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Memória: leituras de M. Halbwachs e P.

Nora*
Márcia Mansor D'Aléssio**

Há pelo menos duas décadas a memória está em moda no Brasil.


Do senso comum às políticas públicas existe concordância sobre a
necessidade de preservação do passado. Mesmo os cultores do "novo",
os fiéis da religião do "moderno", os militantes da mudança permanente
não ousariam pronunciar-se a favor da destruição dos traços... Uma
necessidade identitária parece estar compondo a experiência coletiva dos
homens e a identidade tem no passado seu lugar de construção.
Jean Duvignaud, no prefácio da obra de Halbwachs A Memória
Coletiva,1 diz ser nos momentos de ruptura da continuidade histórica que
as atenções mais se voltam para a memória e a duração, e menciona a
Primeira Guerra Mundial. Sua afirmação faz sentido sobretudo se ima-
ginarmos as emoções das pessoas que viveram, concretamente, no palco
dos acontecimentos de 1914-18. A visão da destruição das marcas físicas
da experiência coletiva pode ter provocado a sensação de ruptura
irreversível do passado com o presente e o temor da perda de si mesmas
junto com a perda das cidades, então, destruídas. A memória, neste caso,
recompõe a relação passado/presente e é estratégia de sobrevivência
emocional.
Pierre Nora vai mais longe, nesta análise, ao mostrar situações
estruturais que explicam o imenso desejo de memória de nossa época. Já
o artigo O Retorno do Fato,2 publicado em 1974, tem como problemática
fundamental a questão da mundialização, processo pelo qual o mundo se
torna um só e no qual os meios de comunicação de massa desempenham
um papel fundamental. Fica sugerido, nesta reflexão, um movimento de
alteração do tempo: a história se torna mais rápida, a duração do fato é a
duração da notícia, o novo — produzido incessantemente — conduz as
vidas, criando a sensação de hegemonia do efémero. A história torna-se
eternamente contemporânea! No artigo de 1984 Entre Mémoire et

* As citações de P. Nora são traduções feitas por mim diretamente do texto ori-
ginal do autor.
** Professora do Departamento de História da PUC-SP.
1 Duvignaud, Jean. Prefácio de Halbwachs, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo,
Edições Vértice, 1990.
2 Nora, Pierre. "O retorno do fato", in Lê Goff, Jacques e Nora, Pierre. História:
Novos Problemas. São Paulo, Francisco Alves Editora, 1979.

\Rev. Brás, de Hist. \. Paulo | v.13, n" 25/26J pp. 97-103 [ set. 92/ago. 93 ]

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Histoire,3 clarifica mais a questão ao usar a expressão aceleração <ln afetivo que indica o pertencimento. A partir daí, é possível supor que é
história para caracterizar esta situação em que o passado vai perdendo tecida uma espécie de cadeia de pertencimento afetivo que mantém a vida
seu lugar para o presente eterno, trazendo a ameaça da perda de iden- e/ou o vivido da memória.
tidade. Segurar traços e vestígios é a forma de contrapor-se ao cfciio Por outro lado, para que um grupo físico seja um grupo afetivo ou
desintegrador da rapidez contemporânea. grupo-comunidade, é preciso que haja uma certa duração na convivência.
As palavras memória e história evocam o mesmo tempo: o passado Ligações efémeras, rupturas constantes não constróem passado conjunto,
Daí a identificação entre os dois termos. Mas, apesar da matéria-prim.i não constróem memória. Talvez possamos pensar nos judeus como
comum, é a compreensão oposta a mais difundida entre especialistas, ou exemplo de um grupo-comunidade. Pierre Nora os chamou "povo da
seja, memória e história não se confundem. memória". 8

Maurice Halbwachs,4 já na primeira metade do século, vai sublinhai A renovação permanente das lembranças aponta um outro elemento
a diferença entre memória e história. Sua reflexão poderia ser assim que diferencia memória e história, qual seja, a forma como se relacionam —
colocada: a memória coletiva ou social não se confunde com a história. uma e outra — com o tempo. Segundo o autor, a condição necessária para
Pelo contrário, a história começa onde a memória social acaba e a mcmói u que haja memória é o sentimento de continuidade presente naquele que
social acaba quando não tem mais como suporte um grupo. Ou seja, u se lembra. A memória não faz ruptura entre passado e presente porque só
memória social é sempre vivida, física ou afetivamente. Quando o grupo retém do passado "aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na
desaparece, a única maneira de salvar as lembranças, que para os grupos consciência do grupo que a mantém".9 Por outro lado, não fazendo a
existentes são exteriores "é fixá-las por escrito em uma narrativa seguida ruptura, a memória torna-se um celeiro inesgotável de possibilidades de
lembranças:
uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escrit<>.\5 Portanto, a história é escrita as representações-vivências
e impessoal e, nela, grupos do passado são tantas quantos
grupos existam, renovando-se no espaço das vidas. Não há lembrança fixa,
com suas construções desaparecem para dar lugar a outros, porque a a multiplicidade está ligada ao rearranjo constante das emoções grupais,
escrita não os registrou. A memória é história viva e vivida e permamx retirando do passado aquilo que ele tem na História: seu status ontológico.
no tempo, renovando-se. A história viva é, assim, o lugar de permanênt u A história não é memória porque há descontinuidade entre quem a
e nela o desaparecimento das criações grupais é apenas uma aparência A lê e os grupos, testemunhas ou atores dos fatos ali narrados. Há,
memória é a possibilidade de recolocação das situações escondidas que portanto, uma relação entre a exterioridade ou distanciamento da História
residem na sociedade profunda ("províncias um pouco afastadas"),6 nu em relação aos grupos e a divisão do tempo histórico em fatos pontuais.
É como se dissesse: a história fragmenta o tempo. "A história que se
sensibilidade ("expressão dos rostos")."1
coloca fora dos grupos e acima deles não vacila em introduzir na
Para que possamos entender a longa permanência de memórias nos
corrente dos fatos divisões simples e cujo lugar está fixado de uma vez
quadros da reflexão de Halbwachs, teremos que considerar seu concriio
por todas".10 Mas existem longas durações mesmo em fatos pontuais ou
de pertencimento grupai que é afetivo e não, exclusivamente, físico.
curtos, parece dizer o autor, propondo que os historiadores não fiquem
Assim, situações vividas só se transformam em memória se aquele
presos às divisões que os fatos pontuais sugerem, pois estas divisões
que se lembra sentir-se afetivamente ligado ao grupo ao qual pertenceu.
não ocorreram assim para as pessoas que viveram aqueles fatos: "É
Aliás, ao qual pertence, pois só se fez parte de um grupo no passado se
possível que no dia seguinte de um acontecimento que sacudiu, destruiu
se continua afetivamente a fazer parte dele no presente. Se, no prcscnic
em parte, revocou a estrutura de uma sociedade, um outro período
alguém não se recorda de uma vivência coletiva do passado é porque nrto
comece. Mas disso nos aperceberemos somente mais tarde, quando uma
pertencia àquele grupo — ainda que pertencesse fisicamente —, já que é o nova sociedade realmente tiver tirado de si mesma novos recursos, e
quando ela se propuser outros objetivos. Os historiadores não podem
3 Nora, Pierre. "Entre Mémoire et Histoire", in Nora, Pierre (org.). Lês Lieux dt levar a sério estas linhas de separação e imaginar que foram remarcadas
Mémoire. Paris, Gallimard, 1984.
4 Halbwachs, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Edições Vértice, 1990.
5 Halbwachs, Maurice. Op.cit., p.80. 8 Nora, Pierre. Op.cit., p. XIX.
6 Halbwachs, Maurice. Op.cit., p.67. 9 Halbwachs, Maurice. Op.cit., p.81.
7 Halbwachs, Maurice. Op.cit., p.68. 10 Halbwachs, Maurice. Op.cit., p.82.

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por aqueles que viveram durante os anos que elas atravessaram, como Em uma reflexão atual — o já mencionado artigo de 1984 —, Pierre
aquele personagem de comédia diz: 'Hoje começou a guerra dos Cem Nora também trabalha com a diferença entre Memória e História, além de
Anos'".11 elaborar uma noção instigante para se trabalhar na fronteira destas
É evidente que a história mencionada e criticada sutilmente por vivências: "os lugares de memória".
Halbwachs é a história événementielle, hegemónica nos estudos históricos A questão histórica básica que norteia essa reflexão parece ser a já
de seu tempo. Na mesma época, a mesma crítica é feita, de forma não tão mencionada aceleração da história, com seu desdobramento, a mudança
sutil, pelos fundadores dos Annales, o que atesta o diálogo entre o soció- incessante e sua decorrência, a ameaça do esquecimento, situações que
logo e os historiadores, fato já mencionado por Peter Burke em livro sobre levam a uma obsessão pelo registro, pelos traços, pelos arquivos, em
a historiografia francesa.12 Portanto, a contribuição que a sociologia de suma, pela história. É importante que se recoloque uma distinção
Halbwachs e seus estudos sobre a memória deram aos estudos históricos fundamental, que pode ser vislumbrada na reflexão de Halbwachs, mas que
parece ter sido a proposta de atenção ao tempo longo, o tempo da me- está explicitada no pensamento de Nora, qual seja, a distinção entre
mória. Com efeito, para o autor, o lugar da reconstrução da lembrança não história-objeto e história-conhecimento, "história vivida e operação
é o acontecimento único, isolado, mas o tempo de um determinado grupo. intelectual que a torna inteligível".14 É esta última o contraponto da
É o grupo e não o indivíduo que garante a permanência do passado no memória. Há aproximações importantes entre os pensamentos do sociólogo
presente, configurando o tempo longo. Indivíduos desaparecem mas não e do historiador sobre o assunto que estamos analisando. Segundo Nora,
desaparece a possibilidade de reconstrução da memória, pois ela tem o a memória é um processo vivido, conduzido por grupos vivos, portanto,
grupo como suporte. Fica sugerida, também, a ideia de estrutura, à medidn em evolução permanente e "vulnerável a todas as manipulações"15. A
que o tempo longo é visto como o lugar do conjunto e não se confundi- história, em contrapartida, é registro, distanciamento, problematização,
com a sucessão dos acontecimentos que ocorrem no interior desse COM crítica, reflexão. Grupos de memória "habitam"16 suas lembranças, repe-
junto. "Traços" não chegam até nós através de vestígios pontuais, m;is tindo religiosamente aquilo que é e sempre foi (tradição). A história,
através de uma atmosfera, de maneiras de ser, de tipos, de costumes, enquanto operação intelectual, dessacraliza a memória, sugere o autor.
situações que, aliás, foram-se transformando em campos de reflexão dos Para as lembranças não há diferença entre passado e presente. Por
historiadores.
ser vivida, a "memória é um fenómeno sempre atual"17. Não tem passado
"Houve uma Paris de 1860, cuja imagem está estreitamente liguiln porque se reporta eternamente à herança, à tradição, ao tempo indi-
à sociedade e aos costumes contemporâneos. Não basta, para evocá-la, ferenciado do mito. A história reconhece o passado e quer conhecê-lo,
procurar as placas que homenageiam as casas onde viveram e onde
portanto, é uma "representação do passado"18 c não sua vivência. A
morreram alguns personagens famosos dessa época, nem ler uma históim
memória é inconsciente dela mesma, é, por isso mesmo, todo-poderosa,
das transformações de Paris. É na cidade e na população de hoje </i«-
autoritária, absoluta; a história é consciente porque racionaliza e, nesse
um observador observa bem os traços de outrora, sobretudo nas z»nii\ nobres, onde se refugiam pequenas oficinas e, ainda, em <•<•//< n
sentido, é sempre relativa complementa o autor.
Se Halbwachs parece não ter tido como prioridade a historicização
dias ou certas noites de festa popular, na Paris comercial e «/;/•;•<;;;./.
que mudou menos do que a outra. Mas, Paris de outrora se rm-ontm das questões discutidas, Pierre Nora nos dá elementos para localizá-las
talvez melhor ainda nas pequenas cidades de província, de ontlc /;<;.- historicamente. Em "O retorno do fato", a análise do fenómeno da
desapareceram os tipos, os costumes mesmo, e os modos de ./<//<;/ ,/»< mundialização configura o mundo atual: são mencionadas as guerras totais,
encontraríamos à rua St-Honoré e nas avenidas parisienses no /<•////'<> ,/< as revoluções modernas, a rapidez das comunicações e a penetração das
Balzac".13 economias modernas nas sociedades tradicionais. No artigo Entre Mémoire

M Nora, Pierre. Op.cit. p. XVIII.


"Halbwachs, Maurice. Op.cit., p.83. 15 Nora, Pierre. Op.cit. p. XIX.
12 Burke, Peter. A Escola dos Annales. 1929-1989. A Revolução l-'i,in>r\,i ,l.i 14 A expressão é de Pierre Nora.
Historiografia. São Paulo, Unesp, 1991. 17 Nora. Pierre. Op.cit. XIX.
13 Halbwachs, Maurice. Op.cit., p.69. 18 Nora, Pierre, Op.cit. XIX.

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et Histoire, a reflexão se inicia com a expressão "aceleração da história", mais apenas o vivido que é dessacralizado, mas é o conhecimento
que é relacionada à mundialização. É neste universo temporal que se histórico, ele próprio, que é visto como tradição. Lugar de memória:
evidencia o sentimento de ruptura com o passado que o autor exemplifica, história que ainda tem restos de memória. Não é apenas memória porque
evocando a "mutilação sem retorno que representou o fim dos campo- não é mais vivida, porque a ruptura com o tempo eterno já foi feita,
neses, esta coletividade-memória por excelência cuja voga como objeto porque o passado já foi reconhecido, tanto que passa a ser arquivado,
de história coincidiu com o apogeu do crescimento industrial".™ Fica registrado (monumentos, museus). Mas é ainda memória porque sacraliza,
assim bem delimitado o quando dos fenómenos, procedimento típico do comemora, celebra. Basta olharmos a França, sugere Nora, onde a história
trabalho do historiador. Sutilmente, sem aprisionar nenhuma situação nem foi a legitimadora da nação, formou e dirigiu a consciência nacional,
povo algum a datas cronologicamente rígidas, Nora nos mostra mutações transformou-se em tradição, celebrou a nação. Hoje as celebrações feitas
históricas, momentos diferenciados da experiência coletiva dos homens. pela História são objeto do conhecimento histórico. É a história des-
A forma histórica como estes fenómenos foram percebidos pelo confiando da história. É — nas suas palavras — a "passagem de uma
autor possibilitou a elaboração da noção "lugares de memória", vivência história totêmica a uma história crítica; é o momento dos lugares de
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que transborda de um momento histórico em que vivemos na fronteira do memória .
que éramos, num quadro rural-local, e o que somos, num quadro
metropolitano-universal. É toda a questão da identidade e a ameaça de
sua perda que está aí colocada. Identidade entendida não como elemento
constituinte da discutível natureza humana ou como a priori de todo
RESUMO ABSTRACT
grupo social, mas como situação de existência coletiva evidenciada em Apontando aspectos teóricos da Pointing at theoretical aspects of
muitos momentos históricos e que se expressa por um sentimento de relação memória/história, o artigo discute the question of historical memory, the
referência e identificação grupai. a relação entre as transformações histo- article analyses the historical trans-
Os "lugares de memória" — poderíamos dizer — expressam o desejo riográficas nas últimas décadas e a impor- formations of the last decades and the
de retorno a ritos que definem os grupos, a vontade de busca do grupo tância dos estudos sobre a memória, tal growing importance of memory's studies.
como discutido por Halbwachs e Nora.
que se auto-reconhece e se auto-diferencia, o movimento de resgate de
sinais de appartenance grupai. "A Marseillaise" — diz o autor — "ou os
monumentos aos mortos vivem assim desta vida ambígua, plena tio
sentimento mesclado de pertencimento e de desenraizamento."20
Parece ser esta a grande questão histórica para Nora: o momento
no qual os homens vivem esta tensão entre a intimidade da tradição vivida
e o abandono provocado pelos grupos desfeitos, dos quais a história,
desritualizada, se empenha em guardar as marcas. Os "lugares de
memória" cumprem esta função. Dois movimentos produzem-nos: o
propriamente histórico, já mencionado, e a revolução historiográfica saída
desta "ruptura de equilíbrio".21 É sobre ela que nos resta fazer algumas
observações.
Toda história (conhecimento) é crítica porque observa e analisa o
vivido. O vivido é seu objeto de questionamento. Porém, segundo Nora,
há uma novidade quando seu objeto passa a ser ela própria. Aí não é

"Nora, Pierre. Op.cit., p.XVII.


20 Nora, Pierre. Op.cit., p.XXV.
21 Nora, Pierre. Op.cit., p.XVII. '• Nora, Pierre. Op.cit., p.XXV.

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