios conflitos, atenuando os índices de violência197.
Logo, percebe-se que há um reforço na interconexão entre os
atores sociais, ao passo que a Justiça Restaurativa reconhece que
todos os membros de uma comunidade, independentemente de
serem vítimas ou infratores, estão unidos por princípios comuns

195 PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula, 1982. Justiça restaurativa: da teoria à


prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009. p. 59-60.
196 ACHUTTI, Daniel. Modelos contemporâneos de justiça criminal: justiça tera-
pêutica, instantânea restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
p. 71.
197 BRANCHER, Leoberto Narciso. Justiça Restaurativa: a cultura de paz na práti-
ca da justiça. Site do Juizado da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/
docs/JUST_RESTAUR/VIS%C3O+GERAL+JR_0.HTM>. Acesso em: 8 abr. 2007.
100
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

por constituírem uma comunidade compartilhada. Por conse-


quência, as infrações ocorridas no meio social também são de
responsabilidade da comunidade local, que pode contribuir com
a restauração dos danos causados à vítima, assim como com a
reintegração do ofensor ao seio social198.
As práticas restaurativas têm sua origem nos modelos de
organização das sociedades comunais pré-estatais europeias e
nas coletividades nativas, que, por sua vez, exerciam a regula-
mentação social embasadas na manutenção da coesão do gru-
po, privilegiando os interesses coletivos em detrimento dos
individuais. Nessas comunidades, a transgressão de uma norma
implicava o restabelecimento do equilíbrio quebrado, buscando
encontrar uma solução para o problema causado. Nas socieda-
des ocidentais, a Justiça restaurativa é implementada utilizando
os modelos de tradições indígenas do Canadá, dos Estados Uni-
dos e da Nova Zelândia. Corrobora-se que a Irlanda é o primei-
ro país a empregar práticas restaurativas, especialmente na
resolução de conflitos envolvendo adolescentes199.
Em que pese ser a justiça restaurativa um movimento
ainda novo e emergente, existe um crescente consenso interna-
cional em relação a seus princípios, inclusive documentos da
ONU e da União Europeia, que validam e recomendam as práticas
restaurativas para todos os países. Na Resolução 2000/12200, de
24 de julho de 2000, do Conselho Econômico e Social das Na-
ções Unidas, a ONU divulga os Princípios Básicos para a Utiliza-
ção de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal.

198 CUSTÓDIO, André Viana; COSTA, Marli Marlene Moraes da; PORTO, Rosane
Teresinha Carvalho Porto. Justiça restaurativa e políticas públicas: uma análi-
se a partir da teoria da proteção integral. Curitiba: Multideia, 2010. p. 52.
199 Idem, p. 53.
200 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In:
BASTOS, Márcio Thomaz; LOPES, Carlos; RENAULT, Sérgio Rabello Tamm
(Orgs.). Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: MJ E PNUD, 2005.
Disponível em: <http://www.undp.org/governance/docs/Justice_Pub_Resto
rative%20Justice.pdf>. Acesso em: 3 out. 2009.
101
Justiça Restaurativa & Gênero

Corrobora-se que a instituição de práticas restaurativas


configura-se em novo olhar na esfera judiciária, nas relações
familiares e comunitárias, abrindo um horizonte de participa-
ção e autonomia, ao construir espaços específicos que possibili-
tam o diálogo pacífico entre as partes envolvidas em conflito.
Por conta disso, devem ser repensadas as relações de gênero
por um prisma de superação de dicotomias e campos distintos,
mas voltado ao sujeito. Por isso, o caráter punitivo não tem
dado resultado satisfatório no enfrentamento à violência domés-
tica. Assim, a política de enfrentamento à violência de gênero
precisa ser repensada também com políticas públicas preventi-
vas que incluam os homens nos polos de vítimas e agressores.
Procurar uma definição de justiça restaurativa não é tare-
fa fácil. Desde seu surgimento até o grande destaque que vem
conquistando dentro do Direito, tanto seus organizadores
quanto adeptos têm tomado grande cautela ao tentar defini-la.
O que se justifica quando se olha para as inúmeras e infrutífe-
ras teorias e paradigmas comportamentais criados ao longo da
história jurídica a fim de encontrar um adequado instrumento
de controle social. Para ter um conceito do que é Justiça Res-
taurativa, então, é preciso aprender a aceitar que esta pode ser
uma herança cultural, um conjunto de práticas conciliadoras,
uma filosofia de vida, um movimento jurídico, uma alternativa
ao defasado sistema retributivo-penal, tudo junto e ao mesmo
tempo. De qualquer forma, em origem, todas as suas interpre-
tações podem ser traduzidas em uma única coisa: a proposta de
se repensar a Justiça enquanto Valor.
Do ponto de vista daqueles que já tiveram contato com o
tema da Justiça Restaurativa, é grande a diferença entre o Valor
Justiça da forma como é concebido pelo atual sistema de justiça
em uso no Brasil da forma como se apresenta no modelo res-
taurativo. Enquanto o primeiro visa somente à punição pelo
erro cometido, focando no passado, de modo que dá respostas
insuficientes, quando não inexistentes, ao crime e às problemá-
102
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

ticas específicas trazidas por vítima(s) e infrator(es) – proble-


máticas como o etiquetamento e a exclusão social sobre o ofen-
sor e a exclusão da vítima no processo –, o segundo traz o diá-
logo, a responsabilização, a conexão, o compromisso futuro, a
busca do problema em sua origem de forma a permitir uma
solução de alcance muito maior daquele imaginado inicialmen-
te e, pelo aparato legal e multidisciplinar de apoio aos atores
envolvidos com o conflito, permite, enfim, a (re)integração do
indivíduo em conflito com a lei à sociedade.
Como se pode perceber, o modo restaurativo de compre-
ender e fazer Justiça não se contenta em ficar no plano superfi-
cial dos conflitos, ele vai além. É uma característica chamativa e
vital dessa proposta, como bem assegura o discurso do autor
Howard Zehr quando diz:
Trata-se aqui de uma subversão não apenas penetrante e
capaz de desafiar os núcleos conceituais do sistema, mas
também transversal, ao ponto de nos fazer ver que o sis-
tema institucional de justiça não é senão reflexo de um
padrão cultural, historicamente consensual, pautado pe-
la crença na legitimidade do emprego da violência como
instrumento compensatório das injustiças e na eficácia
pedagógicas das estratégias punitivas.201

O principal objetivo desse método é aproximar a vítima, o


ofensor e as testemunhas de forma a desenvolver ações cons-
trutivas voltadas para o futuro que beneficiem a todos por meio
da responsabilização do ofensor, do apoio à vítima e da confi-
ança depositada na sociedade de que esta se lembrará de asse-
gurar o cumprimento das promessas feitas ao longo do proces-
so restaurativo. O importante nesse processo é a compensação
dos danos gerados por meio de compromissos futuros que
promovam a restauração dos vínculos sociais mais harmônicos.
201 ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo:
Palas Athena, 2012. p. 10.
103
Justiça Restaurativa & Gênero

Buscaria a justiça restaurativa, então, promover senti-


mentos e relacionamentos positivos, não se contentando ape-
nas em reduzir a criminalidade, mas ir além, ou seja, em pro-
mover a regeneração dos vínculos rompidos. A capacidade des-
sa ‘neojustiça’ de preencher essas necessidades emocionais e
de relacionamento é o ponto-chave para a obtenção e manu-
tenção de uma sociedade civil saudável.
Assim, são propostas maneiras que permitam ao ofensor
compreender os danos que causou e reparar o que fez. A vítima
também é levada em consideração e recebe apoio psicológico:
entende-se que o ato foi cometido contra ela, e não contra o
Estado, como normalmente acontece. Dessa forma, a própria
vítima, a família, a comunidade e outras redes de apoio partici-
pam diretamente do processo de responsabilização.
O que diferencia a justiça restaurativa, então, de uma ma-
neira geral dos outros métodos de resolução de conflitos é a
sua forma de encarar e agir fundamentadas em valores e prin-
cípios como o respeito, a honestidade, humildade, responsabi-
lidade, esperança, empoderamento, interconexão, autonomia,
participação, busca de sentido e de pertencimento na respon-
sabilização pelos danos causados. Baseia-se numa ética de in-
clusão e de responsabilidade social, promovendo o conceito de
responsabilidade ativa.
Assim, assume-se como verdadeira a premissa de que o
impacto de cada atendimento guiado pelos valores da Justiça
Restaurativa não se restringe apenas às pessoas presentes nes-
te, mas alcança seu entorno familiar e comunitário, multipli-
cando o alcance dos Ideais Restaurativos. Como resultado dis-
so, instaurar-se-á novo paradigma, baseado na Cultura de Paz,
no qual as pessoas e comunidades aprenderão a solucionar
seus próprios conflitos e a prevenir a violência.
No plano concreto, isso é alcançado pela mediação, pela
conciliação, pelas audiências e pelos Círculos de Construção de
104
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Paz. Quanto à última prática, é preciso citar palavras da autora,


e principal capacitadora de facilitadores de Círculos de Cons-
trução de Paz, Kay Pranis, que diz:
Acredito que o Círculo é um caminho que reúne a sabe-
doria ancestral da vida comunitária com os conhecimen-
tos modernos sobre dons individuais e o valor da dis-
cordância e das diferenças. No Círculo respeitamos cada
indivíduo e também o coletivo. No Círculo sondamos
fundo dentro de nós mesmos e também saímos ao en-
contro da ligação com o espírito coletivo do Círculo.202

O resultado restaurativo significa um acordo alcançado


devido a um processo restaurativo, incluindo responsabilida-
des e programas, tais como reparação, restituição, prestação de
serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades in-
dividuais e coletivas das partes e logrando a reintegração da
vítima e do ofensor.
A justiça restaurativa começou a ser discutida na década
de 1970 e, desde então, vários países adotam diferentes abor-
dagens restaurativas, sempre com resultados positivos.
No Brasil, a partir de 2005, coube a Porto Alegre a van-
guarda dos esforços de aplicação da justiça restaurativa, por
intermédio do projeto “Justiça para o Século 21”, que objetiva
implantar as práticas de justiça restaurativa na pacificação de
conflitos e violências envolvendo crianças, adolescentes e seu
entorno familiar e comunitário. Pioneiro no País, o projeto foi
iniciativa e teve coordenação da 3ª Vara do Juizado da Infância
e da Juventude, com apoio institucional da Associação dos Juí-
zes do Rio Grande do Sul (AJURIS), por meio da Escola Superior
da Magistratura, e apoio técnico e financeiro do Ministério da
Justiça, mediante a Secretaria da Reforma o Judiciário, do Pro-

202 PRANIS, Kay. Processos Circulares. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo:
Palas Athena, 2010. p. 92.
105
Justiça Restaurativa & Gênero

grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e


da UNESCO, por intermédio do Programa Criança Esperança,
em parceria com a Rede Globo. Atualmente, também está sendo
desenvolvido o projeto de justiça restaurativa no Juizado da
Infância e da Juventude no município de Caxias do Sul.
O que estamos aprendendo com a justiça restaurativa é
que um elemento fundamental da justiça está relaciona-
do com a criação de sentido. A justiça é feita quando o
sentido do crime é construído a partir das perspectivas e
experiências daqueles que foram mais afetados por ele: a
vítima, o infrator e talvez os membros da comunidade.
Esse sentido não pode ser imposto por especialistas ou
representantes externos, é necessário que a voz das ví-
timas, bem como a dos infratores, seja ouvida direta-
mente. Requer-se, para isso, uma reorganização comple-
ta de papéis e valores. Os profissionais do campo da jus-
tiça e os membros da comunidade passam a assumir a
função de facilitadores, ao passo que as vítimas e infra-
tores passam a ser os atores principais.203

A justiça restaurativa, então, configura-se tanto como um


método de aplicação quanto uma nova forma de dar sentido ao
que é “Justiça”, voltando o foco das atenções para as relações
prejudicadas por situações de violência, utilizando-se da escuta
respeitosa e do diálogo com linguagem não violenta, oferecen-
do oportunidades para que as partes envolvidas no conflito
entendam a causa do acontecido e restaurem a paz e o equilí-
brio nas suas relações, nos seus vínculos.

203 ZEHR, H.; TOEWS, B. (Eds.). Maneiras de conhecer para uma visão restaurati-
va de mundo. In: Novas direções na governança da justiça e da segurança. Bra-
sília: Ministério da Justiça, 2006. p. 419.
106
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

3.2 IMPLEMENTANDO NA MATRIZ CURRICULAR A


DISCIPLINA RESTAURATIVA NAS ESCOLAS EM FACE À
PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A
HUMANIZAÇÃO DO OUTRO DOTADO DE GÊNEROS:
“SER UM HOMEM MASCULINO E FEMININO NÃO PERDE
O SEU LADO MASCULINO…”

A justiça restaurativa na escola deixa clara a real necessi-


dade de diálogo com a educação, pois uma das principais ver-
tentes de mudança de comportamento cultural se dá a partir da
escola. Dentro dessa perspectiva, propõe-se a criação e a im-
plementação da disciplina restaurativa oferecida dentro dos
currículos do ensino fundamental, enquanto metodologia de
aprendizagem valorativa e respeito pelo outro. No entanto,
repensar e ofertar proposituras inovadoras e criativas às crian-
ças e adolescentes pode esbarrar no ciclo repetitivo e vicioso
de erros e insucessos com projetos transformadores, quando se
deixa de lado a qualificação e capacitação dos professores com
esse outro olhar, bem como da ausência de valorização profis-
sional por parte do Estado e da sociedade. De qualquer sorte, é
no espaço escolar que se pode repensar em outras perspectivas
de práticas de educação que estimulem a comunidade desse
espaço a reformular ou redefinir suas práticas repetitivas de
reprodução de dominação e desrespeito pelo outro.
Seguindo essa compreensão, a transformação da sociedade
de uma cultura de guerra em uma cultura de paz é, talvez, mais
radical e abrangente que qualquer mudança anterior da histó-
ria humana. Por outro lado, para se chegar até a criança, seus
pais e a comunidade, é preciso começar pelos diretores e coor-
denadores das escolas, avançando até os professores e funcio-
nários, os quais, por sua vez, capacitarão os alunos, permeando
107
Justiça Restaurativa & Gênero

a sala de aula e os espaços escolares para atingir a família e o


entorno comunitário da escola204.
Por conta disso, a educação possibilita ao ser humano re-
descobrir a sua humanidade, bem como é um processo que
busca não só o desenvolvimento da razão – instrução –, mas
também o desenvolvimento do sentimento para que se aprenda
o valor205.
Nessas linhas, no entendimento de Freire, o professor,
para ser um educador progressista, necessita voltar-se ao exer-
cício da pedagogia da autonomia, fundada na ética, no respeito
à dignidade e na própria autonomia do educando206. Como os
demais saberes, este demanda do educador um exercício per-
manente e pela postura curiosa e aberta simultaneamente que
desabrocha no educando, provoca-os a se assumirem enquanto
sujeitos sócio-histórico-culturais207 que se proponham a lutar
pela ética universal do ser humano; ética esta inseparável da
prática educativa.
Gregory Bateson, citado por Bauman208, além de analisar
o “deuteroaprendizado”, faz consideração sobre o aprendizado
primário ou de primeiro grau, pois, caso não houvesse a evolu-
ção de conhecimentos, teríamos como resultado mentes com
falta de capacidade para analisar uma situação alterada ou para
perceber que houve planejamento antecipado para obter tal

204 AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para


escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Tradução de Tônia
Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. p. 12.
205 VERONESE, Josiane Rose Petry; OLIVEIRA, Luciene de Cássia Policarpo. Edu-
cação versus Punição: a educação e o direito no universo da criança e do ado-
lescente. Blumenau: Nova Letra, 2008. p. 36.
206 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educa-
tiva. 16. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Prefácio, p. 10.
207 Idem, Prefácio, p. 10.
208 BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias
vividas. Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
108
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

resultado. Bateston209 considera que, para alcançar o deuteroa-


prendizado, o indivíduo deva passar por várias etapas de desen-
volvimento intelectual, desde as mais básicas de primeiro e se-
gundo grau, evoluindo para o terceiro grau, incrementando as-
sim a capacidade e as habilidades de modificar o conjunto de
alternativas que aprendeu, bem como a prever e lidar com a
possibilidade de ensinar. Bateston também lembra que os dois
primeiros graus de aprendizado não são influenciados pela assi-
duidade do professor ou do talento de seus aprendizes, mas são
resultado da natureza humana, na forma como ela evoluiu no
decorrer do tempo, em todas as culturas conhecidas. Já o tercei-
ro grau pode apresentar consequências patogênicas, considera-
das quase uma anormalidade, como um tipo de condição disso-
nante do equipamento inato e herdado da espécie humana210.
Observa-se, nesse aprendizado terciário, que os paradig-
mas foram quebrados, sendo necessário rearrumar experiên-
cias fragmentárias em padrões familiares, tratando todos os
padrões como aceitáveis. Desestruturar significa mudar os há-
bitos, buscar em novas experiências maneiras diferentes de
agir daquela que se vinha procedendo até agora, agindo como
se fosse a única e correta forma.
Bauman sugere que humanos pós-modernos devam bus-
car uma lógica escondida nos padrões ocultos, desfazendo assim
suas crenças, convicções e padrões mentais de maneira mais
ágil. O sucesso da vida, depende da velocidade com que se con-
segue se livrar de hábitos antigos rapidamente, reaprendendo
novos hábitos e não se sentindo arraigado aos antigos costumes;
agilidade e desprendimento seriam as palavras-chave211.

209 Apud BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histó-


rias vividas. Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
210 Idem.
211 BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias
vividas. Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
109
Justiça Restaurativa & Gênero

Na concepção de Freire: “Não podemos nos assumir como


sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujei-
tos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como
sujeitos éticos. Neste sentido, a transgressão dos princípios éti-
cos é uma possibilidade, mas não é uma virtude. Não podemos
aceitá-la”. Portanto, “A ética é algo absolutamente indispensável
à convivência humana, pois, mais do que um ser no mundo, o ser
humano se tornou uma presença no mundo, com o mundo e com
os outros”212. De igual modo, a existência humana e a efetivação
do nosso ser biológico acontecem no espaço relacional do con-
versar, ou seja, o modo de viver e de se relacionar uns com os
outros213. Nesse universo, é a linguagem como “fenômeno bioló-
gico relacional e de interações recorrentes, sob a forma de um
fluxo recursivo de coordenações comportamentais consensuais”
e de entrelaçamento das vivências emocionais, que se constituem
as redes de conversação. A cultura conservada de geração após
geração é constituída como modo de convivência, pois é funda-
mentalmente definida pela configuração do emocionar. Dessa
nova configuração do emocionar surge uma nova cultura, a qual
é espontaneamente aprendida pelas crianças nas suas famílias.
No entanto, a nova configuração do emocionar que fundamenta
a nova cultura não se mantém por ser vantajosa ou boa; ela
apenas se conserva, e, ao conservar-se, faz com que a cultura
persista e tenha uma história. Assim, ao falar da origem do pa-
triarcado, enquanto modo de emocionar que pode ser vivido de
muitas formas, compreende-se que a vivência das emoções
aprendida pelas crianças é que leva à conservação do patriar-
cado como modo de emocionar214.

212 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educa-


tiva. 16. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 19.
213 MATURANA, Humberto R.; VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e Brincar: funda-
mentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin.
São Paulo: Palas Athena, 2004. p. 9.
214 Idem, p. 15.
110
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

As diferenças de gênero (masculino e feminino) são so-


mente formas culturais específicas de vida, redes específicas de
conversações. É por isso que os diferentes valores que nossa
cultura patriarcal confere às diferenças de gênero não têm fun-
damento biológico. Em outras palavras, as distinções sexuais
entre homem e mulher são biológicas, mas o modo como se as
vivem é um fenômeno cultural; e assim, tais diferenças, pró-
prias da cultura patriarcal, referem-se ao modo como se vive
culturalmente a diversidade biológica, segundo um fundamen-
to de igualdade em nosso ser biológico cultural215.
A ética tem a ver com a preocupação pelas consequências
das próprias ações sobre o outro. Por isso, para ter preocupa-
ções éticas, devo ser capaz de ver o outro como um legítimo
outro em convivência comigo, quer dizer, o outro tem que apa-
recer diante de mim na biologia do amor. O amor é a emoção
que funda a preocupação ética216.
Ética e moral não são a mesma coisa. A ética tem seu fun-
damento no amor, a moral tem seu fundamento na exigência de
cumprimento de valores, quando há ruptura das coerências ou
nos modos de estes serem aceitos numa comunidade217.
Para Freire, existir transpõe viver, já que se considera o
existir como sendo mais que estar no mundo. O existir é indivi-
dual, mas precisa, para se realizar, de outros “existires”. O autor
compreende que a integração é resultante da capacidade de
ajustar-se à realidade e, mais que isso, transformá-la. O homem
integrado é um homem Sujeito. À medida que cria, recria e de-
cide, o homem vai se transformando de acordo com os momentos

215 MATURANA, Humberto R.; VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e Brincar:


fundamentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotti e Lia
Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004. p. 17.
216 MATURANA, Humberto. Formação humana e capacitação. Tradução de Jaime
A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 43.
217 Idem, p. 43.
111
Justiça Restaurativa & Gênero

históricos218. Essa posição implica um retorno ao sentido origi-


nal de democracia. Por isso, essa transitividade crítica é carac-
terística dos autênticos regimes democráticos. O autor entende
que o passo decisivo da consciência transitiva ingênua para a
transitividade crítica passava, necessariamente, por um traba-
lho educativo crítico com esse fim, de humanizar o homem.
Pensamos que a existência humana acontece no espaço
relacional do conversar. Ou seja, consideramos que, embora do
ponto de vista biológico sejamos animais, somos também Homo
sapiens. A espécie de animais que somos, segundo nosso modo
de viver – vale dizer, nossa condição humana –, ocorre no modo
como nos relacionamos uns com os outros e com o mundo que
configuramos enquanto vivemos. Ao mesmo tempo, efetivamos
nosso ser biológico no processo de existir como seres humanos
ao viver imersos no conversar219.
O amor, por exemplo, é o domínio de condutas relacionais
por meio das quais o outro surge como um legítimo outro em
convivência com alguém; e a agressão é o domínio dos compor-
tamentos relacionais dos quais o outro é negado como um legí-
timo outro em convivência com alguém. Nós, seres humanos,
somos seres pertencentes ao presente de uma história amoro-
sa, não de agressão ou de competição220.
Por fim, existe uma terceira oposição que separa razão e
amor. Pode-se dizer que a razão inspira a lealdade ao próprio
self. O amor, por outro lado, apela para a solidariedade pelo
Outro, e assim implica a subordinação da própria pessoa a algo
dotado de maior importância ou valor221.

218 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 19. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1999. p. 44.
219 MATURANA, Humberto R.; VERDEN-ZÖLLER, Gerda. AMAR E BRINCAR: fun-
damentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotti e lia Diskin.
São Paulo: Palas Athena, 2004. p. 9.
220 MATURANA, Humberto. Formação humana e capacitação. Tradução de Jaime
A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 14-15.
221 BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias
vividas. Tradução de José Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
112
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Nessa órbita, toda atividade humana ocorre em conversa-


ções, quer dizer, num entrelaçamento da linguagem (coordena-
ções comportamentais consensuais) como o emocionar. Por
isso, as conversações de capacitação entrecruzam-se com as
conversações de formação humana222. Por conta disso, a refle-
xão vai mais além, no aspecto de se analisar a educação no Bra-
sil, para de fato verificar se na escola é possível trabalhar com a
lógica de outro olhar multidisciplinar de justiça social voltada
ao gênero, dada a equação: direito e educação, uma parceria de
cidadania.
A educação existe a partir da existência humana, por isso
sua vinculação com a história da espécie humana. Por conta
disso, no período Pré-histórico, pode-se identificar o perfil de
uma educação com o fim específico de sobrevivência, que ca-
racterizava-se pela naturalidade em sua transmissão, conforme
as necessidades apresentadas pelo cotidiano223. Da descoberta
da pedra lascada ao domínio do fogo, bem como o sedentaris-
mo do homem, percebeu-se veementemente a importância da
educação ligada à condição humana, associada à cultura, ao
conhecimento de passagem de rituais, técnicas de artes de
combate de guerra para o domínio e exploração ou descoberta
de novas terras224. A educação consiste, primeiramente, em um
processo de transformação intrínseca, em um processo de
conscientização permanente do qual tem origem o comporta-
mento. Ele é a consumação, a efetivação dessa transformação225.
Na Constituição mexicana de 1917, na Constituição alemã de
1919, na Constituição espanhola de 1931 e na Constituição so-
viética, encontram-se as primeiras manifestações de reconhe-

222 MATURANA, Humberto. Formação humana e capacitação. Tradução de Jaime


A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2000.
223 VERONESE, Josiane Rose Petry; OLIVEIRA, Luciene de Cássia Policarpo. Edu-
cação versus Punição: a educação e o direito no universo da criança e do ado-
lescente. Blumenau: Nova Letra, 2008. p. 14.
224 Idem, p. 14.
225 Idem, p. 74.
113
Justiça Restaurativa & Gênero

cimento do direito à educação. No entanto, mesmo com a cria-


ção dos sistemas públicos de educação que abrangiam a socie-
dade, a obrigatoriedade à educação dar-se-ia depois da Segun-
da Guerra Mundial, quando os Estados, em destaque os mais
desenvolvidos, investiram recursos significativos na área edu-
cacional, consolidando o compromisso social226. De igual modo,
os tratados internacionais sobre os direitos humanos são im-
portantes, pois expressam direitos que os Estados devem reco-
nhecer, proteger e promover. Nos primeiros artigos da Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos, percebe-se que a reto-
mada dos ideais da Revolução Francesa, os valores supremos
da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens,
são apresentados no âmbito universal. E na introdução consta
que a transformação desse ideal comum em direitos efetivos
far-se-ia progressivamente, pela adoção, no plano nacional e
internacional, de medidas de ensino e educação227.
Da educação se ocupa o artigo XXVI: “Todos têm direito à
educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos nos
graus elementares e fundamentais. A instrução elemen-
tar será obrigatória […]. A instrução será orientada no
sentido do pleno desenvolvimento da personalidade
humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos
do homem e pelas liberdades fundamentais.228

Do direito à educação, em decorrência da universalidade


dos direitos fundamentais, foram intensificadas, a partir da
Segunda Guerra Mundial, as iniciativas com a finalidade de se
conferir um colorido normativo ao seu reconhecimento. A con-
sagração do direito à educação, como não poderia deixar de

226 GORCZEVSKI, Clóvis; PIRES, Francisco L. R. S. Educação – breve histórico da


conquista de um direito fundamental. In: Clóvis Gorczevski (Org.). Direito e
Educação: a questão da educação com enfoque jurídico. Porto Alegre: UFRGS,
2006, p. 16-17.
227 Idem, p. 18-19.
228 Idem, p. 19.
114
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

ser, tem sido constantemente lembrada nos números tratados,


cartas de princípios e acordos internacionais, que buscam esta-
belecer a pauta dos direitos consagradores da dignidade da
pessoa humana229. A educação do Estado surgiu com a Revolu-
ção Francesa. Antes, a educação era vista como interesse priva-
do, ou seja, não era considerada direito a ser garantido pelo
Poder Público. A tarefa de educar crianças e adolescentes cabia,
assim, às famílias, sendo, por isso, um privilégio de poucos.
Com o advento do Estado moderno, a principal forma de edu-
cação passou a ser a escolarização oferecida pelo Estado. A par-
tir de então, a educação passou a ser considerada um direito de
todo cidadão230. A garantia da educação como concretização do
direito ao desenvolvimento de crianças e adolescente trazida
pela Doutrina da Proteção Integral está expressa de forma muito
clara na Constituição Federal (arts. 205 a 214), na Lei 9.394/96
(Lei de Diretrizes e Bases da Educação, arts. 4º e 7º) e na Lei
8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente, arts. 53 a
59)231.
Nos últimos tempos, a educação vem assumindo papel
significativo no cenário central de reconhecimento por parte
dos Estados, no que tange a ser caminho para o desenvolvimen-
to humano e econômico das sociedades. Prossegue Dimenstein:
[…] nenhuma nação conseguiu progredir sem investir na
educação, o que significa investir na infância. E isto por
um motivo bem simples: ninguém planta nada se não ti-
ver uma semente. E árvores doentes não dão bons fru-

229 TESSMANN, Erotides K. O Direito e suas perspectivas de efetividade frente às


normas constitucionais vigente no Brasil. In: GORCZEVSKI, Clovis (Org.). Di-
reito e Educação: a questão da educação com enfoque jurídico. Porto Alegre:
UFRGS, 2006. p. 79.
230 VERONESE, Josiane Rose Petry; OLIVEIRA, Luciene de Cássia Policarpo. Edu-
cação versus Punição: a educação e o direito no universo da criança e do ado-
lescente. Blumenau: Nova Letra, 2008. p. 76.
231 Idem, p. 85.
115
Justiça Restaurativa & Gênero

tos. A viagem pelo conhecimento da infância é a viagem


pelas profundezas de uma nação.232

Ao encontro disso, o Dicionário de Língua Portuguesa de-


fine educação como: “o processo de desenvolvimento da capaci-
dade física, intelectual ou moral da criança e do ser humano em
geral, visando a sua melhor integração individual e social”233.
A educação não se refere exclusivamente ao processo de
desenvolvimento da capacidade intelectual de cada indivíduo,
vai muito além, tem a ver principalmente com a capacidade
intelectual e moral do ser humano. Portanto, reconhecer a edu-
cação como vínculo de emancipação do sujeito para o exercício
da sua cidadania é o maior desafio para os membros da socie-
dade que labutam pela ética enquanto pilar da condição huma-
na, no encontro da humanização.
Os desafios da educação não se localizam apenas na esco-
la, considerando que a família é o primeiro elemento socializa-
dor do ser humano, é nela que o sujeito nasce, se desenvolve e
obtém os primeiros registros de afeto, proteção, carinho e tam-
bém de limites. Num segundo momento, vem a escola, e nela
solidifica-se o que a família com mais ou menos intensidade
ensinou. “A educação pretende desenvolver na criança a per-
cepção dos valores e facilitar sua adesão a práticas correspon-
dentes a tais valores”234.
A escola é uma das principais instituições que atuam co-
mo alicerce na formação dos cidadãos, capazes de exercer ple-
namente os seus direitos e deveres sociais e políticos, mas ca-
berá à família dar sustentação a essa base, tornando-a mais

232 DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel: a infância, a adolescência e os


Direitos Humanos no Brasil. 20. ed. São Paulo: Ática, 2002, p.18.
233 FERREIRA, Aurélio Buarque Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Positivo, 2004.
234 PEREIRA JUNIOR, Antonio Jorge. Direitos da Criança e do Adolescente em face
da TV. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 160.
116
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

firme com ajuda dos valores éticos, sociais e morais, necessá-


rios à convivência humana.
Gadotti preceitua que existem algumas diretrizes básicas
que devem ser levadas a sério, dentre as quais estão: a autono-
mia da escola, incluindo uma gestão democrática, a valorização
dos profissionais de educação e de suas iniciativas pessoais.
Oportunizar uma escola de tempo integral para os alunos, bem
equipada, capaz de lhe cultivar a curiosidade e a paixão pelos
estudos, a valorização de sua cultura, propondo-lhes a esponta-
neidade e o inconformismo. Inconformismo traduzido no senti-
mento de perseverança nas utopias, nos projetos e nos valores,
elementos fundadores da ideia de educação e eficazes na batalha
contra o pessimismo, a estagnação e o individualismo235.
A escola cidadã une tanto os projetos individuais quanto
os coletivos e é a partir dessa união que se alcançarão resulta-
dos significativos no campo social e no político. Pois se não for
possível o indivíduo sonhar, fantasiar, sua personalidade será
ilusória, não existirá, conduzindo à morte física no contexto
social enquanto a ausência de projetos coletivos traz conse-
quências irreparáveis, como o surgimento de conflitos236.
Portanto, é na escola, com o auxílio dos professores, que
se alcançarão melhores resultados diante desse contexto. E é a
própria Constituição que preceitua que a educação é direito de
todos e dever do Estado e da Família, devendo ser promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
[…] a educação sozinha não transforma a sociedade, sem
ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é pro-
gressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da

235 GADOTTI, Moacir. Escola cidadã: uma aula sobre a autonomia da escola. 5. ed.
São Paulo. Cortez, 1999.
236 MACHADO, José Nilson. Ensaios transversais: Cidadania e Educação. São Pau-
lo. Escrituras, 1977. p. 71.
117
Justiça Restaurativa & Gênero

eqüidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio,


da convivência com o diferente e não de sua negação,
não temos outro caminho senão viver a nossa opção. En-
carná-la, diminuindo, assim, a distância entre o que di-
zemos e o que fazemos.237

Dito isso, é imperioso que se faça a distinção entre Edu-


cação e Ensino, apesar de comumente as duas serem utilizadas
como sinônimos. A educação, segundo Bittar238, encerra um
tema mais amplo do que o ensino. Para o autor, a educação en-
volve “todos os processos culturais, sociais, éticos, familiares,
religiosos, ideológicos, políticos que se somam para a formação
do indivíduo”.
Por sua vez, o artigo 205 da Constituição dispõe de três
finalidades, quais sejam: primeiramente, por meio dela, desen-
volver a integralidade do ser humano, depois seu preparo para
a construção de uma cidadania ativa, e a última finalidade diz
respeito à qualificação profissional. Como referencia Dallari239,
a educação é um processo de aprendizagem e aperfeiçoamento
e o ensino é uma das tarefas da educação, uma vez que se con-
centra mais na transmissão de conhecimentos.
Conforme Chrispino, o conflito pode ser entendido como
toda opinião divergente ou maneira diferente de ver ou inter-
pretar acontecimentos. Não existe a noção estrita de erro e de
acerto, mas de posições que são defendidas frente a outras,
diferentes240. Assim, há a necessidade de trabalhar com o con-
ceito de despolarização, que consiste no ato ou efeito de não
237 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Paz e Terra. Rio de Janei-
ro, 1981.
238 BITTAR, Eduardo. C. B. Direito e Ensino Jurídico – Legislação Educacional. São
Paulo: Atlas, 2001. p. 15.
239 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e cidadania. São Paulo: Moder-
na, 1999. p. 47.
240 CHRISPINO, A. Gestão do conflito escolar: da classificação dos conflitos aos
modelos de mediação. Ensaio: Aval. Pol. Públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 15, n. 54,
p. 11-28, jan./mar. 2007.
118
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

perceber um diálogo ou um conflito como se houvesse duas


partes antagônicas ou dois polos distintos, mas a partir do
pressuposto de que todos tenham interesses congruentes241.
Azevedo ressalta que autores como Rubin e Kriesberg contri-
buem com o entendimento do conflito, destacando que há uma
progressiva escalada nas relações conflituosas, sendo esta re-
sultante de um círculo vicioso de ação e reação. Cada reação
torna-se mais severa que a ação precedente, criando nova
questão ou ponto de disputa, ou seja, uma espiral de conflito242.
Todavia, o conflito constitui-se parte integrante da vida e
da atividade social, originando-se da diferença de interesses, de
desejos e de aspirações243. Além disso, os conflitos estão pre-
sentes em todos os âmbitos e esferas sociais, sendo a escola um
ambiente propício para o desencadeamento de conflitos e, con-
sequentemente, da violência. A violência é um problema cres-
cente que abrange todas as esferas sociais, sendo declarada
como problema central de saúde pública na 49ª Assembleia
Mundial de Saúde, definida como:
O uso intencional de força ou poder físico, sob forma de
ameaça ou ação efetiva, contra si mesmo, outra pessoa
ou grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes
probabilidades de ocasionar lesão, morte, dano psíquico,
alterações de desenvolvimento ou privações.244

Conforme Silva e Salles, a problemática da violência vem


provocando crescente perplexidade e sendo objeto de preocu-

241 AZEVEDO, A. G. (Org.). Manual de Mediação Judicial. Ministério da Justiça.


Brasil, 2009.
242 Idem.
243 CHRISPINO, A. Gestão do conflito escolar: da classificação dos conflitos aos
modelos de mediação. Ensaio: Aval. Pol. Públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 15, n. 54,
p. 11-28, jan./mar. 2007.
244 KRUG, E. G.; DAHLBERG, L. L.; MERCY, J. A.; ZWI, A. B.; LOZANO, R. (Eds.).
World report on violence and health. Geneva, World Health Organization,
2002. p. 5.
119
Justiça Restaurativa & Gênero

pação no meio escolar245, na medida em que esse ambiente apa-


rece como um espaço onde se multiplicam diferentes formas de
violência, as quais, segundo Ruotti, estariam interferindo ou
mesmo inviabilizando o trabalho educativo246.
Nos relatos de professores de escola pública, a violência
e, principalmente, o desrespeito estão banalizados, tendo, in-
clusive, atos que deixam até de ser percebidos como violen-
tos247. Entretanto, vale lembrar que, com a advinda da massifi-
cação da educação, ao mesmo tempo que esta pôde garantir o
acesso dos alunos à escola, também a expôs a um contingente
de alunos cujo perfil ela não estava preparada para absorver.
Com a massificação, trazem-se para o mesmo espaço alunos
com diferentes vivências, expectativas, valores e culturas, per-
manecendo a escola, contudo, a mesma248.
Segundo as ideias do autor mencionado, parece evidente
que esse conjunto de diferenças pode vir a originar conflitos
que, quando não trabalhados, provocam manifestação violenta,
sendo esta a causa primordial da violência escolar. Além disso,
outra possível causa de conflitos é a dificuldade de comunica-
ção e de condições para estabelecer o diálogo, sendo as diver-
gências de opinião entre alunos e professores, entre alunos e
entre os professores as possíveis causas de conflitos249.
Partindo-se dessas considerações, constrói-se, como con-
sequência, uma atmosfera de receios, medos e de suspeições

245 SILVA, J. M. A. P.; SALLES, L. M. F. A violência na escola: abordagens teóricas e


propostas de prevenção. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 2, p.
217-232, 2010.
246 RUOTTI, C. Violência em meio escolar: fatos e representações na produção da
realidade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 339-355, jan./abr.
2010.
247 SILVA, J. M. A. P.; SALLES, L. M. F. A violência na escola: abordagens teóricas e
propostas de prevenção. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. especial 2, p.
217-232, 2010.
248 CHRISPINO, A. Gestão do conflito escolar: da classificação dos conflitos aos
modelos de mediação. Ensaio: Aval. Pol. Públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 15, n. 54,
p. 11-28, jan./mar. 2007.
249 Idem.
120
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

que incidem diretamente sobre a conduta não só dos alunos e


sobre as condições de vida que estes possuem fora da escola,
como de toda a comunidade escolar250.
Assim, perante essas circunstâncias, são necessárias in-
tervenções que promovam os Círculos de Paz251 das práticas
restaurativas. Além disso, a promoção de ações requer uma
conexão com a realidade e que esta ocorra de maneira contí-
nua, tanto na prevenção à violência quanto na resolução de
conflitos de forma não violenta, possibilitando restaurações.
Contudo, questionamentos a respeito do que consiste a
cultura de paz e como trabalhá-la são pertinentes, na medida em
que pensar esse conceito no âmbito escolar é um importante
instrumento para a construção de uma educação para a paz252.
A ideia de trabalhar com uma abordagem da escola intei-
ra, incluindo conscientização, pedagogia, mudanças estruturais
e criação de cultura ética, talvez pareça tarefa grande demais
para o educador. Pode ser interessante começar a avaliar quais
são os elementos restaurativos que já estão sendo utilizados.
“Comece como que você já faz, e passe a fazer isso melhor” de-
veria ser a mantra do educador. Comece com a crença de que,
quando celebramos o que está certo, teremos a energia, criati-
vidade e inspiração para trabalhar e mudar o que está errado253.
Nesse sentido, o desafio e a inovação estão em utilizar as
práticas restaurativas nas escolas enquanto prática de educa-
ção, que constrói um sentido de comunidade e melhora o
aprendizado.

250 RUOTTI, C. Violência em meio escolar: fatos e representações na produção da


realidade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 339-355, jan./abr.
2010.
251 PRANIS, Kay. Processos Circulares. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo:
Palas Athena, 2010.
252 MARCHETTO, G. L. A. Educação para a Paz: um caminho necessário. São Pau-
lo: Paulinas, 2009.
253 AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para
escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Tradução de Tônia
Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. p. 106.
121
Justiça Restaurativa & Gênero

3.3 O USO DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS PARA CONSTRUIR


RELACIONAMENTOS SAUDÁVEIS: O CÍRCULO
MASCULINO/FEMININO254

Segundo Maldonado, houve uma modificação do conceito


de paz nas últimas décadas, abrangendo uma visão holística de
integração entre a busca da paz interior com a busca da paz
entre os homens e com a natureza255. Portanto, educar para a
paz consiste na busca do respeito mútuo, percebendo e indig-
nando-se diante de qualquer situação de violência física ou psi-
cológica, contra si mesmo, contra o outro ou contra o ambiente.
Além disso, educar para a paz é uma construção cotidiana que
se baseia no respeito e no cuidado, acreditando na mudança256.
Além disso, Marchetto salienta que não é possível falar em edu-
cação para a paz sem incluir as relações, sendo a primeira mu-
dança necessária estar no próprio indivíduo, pois a paz não se
ensina, mas se vive257. Dessa forma, os Círculos de Construção
de Paz têm se mostrado importantes ferramentas para a pro-
moção de uma educação para a paz. Esses Círculos descendem
diretamente dos tradicionais Círculos de Diálogo comuns aos
povos indígenas da América do Norte258.
O círculo é um símbolo potente e sua forma implica comu-
nidade, conexão, inclusão, justiça e integridade. Fazer os alunos
sentarem em fileiras, como nas salas de aula convencionais, onde
eles apenas veem o professor e as costas de alguns de seus cole-

254 WATSON-BOYES, Carolyn; PRANIS, Kay. No coração da esperança: guia de


práticas circulares – o uso de círculos de construção de paz para desenvolver
a inteligência emocional, promover a cura e construir relacionamentos sau-
dáveis. Tradução de Fátima de Bastiani. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, 2011.
255 MALDONADO, M. T. Os Construtores da Paz: caminhos da prevenção da vio-
lência. São Paulo: Moderna, 1997.
256 MARCHETTO, G. L. A. Educação para a Paz: um caminho necessário. São Pau-
lo: Paulinas, 2009.
257 Idem.
258 PRANIS, Kay. Processos Circulares. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo:
Palas Athena, 2010.
122
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

gas, limita a conexão e a conversação; não é um arranjo apro-


priado, pois uma reunião em círculo, onde não há primeiro nem
último lugar por sua própria natureza circular, estabelece uma
igualdade de condições para todos os participantes.
O uso de círculos para se reunir e discutir questões de-
senvolveu-se em quase todas as culturas. Os primeiros círculos
humanos resultaram da formação natural de pessoas sentadas
ao redor de uma fogueira, estabelecendo a melhor maneira de
distribuir eficientemente o acesso ao calor e à luz. Quando as
escolas e outros grupos dispõem as pessoas em um círculo, não
há a fogueira, mas sim uma questão ou um tópico importante a
todos que estão reunidos. Por exemplo, o círculo para a turma
de quarto ano, incomodada com o bullying, trouxe a promessa
de os alunos se comportarem uns com os outros de um modo
mais bondoso, respeitoso e generoso259.
Os autores distinguem justiça restaurativa de práticas
restaurativas, quando mencionam:
[…] o conceito de práticas restaurativas tem suas raízes
na justiça restaurativa, uma maneira de encarar a justiça
criminal que se concentra em reparar o dano causado às
pessoas e aos relacionamentos, em vez de punir os infra-
tores (apesar de que a justiça restaurativa não impede a
prisão de infratores ou outras sanções). Originária dos
anos 70 como uma mediação entre vítimas e infratores,
nos anos 90 a justiça restaurativa expandiu-se e incluiu
comunidades de cuidados também, com a participação
das famílias e dos amigos das vítimas e dos infratores
nos processos colaborativos chamados “reuniões restau-
rativas” e “círculos”.260

259 BOB COSTELLO, JOSHUA WACHTEL E TED WACHTEL. Círculos restaurativos


nas escolas. Construindo um sentido de comunidade e melhorando o apren-
dizado. Tradução de Gisele Klein. International Institute for Restorative prac-
tices, 2011, Lima, Peru, p. 1.
260 COSTELLO, Bob; WACHTEL, Joshua; WACHTEL, Ted. Círculos restaurativos
nas escolas. Construindo um sentido de comunidade e melhorando o apren-
123
Justiça Restaurativa & Gênero

De qualquer sorte, as práticas restaurativas estão dentro


do contexto de justiça, de forma que podem ser empregadas
nas instituições que constituem a sociedade, como, por exem-
plo, nas escolas.
Diferente das formas habituais de prevenção de conflitos,
a encenação chega como uma proposta simples, divertida e
eficiente. Não é preciso esperar que as crianças façam algo erra-
do para ajudá-las a desenvolver empatia e compreensão quanto
aos danos causados pela violência e outras más condutas.
Professores e conselheiros do ensino fundamental estão
começando a usar encenações de reuniões restaurativas como
técnica preventiva e a descobrir seu potencial educativo. Uma
encenação organizada por uma conselheira de ensino funda-
mental em uma turma de alunos da sexta série exemplificou
bem isso. O incidente imaginário envolvia uma garota continua-
mente ridicularizada por dois garotos de sua turma, até o ponto
de os pais telefonarem para a escola devido ela ter dito que já
não queria ir às aulas.
Com antecedência, a conselheira havia discutido o concei-
to de encenação com os alunos, descrito no incidente da ence-
nação, pedido que voluntários assumissem os papéis e, então,
deu àqueles que tinham papéis algum tempo para discutir co-
mo achavam que os indivíduos se sentiriam e o que poderiam
fazer. No dia seguinte, foi realizada a encenação da reunião
restaurativa. Os participantes formaram um círculo no centro
da sala, com a conselheira agindo como facilitadora. O restante
da turma de sexta série e os convidados, inclusive a autora do
presente trabalho, sentaram-se ao redor para observar.
A discussão da turma após o enceramento da atividade
foi notável. Os alunos imediatamente identificaram as mesmas
questões-chave que um grupo de adultos abordaria. Uma puni-

dizado. Tradução de Gisele Klein. Lima: International Institute for Restorative


Practices, 2011. p. 8.
124
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

ção é efetiva? Esse tipo de prática será capaz de alterar um


comportamento prejudicial? Isso ajudará a vítima?
A implementação de práticas restaurativas, como a ence-
nação acima narrada, nas escolas e sob a perspectiva da janela
da disciplina social, representa grandes oportunidades de êxito
na resolução de conflitos, uma vez que sua premissa básica é
que as pessoas sejam mais felizes e tenham mais probabilidade
de realizar mudanças positivas. No caso, a janela é composta de
dois eixos: apoio e controle. Tradicionalmente, esses conceitos
podem parecer contraditórios: que uma autoridade somente
tenha a escolha de ser controladora e paternalista, ou então
acolhedora e maternal. Na verdade, uma terceira opção mostra
como ambas as abordagens, úteis e necessárias, podem funcio-
nar juntas261.
Para Ted Wachtel262, um sistema social produz o que se
denomina Janela da Disciplina Social, segundo a combinação de
duas forças vetoriais denominadas controle e apoio. Esses ve-
tores podem corresponder à abordagem clássica entre punição
e tratamento, mas também podem ser relacionados à combina-
ção entre as políticas públicas de segurança e assistência social
e, ainda, à educação com combinação de afetos e limites. Uma
combinação ideal, com boas doses de ambos os componentes, é
o que daria lugar a uma disciplina social restaurativa, represen-
tada na Figura 1 a seguir:

261 COSTELLO, Bob; WACHTEL, Joshua; WACHTEL, Ted. Círculos restaurativos


nas escolas. Construindo um sentido de comunidade e melhorando o aprendi-
zado. Tradução de Gisele Klein. Lima: International Institute for Restorative
Practices, 2011. p. 8.
262 Idem, p. 10.
125
Justiça Restaurativa & Gênero

Figura 1: Janela da Disciplina Social.

A Figura 1 mostra o apoio em uma direção, de baixo a al-


to, e o controle no outro eixo, mais quatro quadrantes repre-
sentando quatro possibilidades para a disciplina social263. A
parte superior esquerda, mostrando alto controle e baixo su-
porte, representa a abordagem autoritária ou punitiva: fazer
coisas contra as pessoas. Essa abordagem estabelece regras e
mantém as pessoas sob controle, com pouca necessidade de
explicações. Levada ao extremo, essa abordagem é fria e distan-
te: autoritária. O quadrado do canto inferior direito – baixo

263 COSTELLO, Bob; WACHTEL, Joshua; WACHTEL, Ted. Círculos restaurativos


nas escolas. Construindo um sentido de comunidade e melhorando o aprendi-
zado. Tradução de Gisele Klein. Lima: International Institute for Restorative
Practices, 2011. p. 10.
126
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

controle e alto suporte destacam a abordagem permissiva. Essa


atitude presume que apenas com o acolhimento ocorrerão mu-
danças positivas, mas isso geralmente conduz a um sentimento
de proteção e à realização de coisas para as pessoas. Não forne-
ce nenhum mecanismo para agir e estabelecer limites claros. A
parte inferior esquerda, baixo suporte e baixo controle, repre-
senta não fazer nada. Essa é uma postura negligente, e é destru-
tiva. A área na parte superior direita, onde tanto o controle
quanto o apoio são altos, é a área que desejamos destacar. Ela
representa a síntese positiva dos melhores aspectos das abor-
dagens punitiva e permissiva. Ela combina altos níveis de apoio
e acolhimento para pessoas que são bem-sucedidas e realizam
mudanças positivas264. Conforme maior ou menor a dosagem
entre “controle” (disciplina e limites, não significando necessa-
riamente imposição de castigos ou punições) e “apoio” (ou de
acolhimento, assistência e suporte ao ofensor, não significando
necessariamente imposição de tratamento), resultam contextos
de controle social diversos. Baixo controle e baixo apoio geram
uma disciplina social negligente. Alto controle e baixo apoio
geram uma disciplina social punitiva. Baixo controle a alto
apoio geram uma disciplina social permissiva. Uma disciplina
social restaurativa seria, por fim, aquela capaz de simultanea-
mente combinar altas dosagens de controle com altas dosagens
de apoio265.
A partir desse enfoque, é fundamental conhecer algumas
perguntas restaurativas aplicadas nos círculos, com a finalida-
de de lidar com comportamentos desafiadores e com alguém
que foi prejudicado pelas ações de outras pessoas. Onde as duas

264 COSTELLO, Bob; WACHTEL, Joshua; WACHTEL, Ted. Círculos restaurativos


nas escolas. Construindo um sentido de comunidade e melhorando o aprendi-
zado. Tradução de Gisele Klein. Lima: International Institute for Restorative
Practices, 2011. p. 11.
265 BRANCHER, Leoberto. Iniciação em Justiça Restaurativa – Subsídios de Práti-
cas Restaurativas para a Transformação de Conflitos. Porto Alegre: Ajuris,
2006. p. 31.
127
Justiça Restaurativa & Gênero

partes prejudicaram-se mutuamente, ambas as listas de per-


guntas podem ser utilizadas.
As perguntas básicas para responder um comportamen-
to desafiador são: O que houve? Em que você estava
pensando no momento? Em que pensou desde então?
Quem foi o afetado por suas atitudes? De que maneira?
Em sua opinião, o que é preciso fazer para consertar as
coisas? As perguntas básicas para ajudar alguém que foi
prejudicado pelas ações de outra pessoa são: Em que vo-
cê pensou ao perceber o que havia acontecido? Que im-
pacto o incidente causou em você e nos outros? Para vo-
cê, qual foi a coisa mais difícil? Em sua opinião, o que é
preciso fazer para consertar as coisas?266

Essas perguntas procuram trazer à tona a história dos


atos e dos eventos, os pensamentos associados a eles e as solu-
ções para resolver as coisas, em vez de culpar os outros e pro-
curar justificativas para determinado comportamento. As per-
guntas criam um circuito de feedback para que as pessoas pos-
sam ouvir como seus atos afetaram outras pessoas, e encorajá-
-las a se responsabilizarem por tais atos. Elas também abrem
caminhos para se encontrarem soluções para os problemas267.
As perguntas restaurativas tendem a não culpar ninguém e
serem abertas, em vez de tendenciosas e direcionadas. Elas
promovem a introspecção e beneficiam tanto a pessoa a quem
as perguntas são feitas como também as pessoas que as fa-
zem268. Muitas perguntas além das mencionadas acima podem
ser consideradas restaurativas. De fato, conforme um especia-
lista em práticas restaurativas, as perguntas listadas são as

266 COSTELLO, Bob; WACHTEL, Joshua; WACHTEL, Ted. Círculos restaurativos


nas escolas. Construindo um sentido de comunidade e melhorando o aprendi-
zado. Tradução de Gisele Klein. Lima: International Institute for Restorative
Practices, 2011. p. 12.
267 Idem, p. 12.
268 Idem, p. 12.
128
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

perguntas padrão que ele usa quando uma situação envolve


muito claramente uma vítima e um infrator, ou se ele não está
bem certo do que mais perguntar em dada situação. Muitas
perguntas restaurativas ótimas não estão escritas e surgem
naturalmente269. Partindo da ideia, as perguntas empregadas
adequadamente ao caso concreto são um dos pontos a serem
observados para o sucesso dos círculos. Nessa direção, ainda, o
facilitador precisa ter as metas claras, estabelecer um ponto
positivo, manter o foco no fato, ouvir genuinamente o que as
pessoas têm a dizer, o que altera a atmosfera e a dinâmica de
qualquer situação, e conseguir alguns aliados. Seguindo essa
linha, a função mais crítica das práticas restaurativas é restau-
rar relacionamentos, e tanto nos processos restaurativos for-
mais quanto informais se estimula a expressão do afeto ou da
emoção, o que requer do facilitador de um círculo melhor com-
preensão sobre a psicologia do afeto de Silvan S. Tomkins270.
Tomkins identificou nove afetos distintos a fim de explicar a
expressão da emoção em todos os seres humanos. A maioria
dos afetos é definida em pares de palavras representando a
expressão menos intensa de um determinado afeto. Os seis
afetos negativos incluem raiva–ira, medo–terror, aflição–
angústia, aversão, repulsa olfativa e vergonha–humilhação. Os
dois afetos positivos são interesse–empolgação e contentamen-
to–alegria. Como os círculos desenvolveram-se em vários luga-
res e culturas diferentes, eles evoluíram, trazendo certos pro-
tocolos, rituais e símbolos, todos importantes às culturas. Al-
guns facilitadores utilizam rituais ou simbologias aos seus cír-
culos para demarcar e designar com o objeto da palavra de
quem é a vez de falar. O Instituto Latino-Americano de Práticas
Restaurativas reconhece a importância dos rituais nos círculos,

269 COSTELLO, Bob; WACHTEL, Joshua; WACHTEL, Ted. Círculos restaurativos


nas escolas. Construindo um sentido de comunidade e melhorando o aprendi-
zado. Tradução de Gisele Klein. Lima: International Institute for Restorative
Practices, 2011. p. 13.
270 Idem, p. 19.
129
Justiça Restaurativa & Gênero

bem explorados pela autora Kay Pranis, que se vale dos rituais
nativos americanos. Por outro lado, os autores optaram apenas
em falar sobre os elementos fundamentais dos círculos, sem
referências específicas associadas aos rituais específicos de
diferentes culturas, muito embora símbolos e rituais específi-
cos possam melhorar a experiência do círculo para as pessoas
envolvidas271. O círculo é um espaço intencional formatado pa-
ra: apoiar os participantes a apresentarem seu “eu verdadeiro”,
fazer com que a interconectividade fique visível, mesmo em
face de diferenças muito importantes; reconhecer e acessar os
dons de cada participante, evocar a sabedoria individual e cole-
tiva, engajar os participantes em todos os aspectos da experi-
ência humana e praticar comportamentos baseados nos valores
quando possa parecer arriscá-lo fazê-lo272. Além disso, traba-
lhar com os círculos restaurativos é uma excelente metodologia
que funciona na lógica da definição de transformação de confli-
tos, que Lederach propõe:
Transformação de conflitos é visualizar e reagir a en-
chentes e vazantes do conflito social como oportunida-
des vivificantes de criar processos de mudanças constru-
tivos, que reduzam a violência e aumentem a justiça nas
interações diretas e nas estruturas sociais, e que respon-
dam aos problemas da vida real dos relacionamentos
humanos273.

271 COSTELLO, Bob; WACHTEL, Joshua; WACHTEL, Ted. Círculos restaurativos


nas escolas. Construindo um sentido de comunidade e melhorando o aprendi-
zado. Tradução de Gisele Klein. Lima: International Institute for Restorative
Practices, 2011. p. 23.
272 WATSON-BOYES, Carolyn; PRANIS, Kay. No coração da esperança: guia de
práticas circulares – o uso de círculos de construção de paz para desenvolver
a inteligência emocional, promover a cura e construir relacionamentos sau-
dáveis. Tradução de Fátima de Bastiani. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, 2011. p. 35.
273 LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos/Howard Zehr. Tradução de
Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2012. p. 27.
130
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

Sob esse ponto de vista, coaduna-se que os conflitos ine-


rentes da natureza humana são potencializadores para o cres-
cimento pessoal e coletivo, porém é fundamental que se deseje
parar, pensar e compreender o cenário que eles surgem e se
instauram.
Por conta disso, é oportuna a contribuição de Kay Pranis
e Carolyn Watson-Boyes, para se trabalhar a questão do gênero
nas escolas, denominado o círculo do masculino/feminino. O
objetivo dessa proposta é explorar os estereótipos masculino e
feminino e a pressão dessas mensagens sociais na imagem que
alguém tem de si mesmo. Sugere-se o objeto da palavra, itens
para o centro do círculo, uma folha individual de exercício mas-
culino/feminino e uma caneta para cada um. É sempre impor-
tante que se marque o início desse espaço intencional de círcu-
lo, com uma abertura apropriada ao tema que está relacionado
ao gênero274. O interesse nas práticas restaurativas em geral, e
em círculos especificadamente, tem crescido à medida que as
escolas e as organizações que ajudam jovens em áreas urbanas,
suburbanas e rurais enfrentam problemas comportamentais
cada vez maiores. As práticas restaurativas ajudam a lidar com
mau comportamento, além de problemas mais graves, incluin-
do violência de gênero, bullying e crimes. A disciplina punitiva
tradicional não consegue obter mudanças positivas no compor-
tamento dos alunos e deixa de abordar as regras do decoro
básico. Entretanto, o uso dos círculos proativos antes mesmo
dos problemas ocorrerem dá início ao progresso de melhora no
ambiente escolar275. A violência de gênero é um fenômeno social

274 WATSON-BOYES, Carolyn; PRANIS, Kay. No coração da esperança: guia de


práticas circulares – o uso de círculos de construção de paz para desenvolver
a inteligência emocional, promover a cura e construir relacionamentos sau-
dáveis. Tradução de Fátima de Bastiani. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, 2011. p. 161.
275 COSTELLO, Bob; WACHTEL, Joshua; WACHTEL, Ted. Círculos restaurativos
nas escolas. Construindo um sentido de comunidade e melhorando o aprendi-
zado. Tradução de Gisele Klein. Lima: International Institute for Restorative
Practices, 2011. p. 25.
131
Justiça Restaurativa & Gênero

multifacetal, demanda de estudos e reflexões em diversos pon-


tos interligados que constituem o ser humano na sua existência
humana e social, o que, dentro do universo das escolas, leva as
autoras a refletir sobre um dos nós desse emaranhado de pon-
tos, que diz respeito aos falsos mitos sobre o amor que predis-
põe a violência de gênero em adolescentes e jovens; o que justi-
fica ainda mais que se trabalhe nas escolas a questão de gênero,
de maneira a desconstituir certas percepções culturais a res-
peito das relações socioafetivas com o outro, por meio da disci-
plina restaurativa social. Ainda acerca dos falsos mitos sobre o
amor, existem aqueles que favorecem a violência de gênero e a
dependência emocional e que podem levar a continuar a rela-
ção amorosa violenta. São eles: o amor romântico – a origem da
ideia romântica de que o amor é um amor cortês medieval (sé-
culos XII e XIII); o mito da onipotência – crença de que o amor
pode tudo e, portanto, se há amor verdadeiro, não deve influir
decisivamente nos obstáculos externos ou internos sobre a
parceira; mitos dos ciúmes – crença de que os ciúmes são um
signo de amor e incluso requisito do verdadeiro amor; mito da
metade da laranja – crença de ter elegido a companheira que
está predestinada de alguma forma e a escolha foi a única e
melhor decisão possível. No que versa ao amor romântico, a
projeção de personagens infantis dos desenhos animados, seja
na literatura ou no cinema, pode ser um contributo para a repe-
tição de papéis ou apenas colocar em evidência como de fato se
comportam os adultos e repassam isso às crianças. As meninas
são encantadas por conto de fadas, especialmente pelas prince-
sas da Disney. Em um jornal de grande circulação do Estado276
saiu a seguinte matéria: “Princesas dos desenhos da Disney,
como as de Frozen, em cartaz nos cinemas, refletem conquistas
femininas e mudanças comportamentais da sociedade”. No co-
meço, elas só queriam um príncipe para chamar de seu. Mas, de

276 BRIGATTI, Gustavo. Menos boazinhas, mais complicadas. Zero Hora, segundo
caderno. Porto Alegre, sábado, 18 janeiro de 2014, p. 6-7.
132
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

um tempo para cá, as chamadas princesas da Disney partiram


em busca de aventuras fora de suas torres e conquistaram o
direito de lutar entre os homens e se meterem a salvar o pró-
prio reino. Tudo isso faturando muito, mas muito dinheiro. A
doce e submissa Branca de Neve, de Branca de Neve e os Sete
Anões (1937), que, quando estreou, as mulheres recém tinham
conquistado o direito de votar no Brasil; as impetuosas Anna e
Elsa de Frozen (2013) chegam aos cinemas quando o Brasil tem
uma mulher na presidência da República; as heroínas do uni-
verso Disney, via de regra, espelham o papel da mulher na soci-
edade. Se Aurora esperava ser acordada com um beijo pelo
príncipe encantado em A Bela Adormecida (1959), Ariel (A Pe-
quena Sereia, 1989) decide ir atrás do seu homem, nem que
para isso precise abrir mão de sua bela voz. Por outro lado,
Branca de Neve é a narrativa exemplar da estrutura do poder
como cálculo sobre a vida das mulheres. A mera vida, a vida do
simples corpo que se mantém vivo enquanto não é capturado
pelo poder. Ela representa o ideal da mulher bela e boa, protó-
tipo do gênero feminino, sobre o qual todo poder se exerce co-
mo dominação. Todos decidem por ele. Mais do que pertencer a
um homem ou a uma classe social, Branca de Neve perambula
entre a vida e a morte, entre a casa e a floresta, vítima de um
eterno banimento que a faz sujeito de seu próprio corpo de
mulher, sempre excluído, sempre incluído no cálculo dos de-
mais. A condenação de Branca de Neve é a de ser sempre uma
prisioneira de sua condição feminina. Deverá casar-se com o
príncipe, o bom moço que vem “salvá-la” da morte. Ela, então,
entrará para sempre no reino do domus, de onde não sairá ja-
mais277. Um dos maiores acontecimentos do século 20 é a revo-
lução feminista, então essa mudança de comportamento das
personagens não teria como ser diferente, principalmente por-

277 TIBURI, Marcia. Branca de Neve ou corpo, lar e campo de concentração. As


mulheres e a questão da biopolítica. In: TIBURI, Marcia; VALLE, Bárbara
(Orgs.). Mulheres, filosofia ou coisas do gênero. EdUnisc: Santa Cruz do Sul,
2008. p. 63.
133
Justiça Restaurativa & Gênero

que os contos de fadas são, em parte, um reflexo da busca da


identidade da mulher. E essa busca é constante, porque a soci-
edade está sempre mudando. Se as princesas da Disney são
hoje mais aguerridas, elas também são multiétnicas. Depois de
uma série de garotas brancas e de traços ocidentais, surgiram
uma princesa árabe (Jasmine, de Aladdin), uma chinesa (Mulan,
de Mulan), uma indígena (Pocahontas, de Pocahontas) e uma
negra (Tiana, de A Princesa e o Sapo). Trata-se de uma demanda
da sociedade, que reflete tanto a globalização palpável pós-
-internet quanto também uma preocupação nitidamente mer-
cadológica e financeira de a Disney ter visibilidade e empatia
em diferentes e grandes mercados mundiais. De qualquer sorte,
o fascínio pelo arquétipo da princesa indefesa que espera pelo
príncipe encantado ainda é muito forte entre as mulheres. Não
importa o quão independente a mulher seja, a ideia de ser salva
e provida por um homem não tem idade ou classe social. Daí
que, se a mulher tiver uma postura, sapatinho e roupinha de
princesa, o príncipe vai escolhê-la. Como resistir a isso? Essa
dualidade resiste. Mesmo princesas guerreiras de personalida-
de forte e que não se importam em arranjar um marido, como
Mulan e Merida, querem impressionar seus pais. Ser uma prin-
cesa, ao final, é ser especial278. Contudo, é importante notar que,
mesmo havendo relação mercadológica na venda da ideia da
mulher sendo uma princesa, os efeitos disso tudo na relação
conjugal mútua pode ser devastador e frustrante com relação
ao outro masculino. Dentro desses contos, criam-se falsos mi-
tos de amor e a idealização de um sujeito fictício: um príncipe
nada encantado. Com relação aos ciúmes que podem envolver
ou estar submerso ao problema: pensamentos diários e recor-
rentes de que a(o) namorada(o) está enganando; sensação de
desconfiança e de ameaça permanente que outra pessoa possa
estar interessada no ser amado; angústia de querer saber onde

278 BRIGATTI, Gustavo. Menos boazinhas, mais complicadas. Zero Hora, segundo
caderno. Porto Alegre, sábado, 18 de janeiro de 2014, p. 6-7.
134
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

está o outro, o que está fazendo e com quem; exercício de vigi-


lância e controle excessivo sobre o outro; intolerância de que a
namorada ou companheira se relacione ou a forma como se
comporte com pessoas do mesmo sexo; entre outras, o que de-
sencadeia reações violentas associadas a isso. Interessante ain-
da ressaltar, que a idade do começo do primeiro episódio da
violência de gênero se dá a partir dos 15 anos. Ao encontro
disso, tem-se, em estudos realizados na Espanha, que as vítimas
são menores de 30 anos, bem como seus agressores. As jovens
mulheres que sofrem violência apresentam maior propensão a
distúrbios psiquiátricos, têm menor autoestima, são mais inse-
guras e, quando grávidas, sofrem maiores riscos de abortamen-
tos e mortalidade materna. Podem-se identificar antecipada-
mente parceiros potencialmente violentos quando se percebe
que são excessivamente controladores, têm expectativas irrea-
listas em relação à parceira, apresentam-se cruéis com animais
e crianças, cometem abusos verbais e/ou têm histórico de rela-
ções violentas no passado.
Um envolvimento maior da família com a adolescente,
tendo real preocupação com o seu bem-estar, funciona como
fator protetor às agressões, pois os familiares têm mais condi-
ções de perceber quando algo não vai bem e de oferecer ajuda
na solução das dificuldades que se apresentam279. Os serviços
de saúde também podem desempenhar esse papel ao identifi-
car sinais e sintomas sugestivos de violência. É recomendável
que esses serviços criem espaços para ouvir, entender e enfren-
tar o problema da violência nas relações de gênero entre ado-
lescentes e jovens.
O caso Eloá, um fato que chocou a sociedade, ocorrido em
outubro de 2008 no município de Santo André, estado de São
Paulo, quando a adolescente Eloá, de 15 anos, foi sequestrada

279 TAQUETTE, Stella R. Violência entre namorados na adolescência. Adolescên-


cia & Saúde. Disponível em: <http://www.adolescenciaesaude.com/detalhe_
artigo.asp?id=24#>. Acesso em: 25 jan. 2014.
135
Justiça Restaurativa & Gênero

pelo seu ex-namorado, Lindenbergue, que a manteve sob a mi-


ra de um revólver durante vários dias, culminando com o seu
assassinato após um tiro na região genital e outro na cabeça.
Tudo isso televisionado e exibido à exaustão em várias emisso-
ras. A polícia tentou negociar com o sequestrador, porém sem
sucesso. Durante todo o tempo, entretanto, o caso foi tratado
como uma simples briga de amor entre namorados, não se ava-
liando corretamente a magnitude do risco que a adolescente
estava correndo, principalmente porque o rapaz a sequestrou
sem pedir nada em troca e, pelo que já se conhece e se tem de
registro desse tipo de crime, poderia se prever qual seria o seu
desfecho280. A respeito disso, as vítimas jovens têm mais proba-
bilidade de envolvimento, mais a maternidade prematura, por
volta dos 15 e 20 anos. O fato de pertencerem ou estarem inse-
ridas em grupos violentos e clandestinos de exposição reitera-
da de violência na comunidade deixam-nas mais suscetíveis à
promiscuidade e ao começo prematuro da atividade sexual com
parceiros indevidos. Levam-se ainda em consideração que as
jovens têm baixa autoestima, carências afetivas ou problemas
de afetividade, carecendo de uma rede familiar e social de
apoio. O Ministério da Igualdade da Universidade Complutense
de Madrid, em 2008, em uma das amostras que realizou com
jovens de 17 anos em comunidades autônomas, refletiu que
9,2% das meninas disseram ter vivido situações de maus-tratos
por parte dos meninos; e 13,1% dos meninos dizem ter exerci-
do situações de maus-tratos281.

280 TAQUETTE, Stella R. Violência entre namorados na adolescência. Adolescên-


cia & Saúde. Disponível em: <http://www.adolescenciaesaude.com/detalhe_
artigo.asp?id=24#>. Acesso em: 25 jan. 2014.
281 ESPANHA. Manual de prevención de la violencia de género y buenas prácticas.
Las jóvenes como nuevas víctimas. Subvencionado por Ministerio de Sanidad
Servicios Sociales. Secretaria de Estado de Servicios Sociales e Igualdad.
Unión Europea. España, 2011. p. 3. Disponível em: <http://www.mujeres
enigualdad.com/Manual-de-Prevencion-de-la-VGLas-Jovenes_es_2_135.html>.
Acesso em: 27 maio 2014.
136
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

O Instituto Nacional de la Juventud (Injuve), mencionado


no Manual de prevenção da violência de gênero e boas práti-
cas282, identificou que as jovens são hoje as novas vítimas de
violência: 7,1% do total dos entrevistados pensam que a vio-
lência de gênero é “algo inevitável e que existe desde sempre”,
resultado surpreendente, e mais ainda porque são 9,8% da po-
pulação de 18 a 30 anos que pensam dessa forma, frente a 7,7%
da população maior de 31 anos, igualmente surpreendente que
seja maior a proporção da população adulta que considera
“inaceitável a violência de gênero”, uns 91,4% dos adultos fren-
te a 89,2% dos jovens.
Na mesma direção, os estudos do Ministerio de Igualdad
da Universidad Complutense (2010),
Igualdad y prevención de la violencia de género en la ado-
lescencia”, arroja como conclusión principal que un
23,85% de las chicas y 35,30%, de los chicos no tienen una
buena protección contra la violencia de género y no la
conductas sexistas, y un 13,1% de los niños la han ejercido
situaciones de maltrato283. Un 12,2% de los chicos afirma
que para tener una buena relación de pareja es deseable
que la mujer evite llevar la contraria al hombre, algo que
corrobora solo el 5,8% de las chicas. Asimismo, al plan-
teamiento ‘si una mujer es maltratada por su compañero y
no le abandona será porque no le disgusta del toda esa si-
tuación’, responden afirmativamente un 10,9% de los jó-
venes, frente a un 5,4 % de las chicas que piensa lo mis-
mo284. Ante cuestiones como si está justificado agredir al-
gún que te ha quitado lo que era tuyo, el 22,7% de los chi-
cos responde afirmativamente frente al 7,2 % de las chicas
o respecto a cuestiones como concebir los celos como una

282 ESPANHA. Manual de prevención de la violencia de género y buenas prácticas,


p. 3. Este manual pretende sensibilizar os jovens contra os maus-tratos, e dar
as chaves às jovens para detectá-lo, tendo em vista que a cada ano o número
de mulheres maltratadas menores de 30 anos aumenta.
283 Idem, p. 4.
284 Idem, p. 4.
137
Justiça Restaurativa & Gênero

expresión del amor el 33,5% de los chicos y el 29,3% de las


chicas. El 35% de los adolescentes encuestados consideran
que “controlar todo lo que hace su pareja” no es maltrato
y el 40% que los celos forman parte natural de la pasión
amorosa285.

É assustadora a naturalização da violência de gênero en-


tre os jovens, por isso é importante pensar em explorar o espa-
ço educacional para se trabalhar com valores e princípios de
respeito com o outro, iniciando pela desconstrução dos mitos
de amor culturalmente construídos para o feminino. Não se
trata, portanto, mais de educação repressora ou de justiça pu-
nitiva domesticar as crianças e os adolescentes segundo nor-
mas e regras educacionais fundadas na ordem da razão e do
bem ético ou político. O que esse processo formativo e emanci-
pador objetiva é algo que se conquista para além da educação,
algo que exige independência, liberdade, autonomia como um
autodesenvolver-se286. É diferente de se arquitetar na escola um
espaço de correção, regulação e restauração dos corpos dos
“sujeitos perigosos em potencial”287, refutável aos ideários res-
taurativos de justiça. Por isso, mais uma vez, o cuidado de não
tomar a escola como unidade global, mas analisar as relações
de força, as relações de poder, como se apoiam, quais são as

285 ESPANHA. Manual de prevención de la violencia de género y buenas prácticas.


Las jóvenes como nuevas víctimas. Subvencionado por Ministerio de Sanidad
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(Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília/DF:
Ministério da Justiça, 2006. p. 646.
287 SCHULER, Betina. Veredito: escola, inclusão, justiça restaurativa e experiência
de si. 231 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Pós-Graduação em
Educação, PUCRS. Porto Alegre, 2009. p. 132.
138
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

estratégias na produção de uma multiplicidade de sujeições, a


partir do disciplinamento dos corpos e dos saberes288.
Segundo Melo, o problema não está no fato de, em um
conjunto de regras de produção de verdade como é o pedagógi-
co, uma pessoa dizer a outra o que ela deva fazer, transmitir-
lhe saber, comunicar-lhe técnicas. O problema, antes de tudo, é
saber como evitar que essas práticas – em que há necessaria-
mente relação de poder – convertam-se em dominação, que
elas suprimam os espaços de liberdade de que alunos tentem
determinar também a conduta de seus mestres e, portanto, se
vejam num processo participativo que os reconduza, na relação
de si para consigo mesmo, à relação com o outro289.
A abertura propiciada pela concretude do encontro, pela
emergência dos sentidos e sem sentidos que o confronto no
passado e no presente coloca é que permite que cada envolvi-
do, alheio à rigidez de papéis, fale por si, procure por si, no es-
paço circular de resolução de conflitos, desenredar-se para dei-
xar despontar um novo possível, por meio de nova ação que
seja capaz de criar sentidos compartilhados e, então, restaurar
uma justiça possível comum. Só então esse processo se conver-
te efetivamente em aprendizado e formação para liberdade e
para a responsabilidade290. É nesse sentido ainda que mais se
revela potente a parceria entre justiça e educação. A escola, de
fato, é o grande espaço de detecção de situações de violência e
de denegação de direitos infanto-juvenis. É nela também que se
apresentam com maior evidência as consequências do processo
de exclusão social a que é reduzida boa parte da população. É

288 SCHULER, Betina. Veredito: escola, inclusão, justiça restaurativa e experiência


de si. 231 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Pós-Graduação em
Educação, PUCRS. Porto Alegre, 2009. p. 133.
289 MELO, Eduardo Rezende. Justiça e educação: parceria para a cidadania.
P.643-666. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pi-
erpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança.
Brasília/DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 646.
290 Idem, p. 647.
139
Justiça Restaurativa & Gênero

dela, ademais, que se espera a transformação dessa realidade,


sem lhe dar o suporte necessário. Situações de violência são
comuns e constantes nas escolas, e elas, sozinhas, não são ca-
pazes de dar conta de problemas que as transcendem. Ao mes-
mo tempo, é essa escola chamada ao desafio de estimular um
juízo crítico e formar crianças e adolescentes para a cidadania.
Tomar, então, a escola ao mesmo tempo como o ponto de par-
tida e de chegada desse processo de inclusão e de emancipação
simboliza ao adolescente, de modo mais concreto, o sentido de
atuação da justiça na resolução de conflitos291. Dentro dessa
perspectiva, é possível trabalhar as práticas restaurativas como
disciplina restaurativa social na matriz curricular dos primei-
ros anos vivenciados pelas crianças nas escolas, de tal modo
que se estimulem valores e princípios que se valem dos círculos
enquanto ferramenta propulsora de diálogos, podendo assim
explorar e sensibilizar a comunidade escolar com as temáticas
fundantes do ser humano, como, por exemplo, a questão de
gênero, que culturalmente reproduz de maneira alarmante a
violência sobre-humana entre os homens e as mulheres, que
ainda não conseguem compartilhar espaços de poder. Para que
isso seja rompido, a esperança se dá no processo educacional
de uma sociedade que precisa efetivar o diálogo para o seu cí-
clico evolutivo, identificando um sujeito histórico além do gê-
nero, um cidadão contemporâneo.

291 MELO, Eduardo Rezende. Justiça e educação: parceria para a cidadania.


P.643-666. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI,
Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segu-
rança. Brasília/DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 649.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentro do contexto da justiça restaurativa e gênero, bus-


cou-se repensar o poder feminino que se instaurou no espaço
público e que muito avançou, quando, nos dias atuais, se veem
as mulheres ocupando lugares no mercado de trabalho. No en-
tanto, não se findaram as estratégias de dominação pelo dis-
curso do outro, e esse outro está ou pelo menos deve estar além
do masculino. Não se quis estabelecer um diálogo de disputas
entre sexos, construídas histórica e culturalmente; ao contrá-
rio, objetivou-se estabelecer algumas ligações axiológicas e
paradigmáticas sobre a denegação da condição feminina, pre-
judicada pela assimetria nas relações entre o homem e a mu-
lher e que podem ser restabelecidas pela educação além dos
gêneros.
Na sociedade em que se vive, onde a desconstrução e a
desestabilização de conceitos e comportamentos são recorren-
tes, se estabelecem outras práticas metodológicas na justiça: as
práticas da justiça restaurativa, disseminadora da cultura de
paz entre os sujeitos masculino e feminino. Muito embora os
conflitos condigam com a natureza humana e acarretem danos,
eles também geram oportunidades de transformação e matura-
ção, a partir do respeito pelo exercício de papéis sociais. Papéis
é uma palavra coloquial para os documentos, eles dizem ao
poder público que o sujeito é alguém. Portanto, garantem uma
identidade, dão lugar, uma nacionalidade e uma filiação. Por
outro lado, não só os documentos dizem algo sobre alguém,
mas também os papéis assumidos pelos sujeitos na vida consti-
tuem peças do complexo mosaico denominado identidade: ser
filho(a), ser pai, ser mãe, ser trabalhador(a), ser profissional,
ser homem, ser mulher. Esses papéis vêm se transformando
nas sociedades modernas: não mais tão estáveis e reproduzidos
142
Rosane Teresinha Carvalho Porto & Marli Marlene Moraes da Costa

como outrora, ao contrário, estão se redefinindo. Por conta


disso, é preciso sair da zona de conforto da ignorância e ir ao
encontro do conhecimento e da dimensão da alteridade. Com o
conhecimento, pretende-se eliminar o relativismo e superar
opiniões subjetivas de natureza socioculturais depreciativas e
discriminatórias ligadas ao processo de alienação do sujeito.
Em outras palavras, ignorantes por opção não são apenas alie-
nados, mas sujeitos propensos ao assujeitamento. Essas mu-
danças são interessantes para não mais ser necessário viver de
acordo com normas que, em tempos ou lugares de maior rigi-
dez, geravam ou ainda geram sofrimento, aprisionamento e
violência para quem não se encaixa nos papéis prescritos. Por
isso, acredita-se na educação como sendo uma das principais
vias e garantias de espaço para implementação e acolhimento
das práticas restaurativas enquanto metodologia teórico-
prática para se trabalhar com temas transversais e de valores
ricos para formação humana, como é a questão de gênero. Sen-
do vivenciado pela comunidade escolar contribuiria na desmis-
tificação do mito do amor romântico nas meninas, bem como
para promoção da equidade entre os gêneros.
É certo afirmar, à guisa dessas considerações, que a edu-
cação é a mola propulsora para se trabalhar princípios de justi-
ça social na escola, de maneira que os sujeitos se percebam
como complemento e reconheçam no outro a essência e a mag-
nitude de ser livre e agir dentro das suas próprias escolhas.
Associado a isso, pode-se trabalhar a questão de gênero sob
outra perspectiva: mais humanitária e comunitária, pois o de-
senvolvimento humano está ligado ao desenvolvimento eco-
nômico de uma comunidade. E, nessa comunidade, os indiví-
duos são autônomos em suas escolhas; por sua vez, emancipa-
dos representam microcomunidades que podem estar conecta-
das ou não pelas políticas públicas, imprescindíveis para o res-
gate da cidadania e o realinhamento do tecido social, quando
rasgado ou fragilizado pela violência. Oportunamente, refletir
sobre as novas vítimas de violência de gênero, que são as ado-
143
Justiça Restaurativa & Gênero

lescentes e jovens na escola, pois estas sofrem do embotamento


no sujeito, pelos falsos mitos do amor; este contributo sério
para seu próprio aniquilamento pelo outro masculino. Nesse
contexto, a disciplina restaurativa a partir do currículo de ensi-
no fundamental é uma proposição interessante na escola, de tal
maneira que os meninos e as meninas possam superar os desa-
fios do gênero, não pela violência, ao revés, pela humanização
do sujeito. Sujeito esse que, na modernidade, independente-
mente de ser masculino ou feminino, é aniquilado pelas desi-
gualdades sociais, sequelas da nefasta desterritorialização do
eu pela globalização.
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