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CURSO MARCO LEGAL

DA PRIMEIRA INFÂNCIA

Trilha Sistema de Garantias


AULA 6: O papel do Poder Judiciário e das
Coordenadorias de Infância e Juventude

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Aula 6: O papel do Poder Judiciário e das Coordenadorias
de Infância e Juventude1
Em relação à garantia de direitos das crianças e adolescentes, o principal órgão do Poder
Judiciário é a Vara da Infância e da Juventude, que integra o Eixo de Defesa do Sistema de
Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, na forma da Resolução nº 113 do CONANDA.
Em vista das normas que o regem, o Juiz da Infância e da Juventude não pode iniciar
nada de ofício, ou seja, não pode por vontade própria iniciar uma ação judicial. É o que
chamamos de princípio da inércia jurisdicional, portanto cabe aos demais órgãos que tenham
capacidade jurídica de figurar num dos pólos da ação (Ministério Público e Defensoria Pública)
deflagar uma ação de defesa de direitos. Outrora, durante a vigência do Código de Menores, o
então juiz de menores era verdadeiramente uma autoridade administrativa em todas as
questões referentes a crianças e adolescentes. Com o advento do ECA, questões administrativas
passaram para os Conselhos Tutelares, sem que houvesse subordinação.
Outras hipóteses, em que não há atuação em rede, mas há o funcionamento de forma
hierarquizada, por força do ECA, são a entrega da criança para adoção, medidas de afastamento
da criança do lar de origem e colocação em família substituta. Nestes casos, o legislador
escolheu a Vara da Infância e da Juventude como órgão para que esses atos fossem processados,
mesmo que as partes envolvidas não tenham interesses divergentes. Dessa forma, pela vontade
do legislador, haveria controle pelos órgãos do Sistema de Justiça de atos da vida privada
visando à garantia da supremacia do interesse da criança e não dos adultos envolvidos. Há uma
expressa limitação dos direitos da genitora, por exemplo, no sentido de não poder colocar seus
filhos numa família substituta ou numa instituição de acolhimento. Se fosse permitido que ela
fizesse essa colocação, teria sido considerado somente a vontade dessa genitora e não os
interesses da criança. Neste sentido, ao Poder Judiciário cabe a observância primordial do
superior interesse da criança.
As peculiaridades dos processos da Infância e da Juventude residem tanto no fato de
que os processos são orientados para o futuro quanto no princípio da atualidade. Em regra,
processos judiciais são examinados tendo em vista um fato que ocorreu no passado, todavia,
nos da Infância e da Juventude, o ponto de vista é voltado para o futuro da criança, ou seja, se
a medida atenderá ao interesse dessa, como um prognóstico. E pelo princípio da atualidade,

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Elaborado por Paulo Roberto Fadigas César, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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uma decisão judicial pode ser alterada se não mais atender ao interesse superior da criança,
sem utilização de recursos e remédios existentes no emaranhado de normas.

Várias possibilidades de atuação do Poder Judiciário diante da Lei


13.257/2016
O Sistema de Justiça está limitado à Vara da Infância e Juventude? Certamente que não,
porque todos os demais operadores do Direito estão sob a égide das mesmas normas e essas se
irradiam para todo o sistema, não havendo barreiras jurídicas, isto é, o fato de uma ação ser do
Direito de Família, do Trabalho ou Penal, não a deixa imune às previstas no Marco Legal da
Primeira Infância.
Consequentemente, esse, por sua vez, expande sua eficácia para todos os ramos do
Direito, dos quais vamos destacar cinco.
O primeiro ramo relaciona-se à Vara da Infância e da Juventude, competência
jurisdicional onde os conflitos são relacionados à guarda das crianças, à pensão alimentícia,
investigação de paternidade, entre outras questões referentes à família. Não há atuação em
rede, porque se busca resolver o conflito entre adultos – relação de horizontalidade em que as
partes são iguais; e em relação às crianças – relação de verticalidade em que os adultos têm
direitos e deveres sobre as crianças para melhor cumprirem os seus deveres com essas. Todavia,
isso não significa ausência de interface do Sistema de Justiça com os demais sistemas, pelo
contrário, é nesse campo em que se desenvolvem os meios alternativos de solução de conflitos,
como mediação e conciliação e encontramos boas práticas, como oficinas de parentalidade e
técnicas de justiça restaurativa. É nesse ramo em que questões muito desafiadoras surgem em
razão da alienação parental, o que exige estreito relacionamento com órgãos do Sistema Único
de Saúde, por exemplo.
Uma das grandes conquistas do Marco Legal da Primeira Infância foi a ampliação da
licença maternidade e paternidade, o que somente é possível implantar efetivamente graças a
outro ramo, que é o Direito do Trabalho. A proteção à mãe trabalhadora é fundamental para o
desenvolvimento saudável das crianças, assim como a possibilidade de participação do pai em
momentos decisivos como o nascimento, pós-parto e consultas médicas, por exemplo. As varas
de trabalho apresentam capilaridade em território nacional graças ao intenso trabalho dos
magistrados e procuradores do Trabalho na proteção dos direitos laborais, à luz da conciliação
com os deveres parentais.
Na área criminal, o Sistema de Justiça também recebe os influxos do Marco Legal da
Primeira Infância, seja nas audiências de custódia, seja na execução da pena, porque garante à
genitora cumprir a pena em regime domiciliar para cuidar de seus filhos. A institucionalização

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de crianças em razão da privação da liberdade de suas mães é contraproducente para o
desenvolvimento da criança, assim como contraria seu direito à convivência familiar, sem
menciona que o Estado dispenderá valores significativos para resultados inadequados. Diante
disso, o Marco Legal da Primeira Infância destaca o direito à substituição da prisão preventiva
pela prisão domiciliar em casos de gestantes ou mães com crianças na primeira infância e até 12
anos de idade, ou do pai, caso seja o único responsável.
Além disso, temos a Vara de Violência Doméstica, instituída pela Lei Maria da Penha,
que, além de aplicar sanções criminais, também aplica medidas protetivas. Essas medidas têm
um âmbito inegavelmente civil, ou seja, não são medidas criminais, porque, além de
afastamento do agressor, estabelecem guarda de filhos e separação judicial entre a vítima e o
agressor, que por vezes impactam crianças na Primeira Infância e, portanto, podem ter sua
aplicação associada a disposições do Marco Legal da Primeira Infância, permitindo um
tratamento diferenciado às gestantes e genitoras de filhos pequenos, a fim de garantir os
direitos das crianças. Nesta competência temos inseridos também a apreciação dos crimes
cometidos contra as crianças e adolescentes, com olhar protetivo no tratamento e na oitiva das
vítimas de quaisquer tipos de violência, em sede judicial, com abordagem por técnicos
capacitados de modo a minorar os danos psicológicos do depoimento judicial – Lei n.
13.431/2017.
Por fim, as relações de família regidas pelo Direito Internacional Privado também
observam o Marco Legal da Primeira Infância, graças ao fenômeno da migração. Centenas de
crianças atravessam nos dois sentidos as fronteiras brasileiras e não raro surgem questões
relacionadas com a guarda de infantes que são dirimidas em um ramo específico do Sistema de
Justiça que é a Justiça Federal. Frequentemente integrantes da comunidade brasileira no
exterior e genitores estrangeiros de filhos que migraram para o Brasil solicitam perante as
autoridades centrais a devolução de crianças com base na Convenção da Haia sobre Sequestro
Internacional de Crianças e na Convenção Interamericana de Recuperação de Menores. O
retorno dos infantes se dá por meio de cooperação jurídica internacional com a apreensão
desses por determinação do juiz federal, após a ouvir procurador(a) da República, se as crianças
estiverem no Brasil, ou do juiz(a) da Vara da Família, se as crianças estiverem no exterior.
Geralmente são crianças ainda na primeira infância que estão transitando entre culturas
diferentes, portanto devem ser objeto de maior atenção possível.

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6.1. O papel das Coordenadorias da Infância e Juventude na construção
da política da primeira infância no âmbito do Poder Judiciário 2

Diante da responsabilidade de garantir os direitos infanto-juvenis assegurados a partir


da Constituição Federal, em seu artigo 227, o Poder Judiciário instituiu uma instância de
coordenação da elaboração e execução das políticas públicas relativas à infância e juventude,
no âmbito dos Tribunais de Justiça, denominada Coordenadoria da Infância e da Juventude. Esta
é regulamentada pela Resolução do CNJ nº 94 de 2009, com objetivo de aperfeiçoamento da
prestação jurisdicional às crianças e aos adolescentes, seja na área da infância e da juventude,
como em outras do Poder Judiciário em que crianças sejam atendidas, como Juízos de Família,
de Execução Criminal, de Violência contra a Mulher, Depoimentos Especiais das vítimas de
violências, entre outras.
Entre as atribuições de competência das Coordenadorias da Infância e da Juventude,
temos as seguintes:
• Elaborar sugestões para o aprimoramento da estrutura judiciária envolvida na
prestação jurisdicional à criança e ao adolescente.
• Dar suporte aos magistrados, aos servidores e às equipes multiprofissionais com
vistas à melhoria da prestação jurisdicional.
• Promover articulação interna e externa da justiça da infância e da juventude com
outros órgãos governamentais e não governamentais.
• Colaborar com a formação inicial, continuada e especializada de magistrados e
servidores na área da infância e da juventude.
• Exercer as atribuições da gestão estadual dos cadastros ou sistemas nacionais da
infância e da juventude.
As Coordenadorias da Infância e da Juventude são assim instâncias com grande
potencial de fomentar a atenção integrada à primeira Infância. Elas funcionam junto às
Presidências de todos Tribunais de Estados do Brasil e se estabelecem diretrizes de atuação
nacionalmente através do Colégio de Coordenadores, com encontros semestrais para
intercâmbio de experiências, o enfrentamento das demandas e deliberações visando o
fortalecimento e o apoio ao exercício desta atuação jurisdicional especializada.

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Elaborado por Colégio de Coordenadores da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça do Brasil e Noeli Salete
Tavares Reback – Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Paraná, Coordenadora Estadual e Presidente do Colégio
de Coordenadores.

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No âmbito do Pacto Nacional pela Primeira Infância, o Colégio de Coordenadorias da
Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça do Brasil elencou as seguintes sugestões de
atuação em prol da atenção específica à primeira infância, considerando o disposto no Marco
Legal da Primeira Infância:
a) Estímulo a projetos de busca ativa para crianças do grupo das adoções necessárias.
b) Incentivar ações e parcerias, com o intuito de reduzir drasticamente o acolhimento
institucional na Primeira Infância no Brasil (de 0 a 6 anos), no prazo máximo de 3 (três)
anos, transferindo os acolhidos para o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora
e atendendo as Diretrizes sobre Cuidados Alternativos da ONU, do artigo 34 do ECA e
a Lei 13.257/2016, do Marco Legal da Primeira Infância, inclusive no âmbito do Poder
Executivo Federal, em uma perspectiva de atuação intersetorial e interinstitucional.
c) Estímulo à capacitação das equipes de acolhimento institucional e familiar de crianças
na Primeira Infância, aproximando-as das equipes técnicas dos Tribunais de Justiça e
integrando o atendimento especial do grupo dessa faixa etária.
d) Articulação para fortalecimento de toda rede de atendimento e sua constante
capacitação quanto ao Marco Legal da Primeira Infância.
e) Articulação para melhor atendimento dos filhos de pais privados de liberdade, tanto no
sistema prisional quanto no socioeducativo, trabalhando em conjunto com o Grupo de
Monitoramento e Fiscalização Carcerária dos Tribunais de Justiça para correta guarda
de dados sobre a existência de filhos desde a Audiência de Custódia e de Apresentação
de adolescentes, a fim de que tais informações cheguem, através de sistemas de
informação, ao Juízo competente e às Varas de Execução Penal ou de execução de
medidas socioeducativas.
f) Articulação para imediato atendimento, pelo Sistema Único de Assistência Social/SUAS,
das crianças cujos pais estão em privação de liberdade, a fim de que sejam amparadas
no território em que se encontram e que seja estimulada a convivência familiar com
seus pais.
g) Articulação para promoção do registro civil de nascimento ainda nas maternidades,
trabalhando com as Corregedorias-Gerais de Justiça para implementação e
acompanhamento dos índices de cobertura das Unidades Interligadas previstas no
Provimento nº 13/2010 do Conselho Nacional de Justiça.
h) Articulação para integração das bases do registro civil dos estados, reguladas pelas
Corregedorias-Gerais de Justiça, com as bases de dados vitais mantidas pelo Sistema
Único de Saúde, e auxílio para a implementação, em nível nacional e estadual, da

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Declaração de Nascimento Eletrônica, que evitará fraudes ao Sistema Nacional de
Adoção e implementará a segurança dos bebês que nascem nas maternidades.
i) Articulação para diminuição do sub-registro paterno, trabalhando com as
Corregedorias-Gerais de Justiça para implementação e acompanhamento do Projeto Pai
Presente, instituído pelo Provimento nº 12/2010 do Conselho Nacional de Justiça, e
promoção de articulações internas para tornar eficiente e rápido o acesso ao exame
pericial do DNA para conhecimento da ascendência genética.
j) Articulações, dentro do Poder Judiciário, para implementação e constante
aprimoramento da oitiva de crianças pelos Juízos de diversas competências, auxiliando
na implementação de salas de depoimento especial para oitiva de crianças vítimas e
testemunhas, bem como de espaços adequados para que as crianças permaneçam no
ambiente forense.
k) Divulgação e estabelecimento de fluxos relativos à entrega legal para adoção com o
devido acolhimento de gestantes, puérperas e pais.
l) Implementação no âmbito dos Tribunais de Justiça dos atos administrativos do Conselho
Nacional de Justiça, com destaque ao gerenciamento do Sistema Nacional de Adoção,
audiências concentradas e a melhoria da infraestrutura das equipes técnicas, visando a
redução do período de acolhimento e de encaminhamento a famílias substitutas,
quando for o caso.
m) Aparelhamento desta atividade jurisdicional especializada de modo a garantir trâmite
prioritário dos processos e da implantação do juízo 100% digital, em primeiro e segundo
grau.

Entre junho e julho de 2019, o Fórum Nacional de Infância e Juventude (FONINJ/CNJ)


realizou um diagnóstico sobre a infraestrutura das Coordenadorias de Infância e Juventude dos
Tribunais de Justiça Estaduais, a partir do qual se constatou alguns desafios, a saber:
• 92,6% dos magistrados envolvidos nos trabalhos dessas Coordenadorias precisam
acumular atividades jurisdicionais.
• Os Tribunais de Justiça dos estados somam 143 Varas Exclusivas de Infância e Juventude,
número pequeno se considerada a quantidade de varas de jurisdição plena (1.870) e
varas cumulativas (1.496, exceto juízo único) que também atuam no tema.
• As Varas Exclusivas apresentam um total de 168.697 processos pendentes, com uma
taxa de congestionamento de 46% e um Índice de Atendimento à Demanda – IAD de
145,2%.

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Vale destacar que, segundo o Relatório Justiça em Números 2019, a taxa de
congestionamento para todo o Poder Judiciário é de 71,2%, enquanto o IAD é de 113,7%.
Também foram obtidas informações sobre orçamento e formação das equipes.
As equipes multiprofissionais do Judiciário desenvolvem um importante papel de
articulação com a rede do sistema de garantia, seja na atuação direta nos processos que
envolvem as crianças e adolescentes, seja nas campanhas de prevenção, como exemplo as
campanhas de enfrentamento ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Assim
como atuação em parceria com os Grupos de Apoio à Adoção, e com as equipes técnicas do
Ministério Público e da Defensoria Pública.
As Coordenadorias da Infância e Juventude tiveram participação estratégica na
realização das ações do Projeto Justiça começa na Infância, especialmente compondo as
comissões de organização dos Seminários do Pacto Nacional pela Primeira Infância em todas as
regiões do Brasil.

Para saber mais:

Na Biblioteca do Curso você poderá encontrar maiores relatos de atuação das equipes
multiprofissionais atuantes nos Juízos de primeiro grau de jurisdição e nas Coordenadorias da
Infância e Juventude:
o Sobre o Colégio de Coordenadores. Disponível em: https://abraminj.org.br/colegio-de-
coordenadores/
o Composição das Coordenadorias Estaduais
o Coordenadorias Estaduais. Sites
o Carta de intenções do I Encontro do Sistema de Justiça sobre a prioridade do acolhimento
familiar.

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