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Caixa Preta - Edson - Sousa PDF
Caixa Preta - Edson - Sousa PDF
Stefan Zweig publicou um livro sobre nosso país, que o acolheu em sua fuga da
barbárie nazista, intitulado Brasil: país do futuro. Era sua forma de homenagear esta
terra prometida, talvez de forma exagerada, pois naquele momento o Brasil já trancava
suas portas aos que fugiam da Europa. Este livro foi fruto de um negócio com o
governo. Escreveria um ensaio sobre o Brasil em troca de um visto permanente para ele
e sua mulher. Como lembra Alberto Dinis no prefácio de uma das edições brasileiras,
ele enxergou em nosso país um espírito de conciliação (DINIS in: ZWEIG, 1941/2006,)
Contudo, basta lermos o final da introdução de Zweig para lembrar o quanto
acabou sendo um joguete político nas mãos da ditadura de Getúlio Vargas. Conciliação
impossível quando não há garantia de cumprimento de alguns preceitos éticos que
possam honrar a verdade e a justiça. A conciliação brasileira tem sido muito “prejudicial
à nossa história já que não permitiu rupturas em nosso processo histórico lembra Paulo
Ribeiro da Cunha” (SAFATLE; TELES, 2010, p. 38).
Zweig se enganou e talvez esta decepção o tenha levado ao suicídio. Mas foi
lúcido o suficiente para apontar no final do seu prefácio o que considera fundamental
para que haja futuro. “Onde quer que forças éticas estejam trabalhando é nosso dever
fortalecer esta vontade. Ao vislumbrar esperanças de um novo futuro em novas regiões
em um mundo transtornado, é nosso dever apontar para este país e para tais
possibilidades” (ZWEIG, 1941/2006, p. 23).
Só há futuro se podermos não virar as costas para nossa história, como indica
com precisão cirúrgica Walter Benjamin em seu ensaio “Sobre o conceito de história”.
A partir de um quadro de Paul Klee, Angelus Novus, ele indica este impasse entre
Memória e Esquecimento.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa
a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os
fragmentos. Mas uma tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Esta
tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226).
Sob tortura, o corpo fica assujeitado ao gozo do outro que é como se a “alma”
– isso que, no corpo pensa, simboliza, ultrapassa os limites da carne pela via
das representações – ficasse a deriva. A fala que representa o sujeito deixa de
lhe pertencer, uma vez que o torturador pode arrancar de sua vítima a palavra
que ele quer ouvir, e não a que o sujeito teria a dizer. (KEHL, 2010, p.131).
São estas imagens que Primo Levi descreve com tanta precisão em seus textos,
corpos despossuídos de alma, entregues à animalidade mais crua da sobrevivência, do
pragmatismo mais imediato. Mas ainda assim nos perguntamos: que força lhes permitia
resistir? Talvez a aposta que alguma voz, mesmo depois das cinzas, viesse a lembrar a
fúria do carrasco e a dor do torturado. É isto que lembra Benjamin no fragmento que
mencionei acima: alguém ainda acordará os mortos e juntará seus fragmentos?
Mesmo que seja nosso dever, o que vemos com mais frequência é uma grande
apatia. Aí o signo da decadência de uma civilização. Cioran em seu História e Utopia
mostra que utopia não significa esperança ingênua, mas ter a coragem de ver e
denunciar o medo e as identificações inconfessas ao carrasco, mecanismo este que
precisamos identificar para que efetivamente algo possa mudar. Não há revolta potente
sem um entendimento mínimo da decadência cultivada.
Diz Cioran (1994, p. 95): “Nossa decadência é tal que aceitamos sem enrubescer
excessos, profusões de admiração falsas e premeditadas, pois preferimos as cortesias da
mentira às censuras do silêncio”. Romper com este cenário implica produzir atos de fala
que venham a honrar nossos mortos e sua história. Como afirma Kehl (2010, p. 131),
“se a tortura separa corpo e sujeito, cabe a nós assumir o lugar de sujeito em nome
daqueles que já não tem direito a uma palavra que os represente”.
As caixas-pretas de Janett Cardiff e George Miller falam. Estes dois artistas
canadenses fazem uma espécie de escultura de som colocando em cena uma arquitetura
do medo. Metáfora potente da tirania do poder que se transfigura em um pesadelo que
contamina o espectador. Vi este trabalho em Inhotim – Minas Gerais. Entro na grande
sala branca, sento-me em uma das cadeiras e acompanho a narração de um pesadelo
vertido pelos 98 alto-falantes. As vozes surgem de vários lugares da sala, assim como o
som de máquinas, músicas e o voo de corvos que funcionam como uma espécie de
refrão do trabalho.
A obra tem como título “O assassinato dos corvos” e foi inspirado na famosa
gravura de Goya de 1799 da série Los Caprichos “O sono da razão produz monstros”.
Sou convocado ali a testemunhar. Testemunho requer saber esperar o tempo do outro,
aguardar que tudo seja dito. Pergunto-me: onde estou neste pesadelo que escuto?
Pesadelo do outro, mas também meu, já que minha emoção pelo que escuto mostra que
me sinto também naquela voz.
O “Assassinato dos corvos” introduz pela palavra uma fissura na máquina de
ignorar o real. Mostra o que é o medo, mas também como desmontar o medo. Em um
momento é a voz de um torturador sádico que escutamos: “cortem a perna dela!”. Ela
grita para não fazerem isto. A ameaça continua e finalmente o torturador diz “Não lhe
cortamos as pernas de verdade, apenas lhe damos um susto pavoroso”. Não lhe cortaram
as pernas? O que foi cortado? Impossível dormir depois desta cena.
Ruído dos corvos e uma voz irônica em tom de canção de ninar “close your eyes
and try to sleep” (feche os olhos e tente dormir). Lembro de uma passagem do livro de
Flavio Tavares, Memórias do Esquecimento. Ele foi um dos 15 presos políticos
“trocados” pelo embaixador dos Estados Unidos em 1969. No terceiro dia de tortura
com choques elétricos, o sargento que o torturava gritou:
– Fala, fala, senão trago a tua filha, dou choque nela e depois fodo, fodo ela
aqui na tua frente. Ele ameaçava tocando-se os testículos e fazendo, com as
mãos e o ventre, aquele gesto vulgar e obsceno de quem estupra. A caricatura
do gesto foi tão forte e eu estava tão desfeito que acreditei que ele cumpriria
a ameaça. O horror me invadiu ainda mais forte que a dor do choque elétrico.
(TAVARES, 2005, p. 266).
Imagem pesadelo que o acompanhou por muitos anos ao imaginar sua filha de
quatro anos ali na sua frente, como a ameaça da perna cortada. Impossível distinguir
entre o que é e o que não é. Situações que acionam em qualquer um a mais profunda
confusão mental e intoxica a alma de horror. O próprio Flavio Tavares esclarece que
cenas como esta o faziam pensar nos inquisidores “no seu delírio eufórico de vitorioso
tem direito a tudo inventar e em tudo sentir-se, irrebatível e inquestionável,
transformando até a verdade que não é na verdade que é” (TAVARES, 2005, p. 249).
As caixas-pretas continuam narrando o pesadelo. Impossível dormir, diante de
um abusador que não poupa ninguém. Estarrecedor pensar que a ditadura brasileira
produziu monstros como o brigadeiro João Paulo Penido Burnier, chefe do gabinete do
ministro da Aeronáutica, com seu plano de incendiar em 1968 o Rio de Janeiro,
explodir o gasômetro Novo-Rio, postos de gasolina, Embaixada dos Estados Unidos
para em suas palavras “incriminar os comunistas”. O capitão que recebeu estas ordens,
Sérgio Miranda de Carvalho, comandante da tropa de elite da FAB, e que se recusou a
executá-la e foi excluído das Forças Armadas em 1969; e o brigadeiro Eduardo Gomes,
que encampou esta denúncia contra Burnier, morreu em um “acidente de automóvel”
meses depois − o que, segundo seus próximos, foi um claro atentado por parte da
extrema-direita militar.
História que continua queimando dentro de tantas caixas pretas lacradas. Até
quando? Nem os corvos abandonam seus mortos. Cardiff intitulou seu trabalho “O
Assassinato dos corvos” numa clara evocação do ritual fúnebre destes pássaros. Sempre
que um deles morre, os demais ficam em revoada por 24 horas em uma espécie de ato
solene ao corpo.
Já se passaram 24 horas, 24 semanas, mais de 24 anos, mas precisamos
continuar em revoada e exigir o que está escrito nos tratados internacionais de Direitos
Humanos assinados por nosso país: punição aos torturadores, direito à verdade e à
justiça. Corvos como testemunhas. Como lembra Paulo Endo (2009, p. 55): “A
aniquilação do testemunho não é a ausência do que dizer, mas não ter quem escute o
que se pode dizer”. Neste ponto, um dever de memória a preservar. Quem sabe um dia
poderemos então fechar os olhos, dormir e sonhar novamente.
REFERÊNCIAS
CUNHA, P.R. Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico. In: SAFATLE, V.;
TELES, E. (Orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 15-40.
DINIS, A. Préfacio. In: ZWEIG, S. Brasil um país do futuro. Porto Alegre: LPM,
2006, p. 7-9
ENDO, P. A dor dos recomeços: luta pelo reconhecimento e pelo devir histórico no
Brasil. Revista Anistia – política e justiça de transição. Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça, Brasília, n. 2, p. 50-63, julho/dezembro 2009.
RONCOLATO, M. et al. Quando nos libertaremos deste pus? Revista Caros Amigos,
Ano XII, n. 138, p. 30-39, set. 2008.
SAFATLE, V.; TELES, E. (Orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo,
2010.
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Ver dossier sobre o tema: RONCOLATO, M. et al. Quando nos libertaremos deste pus? Revista Caros
Amigos, Ano XII, n. 138, p. 30-39, set. 2008.