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CURSO MARCO LEGAL

DA PRIMEIRA INFÂNCIA

Trilha Sistema de Garantias


AULA 3: A escuta de crianças no Sistema de Justiça e
no Sistema de Garantia de Direitos

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Aula 3: A escuta de crianças no Sistema de Justiça e no
Sistema de Garantia de Direitos1
A escuta de crianças e adolescentes no âmbito do Sistema de Justiça não diferencia
aquelas que se encontram na primeira infância das que pertencem a outras faixas etárias,
havendo apenas a previsão de que, em qualquer caso, sejam respeitados o seu estágio de
desenvolvimento e sua capacidade de compreensão (cf. art. 100, par. único, incisos XI e XII, da
Lei nº 8.069/90).
Tal norma, que é decorrência do contido no art. 12, da Convenção da ONU sobre os
Direitos da Criança de 1989, é também reflexo do princípio de consideração da criança,
independentemente de sua idade, como sujeito de direitos, o que é previsto tanto pela Lei nº
8.069/90 (art. 100, par. único, inciso I), quanto pelo Marco Legal da Primeira Infância (art. 4º).
Tem-se clareza de que a escuta é essencial para que seja possível identificar as
necessidades específicas e as expectativas das crianças acerca da intervenção do próprio
Sistema de Garantia de Direitos e do Sistema de Justiça, até porque se as
crianças/adolescentes atendidas não se sentirem, de fato, “protegidas” a partir das ações por
estes desencadeadas, ou pior, se sentirem por elas de qualquer modo prejudicadas e/ou
violadas em seus direitos, estaremos diante de situações de “revitimização” e/ou “violência
institucional” que, a rigor, caberia a todos evitar.
As crianças precisam ser ouvidas desde sempre e em qualquer situação, porém essa
escuta assume especial relevância quando se cogita na aplicação de medidas que podem
impactar de forma significativa suas vidas, como é o caso do afastamento do convívio familiar
e subsequente acolhimento ou colocação em família substituta, assim como quando há
suspeita ou confirmação de que tenham sofrido ou testemunhado violência. Neste último
caso, há dois procedimentos distintos, especificados pela Lei nº 13.431/2017:

• Escuta Especializada - que ocorre no órgão técnico que for para tanto
designado (e que seja para tanto qualificado) no âmbito da rede de proteção; e
• Depoimento Especial - realizado pelos órgãos investigativos de
segurança pública e pelo Sistema de Justiça.

1 Elaborado por Murillo Digiácomo, Procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná.

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Essa nova legislação estabeleceu princípios para a chamada “escuta protegida” de
crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, procurando evitar a adoção de
procedimentos revitimizantes, e priorizando a criação de mecanismos para prevenir e coibir a
violência e de medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de
violência. Entrou em vigor em abril de 2018 e instituiu o Sistema de Garantia de Direitos da
Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência. Em seguida, foi regulamentada
pelo Decreto nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018, que detalhou os objetivos deste Sistema e
as ações para garantir o trabalho de forma integrada e coordenada.
De acordo com o Decreto, considera-se como “revitimização” o “discurso ou prática
institucional que submete crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos,
invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras
situações que geram sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem”, o que também
pode configurar a chamada “violência institucional” preconizada pelo art. 4º, inciso IV, da Lei
nº 13.431/2017.
Além das modalidades de escuta acima referidas, o Decreto nº 9.603/2018, em seu art.
13, §6º, estabelece a possibilidade da realização de “perícia psicológica” como meio
alternativo de coleta de informações com a criança ou o adolescente vítima ou testemunha,
caso esta, por qualquer razão, não queira ou não possa (eventualmente em razão de sua idade
ou condição psíquica), se submeter ao procedimento próprio do depoimento especial.
Paralelamente a essas formas alternativas de escuta, remanesce a possibilidade da
coleta do relato diretamente perante a autoridade judiciária, porém isto se dará apenas em
condições excepcionais, a pedido da própria vítima ou testemunha (cf. art. 12, §1º, da Lei nº
13.431/2017), desde que isto não lhe traga prejuízos de ordem psíquica/emocional (ou seja, a
oitiva perante a autoridade judiciária deixa de ser uma “obrigação” para se tornar um
“direito”, cujo exercício pode ou não ocorrer, a depender das peculiaridades do caso em
concreto).
Resta mencionar, por fim, que a Lei nº 13.431/2017, em seu art. 4º, §2º, também
prevê a possibilidade de ocorrência da chamada “revelação espontânea” da violência, que se
dará por iniciativa da própria criança ou adolescente, perante profissional de sua confiança,
que atue nos serviços de saúde, educação, assistência social, entre outros órgãos da rede de
proteção.
Em qualquer caso, importante não perder de vista que a criança tem reconhecido o
direito de permanecer em silêncio (cf. art. 5º, inciso VI, da Lei nº 13.431/2017), e sua escuta
pode mesmo ser dispensada pela autoridade judiciária, a partir da análise do contexto das
demais provas produzidas. Neste sentido, o Decreto nº 9.603/2018 dispõe de maneira

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expressa que “a autoridade policial ou judiciária deverá avaliar se é indispensável a oitiva da
criança ou do adolescente, consideradas as demais provas existentes, de forma a preservar sua
saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social”.

Escuta Especializada
A fim de se evitar a revitimização, o órgão responsável pela coordenação da rede de
proteção à criança ou adolescente deverá designar o equipamento responsável pela escuta
especializada, de modo a que a criança não tenha que falar várias vezes, perante órgãos e
agentes distintos, sobre a violência sofrida ou testemunhada. Os profissionais que ficarem
responsáveis pela escuta na rede deverão ser capacitados para este procedimento e para o
atendimento às vítimas ou testemunhas de violência e suas famílias, havendo inclusive um
protocolo disponível.
Diante das situações de violência e outras violações de direitos de crianças e
adolescentes, vítimas ou testemunhas, tanto o SUS quanto o SUAS devem ofertar todo o seu
arcabouço de serviços, tanto na prevenção, quanto no pronto atendimento dos casos que
surgirem e no seu acompanhamento posterior. Embora o ideal seja a instituição de um
equipamento específico (em especial nos municípios de maior porte e/ou onde a demanda for
também maior), nada impede que o atendimento de crianças ou adolescentes vítimas ou
testemunhas de violência seja efetuado por equipamentos responsáveis pelo atendimento de
outras demandas, desde que também disponham de profissionais qualificados e possuam
protocolos próprios para tanto.
Vale dizer que, mesmo se a escuta especializada não for realizada no âmbito do SUAS,
o atendimento por este prestado pressupõe a atenção integral e acolhida das famílias e
indivíduos nos serviços socioassistenciais, a partir de pressupostos éticos, com
corresponsabilidade e resolutividade, respaldada pelo sigilo profissional. Nesta interface, para
referenciar a atuação do Sistema Único de Assistência Social na implementação da Lei, foram
elaborados os “Parâmetros do SUAS no Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e
Adolescentes vítimas ou testemunhas de violência”.

Para saber mais, acesse: http://blog.mds.gov.br/redesuas/wp-


content/uploads/2020/03/SUAS_garantia_direitos_crian%C3%A7as_adolescentes_vitim
as_testemunhas_violencia.pdf

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Desse modo, sempre que houver a notícia de que uma criança ou adolescente foi
vítima de violência ou outra forma de violação de direitos, independentemente de sua origem,
caberá à “rede de proteção” - por iniciativa própria - efetuar o “diagnóstico” da situação em
que aquela se encontra, o que, sempre que possível, deve compreender sua “escuta
especializada” por meio de profissional qualificado previamente referenciado, nos moldes do
preconizado pelo art. 7º e seguintes, da Lei nº 13.431/2017.
O procedimento deve levar em conta os direitos assegurados pelo art. 5º, da Lei nº
13.431/2017, e as intervenções subsequentes devem observar os princípios relacionados no
art. 100, caput e par. único, da Lei nº 8.069/90, inclusive no que diz respeito à coleta da
opinião da criança/adolescente acerca das providências a serem tomadas, culminando com a
elaboração de um “plano individual e familiar de atendimento”, que seja definido com a
participação de todos os que serão atingidos pela intervenção estatal, levando em conta sua
opinião e sua capacidade de cumprir as tarefas e metas que forem estabelecidas.

Encaminhamentos

Caso necessário o encaminhamento da criança, adolescente e/ou seus


pais/responsáveis a algum atendimento ou tratamento específico, isto deve ser providenciado
logo após a escuta, com o acionamento do órgão competente diretamente pelo próprio técnico
responsável por esta ou outro integrante da “rede” previamente indicado no respectivo fluxo
de atendimento, independentemente da aplicação de qualquer “medida” por parte do
Conselho Tutelar ou autoridade judiciária.
A aplicação de alguma “medida”, em caráter formal, assim como acionamento do
Conselho Tutelar (salvo para os fins de ciência e acompanhamento do caso) somente deve
ocorrer quando, por qualquer razão, não for possível a realização do atendimento de maneira
espontânea, devendo ser justificado caso a caso, e não realizado de forma indiscriminada.
O técnico responsável pela escuta (ou outro integrante da “rede” previamente
referenciado) deve providenciar - de imediato e diretamente, sem a “intermediação” do
Conselho Tutelar - o acionamento dos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública, sempre que
houver indícios da prática de algum crime e/ou da necessidade de alguma providência que
demande a intervenção judicial, valendo neste caso observar o disposto nos arts. 13, caput e
15, par. único, da Lei nº 13.431/2017.
Se possível, tanto os encaminhamentos aos demais integrantes da “rede de proteção”
quanto aqueles endereçados aos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública devem ser

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efetuados pela via eletrônica, por meio de um sistema informatizado disponibilizado nos
moldes do previsto nos arts. 28 a 31, do Decreto nº 9.603/2018.
Enquanto não disponível um sistema informatizado próprio, outros meios de
comunicação devem ser ajustados, seja no âmbito da “rede de proteção”, seja com os
Sistemas de Justiça e de Segurança Pública, buscando-se sempre a forma mais ágil e eficiente
quer para o acionamento recíproco, quer para troca de informações que se mostrem
relevantes para entender exatamente o que aconteceu, quais as causas determinantes do
problema e quais as alternativas cabíveis para sua efetiva solução.
Embora tais acionamentos recíprocos (assim como seus desdobramentos) devam ser
sempre registrados e formalizados (por meio de documentos físicos e/ou digitais), é possível
usar de outras ferramentas tecnológicas já disponíveis (como ligações telefônicas, grupos de e-
mail, WhatsApp ou similares) para permitir sua realização imediata, a qualquer hora do dia ou
da noite, sempre que necessário.

Funcionamento da Rede de Proteção

De fato, como a violação de direitos de crianças e adolescentes (especialmente quando


envolve violência) não tem dia ou hora para ocorrer (e é muito mais frequente no período
noturno, assim como nos finais de semana e feriados), não apenas a “rede de proteção” deve
funcionar, em regime de “plantão” ou “sobreaviso” 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365
dias por ano, como também precisa manter, em caráter permanente, canais diretos de
comunicação com representantes dos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública, de modo
que possa também acioná-los a qualquer momento, quando sua intervenção por qualquer
razão justificada se mostre necessária (e vice-versa).
Em relação ao Sistema de Justiça, é importante não perder de vista que esses canais de
comunicação devem abranger tanto a Justiça da Infância e da Juventude (para as intervenções
de cunho “protetivo” que se fizerem necessárias), quanto a Justiça Criminal (a quem incumbe a
responsabilização penal dos autores da violência - assim como a aplicação das “medidas
protetivas” referidas no art. 21, incisos I a III, da Lei nº 13.431/2017).
Caso se entenda necessário a tomada de alguma providência específica na esfera
judicial (como é o caso do afastamento da vítima ou do vitimizador da moradia comum), é
importante que os mecanismos de acionamento incluam as informações mais completas e
esclarecedoras acerca da medida pretendida, sua eventual urgência e as razões para que seja
ela determinada, valendo lembrar que, sem embasamento técnico e/ou jurídico idôneos, o

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ajuizamento da demanda e/ou a obtenção de uma decisão favorável (sobretudo em caráter de
urgência) podem restar prejudicados.
De igual sorte, é importante que a “rede de proteção” tenha a capacidade de apurar e
indicar aos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública possíveis falhas na atuação destes (seja
por ação, seja por omissão), inclusive como forma de evitar a prática da “revitimização” e/ou
da “violência institucional” preconizadas na Lei nº 13.431/2017.
Em qualquer caso, é importante que o papel de cada um seja definido com
antecedência, o mesmo ocorrendo em relação aos fluxos e protocolos de atendimento
interinstitucional, que devem ser amplamente divulgados entre todos aqueles que irão atuar
no caso.
A partir de um amplo e franco debate interinstitucional, será possível, por exemplo,
criar uma sistemática que permita ao órgão responsável pela “escuta especializada” o já
referido acionamento direto do Ministério Público, quando necessário o pronto afastamento
do vitimizador ou da criança/adolescente vítima da moradia comum e/ou o estabelecimento
de alguma outra medida judicial restritiva, assim como que a autoridade judiciária acione o
órgão competente da “rede” para avaliar a adequação e/ou planejar a execução de certas
providências mais “invasivas” e potencialmente traumáticas (como é o caso do cumprimento
de um mandado de busca e apreensão expedido em relação a uma criança ou adolescente).
A continuidade (e mesmo a eventual intensificação) do atendimento prestado pela
“rede de proteção” aos casos que venham a ser judicializados (com ênfase para aqueles onde
houver o acolhimento institucional), permitirá a identificação precoce de situações
decorrentes da judicialização que possam causar estresse emocional (dentre outros prejuízos)
às respectivas crianças e adolescentes, o que não apenas garantirá seu rápido
encaminhamento aos atendimentos aos quais têm direito, mas também agilizará o
fornecimento, à autoridade judiciária, de informações mais atualizadas, completas e
qualificadas que se mostrem relevantes à solução de casos que porventura se encontrem na
esfera judicial.

A voz das crianças no acolhimento institucional

Este entendimento ganha especial relevância em se tratando de crianças e


adolescentes inseridas em programa de acolhimento institucional, na perspectiva de fazer com
que este se estenda pelo menor período de tempo possível, o que importa em dar “voz” aos
acolhidos, notadamente por intermédio do dirigente da entidade onde aquelas se encontram,
que na forma da Lei é o seu “responsável legal” e, como tal, tem legitimidade não apenas para

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“enviar relatórios”, mas também para peticionar ao Sistema de Justiça na defesa de seus
interesses.
Assim sendo, quando do atendimento de uma criança ou adolescente acolhida, a
equipe técnica da entidade ou a “rede de proteção”, entender que a medida, mesmo quando
determinada pela autoridade judiciária, é indevida e pode ser substituída por outra (como o
acolhimento familiar ou a colocação sob guarda ou tutela) ou pode ser revertida, com a
reintegração familiar do acolhido (notadamente quando este assim o deseja), deverá - a
qualquer momento e por iniciativa própria - fornecer os subsídios necessários para que o
dirigente da entidade peticione em Juízo para obtenção do provimento jurisdicional
respectivo, o que poderá ser feito por meio de advogado constituído ou nomeado pelo próprio
Juízo, sendo também possível acionar a Defensoria Pública para tanto.
Cabe ao dirigente da entidade de acolhimento, aliás, assumir um papel “ativo” na
defesa dos interesses das crianças e adolescentes que estão sob sua responsabilidade, seja na
esfera judicial, seja junto à “rede de proteção” local (no âmbito da qual a própria entidade
encontra-se inserida), encaminhando-os para os atendimentos complementares que se
fizerem necessários, debatendo - e propondo (a partir da manifestação de vontade da
criança/adolescente e das avaliações técnicas com ela realizadas) - alternativas de
abordagem/intervenção também com as famílias. Deve zelar pela adequada elaboração e
contínua revisão de planos individuais (e familiares) de atendimento, dada a dinâmica inerente
ao atendimento prestado.

Proteção também à família da criança

Convém lembrar que a família também é destinatária de “proteção especial por parte
do Estado, na pessoa de cada um dos que a integram” (art. 226, caput e §8º da CF) e deve ser
também destinatária de intervenções de cunho “protetivo” por parte dos diversos órgãos e
autoridades competentes (o que inclui o Conselho Tutelar).
Em qualquer caso, é importante não perder de vista que não existe “relação de
subordinação” entre o dirigente da entidade de acolhimento e a autoridade judiciária (o
mesmo valendo para os demais integrantes da “rede de proteção”), sendo que
questionamentos quanto a decisões (ou mesmo quanto à demora excessiva para que estas
sejam tomadas, quando for o caso), por parte desta, que no entender dos técnicos da entidade
ou da “rede” causem prejuízo e/ou não correspondam aos interesses concretos - e mesmo
manifestos - dos acolhidos, não apenas “podem”, mas devem ser efetuados a qualquer

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momento, seja através dos já referidos canais diretos de comunicação que devem ser
estabelecidos, seja por meio da interposição dos recursos cabíveis nos Tribunais.
O que não se pode permitir, em qualquer circunstância, é a tomada de decisões
judiciais que, além de não contemplarem os reais interesses das crianças e adolescentes
atendidas pela “rede de proteção”, importem na prática da já referida “violência institucional”
ou “revitimização” (que também pode se dar pela omissão ou demora na tomada de decisões
pela autoridade judiciária). Neste sentido, o protagonismo da “rede de proteção” é para todos
salutar, representando um passo adiante na busca da tão sonhada - e há tanto prometida -
“proteção integral” de toda população infantojuvenil e em especial das crianças na primeira
infância, que só é possível por sua escuta permanente.

Depoimento Especial
O art. 8º da Lei nº 13.431/2017 define o depoimento especial como “o procedimento
de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade
policial ou judiciária”.
Ao contrário da “escuta especializada” (que visa a coleta de informações necessárias à
realização de ações de cunho protetivo pela “rede”), o “depoimento especial” tem como
finalidade específica a produção de prova acerca do ocorrido, a ser utilizada no âmbito dos
processos e procedimentos judiciais instaurados em decorrência da situação de violência
envolvendo criança/adolescente (Decreto nº 9.603/2018, art. 22). A ideia é estabelecer uma
sistemática diferenciada para que, quando necessário, a criança ou adolescente vítima ou
testemunha de violência preste suas declarações perante a autoridade policial ou em Juízo,
evitando a ocorrência da chamada “revitimização” ou a prática da chamada “violência
institucional”.
O adequado aparelhamento do Sistema de Justiça para o atendimento desta demanda
é uma antiga reivindicação, sendo sempre pautada (e cobrada) nas Conferências de Direitos da
Criança e do Adolescente e de Assistência Social e dos próprios órgãos de classe, Magistrados e
membros do Ministério Público com atuação na área. Enfatizando a importância da instalação
das salas de depoimento especial, o Conselho Nacional de Justiça exarou a Resolução 299 de 5
de novembro de 2019, determinando que:
A implantação das salas de depoimento especial é obrigatória em todas as
comarcas do território nacional, nos termos da Lei 13.431/2017, por tratar-
se de direito de todas as crianças e adolescentes, vítimas ou testemunhas de
violência apresentar suas narrativas de forma segura, protegida e
acolhedora. (Res. 299/2019, art. 7º) 2.

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Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3110

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Mesmo que os Sistemas de Justiça e Segurança Pública disponham de um corpo
técnico capaz de efetuar a coleta do depoimento especial, será necessário promover a
articulação com a “rede de proteção” à criança e ao adolescente local, seja para que esta
compartilhe as informações porventura obtidas, que revelem suspeita ou confirmação de
violência, seja para que promova todo atendimento de cunho “protetivo” que as
vítimas/testemunhas e suas famílias porventura necessitem, de forma harmônica com o
procedimento policial ou processo judicial.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), desde o advento da Recomendação nº 33/2010,
vem estimulando a criação de “salas de depoimento especial” em todo o Brasil. Importante
frisar que, embora o espaço deva ser “acolhedor”, o art. 23, par. único, do Decreto nº
9.603/2018 recomenda que a decoração do local seja “simples”, de modo a “evitar
distrações”. Com efeito, como o objetivo da “sala de depoimento” propriamente dita é a
coleta do relato da vítima ou testemunha, não deve conter desenhos nas paredes ou objetos
espalhados que possam desviar a atenção da criança/adolescente. Isto não significa que não
possa haver um espaço “lúdico” no local (contendo brinquedos e/ou livros), que possa ser
utilizado enquanto a criança ou adolescente aguarda a audiência e/ou quando de sua
preparação para audiência, mas a sala onde o depoimento será colhido deve ser menos
decorada, para evitar distração, contendo apenas o necessário para que o ato atinja os
objetivos necessários.
Vale destacar que o equipamento não precisa atuar “exclusivamente” no atendimento
de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, porém precisa ser
especializado nesta demanda, com a definição de “protocolos” específicos para as diversas
situações previstas em lei (seja em razão da idade, seja em razão do tipo de violência ou outros
fatores relevantes a serem considerados). De igual sorte, nada impede que, a partir de um
entendimento entre a “rede” e as autoridades policial e judiciária, seja criado/adaptado um
único equipamento para realização tanto da “escuta especializada” quanto do depoimento
especial (assim como dos métodos alternativos a este, como é o caso da “perícia psicológica”),
otimizando assim o uso dos recursos públicos e servindo de referência para todos.
Os esforços a serem envidados para evitar que a criança/adolescente vítima ou
testemunha de violência seja ouvida (se de fato tiver de ser ouvida) compreendem não apenas
o processo penal, mas também outros feitos porventura instaurados em decorrência do
mesmo fato - como é o caso das ações de destituição de guarda/tutela, suspensão ou
destituição do poder familiar, indenização por dano moral etc.
A previsão da realização da diligência a título de produção antecipada de prova (nas
hipóteses previstas no art. 11, §1º, da Lei nº 13.431/2017), por sua vez, visa evitar possíveis

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prejuízos decorrentes da demora no julgamento da causa, seja para a própria vítima (que ao
ser chamada a falar sobre o ocorrido irá reviver todo trauma decorrente da violência), seja
para o processo (pois a fidelidade como o ocorrido será registrado na memória seguramente
se perderá com o passar do tempo).
Caso o técnico perceba que a vítima ou testemunha não quer responder a pergunta ou
tratar do assunto, além de não insistir no tema, é seu dever tomar as providências necessárias
para tranquilizá-la e impedir maiores constrangimentos daí decorrentes, podendo inclusive,
em casos extremos, requerer a interrupção ou suspensão da audiência.
Em qualquer caso, importante não perder de vista que a escuta da criança ou
adolescente vítima de violência (por quaisquer dos meios de coleta de prova previstos nos
arts. 7º a 12 da Lei nº 13.431/2017) não é, de modo algum, “obrigatória”, podendo ser
inclusive “dispensada” diante das peculiaridades do caso em concreto. Valendo também
lembrar que a criança tem o direito de permanecer em silêncio, não podendo ser “forçada” ou
de qualquer modo constrangida a revelar o ocorrido.

Para saber mais:

Pacto Nacional pela Escuta Especializada. Disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-


direitos/politicas-de-justica/EJUS/pactodaescutaprotegida

Guia prático para Implementação da Política de Atendimento de Crianças e Adolescentes


Vítimas ou Testemunhas de Violência. Disponível em:
https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Publicacoes/documentos/2020/LIVRO_ESCUTA_PRO
TEGIDA_MENOR_10.pdf

Kit para a Rede de Proteção Municipal, produzido pela Childhood Brasil em parceria com o
UNICEF. Disponível em:
https://drive.google.com/drive/mobile/folders/1ZmKW8__y73_VcS7UAOp6uBVJxj_rqbuL

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