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RESTAURATIVA E
CÍRCULOS DE
CONSTRUÇÃO DE PAZ
KAY PRANIS
BRASIL – MAIO/2017
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... Uma das coisas que pensamos a respeito da importância do
círculo é que eles são espaços para que pratiquemos o nosso melhor “eu”.
Porém, não devemos ser apenas bonzinhos no círculo, já que é o momento de
praticarmos o nosso melhor “eu” fora do círculo. (Kay Pranis)
Colaboração: Miro Ribeiro, Sabrina Paroli, Ana Lúcia Ribas, Daiane Carbonera, Geórgia Tomasi,
Cláudia Fochesato Tronca, Vara de Execuções Criminais, Fundação Caxias, AJURIS e Palas
Athena.
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CONSIDERAÇÕES
Este material foi elaborado a partir da visita da Professora Kay Pranis ao Programa
Municipal de Pacificação Restaurativa – Caxias da Paz e à Associação de Juízes do Rio Grande do
Sul – AJURIS em 2017.
Este trabalho foi uma transcrição, a partir das gravações e traduções das apresentações
da Professora Kay Pranis.
As gravações não foram realizadas por profissionais da área, sendo assim, talvez
tenhamos perdido algum conteúdo.
Confesso que este foi um trabalho exaustivo. Que exigiu muita escuta e muita leitura, por
várias e várias vezes, para que pudesse ficar o mais próximo de sua tradução e que pudesse se
tornar um material didático. Porém, ouvir Kay Pranis por várias vezes e sentir sua humildade,
sua intensidade, sua pureza e simplicidade, na sua compreensão e valorização do ser humano,
seja ele quem for, sempre deixando a porta aberta, sem desistir, é totalmente compensador.
Boa leitura!
Cristina Bergamaschi
Outubro/2017
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SUMÁRIO
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1.1. O CURRÍCULO
Instrutora independente, reconhecida internacionalmente e facilitadora de Círculo de
Construção de Paz. De 1994 a 2003, desempenhou, no departamento correcional de Minnesota,
as funções de planejadora de Justiça Restaurativa. Trabalhou com as lideranças de
estabelecimentos correcionais, da polícia, dos tribunais, das associações de bairro, das
comunidades religiosas e das escolas, desenvolvendo uma resposta abrangente ao crime e ao
conflito, com base na Justiça Restaurativa. Atua no desenvolvimento de processos circulares para
o sistema judiciário, para escolas, para vizinhanças, para famílias e para empresas. Autora de
inúmeras obras sobre o tema, inclusive o Manual Básico de Processos Circulares, “No Coração da
Esperança” e “Círculos em Movimentos para Escolas”. Trabalha como instrutora para facilitadores
de Círculos de Construção de Paz nos Estados Unidos, no Canadá, na Itália, no México, na Costa
Rica, na Eastern Mennonite University e junto ao Centro para Paz, fundado por Howard Zehr.
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2. PROGRAMA MUNICIPAL DE PACIFICAÇÃO RESTAURATIVA - CAXIAS DA
PAZ – 04 E 05 DE MAIO DE 2017 – CAXIAS DO SUL
Se fizermos um círculo e alguém chega sob influência de drogas, deveremos tratar disso no
círculo, passar o objeto da palavra e pedir como os participantes se sentem a respeito dessa
situação, deixando o círculo trabalhar esse desafio que é: como iremos trabalhar com isto. Berry
Stuart, em seus círculos de sentenciamento que eram feitos nas comunidades no Canadá, tinha
como um de seus requisitos a necessidade de as pessoas estarem sóbrias para participar do
círculo, mas eles estavam lidando com conflito e com uma tomada de decisão muito séria. Se for
um círculo de apoio, não fica tão claro. Houve uma situação de um círculo em que estava presente
uma pessoa sob efeito de droga. O facilitador não estava confortável em mandá-la embora,
mesmo que estivesse usando ativamente. Não existe uma resposta sim ou não, por isso o melhor
jeito é deixar que todos se expressem a respeito do impacto que é ter um usuário de
entorpecentes participando do grupo. Essa é uma estratégia muito importante. Quando não
conseguimos decidir o que fazer, perguntamos ao círculo. O facilitador não precisa decidir tudo.
Todos têm a responsabilidade por decidir como vamos encaminhar. O círculo pode decidir e
reconsiderar depois. Sempre poderemos voltar atrás quando percebemos que o acordo não
funcionou. Em um treinamento, esta pergunta surgiu no grupo: Permitimos a permanência de
alguém sob a influência de drogas no círculo? Em um círculo de apoio, suporte e fortalecimento de
relações, devemos deixar permanecer e podemos consultar o círculo. E se o círculo é inclusão,
como mandar sair? Nos círculos de conflito, se for importante fazer as diretrizes em primeiro
lugar, façamos.
Quando falamos em linguagem e rótulos, a principal coisa é não deixar que isto atrapalhe o
caminho. Normalmente não usamos o termo círculo restaurativo. Existem algumas categorias que
uso: círculos de diálogo, criação de comunidades, círculos pedagógicos, círculos de celebração e
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diálogo que não seja de conflito. Nenhum desses círculos é de tomada de decisão, pois são mais
simples; refiro-me a eles como círculos de conversa. Em relação àqueles que iremos tomar
decisões, tais como círculo de apoio, integração, conflitos, disciplinas devem ser referidos como
círculos para solucionar problemas.
O tipo de linguagem deverá ser sempre adequado para quem está nos ouvindo. As palavras
podem ter um significado para mim e um significado completamente diferente para quem está
executando. A linguagem utilizada será aquela que levará ao melhor entendimento do significado
que se quer transmitir para outra pessoa. Podemos descrever o círculo de maneira diferente para
pessoas diferentes para reduzir as distorções que a linguagem pode criar.
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Estratégias para as pessoas que não falam em círculo: É muito importante que se honre o
direito de passar o objeto da palavra sem falar. As crianças e os adolescentes têm poucas chances
na vida de exercerem o direito de serem autônomos e de decidir o que querem fazer. Muito do
dano que as pessoas causam umas às outras vem no sentido da sensação de impotência e elas
cometem o dano para se sentir no poder, pois alguma sensação de poder e de autonomia é
essencial do ser humano. Infelizmente quando as pessoas fazem alguma coisa para sentir o poder,
fazemos outras coisas para tirar este poder, piorando a situação. Temos que dar às pessoas a
chance de sentir poder pessoal de uma forma positiva. Existem duas maneiras, no círculo, de se
conseguir o poder pessoal: uma delas é o direito de passar o objeto da palavra. É muito
importante honrarmos esta atitude e não pressionarmos ninguém para que fale. E a segunda
maneira do poder pessoal positivo é quando estamos com o objeto da palavra e todos os outros
estão escutando profundamente, de forma respeitosa e atenciosa. Essa é uma maneira do poder
pessoal positivo. Falar e não falar são experiências de poder pessoal positivo. Jovens normalmente
testam se realmente poderão ter o poder de não falar. Geralmente, quando permitimos que
tenham esse poder, eles falam. Porém, se todos passarem o círculo muito rápido, ficamos bem
com o silêncio, que é uma coisa boa para os jovens terem o silêncio. Os jovens de hoje têm pouco
ou nada de quietude. Sabemos que temos uma vida interior em momentos de quietude. Muitos
jovens hoje nem sabem que existe uma vida interior dentro deles. Não se preocupe com a
quietude ou silêncio, mas não pode passar rápido demais pelo grupo. As pessoas têm o direito de
passar o objeto da palavra sem falar, mas pedimos que quando receberem o objeto da palavra,
segurem-no, contando até cinco ou até dez para depois passar adiante. Outra sugestão é pedir
que cada um segure o objeto da palavra até que sintam que o seu silêncio foi ouvido.
Em uma situação de alguém estar colocando pressão para que todos passem, é importante
pensar em uma pergunta que seja tão irresistível que vença a vontade de passar sem falar para ser
igual a todos. Com adolescentes: O que os adultos na vida de vocês precisam entender a respeito
de vocês que eles não entendem? No local de trabalho: O que teu chefe não entende a respeito
do teu trabalho que ele deveria entender?
Podemos, também, fazer uma atividade não verbal, um exercício com os elementos da
natureza, porque engaja as pessoas e elas começam a participar, mesmo sem perceber que estão
participando. Trazer instrumentos de percussão ou que as pessoas façam algum barulho com o
que têm, como bater nas pernas. Deixar as pessoas tocarem o quanto quiserem, quebrando o
padrão do que esperam de nós. Essas ideias são boas também quando os jovens começam a não
se comportar no círculo. Se há uma pessoa que está atrapalhando, podemos dar uma
responsabilidade para ela, como ajudar com a abertura, com as cadeiras, trazer o objeto da
palavra. Dar à pessoa a sensação de pertencimento, de fazer parte. Isso protegerá o processo.
Paciência é muito importante. Uma amiga, que fazia círculo com meninas, relata que em
algumas semanas elas eram maravilhosas; outras vezes, tinha que lembrá-las, de tempo em
tempo, a função do objeto da palavra. Importante também é devolver para o grupo e questionar:
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como se sentem quando estão com o objeto da palavra e outras pessoas começam a conversar?
Como se sentem quando estão com objeto da palavra e duas pessoas estão se “cutucando”? Não
se quer focar em nenhuma pessoa quando se faz esse tipo de pergunta, mas permitir que se
manifestem a respeito de atitudes que ocorrem. Tanto quanto possível, trazer de volta para o
grupo a reflexão de como é o espaço que eles querem ter junto de si. Também, quando, no
círculo, temos pessoas com necessidades especiais, poderíamos ter massa de modelar ou
brinquedos e permitir que possam manusear enquanto estão sentados em círculo.
Um dos nossos primeiros professores foi Harold Gatensby. Era índio e teve uma vida difícil.
Um cara grande, com dentes faltando e se envolveu com este tipo de trabalho. Mora no meio do
mato, no Canadá. Criaram um acampamento no mato que chamam de Acampamento de Cura.
Qualquer pessoa da sua comunidade poderia freqüentá-lo sem custos. Ninguém apareceu.
Ninguém queria se enxergar necessitando de cura. Assim, mudou o nome do acampamento para
Campo Selvagem. As pessoas começaram a frequentar. Nesse caso, cura como palavra é uma
barreira para as pessoas. Então, deixemos fora palavras que criam barreiras e busquemos outra
forma de conexão.
Temos muitas reações vindas de Terapeutas e Assistentes Sociais que se preocupam com o
fato de que podemos estar abrindo coisas que não conseguimos gerenciar depois, porque pessoas
como eu não têm um título de Assistente Social, Médica ou Psicóloga. Há muita discussão em ser
um participante e mostrar sua vulnerabilidade no processo. Este é um lugar onde temos uma
diferença muito grande de paradigmas. Os seres humanos apoiaram-se uns aos outros em
processos de cura, muito antes de haver diplomas nessas áreas.
Faz parte do ser humano poder escutar, poder testemunhar e poder dar o apoio para outro
ser humano que esteja sentindo dor, em sofrimento. Requer socialização saudável, mas não é
necessário ter um diploma na área terapêutica com seres humanos. Esta é uma conversa que está
acontecendo nos EUA. Existem grupos de pessoas, nos EUA, que estão se ajudando. Podemos
fazer muito para apoiar uns aos outros na nossa cura, sem causar os riscos com os quais eles estão
preocupados.
O fato é que as pessoas estão sofrendo o tempo todo e tudo está sendo “segurado” por
suas famílias e suas comunidades. Está sempre lá. Fica mais visível, no círculo, porque as pessoas
têm mais escolhas de como agir, de como ajudar. Mas, como facilitadores, temos que saber que
recursos poderemos acessar, se a pessoa que sofre demonstrar necessidade deles.
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prometer que ninguém irá interrompê-lo enquanto estiver falando. Algumas pessoas ficarão com
medo que a façamos falar sobre sentimentos. Também podemos prometer a eles que eles
escolherão se falarão ou não. Normalmente, essas são as garantias que podemos dar aos
participantes do círculo, os quais se sentirão mais confortáveis em se fazer presentes.
Existe também a questão dos apoiadores que dão certa confiança. Os participantes
poderão trazer uma ou duas pessoas para apoiá-los, que estarão atentas aos seus interesses.
Existe o relacionamento que poderá ser criado no primeiro encontro, nesse pré-círculo, se
escutarmos atentamente a sua história. Poderá ser a primeira vez que alguém realmente escutou
a sua história. Muitas vezes, isso é que faz com que as pessoas queiram participar, porque elas
começam a ter confiança no facilitador.
Tanto no pré-círculo como no círculo temos sempre que fazer uma construção de
relacionamentos antes de falarmos no assunto principal.
Na maior parte das vezes, temos realizado círculos em locais de trabalho e quando faço o
pré-círculo, um a um, pergunto há quanto tempo trabalham naquele local; que tipo de trabalho
realiza; se há foto, o que tem para falar sobre a foto. Primeiro tento fazer uma conexão antes de
começar a perguntar sobre o assunto. Ainda assim, é difícil. As pessoas têm medo de aumentar o
dano. É necessário descrever a maneira como o processo funciona, em quais situações as pessoas
não podem perguntar e responder diretamente umas para outras e que não ficará pior, tudo isso
em função da dinâmica do processo. As pessoas se preocuparão em sentir vergonha. De certa
forma, é inerente, porque quando causamos danos sentimos vergonha. Podemos assegurar às
pessoas que o processo irá tratá-las com dignidade. Pode ser que cada pessoa não faça isto, mas o
processo o fará. Não estaremos lá para criticar ou focar em alguém. O objetivo é alcançar uma boa
solução. Podemos pensar em outras estratégias. Consultar se há pessoas que passaram pelo
processo circular e que estariam dispostas a, voluntariamente, explicar o processo. Talvez
participar do pré-círculo para que contem a sua experiência. Só esses poderão tentar persuadir a
pessoa a participar do círculo. Nós não. E, mesmo assim, é difícil. Temos medos que nos
tornaremos “réus”, medo de piorar as coisas. E as pessoas nunca tiveram a experiência de um
diálogo construtivo. Difícil de imaginar.
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demonstram por mim. Esta é a minha melhor memória. Isto é o que podemos fazer de melhor uns
pelos outros: demonstrar amor.
Agradeço, do fundo do coração, por fazerem com que eu fique em um lugar em que
possa ser o melhor de mim. Faço meu trabalho melhor em outros lugares pelo amor que sinto que
vocês têm por mim. Desde o momento em que aterrissei no Brasil, tenho recebido muito amor e
não tem como explicar essa sensação.
Quero homenagear a terra, as águas, os animais e as plantas desta Terra. A todos aqueles
que caminharam antes de nós por estas terras. Lembro que estamos todos conectados. Esse é o
ponto de início de tudo aquilo que estamos tentando fazer. Estamos todos conectados. Respirem
profundamente. Vou fazer o mesmo.
Aprendi uma lição com Marc Wedge, um dos meus primeiros professores. Foi, realmente, a
sabedoria que ele passou que me permite estar neste trabalho há tanto tempo. Quando pensamos
que sentamos com muita dor nos círculos, assimilamos muita dor. Meu primeiro treinamento foi
em 1996, com Marc Wedge. Em outubro do mesmo ano, fui procurar conselhos. Preocupava-me
com duas cosias: as pessoas esperavam que eu conseguisse grandes resultados, e eu não fazia
nenhuma ideia de como estava impactando as pessoas e as situações. Havia muitos
acontecimentos ao meu redor, mas não sentia que os resultados estavam surgindo a partir do
meu trabalho. As pessoas esperavam que eu fizesse tudo acontecer, mas não tinha ideia nenhuma
de como fazer isso. As pessoas estavam começando a admirar o meu trabalho, o que também me
preocupava. Os elogios e a aprovação são muitos sedutores. Vivi minha vida fora das normas da
sociedade, de muitas maneiras. Tinha muito medo de ser levada a necessitar da aprovação dos
outros. Estava, na verdade, procurando pelo Barry Stuart, o juiz canadense, que me apresentou
aos círculos. Pensei que ele também deveria ter passado pelos mesmos problemas na vida dele.
Mas não conseguia encontrá-lo. E, é claro, não era o Barry Stuart que tinha a resposta para mim.
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Era uma perspectiva indígena, chamada de Povos da Primeira Nação. Sentei com Marc Wedge e
expliquei meu dilema. E Marc riu de mim. Continuou dizendo, em outras palavras, que não tinha
nada a ver comigo. Era o que acontece através de mim e que meu trabalho não era entender isso
ou controlar isso. O trabalho era ficar limpa e que tinha a ver com algo maior do que eu e que vem
através de mim. Não precisava gerenciar isso. Tinha que trabalhar para ficar com minha mente
limpa e transparente o quanto pudesse. Isso me aliviou imensamente. Tomou conta do meu
problema do ego, já que não tinha a ver comigo. E, também, tomou conta do fato de estar com
muita responsabilidade.
Não é que penso que posso fazer uma limpeza em mim, mas tive uma sensação de como
poderia trabalhar nisso. Não precisava mudar ninguém. Apenas tinha que trabalhar eu própria.
Quando tomo banho, peço que a água leve tudo que não me pertence, tudo aquilo que não é para
ficar comigo. Peço que a água me limpe, simbolicamente, por dentro também.
Com essa lição, Marc também me deu uma proteção muito importante. Quando estamos
em círculo em que existe muita dor, sempre temos que lembrar que essa dor não é a nossa dor. Se
pensarmos em tomar essa dor para nós, além de não diminuirmos a dor da outra pessoa, ela
pesará em nós. Não podemos curar pelos outros. Podemos escutar, caminhar em solidariedade,
mas não podemos curar a outra pessoa. Dessa forma, estamos apoiando a cura do outro, mas não
estamos curando o outro. As pessoas é que irão se curar. É uma parte importantíssima do
autocuidado. Que tenhamos muita clareza a respeito dos limites daquilo que podemos e
conseguimos fazer. Que não carreguemos a dor dos outros. Assim, poderemos permanecer
firmes e fortes para apoiar a cura das pessoas.
Uma senhora índia americana tem sido uma professora importante para mim. Ela me
ensinou a tomar chá de sálvia depois de um círculo que tenha sido muito difícil. Ou, se possível,
tomar um banho de banheira com óleo de sálvia. Entendi que é muito importante que cada um
crie o seu ritual para ajudar a liberar qualquer negatividade que tenhamos trazido do círculo.
Desde que seja de uma forma intencional, podemos criar nosso próprio ritual.
Podemos ter ideias e opiniões como facilitadores, mas temos que nutrir a nossa
curiosidade para perguntar o que mais tem ali? Isso está relacionado com a humildade. Também
nos permite dar a responsabilidade aos outros pelo círculo. Na verdade, é uma habilidade que
deve ser cultivada. Temos que praticar a percepção de quando sentimos que temos a resposta.
Socialmente, fomos criados para ter respostas e as respostas certas. Normalmente, estamos neste
espaço de ter as respostas para dar. Temos que desenvolver uma conscientização a respeito de
prestar atenção quando achamos que temos a resposta. Não conseguimos nos desconectar disso,
a não ser que prestemos atenção e saibamos que isto está lá. A estrutura do círculo nos ajuda,
desde que prestemos atenção e escutemos. Normalmente, temos uma ideia quando o objeto da
palavra começa a passar, mas se escutarmos de verdade, prestarmos atenção de verdade, essa
ideia, normalmente, será diferente até que o objeto da palavra retorne. Isso mantém nossa mente
aberta. Se eu pudesse responder, imediatamente, ficaria presa ao meu modo de pensar. E esse
tempo de esperarmos o retorno do objeto da palavra engaja nossa curiosidade e nossa reflexão.
Não saber é uma das habilidades.
Outra habilidade é sentar quieta com minha própria ansiedade e desconforto. A atividade
com os gravetos ou com os elementos da natureza, para os que conhecem, tem sido meu maior
mestre para facilitar. Quem não conhece a atividade, poderá utilizar o brinquedo dos legos para
construir alguma coisa. Tive que aprender a sentar e continuar quieta, porque minha sensação era
de desespero, pois acreditava que as pessoas iriam levantar, iriam sair, iriam embora.
Quando sentamos em círculo, com pessoas que fizeram coisas horríveis, pode ser que não
consigamos sentir amor por elas. O que peço é que tentem acreditar que existe um ser melhor
dentro delas. Talvez profundamente enterrado e o comportamento possa ser desgostoso de olhar,
mas pensemos que, profundamente, em algum lugar dentro daquela pessoa, existe um potencial.
Esta é uma ideia ensinada em muitas tradições espirituais: de que sempre existe uma luz, mesmo
quando não conseguimos enxergá-la. Contar a história é o melhor jeito que sei para que possamos
começar a acessar essa luz. Se estiver facilitando situações assim, tenha certeza de levar um
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cofacilitador, porque nessas situações pode ser que sejamos impulsionados a ter alguma atitude
que não queiramos. Assim, temos esperança de que o cofacilitador não será tocado pelos mesmos
temas que nós somos tocados. Não desistam de si mesmos, se perderem o equilíbrio por um
momento. Marshall Rosenberg nos ensina empatia antes de educação e, acima de tudo,
autoempatia. Se estivermos em um círculo com alguém que faça perdermos o equilíbrio, primeiro
concentremo-nos e sintamos autoempatia. Façamos um intervalo, se sentirmos necessidade.
Deixemos o cofacilitador ser o líder por um momento e, provavelmente, iremos conseguir nos
centrar novamente.
O tipo de círculo que Dominic usa é um círculo focado no evento em si. Os círculos de
sentenciamento que fizemos envolveram a realização de diversos pré-círculos, trabalhando com
múltiplas questões envolvidas pela pessoa que cometeu o crime. Não nos preocupamos em
chegar ao fundo dessa emoção muito rápido. Tentamos construir algum tipo de estabilidade na
vida dessas pessoas para que elas possam realmente participar do círculo. Existe uma diferença
muito grande considerando-se por este ponto de vista. Geralmente, na preparação do pré-círculo,
queremos que as pessoas tenham a chance de se expressar. Elas podem precisar de prática para
articular, pode ser que precisem falar alto, aquilo que tem por dentro, para entenderem os seus
próprios pensamentos. Queremos entender o que estão sentindo para que possamos elaborar
boas perguntas para fazer no círculo. O fato de escutarmos a história que contam de uma maneira
profunda começa a construir confiança. Tudo isso exige que abordemos a questão no pré-círculo.
É importante, no círculo, que um entenda a jornada que o outro tem feito. As pessoas ainda
podem descrever isso, mesmo que tenham ultrapassado esse ponto. Para a maioria das pessoas,
todas essas emoções vão continuar surgindo no círculo. O trabalho que fazemos não requer que as
pessoas liberem suas emoções rápido demais, mas devemos reconhecer as suas preocupações.
Acho que isso seria mais relevante se fosse um incidente entre duas pessoas. Muito, muito poucos
eventos são separados. Talvez o único evento entre duas pessoas, mas, para ambas as partes, irão
tocar na história delas. Frequentemente, é muito mais importante que se cure pela história.
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Teremos que fazer a mudança de procurar pela sabedoria individual e mudar para a
sabedoria coletiva. As culturas ocidentais estão construídas, em grande parte, nesta sabedoria
individual; precisamos desesperadamente da sabedoria coletiva. A sabedoria coletiva é,
necessariamente, muito maior do que a sabedoria individual. Para acessarmos esta sabedoria
coletiva precisamos de espaços que sejam seguros, espaços que convidem a reflexão e espaços
onde o respeito impere. Nossa cultura tem poucos espaços como estes. O círculo é um destes
espaços onde ela é aceita. Essa é uma das coisas que precisamos reaprender a partir dos nossos
ancestrais, porque eles se organizavam muito mais em relação à sabedoria coletiva do que
fazemos hoje. Esta é uma grande dádiva que as comunidades indígenas nos oferecem nesta hora.
Buscando a sabedoria coletiva vamos ficando menos dependentes da sabedoria individual. Ambas
as sabedorias têm seu lugar, mas estamos num desequilíbrio fantástico. O círculo nos ajudará a
acessar esta sabedoria coletiva. Quando ficarmos bons nisto não precisaremos mais fazer tantos
círculos, mas porque estamos em desequilíbrio, precisamos fazer muitos círculos agora.
Outra mudança necessária para atingirmos a cultura de paz é que nos vemos como
indivíduos separados e passarmos a entender a nossa interconexão, não só como seres humanos,
mas com a terra, os animais, as plantas, com todas as partes que compõem a criação. No
movimento ambiental, começamos a ver o sentido disto, na conscientização a respeito das
mudanças climáticas, estamos começando a ter um sentido de preocupação com a inter
conectividade, com a interconexão de tudo. Mas ainda não estamos aplicando este conhecimento
às nossas estruturas sociais, neste ponto em que estamos.
Sempre procuramos uma causa como indivíduos. Mas, na verdade, cada ação é o resultado
de muitas causas complexas. Quanto mais examinamos um ponto, em particular, mais causas
encontramos para o que aconteceu. Falamos a respeito de responsabilização como se cada
indivíduo tivesse essa responsabilização individualmente. Quando usamos os círculos, não ficamos
procurando a responsabilização individual, buscamos a responsabilização coletiva também. Todos
nós influenciamos uns aos outros e precisamos começar a examinar esta complexidade, ao invés
de presumir que as pessoas funcionam completamente desligadas das outras. As crianças
entendem isto melhor que os adultos. Numa turma de 4ª série, um menino ameaçou colocar fogo
no prédio escolar. Isto aconteceu logo após um evento que ocorreu no Colorado, uma matança,
anos atrás. Seus colegas ficaram assustados, com pesadelos à noite. No dia seguinte fizeram um
círculo e envolveram todos os alunos daquela turma. Os alunos descreveram seus medos, seus
pesadelos e falaram sobre o quanto lhes impactou aquela ameaça que o colega havia feito.
Falaram também como eles eram, em parte, responsáveis pelo comportamento que o colega
demonstrou. No final do círculo fizeram um acordo. O menino se comprometeu a cumprir quatro
itens do acordo. Um deles é que ele se afastaria quando muito bravo, para se acalmar; concordou
em escrever uma carta pedindo desculpas aos colegas. E os colegas concordaram em cumprir nove
itens do acordo: a se tornarem amigos do menino; não falar mal dele; a jogar basquete com ele no
final do período escolar. Os colegas identificaram nove maneiras de como eles poderiam ser mais
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inclusivos e aceitar o menino. Eles entenderam que a maneira como eles tratavam este menino
teve um impacto em sua vida. Estamos profundamente interconectados e essa é a máxima do
universo: não podemos nos desconectar. Precisamos começar a assumir a responsabilidade
quanto ao impacto que causamos na vida dos outros.
Outra dimensão deste paradoxo é a mudança de se fazer uma análise do déficit para uma
análise do que se tem de bom. A mudança de, ao invés de perguntarmos o que está errado,
perguntarmos o que estamos fazendo certo que vai nos ajudar a chegar onde queremos chegar?
Precisamos de espaços em que as pessoas possam expressar suas dores, mas ficamos totalmente
perdidos quando vamos analisar os problemas. Quando conversamos com famílias que estão com
problemas, tudo o que elas falam são seus problemas. Quando trabalhamos na análise dos
problemas, perdemos a nossa auto-estima e começamos a ter a sensação de que tudo está errado.
Não significa negar os problemas ou fazer de conta que não estão lá. Precisamos ser
completamente honestos ao falar de onde estamos e, a partir deste lugar, olharmos para nossos
pontos positivos e aquilo que podemos realizar. Temos mais pontos fortes do que reconhecemos.
Todos têm dons, todos têm pontos fortes. Quando nos focarmos mais nos dons que trazemos, nos
pontos positivos, nos fortaleceremos.
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nossa voz interna que nos diz para amarmos uns aos outros. Existe uma história sobre um avô e
seu neto. O avô descreve a grande batalha que está acontecendo dentro de si. Descreve esta
batalha como sendo de dois lobos. Um dos lobos são todas as qualidades ruins que se vê na
natureza humana e o outro lobo é o amor, o cuidado, o compartilhar. É a paixão. E estes dois
lobos, dentro de nós, estão tendo esta batalha terrível. E o neto pergunta ao avô qual deles vai
ganhar e o avô responde que será aquele que alimentarmos. Vivemos numa cultura que alimenta
o bem e o mal dentro de cada um de nós. Precisamos reconstruir na base da nossa cultura para
poder alimentar o lobo bom. É um trabalho profundo e irá demorar um tempo. Sinto-me muito
grata por estar num grupo de pessoas que estão dispostas a fazer este trabalho. Este é o propósito
da vida. Estes são meus pensamentos dos desafios para avançarmos nos processos restaurativos e
no círculo. Neste processo haverá uma redistribuição de poder completo. Como as pessoas irão
querer deixar de lado o poder para que possamos redistribuir? Iremos acessar o tipo de poder que
fundamentalmente é mais importante para cada um de nós. As nossas hierarquias criam o poder
de uns sobre os outros. E uma cultura de paz cria o poder de uns com os outros. Lado a lado, no
mesmo nível, teremos experiências de um tipo de poder diferente. O poder sobre os outros é o
que nos faz viver sempre num estado de medo. Esse medo tanto pode ser o medo do poder
exercido sobre mim ou medo deste poder que tenho. E quanto mais poder existir numa estrutura,
geralmente, com mais medo e mais insegurança iremos conviver. Será um alívio muito grande
quando pudermos viver lado a lado e não um sobre o outro. Para que haja esta mudança, é
importante que se tenha experiência de ter poder pessoal positivo. Poder pessoal positivo é um
estado de paz interior. Quando estamos vivendo um sentido profundo de significado. Estas
mudanças elencadas precisam acontecer tanto no nível da comunidade como no nível das
estruturas maiores, governamentais.
O que está sendo feito aqui, muito bem, para o fortalecimento das comunidades, é
trabalhar os diferentes setores. Estão alcançando os diferentes setores e perpassando-os. O
trabalho se reforça mutuamente passando de setor por setor.
Uma das coisas mais poderosas para se fazer a mudança de paradigma é nas escolas. Todas
as crianças que vivenciam o círculo na escola e encontram uma coisa errada usarão o enfoque
restaurativo para resolvê-las. Elas se transformarão e usarão este mesmo enfoque na vida.
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Precisamos organizar espaços. Precisamos ter espaços seguros para possibilitar que isto aconteça.
Propiciar que haja espaço seguro.
Trabalhar com drogaditos está dentro do contexto do programa. O próximo passo, a partir
daí, que façamos círculos com a comunidade. Que as pessoas da comunidade tenham
possibilidade de se reunir para falar sobre a adicção, contanto suas histórias, falando de suas
vidas. Muitas das pessoas do círculo não são viciadas. E a senhora que faz a coordenação do
círculo daquele Condado disse-me que aquele era seu círculo favorito. Não se exige que ninguém
esteja lá, alguns estão saindo de programas de desintoxicação. Outros podem estar em
recuperação há muitos anos e alguns nunca tiveram problemas de drogadição. Eles se sentam
juntos como iguais em comunidade. Não conseguimos perceber quem está facilitando. Estão lá,
como iguais que não se percebe quem facilita. Chamam de “O Círculo da Esperança”.
Ainda estou tentando assimilar tudo aquilo que foi compartilhado sobre o Programa Caxias
da Paz. Tudo que foi apresentando é muito grande. Esse jardim se espalhou para muito além
daquilo que plantei. Estou muitíssimo inspirada para levar o exemplo de Caxias do Sul para outros
lugares.
Houve muitas coisas importantes que escutei. Vou abordar especificamente alguns pontos.
Começamos com os Guardas Municipais oferecendo música, o que é de uma simbologia muito
significativa. A segurança e a seguridade são uma conexão que pode ser muito alegre. Quando
escutei que estão dando treinamento de círculos de paz para todos os guardas que estão entrando
para o serviço, isso me deixou extasiada. Não conheço nenhuma outra cidade que isso esteja
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acontecendo. Começar um trabalho na Guarda Municipal com uma estrutura diferente é uma
mudança muito grande. Tiro meu chapéu para a Guarda de Caxias do Sul!
O trabalho feito nos sistemas prisionais. Embora não tivesse nenhum treinamento formal
nessa área, trabalhei para o sistema prisional de Minnesota por nove anos. Uma das
oportunidades que tive ao trabalhar no sistema prisional foi de ter várias oportunidades de atuar
dentro da prisão. Sentar em círculo com os aprisionados foi uma experiência poderosa. Algumas
das pessoas mais corajosas que encontrei, na vida, estão nas prisões. Alguns deles que cometeram
crimes bárbaros estão assumindo a responsabilidade daquilo que fizeram, a cada dia. Não sei se
teria esta coragem se tivesse causado tanto dano como eles causaram. Para aqueles todos que
estão na jornada de responsabilização, de assumir a responsabilidade por aquilo que fizeram,
tiram todas as máscaras e todas as proteções que, normalmente, usamos no mundo aqui fora.
Temos muito a aprender com essas pessoas. Fiquei muito extasiada de saber que vocês estão
usando os círculos também para os servidores das prisões. Uma das coisas com as quais trabalhei
no sistema prisional foi de introduzir a infraestrutura que possibilitasse trabalhar a Justiça
Restaurativa e os Círculos de Construção de Paz com os servidores em conflito. Minnesota é o
único estado nos EUA em que usa os círculos para lidar com os conflitos dos servidores. Fiquei
muito emocionada de saber que aqui também está sendo feito.
O que está me deixando muito contente de ver é a maneira como estão desenvolvendo as
capacidades entre todas as Centrais de Justiça Restaurativa. É incomum as pessoas reconhecerem
que precisamos usar essas práticas dentro do sistema de saúde. Faz parte da minha prática
implementar círculos de paz para usar com as famílias, principalmente quando precisam tomar
uma decisão a respeito de interromper a vida de alguém; e para as pessoas que trabalham nos
setores dos hospitais para doentes terminais. Existem inúmeros contextos em que precisamos de
um espaço para desacelerar, para refletir, para respirar. No sistema de saúde, temos muitas e
muitas situações que se tornam pesadas para trabalhar e precisamos de um espaço para que as
pessoas possam expressar suas emoções. Precisamos criar espaços em que as pessoas possam
estar em contato com seu lado espiritual. E os círculos oferecem essa possibilidade.
Porém, o que me trouxe às lágrimas foi quando todos os voluntários se levantaram. Esse
tem sido meu alicerce, a fundação da minha visão de como deve ser. Os cidadãos comuns são a
chave para um mundo melhor. Precisamos de profissionais para organizar as coisas e prover as
estruturas. O que precisamos é de cidadãos saudáveis transformando as comunidades. Precisamos
de comunidades em que os habitantes consigam se auto gerenciarem sem precisar de ajuda de
22
profissionais para fazer isso. Que possamos resolver nossas diferenças na comunidade sem a
necessidade de chamarmos a polícia. Isso requer que tenhamos cidadãos envolvidos e ajudando
suas comunidades. A comunidade é um processo de dar e receber um do outro. Recebemos
benefícios e temos que prestar serviços na nossa comunidade. E os voluntários estão fazendo isso,
formando a base para uma comunidade saudável no futuro. Como estão estabelecendo um
alicerce de paz, estão no caminho para uma comunidade de paz. No meu trabalho de criar
programas comunitários na Justiça Restaurativa, descobrimos que trabalho voluntário tem um
impacto enorme. Muitas pessoas com quem trabalhamos nesses casos vêm de um mundo em que
não há ajuda. Acreditavam que poderiam continuar fazendo aquilo que estavam fazendo.
A visão de mundo que as pessoas em conflito têm é de cada um por si. Quando sentaram
em círculo e descobriram que as pessoas que estavam lá, estavam como voluntários, não estavam
recebendo nada para estarem lá; que os cidadãos que lá estavam, estavam para ajudá-los e que
não era esse o seu trabalho, eles não conseguiam entender. A partir daí, a sua visão de mundo
começou a desmoronar. Começaram a perceber que nem todos trabalhavam só em benefício
próprio. Isso criou o que chamo de dissonância cognitiva. No espaço do círculo, temos a chance de
criar uma nova visão de mundo. Quando descobrem que as pessoas estão lá dispostas a ajudá-los,
tornam-se mais capazes de ajudar a si mesmos. Daí vem a ideia de que o nosso bem-estar
depende do bem-estar dos outros. Não é só uma questão de fazer o seu trabalho. É parte da sua
responsabilidade como membro da comunidade. A abrangência do trabalho voluntário que está
sendo realizado é um dos pontos mais fortes que Caxias do Sul tem.
Outra coisa importante de engajar os voluntários neste trabalho é que os cidadãos ficam
conhecendo melhor o funcionamento de sua comunidade. Os cidadãos podem levantar questões,
fazer perguntas se veem que o jeito que a comunidade está andando não está funcionando. Às
vezes, é preciso um olhar de fora para entender o que é necessário mudar. Nos EUA, temos
muitos exemplos de como nosso sistema nem sempre funciona de uma maneira igualitária. São as
pessoas de fora do sistema, que não são treinadas dentro do sistema, que podem fazer as
perguntas difíceis que precisamos que sejam feitas para que haja mudanças. O olhar de fora é dos
voluntários, na comunidade, mas que estão fora do sistema profissional dos serviços. Olhar de
fora, mas dentro da própria comunidade.
Os serviços são muito importantes, mas não conseguem fazer tudo. São limitados. Existem
coisas necessárias e que pessoas, na comunidade, conseguem fazer melhor. O vizinho consegue
estar à disposição 24 horas por dia quando os serviços não estão funcionando 24 horas por dia. O
vizinho consegue acompanhar melhor se as coisas estão acontecendo do jeito que devem
acontecer ou do jeito que foi combinado para acontecer. Em última análise, a responsabilização
que realmente importa é a responsabilização perante o seu vizinho e não perante o juiz. O
trabalho voluntário proporciona o início de criar uma comunidade em que temos que prestar
contas uns aos outros e não aos que estão fora da comunidade.
23
Uma das coisas que fico feliz a respeito do círculo é que ele é muito acessível. Temos que
ser treinados para sermos um facilitador, mas não precisamos ter uma educação formal para isso.
Numa prisão, os próprios presos podem se tornar facilitadores; nas escolas, os próprios alunos
podem se tornar facilitadores e, muitas vezes, as crianças saem da escola e ensinam os pais a
fazerem círculos. Esse é um processo que pode se espalhar amplamente. Não é preciso de muito
equipamento nem educação formal. E isso é de uma utilidade fantástica.
A estrutura que o Caxias da Paz tem aqui faz muito sentido. O nível municipal é o nível
certo para organizar os processos restaurativos e os círculos. As cidades têm a capacidade de
engajar os cidadãos de uma maneira que o Estado não consegue. Os cidadãos, na cidade, têm um
sentido de identificação com ela. As cidades têm pessoas em um número suficiente para fazer as
coisas acontecerem numa escala apropriada. O modelo de estrutura de Caxias do Sul pode ajudar
muitas outras comunidades a fazer o mesmo. As coisas fundamentadas no nível municipal dão
uma sensação de propriedade, de pertencimento, é onde fazemos parte disto. As cidades já têm
as estruturas definidas, que funcionam muito bem, para disseminação dessas ideias. Ficam
próximo dos bairros, das comunidades de bairro para fazer com que isso funcione.
Cuidar das necessidades dos adultos e dos relacionamentos entre eles é tão importante
quanto prestarmos atenção no relacionamento dos adultos com as crianças e/ou adolescentes,
bem como no relacionamento entre as crianças. Como se construir uma comunidade escolar
saudável tem tudo a ver com a questão maior que é como construir uma comunidade saudável
dentro da nossa sociedade. Acreditamos que a prática do círculo dentro da escola será a
infraestrutura chave para uma comunidade escolar saudável em que se dará a oportunidade de
praticar os valores.
Tive uma experiência com adultos que trabalham em uma prisão para adolescentes.
Quando fizemos um trabalho com os adultos sobre valores, perguntamos que valores
representam esse “eu” que é verdadeiro, bom, sábio e poderoso. Continuamos falando sobre a
importância desses valores no trabalho do processo circular. A equipe de trabalho disse que
tinham os valores porque os traziam de casa, mas os jovens que estão presos não sabem e não
conhecem valores.
Mais tarde, tive a oportunidade de fazer um trabalho com 25 jovens presos. Perguntei
sobre valores, e os jovens trouxeram exatamente os mesmos valores que haviam sido citados em
outros grupos. Quando foi perguntando que valores vocês querem mostrar quando estão no seu
melhor, disseram os mesmos valores já trazidos por outros círculos de adultos. Dissemos a eles
que a lista era surpreendente e perguntamos se era assim que se mostravam ao mundo.
Responderam que não. Não estamos fingindo que assim nos apresentamos no mundo. Então, se é
assim que vocês querem ser quando estiverem no seu melhor, por que esses valores não
aparecem? Passamos o objeto da palavra e, de diferentes maneiras, disseram que não se sentiam
seguros demonstrando tais valores. No mundo em que vivem, não é seguro mostrar o seu melhor
“eu”. Assim, criam camadas sobre camadas para se protegerem, e essas camadas cobrem e
escondem o seu melhor “eu”, de forma que nem eles sabem que isso está dentro deles.
No círculo, temos a oportunidade de buscar como é esse “eu” verdadeiro em nós e nos
outros. Esse “eu” verdadeiro pode ser enterrado, mas nunca destruído. No círculo, tentamos
encontrar o “eu” verdadeiro mais uma vez.
O terceiro pressuposto é que todos os seres humanos têm um desejo profundo de estar
em bons relacionamentos. Carregamos, dentro de nós, esse impulso poderoso de estarmos em
bons relacionamentos. Essa é a raiz da nossa necessidade de pertencer. Essa necessidade de
pertencimento é tão grande e poderosa que, muitas vezes, simplesmente se sobrepõe aos valores
do melhor “eu”. Fiz uma entrevista com um senhor que estava preso por abuso sexual. A mulher,
que tinha sido vítima, insistia em encontrar-se com ele para saber qual o motivo. No início,
ofereceu resistência, não demonstrava remorso e não entendia por que ela queria encontrar-se
25
com ele. Mas, de alguma forma, a persistência dela começou a fazer efeito e ele começou a sentir-
se responsável por aquilo que havia feito. Já tinha causado problemas com outro preso; já tinha
machucado outros, mas, assim que começou a jornada de assumir a responsabilidade por aquilo
que havia feito, começou a mudar. Descreveu que foi muito difícil fazer isso, porque o grupo ao
qual pertencia na prisão não o apoiava nesta jornada. Ele ficou só e isolado dentro da prisão.
Precisou de muita força para continuar neste caminho, porque a sua necessidade de
pertencimento estava brigando com a sua necessidade de assumir a responsabilidade.
Há uma bióloga chamada Mary Clarck que diz que as necessidades mais fundamentais do
ser humano são significado e pertencimento. Vivemos em uma sociedade que bloqueia o
significado e o pertencimento. As escolas deveriam ser lugares onde estivessem profundamente
imersas buscando significado e pertencimento. E esse lugar é onde podemos, verdadeiramente,
começarmos a mudança.
O quarto pressuposto é que todos os seres humanos têm dons e cada um é necessário
por aquilo que ele tem, que traz. De acordo com os ensinamentos indígenas, cada criança nasce
com quatro dons que recebeu da mãe terra. É responsabilidade dos adultos ajudar essas crianças a
descobrir quais são os dons que ela traz e ajudá-la a desenvolvê-los. Imaginem as escolas
descobrindo quatro dons em cada criança e ajudando a desenvolvê-los, a nutrir esses quatro dons
que elas receberam.
O quinto pressuposto é tudo de que precisamos para fazer as mudanças positivas já está
aqui. Não podemos esperar que venha uma pessoa poderosa a nos dizer que podemos fazer isto.
Cada um de nós, em alguma parte da vida, tem a possibilidade de colocar isso em prática. As
respostas não virão de especialistas. Todos temos visão de mundo, temos pontos positivos, fortes.
Cada criança tem pontos fortes. Uma amiga, com quem trabalhei desde o início com Justiça
Restaurativa, diz que devemos começar de onde estamos. Devemos usar aquilo que temos e
devemos seguir juntos. Isso é muito importante para quem trabalha nas escolas.
O sexto pressuposto é que os seres humanos são holísticos. Não podemos só trabalhar
com as mentes dos alunos. Temos que trabalhar com o corpo, com o espírito e com as emoções.
Eles são seres integrais. Não podem ir à escola somente com a mente. Eles trarão alegria, tristeza,
raiva, ... para a escola. É importante que a escola ajude-os a lidar com essas emoções, dando-lhes
legitimidade para as outras partes que compõem o seu ser. Existe um movimento grande nas
26
escolas dos EUA para se trabalhar o aprendizado social e emocional. Usam o termo competência
emocional ou alfabetização emocional. O processo circular está desenvolvendo essa competência
emocional cada vez que sentamos juntos em círculos, que podem ser utilizados de várias maneiras
nas escolas. Independentemente do objetivo do círculo, ele desenvolverá a competência social e
emocional. Usando o objeto da palavra, os alunos aprenderão a se autorregular. Os círculos
convidam a compartilhar sentimentos, assim, os alunos aprenderão o vocabulário dos
sentimentos. O ritmo mais lento do círculo permite que os alunos prestem atenção em como
estão suas emoções. Muitas crianças e adolescentes desconhecem completamente o estado de
suas emoções. Por várias razões: pode ser que escutem muito pouco ou quase nada a respeito de
emoções no seu ambiente; eles têm pouco tempo de quietude nas suas vidas para perceber o que
está acontecendo internamente; seu comportamento pode estar sendo causado por emoções que
eles nem têm consciência de que existem. É muito difícil mudarmos um comportamento se não
sabemos de onde ele vem. Estar consciente de seu estado emocional é básico para que tenhamos
competência emocional. O círculo cria um espaço em que é possível estarmos mais conscientes
das nossas emoções.
O sétimo e último pressuposto é que precisamos de práticas para criar hábitos de viver de
acordo com o nosso melhor “eu”. Não podemos simplesmente buscar o círculo quando temos
problemas. O mesmo acontece com a atenção plena. Precisamos praticar os princípios da atenção
plena quando não estivermos estressados para que, quando o estresse aparecer, consigamos
aplicar as técnicas da atenção plena e acalmar o coração. O mesmo acontece com o círculo.
Precisamos usar os círculos regularmente em situações não conflitivas, a fim de podermos acessar
o círculo de maneira muito fácil quando o conflito aparecer.
Acreditamos que a maneira fundamental de usar os círculos nas escolas para que haja uma
boa resposta é usá-los constantemente em situações não conflitivas. Começamos ensinando as
crianças e os adolescentes a sentar-se em círculos. Um círculo simples que os ajude a se
familiarizarem com o processo. Podemos usar os círculos para que os alunos estabeleçam, dentro
da sala de aula, os valores e as normas que vamos seguir juntos. Podemos usar os círculos como
uma forma pedagógica: poderíamos num novo tópico que será ensinado, passar o objeto da
palavra e perguntar aos alunos o que sabem e o que gostariam de saber sobre o novo tópico. É
uma forma excelente para revisarmos conteúdos. Muito útil quando queremos que toda a turma
reflita sobre um conteúdo ou sobre um texto, sobre um conto, uma poesia, passando o objeto da
palavra para que reflitam sobre o que ouviram. Muitos professores estão transformando o círculo
em uma técnica de ensino.
Podemos usar o círculo como construção de comunidade dentro da escola. Os alunos que
se conhecem melhor, que se entendem melhor têm menos possibilidades de entrarem em
conflito. Os círculos são um processo que funciona bem na prevenção de problemas. Uma das
formas mais simples é fazer um círculo de check-in. No início do dia, podemos começar com um
círculo lançando a pergunta de como estão se sentindo e se existe algo, em especial, que queiram
27
compartilhar naquele momento. Um aluno pode compartilhar que o bebê da casa chorou toda a
noite e ele não pode dormir bem. O professor e os colegas terão mais paciência com esse aluno.
Quando sabemos o que está acontecendo com os outros, podemos dar mais espaço a eles,
especialmente, se tiverem dificuldades em suas vidas.
Os círculos também podem ser utilizados com as equipes de trabalho para fortalecer os
seus relacionamentos e para lidar com os conflitos. Nos EUA, todos os professores devem estar no
corredor quando houver troca de disciplina. Numa escola de sétima e oitava séries, houve uma
briga no corredor. Havia dois professores no corredor. Um dos professores tentou interromper a
briga, e o outro retornou para sua sala. Isso criou um conflito muito sério entre a equipe. Aquele
professor que tentou parar a briga colocou-se em risco, e o seu colega retornou à sala. Os demais
nem apareceram. Eles usaram o processo circular para resolver esse problema. O professor com
quem conversei disse que ficaram mais fortalecidos enquanto equipe após o círculo. Tiveram a
oportunidade de saber que impacto o seu comportamento tinha causado sobre os outros e
compartilharam suas expectativas.
Os círculos podem ser feitos com os pais, dentro do contexto escolar, podendo ser usados
quando há conflitos ou algum problema disciplinar.
Todos esses círculos são simples e o que queremos nas escolas é que se façam círculos não
conflitivos de uma forma universal e que todos os alunos possam sentar neste tipo de círculo.
Usando o círculo de conflito com grupos menores.
Existem muitas adaptações necessárias a serem feitas para a utilização dos círculos nas
escolas, principalmente, pelo tempo reduzido: uma professora de música em uma escola de
ensino fundamental tem aulas de vinte e cinco minutos. Quando organiza a saída de uma turma, a
outra já está pronta para entrar. Não possui tempo algum entre uma aula e outra. Essa professora
participou de um treinamento de círculo e decidiu usar uma parte da prática circular. Quando os
alunos entram, solicita que sentem em círculo e que digam seu nome e uma ou duas palavras a
respeito de como estão, fazendo o check-in. Enquanto o objeto da palavra passa de aluno em
aluno, ela consegue respirar e se organizar mentalmente para a aula. Antes de iniciar a prática, ela
demorava de sete a oito minutos para começar a aula; com esta prática do círculo, diminuiu para
cinco minutos.
Nas escolas, temos visto muita criatividade no uso do processo circular. Tenho contado
essa história, ano após ano, em como adaptar o processo circular. Existe uma coisa muito
importante acontecendo no círculo daquela professora de música. Embora seja de cinco minutos,
28
cada criança será vista pela professora, especialmente, por ter muitas aulas e muitos alunos por
dia. Os alunos mais quietos não seriam visto nunca e, através desse processo, todos foram vistos.
Essas são ideias chaves de círculo. Estar totalmente presente um com o outro. Realmente
ver um ao outro.
2.5. PERGUNTAS
a) Em um círculo de vários encontros, em que, nas diretrizes, foi aceito que o participante
pudesse chegar atrasado, podemos deixá-lo adentrar, sem retomar as diretrizes? Num
grupo que se encontra há mais tempo, isso seria possível. A decisão dependeria de quem é
a pessoa e qual a atividade que está sendo feita. Se houver tensões com outros membros
do grupo, podemos fazer outro check-in quando a pessoa chega e os demais participantes
contam o que aconteceu no grupo antes de ele chegar. Assim, estaremos integrando essa
pessoa no círculo. Se for um grupo forte que já esteja confortável fazendo círculo, pode-se
permitir que a pessoa entre e se engaje na atividade que está ocorrendo.
b) Podemos fazer círculo com crianças de quatro ou cinco anos? Sim, podemos fazer. Não se
faz círculo longo. Podemos dar algo para que eles manipulem e fazemos perguntas
relevantes para idade deles. Para falar sobre valores podemos perguntar: “O que faz um
bom amigo?” Podemos pedir para que tragam um objeto da palavra, deixando-o no círculo
e utilizamos alternadamente a cada círculo para que cada criança sinta-se valorizada.
Podemos pegar um bicho de pelúcia grande escrevendo nele o nome de cada criança.
Podemos solicitar às crianças que façam coisas para colocar no centro, para se sentirem
“donas” do círculo. Podemos iniciar de uma maneira muito simples, dizendo o nome e uma
palavra de como estão se sentindo pela primeira vez. Queremos que aprendam o ritmo do
círculo, em ordem e falando somente de posse do objeto da palavra.
c) Quando os participantes não aceitam ir para o círculo, ficando na fase do pré-círculo, mas
percebemos que a pessoa necessita de algum encaminhamento, podemos fazer?
Geralmente, encaminhamos quando percebemos uma necessidade premente, mas é
necessário pedir permissão à pessoa para fazermos isso. Essa situação fica fora de minha
experiência, mas o que venho pensando é que devemos ser respeitosos com a pessoa com
quem estamos trabalhando e que precisamos oferecer aquilo que possa auxiliá-la. Faz
diferença quando estamos falando de adultos ou de crianças e adolescentes. Os adultos, às
vezes, recusam ajuda e, no meu ponto de vista, temos que respeitar. Pode também
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acontecer que o processo circular, por si mesmo, possa auxiliar essa pessoa a encontrar o
caminho. Tenho visto muitas situações acontecerem em que as pessoas se abrem mais no
círculo e o encaminhamento pode acontecer de uma forma mais eficiente.
d) É fundamental para o facilitador amar aquelas pessoas que estão no círculo. É muito fácil
amar a Kay e sua obra. Como praticar esse amor incondicional para com uma pessoa que é
violenta, abusadora, negligente, ...? Precisamos criar condição para escutar a história dessa
pessoa difícil de amar. Ouvindo a história dessa pessoa, vamos derrubar os pressupostos
que temos em relação a ela. O filme Slingblade inicia em algum tipo de Instituição. A luz é
muito fraca, o homem é muito grande. É muito assustador. Ele vem caminhando pelo
corredor com pouquíssima luz, passando a sensação de muito medo. Fico muito
desconfortável e com a respiração presa, esperando o que vai acontecer. Levam esse
homem assustador para uma sala com pouca luz e começa a contar sua história. Meu
corpo inteiro amolece. Assim que começou a contar sua história, relaxei. Havia matado
alguém. Havia uma história por trás disso.
e) Como não deixar que o círculo se torne um lugar de controle em que o rico fica em seu
lugar de rico e o pobre em seu lugar de pobre? A melhor maneira de remover as máscaras
que usamos é convidar as pessoas a compartilharem histórias que estão relacionadas com
as lutas humanas, as dificuldades comuns aos seres humanos, como: compartilhe uma
história na qual você se sentiu excluído, não se sentiu pertencente e como foi isso para
você. Compartilhe uma história sobre uma grande perda que você teve e como se tornou
mais forte quando conseguiu superá-la. Compartilhe uma experiência de uma mudança
que você tinha que passar, mas não queria passar, tinha muito medo e que agora se sente
grato pela experiência. Compartilhe uma situação em que você provocou um dano e que
assumiu a responsabilidade por aquilo que havia feito. Essas experiências eliminam as
diferenças que existem no círculo. Se as pessoas no círculo se engajarem, elas se colocarão
na sua vulnerabilidade. Assim, vamos desconstruindo as outras categorias em que elas
haviam sido colocadas. E, ao mesmo tempo, essas histórias podem também revelar a
diferença que faz em ser rico ou ser pobre. O lugar para se iniciar é estarem todos se
colocam em um lugar de vulnerabilidade.
f) Como se faz para que ricos e pobres estejam no círculo? Quais as motivações de estarem
juntos no círculo? Estamos recém iniciando este projeto. E este, especificamente, é para
fazer círculos para falar de raça e pobreza, fiz treinamento com as pessoas, há pouco
tempo. Estão no processo de descobrir como organizarão isto. O que buscamos é procurar
um lugar em que as pessoas possam se encontrar apesar das diferenças. Nos EUA, um
desses lugares seriam as igrejas onde se encontram tanto ricos como pobres. Outro lugar
para se ter esses círculos seriam as escolas onde existem muitas diferenças entre ricos e
pobres. Importante reunir as pessoas e conversar a respeito. Começamos com as pessoas
que não se importam com esse tipo de pergunta. Buscamos expandir e trazer cada vez
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mais pessoas para esta conversa. Nos locais de trabalho, podemos reunir as pessoas para
esta conversa. Normalmente, encontramos pessoas que estão bem, mas que já passaram
por situações de pobreza na sua vida e que podem falar sobre isto. Com este projeto, vale
começar lentamente e buscar oportunidade de crescer.
g) Quais os modelos de círculos que estão sendo utilizados em casos de violência sexual? Em
Nova York, existe um projeto com sistemas familiares que passaram por abuso sexual na
infância. Este é um exemplo de se criar algo quando não se sabia o que exatamente fazer.
Uma senhora, mediadora e xamã, no seu trabalho como xamã, teve contato com pessoas
que foram sobreviventes de abuso sexual na infância. Nesse processo de cura, alguns
adultos que haviam sofrido abuso sexual na infância, estavam separados de seus
familiares. A senhora refletiu como poderia fazer para esse adulto se reencontrar com a
família e poder falar sobre o que havia acontecido. Muitos deles falavam com suas famílias,
mas nunca haviam comentado sobre o que acontecera. Essa xamã começou a examinar os
processos restaurativos para ver se os mesmos poderiam auxiliar nestas situações
também. Começou a trabalhar a partir do pressuposto de que cada membro da família
havia sido impactado pelo acontecido, não só aquele que havia sido abusado. Decidiu que
o círculo seria o processo ideal. Quando se planeja um círculo dessa natureza, é necessária
muita preparação. Muitos pré-círculos, antes de colocar todos os envolvidos a sentarem
juntos. Tinha um grupo pequeno de pessoas que estava auxiliando a pensar em qual seria a
melhor maneira de se fazer isso. Solicitou um treinamento com ela e com esse pequeno
grupo. No início do treinamento, não tínhamos ideia a que conclusão chegaríamos. Mas, ao
final do treinamento, surgiu uma ideia de como seria a estrutura que usaríamos para esse
processo. Decidimos que oferecíamos círculo de cura para as pessoas que tinham um papel
diferente na família: faríamos círculo de cura só para as vítimas de abuso; círculo de cura
para indivíduos da família que se sentiam impotentes; círculo para pessoas que vinham de
famílias diferentes, mas que tinham tido o mesmo tipo de experiências; círculo de cura
para pais e mães que não haviam cometido ofensas, mas que falharam na proteção das
crianças; círculo para os ofensores, que haviam abusado da criança na família. Cada pessoa
da família faria parte de um círculo no qual se adequara de acordo com a sua experiência
vivida com a vítima na família. Esses círculos tinham de cinco a sete membros, não mais do
que isso e se encontravam uma vez por semana pelo período de doze semanas, com
duração de uma hora e quinze minutos. Os três primeiros encontros se dedicaram a criar
espaço seguro e, a cada círculo, depois desse espaço seguro, uma pessoa contaria a sua
história e os outros respondiam a ela. Nas duas últimas semanas, os círculos eram de
reflexão. A pergunta que fazíamos para desencadear a história era qual a parte que está
mais distante da sua cura? Alguns falavam sobre a sua jornada de cura, outros contavam
sua história inteira. Os membros decidiam o que falar: se a respeito da sua história ou o
que estavam fazendo para sua cura. Esses círculos são facilitados por voluntários, os quais
compartilham as características dos participantes. O círculo das vítimas era facilitado por
31
pessoas que haviam sido abusadas também. O mesmo para cada um dos outros círculos.
Se toda a família quer participar de círculo juntos, primeiro devem passar pelos círculos de
cura.
i) Como você imaginou quando foi criado o programa voluntariem os da paz? Imaginei
comunidades em que as pessoas prestavam atenção umas às outras e em que as pessoas
se ajudam entre si. Quando alguém precisa de alguma coisa, outro alguém ajuda.
j) Quando percebemos que a pessoa está mentindo ou dissimulando, como fazer para que
ela consiga trazer o seu verdadeiro “eu”? Se percebermos que alguém está mentindo no
círculo, é sinal que essa pessoa não está se sentido segura, principalmente se for uma
pessoa que tenha causado dano. Nessa situação, precisamos dar mais segurança à pessoa
para que ela possa falar sobre o que aconteceu. Para isso, podemos fazer uma rodada
convidando os participantes a compartilharem um momento em que eles cometeram um
erro. Assim, a pessoa sentirá que não é a única a cometer erros na vida. Com isso,
nivelaremos e teremos a certeza de que ela não está se sentindo isolada. Nessa
circunstância, terá menos necessidade de mentir.
32
2.6. ENTREVISTA
33
sensação de significado pessoal e de poder pessoal. Existe um papel muito importante pelo
cuidado com os outros. Porque se nós sentirmos que realmente temos valor por nós
mesmos, nós não vamos precisar ter poder sobre os outros. Vamos poder experimentar
esse poder com os outros, e esse tipo de poder nos traz uma paz muito maior, ao mesmo
tempo em que atende a nossa necessidade de sentirmos que temos algum poder, que
temos autonomia nas nossas vidas.
3) Compreendemos que todo ato violento praticado revela uma necessidade não
atendida. Dentro da rede de atendimento público, no contexto brasileiro de forma geral,
percebemos que diversas vezes o sistema não consegue cumprir o seu papel no
acolhimento, tratamento e resolução das demandas da população, o que fere a dignidade
da comunidade, principalmente das vulneráveis. A partir dessa reflexão, de que o sistema
também pratica atos violentos contra a comunidade, como podemos pensar uma forma de
auxiliá-lo ou de verificar quais são as suas necessidades que não estão sendo atendidas
para que ele possa executar da melhor maneira o seu papel? Nós precisamos criar formas
de diversas maneiras para incluir os cidadãos, especialmente aqueles que têm menos
poder, para que conversem com aqueles que realizam os serviços. Muitas pessoas nesses
serviços realizam seu trabalho a partir de um lugar de boas intenções, mas o impacto de
seu trabalho não atende as suas intenções. Um dos princípios da Justiça Restaurativa é de
que as pessoas que estão mais próximas dos danos têm que fazer parte da tomada de
decisão para encontrar soluções. As pessoas cujas necessidades não estão sendo atendidas
precisam fazer parte do grupo que vai decidir qual é a solução que irá ser encontrada. Isso
demanda muito diálogo na comunidade e espaços que não privilegiem as vozes dos
profissionais. Nós precisamos buscar maneiras de encontrar a sabedoria daqueles que
estão com as necessidades não atendidas. Isso significa que precisamos criar espaços que
sejam profundamente respeitosos para cada um. É importante que as pessoas que
precisam dos serviços não sejam vistas como alguém inferior às outras. Nós não precisamos
chegar às soluções; precisamos trazer as vozes daqueles que foram mais impactados pelas
fraquezas do governo, encontrando, assim, novas maneiras de buscar soluções e de
atender às necessidades.
4) O amor, por muitas vezes, é confundido na nossa sociedade moderna como algo
relativo à posse, ao apego ou à dependência. Como o amor é compreendido na visão
restaurativa? Como o círculo pode administrar essas concepções diversas e possibilitar que
os participantes compreendam ou vivenciem o amor? O conceito de amor, como eu
entendo na concepção restaurativa, envolve a aceitação completa da outra pessoa da
maneira como ela é: imperfeita. Ao mesmo tempo, o amor significa enxergar o potencial
para o bem que essa pessoa traz. A crença de que essa pessoa tem um eu verdadeiro
dentro dela que é bom, é sábio e poderoso. Eu penso que o amor nos processos
restaurativos significa dar apoio à pessoa que cometeu um erro e possibilitar um processo
de recuperação desse erro. A maneira de nos recuperarmos de um erro cometido é
assumirmos a responsabilidade sobre ele e fazer reparações. Em um processo restaurativo,
34
se alguém que você ama cometeu um erro, você vai querer encorajá-lo e apoiá-lo, ajudá-lo
a reconhecer e assumir responsabilidades pelo dano que causou - porque você sabe que
isso irá torná-lo mais saudável. A estrutura dos processos restaurativos, que permite que as
vozes de todos sejam ouvidas, em que todos são tratados com respeito, possibilita que cada
um se sinta amado pelo facilitador e pelo procedimento - mesmo quando eles não se amam
entre si. O processo deve acolher cada pessoa como merecedora de dignidade e, dessa
maneira, amar cada participante que está fazendo parte do processo. Os participantes não
precisam necessariamente amar uns aos outros, mas esse espaço de respeito aumenta a
possibilidade das pessoas se movimentarem em direção ao amor.
36
3. WORKSHOP DE SUPERVISÃO DE FACILITADORES - ASSOCIAÇÃO DOS
JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL – AJURIS – 15 A 17 DE MAIO DE 2017 -
PORTO ALEGRE
... As Práticas Restaurativas dentro dos ambientes em que os jovens estão privados de
liberdade, estes enfoques ainda estão à margem, nos EUA. Essa não é a prática principal, mas está
crescendo de forma significativa. A linguagem da Justiça Restaurativa está se tornando mais
familiar e mais conhecida. Estamos vendo também o crescimento do uso de práticas restaurativas
para conflitos que acontecem em locais de trabalho. Esse é um lugar muito importante para
introduzirmos as práticas restaurativas. Quando estamos acordados, passamos mais horas no
nosso local de trabalho do que com nossas famílias. É uma parte muito importante de nossas
vidas. Às vezes, as pessoas não têm muita escolha a respeito de onde elas trabalham, e não é fácil
deixar o emprego e encontrar outro. Estamos presos, de certa forma, a essa comunidade em que
trabalhamos. Pelo menos, nos EUA, muitos desses locais de trabalho são locais de infelicidade. O
local de trabalho é muito importante para começarmos a construir a nossa Cultura de Paz.
Mais recentemente, quanto aos políticos que têm se tornado mais polarizados no mundo,
tivemos alguns círculos que foram aplicados com o tema dessa polarização. Fizemos uma
capacitação, na Itália, para lidar com a permanência ou não na União Europeia. Tinham equipes de
cinco países diferentes participando dessa capacitação: Hungria, Itália, Alemanha, Grécia e
Dinamarca. Essas equipes aprenderam a fazer círculos. Cada uma delas voltaria a seu país de
origem para recrutar dois grupos de pessoas: um grupo a favor da permanência e outro querendo
se desligar da União Europeia. Primeiramente, cada grupo faria os círculos de forma separada.
Depois, os grupos seriam reunidos para falar sobre a permanência ou não na União Europeia. Este
projeto está em seus últimos estágios e não tivemos informações de como está esta situação.
Nos EUA, um amigo fez um círculo entre os apoiadores do Trump e da Hillary Clinton. O
objetivo desse tipo de círculo não é concordar, mas escutar profundamente o que um e outro tem
a dizer. Serve para entender como as pessoas enxergam de maneira diferente e perceber que,
37
mesmo com essas diferenças significativas, temos pontos em comum. Precisamos de muitos
círculos assim nos EUA.
Tem havido um crescimento significativo de círculos para lidar com trauma. Fizemos parte
de dois grupos que estão trabalhando para abordar o abuso sexual. São círculos de cura para
adultos sobreviventes desse abuso. Um dos projetos está dentro da Igreja Católica, principalmente
abordando o abuso sexual cometido pelo Clero. O outro projeto está em Nova Iorque, chamado de
Águas Ocultas. Esse projeto trabalha com adultos sobreviventes de abuso sexual e com membros
da família que não foram abusados, mas que sofreram o impacto do abuso. Trabalhando com
pessoas que cometeram os abusos. O trabalho é realizado em grupos separados, num processo de
cura. Os resultados têm sido surpreendentes. Trabalhando em Nova Iorque, numa capacitação,
com algo relacionado a este projeto, havia uma pessoa que era vítima de abuso sexual. Ela nos
contou que estava em terapia há muito tempo para tentar superar este trauma. Foi o processo
circular que conseguiu libertá-la deste trauma. Este trabalho também dá esperança. Acreditamos
que este tipo de crescimento está acontecendo em todo globo terrestre. Estamos impressionadas
com o número de capacitações que vocês têm; com o número de facilitadores que estão
trabalhando nas diferentes partes da comunidade, principalmente, onde está sendo
implementado este trabalho.
O que temos aprendido: Uma das maiores lições, nos últimos anos, é que não
conseguimos falar honestamente sobre as questões relevantes que nos afligem sem grande
desconforto e em momentos que não nos sentimos seguro.
Temos participado de círculos muito significativos para discutir questões de raça, pois
alguma coisa que foi dita, foi difícil, magoou as pessoas de cor. Foram espaços muito difíceis e
muito desconfortáveis. Algumas das coisas que foram ditas causaram mais mágoa e, ainda assim,
eram coisas que precisavam ser ditas. Uma realidade muito difícil que, ao falarmos de uma dor
com muita honestidade, podemos causar outra dor e, ainda assim, tem que ser discutido
abertamente. A verdade pode ser dolorosa e nem sempre nos dá sensação de segurança. O que
vimos naqueles rostos é que o ponto chave é tentar manter-se no círculo. Não fugir ou esconder
ou fingir que a dor e o desconforto não estão lá. Os círculos sobre questões difíceis, tais como raça
e desigualdade, não terminaram com tudo resolvido ou com todos se sentindo alegres.
Temos vivenciado alívio de que a verdade pode ser dita e que podemos permanecer neste
espaço respeitosamente uns com os outros, em face de verdades muito difíceis. Mas a realidade
das desigualdades e dos traumas, no mundo maior, que são revelados nesta verdade que vem à
tona, estes permanecem. A compreensão cresce, mas a reparação dos danos ainda está distante.
Esses círculos são muito confusos e terminam com muitos pontos soltos, mas, ainda assim, a
sensação é que foi dado um passo adiante. Então, continuam sendo bons, mas são difíceis.
38
Aprendemos também, com muita frequência, que a dor superficial não é a dor que precisa
ser abordada. Em uma capacitação para facilitadores para o projeto das Águas Ocultas - projeto
que trabalha com os sobreviventes de abuso sexual na infância. Muitas pessoas que estavam no
grupo eram sobreviventes. Era um treinamento de três dias e, no segundo dia, estávamos fazendo
o check-in e uma senhora chegou um pouco atrasada e havia uma só cadeira vaga. No dia anterior,
ela havia expressado sua preocupação com as pessoas usando o celular. No seu check-in, falou de
uma maneira como quem não quer nada, que ela estava entre duas pessoas que ficavam
mandando textos. Terminamos a capacitação do dia e, ao final, na última rodada de check-out,
uma pessoa disse: eu estou com medo de que, ao dar nome a uma dor, vou causar outra dor. Ela
disse que sentiu que várias pessoas participantes do círculo tinham sido magoadas com aquele
comentário do início e mais pessoas fizeram referência a isso. Era o check-out e não poderíamos
fazer nada naquele momento. Passamos a noite inteira pensando como iríamos abordar esse tema
no dia seguinte. Parecia um assunto tão trivial. As coisas com que estas pessoas estão trabalhando
são muito sérias. Sabíamos que se abordássemos a questão de ficar mandando textos levaria toda
manhã para resolver e tínhamos outra intenção com esse grupo. Passamos por isso ou não? O que
faremos? Precisamos tratar disso. Quando iniciamos perguntando às pessoas como estavam se
sentindo, elas trouxeram outras experiências da sua vida, porque foram acionados por aquele
comentário. Muitas tinham sido vítimas de abuso sexual. A vergonha é acionada muito facilmente
e essa vergonha pode ser acionada de maneira trivial. Quando passamos o objeto da palavra, eles
não falaram sobre a coisa trivial, eles falaram a respeito da vergonha profunda que ainda tinham e
se tornou um espaço de cura para eles. Esse é um paradoxo: que uma pequena mágoa possa abrir
espaço para que venha à tona uma grande mágoa. Se não processarmos essa pequena mágoa, não
possibilitaremos que as grandes mágoas sejam trazidas à tona. E, ao mesmo tempo, aquele que
tinha trazido esse pequeno dano, sentiu muita vergonha por aquilo que havia desencadeado,
ficando muito complicado. Hoje, vemos mais complicado do que víamos dez anos atrás, mas, de
alguma forma, vemos como esperança. Na complicação sempre aparece uma nova oportunidade,
porque nada está terminado ou completo. Existe uma ideia na teoria do caos: quanto mais
turbulência for permitida num processo, mais robusta será a solução. Quanto mais complicações,
mais possibilidades se abrem para que consigamos soluções fortes. Isso exige que sintamos muito
desconforto a nossa volta e conosco.
Gostaríamos de esclarecer de onde vem o termo pessoa de cor: como no Brasil, nos EUA,
tem uma mistura muito grande de pessoas, de povos e uma grande variação de cor. Mas, na maior
parte das vezes, o poder está nas mãos de pessoas brancas. As pessoas que não são brancas se
sentem menores e isso inclui pessoas de herança africana, indígena, asiática e latino-americana.
Nesse contexto, as pessoas que não são brancas sentem que têm muito em comum, mas nem
todos se identificam com a cor negra. Dessa comunidade que veio o termo “pessoa de cor” e é
assim que eles querem ser chamados lá. No Brasil, negros são africanos e, nos EUA, são afro-
americanos. Nos EUA, de cor são africanos, indígenas, asiáticos e latino-americanos. Queremos
tentar usar o termo que as pessoas aqui sintam que seja o correto. Nossa vontade mais profunda é
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de sermos respeitosos. Pensando a respeito desse termo, porque tem sido um desenvolvimento
mais recente nos EUA. Quando fizemos parte de um grupo que é oprimido ou que é mal
entendido, podemos não confiar nos espaços criados pelo grupo dominante, embora esses
espaços sejam criados com as melhores intenções. Às vezes, não conseguimos entender como a
nossa perspectiva pode formatar esse espaço. Temos que começar a pensar para trás e criar
relacionamentos com as pessoas com as quais queiramos estabelecer diálogos, para construir
confiança para que possam estar dispostos a participar de um espaço assim. Esse é um trabalho
que não é rápido. É preciso muita paciência e muita persistência. As conversas mais poderosas que
participamos, falando sobre raça, foram círculos em que o tópico não era raça, mas o lugar se
tornou um lugar seguro para que as pessoas de cor, englobando todas as raças, se sentissem
seguras para trazer o assunto raça à tona. Essa discussão está viva o tempo todo nos EUA, a menos
que todos os participantes sejam da raça branca. Está tão vivo, nos EUA, que, em qualquer grupo
que haja uma mistura de pessoas, isso vai surgir. E, quando o grupo se sente seguro, é mais
provável que surja essa discussão.
As experiências que tivemos foram espaços de muita cura para as pessoas oprimidas. Nada
mudou no mundo lá fora, mas foram espaços em que as pessoas foram escutadas, de uma
maneira plena e profunda, e a verdade trazida foi reconhecida. Vemos o círculo como um espaço
poderoso para que sejam mudadas as dores trazidas pelo passado. Falamos, às vezes, sobre
Justiça Restaurativa entre povos, não só entre pessoas, mas também entre grupos de pessoas.
Para nós, como americana, de herança europeia, precisamos fazer um trabalho de cura com os
indígenas e os povos que foram trazidos como escravos da África. A estrutura restaurativa nos
ajuda a fazer isso, porque essa estrutura explora o que as vítimas precisam. Precisam contar sua
história. E, provavelmente, precisam contar suas histórias muitas e muitas vezes. Precisam ser
escutadas de maneira profunda. Precisam ter validado a ideia de que aquilo que aconteceu com
elas foi errado; que elas não mereciam; que não há nada de errado com elas. Precisam de algum
tipo de reparação. Quando olhamos para os danos históricos, é possível fazer as primeiras partes
disto, escutar as histórias muitas e muitas vezes e validar que aquilo que aconteceu foi errado.
Que as pessoas não mereciam o que aconteceu e que não tem a ver com quem elas são. É mais
difícil pensarmos em que tipo de reparação, mas não é difícil pensarmos que podemos escutar as
histórias. Podemos fazer isso hoje, mesmo para as coisas que aconteceram há centenas de anos e
que, nesse processo, podemos nos curar com os nossos ancestrais. Uma amiga latino-americana
ensinou que é possível haver uma cura com os nossos ancestrais. É de muita esperança, porque,
de outra forma, estaremos carregando o peso do trauma dos nossos ancestrais, mas se tivermos
essa intenção poderemos curar o trauma dos nossos ancestrais.
... O objetivo como facilitadora é sempre fazer com que o espaço seja seguro o suficiente
para possibilitar que as pessoas sejam autênticas, mas não podemos prometer a elas que será um
espaço seguro. O número de elementos que compõem o círculo existe para deixar um espaço
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seguro. A cerimônia de abertura que deixa o ambiente mais leve e prepara as pessoas para círculo
contribui para a segurança do espaço. O uso do objeto da palavra passando de mão em mão,
organizadamente em torno do círculo, quando ninguém pode interromper, é uma grande
contribuição para segurança. O direito de passar a vez também contribui para a segurança. A
discussão de valores, antes de falar sobre a questão em si, contribui para a segurança do espaço.
Toda primeira parte do círculo auxilia a construir a segurança esperada. A maneira como o
facilitador se posiciona no círculo, se colocando como igual, aumenta a segurança. Se virmos o
potencial daquele eu melhor que existe em cada um, aumenta segurança. Se conseguirmos
compartilhar experiências da nossa vida que nos colocam em um lugar de vulnerabilidade,
aumenta a segurança. A parte de contação de histórias em que os participantes podem se
enxergar um na história do outro, aumenta a segurança do círculo.
Procurar sempre elaborar as questões que convidem a uma resposta começando por “EU”:
como você foi impactado pela situação? Qual a coisa mais difícil para você, a respeito dessa
situação? O que você poderia oferecer para que pudéssemos avançar de um jeito melhor?
Elaboramos essas perguntas para que as pessoas tenham a oportunidade de trazer as respostas a
partir de sua própria experiência, de sua própria vida. Certificamo-nos de que a pergunta não
convidará a um ataque à outra pessoa, que não ofenderá alguém com palavras.
Queremos que as perguntas sejam sobre sentimentos e emoções do que sobre fatos. Os
sentimentos são mais importantes do que os fatos. As pessoas podem discordar a respeito de um
fato, mas, mesmo assim, irão entender como a outra pessoa está se sentindo.
Na estrutura do círculo, algumas coisas têm mais flexibilidade do que outras. Não existe
flexibilidade quando consideramos o uso do objeto da palavra, porque, estruturalmente, é muito
41
importante. Ele precisa seguir a ordem em volta do círculo e não pode pular de um para outro.
Seguindo a ordem, em volta do círculo, enfatiza a igualdade, porque a oportunidade de falar deve
ser absolutamente igual para todos. O objeto da palavra, passando em volta do círculo, estará
honrando sua presença, mesmo que a pessoa não queira falar. Faz com que ela se sinta e seja
parte do círculo, mesmo que não queira se manifestar verbalmente. A participação no círculo não
tem a ver com falar. A participação é a escuta.
É importante que o objeto da palavra siga em ordem. Ele distribui o poder em volta do
círculo. Em outros processos, o facilitador é quem escolhe e quem decide quem vai falar em
seguida. Isso dá muito poder ao facilitador e quando usamos o objeto da palavra abrimos mão
desse poder. O poder vai mudando com o objeto da palavra passando em volta do círculo. Não
funcionará se não passarmos em ordem. Se não mantivermos a ordem, o poder não será
distribuído de maneira igual. A distribuição de poder é o potencial maior do círculo. O objeto da
palavra é a forma estrutural de termos certeza de que isto vai acontecer. Significa que, como
facilitador, não irá interromper quem está falando, a não ser que seja inevitável. O facilitador,
geralmente, esperará que o objeto da palavra chegue de volta até ele se quiser falar de algo que
foi dito dentro do círculo.
Que treinamento tivemos que desaprender para nos tornarmos facilitadores? É importante
nos darmos conta de que a maior parte da nossa socialização no nosso treinamento não nos
prepara para trabalhos assim. É preciso dar alguns passos para trás e perdoar a nós mesmos por já
não estarmos fazendo isto desta maneira. Perdoar àqueles que nos treinaram nas nossas
profissões, pois estavam fazendo o seu melhor. Treinaram baseados nas suas experiências.
Quando pensamos no quanto precisamos desaprender, nos ajuda a ter mais paciência com nossos
colegas que não estão tão prontos ainda para desaprender. Não é fácil deixar de lado a maneira
como fomos treinados e socializados. Está entrelaçado com a nossa identidade e nosso sentido de
responsabilidade a respeito daquilo que devamos fazer. É importante que façamos o exercício da
autoempatia, do autoamor, para termos a coragem de fazer essa jornada, porque é uma jornada
que requer coragem. Queremos fazer essa jornada e honrar aqueles que ainda não estão prontos
42
para isso. É importante que cuidemos uns dos outros nessa jornada. Que possamos ter espaços
para estarmos juntos, sem a necessidade de explicar por que estamos fazendo assim. É importante
termos um espaço em que possamos respirar profundamente e compartilhar com o grupo as
alegrias e os desafios do trabalho que estamos fazendo. É importante que cuidemos uns dos
outros e amemos uns aos outros. Precisamos estar frente a frente para cuidarmos uns dos outros,
de tempos em tempos.
Vamos trazer uma experiência daquilo que devemos desaprender. Em uma capacitação, já
havíamos visto as diferentes maneiras de como éramos enquanto facilitadores. Um dos
participantes diz que “é para explorar e não para conquistar. Fez muito sentido. Fizemos parte de
um conselho escolar por nove anos, composto por sete pessoas. Esta equipe era a que decidia
tudo para aquele distrito escolar. Estávamos tomando importantes decisões de como a escola
deveria funcionar. A equipe envia o material que líamos atentamente, conversávamos com
algumas pessoas a respeito do material e chegávamos às conclusões de como a escola deveria
funcionar. Íamos para as reuniões para convencê-los, porque achávamos que tínhamos a resposta
certa. Como uma conquistadora, não exploradora. Assim, aprendemos a ser uma exploradora na
tomada de decisão no círculo. Exploradora e não conquistadora. Isso exigiu grande
desaprendizagem.
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sentirem seguros. A cerimônia de encerramento marca o final do espaço. Queremos que ela traga
a esperança de seguirmos adiante. Importante incorporar o sentido de gratidão por esse
momento e enfatizar a conexão. A cerimônia pode ser simples e curta. Normalmente, nas
cerimônias de abertura e encerramento, queremos deixar de lado coisas analíticas. Podemos
engajar o corpo, o coração, o espírito, mas não a mente, para que consigamos conectar coração e
espírito. A abertura e encerramento são muito importantes.
Existe uma flexibilidade sobre o centro, e uma das razões é que nossos primeiros
professores não usavam o centro, pois os povos da primeira nação, normalmente se reuniam em
torno da fogueira. Como estávamos dentro de prédios, não havia essa possibilidade. Mas, quando
aprendi, não usavam centro. O uso do centro se desenvolveu em Minnesota, onde achamos que
seria importante termos algo para colocar os valores e outras coisas que poderiam ser incluídas
nos centros. Recebemos feedback de participantes que conseguiam ficar mais focados e mais
presentes no espaço. Outras pessoas, mais tímidas, nos disseram que os centros auxiliavam a
superar a timidez, quando se sentiam desconfortáveis em perceber os olhos sobre elas e, ainda,
algumas pessoas que gostavam de conversar muito falaram que os centros auxiliavam-nas a não
conversar tanto. Tivemos respostas positivas em relação ao uso do centro. Descobrimos também
que poderíamos envolver os participantes na criação do centro, para se sentirem mais donos do
processo. O centro é muito útil, mas não é absoluto.
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É essencial, no círculo, buscarmos a conexão do coração e espírito, além da conexão de
mente e corpo.
Queremos compartilhar algo que vocês não precisam acreditar tanto quanto acreditamos.
O importante é escutarmos aquilo que nos faz sentido e levarmos conosco, usando o melhor de
nossa habilidade para colocarmos em prática. Se não fizer sentido para nós, não precisamos
absorver.
Alguns Desafios da Nossa Prática: Pediram para fazer um círculo em uma instituição que
administrava habitações em uma reserva de indígenas. Havia muitos conflitos, muito desrespeito.
Era um local de bastante trabalho. Na preparação dos pré-círculos, fizemos entrevistas com cada
um dos 30 participantes. Nesses pré-círculos, escutamos muitos e muitos problemas. Planejamos
um círculo que teria duração de um dia. Quando chegamos para o círculo, havia 40 pessoas, isto é,
dez delas não tinham participado dos pré-círculos. Durante a manhã, tentamos construir os
relacionamentos para que fosse um espaço seguro, para que à tarde pudéssemos trabalhar as
questões levantadas. Porém, à tarde, quando o objeto da palavra começou a passar, uma rodada
após outra, ninguém falava sobre as coisas que haviam trazido nos pré-círculos. Ninguém
conseguia dar nome aos problemas que estavam enfrentando. Não é papel do facilitador trazer o
assunto à tona. Terminamos o dia e sentimos que tínhamos desperdiçado tempo. Sentimos que
não havíamos conseguido nada; que havíamos fracassado. Fomos para casa, que ficava a uma
distância de quatro horas e meia. Tempo suficiente para pensarmos. E, no meio do caminho,
dissemos: eles estavam certos. O espaço não estava seguro suficiente para que se sentissem à
vontade para trazemos os problemas. Sentimos alívio por não terem trazido os problemas.
Acreditamos que não provocamos nenhum dano maior. Esse foi nosso consolo. Não ajudamos,
mas não provocamos mais dano. Foi uma decisão importante ter respeitado o fato de eles não
terem trazido os seus problemas. A situação demandara maior preparação de pré-círculo com
grupos menores de pessoas. Não deveríamos ter tentado trazer tantas pessoas juntas, tão
rapidamente. Aprendemos muitas lições.
Se estivermos nos sentindo muito fora de centro, fora de equilíbrio, podemos solicitar um
intervalo. Podemos trazer para o grupo, reconhecendo que algo aconteceu conosco. Podemos
falar sobre os sentimentos que surgiram. Reconhecer nossa humanidade e vulnerabilidade é uma
forma de conectarmos mais com o grupo. Não queremos suprimir aquilo que está acontecendo de
ruim. O importante é respeitar e dar a atenção ao que está acontecendo conosco. Se tentarmos,
simplesmente, suprimir, irá sub-repticiamente, aparecer novamente e podemos nem perceber.
Se o objeto da palavra está passando muito rápido, porque muitos estão passando a vez, o
círculo está desequilibrado. Temos que pensar no que fazer para dar mais espaço. Uma sensação
de mais relaxamento para dentro do círculo. Podemos ficar em silêncio por um tempo; podemos
conduzir as pessoas a um exercício de respiração antes da próxima rodada e, quando formos fazer
a próxima rodada, vamos pedir para que cada participante segure o objeto da palavra contando de
um a dez, antes de passar adiante. Isso proporcionará uma energia mais relaxada e mais tranquila
no círculo. Podemos passar o objeto da palavra e pedir aos participantes que segurem o objeto até
que entendam que o seu silêncio foi escutado. O lugar mais comum que as pessoas trazem é que o
objeto da palavra passa muito rápido é com jovens adolescentes.
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precisam entender sobre ti que ainda não entenderam? O que os professores da tua escola
precisam entender sobre a tua vida que ainda não entenderam? O que tu tens a dizer sobre o que
as outras pessoas não estão escutando? Essas perguntas dificilmente não serão respondidas.
Uma das responsabilidades mais importantes como facilitador é certificarmos que o objeto
da palavra vai se movimentando. As pessoas, às vezes, podem não ser adequadas quando estão
com o objeto da palavra, dizendo às outras pessoas o que elas têm que fazer. Não precisamos nos
preocupar com isso, desde que o objeto da palavra esteja dando a volta. Na hora em que o objeto
da palavra está se movimentando, ninguém mais tem o poder. Em outras vezes, uma pessoa pode
explodir de uma maneira que não pareça muito respeitosa dentro do círculo. O facilitador não
precisa necessariamente fazer algo a respeito, contanto que essa explosão termine e o objeto seja
passado adiante. O resto do círculo pode reequilibrar aquilo que aquela pessoa trouxe, mas
manter o objeto da palavra seguindo é o mais importante. E é isso que iguala as pessoas no círculo
e as coisas que surgem são amenizadas pelas outras pessoas que vêm em seguida.
Violência doméstica: Existem dois projetos com os quais estamos envolvidos nos EUA. Um
deles acontece há 18 anos. É um projeto pequeno, em uma comunidade onde as pessoas estão
usando o círculo como processo de sentenciamento para violência doméstica. Nesses casos, a
vítima tem que concordar que seja decidido em círculo. Num caso típico, a cada duas semanas e
durante alguns meses, para ter certeza de que as questões subjacentes ao fato em si e, depois,
juntamente com o juiz fazendo parte do círculo, eles determinam qual será a sentença. A sentença
sempre inclui círculos continuados e tem duração de 18 meses ou dois anos. O círculo continua a
cada duas semanas para certificar se estão sendo cumpridos os outros pontos da sentença. É
muito mais um processo de responder para sua própria comunidade, do que somente ao juiz,
porque a cada duas semanas há necessidade de dizer à comunidade como está indo, o que está
fazendo. O círculo está cuidando tanto da responsabilização quanto do apoio. Lidam com poucos
casos, porque o projeto é pequeno. É realizado por voluntários e, até hoje, não houve
reincidência.
48
Outro projeto que está acontecendo é em Nogales, uma cidade na fronteira com o México.
Provavelmente, 95% dos habitantes falam espanhol. Tinha um juiz municipal que estava muito
preocupado com os casos de violência doméstica, porque, na maioria desses casos, o homem e a
mulher voltavam para casa juntos. E não havia nenhum serviço à disposição, se eles continuassem
juntos. Se a mulher saísse de casa, teria a possibilidade de atendimento, mas se resolvesse
continuar com o marido, não havia nenhum serviço que pudesse acessar. O juiz se interessou em
buscar um processo que cuidasse das duas partes. Ajudá-los a viver com menos violência, porque
continuavam vivendo juntos de qualquer forma. Criaram um processo circular para os casos que a
pessoa que causou dano, que nem sempre era o marido, recebesse, como sentença, participar do
círculo durante vinte e seis semanas com encontros semanais. A vítima também participa dos
círculos. Uma das características desse projeto é que, quando eles aceitam o caso para fazer parte
do programa, identificam como um monitoramento de segurança, não profissional, uma pessoa
que se importe com eles, que pode ser um vizinho, um parente. Essa pessoa é um membro
orgânico dessa comunidade e se responsabilizará por prestar atenção na segurança da mulher.
Esta pessoa tem uma chance muito maior de prestar atenção no que está acontecendo do que
qualquer outro serviço. Poderá aparecer na casa sem avisar e ter contato regular com a família.
Participa de todos os encontros. Há voluntários da comunidade participando dos círculos. São
criados relacionamentos profundos entre as pessoas da comunidade que participam como
apoiadores e aqueles que estão lutando para ficar bem. Este programa existe há uns 11 ou 12
anos, Circle in Nogales. Existe um projeto, em Minnesota, que não sei bem como funciona. Estão
fazendo círculos com homens que cometeram violência doméstica, e a organização não
governamental que os conduz é “Os Homens como Construtores de Paz”, em Duluth.
Linda Mills era líder do Centro para Recuperação de Violência, na Universidade de Nova
Iorque e foi consultora para o projeto em Nogales. Fizeram pesquisas nesse projeto e descobriram
que era tão seguro quanto o que tratava de violência doméstica. Linda se envolveu com outro
projeto na cidade de Nova Iorque, com a ala mais conservadora, em uma comunidade judaica. Os
membros jamais chamam a polícia e não se envolvem com o sistema central. É uma subcultura
que se autorregula ou não. Fizeram um projeto para usar o círculo ao lidar com a violência
doméstica nessa comunidade, o qual não tinha nada a ver com sistema de justiça. Trabalhavam
com o rabino, porque os membros da comunidade consultavam-no quando tinham problemas e
ele tinha interesse em buscar a redução da violência. É importante lembrar que existem
subculturas que irão se recusar a usar o sistema da cultura dominante. E o que acontece nesta
cultura, com muita frequência, é invisível à cultura dominante. Nesse caso, podemos entrar na
comunidade por uma porta completamente inesperada.
Tem outro enfoque que também está sendo usado em uma comunidade, que saiu do
pensamento de Justiça Restaurativa: DVSD - Violência Doméstica, O Diálogo com os
Representantes (substitutos). Nesse programa, aquele que foi vitimizado se encontra com alguém
que cometeu uma ofensa semelhante, mas não com a pessoa que lhe causou o dano e, sim, com
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uma pessoa diferente que cometeu o mesmo tipo de ação. E os diálogos com esses substitutos ou
representantes do fato em si são poderosos. Alguns diálogos foram voltados para crimes
extremamente sérios, tais como abuso sexual infantil e assassinato, e as pessoas que participaram
desses diálogos vivenciaram transformações incríveis. Mesmo não sendo a pessoa que lhe causou
o dano, ela faz descobertas nesse processo que é muito criativo.
Esses são os programas que lembro que trabalham violência doméstica. No início dos anos
de Justiça Restaurativa, o movimento da violência doméstica era hostil à implementação da Justiça
Restaurativa, o que vem mudando nos EUA. Existe uma abertura maior para se usar Justiça
Restaurativa no tratamento dos casos de violência doméstica, pois percebemos o papel de cura
que o círculo pode desenvolver nos casos desse tipo de violência.
Quando vamos a uma escola e os professores estão resistentes, lembramos a eles que
estamos pedindo que se sintam incompetentes. Devemos sentir empatia pela resistência que eles
oferecem. É um lugar bem desconfortável. E quanto mais trabalharmos para chegar aonde
chegamos, é mais difícil para deixarmos isso de lado. Isto pode ser uma questão profunda de
identidade, porque se não nos sentimos competente podemos nos sentir sem valor nenhum. É
preciso coragem para entrar neste espaço de não sabermos a resposta. É muito importante ter
paciência com nós mesmos e com os outros também.
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Não precisamos de nenhum pesquisador ou de nenhuma mãe a nos dizer que precisamos
embalar nossos filhos. Não precisamos de pesquisadores a nos dizer quando estamos com fome
ou quando precisamos comer. Há outras maneiras de sabermos e que são muito importantes para
uma vida saudável. Esse modelo busca acessar os outros conhecimentos que temos. Tem sido um
aprendizado, a partir das tradições indígenas, que nos ajudou a abrir a mente para outros saberes,
porque parece que esta é uma maneira natural de viver das culturas indígenas. Sabemos que isto
vem da observação, da nossa própria experiência de vida. É um mundo diferente.
A questão do trauma: Não sei no Brasil, mas nos EUA tem sido um tópico muito falado,
especialmente nas escolas. Com o reconhecimento de que muitos alunos vão à escola carregando
muitos traumas (e esta é uma conversa muito importante), também estou preocupada com o
rumo que isto está tomando. Uma frase que estão usando é o processo de trauma informado. Há
dois tipos de traumas que o círculo pode oferecer cura: uma das grandes fontes de dor de trauma
é o sentimento de impotência completa, de não ter poder nenhum. Uma das maneiras de curá-lo
é oferecer a experiência de vivenciar o poder pessoal. O círculo é uma experiência de poder
pessoal positiva. Ser escutado com atenção é uma experiência de poder pessoal. Normalmente, na
nossa cultura, somos escutados baseados no poder que temos. Se você está em um lugar de
poder, de bastante poder, as pessoas vão parar e escutar nossa história. As pessoas que não
detêm o poder, raramente têm a chance de serem ouvidas. A experiência de sermos escutados
atentamente é relacionada ao poder pessoal. Não importa qual o objetivo do círculo, não há
necessidade de falar a respeito de trauma. É um lugar de cura para as pessoas que têm se sentido
desempoderadas, impotentes. Outra fonte de dor, muito profunda no trauma, e que é relevante
para os círculos é a desconexão. Trauma é desconexão. Não só com a pessoa que causou dano,
porque perdemos a confiança em todos. A cura requer que haja conexão e comunidade. Cada
círculo, independentemente de seu objetivo, cria conexão, cria comunidade e, mesmo que não
falemos sobre trauma, ainda assim, contribui para a cura. Nos EUA, estão falando em aumentar
muito os profissionais de saúde mental nas escolas, porém há duas dificuldades em torno dessa
questão. Primeira, que a maioria dos jovens não quer acessar um profissional individualmente
para tratar de seu problema mental; segunda, que, embora possa ser uma parte muito importante
para a cura da pessoa, o atendimento individualizado não cria comunidade. É necessário alocar
recursos para criar comunidade na escola.
Fizemos uma capacitação lidando com a transição de uma instituição de saúde mental para
adolescentes, que foram transferidos para uma instituição de saúde mental para adultos. Na
maioria desses adolescentes, os direitos parentais haviam sido eliminados. Eram considerados
tutelados pelo Estado. Quando completavam 18 anos, acabava a tutela. A maioria deles já estava
envolvida na vida nas ruas, já tinham tido problemas com a justiça. Criaram um programa e quem
quisesse participar dos círculos poderia chegar e participar. Esses círculos aconteciam nas
segundas, quartas e sextas-feiras. Depois que as pessoas foram treinadas, decidiram fazer um
círculo de check-in na segunda-feira pela manhã, porque nos finais de semana era um caos.
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Percebendo isto, decidiram fazer um check-in nas segundas, quartas e sextas-feiras porque eles
procuravam muito menos o aconselhamento individual depois dos círculos de check-in. Eles
conseguem dar apoio uns aos outros mesmo que tenham problemas mentais e que estejam
batalhando para ter uma vida melhor. Ajudar aos outros ajuda a nos curar. É um recurso que
estamos perdendo. Temos todos a capacidade de nos mostrarmos empáticos e nos mostrarmos
que nos importamos com os outros. Não é necessário certificação e não requer escolaridade.
Vemos que, nas escolas, os jovens podem resolver problemas que achamos que podemos
resolver. Temos que ter certeza de que estamos sendo bem claros com relação à ideia de
sabedoria coletiva. Não é em qualquer grupo que vamos acessar, porque também temos a
capacidade para loucura coletiva. A sabedoria coletiva surge nos processos que são reflexivos e
respeitosos. Essas são as características que precisamos ter.
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RODA DA MEDICINA
- Conexões - Apresentações
- Valores
- Diretrizes / acordos
4 1
3 2
u
- Perguntas norteadoras a
- Contação de histórias
(explorando o assunto) s
- Construindo relacionamentos
- Impactos sofridos
- Desenvolvimento de empatia
Aprendi essa imagem com os povos da primeira nação, mas é uma adaptação moderna da
roda da medicina. Um dos grandes ensinamentos que a roda da medicina nos traz é a importância
do equilíbrio em qualquer um dos lados. E a implicação disso é que vamos despender tanto tempo
para o lado direito da roda quanto para o esquerdo, e que esse tempo será dividido igualmente
entre as duas partes. O momento de atenção plena, cerimônia de abertura e as apresentações, no
quadrante 1. Em seguida, os valores e as diretrizes ou as combinações. No quadrante 2, temos a
contação de histórias. E na parte da contação de histórias, buscaremos o desenvolvimento da
empatia. Quando as pessoas estão em conflito, elas têm filtros que impendem a compreensão
total da outra pessoa com quem eles estão em conflito, lhes traz. Queremos desconstruir alguns
desses filtros, se possível, antes de começarem a falar sobre as questões difíceis, para que eles
possam escutar uns aos outros de maneira mais limpa.
Normalmente, depois das diretrizes, vamos para contação de histórias e as perguntas que
são úteis nesse ponto são as que convidam as pessoas a compartilharem suas histórias. Pense em
uma ocasião na qual você teve que deixar o controle de lado e desistir de ficar controlando;
compartilhe uma história que você se sentiu fora de sua zona de conforto; compartilhe uma
experiência de sua vida em que transformou um limão em limonada; uma história quando
precisou ouvir algo muito desconfortável que alguém lhe trouxe e, depois, sentiu-se agradecido
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por ter tido a oportunidade de escutar aquilo que foi difícil; uma experiência de um sentimento
por meio do qual não se sentiu incluído; uma experiência quando tinha uma impressão muito
negativa a respeito de uma pessoa e depois percebeu que nada daquilo era real, pois essa pessoa
tinha muitas características positivas.
Essas são experiências humanas bastante comuns. Quando escutamos uma história, nos
enxergamos nas vidas e nas experiências uns dos outros, o que pode começar a retirar um dos
muros que fomos construindo que nos desconectaram com o outro. Essa é uma parte
extremamente importante dos círculos de conflito e pode mudar a energia do espaço. Tentamos
encontrar uma pergunta que comece “pelas beiradas”, que não foque no problema. Tomemos
muito cuidado com as perguntas, para que as pessoas não pensem que já podem falar do
problema. Se a situação está envolvendo adolescentes, porém há adultos no círculo, faça uma
rodada de contação de histórias que levem esses adultos de volta a sua adolescência: compartilhe
uma história de sua vida quando era adolescente e não se sentiu incluído; compartilhe uma
história quando era adolescente e se “encrencou”; uma experiência de quando era adolescente e
entrou em conflito com os seus responsáveis.
Outra condução importante nesse momento do círculo é enfocar o elogio depois daquilo
que as pessoas trazem. Para a pessoa pode ser negativo, mas nós podemos demonstrar que
vemos um lado positivo. O círculo trata do Joãozinho que se meteu num “rolo” e tudo parece
negativo, mas fazemos uma rodada perguntando às pessoas qual o momento em que viram o
Joãozinho fazendo alguma coisa boa ou trazendo uma qualidade que o Joãozinho tenha. Podemos
ter empatia e trazermos aspectos positivos das pessoas que estão sendo trabalhadas (chama-se
investigação apreciativa).
Passamos para a pergunta direta: o que precisamos fazer agora para que possamos ir
adiante de uma forma legal? Esse questionamento também pode levar a várias e várias rodadas.
Quando voltar o objeto da palavra, diremos que vamos fazer uma nova rodada para que possam
responder àquilo que foi dito ou acrescentar algo. Se verificarmos que as pessoas estão
oferecendo sugestões do que os outros têm que fazer, podemos fazer uma nova rodada
perguntando o que o participante oferece para que a situação fique melhor. Ninguém é obrigado a
fazer alguma coisa, mas estará trazendo a atenção para aquilo que eles possam fazer. Vamos
fazendo rodadas, solicitando às pessoas que tragam sugestões e vamos anotando as possibilidades
que estão sendo sugeridas. Precisamos ter em mente todas essas possibilidades. Quando sentimos
que as pessoas estão trazendo aquilo que elas têm possibilidade de trazer, podemos fazer um
resumo das principais ideias abordadas. Trabalharemos nas partes das ideias trazidas para ver se
há consenso. Escutamos as ideias a, b e c. Havia bastante apoio para ideia a. Todos concordam? O
objeto da palavra é passado, perguntando se consegue conviver com a ideia a? Definimos o
consenso quando as pessoas conseguirem conviver com a decisão. Não é necessário que todos
estejam entusiasmadíssimos com a proposta, mas que, aos sair, todos consigam apoiar a execução
da proposta. Perguntamos: conseguem conviver com ideia a? E se não conseguem conviver com a
ideia a, precisamos saber qual a sugestão de modificação para que as pessoas viabilizem conviver
com ela. No círculo, o consenso só existe se a pessoa que não conseguir conviver com a ideia
apresentada se manifestar e afirmar que não consegue. Essa pessoa tem obrigação ativa em
ajudar ao grupo a encontrar alternativa para que ela possa conviver. Se a pessoa tem um interesse
e expressou-o ao grupo e as pessoas escutaram e estão tentando atender a seu interesse, mas não
sabem como atender, a pessoa deixa de lado o seu interesse e apóia a decisão do grupo a respeito
55
dos demais pontos. Os grupos que se encontram consecutivamente têm a obrigação de buscar
atender aos interesses que foram manifestados em outras ocasiões ou de ajudar as pessoas a
pensar em outras possibilidades para atender a tais interesses. Nesse modelo de consenso, os
indivíduos têm que prestar atenção ao impacto que causam ao dizer “não”. O grupo tem que dar
atenção ao indivíduo que deixa o próprio interesse de lado para atender ao interesse do grupo.
Em cada parte do plano que o grupo está organizando será feito a mesma coisa para ver se há
consenso em cada ponto. O plano será relativo aos itens que todos tenham interesse. Portanto, é
importante resumir o plano passando o objeto da palavra para verificar se todos estão bem com o
que foi estipulado. Se percebermos que todos estão dizendo que sim, mas a sua linguagem
corporal mostra que não, fazemos uma pergunta de escala (vem da terapia breve com foco na
solução): em uma escala de zero a dez, onde zero significa que o plano não irá funcionar e dez que
o plano não tem como falhar? Que número daria para possibilidade de sucesso? As pessoas
podem estar dispostas a oferecer um número ao invés de dar uma razão (muitas vezes por não
conseguirem dar uma razão). Não solicitamos que expliquem. Se obtivermos números baixos
(quatro ou cinco) não são suficientes para dizer que alcançou consenso. Façamos mais uma
rodada. Que mudança neste plano faria com que sua nota crescesse? Verificamos as mudanças no
plano que fariam com que as chances de sucesso fossem maiores. Com qualquer plano precisamos
deixar claro como será feito o monitoramento. Como verificaremos se está funcionando.
Recomendamos que, em qualquer círculo de conflito, programemos uma data para retornar ao
encontro. Duas semanas ou o que fizer sentido, de acordo com o plano. Podemos celebrar aquilo
que estiver funcionando e, se não estiver funcionando, verificaremos, com o grupo, quais as
mudanças necessárias para que as pessoas assumam a responsabilidade de auxiliar o plano a
funcionar. Para a última rodada de check-out, a pergunta é: como estão se sentindo em relação ao
círculo? Em seguida, é feita a cerimônia de encerramento.
Contação de história: Por que é tão importante no círculo? Uma das coisas a respeito de
história é que temos um jeito diferente de ouvi-las, é uma maneira diferente daquelas quando
escutamos conselhos ou até o que é racional. Se alguém está tentando nos ensinar ou nos
aconselhar, temos um filtro em nossa frente que nos faz decidir se concordamos ou não com o
que estamos ouvindo. Quando não concordamos, simplesmente deixamos de ouvir. Com a
contação de histórias, o filtro sai da nossa frente. Temos que escutar a história até seu final para
saber qual a lição que está nos trazendo. Pode ser que concordemos ou não, dependendo do
significado que ela nos traz, mas a história já foi absorvida. E o motivo de retirarmos o filtro é
porque achamos que temos controle de determinar o significado da história, mas estamos muito
mais abertos a aprender com histórias do que com o ensino cognitivo.
A contação de história nos engaja como seres inteiros - coração e espírito. O ensinamento
cognitivo nos engaja principalmente à parte mental. Entendemos que essa é uma das razões do
porquê de o círculo ser tão poderoso. É a contação de história em um espaço limpo e respeitoso.
Quando alguém começa a contar uma história, mesmo como adultos, relembramos a contação da
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infância e, de forma inconsciente, nosso corpo relaxa. O quadrante em que temos a contação de
história pode ter um impacto bem significativo referente ao que vamos atingir no círculo.
3.1. PERGUNTAS
a) Esta relação de trazer estes rótulos: pessoa de cor, pessoa desprovida de papéis têm
relevância para o círculo ou acaba surgindo? Nossa experiência mostra que surge
naturalmente, porque quando falamos as verdades e trazemos a nossa história para dentro
do círculo, faz com que mostremos quem somos e como pensamos. A nossa história
formata nossa maneira de pensar e, no círculo, somos todos iguais. A experiência que cada
um tem lá fora não é diferente. Existe muita dor, e o círculo, muitas vezes, é o lugar em
que as pessoas sentem que podem expressar sua dor, trazendo a realidade para
conscientização das outras pessoas do círculo.
b) Como está sendo visto, nos EUA, a Constelação Familiar, com relação à resolução de
situações de ancestrais? A ideia de resolver questões do passado é compartilhada pela
visão que temos do círculo e da constelação familiar. Temos pouca experiência com
constelação familiar. Estávamos em um congresso em que foi apresentado este processo.
Todavia, não sabemos muito a respeito. É um processo diferente, mas o vemos como uma
forma de compartilhar valores e princípios dos círculos. Tem sua própria maneira de
alcançar seus resultados.
Um fator que nos deixa contentes a respeito dos movimentos de Justiça Restaurativa é ver
as ideias emergindo com os movimentos, ou seja, o movimento da atenção plena
compartilha dos mesmos valores básicos que temos. Há muitas maneiras diferentes que as
pessoas têm de chegar à mesma visão. Quanto mais, melhor. Alguns processos funcionarão
melhor com algumas pessoas; outros para outras pessoas e muitos processos podem ser
combinados com o círculo. Pode haver um processo específico e utilizaremos o círculo para
refletir sobre o que aconteceu no outro processo. É um processo poderoso para trazer
reflexões de outras experiências e reforça a integração do aprendizado.
d) Como facilitador não provocamos o assunto, quando nos processos judiciais, abordamos a
finalidade do encontro. Iniciamos as práticas restaurativas baseadas na Comunicação Não
Violenta, vendo o modelo da Nova Zelândia. Um modelo quase acusatório, inquisitivo e o
57
Dominic Barter resistia muito em colocar o relato do fato na instalação do trabalho. A
linguagem também era afetada, pois utilizava autor e receptor ao invés de vítima e ofensor
do fato. Havia uma dissociação do que fazíamos e não tínhamos clareza em confrontar.
Decidimos que deveríamos abordar o fato. Como proceder? É muito importante ter clareza
do propósito do círculo. Se fizermos um círculo e justarmos uma pessoa que causou dano a
outra, isso é apresentado de maneira muito clara. O que não trazemos à tona é a
informação recebida no pré-círculo. Quando falamos do objetivo do círculo, ele deverá ser
claramente estabelecido. O lugar mais comum é no local de trabalho. Quando usamos o
círculo para resolver conflitos no local de trabalho, faremos pré-círculos com todos que
estiverem presentes no círculo, para que falem sobre seus problemas, os quais esperam
que resolvamos as coisas por eles. Nessa situação, eles precisam falar das suas
preocupações. Diferentemente do que ocorre no sistema de justiça, em que temos uma
situação bem clara de dano causado por uma pessoa à outra, já que elas não têm o mesmo
nível de responsabilidade. Queremos deixar claro. Mas também não queremos passar e
passar e não termos clareza do que estão fazendo. Clareza e falar a verdade são fatores
muito importantes no círculo. Queremos, na medida do possível, que a verdade seja
revelada pelos participantes e não pelo facilitador.
Outro círculo muito grande vem do Canadá. Jane trabalhava no sistema prisional e,
no início dos anos noventa, só existia uma prisão para mulheres naquele país. Tiveram uma
crise a respeito das instalações da prisão e, por isso, decidiram fechá-la e abrir cinco
prisões menores em diferentes regiões. Uma dessas instalações estaria baseada na cultura
da primeira nação, porque havia muitas pessoas presas da primeira nação, devido a
traumas históricos. Eles designaram uma força tarefa para planejar tudo o que deveria ser
incluído. A maior parte dessa força tarefa era composta por mulheres da primeira nação e
muitas delas já haviam passado pela prisão. Jane foi designada como chefe dessa força
tarefa. Decidiram que todo o processo de planejamento seria realizado em círculo.
Designaram duas anciãs da primeira nação para guiá-las nesse processo. Encontravam-se
uma vez por mês, em diferentes partes do Canadá, até que escolheram o local para
construção da prisão, onde continuaram a fazer as reuniões. Quando estavam para mudar
suas reuniões para esse local, as anciãs disseram para Jane que deveriam abrir a força
tarefa para qualquer pessoa que quisesse fazer parte desse processo. Jane disse que
poderiam aparecer duzentas pessoas. E a anciã respondeu: “temos que abrir esse processo
para todos que desejam fazer parte dele.” Fizeram a reunião no ginásio da escola e
compareceram duzentas pessoas. O objeto da palavra passou para que todos tivessem voz.
Foi uma reunião de dois dias, na qual passaram escutando as perspectivas e as
preocupações de cada pessoa. E, nos meses subsequentes, quando voltaram a se
encontrar, cerca de quarenta pessoas faziam parte desses encontros. Não houve
resistência alguma daquela comunidade para a construção da prisão. Todos se sentiram
escutados e pertencentes ao processo. Foram circunstâncias muito especiais. O mais
importante nesse exemplo é que o número deverá ser grande o suficiente para incluir
todos aqueles que, de outra forma, poderiam atrapalhar o processo por não terem sido
incluídos. Até duzentos. Foi realizado em ginásio de esportes e colocaram todos em círculo
passando o microfone. Na escola Sóbria, as famílias participam também? Não nesses
círculos, ainda mais quando um aluno diz que recaiu. Nesse caso, reúnem a família com o
aluno específico em um círculo de recaída, que é feito imediatamente após o aluno ter
admitido e reconhecido que recaiu. Num grande círculo, as pessoas não são preparadas
previamente para participarem do processo circular? Não.
f) Como se inicia esse processo, uma vez que não há os pré-círculos para que as pessoas
estejam presentes? Esse seria um círculo de conversa, uma oportunidade para cada um
expressar a sua perspectiva. Não se trabalharia nenhum conflito individual. Não é um
60
círculo para tomar nenhuma decisão. Na maioria dos círculos de conversa, não há
necessidade de fazer preparação com as pessoas. Não significa que o círculo não seja
preparado. Existe muita preparação para se chegar ao círculo, mas não preparação dos
indivíduos que participarão dos círculos. Quando começamos o círculo, dizemos que o
mesmo iniciará de uma maneira intencional para nos ajudar a nos comprometermos com o
espaço e a sermos verdadeiros uns com os outros, fazendo a cerimônia de abertura.
Explicamos como funciona o objeto da palavra e, se estivermos utilizando um centro,
explicaremos os elementos que o compõe. Foram realizados esses círculos centenas de
vezes e as pessoas que participaram não tinham tido experiências anteriores. Explicamos o
objeto da palavra, a cerimônia de abertura e o porquê de estarmos sentados em círculo.
Isso teria o sentido de conexão para darmos a todos a igual oportunidade de falar, a
importância de que cada um consiga enxergar todos os outros participantes. No formato
de círculo é que conseguimos com que cada um enxergue todos os outros participantes. Só
isso que precisamos explicar.
g) Qual a duração de um círculo? Depende das circunstâncias. Nos EUA, não teríamos
condições de conduzir um círculo que demorasse sete horas. Seria extremamente
incomum, mas não é incomum a realização de três ou quatro círculos de duas ou três horas
cada um para tratar o mesmo problema. Fizemos um círculo de conflito de família que
envolveu três irmãos adultos com idade aproximada de cinquenta anos e a mãe com
noventa anos. Havia conflito na família sobre propriedade e cuidados com a mãe. A mãe
não conseguiu participar e nos sentamos em círculo por mais ou menos quarenta horas no
espaço de três semanas. Tinha dias que fazíamos duas horas de manhã e duas horas à
tarde. Eles tinham muitas situações para resolver, e tivemos sucesso em conseguir desatar
todas tudo o que eles estavam trazendo, porque havia implicações legais em relação a
essas propriedades e eles evitavam levar essa situação para o sistema de justiça. Foi um
processo muito interessante. Mais ou menos uma montanha russa. Eles conseguiam
conversar a respeito de alguns problemas e, em certos momentos, sentiam-se melhor.
Entraram em alguns acordos, porém quando abordávamos uma questão mais difícil, a
situação despencava. Construímos um caminho para sair de alguns pontos, chegamos a
questões mais difíceis que não tinham a ver com as propriedades e, sim, com a mãe. Esses
momentos ficavam mais complicados. Quando retornamos na manhã seguinte, o filho mais
velho, que havia sugerido o uso do círculo para resolver o conflito, disse que estava
esperando que sua irmã desistisse, porque ele não poderia desistir. De alguma forma,
depois dessa explosão, conseguiram se conectar. O tempo é relativo. Se as pessoas estão
ficando cansadas, devemos encerrar o círculo e marcar outro encontro para evitar que elas
concordem com algo que, na verdade, não concordariam. No dia seguinte, poderiam
desonrar essa decisão. Assim, não podemos exigir que as pessoas fiquem tempo demais.
61
Muitos dos círculos acabam acontecendo à tardinha, início da noite, para que os
voluntários da comunidade possam fazer parte. De duas horas e meia a três horas é um
bom tempo de duração. Não tentamos fazer tudo num só círculo, pois, às vezes, as pessoas
se reencontram a cada duas semanas e durante meses.
i) Qual o número de pessoas para uma formação? No treinamento básico, o número máximo
seria de 25 pessoas, porque para entender o potencial profundo do círculo é preciso
vivenciá-lo com o número de pessoas que permita que nos aprofundemos e que
consigamos a conexão pessoal profunda. Se não houver essa oportunidade, pode ser que
não consigamos entender o potencial e a profundidade que o círculo tem. Nem todos os
círculos atingirão a profundidade que obtemos durante a capacitação. Mas, tanto quanto
possível, queremos proporcionar às pessoas a vivência da profundidade que se pode
alcançar em um círculo. Esta é a primeira vez que temos tantas pessoas em um
treinamento. Com vantagens e desvantagens. Eu não consigo escutar as histórias de todos
e vocês não conseguem escutar as histórias todas uns dos outros. Isso é o que acontece na
capacitação. Vinte e cinco pessoas, no máximo, para conseguirmos fazer as rodadas e ouvir
cada um. As vantagens com esse número é o nível de energia e a sensação que se dá às
pessoas que estão sós. Muitos estão nesta jornada juntos. Quando há oportunidade de
compartilhar, temos muito a aprender. Sabemos da profundidade do círculo, por isso
podemos nos reunir com tantas pessoas como estamos aqui.
j) Voluntariedade é um dos princípios da Justiça Restaurativa. Quero focar nos círculos não
conflitivos, menos complexos de conversação. Minha prática tem demonstrado que
podemos perguntar quem quer ficar no círculo. Não sei quantos ficarão. Temos percebido
e tem dado certo que em círculos menos complexos o objeto da palavra garante esse
princípio, desde que o facilitador respeite a pessoa que decidir não falar. Pela
oportunidade de fala e de escuta, a pessoa tem a voluntariedade de participar ou não e se
quiser sair tudo bem. Não enfatizo essa possibilidade no início, mas algumas pessoas, no
check-out, dizem que se não estivessem ali, se tivessem tido a oportunidade não teriam
vivenciado o momento. Qual o seu comentário a respeito? Falamos em voluntariedade na
63
Justiça Restaurativa, mas a realidade é que as pessoas estão em um sistema coercitivo. É
uma questão de escolha, ao invés de ser totalmente voluntário, porque prefeririam não
estar naquele sistema de todo. Não é que estejam emocionados em estar naquele lugar.
Ao invés de fazer de conta que é voluntário, oferecemos às pessoas algumas escolhas,
porque nos EUA, que é o nosso sistema, ou você faz isso ou você vai para o juiz. Em um
círculo de conversa, a voluntariedade fica menos clara. E se perguntarmos se a pessoa quer
ir ao círculo, mesmo que nunca tenha participado? Ela não faz ideia da resposta sim ou
não, pois para ela “tanto faz”. Até que tenhamos vivenciado o círculo, não é uma escolha
informada. Não tem problema pedirmos que as pessoas sentem em círculo uma vez na
vida, porque permitiremos que elas passem a vez, se escolherem passar a vez. É uma
experiência de autonomia muito importante na prática. Com o passar do tempo, começa a
ficar mais complicado. Se estivermos no local de trabalho e for tomada uma decisão de que
um conflito será resolvido em círculo como qualquer outra situação, é uma condição que
existe naquele local. É assim que resolveremos os conflitos. Não podemos implementar
isso da noite para o dia. Deve ser um processo demorado para que as pessoas possam se
ajustar à mudança. Poderíamos dizer, simplesmente, que fizemos nossas reuniões de
trabalho em círculo e é claro que todos precisam participar das reuniões de trabalho e, ao
mesmo tempo, também não se pode forçar as pessoas a irem a um lugar onde elas não
querem estar. Mas, se essa for a circunstância, precisamos permitir que as pessoas falem a
respeito de sua resistência e precisamos respeitar que elas veem de maneira diferente.
Ouvimos pessoas falarem que os alunos que não querem participar do círculo farão outra
atividade e eles acabam por entrar no círculo por vontade própria. É bom que sejamos
espaçosos nesse tipo de questão. Dar tempo às pessoas. Permitir que elas expressem o seu
desconforto. Ouvimos histórias de alunos que empurram sua cadeira para o fundo da sala,
de aluno que virou de costas para o resto do círculo. Isso é aceitável. Aceitamos as pessoas
no ponto em que elas estão. E, tanto quanto possível, permitiremos que elas encontrem o
seu próprio espaço dentro do círculo.
k) Trabalho com processos judiciais e temos recebidos casos envolvendo adolescentes que
cometeram ato infracional em que a vítima é criança. Sabemos que a criança não tem o
entendimento e o preparo para participar de um círculo, caso fosse voluntária. Qual sua
opinião sobre círculos coletivos, tendo como vítima a criança? Qual a idade mínima para
participação de círculos conflitivos? As crianças podem, a partir de bem jovens,
participarem de círculos de conflitos para adquirirem experiência para falarem sobre o que
aconteceu. É necessário que saibam que não precisam manter segredo do que aconteceu e
a participação delas é importante para que tenham consciência de que elas não fizeram
nada de errado. Precisam ter um apoio muito forte e ter a permissão de saírem do círculo a
qualquer momento. É necessário fazer uma preparação (pré-círculo) cuidadosa para que as
crianças participem do círculo. Se não quiserem participar, ainda é possível fazer o círculo
com a participação de irmãos e membros da família para descrever o impacto que causou
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naquela criança. Há também a possibilidade de participação de um adolescente ou de um
adulto jovem que teve a mesma experiência quando muito jovem pra falarem como se
sentiram. Não há necessidade de dependência da pessoa que foi vitimizada para falar no
sentimento e no impacto da situação.
m) Em uma escola de ensino médio, onde havia acontecido, várias vezes, roubos de celulares,
houve uma agressão física entre dois adolescentes. Fizemos um círculo. Chamamos as suas
famílias porque estava tendo ameaça de morte. Achamos importante realizar o círculo no
mesmo dia do acontecido. Fizemos os pré-círculos com todos e, na hora do círculo, o
adolescente que sempre teve um histórico de bom aluno disse que havia roubado o
celular. Justificou dizendo que tinha uma namorada e não tinha dinheiro para pagar o
motel. Estava muito arrependido. O outro adolescente, que teve o celular roubado, falou
que sua chateação se dava porque havia perdido todos os seus contatos, pois era
traficante. Jamais pensamos que iriam aparecer essas histórias no círculo. O resultado foi
tranquilo porque o adolescente que roubou iria ressarcir o outro jovem. O dilema foi
depois com os adultos. O que fazer? Não denunciamos nenhum dos adolescentes. Tenho
experiência com socioeducação e sabemos o que acontece nesses casos. Acompanhamos o
adolescente que roubou e ele conseguiu frequentar a universidade. O outro adolescente
esteve em outra situação e tivemos que encaminhá-lo. O policial, que havia realizado curso
de Justiça Restaurativa, disse que, na situação do roubo, foi prudente não encaminhá-los à
Delegacia, pois os dois alunos teriam sido presos. Essa é uma das questões mais espinhosas
a respeito de facilitar círculos. O processo circular vem de um paradigma diferente. No
círculo prometemos que cada um será tratado com dignidade, independente do ato
praticado. Se, na segurança desse espaço, eles revelarem que causaram dano em outro
lugar, nesse caso encaminhamos ao sistema de justiça. Não podemos prometer que serão
tratados com dignidade, pelo menos, nos EUA. Geralmente, o sistema não trata as pessoas
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com dignidade. Consideramos esse problema bem difícil, porque, em alguns casos, temos
obrigação de enviar relatórios e temos que ter consciência de que deixaremos a situação
pior. Estávamos fazendo uma capacitação avançada com facilitadores que trabalhavam em
locais muitos difíceis, e muitos do grupo eram afro-americanos. Quando fizemos a
pergunta de quais eram os desafios como facilitadores, uma das senhoras compartilhou
uma história de um aluno que estava com mau comportamento na escola. Fizeram um
círculo e nele o aluno revelou que sua família estava morando em um prédio desocupado.
Essa seria uma situação insegura para o aluno, e a facilitadora deveria mandar um relatório
ao serviço de proteção das crianças, consciente de que o aluno seria afastado da família, o
que seria pior para todos. Assim, não enviou o relatório. Ela e outros adultos, nos dias que
se sucederam, conseguiram encontrar uma moradia para a família para que pudessem
estar seguros. Mas não relatou. No dia seguinte da capacitação, passei o objeto da palavra
e perguntei sobre dilemas éticos no trabalho. Uma senhora afro-americana, que era
promotora, com o objeto da palavra, respondeu que não é uma questão ética porque não
é um sistema ético. Mas o fato continua. O facilitador poderia ter sido punido. Foi uma
questão muito difícil. O melhor que pode acontecer nessas situações é lidarmos com o que
surge dentro do círculo se não quisermos que a informação fique escondida e, sim, se
quisermos que a resposta ao dano seja de maneira restaurativa, ainda mais envolvendo
crianças e segurança. Se conseguirmos, é importante criarmos uma relação com
instituições que têm responsabilidade em cuidar de crianças, com a esperança de que
possamos levar o problema para essa instituição e, assim, que permitam que lidemos com
o problema dentro do círculo. Se isso não for possível e sentirmos que temos que
encaminhar, é importante que acompanhemos a pessoa no decorrer do processo. O
processo pode não os tratar com dignidade, mas podemos acompanhar o processo e tratá-
lo com dignidade. A decisão é muito pessoal: devo ou não encaminhar? Existem riscos
tanto em não encaminhar, como em fazer o encaminhamento. Aprendemos em
comunidades não brancas, nos EUA, que os serviços de proteção a crianças causavam mais
medo do que a polícia. Primeiro, fiquei muito surpresa com isso. Pensei que a pior coisa
que poderiam fazer comigo seria tirar as crianças de mim. Preferia apanhar ao invés de
perder as crianças. Uma questão muito séria para as pessoas.
p) Nem todos os casos são para a Justiça Restaurativa. Quais os elementos que visualiza nos
casos que não seriam indicados para Justiça Restaurativa? Devemos esclarecer que não
temos a capacidade de fazer todos os casos através da Justiça Restaurativa. Há falta de
capacidade em atendermos todos os casos. Pode haver casos que um encontro frente a
frente seja inadequado, mas vamos querer fazer círculo de cura com a pessoa que foi
vitimizada e gostaríamos de ter o processo com a pessoa que cometeu o crime para ajudá-
la a entender o impacto de seu comportamento e, assim, lhes permitir conscientizá-los a
respeito do que aconteceu em sua vida. Que possa ter contribuído para que escolhessem
causar dano. Em todos os casos, iríamos querer que membros da comunidade se
envolvessem para chegar a uma solução juntos. Gostaria de uma estrutura mental
restaurativa em todos os casos. Isso significa que pode haver pessoas que não estejam
dispostas ou que não consigam controlar seu comportamento para que todos fiquem
seguros. Em alguns casos, entendo que as pessoas possam precisar ficar presas, mas
faríamos isso de uma maneira diferente, ou seja, com amor, oferecendo apoio para que
tenham a possibilidade de se transformar, de mudar; e ficaríamos em relacionamento com
ele. Particularmente, a comunidade tem que continuar acompanhado o membro que foi
afastado, visitando-o, oferecendo programas que encorajam a autorreflexão, oferecendo
oportunidades para que essas pessoas consigam perceber os seus próprios traumas, para
que possam fazer um trabalho interno delas mesmas. Essa seria uma maneira de
continuarmos em relacionamento com as pessoas que forem presas. Os círculos podem se
tornar muito importantes para as pessoas quando elas saem da prisão, e os círculos de
apoio podem acontecer durante um período de tempo para demonstrar que têm com
quem contar.
r) O que fazer quando uma pessoa fica com o objeto da palavra e não larga e não larga e fica
falando, falando? Essa é uma situação, no círculo, em que os outros participantes não
podem fazer nada sem violar o uso do objeto da palavra. Como facilitador, podemos falar
sem estar com o objeto da palavra, mesmo que seja raramente, mas temos essa
prerrogativa. A estratégia que recomendo em uma situação assim é tentar determinar se o
assunto é relevante ou não. Nem sempre é um problema. Já vimos pessoas falando
durante muito tempo sobre uma coisa que foi muito importante e impactante em sua vida.
Todos os participantes estavam conectados escutando aquela pessoa. Então, deixamos a
pessoa falar se os participantes estiverem atentos, porque é por isso que estamos aqui. Se
os membros do círculo não estiverem mais escutando, estiverem em outro lugar, não é
bom para o círculo, nem para quem está falando. É uma das coisas mais difíceis de fazer:
esperar a pessoa respirar e, gentilmente, quando possível, interromper e dizer que
queremos realmente entender o que está sendo trazido, porém que é importante que
todos tenham a chance de falar. Delimita-se um tempo para terminar. Se tivermos mais
uma rodada, damos aos participantes um tempo, ainda disponível, pedindo à pessoa se ela
consegue resumir em uma ou duas frases o que é mais importante para que entendamos a
sua história. Tentemos afirmar que aquilo que está dizendo é importante, que nos
importamos com o que ela tem a dizer, mas lembramos do tempo que está falando. Muitas
vezes, quando as pessoas estão falando, falando, elas já se perderam naquilo que elas
realmente queriam dizer. Na minha experiência, isso tem funcionado, mas só aconteceu
algumas vezes. Uma atitude importante que é chave, quando temos que interromper uma
pessoa, é procurá-la no primeiro intervalo que houver, dando possibilidade para ela se
abrir, pois mesmo que tenhamos feito a interrupção de maneira gentil, a pessoa pode ficar
com a sensação de rejeição. Devemos também conversar com os demais para ver se está
tudo bem. Esse foi o erro cometido quando tivemos que interromper alguém em um
seminário de uma semana. Aconteceu no primeiro dia e, ao final do seminário, tínhamos
28 avaliações piscando de tanto brilho e duas péssimas: do senhor e sua esposa. Estava
com vergonha do que havia feito e, como sou introvertida, essa combinação fez com que
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eu o evitasse durante toda a semana, com o apoio de um mentor importante na minha
vida. E, muitos meses depois, escrevi uma carta pedindo desculpas. Aprendi uma grande
lição.
As pessoas que estão acostumadas a ter poder, para mim, é um problema quando
eles tomam tempo demais. Eles estão replicando a estrutura de poder lá de fora do círculo
e a intenção do círculo é desconstruir a estrutura de poder.
s) Existe algum programa de violência doméstica para homens? Sim, na cidade de Duluth há
um programa para homens.
t) Se no círculo descobrirmos que houve abuso sexual de uma criança, qual a atitude correta?
O sigilo deve ser mantido em detrimento do risco que a criança possa estar correndo? No
trabalho de círculo, a confidencialidade fica limitada a preocupações com a segurança. Se
sair no círculo a informação sobre a segurança de alguém, seria uma exceção ao acordo de
confidencialidade. Porém, isso deve ficar esclarecido junto aos participantes. Os
participantes têm que saber que se eles compartilharem esse tipo de informação será
levado para fora do círculo. Quando estivermos nas diretrizes ou acordos, ao falarmos em
confidencialidade, devemos esclarecer que ela fica limitada às informações do círculo ou,
em círculo de conflito, será informado nos pré-círculos. É uma questão muito complicada.
w) Gostaria de saber se no caso de Caxias do Sul, onde a criança de três anos participou do
círculo, havia autorização dos pais? Foi um caso judicial, de destituição do poder familiar
de quatro irmãos: dois meninos e duas meninas, com idades de 3, 7, 10 e 12 anos. Fizemos
um círculo com a família nuclear e a extensa e, ao final, tudo havia terminado bem. Mas
planejamos um círculo somente com as crianças que, de diversas formas, revelaram todo
70
abuso e maus tratos sofridos. O menino de três anos saía e entrava no círculo. O objeto da
palavra foi um elefante de pelúcia, que foi utilizado para “conversar” com o pequeno de
três anos, quando perguntamos o que acontecia ele mostrou que apanhava. Houve
necessidade de adaptarmos a forma de conversar. Em um determinado momento, os
irmãos não responderam a pergunta e olharam para a irmã maior. No intervalo, os
facilitadores conversaram e entenderam que havia algo mais. Voltamos e perguntamos
algo que os irmãos disseram que haviam combinado de não responder. Eles foram
informados por terceiros que se dessem algumas informações, não poderiam mais retornar
para casa. A menina já morava com a avó e não gostaria que os irmãos também saíssem de
casa. Havia um representante legal do abrigo onde as crianças se encontravam. E quando o
pequeno saía da sala, havia uma pessoa de apoio para atendê-lo.
x) Quais as estratégias para conversar com crianças no círculo, especialmente numa situação
de algum conflito ou dificuldade? Uma técnica poderosa é usarmos o desenho. Muitas
vezes, os pequenos desenham algo para expressar o que está acontecendo com eles. Existe
um enfoque, na Austrália, chamado de Sinais de Segurança, que é um enfoque compatível
com o processo circular, os quais desenvolvem técnicas específicas relativas ao desenho de
três casas. Uma delas é a casa dos sonhos, mas havia mais duas que auxiliava em enxergar
melhor qual a situação enfrentada. Ajuda muito quando usamos pantomima (mímica).
Permitimos que usem o movimento, sem uso das palavras, para expressar algo. Podem
também utilizar palavras junto com o movimento. Convidamos e encorajamos a utilizar o
movimento para se expressarem. Nesse tipo de trabalho estamos ainda engatinhando.
Estamos procurando entender essas dinâmicas. Podemos utilizar os saberes que cada um
já traz.
y) Qual a preparação necessária para um círculo com pessoas que exercem o poder? Há
diferença na preparação ou na facilitação do círculo quando todos os participantes
exercem poder? Ou quando há mescla de participantes? Quando o diretor de uma escola
fará parte de um círculo, deverá ter uma preparação especial e individual com ele. A parte
mais importante é deixar claro como funciona o objeto da palavra e verificar se a pessoa
consegue respeitá-lo e comprometer-se em honrá-lo. Enfatizar o objetivo do círculo. Não é
para dar sermão ou conselhos e, sim, para falar a partir de sua própria experiência.
Consciência em não utilizar muito tempo na sua fala. Podemos utilizar o exemplo do
facilitador como modelo: tanto como profundidade nas suas reflexões, quanto no tempo
gasto como facilitador.
Outras dificuldades das escolas é que os adultos podem entrar no círculo e sair dele
a qualquer hora. Deixamos claro seu comprometimento. Se quiserem participar do círculo,
deverão ficar até seu final. A tendência de quem tem poder é participar do círculo, falar o
que quer e sair. É importante que entendam que estarão num papel bem diferente do
usual.
71
Importante, quando trazemos pessoas de poder, ter atenção especial de como será
organizado o círculo. Numa escola de ensino médio, trouxeram policiais para o círculo com
alunos. Usaram cadeiras escolares sem a articulação do braço, e os policiais, com todos
seus equipamentos, não conseguiram sentar, sentando-se sobre a mesa que os colocava
acima dos alunos, causando um problema. Deve-se verificar o espaço físico em que
acontecerá o círculo, principalmente quando existem relações de poder. Nas escolas
americanas, ninguém é chamado pelo primeiro nome. É cultural. Quando aprendemos a
respeito do círculo de sentenciamento, ensinado pelos canadenses, uma das suas
estratégias, para nivelar o poder, era que o juiz seria chamado pelo primeiro nome.
Chegando às escolas, utilizamos esse aprendizado. Quando chegamos, começamos o
trabalho nas escolas e informamos aos diretores que iriam ser chamados pelo primeiro
nome. Isso é muito simbólico. Não vejo que tenha continuado a acontecer nas escolas,
mas queremos que pensem se traria um sentido de igualdade. A maneira de facilitar é,
primariamente, a mesma, mas é importante focar na dinâmica do poder. Se for percebido
que os participantes usam um tratamento cerimonioso com alguém dentro do círculo,
quando o objeto da palavra voltar ao facilitador, deve-se lembrar aos participantes que no
círculo todas as vozes são iguais. Sempre de maneira gentil. O principal para um círculo de
pessoas de poder é o planejamento. Termos certeza de que há apoio suficiente para as
pessoas que têm menos poder. Em um círculo de conflito, o processo de preparação será
perguntar àqueles que têm menos poder, se eles se sentem confortáveis no espaço; se
conseguirão falar sobre os problemas com os quais estão preocupados. Em um círculo
realizado no departamento financeiro de uma universidade, teria como participante uma
mulher que não confiava no seu chefe, dizendo que não conseguiria falar sobre suas
dificuldades. Perguntamos, então, quem poderia participar do círculo para que ela se
sentisse segura para falar sobre sua dificuldade. Ela confiava no supervisor do seu chefe.
Com a presença desse apoiador, ela se sentiria segura e protegida e conseguiria abordar os
assuntos.
bb) Qual o papel do facilitador em relação às situações do círculo, do entra e sai de pessoas
que exercem o poder, uma vez que houve o agendamento, a combinação? O facilitador
poderia acolher e compartilhar essa situação com todos os participantes do círculo? A
pessoa chega atrasada, ou seja, após a construção de valores e diretrizes; o grupo já está
conectado e o participante chega desconectado. O que fazer? Uma das estratégias que
podemos usar para quem chega atrasado e já perdeu a cerimônia de abertura, valores e
diretrizes, pois estas partes causam impacto no círculo, é deixar de lado o planejamento do
73
facilitador e fazer uma rodada convidando os participantes a dar as boas-vindas à pessoa e
que eles expliquem tudo o que já aconteceu antes de ela chegar: valores e por que são
trabalhados, qual foi a cerimônia de abertura e por que foi feita tal cerimônia. Os
participantes irão acalmar a sensação de interrupção que essa entrada causa, podendo
também conseguir mudar a energia de quem chega atrasado. Mesmo que se repita a
experiência do “entra e sai”, apesar de toda explicação dada, passaríamos o objeto da
palavra e pediríamos aos participantes como se sentiram diante dessa situação, tanto com
a pessoa presente ou em algum momento em que a pessoa saiu. Se a pessoa escutar as
manifestações é bom, e também é importante para os participantes expressarem os seus
sentimentos. Podem escutar uns aos outros, mesmo que a pessoa que tenha este poder
não esteja escutando.
cc) Primeiro, não estamos completos e não estamos 100% seguros nesta prática; segundo,
muitas pessoas sabem da técnica e não praticam os alicerces; terceiro, a necessidade de
criar relacionamento com quem a gente quer dialogar. Ressoa uma tendência na parte
institucional de uma separação na facilitação como se uns estivessem prestando um
serviço para outros. Existe um esquecimento da conexão em que o espaço está sendo
cocriado. Pensando na roda da medicina, como as partes física e mental têm mais espaço,
a parte emocional tem ganhado corpo, mas a espiritual tem ainda preconceito. Como
fazer, na condição de facilitadores, treinadores, instrutores para que isso melhore em nós e
com as pessoas que trabalhamos? O trabalho que estamos fazendo juntos é o de
desenvolver a parte do coração e do espírito em nós mesmos, principalmente quando
somos convidados a refletir a respeito da nossa própria prática e no que ela significa para
nós. Escrevemos um artigo a respeito da jornada interna que passamos com este trabalho,
e a maior parte dela é trabalhar com meu próprio espiritual. Não existe uma estrutura
religiosa e cada um de nós deve fazer do seu próprio jeito. Temos que desenvolver práticas
que nos deixem mais conscientes de nós mesmos, do nosso trabalho interno. Os grupos de
estudo são um espaço excelente para se criar isso. É muito importante que nós,
facilitadores, estejamos consciente do nosso trabalho espiritual, mas é muito importante
que nós não imponhamos aquilo em que acreditamos para as outras pessoas.
Nossa experiência em círculo diz que não precisamos fazer nada explicitamente a
respeito dos componentes emocionais ou espirituais do ser. O termo espiritual (ou
espiritualidade) não funciona para todos. Algumas pessoas não se identificam com tal
conceito. Mas o quadrante da espiritualidade é como construímos significado. Se
conseguirmos criar espaços relativamente seguros, as pessoas virão naturalmente trazer
seu lado emocional e, de forma natural, trazem como elas constroem o seu significado.
Não precisamos dizer a eles “tudo bem fazer isto”, acontece organicamente. Muitas vezes,
quando o objeto da palavra volta, as pessoas se desculpam por chorar, pelas lágrimas. O
facilitador deve mencionar que as lágrimas são acolhidas no círculo, são bem vindas, que
74
trazemos o nosso ser completo incluindo o nosso sentimento. Ninguém precisa se
desculpar por chorar.
ee) Uma amiga que trabalha com constelação familiar e círculos de paz na psicologia hospitalar
foi chamada para cuidar de um caso de uma criança de quatro anos, que ingressou no
hospital, espancada e com ossos quebrados no corpo inteiro. Sensibilizou a todos. A mãe
foi presa por violência doméstica. A criança estava muito depressiva, além de ter os ossos
quebrados. Passados quinze dias, com autorização, a mãe foi visitar a criança que, ao
longe, ouviu a voz da mãe e gritou: “mamãe”! Neste instante melhorou e sorriu pela
primeira vez. Essa amiga agradeceu a intuição do juiz que permitiu a visita. A mãe estava
sob efeito de drogas quando fez essa barbaridade, mas o vínculo familiar permanece é
forte. Conclui-se que, em caso de violência familiar, é necessário cuidar da família inteira,
por amor ao filho. A criança foi dada para a avó materna com direito à visita da mãe
sempre que ela quisesse. A amiga entende que temos que ter muito cuidado com o vínculo
familiar. Qual sua opinião quanto ao fortalecimento da família e do vínculo familiar? É uma
história de muito impacto. Até hoje, subestimamos o impacto que causa na criança
removê-la do seu primeiro vínculo, mesmo quando há problemas no relacionamento. O
75
enfoque “sinais de segurança” mencionado anteriormente mostra o que podemos fazer
para que o relacionamento não seja quebrado, desde que as crianças estejam em
segurança. Temos que nos preocupar em deixar os pais bem, para que possam continuar
na vida da criança, mesmo que não sejam os cuidadores. Neste caso, a avó se tornou a
cuidadora, mas os relacionamentos foram preservados. O primeiro círculo de
sentenciamento que fizemos foi em uma reserva indígena e um dos jovens que trabalhava
conosco pertencia à primeira nação e contou a sua história. Estava abusando fisicamente
de sua parceira. O avô soube e foi morar com eles, não tendo mais abuso. Temos que
pensar sobre isso de maneiras completamente diferentes. E é na ideia de sinais de
segurança que focamos na questão de nos sentirmos seguros. Numa situação em que a
mãe, com três filhos, abusa do álcool, as crianças não estão seguras quando a mãe está sob
efeito alcoólico. Assim, ao invés de insistir que ela esteja completamente abstêmia, a
questão é com quem os filhos podem estar seguros quando ela estiver bebendo? Chegou-
se a um acordo que envolverá outras pessoas com as quais as crianças ficarão quando a
mãe estiver bebendo. Para essa mãe poderá parecer simplesmente impossível parar de
beber, mas, muito possível, administrar esse plano. Se conseguir cumprir o plano com
sucesso, poderá ficar melhor na administração do uso de álcool. O problema de segurança
não se foca no uso do álcool, mas na negligência de quando está sob efeito do mesmo. É
uma mudança grande em nós.
ff) Casos de psicose, agressão, bipolaridade, autoagressão. Os casos mais difíceis de atender
são os casos de transtornos de conduta, cujo perfil envolve ausência de culpa, fugas
constantes, comportamento delinquente, agressividade. Nesses casos, é comum que os
jovens adolescentes sejam bastante resistentes aos tratamentos e aos atendimentos. Esse
público, muitas vezes, evolui aos transtornos de personalidade antissocial que é, na
maioria dos casos, o público carcerário. Com a tua experiência, como é atender esses
casos? Há resolutividade em função desse perfil? Com a metodologia dos círculos é
possível tocar o coração de alguns ou não temos o que fazer? Muitos de vocês têm muito
mais experiência do que a nossa. Não sei como poderemos atingir a cura nos casos em que
as pessoas têm problemas muito profundos, mas já ouvimos histórias de transformação
que fez com que acreditássemos que sempre precisamos deixar a porta aberta. Uma amiga
promove encontros, frente a frente, de casos considerados crimes sérios. Fez muitos e
muitos desses casos. Contou a história de um estuprador de estranhos. Frequentemente,
essas pessoas estão entre aqueles que acreditamos que não possuem consciência e não
mostram remorso algum. O estuprador havia cometido vários crimes e era considerado
sem esperança. Mas, de alguma forma, dentro da prisão, conseguiu criar um
relacionamento positivo com a enfermeira. Um dia, essa mesma enfermeira ficou presa em
um quarto, com outro preso que estava tentando assaltá-la sexualmente. O outro homem
estava do lado de fora do quarto e não conseguia entrar para ajudá-la. Pela primeira vez
ele entendeu o que tinha feito com as outras mulheres. Nunca sabemos o que vai tocar
76
alguém. Precisamos manter a porta aberta. Isso não significa que deixaremos as pessoas
serem livres se elas não estão dispostas ou não conseguem controlar seu próprio
comportamento. Mesmo assim, continuamos nos relacionando com elas. Nunca sabemos
como esta jornada poderá se desdobrar. As pessoas da comunidade devem participar dos
círculos com aqueles que estão encarcerados. Existe um programa em Minnesota que
reúne cinco pessoas que cometeram assassinato, cinco pessoas que perderam seus entes
queridos assassinados (não pelas pessoas que estão na reunião) e cinco membros da
comunidade. Fazem círculos durante um final de semana. Falam sobre os princípios da
Justiça Restaurativa, estabelecem o espaço e cada pessoa tem a oportunidade de contar
suas histórias e de se manifestar a respeito daquilo que ouviu. A maioria dos que
participam, que não são os prisioneiros, fica surpresa com o nível de trauma sofrido pelas
pessoas encarceradas, razão pela qual criam empatia com elas. Quando oferecemos
empatia para os que cometeram atos horríveis, abrimos a possibilidade para que a empatia
deles seja despertada. É importante que continuemos oferecendo oportunidade de
círculos e que nunca haja desistência. Não quero que ninguém desista de mim.
gg) Há estratégias de círculos em relação à pacientes psiquiátricos? Não sei. Eles são seres
humanos, então podemos fazer a mesma prática que fazemos com todas as pessoas. A
habilidade de ficarem focados pode ser menor. Já vimos pessoas com problemas mentais
sérios que conseguem manter uma postura melhor no círculo do que fora dele. Mas isso
não fica óbvio na primeira vez que se sentam em círculo. Houve demora em conseguirem
se sentir em círculo, mas o ritmo mais lento e a previsibilidade do objeto da palavra
trouxeram sensação de calmaria a eles.
hh) Quais são as perguntas básicas estruturantes do círculo de conflito? Existe algum serviço de
atendimento às vítimas de crimes violentos que aconteça paralelo ao trabalho do círculo?
Um serviço intermediário para prática do círculo? Existe muito trabalho a ser feito para ir
ao encontro da vítima, pois além de oferecer um círculo de apoio, uma sala separada é um
bom exemplo. Recomendamos que façam círculo com vítimas em diferentes comunidades
e perguntem do que elas precisam. O que as ajudaria? Elas podem abordar assuntos que
nunca foram mencionados antes porque nunca estivemos nessa situação. Envolvê-las no
processo é a melhor maneira de saber o que fazer por elas. O que mais podemos
proporcionar; o que mais podemos fazer?
ii) Em situações de violência doméstica, podemos tratar e cuidar de casos envolvendo perdão,
embora não seja parte do ciclo da violência? A questão do perdão é uma questão muito
complexa. As pessoas têm definições diferentes do que seja o perdão. Se houver uma
conversa a respeito de perdão, é preciso que as pessoas esclareçam o que ele significa. Se
ocorrer o perdão ou não, é uma questão que depende dos participantes. Não
consideramos o perdão como inerente à Justiça Restaurativa, mas fica claro que a Justiça
Restaurativa cria condições melhores para que ele perdão ocorra. Não podemos decidir
77
pela vítima se ela quer perdoar. Muitas pessoas sentem um alívio quando conseguem
perdoar, por isso é bom maximizarmos a possibilidade do perdão, porém não podemos
decidir pelas pessoas.
jj) A questão é sobre empatia. Acompanhei um caso, voluntariamente, fazendo uma visita à
unidade socioeducativa e havia um rapaz que estava isolado e, há três dias, não comia
porque pretendia suicidar-se. Não conhecíamos sua história. Era época de Natal, e ele
insistia na morte. Entramos no isolamento com uma técnica psicóloga. Fizemos com que
visse o sol. Colocamos a mão sobre o seu ombro e pedimos para não desistir da vida.
Fomos embora. Encontramos a técnica que o acompanhava e que o havia abandonado.
Soubemos, pelo juiz, de sua história. Abandonado desde criança, passou fome, viveu na
rua. Entendemos por que havia desistido da vida. Seu último abandono, a técnica havia
feito. Ela se comprometeu que voltaria a conviver e a acompanhá-lo. Retomou a empatia
que ela desenvolveu nele e ele desistiu do suicídio. Nossa responsabilidade é muito grande
quando desenvolvemos empatia por alguém: somos responsáveis por aquilo que
cativamos.
“Há uma tribo que sonha, que nunca esqueceu as assas e acredita em coisas simples: sol, pão,
chuva, beijo, lua. E mesmo quando o sangue tinge as tarde e rios e as palavras se transformam em
venenos, pedras e facas, esta mesma tribo alimenta as sementes da esperança com lágrimas e
pequenos gestos limpos para que virem árvores”. Meu desejo é que, a partir daqui, cresçam
muitas e muitas árvores. (Kay Pranis)
78
3.2. ENTREVISTA
Dr. Leoberto: Estamos na Escola da Magistratura, da AJURIS, na companhia da professora
Kay Pranis que está desenvolvendo conosco um workshop de aprofundamento para
facilitadores. Esta atividade faz parte de uma programação que a Escola vem promovendo
com o objetivo de alavancar a expansão da Justiça Restaurativa no Brasil. Vamos ouvir a
Kay sobre as suas impressões a respeito da sua vinda ao Brasil e dizer que é muito bem-
vinda e que somos muito gratos pela sua presença.
Kay: Obrigada por me acolherem desta maneira aqui e em todas as outras vezes que aqui
estive. É difícil colocar em palavras as minhas impressões ao chegar aqui depois de quatro
anos. Nós tivemos aqui 170 facilitadores, algo que não podia imaginar que fosse
acontecer quatro anos atrás. Os que estiveram aqui estavam muito ansiosos para
aprender e para poder levar este trabalho adiante. É um grupo de pessoas, um grupo
muito forte que está aqui. E, antes deste encontro, estive com 26 facilitadores que
estavam participando da capacitação para treinar novos facilitadores. Essas pessoas
tiveram in site muito profundo do trabalho que está sendo feito a respeito, a respeito da
sua participação e houve muita sabedoria coletiva saindo daquele grupo que está
ajudando o processo a se desenvolver neste Estado. Antes disso, estive em Caxias do Sul
durante alguns dias e fiquei sabendo da profundidade e da amplitude do trabalho que
está sendo realizado com os círculos naquela cidade. Sinto-me emocionada e inspirada
por tudo aquilo que presenciei e por tudo aquilo que ouvi. As pessoas que estão fazendo
este trabalho não estão usando só suas mentes. Estão usando seus corações e seu
espírito também. Existe um comprometimento profundo na busca da paz e de um mundo
melhor na realização deste trabalho. Estar aqui, estar com as pessoas que realizam este
trabalho alimenta minha alma. Sinto-me muito grata por esta família no Brasil.
Dr. Leoberto: Temos a honra de recebê-la pela quarta vez no Brasil, sendo convidada pela
AJURIS. Gostaríamos de sua percepção a respeito do trabalho que a AJURIS vem fazendo
na difusão da Justiça Restaurativa do Brasil.
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4. WORKSHOP CÍRCULOS EM MOVIMENTO NAS ESCOLAS – ASSOCIAÇÃO
DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL – AJURIS – 18 E 19 DE MAIO DE
2017 – PORTO ALEGRE
... Escolas são comunidades. O fato de serem comunidades bastante intensas, porque
inúmeras pessoas estão convivendo em um espaço relativamente pequeno, muitos membros
dessa comunidade não sentem que têm a liberdade de ir e vir. São comunidades com alguns
constrangimentos, com algumas limitações, dentro de um espaço limitado. O princípio
fundamental da infância é crescer, se desenvolver e se tornar um adulto que consiga viver bem. O
trabalho das crianças é ir para a escola. Mas elas não entendem muito bem como funciona. Elas
são bastante impotentes nessa estrutura e não têm poder dentro dela. Temos uma comunidade
intensa que convive em um espaço relativamente pequeno e com muitas pessoas sentindo-se
impotentes. É importante que possamos criar comunidades saudáveis nesses espaços, mas é
preciso intencionalidade na criação desse espaço na comunidade. Na verdade, não é difícil, mas
tem que ser deliberadamente, intencionadamente. Vou construir esse espaço. Para ser um local
saudável, as escolas precisam ter processos que permitam a construção de comunidades
saudáveis. As nossas práticas típicas para ensinar o material acadêmico não apóiam uma
construção de comunidade saudável, pois frequentemente são competitivas. Não honram as
emoções, não dão espaços para as emoções. Criam espaços de classificação e de julgamento.
Precisamos de espaços em que haja um equilíbrio na maneira como ensinamos academicamente.
Vamos enfatizar a cooperação e o relacionamento. Existe uma grande necessidade de maneiras de
se criar comunidades saudáveis dentro das escolas. Para o movimento da Justiça Restaurativa, as
escolas são espaços importantíssimos para sua prática. As escolas são locais onde existem mais
oportunidades de se causar impacto. As crianças aprendem o processo circular muito mais
rapidamente que os adultos. Podemos começar no lugar em que seja mais fácil. Elas não têm as
suas ideias tão fixadas e para as crianças parece ser um processo natural. Outra razão por que é
fácil começar pelas escolas é que temos uma comunidade intensa que é continuada e que não é
tão grande. É uma unidade de comunidade menor, em que é mais fácil trabalhar. Assim,
poderemos ver o impacto causado de maneira mais rápida. Nesse sentido, é muito importante a
maneira como iremos socializar nossas crianças, já que são elas que irão formar o futuro. Se
dermos às crianças as ferramentas para terem diálogos difíceis, criaremos a oportunidade de um
futuro diferente, em que as pessoas não precisam usar da violência para serem escutadas. A
violência é um espaço que existe, porque as pessoas querem ser escutadas. Se as crianças
descobrirem que existe outra maneira de serem escutadas, elas não precisarão passar pela
violência para se manifestar. Vemos o trabalho nas escolas como uma parte importante do
movimento de Justiça Restaurativa em termo de mudança cultural a longo prazo. Existem razões
poderosas para se fazer o trabalho de base também. Não podemos abandonar as pessoas que
sofreram os danos por causa da maneira como funciona a cultura. Cremos que para
transformação, a longo prazo, as escolas são as instituições mais importantes que trarão esta
81
transformação. As escolas são as instituições de socialização que é a chave, após a família. As
escolas têm uma grande influência na socialização dos cidadãos. As escolas têm que ser centros de
estabilidade, continuidade e comunidade. Têm pessoas que estão tirando algumas ideias do livro
“Círculos em Movimentos” (Kay Pranis e Caroly Boyes-Watson), especificamente voltado para as
escolas e têm aplicado estas ideias em outros contextos.
Vamos relacionar as teorias que, conforme entendemos, apoiam o uso dos círculos nas
escolas:
O primeiro conjunto de teorias é o enfoque na criança como ser integral, a qual remete à
importância do aprendizado social, emocional. Hábitos emocionais como persistência, otimismo,
foco e curiosidade parecem ter maior influência do que a inteligência. Quando prevemos quais
crianças se darão melhor na vida, o processo circular é uma prática que foca intencionalmente no
ser humano como ser integral e abre espaço para o desenvolvimento social, moral e emocional
juntamente com a parte mental e física.
O quarto conjunto de teorias são as teorias que envolvem a disciplina positiva. Refere-se
ao uso das práticas restaurativas baseado na teoria da Justiça Restaurativa que diz que os
relacionamentos são muito importantes. Precisamos cuidar dos relacionamentos para nos
fortalecer no início. Precisamos de processos circulares para reparar os relacionamentos quando
não estão bem. Sabemos que os círculos desenvolvem esse papel, pois são originários dos
movimentos da Justiça Restaurativa.
82
O quinto conjunto de teorias é a respeito de um ambiente de aprendizagem que esteja
sensível aos traumas existentes. A importância de se entender o trauma e as experiências de
negligência das crianças, o impacto disso na aprendizagem e no desenvolvimento humano. As
escolas lidam com muitas crianças que foram expostas a negligências, a abusos e a estresses.
Ainda assim, há necessidade, muito maior do que os sistemas terapêuticos conseguem alcançar. A
teoria do trauma nos ajuda a reestruturar os desafios acadêmicos e o mau comportamento dos
alunos para que os educadores e outros profissionais de apoio possam oferecer auxílio e
aconselhamento ao invés de castigo como resposta à má conduta dos alunos. Existe um trabalho
chamado de “Experiências Adversas na Infância” – EAI, para nos auxiliar a entender o impacto das
experiências adversas na infância e a maneira como essas experiências são cumulativas. Os dados
indicam que quanto mais experiências adversas as crianças tiveram, mais negativos serão os
resultados. Na verdade, um aspecto positivo é que existe uma mudança nas perguntas feitas aos
alunos. Ao invés de perguntar “por que você fez isto?”, podemos perguntar: O que aconteceu
antes? Essa troca realmente causa uma mudança no foco. O comportamento, embora seja um
problema, frequentemente faz sentido quando examinamos as experiências anteriores. Muito do
mau comportamento e do comportamento que causa dano é o comportamento de sobrevivência.
Precisamos reconhecê-lo antes de tentarmos mudar esse comportamento. Volto ao Marshall
Rosemberg quando diz “empatia antes do ensino”, isto é, até que alguém tenha demonstrado
cuidado e que se importa com a dor que estamos sentindo, não podemos abrir nossa mente para
aprender um jeito diferente.
83
razão pela qual não podemos dizer que temos um relacionamento muito bom com tal pessoa e
que será verdade para o resto da vida. Temos que trabalhar os relacionamentos o tempo todo. Se
as pessoas da comunidade escolar conseguirem ficar bem quando estiverem juntas, haverá um
impacto positivo em todos os aspectos da escola. Os círculos são uma ferramenta poderosa para a
função básica de comunidade.
Uma das coisas que pensamos a respeito da importância dos círculos é que eles são
espaços para que pratiquemos o nosso melhor “eu”, mas não que sejamos só bonzinhos no
círculo, mas sim que possamos praticar o nosso melhor “eu” fora dele.
Se usarmos o círculo como uma prática regular nas escolas, entre alunos e adultos, todos
podem levar esta filosofia subjacente para suas interações, quando eles não estiverem em círculo,
dando-se oportunidade a praticar isto em círculo; quando não estiverem em círculo também
poderão demonstrar esse comportamento. Estamos praticando maneiras básicas relativas ao ser,
que são fundamentais para que tenhamos sucesso nos nossos relacionamentos quando
estivermos juntos.
Existe muito mais do que só arrumar cadeiras no círculo. O que acontece no círculo?
84
A primeira coisa que pensamos, na prática do círculo, foi respeito. No círculo cada
perspectiva é valorizada como sendo significativa para aquela pessoa. Cada voz tem a
oportunidade de se manifestar e cada pessoa é escutada com atenção focada.
A segunda coisa que é praticada nos círculos é igualdade. No círculo ninguém é mais
importante ou tem mais direitos ou mais poder do que qualquer outra pessoa. Mesmo que
escolham não se manifestar, quando o objeto da palavra chega até eles, ninguém fica invisível.
Essa é uma ideia muito importante nas escolas e, no círculo, as expectativas são as mesmas tanto
para os adultos, como para os alunos. Esperamos o mesmo comportamento por parte dos adultos
e dos alunos.
85
Ensinaram que democracia é quando as maiorias regulam as regras para as minorias e que
ninguém fez isso melhor que os EUA. As forças cooperativas e os que têm bastante dinheiro
possuem muito poder nos EUA. Vemos que não é mais um país de plena democracia. A ideia de
que a maioria governa e protege os direitos das minorias foi vista como o objetivo da democracia.
Aprendemos este processo circular. Passamos tempo com os povos das primeiras nações e,
quando este assunto é envolvido e questionado, eles se negam a responder. Marc Wedge, que é
um membro dos povos das primeiras nações, perguntou-nos por que temos representação por
geografia? Por que não há representação por interesses? Inicialmente não entendemos a
pergunta. Uma representação por Estados parecia uma coisa inerente e sempre foi assim. Mas, na
verdade, essa é uma decisão tomada por humanos. Talvez pudesse ser diferente. Nos fez pensar
profundamente no que é democracia. Percebemos que a proteção dos direitos das minorias, de
certa forma, é um mínimo. Não conseguimos legislar o ótimo pelo ótimo. Sempre legislaremos
pelo mínimo. O interesse das minorias pode nunca ser atendido, baseado em que a maioria vence.
Isso se tornou muito visível nos EUA. Fazemos um trabalho relativamente bom em honrar os
direitos, mas o bem-estar não é igual nos EUA. Tem alguma coisa faltando. Que a maioria governa
e que existe a proteção dos direitos das minorias não é o suficiente. Não nos imaginamos fazendo
círculo em nível nacional, mas nossa experiência, com a tomada de decisão por consenso, nos faz
pensar que existe algo a mais que pode estar disponível na democracia. Os círculos,
fundamentalmente, são mais democráticos do que a maneira como os EUA é governado e, se
continuarmos praticando de pequenas maneiras, ficaremos melhores e melhores, transformando
isso numa escala nova. Talvez não durante esta vida. Mas é um sonho.
Começamos a pensar por que os círculos são difíceis. Por que não tem sido fácil fazer os
círculos se movimentarem na nossa sociedade? Os círculos são um jeito melhor de estarmos
juntos, que são extremamente diferentes de outras coisas, dos hábitos de rotina da nossa cultura.
Estamos nadando contra a corrente. As nossas rotinas inconscientes estão profundamente
sedimentadas na estrutura do dia e incorporam muitas regras que não são explícitas e muitos
pressupostos de como devemos nos comportar. E o importante nas escolas é nos tornarmos
conscientes desses pressupostos inconscientes. Esperamos que essas considerações nos ajudem a
entender por que é tão simples praticar o círculo no jardim de infância e tão difícil praticá-lo em
outros lugares. A conscientização pode nos ajudar a reduzir nossas ansiedades e existências
naturais durante os círculos, as quais normalmente surgem na implementação da prática,
especialmente entre adultos.
Os círculos nos pedem que sigamos em um ritmo mais lento e que estejamos totalmente
presentes. Nada de se apressar e tirar conclusões, porque cada voz precisa ser escutada em sua
completude e estamos sempre na corrida, sempre com pressa. Não temos tempo de escutar uns
aos outros ou escutar a nós mesmos. Raramente, estamos completamente presentes no
momento. Acreditamos que temos que fazer muitas coisas rapidamente para que possamos
atender às expectativas que foram colocadas em nós. No círculo, a presença completa de cada
86
participante é necessária e é pedida. Não existem multitarefas. Não dá para escrever um textinho,
mandar uma mensagem. Atenção total ao círculo. É um exercício de paciência, de autocontrole
para os jovens e que também representa uma mudança significativa para os adultos.
A segunda coisa que torna difícil é a igualdade nos círculos que está em tensão com as
hierarquias. Os nossos relacionamentos refletem a estrutura de poder na nossa sociedade e isso
funciona o tempo todo. As escolas se organizam em hierarquias muito fortes e o círculo não é
hierárquico. É um espaço de igualdade e desafia as práticas do poder. Uma figura de autoridade
não pode controlar o processo circular, precisa compartilhar o poder com todos os participantes.
Os círculos irão funcionar se cada um cooperar, sem a intervenção baseada no poder da figura de
autoridade. Essa mudança na responsabilidade precisa de alguma prática e desafia a necessidade
forte que as figuras de autoridades sentem: professor ou diretor, que possuem a crença de
controlar o resultado, também acreditam que devem controlar os participantes.
A terceira coisa que torna difícil para a prática do círculo é que os círculos nos convidam a
falar a partir do coração, pois lidam com emoções. Somos socializados a manter os diálogos de
um ponto impessoal e nos sentimos seguros assim, principalmente no mundo profissional do
ambiente escolar. Frequentemente, nos sentimos desapropriados ou não seguros. Não temos
segurança para compartilhar nossos sentimentos e nossas emoções. Alguns adultos, na escola,
sentem-se desconfortáveis com as emoções. Podem se sentir inadequados com a maneira que
respondem às emoções ou podem achar que tem que consertar se aparecer alguma emoção
negativa, o que pode parecer uma sobrecarga muito grande. Geralmente, nossa sociedade
privilegia o mental em detrimento do emocional, fazendo com que as pessoas sintam-se
envergonhadas quando precisarem falar sobre questões pessoais ou sentimentos. Nossas
experiências sobre crenças e sentimentos impactam em tudo o que fizemos, inclusive nos nossos
relacionamentos com os alunos. Ao compartilharmos sentimentos, estaremos ajudando nossos
alunos a entenderem por que fazemos o que fazemos. Os adultos sentem, se magoam e têm
sabedorias vindas de suas histórias pessoais. Esperamos que os adultos, no círculo, compartilhem
a partir de seu coração e de sua experiência de vida, por isso é um relacionamento diferente
daquele que normalmente se tem com os alunos, além de ser muito diferente com os próprios
colegas. As emoções no círculo são aceitas por aquilo que elas são: uma realidade para esse
indivíduo, mas não necessariamente uma responsabilidade para qualquer outra pessoa no círculo.
As emoções são ouvidas com respeito, talvez dando como resposta a empatia. Não requer que o
adulto ou qualquer outra pessoa tenha que consertar aquela emoção. Frequentemente, os alunos
podem ser altamente habilitados para responder as emoções dos seus pares.
O último fato que colocamos como sendo difícil de usar o círculo é o fato de priorizar a
construção de bons relacionamentos. A nossa cultura prefere conquistas a conexões. Usar as
ações de fazer, ao invés de priorizarmos as ações de estarmos em conexão com os outros, com
nós mesmos ou com a natureza. O tempo que demora em se construir relacionamentos de
qualidade fica no final da lista de prioridades, na escala de necessidades que a escola quer
87
desenvolver. Isso é compreensível porque existe extrema pressão em cima das escolas. Porém,
muitas das dificuldades recorrentes nas escolas e que, a longo prazo, demandam muito tempo e
muitos recursos, surgem a partir da ausência de relacionamentos positivos. Geralmente a
confiança não está presente nas escolas. Os jovens não confiam nos adultos, a equipe de trabalho
pode não confiar na administração. Embora a construção da confiança leve tempo, vale a pena o
investimento, porque o desempenho acadêmico depende do sentimento de confiança e dos bons
relacionamentos. Isso é para sentirmos de onde estamos vindo. Por estarmos defendendo o maior
uso de círculos nas escolas, acreditamos que poderia realmente mudar a cultura da instituição
quando os círculos são praticados de maneira regular.
Círculos de
Reconstruindo conflito, de cura
relacionamentos e de apoio
interrompidos
Construindo Círculos de
relacionamentos conversa,
celebração,
construção de
comunidade e
aprendizagem
Essa é uma imagem que muitas pessoas estão usando no contexto escolar relacionada às
práticas restaurativas nos EUA. A imagem surgiu no sistema de saúde. Colocaram, na base,
práticas universais de prevenção para diminuir o número de pessoas que acabavam na ponta da
pirâmide.
88
Com o uso dos círculos nas escolas, poderemos usar universalmente a prática de círculos
tanto com os adultos, como com os alunos para que tenhamos uma base saudável e sólida que
possa cuidar das diversas situações quando elas surgirem. Neste nível são círculos de conversas:
círculo de celebração, de construção de comunidade e de aprendizagem ou pedagógico, quando
utilizamos o formato do círculo, como maneira de ensinarmos algo. Usamos os círculos de uma
maneira universal, passando por toda a escola, que são círculos de construção de
relacionamentos. É isso que criará a cultura na escola. Os círculos são uma ferramenta muito boa
para se criar uma cultura positiva.
Outra situação que pode vir à tona nas escolas, particularmente, é quando os alunos faltam
muito às aulas. As razões para essas faltas são, frequentemente, devido a forças fora da escola. A
escola pode ser o local onde se criarão círculos de apoio que poderão se focar nas situações que
estão acontecendo fora da instituição. Podemos utilizar círculos de apoio para focar nas ausências
e, assim, auxiliar o aluno a não faltar tanto. O apoio da escola poderá ajudar a família a fazer
algumas mudanças.
Na pirâmide, pode ser que o processo circular não seja a única prática que será usada, mas
nos dá um sentido para verificarmos em quais aspectos o círculo será relevante.
Uma das estratégias para trabalharmos nas escolas é começar pelos funcionários, por toda
comunidade escolar. Se tivermos oportunidade, quando iniciarmos um trabalho de Justiça
Restaurativa nas escolas, preferimos começar utilizar os círculos com os funcionários, para o bem-
estar dos mesmos. É como um processo de autocuidado para a comunidade escolar; não faremos
89
nenhuma referência a alunos, porque se os funcionários não estiverem saudáveis e não estiverem
em relacionamentos saudáveis uns com os outros, não conseguirão criar uma comunidade forte
para as crianças e adolescentes. É bom começarmos, se possível, com os relacionamentos entre os
adultos. Também é necessário ser oportunista, começar onde quer que seja oferecida a
oportunidade e, com muita frequência, conseguimos oportunidades com os alunos antes dos
adultos. Sempre que possível, comecemos pelos adultos.
Segue um esboço de círculo que acreditamos que funcione bem para começar com os
adultos da escola:
- Cerimônia de abertura: cerimônia das fitas – preparamos fitas de mais ou menos um metro de
comprimento para cada participante do círculo. Convidamos as pessoas a pensarem em um
mentor ou em um professor importante em suas vidas e em um presente que receberam dessa
pessoa (alguém que tenha ensinado algo importante). Iniciamos no sentido horário, convidando-
as a compartilharem o nome da pessoa e qual o presente que receberam dela. Os participantes
amarram a sua fita na fita de quem está ao seu lado e a pessoa seguinte faz o mesmo, amarrando
a fita antes que o próximo comece a falar. No final, as fitas estarão todas conectadas. Nesta
cerimônia, convidamos as pessoas a honrar alguém que foi importante em suas vidas e que tenha
uma ocupação parecida com a que elas têm agora.
- Valores: Uma rodada de valores, pedindo aos participantes que valores gostariam de trazer para
o círculo e que seriam importantes para seu relacionamento com os alunos.
- Contação de História: Uma rodada solicitando uma história na qual se sentiram muito
orgulhosos por terem escolhido esta carreira. Mais uma rodada perguntando o que tem sido difícil
na carreira que escolheram. Eles precisam de espaço para falar sobre as dificuldades também, mas
primeiro, é fundamental que se estabilizem em seus pontos fortes. Se houver tempo, podemos
passar o objeto da palavra novamente e solicitar se tem mais alguma coisa a acrescentar. O
facilitador vai reconhecer as dificuldades e fará mais uma rodada abordando pontos fortes ou
possibilidade de melhora. Poderia ser: como podemos apoiar uns aos outros quando acontecem
as dificuldades? Que ponto forte você se apoia para continuar aqui, apesar das dificuldades?
90
- Cerimônia de Encerramento:
Este formato básico pode ser adaptado para outras profissões, porque em todas as
profissões saudáveis as dificuldades do dia a dia deixam as pessoas esgotadas. Apesar disso, as
pessoas continuam nessas profissões em razão dos valores profundos e das boas intenções que
elas possuem. Tais intenções e valores profundos podem ser uma fonte de cura para as
dificuldades do dia a dia. Essa seria uma forma de iniciar. O ideal para as escolas é o círculo
relatado acima, com foco nos adultos e não nos alunos.
Compartilharemos uma histórica de profundo compromisso com este trabalho: Uma amiga
criou a Editora da Justiça Viva para publicar o primeiro livro do qual fizemos parte. Este livro foi
escrito por Kay Pranis, Berry Stuart e Marc Wedge (o indígena que me ajudou a entender os
círculos). Estava tentando uma editora que publicasse o livro com o qual estávamos trabalhando.
Assim, conheci Denise Breton, autora de livros já publicados. Solicitei a ela como conseguir uma
editora e ela disse: deixe olhar este manuscrito. Pegou o manuscrito de 300 páginas, muito
esquisito, de espaço simples. De alguma forma, enxergou algo lindo no trabalho e falou: teremos
que criar nossa própria editora. Cada boa ideia precisa da sua própria editora. Com vários amigos
criamos esta editora sem fins lucrativos. Passou o ano inteiro editando o livro, o qual foi se
transformando em um lindo trabalho. Durante os dez anos seguintes, ela trabalhou em tempo
integral, sem salário, tocando a editora sozinha. Publicamos um livro da Caroly Boyes-Watson e o
livro de outra pessoa e, depois, mais um livro escrito com outros canadenses (Fazendo Democracia
com Círculos). Ela fazia todo o trabalho da editora sozinha, trabalhava mais de 40 horas por
semana, sem salário. Denise Breton mora com a mãe, que tem, mais ou menos, 95 anos e viviam
da pensão materna. Isso é um comprometimento fantástico com este trabalho. O livro foi
publicado em 2014 e já vendeu 20 mil cópias. Suficiente para, agora, podermos pagar o salário da
Denise Breton. É maravilhoso, mas ela ainda sofrerá, porque a pensão de aposentadoria nos EUA é
baseada no salário que a pessoa teve durante os anos de trabalho, e ela tem dez anos de trabalho
com zero de salário. E, mesmo assim, ela não mudou em relação àquilo que queria fazer e a
editora da Justiça Viva é a editora principal para os trabalhos de Justiça Restaurativa, ainda
funcionando na casa dela.
Este trabalho está cheio de exemplos de pessoas que se doam e vão além, e todos somos
parte disso. Esta é uma das razões que este movimento de Justiça Restaurativa e Círculos de
Construção de Paz não têm como parar. Quando se transforma em um modo de vida, não tem
como parar.
91
4.2. A AMPLITUDE DE UTILIZAÇÃO DOS CÍRCULOS
Podemos usar círculo para ensinar e para aprender. No início de uma unidade de ensino, o
professor pode passar o objeto da palavra e perguntar aos alunos o que sabem a respeito deste
tópico. Pode fazer outra rodada perguntando qual o interesse dos alunos em saber a respeito
deste tema ou solicitar a uma classe que leia uma crônica, e o objeto da palavra pode ser passado
pedindo sobre as reflexões que têm a respeito daquilo que leram. Isso permite que as vozes dos
que não se manifestam tenham a chance de falar e, com muita frequência, traz reflexões mais
profundas.
Os círculos podem ser usados para construir conexões entre os adultos e os alunos nas
escolas. Uma das formas mais importante dos círculos para construção de comunidade é o círculo
de check-in. Muito importante que, regularmente, os membros desta comunidade se reúnam e
façam um simples check-in. Check-in é o primeiro momento do dia juntos para sabermos como
estamos nos sentindo.
Os círculos podem ser usados para aprendizagem social e emocional. Uma das coisas mais
úteis neste processo é que cada círculo irá aumentar a aprendizagem social e emocional. O círculo
pode ser com outro objetivo, mas, mesmo no processo para chegar ao outro objetivo, as
habilidades sociais e emocionais serão trabalhadas. Se estivermos usando os círculos de maneira
regular na escola, eles irão reduzir a necessidade de ter um conteúdo específico para desenvolver
o conhecimento social e emocional.
Os círculos podem ser usados em conversas difíceis, mas importantes. Muitos alunos
veem a desigualdade e a violência em suas vidas, mas, na maioria das vezes, os adultos não falam
sobre isso. Muitos adultos, nas escolas, têm medo de abrir esta caixa. Mas para os jovens, não faz
sentido. Uma coisa que é tão grande nas suas vidas não ser reconhecida pelos adultos nas escolas.
Precisamos abrir espaços para que os jovens possam falar das suas observações e reflexões acerca
das desigualdades, injustiças e das dificuldades enfrentadas em casa. Os círculos são uma maneira
para se ter essas conversas, e os funcionários precisam fazer círculos uns com os outros.
92
Nos EUA, cada professor tem sua sala de aula, por isso, quando termina, os alunos dirigem-
se para a próxima sala, onde terão outra aula. Nos intervalos entre as aulas há uma grande
movimentação nos corredores. Em uma escola, de sétima e oitava séries, quando os alunos
estavam passando no corredor entre uma aula e outra, dois meninos começaram a brigar. Uma
das normas da escola é que todos os professores devem ficar no corredor entre a troca das salas.
Quando irrompeu esta briga, havia dois professores e, um deles, tentou parar a briga e o outro
virou de costas e foi para sua sala. Imagem os sentimentos fortes que se estabeleceram entre os
professores, os quais começaram a tomar partido. Fizeram um círculo com o corpo docente. O
professor que tentou parar a briga falou de como se sentiu quando foi abandonado. E o professor
voltou para sua sala, que ignorou o que estava acontecendo, falou como se sentiu quando
percebeu que só havia dois professores no corredor, quando todos deveriam estar ali. Todos os
professores conseguiram falar sobre a necessidade de trabalharem juntos e manifestaram que,
depois do círculo, o corpo docente ficou mais próximo do que estavam antes do incidente. E é isso
o que buscamos.
Nos EUA, existe um plano de educação individualizado para quem tem necessidades
especiais e precisa de um plano especial desenhado. Criar este plano em círculos dá aos pais mais
voz, trazendo a sabedoria dos pais de uma maneira mais eficiente. Podemos fazer círculo que
sejam facilitados pelos próprios jovens. Existem vários programas nos EUA em que jovens facilitam
círculo para os seus pares, quando os pares se meteram em encrencas. Normalmente, um adulto
entra como participantes no processo, mas o jovem facilita e o grupo todo chega a uma resolução.
Todos são círculos de conversa que estão na base da pirâmide e podem ser usados em todas as
áreas.
No final de um e-mail, vimos uma citação do poeta Rumi: “Ontem fui tão inteligente,
queria mudar o mundo. Hoje, eu sou sábio. Quero mudar a mim mesmo.”
O jeito que temos de mudar o mundo é trabalhar com quem está próximo de nós em nosso
mundo. É mudar nosso jeito de agir no trânsito, a maneira como nós tratamos as pessoas que
trabalham a nossa volta, em hotéis, em restaurantes. E, quando conseguimos fazer mudanças nas
partes bem próximas das nossas vidas, conseguimos chegar juntos e encontrar a sabedoria
coletiva para que o impacto seja cada vez maior. Nenhum de nós consegue ter a resposta de como
fazer as mudanças no nível macro. Temos que manter o diálogo com as pessoas que estão
sofrendo mais, porque é aí que as respostas emergirão. Muito diálogo. Precisamos ter abertura
para aquilo que nós, atualmente, não conseguimos prever, enquanto praticamos a maneira de ser,
nas nossas interações, da melhor forma que pudermos. É surpreendente que não tenhamos mais
violência do que já temos. Quando sentamos em círculo múltiplas vezes, descobrimos que cada
pessoa caminha com uma dor. Vivemos uma cultura que bloqueia as necessidades humanas mais
fundamentais, como a necessidade de significado e de pertencimento. Quando nos damos conta
de quanta dor caminha nas nossas ruas, a cada dia, é surpreendente que não sejamos mais
93
violentos. Essa é a demonstração da relutância humana fundamental de causar danos nos outros.
Algo desencadeia em nós e alguma coisa nos impulsiona, fazendo com que cometamos danos
contra os outros. Na maior parte das vezes, agimos de forma a nos permitir viver juntos, apesar da
grande dor que cada um carrega. É possível criarmos um modo diferente, porque temos
realmente um desejo profundo de estarmos em bons relacionamentos com os outros. Nascemos
com isso.
Mostre-nos um bebê que não queira estar em bons relacionamentos com outros, mas,
mais que isto, os seres humanos evoluíram em comunidade. Nossos genes têm que carregar o
impulso de estarmos em bons relacionamentos. A sobrevivência da espécie depende de estarmos
em bons relacionamentos uns com os outros. Não é só isso que os nossos genes carregam. Eles
também carregam o potencial de causar danos, mas devemos prestar atenção em qual desses
impulsos que a nossa cultura está alimentando. De alguma maneira, a nossa cultura está nutrindo
aquela parte de nós que está disposta a causar dano. Em círculo estamos fortalecendo aquela
parte de nós que deseja estar em bons relacionamentos.
4.3. PERGUNTAS
a) Qual a melhor estratégia quando verificamos que o facilitador solicita o objeto da palavra a
qualquer tempo (pois é facilitador), dá conselhos, discorda dos participantes do círculo,
interfere nas salas? A quantidade de objetos da palavra é flexível, ou é um objeto por
círculo? Quando o facilitador interfere no círculo, o que está fazendo deixa de ser círculo. O
desafio é trabalhar sem fazer julgamentos. A maioria das pessoas que se tornam
facilitadores estão cheias de boas intenções, e precisamos achar um meio de validar e
valorizar essas boas intenções, ao mesmo tempo que queremos dar um feedback para elas,
para que percebam o impacto negativo da atitude no círculo. Se possível, encorajá-las a
reunirem um grupo de facilitadores para refletir a respeito de sua prática. Onde existe uma
preocupação específica, devemos tentar formular uma pergunta que oferecerá uma
perspectiva diferente para esta situação, principalmente, uma perspectiva pessoal.
95
Para alguém que fica dando conselhos, onde esta é a sua preocupação, não
devemos focar em um indivíduo particular, convidamos a todos os facilitadores no círculo a
fazer uma reflexão sobre este assunto. Uma rodada em que convidamos os facilitadores a
compartilhar uma experiência de sua vida: quando alguém estava dando conselhos a eles e
eles não se sentiram respeitados pelo conselho que estava sendo dado. Podemos refletir,
enquanto facilitadores, qual o nosso conceito de ajuda. Com muita frequência, o nosso
papel de ajudar não é um relacionamento de igualdade e, sim, um relacionamento de cima
para baixo. Convidamos os facilitadores participantes a fazer uma reflexão sobre a
igualdade: qual a diferença de conceito entre você ajudar ou apoiar, ou de alguém que
caminha junto com esta pessoa? Como eles se enxergam em relação aos participantes no
círculo? Na verdade, podemos fazer um exercício usando um material de arte, convidando
os facilitadores a criarem uma imagem com os materiais, demonstrando como eles se
veem em relação aos participantes. Buscamos um relacionamento em que nos enxergamos
precisando dessa pessoa, tanto quanto ela precisa de você. Tentamos nos afastar desta
relação de cima para baixo. Podemos ter um grupo de facilitadores para refletir a respeito
da sua prática e nenhum deles achará que estaremos focando naquilo que não está
fazendo bem. Quanto mais vulneráveis nos colocarmos, falando das vezes em que não
conseguimos fazer este tipo de relacionamento de estar lado a lado, os outros se sentirão
mais seguros de refletir a respeito de sua prática. Outra possibilidade ainda, dependendo
das circunstâncias, é proporcionar aos participantes uma chance de dar o feedback ao
facilitador, de falar sobre sua atuação.
Existe um projeto em uma escola onde treinam os jovens a serem facilitadores dos
círculos com os seus pares. Há sempre um adulto, sentado em círculo, como participante.
Estavam em círculo e a facilitadora era uma jovem que estava dando sermão às outras
meninas. O adulto pensava em interromper, em parar o processo, porque achava que não
estava certo o que estava acontecendo. O adulto decidiu sentar sobre as mãos para não
interromper e não intervir. À medida que o objeto da palavra foi passando, as meninas
foram dizendo à facilitadora que ela estava se achando melhor do que elas. Então, se
conseguirmos criar um espaço seguro onde as pessoas possam falar, é o melhor jeito de
voltar ao equilíbrio no círculo. Nenhuma técnica será perfeita quando temos esse desafio.
Talvez precisemos falar só a dois, a pessoa que percebe e o facilitador, a respeito do que
estamos observando e sempre será feito de maneira respeitosa e amorosa.
96
que o objeto da palavra for passando, trocarem o objeto da palavra se houver outros à
disposição e se assim o quiserem.
A Justiça Restaurativa e o trabalho de círculo não são ideias novas, e muitas pessoas
vêm usando esse tipo de sabedoria no trabalho que fazem, mas não temos tido uma
linguagem comum e, frequentemente, não usamos a maneira analítica de observar o que
estamos fazendo para que sejam mais sistemáticos na maneira como fazemos as coisas. O
movimento de Justiça Restaurativa está oferecendo uma linguagem comum para a
sabedoria que já temos. Temos usado uma estrutura que torna mais fácil vivermos esta
sabedoria. Em uma capacitação ocorrida em uma prisão canadense, com vários anciãos da
primeira nação, que eram funcionários, um deles compartilhou um ensinamento conosco:
ensinamento é uma maneira de acendermos novamente a fogueira de uma verdade com a
qual nascemos. Este trabalho é um processo de nos fazer lembrar. Lembrar quem nós
somos como seres humanos; lembrar da nossa capacidade de estarmos em bons
relacionamentos uns com os outros; lembrar que estamos profundamente conectados com
cada ser humano. Um ensinamento é acender novamente a fogueira para trazer a verdade
com a qual já nascemos.
c) Gostaria de saber se há alguma experiência, dentro da saúde integrativa nas escolas com
foco no professor, para a realização de um encontro com 360 representantes de escolas,
98
para que eles levem a proposta de desenvolver círculos de construção de paz para suas
escolas?
Havia uma pessoa na escola de ensino médio, que era a pessoa do círculo. Uma das
questões típicas que chegava até o seu escritório: dois meninos adolescentes, com a
testosterona aflorada, estavam para iniciar uma briga. E esta pessoa que era do círculo já
tinha trabalhado anteriormente com jovens de ruas e tinha uma máquina de “peidos” com
controle remoto. Escondia a máquina no escritório e os dois que estavam em conflito
teriam que acionar o controle remoto e descobrir onde estaria escondida a máquina.
Quando a encontravam, sentavam em círculo com apoiadores e com colegas, e a “máquina
de peido” ficava no centro e o controle remoto era o objeto da palavra. Que bom, pois isso
é uma coisa boa. Outra reflexão é a pergunta que fizemos para chegar às estratégias no
círculo. Esta estratégia específica que estamos pensando em usar no círculo vai ajudar este
grupo específico a trazer à tona o seu melhor eu? Para nós, a resposta era um SIM muito
claro. A “máquina de peido” ajuda os alunos a irem em direção ao seu melhor eu e
qualquer espaço que nos ajude a ir ao encontro do meu melhor, do melhor eu, é um
espaço sagrado, com ou sem “máquina de peido”. Seria muito inadequado em muitos
círculos. Por isso fizemos a pergunta: esta estratégia vai auxiliar este grupo a mostrar o seu
melhor eu?
d) Em Teotônia, desde 2014, temos 44 facilitadores que fazem parte de escolas municipais,
estaduais, particulares ou são diretores, professores, membros da secretaria municipal,
orientadores. Encontramos dificuldades para termos conectividade e trabalho efetivo por
parte de todos. Cada um pode aprender de uma maneira e entender aquilo que quer
entender. De que forma podemos intensificar o trabalho de todos os facilitadores no nosso
município, porque sabemos que nem todos se sentem à vontade ou encontram em si o
perfil como facilitador? Os facilitadores precisam ser alimentados, ser nutridos. O
autocuidado é muito importante para os facilitadores. É importante não exigir que sejam
facilitadores mesmo que tenham sido capacitados para isso. Temos dons diferentes em nós
e, ao mesmo tempo, fica o sentimento de desconforto quando vamos fazer algo novo.
Precisamos encorajar as pessoas que foram capacitadas a que elas conduzam alguns
círculos, antes de decidirem que esse não é o seu lugar. Provavelmente, a melhor maneira
de fazer isso seja através de um processo de acompanhamento (coaching). Podemos
convidar o facilitador para fazer um círculo conosco para que ele observe como
conduzimos. Mas deve acontecer no contexto desse facilitador. Posteriormente, fará outro
círculo em que seremos o cofacilitador e ele tomará a frente na condução. E, num terceiro
estágio, poderíamos convidá-lo para um círculo, no qual daremos apoio emocional e ele
facilitará sozinho. Depois de cada um desses estágios, é importante sentar com a pessoa e
fazer uma reflexão, uma avaliação de como foi o trabalho, perguntando ou trocando ideias
99
sobre o círculo, inclusive questionando se houve algum desconforto. Dizer ao facilitador
que é perfeitamente normal sentir nervosismo no início da atividade.
Um amigo que fazia círculo de conflito para os funcionários dentro de uma prisão
disse que vários círculos que fez eram tão exaustivos que se sentia esgotado. Alcançou o
ponto que saída do círculo com a mesma energia que havia chegado. Passou para um novo
estágio, sentindo-se com mais energia ao sair, do que a energia quando havia entrado. É
normal acharmos difícil no início. Precisamos encorajar as pessoas para que tentem por um
tempo suficiente para que percebam se é a incerteza do iniciante ou se realmente é um
lugar desconfortável para ela. Existem muitas outras tarefas neste trabalho. Não há
necessidade de ser facilitador para contribuir com o trabalho. Muitos dos projetos nos EUA
envolvem pessoas que não se sentem confortáveis em facilitar o círculo, mas assumem
papéis de apoiadores, mentores ou membros da comunidade que tem o hábito de praticá-
lo. Representa-se a ideia de que a comunidade se importa com aquele indivíduo para quem
está sendo realizado o círculo. Essas pessoas trazem uma contribuição valiosa para cada
círculo que se fazem presentes.
e) É comum que, em quase todos os círculos, uma ou outra pessoa passe o objeto da palavra
sem responder. Em uma das turmas, sistematicamente, quatro alunos não respondem as
questões. Como quebrar essa rotina, pois o problema vai se cristalizando e os demais
presentes já esperam tal atitude? Em primeiro lugar, o direito de passar sem se manifestar
verbalmente é um direito fundamental do círculo. A maioria dos jovens sente-se sem poder
em suas vidas, e os adultos empurram estes jovens de um lado para outro dizendo o que
têm que fazer e onde têm que ir. O fato de passar o objeto da palavra é uma forma de
exercer a autonomia, e é importante que eles escolham. Escutar o que os outros trazem no
círculo é muito mais importante do que falar. Se eles estiverem escutando e não estiverem
perturbando o processo, está tudo bem. Mas se sentirmos que algum participante, ao não
se manifestar, está tentando exercer algum controle no círculo, devemos tentar estratégias
diferentes, e uma delas é achar atividades não verbais, particularmente envolvendo
movimentos físicos ou malabarismo em grupo. Até certo ponto, queremos causar surpresa
de quebrar padrões. Não queremos disputar o poder, pois o círculo nunca é um lugar de
disputa de poder. É necessário acharmos perguntas tão irresistíveis que as pessoas não irão
querer passar. Um exemplo para adolescentes: O que os adultos, na sua vida, deveriam
entender sobre você que eles não entendem? Buscar perguntas para as quais eles tenham
sentimentos fortes para se manifestar. A maioria dos adolescentes tem muito o que dizer
para adultos, mas eles têm que ter certeza de que alguém estará escutando. Para uma
pergunta como essa, poderemos trazer outros adultos para dentro do círculo para que
tenham a sensação de que há adultos que possam ouvir o que eles têm a dizer. Devemos
ter muito cuidado sobre o que estamos supondo sobre o que está acontecendo, quando
eles não estão se manifestando. Já ouvimos histórias, de círculos após círculos, de jovens
que não falavam, não se manifestavam. Em uma situação particular, depois da série de oito
ou dez círculos, um adulto estava conversando com uma adolescente que nunca havia
falado durante o círculo, mas ela descreveu para esse adulto o quanto a prática do círculo
havia mudado sua vida. Nunca temos certeza do que está acontecendo na cabeça de
101
alguém. Uma das grandes características a respeito do objeto da palavra é que estamos
honrando a presença do participante mesmo que ele não queira falar, pois mesmo assim
ele será visto. E muitos dos jovens com quem trabalhamos nunca tiveram a experiência de
um espaço respeitoso. Quando dizemos que o espaço do círculo será respeitoso, eles não
sabem do que estamos falando, porque nunca tiveram uma experiência anterior de um
espaço em que se sentissem respeitados. Temos que nos sentar em círculo com eles muitas
e muitas vezes e ter o máximo de respeito, para que possam entender o que queremos
dizer.
f) A prática dos círculos tem sido tão curativa e transformadora, como a água na minha vida:
sem a água desidratamos e sem os círculos, temos a impressão de que nossas emoções
também ficam vazias. Inspira-nos cultivar essa prática no ambiente de trabalho, na
promotoria e com as pessoas com quem trabalho. Estamos abertos, e o objetivo seria
aprimorar o nosso relacionamento. Todavia, exerço uma função de chefia. Mesmo assim,
posso conduzir o círculo? Quais seriam boas perguntas ou estratégicas para os primeiros
momentos? O esboço que apresentamos para os círculos dos professores também
funcionaria para o local de trabalho? Por exemplo: por que você escolheu fazer o trabalho
que faz? Conte-nos um momento que você sentiu orgulho. O que é difícil no trabalho que
você faz? Fizemos um círculo com um grupo de juízes, perguntando: o que toca seus
corações no seu trabalho? E, nos EUA, as pessoas falam muito menos em coração do que
no Brasil. E é uma pergunta muito poderosa. Às vezes, usamos estratégias laterais e os
colegas juízes podem responder que não precisam de círculos para eles mesmos. Podemos
apresentar propostas como um treinamento, não para se tornarem facilitadores, mas um
treinamento a respeito de conflito, de resolução de conflito. Iniciar dizendo que em algum
lugar de nossa comunidade está sendo utilizado o processo circular e queremos
oportunizá-los dizendo o que é este processo, sem expectativa de que usarão, mas que é
bom conhecerem como funciona. Coloque-os em círculo e comecem a ter experiência de
círculo, sem a pressão de que precisarão fazer alguma coisa com aqueles que estão
atendendo. Temos utilizado esse processo para trabalhar com os funcionários das prisões.
Há uma estrutura, no departamento estadual prisional de Minnesota, para ser usada.
Qualquer um que tenha um conflito com um colega pode pedir uma mediação, uma
conferência ou um círculo. São práticas conduzidas por colegas. Os funcionários se
voluntariam para aprenderem a ser facilitadores, porém fora de suas horas de trabalho, já
que são totalmente voluntários. Alguém pode estar em conflito comigo, pede para fazer
um círculo e posso dizer não. Muitas vezes, podem surgir conflitos e as pessoas não
querem participar. Assim, criamos treinamentos nos quais estaríamos com as pessoas em
círculo. Faríamos um treinamento a respeito de conceitos de conflitos e, às vezes, trazem o
conflito para o círculo. Uma vez que está aberto, dentro do coletivo, podemos trabalhar o
conflito naquele momento. Muitas vezes, entramos pela porta dos fundos. O treinamento
é um contexto muito bom. No local de trabalho, quando exercemos a posição de chefia,
102
podemos mandar as pessoas a fazer o treinamento, abrindo outras possibilidades para este
espaço.
g) Se não houver adesão completa pela equipe diretiva e professores, podemos fazer círculo
com parte da equipe? Sim. Podemos oferecer um círculo e convidar as pessoas que
estiverem dispostas a participar e, assim, fazemos um círculo com as interessadas. Muitos
grupos de estudo funcionam dessa forma. Oferecemos uma oportunidade e convidamos a
todos aqueles que têm interesse em participar. Não há obrigatoriedade. Haverá menos
resistência quando as pessoas não forem obrigadas a participar.
h) Como fazer quando temos limitação de tempo? Para responder, vamos compartilhar uma
experiência. Sabemos que teremos nos círculos pessoas muito articuladas que adoram
falar. Este círculo não é para resolver um conflito, surgiu de uma perspectiva muito
diferente, e as pessoas precisavam de espaço para falar daquilo. Combinamos a rodada de
apresentação e a rodada de valores numa rodada só. Pedimos que se apresentassem
brevemente e que dissessem os valores traziam para nossa conversa. Apresentamos
diretrizes básicas e perguntamos se gostariam de acrescentar algo. Mesmo assim, era
necessário fazer uma construção de comunidade antes de abordar a questão em si. Isso
era um contato de uma comunidade religiosa. Sabíamos que muitos membros dessa
comunidade estavam buscando, há muito tempo e com muito emprenho, um lugar onde
pudessem se sentir em casa. Fizemos uma rodada, perguntando o que a comunidade
significa para cada um deles. Pedimos que respondessem em duas frases. A maioria deles
falou mais que duas frases. De qualquer forma, fez com que fossem mais breves do que
seriam se não houvesse o pedido. Fomos para rodada que seria abordada a questão difícil.
Esse círculo foi uma adaptação de uma situação em que surgiu um conflito, mas não
tínhamos todo o tempo. Nele, especificamente, não era para tomar uma decisão ou chegar
a um acordo. As decisões seriam tomadas por um grupo diferente. Os membros da
congregação precisavam se expressar a respeito de como estavam se sentido diante da
situação que havia surgido. Mesmo com pressa, é necessário que seja feita uma construção
de comunidade antes de abordar as questões mais difíceis. Mesmo que fosse uma
comunidade em que havia um bom relacionamento antes do acontecido.
Nos círculos de conversa, não de conflitos, podem ser feitas algumas adaptações,
particularmente com o uso de círculos de check-in. Quando propomos um check-in,
subentende-se que estamos em uma comunidade que está se encontrando regularmente.
Pode ser que já tenhamos estabelecido valores e diretrizes para estes encontros. Isso é
muito relevante, particularmente, nas salas de aula. No início do ano, podemos fazer
círculos mais profundos para estabelecer os valores e as combinações para a sala de aula.
Ocasionalmente, fazemos novos círculos para retomar esses valores e combinações. Os
círculos de check-in podem ser feitos com mais frequência. Podemos fazer uma abertura
103
breve, passando o objeto da palavra para o check-in. Se surgir um momento de emoção
muito forte no círculo, podemos fazer uma segunda rodada, para que todos tenham a
oportunidade de dar uma resposta a respeito dessa emoção. Se não houver nada de
emocional que surja, uma única rodada pode ser adequada e fazemos o encerramento de
maneira breve.
i) O que levo destes dias de imersão? O mais importante é a busca de manter o padrão
vibratório com o amor. Que todas as técnicas que ensinou foram muito importantes e
valiosas, mas o que levo é a busca de me conectar, no dia a dia, com o amor, com o estado
de espírito que nos faz melhor. Como a água que curou o meu processo de separação, de
dor. Todos os dias pedia que essa água lavasse e levasse toda a mágoa. Bebia água dizendo
para ela lavar e levar toda mágoa. No banho de mar, de cachoeira, também. Experimentei
a cura pela água. Busquei a força do perdão na renovação. Fiz uma nova família. Com o
amor e com o perdão tudo é possível. O que me guia? É o amor ao poder ou o poder do
amor? E, quando o poder do amor nos guia, encontramos a solução de todas as coisas.
Gostaria de ouvir sobre o amor, o que aprendeu na convivência com seus sábios da
primeira nação e com os elementos da natureza: terra, fogo, ar? Aprendemos muito. Muito
nos foi ensinado. O que sei, por estar acompanhando pessoas das primeiras nações, é que
a gratidão está presente constantemente. A gratidão pelo sol nascer a cada dia. As
cerimônias do nascer do sol são comuns em vários e vários grupos. E muitos desses grupos
têm o fumo como uma planta sagrada. E quando entramos no carro para iniciar uma
viagem com minha amiga Yago, vejo que ela espalha um pouco de fumo no chão, ao redor
do carro, com uma oração, pedindo pelo apoio da terra para uma viagem segura. Quando
colhem plantas ou frutos, aprendemos que deixam as mais fortes para trás para que
possam se reproduzir. A primeira planta que colhem, depositam um pouco de fumo como
sinal de gratidão. Começamos a perceber o uso do fumo nas práticas da atenção plena.
Prestamos atenção quando estamos recebendo benefício da outra parte da natureza.
Aprendi que as pedras contêm sabedoria, porque estão aí há muito tempo e conseguem
conter muita dor. Participamos de um grupo de mulheres num acampamento selvagem,
que tinham uma pedra como objeto da palavra e convidavam as mulheres a falarem sobre
dificuldades em sua vida. A pedra se impregnou com toda dor. Fomos à beira do lago e
uma das mulheres atirou aquela pedra muito longe, para dentro do Yago, dizendo que as
águas podem limpar as dores. A água representa a vida em muitas culturas e não é
surpreendente, pois a maior parte do nosso corpo é água. A vida não se desenvolve sem
104
água. Quando olham a volta, olham as plantas para determinar se a vida é possível,
procuram a existência de água. Quando olham planetas, imaginando se é possível que
tenha vida, procuram a existência de água.
Outra perspectiva interessante é que ao invés dos seres humanos estarem no topo
da pirâmide dos seres vivos, somos vistos como seres mais dependentes e impotentes. Os
seres que não têm cabelo e não têm dente ao nascer, e não conseguiríamos sobreviver
sozinhos. Yago nos diz que todas as outras espécies têm uma responsabilidade por nos
manter vivos. Acreditamos que estamos no comando. As plantas também. As pessoas que
conheço destes povos indígenas, o seu espírito associa-se com tudo, tanto com seres
animados quanto os inanimados. As rochas têm espírito, a água tem espírito. Parece haver
um entendimento muito profundo da interconexão de vida que existe. O respeito por
todas as outras partes que não são humanas. É uma das coisas que temos muito que
aprender, porque a espécie humana não sobreviverá se não entendermos esta
interconexão profunda.
105
disso. Ao mesmo tempo, é necessário dar uma oportunidade aos participantes de falar o
que essa ansiedade causou neles.
k) Temos uma idade mínima para participar do círculo? Se há experiências de círculos para
crianças até sete anos? É válido fazer uma climatização (trabalho em grupo, valores sobre o
círculo) antes da realização do círculo? Independentemente da idade, o que seria mais
adequado fazer com relação aos professores e alunos: participarem juntos, em um círculo
de conflito e em um círculo de diálogo, ou fazer o círculo separado e depois juntar? Quatro
anos é uma boa idade para iniciar a fazer círculo. Houve uma experiência em círculo com
uma criança de três anos, cuja participação foi muito importante. Os pequenos fazem
círculos muito bem. Eles não conseguem sentar por muito tempo. Se não for um círculo
muito longo e os grupos não forem grandes demais, é possível fazer círculos com
pequenos. Há uma estratégia em permitir que, além do objeto da palavra, possam trazer
um objeto que possam ficar manuseando enquanto o círculo vai andando. Alguma coisa
que posam se ocupar, diminuindo a ansiedade dos pequenos, como massa de modelar.
Permitiríamos que sentassem ou deitassem no chão, encontrando a melhor posição para
eles. Não precisa ser tão organizado. Em uma primeira série, composta por alunos de mais
ou menos seis anos, uma criança mordeu a orelha de outra, e esta mordida aconteceu no
parquinho de uma escola em que já estavam fazendo círculo. As crianças estavam
acostumadas a sentar em círculos. Sentaram em círculo com seis alunos de seis anos de
idade e, à medida que o objeto da palavra ia passando, uma menina disse: “eu sei por que
ele deu a mordida no outro, porque ninguém quer brincar com ele.” Continuou o círculo e
chegaram a um acordo. O acordo tinha dois ou três itens das coisas que o menino que
mordeu se comprometeu a fazer e uma delas era que ele procuraria um adulto quando
tivesse algum problema. Os outros alunos do círculo identificaram seis ou sete coisas que
eles teriam que mudar em seu comportamento em relação àquele menino: incluí-lo na
suas brincadeiras, tratá-lo com gentileza, entre outras. Seis anos, muitas vezes, com um
comportamento melhor que muitos adultos. Somos socializados fora do pensamento que
estamos em uma coletividade.
Vamos dar um exemplo de círculos que são feitos com funcionários nos presídios.
Na prisão onde iniciaram este projeto, o serviço de atendimento à saúde estava,
particularmente, intoxicado. Geralmente, as prisões são lugares bastante tóxicos para se
trabalhar e, neste caso, o serviço da saúde era o pior. As pessoas das outras unidades
108
tinham pavor de ligar para o serviço de saúde, porque era muito negativa a interação com
o pessoal da saúde. Os funcionários pediram um círculo sem o chefe. Eles não gostavam do
chefe, não confiavam nele e não o queriam no círculo. Encontraram-se três meses sem o
chefe, uma vez por mês. Chegaram à conclusão de que deveriam convidar o chefe se
quisessem que realmente ocorressem mudanças, porque eles tinham que conversar. E,
uma vez por mês, durante os nove meses seguintes e até o final do ano, eles continuaram
trabalhando extremamente bem. Mas precisaram se encontrar várias vezes antes de
chamar o chefe e acolhê-lo no círculo. Assim, a partir das histórias, percebemos que não
existe um único jeito. Nunca sabemos. Vamos tateando, no escuro, para ver o caminho que
podemos seguir.
n) Gostaria de ouvir sobre a construção de valores. Por que, quando estamos em círculo,
acontece uma parada: as pessoas não sabem dizer os valores e ficam pedindo algo mais?
Quando temos um problema e as pessoas não entendem o que estamos pedindo,
podemos solicitar que alguém dê exemplos de valores. Alguns podem falar respeito, outros
honestidade e, assim, as pessoas passam a saber sobre o que se está perguntando. Mas
também podemos modificar a pergunta, pois com crianças pequenas isso é bem comum. A
pergunta pode ser: o que faz com que alguém seja um bom amigo? Ministramos aula nas
quais os alunos têm que escrever um artigo. Uma das possibilidades é elaborar o plano de
um círculo e como o colocaria em prática. Um dos alunos é treinador de basquete de
jovens com dez ou onze anos de idade. Ele elaborou o círculo para seu time de basquete:
para a cerimônia de abertura, trouxe uma frase de um super-herói valorizado do basquete:
“o segredo do basquete não tem nada a ver com o basquete.” O objeto da palavra foi uma
bola de basquete. Na rodada de apresentação, pediu que cada um dissesse seu nome e
escrevesse o nome na bola de basquete e, assim, o objeto da palavra representa algo
importante, os representa como pessoas e os representa como um time. Todos em uma
peça só. Na rodada de valores, pediu para dizerem o nome e uma característica de um
atleta que admiram e escreverem em um papel para colocarem no centro do círculo. Na
primeira rodada: o que é preciso para ser um bom jogador de basquete? O que é preciso
para ser um bom treinador? O que significa a frase que usei na abertura, o que será que o
atleta quis dizer? E a maioria deles não tinha entendido. Mas, no final da rodada, um deles
conseguiu captar o significado da frase e leu o restante dela: O segredo do basquete não é
sobre o basquete. Um time de basquete tinha trocado um jogador de basquete por alguém
que não tinha tanta habilidade, mas que era um jogador muito bom em time e naquele ano
o time ganhou o campeonato. Passando, novamente, o objeto da palavra, perguntou aos
alunos o que achavam agora que sabem toda a história. O importante dessa história é que
o plano tem que ser específico para aquele grupo de pessoas com quem vamos trabalhar.
Devemos usar a linguagem que achamos que será entendida por aquele grupo. Não
devemos ficar presos a definição de valores. As pessoas acabam trazendo de maneiras
diferentes.
109
Ilustração:
Cerimônia de Encerramento de um dos Encontro em Porto Alegre:
“Balanço prá lá, balanço prá cá, balanço assim, mas não vou cair, não caio não, tenho
você prá me dar a mão, não caio não, a nossa força vem da união.
Tô balançando, mas não vou cair. Tá balançando na minha vida, mas não vou cair, mas
não vou cair.”
Esta música é usada nas rodas de terapia comunitária pelo Professor Adalberto Barreto,
no Ceará.
110
5. SEGURANÇA: JUSTIÇA RESTAURATIVA E COMUNIDADE – SECRETARIA DE
SEGURANÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – 09 DE MAIO DE
2017 – PORTO ALEGRE
Peço desculpas por não conseguir falar a sua língua e as limitações de língua aqui são
minhas. Venho à presença de vocês com muita humildade. Quero honrar o trabalho que vocês
fazem, no dia a dia, pela segurança das pessoas desta terra. Quero começar oferecendo gratidão.
Esta é a quarta viagem ao RS e cada vez que chego tenho sido acolhida com grande hospitalidade
e muito carinho. Agradeço a vocês pela energia e beleza deste País e deste Estado. O Brasil
capturou meu coração. Quero dar os parabéns a vocês pelo trabalho magnífico que vem sendo
realizado em Círculo de Construção de Paz e Justiça Restaurativa. Passei algum tempo em Caxias
do Sul, ao final da semana passada e soube das aplicações maravilhosas que vem sendo feitas com
o Círculo de Construção de Paz em todo o trabalho, em Caxias do Sul. Vocês estão criando um
grande centro de Círculos de Construção de Paz e de Justiça Restaurativa para o país e para o
mundo. Estão dando exemplo. E os países, pelo mundo a fora, irão se beneficiar pelo trabalho
criativo que vem sendo feito no Brasil. Estão abrindo um novo caminho para a paz e para
segurança dos povos no mundo. É um trabalho muito árduo que requer um novo olhar e uma
nova ação. Uma das forças de seu trabalho é o envolvimento de vários setores: justiça, educação,
assistência social, bairros, comunidade. As idéias que compartilharei com vocês não são idéias
originais minhas. São ensinamentos que aprendi com outros que me dão esperança num mundo
que está desencorajado. Não sou uma especialista em polícia. Vocês sabem mais a respeito disso
do que eu sei. Meu conhecimento está mais na comunidade. Trabalhando com a comunidade,
engajando a comunidade e o papel da comunidade na segurança. Falarei sobre o que nós
queremos dizer com Justiça Restaurativa. A Justiça Restaurativa é uma estrutura para orientar
como respondemos quando as pessoas machucam umas as outras. Quando machucamos uns aos
outros, causamos dano aos relacionamentos e a sensação de segurança que temos. A idéia da
Justiça Restaurativa é que quando existe o dano precisamos reparar este dano. Deixar as coisas
bem novamente, são guiadas por quatro princípios: 1) Vamos nos preocupar com o dano. O dano
só pode ser identificado pela pessoa que sofreu; 2) Vamos focar nas obrigações. Quando
causamos danos temos obrigação de deixar as coisas bem novamente. Para deixar as coisas bem
significa que temos que assumir responsabilidades e fazer a reparação; 3) Vamos envolver os que
foram mais afetados pela situação. A pessoa que sofreu o dano e a pessoa que causou o dano,
estes dois lados deverão ser colocados juntos para decidir como deixar as coisas bem de novo. E a
comunidade, em torno destas pessoas, precisa fazer parte da decisão de como deixar as coisas
bem novamente; 4) A decisão de como deixar as coisas bem novamente será um processo
inclusivo e coletivo.
111
na comunidade, nas escolas, estão sendo usados pela Guarda Municipal, pelos serviços de
Assistência Social e dentro do Fórum, nos tribunais. Outra forma de prensar no que significa
Justiça Restaurativa vem de um senhor chamado Daniel Van Ness que diz “se o crime é uma ferida,
a justiça tem que ser a cicatrização.” Num processo restaurativo, estamos tentando curar todos
que sofreram o dano, todos que forem machucados. Isto inclui a vítima, a família, a vizinhança e a
comunidade em torno dela. Significa também curar a pessoa que causou o dano, a família, a
vizinhança e a comunidade em torno dela. Quando causamos dano ao outro, causamos dano a
nossa própria alma. A maneira de curar isto é assumir a responsabilidade pelo que foi feito e fazer
a reparação. Tem uma frase que vocês usam freqüentemente e que eu amo. É uma frase que não
é usada freqüentemente em meu país e essa é a idéia de uma cultura de paz. Vejo a Justiça
Restaurativa e a aplicação dos Círculos de Construção de Paz como uma maneira de atingir esta
cultura de paz. Os círculos nos ajudam a praticar esta cultura de paz. Os círculos nos ajudam a
sentir como é estar numa cultura de paz. Isto não significa que temos todos que concordar.
Significa que estamos todos conscientes a respeito dos valores compartilhados: cuidado,
integridade, honestidade, respeito. Ficamos juntos com nossos valores compartilhados para
entender as maneiras de como somos diferentes. As maneiras de como enxergamos as coisas
diferentes. Não precisamos enxergar as coisas da mesma maneira e não precisamos pensar da
mesma maneira. Na verdade, se eu e você pensamos exatamente do mesmo jeito, um de nós é
redundante; um de nós é desnecessário. Mas somos todos necessários, somos únicos e trazemos
todos os dons diferentes para nossa comunidade, para nosso país e para o mundo. Por sermos
únicos, não existem duas pessoas iguais, e por isto, temos, freqüentemente, desentendimentos e
conflitos. Estes conflitos podem nos ajudar a nos conhecermos melhor e conhecermos os outros
melhor, se usarmos um bom processo para trabalharmos o conflito. A Justiça Restaurativa nos
guia para como podermos trabalhar o conflito e alcançar a justiça; para nos tornarmos mais fortes
como indivíduos e como comunidade.
Uma nova estrutura pode nos ajudar a pensar em segurança. Uma segurança baseada em
relacionamentos ao invés de uma segurança baseada em equipamentos. Temos utilizado
equipamentos como cercas, armas, câmeras de segurança, barras para tentar alcançar a
segurança que queremos, mas não está funcionando muito bem. Nem no seu país, nem no meu
país. A segurança baseada em relacionamentos saudáveis é menos cara, causa menos dano
secundário, causa menos ansiedade e menos medo e têm grandes benefícios. A segurança
baseada em relacionamentos saudáveis constrói a comunidade, aumenta a conexão, aumenta o
comprometimento para o bem comum e aumenta a habilidade de transcendermos às diferenças.
A cada um de nós é dado uma escolha segura: ou vamos preferi viver em comunidade ou vamos
preferir viver olhando por cima do nosso ombro com medo do nosso vizinho. Não precisamos de
cerca de segurança. Nesta comunidade saudável, a segurança não é um caso de equipamentos, é
um produto de relacionamentos de confiança e de respeito. Relacionamentos saudáveis na
comunidade exigem que cada um seja tratado com respeito. Que todas as vozes tenham um lugar
onde possam ser escutadas. É preciso que haja processos que nos lembrarão nossa interconexão
112
como das nossas diferenças. Os relacionamentos saudáveis na comunidade congregam o
paradoxo. Sabendo que temos pontos em comuns e a nossa necessidade de pertencimento, a
nossa necessidade de sermos tratados com dignidade e com respeito, a nossa necessidade de ter
significado na nossa vida. Estas são necessidades universais. Elas representam nossos pontos em
comuns de muito poder. Ao mesmo tempo em que cada um de nós é único, ninguém é
exatamente como outra pessoa. Se pudermos ficar firmemente em nossos pontos em comuns, nós
podemos ter as nossas diferenças de maneira que irão enriquecer nossas vidas ao invés de
diminuir a vida. Podemos viver com curiosidade e interesse ao invés de viver com medo de alguém
que é diferente, porque sabemos que sempre haverá a nossa humanidade compartilhada.
Pela minha experiência, o Círculo de Construção de Paz é o lugar mais seguro, é o espaço
mais poderoso para sentir a nossa humanidade compartilhada, para vermos a nós mesmos nas
vidas dos outros, para que possamos estar seguros uns na presença dos outros. Isto não é
facilmente atingível no seu país ou no meu. Somos muito polarizados, acreditando que não temos
pontos em comum, sem disposição para enxergar a humanidade que existe no outro, mas, pela
minha experiência, estes muros desabam quando fazemos um círculo eficiente, efetivo. O que
estou descrevendo não pode ser obtido pela polícia sozinha. Temos pedido de mais ao sistema de
justiça, principalmente da polícia. A segurança é uma responsabilidade compartilhada com a
polícia e com a comunidade. Precisamos trabalhar para reconstruir a comunidade como um lugar
de segurança de uma maneira saudável. A comunidade precisa reconstruir os relacionamentos,
que são a base para uma comunidade saudável. Com isso, a comunidade pode ser parceira da
polícia. A Guarda Municipal de Caxias do Sul é um bom exemplo do que pode ser feito, mas não
podemos esperar que a polícia faça sozinha. Estamos colocando uma carga muito grande sobre a
força policial.
Cada cidadão tem que se tornar uma parte do tecido que vai construir esta comunidade
forte e saudável. Um tecido comunitário que seja forte o suficiente para manter os seus jovens
saudáveis também. E o trabalho restaurativo chega junto com o trabalho preventivo. Penso que
para mudarmos as comunidades, para que suas bases estejam mais nos relacionamentos, é
preciso que haja mudanças em várias dimensões. Uma grande mudança que temos que fazer é
parar de depender da sabedoria individual para nos apoiarmos na sabedoria coletiva. Na nossa
cultura ocidental, ficamos muito dependentes da sabedoria individual, mas a sabedoria coletiva é
sempre muito maior do que qualquer sabedoria individual, se oferecermos um processo de
reflexão e respeitoso para chegar a essa sabedoria coletiva. Precisamos recuperar nossa
habilidade para acessar esta sabedoria coletiva. Os círculos são uma maneira muito prática de se
obter isto.
Precisamos fazer uma mudança de cultura de separação para uma cultura do coletivo. A
nossa interconexão nos chama para percebermos que as nossas ações impactam os outros. Em
última instância, o dano causado ao outro é o dano causado a mim mesmo. Podemos começar a
113
equilibrar as necessidades individuais com as necessidades do grupo de uma maneira saudável.
Precisamos mudar a maneira como olhamos a comunidade. Sair da análise do déficit e partir para
uma análise dos pontos fortes. Quando só descrevemos os problemas e pensamos nos problemas
e falamos nos problemas, nos sentimos sobrecarregados. Toda família, todo indivíduo, toda
comunidade tem seus pontos fortes. Se nos focarmos nestes pontos fortes, teremos mais energia
para dar o passo seguinte para termos uma visão melhor.
Também precisamos fazer uma mudança de sempre estarmos usando a nossa mente para
incorporar nossos corações e nossos espíritos juntamente com a parte mental. As perguntas
lógicas e intelectuais são importantes, mas não são as únicas formas de conhecimento. Há muitas
coisas que sabemos como seres humanos. Existe muito sabedoria na nossa experiência de vida e
não precisamos tirar isto de uma caixa ou de uma palestra. Nossos corações podem ser muito
sábios. Precisamos de espaços em que possamos trazer nossos corações e nossos espíritos
juntamente. Tenho percebido que os brasileiros são melhores nisto do que os americanos. Tenho
visto muito coração neste país. Isto dá muita esperança.
Outra mudança importante é que temos visto a natureza humana como um problema e
que talvez seja a solução. Costumamos falar sobre os grandes danos que a natureza humana é
capaz de infringir sobre os outros, mas temos esquecido que cada ser humano nasce com um
impulso de estar em bons relacionamentos uns com os outros. Os seres humanos evoluíram em
comunidade e isto significa que os nossos genes carregam o desejo de estarem em bons
relacionamentos uns com os outros. Fiz um exercício com valores com jovens que estavam presos.
Os adultos que trabalham com eles achavam que eles não tinham estes valores porque não
haviam sido ensinados estes valores e os jovens trouxeram valores que gostariam de demonstrar,
quando eles estivessem no seu melhor comportamento, sua melhor atitude de vida. E a lista de
valores que estes jovens trouxeram foi praticamente igual à lista que os adultos haviam trazido:
respeito, honestidade, cuidado. Os mesmos valores que surgiram em cada grupo com que eu
trabalhei. Disse aos jovens: “esta lista é muito bonita, são estes valores com que vocês se mostram
no mundo lá fora?” Eles disseram não, não estamos fingindo que é assim que nos apresentamos
no mundo lá fora. Perguntei: “Se esses são os valores que vocês querem cultivar quando estão no
seu melhor, porque vocês não demonstram estes valores?” Estávamos sentados em círculo e
usamos o objeto da palavra (é um objeto que é passado de mão em mão, que só fala quando está
com o objeto, cada um fala e passa adiante este objeto, você só pode falar quando estiver
segurando este objeto da palavra) e fizemos a pergunta: “Se esta é a maneira que vocês gostariam
de estar quando vocês estão no seu melhor, porque não colocam em prática este valor?” A
resposta que nos deram de diferentes maneiras foi: “o mundo não é seguro para demonstrar estes
valores”. Não se sentiam seguros demonstrando estes valores dentro das suas comunidades. Eles
seriam ridicularizados, os outros tentariam tirar vantagens deles se demonstrassem seus valores. E
estes jovens não criaram este mundo que dava esta sensação de insegurança tão grande para eles.
114
E a falta de segurança para eles acabou causando que eles deixassem esse ambiente ainda mais
inseguro, fazendo o que fizeram, os danos que cometeram.
Enquanto não criarmos uma cultura de paz em cada vizinhança, em cada bairro, não
teremos um mundo seguro. Temos nos focados nas capacidades negativas dos seres humanos,
mas todos temos a capacidade de agir conforme os valores que estes jovens colocaram na sua
lista. Ouvindo estes jovens, percebi que quando não estou no meu melhor são em lugares onde
não me sinto segura. Existe uma sabedoria imensa nas suas reflexões. Quando as pessoas não se
comportam bem, a causa pode ser por elas não estarem se sentido seguras. Podemos aumentar a
sensação de segurança propiciando relacionamentos mais saudáveis nas nossas famílias, nos
nossos locais de trabalho, nossos bairros, nossas comunidade de fé, em toda a parte em que os
seres humanos se reúnem. Alguma vez, vamos estar em conflitos, é uma parte natural por sermos
únicos. Quando estas diferenças surgem, quando os conflitos aparecem precisamos de processos
que nos ajudem a trabalhar estas diferenças e que construam senso de comunidade, ao mesmo
tempo, em que resolvem estas diferenças. Os processos restaurativos constroem
relacionamentos, enquanto resolvem os conflitos e as parcerias entre todas as partes que
compõem a comunidade é que vão nos ajudar a atingir isto.
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6. PROCESSOS CIRCULARES PARA TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS –
SEMINÁRIO INTERNACIONAL – ASSOCIAÇÃO PALAS ATHENA – 26
DE MAIO DE 2017 - SÃO PAULO
“Acredito que o círculo também é o caminho para curar traumas da sociedade. A
vergonha e o medo de perder amor e respeito são barreiras enormes, quando se trata de
encarar o mal que causamos”. (Kay Pranis)
Em primeiro lugar, quero pedir desculpas por não falar português e agradeço muito por
terem paciência com o desafio que este fato cria. É uma grande honra estar aqui. Estou muito,
muito feliz em estar aqui com vocês. Gostaria de agradecer a todos que organizaram este evento,
em especial, aos que estão aqui porque se importam.
Ouvi dizer que tenho alguma influência no Brasil e aceito isso, mas não aceito o fato de ser
especialista. Este novo modelo do qual estamos falando não é um modelo baseado em
especialistas e, se vocês estão concordando, é porque vocês já sabem.
Tenho oportunidade de ajudar as pessoas a se lembrarem daquilo que elas já sabem, o que
não é nenhuma especialidade. Assim como em 2010, fico impressionada com todo o calor e
hospitalidade que recebo. Sempre fico com os olhos cheios de lágrimas por causa de todo o calor
que as pessoas me dão aqui. Sou muito grata por todos os beijos e abraços que recebi. Vou sentir
falta disso quando retornar. Estou profundamente tocada com todos os progressos que
aconteceram aqui na área da Justiça Restaurativa desde minha última estada, em 2013. Estou
impressionada com toda a compreensão, com a compaixão, com todos aqueles copraticantes que
eu encontro aqui. Vejo isso se repetir em todas as cidades que visito. Sinto-me privilegiada de
estar sendo parte deste trabalho no Brasil.
Este momento é um momento de grande dificuldade, tanto neste país como no meu. Não
estava planejando falar exatamente o que vou falar agora, mas tenho ouvido sobre o que
aconteceu na cidade de São Paulo, especialmente com a comunidade dos usuários de drogas, fato
esse que me levou a pensar a usar palavras que usei em outra palestra que fiz. Foi algo que falei
em Caxias do Sul, RS, para as pessoas que trabalham na polícia. Falei sobre a diferença entre a
segurança baseada nos relacionamentos e a segurança baseada na dor. Naquela dor causada por
cercas, celas, câmeras, este tipo de coisa. A segurança baseada na estrutura de prisões, que causa
dor, leva a uma guerra que vai aumentando em sua escala. Ou teremos mais trancas e mais armas,
ou não teremos mais segurança. Já a segurança baseada nas relações causa menos danos, cria
menos medo e mais benefícios. A segurança baseada nas relações reforça o compromisso e a
criação de relações saudáveis e aumenta nossa habilidade de transcender as diferenças que temos
uns com os outros. Precisamos começar a pensar em segurança de uma maneira completamente
diferente.
116
Pensei em falar sobre o papel que os círculos podem ter em construir a cultura de paz.
Uma cultura de paz exige mudanças profundas nas nossas compreensões. O círculo é uma
ferramenta prática que vai causar essa mudança e torná-la sustentável. A cultura de paz deve
saciar as necessidades de pertença em cada membro de uma sociedade. Uma bióloga chamada
Mary Clark afirma que significado e pertença são as necessidades humanas mais profundas que
existem. Infelizmente vivemos em culturas que bloqueiam o significado e o sentido de pertença a
muitos seres humanos. Em especial, as pessoas marginalizadas, as pessoas pobres ou aquelas que
não têm ascendência europeia. Mas isso não acontece só com os marginalizados, nossa cultura
tem um buraco no sentido de significado e sentido de pertença. Os seres humanos têm uma
necessidade profunda de pertença.
Sabemos que a separação significa exclusão ou morte em uma sociedade. Na nossa história
mais antiga como seres humanos, a morte era consequência de uma expulsão da comunidade. A
nossa necessidade de pertencer a um grupo é tão grande que violamos outros valores para poder
pertencer a algum grupo. Se não formos aceitos em uma comunidade positiva, vamos nos juntar a
uma comunidade negativa para sermos aceitos e pertencentes a algum lugar. As gangs, por
exemplo, são comunidades que aceitam pessoas que não são aceitas na sociedade principal. Em
uma cultura de paz, todos devem sentir que têm pertença e são valorizados como são.
Os círculos de paz são concebidos para ouvir todas as vozes, aceitar todos os que são
incluídos e estabelecer conexão entre essas pessoas. O círculo considera todo e cada participante
importante para o bem-estar geral. O sentido de pertença é orgânico no círculo. Um processo
circular nos dá uma ferramenta para passar de uma sociedade de exclusão para uma sociedade de
pertença. Nas escolas, que são comunidades muito pequenas e muito intensivas, começamos a
ver essa mudança. Vemos uma mudança para cultura de paz quando o círculo se torna parte do
tecido daquela escola.
Falarei sobre a necessidade de significado da qual Mary Clark falou: que nos esforçamos
por achar significados na nossa vida, porque estamos caminhando rápido demais e somos
distraídos no mundo em que vivemos. Essas distrações externas, essas forças externas e
materialistas nos conduzem, mas não conseguimos encontrar significado interior nelas.
Uma cultura de paz exige que experimentemos, em primeiro lugar, uma paz interior. Se
não for assim, a nossa inquietude e as nossas preocupações internas virão à tona e irão causar
conflitos com os outros. Os círculos de paz nos fazem desacelerar e criam espaço. Um espaço que
nos permite ouvir a nossa própria voz interior e a voz daqueles que foram feridos. A velocidade, o
ritmo e o tom do círculo nos encorajam a encontrar a nossa própria voz interior e a encontrar esse
espaço dentro da nossa vida. Provar aqueles aspectos da nossa vida que mais importa para cada
um de nós. Os círculos nos ajudam a nos conhecer melhor e, assim, a conseguir trabalhar no caos
da nossa vida.
117
Uma cultura de paz deve ser construída sobre os alicerces de uma comunidade saudável.
Uma cultura que se baseia no bem-estar de cada um dos membros dessa comunidade e no
cuidado com cada um deles. Os relacionamentos saudáveis de uma comunidade exigem que todos
sejam tratados com respeito. Exigem que todas as vozes tenham sua vez de serem ouvidas.
Demandam processos que nos lembrem sobre a nossa interconexão e as nossas diferenças em
relação aos outros. As relações saudáveis oferecem um paradoxo de saber que todos nós
dividimos um solo comum e que temos esta pertença. O solo comum de nossa necessidade de
sermos tratados com dignidade e com respeito e de ter significado na nossa vida. Essas
necessidades humanas são universais e formam o solo comum da nossa comunidade. É um solo
comum muito poderoso. Ao mesmo tempo, cada um de nós é único, ninguém é exatamente como
outra pessoa. A estrutura do círculo de paz assegura a cada um de nós a oportunidade de que a
sua voz seja ouvida. Isso cria possibilidades de que todas as necessidades individuais sejam
colocadas no círculo. E nesse espaço conseguimos criar as relações saudáveis de que necessitamos
na comunidade.
Uma cultura de paz também precisa de habilidade para acomodar as diferenças. Cada ser
humano é único. É a benção e a maldição da nossa vida. Somos únicos, somos diferentes, vemos
as coisas diferentemente e sentimos as coisas diferentemente. A diferença torna nossa vida
interessante. É uma energia criativa. A diferença torna cada um de nós indispensáveis e
necessários pelo que temos de único. Se eu e você somos exatamente iguais e pensamos
exatamente da mesma forma, significa que um de nós é redundante, mas, ainda bem, que todos
somos únicos e ninguém é redundante. Portanto, temos sim, diferenças. Mas para termos respeito
a essas diferenças, precisamos encontrar um solo comum no qual iremos pisar.
Entendo que uma cultura de paz não é possível se não entendermos alguns danos
históricos que foram causados e as desigualdades que são frutos desses malfeitos históricos que
aconteceram. Vejo que os processos circulares da Justiça Restaurativa são muito eficazes para
trabalhar com os danos históricos que foram impetrados na sociedade. No mundo da Justiça
118
Restaurativa, passa-se muito tempo entendendo do que a vítima precisa. Isso tudo foi feito até
agora, no nível dos malfeitos individuais, o que nos trouxe a sabedoria de perceber que isso
também pode ser aplicado aos danos perpetrados entre povos. As vítimas precisam contar a sua
história várias vezes e ser escutadas com profundidade. Precisam que reconheçam que aquilo que
aconteceu com elas estava errado e não era culpa delas. Precisam de empatia pela dor e pelo
trauma que resultaram daquilo que sofreram. Precisam de alguém que sente muitíssimo com
aquilo que aconteceu com elas. Precisam de um tipo de reparação algumas vezes. É possível dar
esses passos até mesmo no caso daqueles danos que foram causados no passado. É possível
estarmos presentes para ouvirmos a história daqueles que foram historicamente prejudicados no
passado. Reconhecer que aquilo que foi feito estava errado e ter empatia pela dor que sentem.
Sinto-me confiante de que é possível nos prepararmos para essas conversas para, depois,
acharmos uma reparação.
119
Durante esse período, estava fazendo um treinamento em uma comunidade indígena.
Estava sentada com alguns desses indígenas que falavam sobre esse processo de verdade e
reconciliação. Eram adultos, com idade variando entre trinta e sessenta anos, e muitos deles
disseram: “agora consigo perdoar a meus pais”. Até o momento em que o processo de verdade e
reconciliação aconteceu, eles não sabiam o que tinha ocorrido com os seus pais. Os pais nunca
tinham falado com essas pessoas sobre suas experiências, então o trauma dos pais formatou a
vida delas. A transmissão de uma criação saudável de filhos foi interrompida. Esses adultos não
sabiam como amar seus filhos de forma saudável. Uma vez escutando as histórias desses traumas,
as pessoas conseguiram perdoar a seus pais. É nesse momento que podemos interromper o
círculo. Uma mulher contou que foi a uma exposição local sobre esses internatos e em uma das
fotos viu sua avó quando criança. Quando visitou a mãe, comentou com ela que não sabia que a
sua avó tinha ido para o internato e a mãe falou: o quê? A avó foi para internato? Ninguém falava
sobre isso. Era tão horrível que ninguém falava. Isso vinha à tona na forma de alcoolismo, violência
e depressão. Até que a verdade foi dita. Assim, a cura pode começar. E o círculo é o melhor lugar
que eu conheço para contar histórias dolorosas, porque no círculo o que se faz é reconhecer
totalmente a dor sem culpar aqueles que a causaram. É assim que podemos nos curar como
sociedade. Não dá para sermos curados da dor provocando mais dor em alguém.
Uma cultura de paz precisa de justiça. Creio que a questão da justiça está viva em todas as
interações humanas. Experimentamos cada interação com outra pessoa como sendo justa ou não.
Quando é justa, não pensamos em justiça, mas quando não é justa temos consciência muito
aguçada do que é justiça. Acredito que essa filosofia sobre a justiça se aplica a qualquer momento
da nossa vida, e não apenas quando estamos lidando com criminalidade. Toda interação ou é justa
ou não é. E se não for justa, como acertamos isso? Nas nossas relações em família, no nosso local
de trabalho, na nossa comunidade de bairro, local, em todos os lugares. Temos que fazer uma
mudança nos nossos hábitos e normas e em um bocado de dimensões.
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um poder exercido sobre as nossas dinâmicas, nós precisamos também exercer o poder para nos
protegermos. Se não canalizarmos a nossa energia toda para proteção, teremos mais energia para
ser usada na criatividade. A sabedoria está presente nas crianças, nas pessoas que não têm
nenhuma educação formal, está presente em todos. Nós estamos perdendo essa sabedoria,
porque não há espaços em que ela possa emergir.
Precisamos mudar de uma cultura focada na individualidade para uma cultura baseada na
interconectividade. Cresci achando que tinha cuidar de mim, que nunca deveria dar trabalho para
outros, nem ficar pedindo ajuda dos outros. Isso criou as dificuldades na minha vida. Meu trabalho
com os círculos ajudou a reconhecer que nunca poderia fazer nada sozinha. Preciso de apoio, da
sabedoria e da ajuda dos outros. A interdependência é o nosso estado natural, é um lugar
saudável para estarmos. A natureza do universo é uma interconexão profunda. Uma ação
minúscula pode, em ondas, afetar todo o universo. O lugar onde conseguimos ter uma
compreensão mais profunda dessa ideia está, acredito eu, relacionado aos movimentos
ambientais. Nos EUA, dizemos que 40 anos atrás pegávamos uma garrafa de plástico, jogávamos
pela janela do carro achando que estávamos jogando “fora”. E o que os movimentos ambientais
nos ensinaram é que não existe “fora”. Não importa onde jogamos a garrafa de plástico, ela vai
afetar o nosso ambiente. Mas ainda não trouxemos esse conhecimento para dentro das nossas
relações humanas. O mesmo vale para nossas relações: não existe lá “fora”. O mundo seria muito
diferente se acreditássemos que o mal que causamos ao outro causamos a nós mesmos também.
É impossível nos beneficiarmos a custo do outro, ter alguma vantagem à custa do mal do outro. A
interconexão é a natureza do nosso mundo, é isso que aprendemos através da ciência.
Outra mudança que temos que fazer é passarmos de uma análise da deficiência para uma
análise dos nossos bens, daquilo que temos. A cultura moderna gasta uma quantidade enorme de
energia para descrever problemas. Problemas, problemas e problemas. E hoje em dia, sabemos
que perdemos a perspectiva durante esse processo. Podemos ser mais eficazes se começarmos a
identificar os nossos pontos fortes e saber aonde queremos ir, com clareza, a partir desses pontos.
Isso é particularmente verdadeiro nas famílias com as quais trabalhamos dentro do âmbito da
assistência social. Focamos tanto nos problemas e deficiências que essas famílias sentem que têm,
que achamos que são só um bando de problemas, fazendo com que essas pessoas se sintam
indignas e sem valor nenhum. Precisamos mudar o foco para as forças e para as qualidades que
essas pessoas têm. Também precisamos mudar a perspectiva que foca apenas no conhecimento
da mente para outras formas de conhecimentos que temos. Privilegiamos aquele conhecimento
que chega através da educação formal, mas não damos valor àquele conhecimento que é
acumulado através da experiência vivida. Ouvi falar de algumas pesquisas feitas demonstrando
que as crianças não conseguem progredir a não ser que sejam amadas. Mas acho que ninguém de
nós precisava de um grande pesquisador para nos dizer que nós precisamos amar os bebês. Tudo
bem que os especialistas validem isso, mas eles não são a fonte da sabedoria. As coisas estão um
pouquinho de cabeça para baixo na nossa cultura.
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Se criarmos espaços reflexivos e respeitadores, conseguiremos confiar mais na nossa
intuição, assim poderemos usar a nossa parte racional para testar as ideias que vierem através de
nossa intuição. Precisamos de ambas, mas estamos muitíssimo desequilibrados. Não são as
pesquisas e os estudos que irão nos ensinar como podemos viver bem juntos. Isso virá a nós
através de conversas que acontecem em espaços seguros e respeitosos.
Outra mudança que devemos fazer é deixar de tentar gerir os comportamentos por meio
de controles externos para passar para uma motivação interior que cause algum comportamento.
Essa ideia é particularmente forte nas nossas estruturas coercitivas, tais como as escolas, o
sistema jurídico e os sistemas de assistência. Muitas vezes, tentamos chegar ao comportamento
que queremos da pessoa por ameaças ou, muitas vezes, também por recompensas externas. Mas,
em ambos os casos, não a ajudamos a encontrar sua própria orientação interna. Essa foi uma das
grandes ideias que aprendi de Marshall Rosenberg. Tanto as punições como as recompensas
externalizam o nosso sentido de eu, de indivíduo. Mas precisamos encontrar o nosso próprio eu.
Outra mudança que precisamos fazer é de ter respostas à habilidade de não saber. Todas
as práticas restaurativas vêm do princípio de que a solução virá dos participantes do processo. O
facilitador não deve ter as respostas. A sabedoria coletiva é sempre maior do que a sabedoria de
qualquer indivíduo, mas se algum indivíduo tenta guiar o processo para chegar a uma resposta
que tenha a ver com sua própria sabedoria, ele pode não ver que a sabedoria coletiva existe. Isso
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é muito claro não apenas para os facilitadores em processos restaurativos, mas também é válido
em qualquer outro papel que desempenhamos profissionalmente.
A última mudança da qual quero falar é uma ideia que também tive por meio do trabalho
da Margaret Wheatly: devemos mudar da visão da natureza humana como problema para a
natureza humana como solução. Quando vemos a natureza humana como problema, vemos os
seres humanos como necessitados de forças coercitivas para impedi-los de fazer certas coisas. Isso
resulta em uma cultura baseada no medo e no poder. E o medo da punição é usado como
motivação para que a pessoa tenha o comportamento apropriado. Precisamos mudar a maneira
de ver a natureza humana, passando a enxergá-la como a solução. Os seres humanos têm uma
necessidade profunda e muito poderosa de estabelecer boas relações com outros. Precisamos
pertencer, pois evoluímos estando em comunidade. Os nossos genes não se esqueceram de que
precisamos dos outros para sobreviver. Essa parte da natureza humana não é nutrida nas
sociedades modernas. O que acontece, na verdade, é que a nossa cultura mina essa parte da
nossa natureza humana. Somos ensinados a desconfiar, a não deixar que os outros cheguem
muito perto; nos ensinam que seremos julgados e avaliados o tempo todo. Não somos ensinados a
ouvir aquela voz interior que clama pelo amor, pela empatia e pela vulnerabilidade que temos
dentro de nós. Somos capazes de fazer um grande mal e de fazer um grande bem. A questão é:
qual dessas duas características é alimentada pela nossa sociedade? E se quisermos alimentar o
potencial positivo dos seres humanos, como é que vamos proceder? Há muitos movimentos no
mundo todo que estão nos ajudando a maximizar o potencial humano. A contribuição dos
movimentos de Justiça Restaurativa são processos muito concretos que nos ajudam a praticar isso.
6.1. PERGUNTAS
a) De forma prática, como iniciar círculos restaurativos em escolas? Com os pais, com alunos,
com professores? Poderia dar um exemplo de uma primeira proposta para iniciar um
círculo? Sempre que possível, recomendo que comecem com círculo para professores e
que o círculo seja de cuidado dos professores com eles mesmos. Para criar
relacionamentos saudáveis nas escolas, precisamos ter relacionamentos saudáveis entre os
adultos. Vimos, em algumas comunidades, como trabalhar em círculo nas escolas, apenas
com os professores, que melhorou também o relacionamento entre os alunos. Comece
onde você tenha uma abertura, uma oportunidade: se houver grupos de pais interessados,
comece com eles; se houver grupos de alunos interessados, comece com alunos. E, como
oportunista, comece com a oportunidade.
b) A maioria dos negros brasileiros perdeu seu elo de conexão ancestral por conta da
escravidão. Muitas dores existem exatamente por não saber de qual lugar do continente
africano vieram. Como reparar a falta de conexão e de pertencimento? A mesma coisa se
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aplica à comunidade negra nos EUA. As pessoas descobriram novas maneiras de tentar
achar essa conexão por si mesmas, particularmente, através de cerimônias e celebrações.
A ideia do Quanza que é uma celebração que acontece mais ou menos no primeiro do ano,
tem a ver com isso. É uma filosofia que está baseada, não particularmente, em um lugar
específico da geografia do continente africano, mas tentando achar algo em comum para
todos. Não sei se isso se aplica no Brasil também, mas essa questão também é verdade aos
descendentes europeus, pois muitos de nós não sabemos de onde viemos. O importante é
começar a conversar sobre estas questões, se existe uma sensação de perda dentro disto
tudo e tentar ver de onde que isto vem. É interessante este trabalho, pois os meus
primeiros mestres nas técnicas circulares foram indígenas do Canadá e falavam muito dos
ancestrais. Era uma constante na fala deles e trabalhavam muito com a ideia de que os
ancestrais ainda estavam presentes. No início não consegui me conectar com essa ideia,
porque não cresci com a ideia de ligação com os ancestrais. Sei alguma coisa sobre de onde
veio minha família, mas não tinha esse mesmo sentimento, não nutrimos o sentimento de
reverência para com os ancestrais. Comecei a pensar muito nisso e comecei a pensar muito
mais nos ancestrais gerais, não nos meus ancestrais pessoais, mas nos ancestrais que
pudesse honrar. Gradualmente, isto foi se tornando, para mim, como sentido dos meus
ancestrais pessoais. Mas foi um processo.
c) Quais os passos mais importantes para se organizar um círculo eficiente? Não sei se isso foi
um problema de tradução, mas, normalmente, não diríamos círculo eficiente. Não que a
eficiência seja ruim, mas é necessário ter equilíbrio. Depende muito do tipo de círculo que
vamos fazer. Se não for um círculo para pessoas que estão em conflito entre si, o processo
é bem mais simples. Para fazermos um círculo, é necessário que tenhamos bem claro qual
é o seu propósito e quem precisa estar presente. Se houver conflito entre os participantes,
é necessário fazer preparação (pré-círculo) junto às pessoas que estiveram em conflito,
antes de formar o círculo em si. O processo de preparação pode ajudar-nos a preparar o
desenho certo para o círculo. Devemos pensar nas perguntas que são importantes para
que esse grupo trabalhe sobre a questão. E devemos nos preparar também. Devemos ter
bem claro qual o nosso papel no processo, que não é consertar nada, nem regatar
ninguém. A nossa responsabilidade pelo grupo é criar e depois manter o espaço para que
eles digam aquilo que é necessário dizer. O círculo tem um propósito muito deliberado de
não ir direto para o problema. Os círculos sempre dedicam um tempo para falar sobre
valores, estabelecermos juntos a maneira que iremos interagir e cada um contar a sua
própria história antes de falar no problema. Se formos os facilitadores, é muito importante
nos sentirmos centrados e com os pés no chão.
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não fizeram aquilo. Eles acharam que se todos seguissem o combinado, o menino iria
conseguir brincar com eles no pátio de um jeito legal. Então, deram a ele outra chance e
não houve mais nenhum problema no playground. As crianças podem ser sábias.
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