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R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 22: 137-156, 2012.

Arqueologia Visual: o Uso das Imagens Fotográficas na Produção do


Conhecimento Arqueológico e Historiografia da Arqueologia1

Sergio F. S. Monteiro da Silva*


Demétrio Mützenberg**
Daniela Cisneiros***

SILVA, S.F.S.M.; MÜTZENBERG, D.; CISNEIROS, D. Arqueologia Visual: o Uso das


Imagens Fotográficas na Produção do Conhecimento Arqueológico e Historiografia
da Arqueologia. R. Museu Arq. Etn., São Paulo, 22: 137-156, 2012.

Resumo: Este artigo apresenta algumas perspectivas para o estudo de dados


visuais produzidos por arqueólogos durante suas pesquisas. O uso consciente
das imagens fotográficas como variações de um sistema de registro arqueológico
mais amplo, incluindo a sua produção sistemática, disseminação e contexto na
produção do conhecimento científico são revistas neste estudo preliminar. Des-
de as primeiras fotografias arqueológicas produzidas no século XIX, em atlas,
catálogos e manuais, e até recentemente, com o acelerado desenvolvimento
das tecnologias digitais de captação e produção de imagens visuais ao potencial
analítico e interpretativo de antigos photoworks, este trabalho contribui para a
compreensão sobre o uso científico das fotografias de campo e laboratório e o
seu vínculo com a produção da historiografia arqueológica e seu aporte para o
desenvolvimento de uma Arqueologia Visual.

Palavras-Chaves: Arqueologia visual, Sistema de registro arqueológico,


Metodologia arqueológica, Fotografia, Historiografia da Arqueologia

Introdução: a fotografia como documento na néticas refletidas, seja por meios químicos ou
pesquisa arqueológica eletrônicos. Tal técnica permite uma documen-
tação precisa do objeto, além de apresentar pela
sua própria natureza menos filtros cognitivos
A fotografia é a técnica de criar documen- do autor durante a criação do documento do
tos imagéticos bidimensionais através do regis- que um registro desenhado. Permite, assim, a
tro passivo da luz e outras radiações eletromag- captação tanto de informações reconhecidas e

(*) Mestre e Doutor em Arqueologia pelo MAE-USP; Professor de


Arqueologia do Departamento de Arqueologia, Centro de Filo- (***) Mestre e Doutor em Arqueologia pela UFPE; Professor de
sofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco Arqueologia do Departamento de Arqueologia, Centro de Filo-
(**) Mestre e Doutor em Arqueologia pela UFPE; Professor de sofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco
Arqueologia do Departamento de Arqueologia, Centro de Filo- (1) Artigo extraído e modificado da dissertação de mestrado
sofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. do autor, de 2001.

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Arqueologia
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intencionalmente registradas pelo autor quanto em contextos arqueológicos, mas também como
de outras informações cujo registro que não es- transmissora de informações arqueológicas e
tava necessariamente previsto de ser registrado. do olhar de cada arqueólogo sobre o seu objeto
O estudo dos documentos visuais na de estudo. Devemos considerar as intenções e
perspectiva da epistemologia do conhecimento escolhas dos produtores dessas imagens como
tem representado uma parcela da produção do parte das opções técnicas, metodológicas e teó-
conhecimento científico no âmbito da histó- ricas do pesquisador e seu redimensionamento.
ria, da antropologia, das ciências sociais, da A fotografia ainda é utilizada, geralmente,
medicina e ciências biológicas, da geografia, da como apenas mais uma ferramenta ancilar no
psicologia e, mais recentemente, da arqueologia. arsenal do pesquisador de campo. Enquanto
No Brasil, Lemos (1992) preocupou-se com categoria documental instável, detentora de in-
a construção de uma abordagem técnica da tensa manipulação, a fotografia arqueológica se
linguagem das imagens, intrínseca aos registros mostra como recurso para auxiliar na formula-
visuais na arqueologia, fazendo uso de preceitos ção de problemas e no enunciado de hipóteses
retirados, por exemplo, de Susan Sontag (1981), a partir de um photowork3. Nesse caso, as séries
entre outros pensadores importantes sobre a fo- de fotografias arqueológicas constituem um
tografia contemporânea. Os usos e significados aspecto de como o arqueólogo pode eviden-
das imagens fotográficas podem ser buscados, a ciar os remanescentes do passado e trabalhar
priori, nos trabalhos de Roland Barthes (1984), sobre eles, fornecendo mais informações do
Dubois (1990), Aumont (1993), Rouillé (2009), que podemos perceber quando são realçadas
Kossoy (1989, 1999), Molyneaux (1997), Samain e ampliadas. Essas imagens estão vinculadas
(2005) e Santaella (1998). à ideia da fotografia como um documento
Até os anos 1990, a imagem visual enquan- na produção do saber na arqueologia e, mais
to objeto de estudo da arqueologia, segundo especificamente, como recursos de informações
Molyneaux (1997), era mal compreendida ou segundo Erskine (1965).
até mesmo ignorada. As imagens produzidas A fotografia como documento ou fotografia-
pelas populações pretéritas e as produzidas -documento, na perspectiva de Rouillé (2009),
pelo arqueólogo nos seus registros imagéticos vislumbra o fotográfico como sendo essencial-
são igualmente difíceis de análise e interpre- mente operatório. O ato fotográfico na arte e
tação e o seu estudo enquanto documentos nas ciências, incluindo a arqueologia, estaria
participantes do processo de produção de vinculado aos seguintes objetivos: a) arquivar,
conhecimento científico ou a sua conscientiza- quando ocorre a união entre fotografia-álbum
ção no interior da disciplina são ainda quase ou fotografia-arquivo; b) ordenar, quando a
inexistentes. Nesse sentido, imagens visuais2 fotografia-arquivo classifica, ordena o que a foto-
criadas pela Arqueologia podem ser traduzidas grafia fragmentou; c) fragmentar, pois o fotógrafo
como representações de ideias vinculadas à desarticula a continuidade do real visível para
reconstrução de contextos arqueológicos. É produzir imagens; d) unificar, quando a partir
comum o uso das figuras na pesquisa acadêmi- da efusiva multiplicidade de tomadas parciais a
ca como suporte às ideias expressas no texto. fotografia-documento é tratada pelas tomadas
A natureza silenciosa dessas imagens raramente panorâmicas, álbuns e arquivos; e) modernizar os
tem sido discutida, assim como as suas men- saberes, a partir da redução da subjetividade dos
sagens, concordantes ou não àquelas contidas documentos produzidos pelo saber científico,
nos textos escritos. com o registro sem interpretações, autenticação
A relevância da imagem visual reside não ou substituição do objeto, dos mundos visível e
apenas como evidência da prática de escavação

(3) Termo entendido aqui como um conjunto de fotografias


(2) Termo utilizado em Dubois (1990), Aumont (1993), Ed- vinculado a uma pesquisa científica. A utilização desta desig-
wards (1996), Molyneaux (1997) e Santaella & Nöth (1998). nação pode ser encontrada em Shanks (1992, 1997).

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invisível; f) ilustrar, uma orientação do dispositi-


vo fotográfico ocorrida desde o final do século
XIX para integrar-se a um protocolo experi-
mental específico de uma ciência; g) informar, a
função mais importante da fotografia-documento
e se dá com a sua inserção na imprensa, com a
publicações impressas ou digitais.
Esses objetivos da fotografia-documento, con-
forme Rouillé (2009), favoreceram, durante todo
o séc. XX, a criação de visibilidades inovadoras
para a modernização científica. O dispositivo fo-
tográfico contribui no processo de produção, ar-
quivo ou difusão do conhecimento das ciências
e, naturalmente, da arqueologia, pelo registro,
representação, por atestar, facilitar demonstra-
ções, documentar experimentos, acompanhar o
ensino e o trabalho de pesquisadores.
Então, na arqueologia, os documentos
fotográficos são possuidores de dois impor-
tantes papéis: o de documentar a pesquisa de
campo e comunicar as atividades e resultados
da pesquisa arqueológica em aulas, palestras e
audiências gerais (Struever, 1995). Consequen-
Fig. 1: Atividades de registro fotográfico dos enterra-
temente se constituem tais registros em formas
mentos humanos no sítio Tenório em 1970. a) Caio Del
de exposição dos resultados e dos métodos de Rio Garcia realiza fotografias verticais do enterramento
evidenciação e mesmo da abordagem utilizada XX; b) Walter Guerreiro realiza fotografias oblíquas
pelo arqueólogo. Para Collier (1995), arqueólo- de um conjunto de quadras e do enterramento XXVI.
gos, em suas necessidades de definir detalhes e (Fonte: MAE – USP, 2001).
precisar associações de materiais, genuinamente
estabeleceram três modos de utilização científica O problema do uso das imagens visuais da
das fotografias: para mensurar, para contar e arqueologia4, não daquelas criadas pelas popu-
para comparar. Esses objetivos complementam lações pretéritas, mas aquelas produzidas pelos
aqueles sugeridos por Rouillé (2009) para o ato próprios arqueólogos e suas equipes, durante
fotográfico na arqueologia. trabalhos de campo como dados de registro
A fotografia arqueológica se dá mediante sobre os vestígios de cultura material e de seus
diversas técnicas, registrando um processo criadores está no seu modo de utilização, de
temporário e irreversível, claramente exemplifica- conscientização em relação à modalidade teóri-
do nas atividades de escavação (Cf. Figura 1). co-metodológica aplicada durante a escavação.
Esses registros visuais representam imagens que O reconhecimento visual de dados e eventos
podem ser legitimadas no domínio científico
e disciplinar. Um conjunto de fotografias para
poder ter forma coerente, deve possuir uma (4) Ver as considerações, embora restritas às fotografias aéreas
e seu tratamento digital de Irwin Scollar e o artigo de Erik
linguagem e estar vinculado a um processo
Nylén sobre o uso de fotografias de Raios-X e fotogrametria
narrativo através de um texto. Cada fotografia é em vestígios enterrados e ainda as definições de Michael B.
dependente da relação com as demais e/ou com Schiffer, Sullivan e Klinger de visibilidade, acessibilidade e
textos e é “arqueológica” quando o arqueólogo reconhecimento de sítios e vestígios em arqueologia, além de
sua bibliografia a respeito: World Archaeology (Field techniques
pode extrair informações visuais úteis e signifi- and Research Design), Oxford University Press, v. 10, p. 1-28,
cativas nas várias etapas de pesquisa. 71-87, 88-93, 1978.

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Observação humana

Por meio da máquina fotográfica Sem o uso da máquina fotográfica (normal)

Quando a claridade e abrangência do foco é ampla, com pro-


fundidade limitada de campo e proporcional ao ângulo da Amplo alcance do foco
lente, abertura pequena ou grande profundidade de campo
A perspectiva varia com o ângulo da lente, dependendo do
Perspectiva variável
senso de perspectiva do fotógrafo
Profundidade vista é aparente A profundidade nunca é totalmente definida

O limite da imagem se dá pelas barreiras físicas de uma


Seu limite físico é ilimitado ou muito extenso
moldura
As linhas paralelas da luz convergem para as bordas laterais
As linhas paralelas da luz se estendem paralela-
através de uma superfície sensível, contendo margens e
mente e em profundidade
declives
Contém informações sobre o mundo dos signos ou objetos Relaciona-se a um mundo de objetos, de
reconhecíveis signos, sinais e sentidos

Quadro 1: Atributos da observação humana, segundo Nichols (1981)

ocorridos durante uma escavação arqueológica museus. Elas são tratadas como janelas abertas
depende das sistemáticas de análise e interpre- ao passado. Para Shanks, a fotografia arqueoló-
tação das imagens adotadas pelo arqueólogo. gica pode ser abordada do ponto de vista de
As diferenças ou os filtros existentes entre a um estudo da cultura, sendo assim objeto para
visão fotográfica e a visão normal evidenciam uma sociologia do conhecimento: a fotografia é
as diferenças entre o objeto a ser fotografado um objeto de cultura material relacionado, por
e a imagem fotográfica do mesmo. Nichols exemplo, à história das ciências e da observação
(1981) estabeleceu diferenças entre a observação científica; serve como documento historiográfi-
fotográfica e a percepção visual normal. Os atri- co da arqueologia.
butos específicos da observação fotográfica e da Segundo Shanks (1997), as fotografias são,
humana estão discriminados no Quadro 1. muitas vezes, usadas para registrar, documentar e
Michael Shanks (1997), com o objetivo de ilustrar o que foi escavado e o que estava sendo
contribuir para o surgimento de novas meto- discutido em um texto. Mediante boas instru-
dologias arqueológicas5, entende as fotografias ções em manuais de fotografia arqueológica, é
como apoios técnicos, servindo para registrar ou possível obter registros precisos e completos sobre os
identificar eventos e objetos, fornecer paisagens vestígios escavados. A fotografia é um meio para
de fundo e também cenários ilustrativos para o registro objetivo, é demonstrativa, pronominal, re(a)
presentativa do objeto fotografado. As fotogra-
fias produzidas durante os trabalhos de campo
na aquisição e registro de dados, prestam-se a
(5) As novas metodologias arqueológicas propostas por Shanks
demonstração e suplementação das anotações
referem-se àquelas chamadas pós-processuais e que seriam
agora melhor conhecidas como interpretativas, preocupadas dos cadernos de campo. Registram importantes
com a interpretação e compreensão (percepção, entendimen- associações espaciais dos vestígios em contexto
to, inteligibilidade) dos materiais do passado. Sustenta que arqueológico e servem para a verificação das téc-
a habilidade de provar, citar e gradativamente manipular o
nicas de escavação. São, aqui, uma questão técni-
mundo visual através da constante implementação e desenvol-
vimento das tecnologias visuais, oferece grande alcance para ca, para servir como meio e não fins: a fotografia
apresentarmos passados com texturas mais ricas. arqueológica é um meio para o registro objetivo.

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Assim, na produção arqueológica como produção do arqueólogo em relação aos registros fotográfi-
cultural, o photowork revela um aspecto sobre cos, que fornecem imagens estáticas da pesquisa
como o pesquisador levanta os remanescentes do de campo para análise e interpretação.
passado no presente e trabalha sobre eles: Fotografias usadas para revisão e análises
de coleções arqueológicas são viáveis a partir da
In the texture of their detail photographs
inacessibilidade das características desses materiais
provide a partially involuntary record. There
e seu contexto arqueológico, servindo como guias
is always in every photograph some processed
de estudo sob a forma de catálogos sistemáticos
experience. That the materiality of the world
de coleções arqueológicas como o Corpus Vasorum
is ineffable is presented. Finally, temporality,
Antiquorum7. Sob uma perspectiva ampla, todos
often a melancholy of the past in the present,
os estágios da análise e interpretação arqueológica
is invoked throughout photowork (SHANKS,
são auxiliados pelo uso das fotografias e demais
1997, p.100)
categorias de imagens produzidas em campo.
Segundo Shanks (1997) existem quatro Durante uma escavação, servem para registrar as
áreas de interesse dentro de uma sociologia do características de uma superfície plana, um perfil,
conhecimento arqueológico para as quais pode- um tipo ou conjunto de artefatos, sepultamentos
riam estar voltadas potencialmente as séries de humanos, entre outros. Devem ser anotadas as
fotografias arqueológicas, que: a) relacionam-se informações sobre qual área do sítio está sendo re-
com o conceito de atualidade na medida em que presentada, a quadra, setor, quadrícula, a direção
a temporalidade do photowork é análoga a tempo- na qual foi obtida a fotografia, a escala, o nome
ralidade do discurso arqueológico e seus objetos; do fotógrafo, o número do filme e das poses.
b) prestam-se a uma etnografia da disciplina Essas anotações em ficha ou caderno específicos
arqueológica na medida em que constituem uma para os registros fotográficos são constantemente
parcela explanatória e documental dos projetos utilizadas enquanto informações necessárias a
arqueológicos; c) expressam o inefável e o hete- interpretação das imagens produzidas.
rogêneo na arqueologia, na medida em que enri-
quecem com detalhes uma maior compreensão
das realidades sociais passadas, suspendendo ou História da fotografia-documento na arqueologia
redimensionando as categorizações e esquemas
convencionais no discurso arqueológico; d) ser- As primeiras fotografias de arqueologia sur-
vem, no trabalho interpretativo, como citações giriam na primeira metade do século XIX, em
por meio da edição e da montagem nos textos, 1852, quando o Trustees of the British Museum,
convidando a experimentar como as associações consultando Fox Talbot8 e sob a coordenação de
de imagens remetem a atualidade do passado.
Nesse sentido, as fotografias enquanto
photoworks estariam intimamente relacionadas
(7) Corpus Vasorum Antiqurorum (Corpos de Vasos Antigos) é
ao caráter do discurso arqueológico sobre as um antigo projeto de pesquisa da Union Académique Interna-
realidades sociais passadas, prestando-se em tionale, que consiste em uma série de catálogos científicos de
primeiro lugar, ao estudo do conhecimento antigos vasilhames cerâmicos, sobretudo gregos. Seu primeiro
arqueológico - uma historiografia arqueológica6. fascículo foi publicado em 1922.
(8) William Henry Fox Talbot (1800-1877) em 1934 começou
A fotografia, quando é usada para análise do a fazer experiências fotográficas, e entre 1835 e 1840 fez e apre-
dado de campo, aplica-se nos estudos indiretos sentou a primeira forma de negativo utilizada em fotografia, o
do fenômeno observável do contexto arqueológi- calótipo ou talbótipo. Trata-se de um negativo obtido em papel
co. Uma vez terminada a escavação, qualquer re- comum impregnado de iodeto de potássio e sensibilizado por
uma solução de nitrato de prata e ácido gálico. Depois de exposta
corrência a esses dados implica na dependência na câmara fotográfica, a imagem latente era revelada pelo mesmo
banho usado como sensibilizador e fixada por hipossulfito de
sódio. Normalmente, depois de exposta, era encerada, a fim de
lhe aumentar a translucidez. Talbot patenteou esse processo em
(6) Termo entendido aqui como uma reflexão acerca da evo- 1841, na Inglaterra, publicando entre 1844 e 1846 “The Pencil
lução da arqueologia como disciplina científica. of Nature” (EHRLICH, 1986, p.44-257)

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Brooke, o superintendente do Departamento do séc. XIX, Newton (1862) publicou os resul-


Fotográfico do Observatório Real e Wheatsto- tados das escavações na Grécia e Turquia com
ne, físico e inventor do eletrotelégrafo, provi- litogravuras baseadas nas fotografias obtidas nos
denciaram o registro fotográfico das tabletes sítios escavados. Mas os primeiros resultados
cuneiformes do acervo do museu. No mesmo de pesquisas arqueológicas que fizeram uso das
Trustees, em 1853, Roger Fenton providenciou fotografias impressas (não como litografias ou
um laboratório para fotografar pelo processo da gravuras derivadas de fotografias) foram publi-
calotipia grande número de artefatos arqueo- cados em Conze et al. (1880) sobre seus estudos
lógicos, tabletes e inscrições que haviam sido na Samotrácia. Em 1865 eram produzidas as
trazidos após as escavações de Sir Henry Layard primeiras imagens com uso de flash a base de
em Nínive (Nimrud). magnésio do interior das câmaras da Grande
Outras contribuições, segundo Philibert, Pirâmide por C P Smith (FEYLER, 1987).
revisitado por Chéne e Rèveillac (1975), advém Nos Estados Unidos, W. H. Jackson,
das séries de fotografias de monumentos no Egi- fotógrafo da American West, fez os primeiros
to, Núbia, Palestina e Síria produzidas por M du registros de Mesa Verde e outros sítios pueblo
Camp durante seus trabalhos com Flaubert de dos estados do sudoeste em 1870. Em 1880, A
1849 a 1851. Em 1951, L.D. Blanquart-Evrard P Maudslay, E H Thompson e T Maler fizeram
empreendeu uma impressão fotográfica em uma série de registros fotográficos de monu-
Lille, usando uma modificação do processo de mentos arqueológicos do México, contribuindo
calotipia de Fox Talbot, produziu um catálogo com o grande arquivo do Peabody Museum. A
com 125 fotografias de M du Champ, tornando fotografia arqueológica de campo foi intensa-
acessíveis as imagens dos monumentos orientais mente utilizada por F. W. Putnam durante suas
aos estudantes e ao grande público. Provavel- escavações em Ohio em 1890, servindo como
mente a primeira expedição arqueológica a fazer meio para ilustrar os monumentos arqueoló-
uso de fotografia em campo foi a de R. Lepsius gicos. Os trabalhos de Muñiz e Mc Gee (1897)
ao Egito entre 1842 e 1845. Entretanto os traba- resultaram na divulgação de 40 fotografias da
lhos fotográficos em daguerreotipia (EHRLICH, coleção de crânios peruanos trepanados do
1986)9 e calotipia mais significativos foram pro- Smithsonian Institution. Mais tarde, com os
duzidos por M Tranchard durante as escavações estudos de Vignati (1930) foram publicadas 73
de V. Place na Assíria de 1852 a 1855 (PILLET, fotografias dos crânios troféus de Humahuaca,
1962) e publicados sob a forma de gravuras em Jujuy. Photoworks de remanescentes arqueo-
Place (1867). lógicos, incluindo sepultamentos humanos, já
O uso da fotografia de campo integrou as estavam sendo produzidos intensamente nos
pesquisas de A Salzann nos sítios bíblicos da primeiros anos do século XX, como o grande
Palestina em 1854 e as escavações de Jerusalém arquivo de imagens produzidas durante as
empreendidas pelo capitão Wilson em 1860. As escavações no cemitério pré-dinástico egípcio
escavações em Tebas, no Egito, procedidas por de Naga Ed Er, por Lythgoe (1965) e com os
J. B. Greene em 1855 resultaram em fotografias trabalhos que se utilizaram das ilustrações fo-
pelo processo da calotipia. Na segunda metade tográficas – fotografia-documento – como o de
r ka (1910). Na documentação de registros
rupestres, a fotografia foi utilizada desde o sécu-
lo XIX, tendo como pioneiros, na sua utilização,
(9) Um dos primeiros processos de obtenção de imagens Von Bonde na África em 1885 e Holmes nos
fotográficas inventado pelo francês Louis Jacques Daguerre Estados Unidos em 1876 (Bahn, 2010) e Chirón
(1787-1851) que produz uma imagem positiva direta em chapa
de cobre coberta de uma fina camada de prata cuidadosamente na França em 1878 (Martínez e Loizeau, 2006).
polida e sensibilizada com vapores de iodo. A imagem latente Durante o fim do século XIX e primeira
é revelada com vapores de mercúrio e a imagem é apresentada metade do XX, a fotografia veio sendo utilizada
em um caixilho hermeticamente fechado. Esse processo foi como um dos recursos técnicos da escavação e
apresentado publicamente por Daguerre em 1839 e esteve
em uso até cerca de 1860 do registro de artefatos e esqueletos humanos.

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Fig. 2: Documentos fotográficos de ossos humanos coletados e registrados por Loëfgren em 1893: a) crânio n° 1 do Sambaqui
Passa-Mirim; b) crânio n° 2, Passa-Mirim; c) ossos longos, sambaqui de Guayuba; d) frontal, fragmentos de mandíbula e ossos
longos concrecionados, sambaqui Boguassu. (Fonte: LÖFGREN, 1893)

Em 1880 já eram questionadas as potencialidades os princípios básicos referentes à formação da


da fotografia aérea10 com o uso de balões para imagem, perspectiva e distorção, foco e exposição
o registro de sítios no Oriente Médio, realizadas assim como as lentes e a iluminação ideais para
somente com o advento da Primeira Guerra cada caso, foi defendida insistentemente pelo
Mundial. A ideia de que as fotografias de campo fotógrafo M B Cookson (1954). Essa ideia consti-
podem revelar vários detalhes da escavação, bem tui o cerne da prática da fotografia arqueológica
como seu processo, com precisão e obedecendo contemporânea, profundamente remodelada
com o advento da fotografia digital e de recursos
diferenciados de captação de imagens tridimen-
(10) A aerofotografia é tomada de vistas feitas de avião, balão, sionais digitalizadas ou escaneadas.
entre outros. Utilizada como levantamento fotográfico e geo- No Brasil as primeiras fotografias arqueo-
désico da superfície terrestre denomina-se aerofotogrametria. A
lógicas de campo e de materiais antropológicos
utilização da fotografia aérea para a topografia – aerotopografia
ou topografia fotogramétrica – destina-se à confecção de mapas. foram publicadas em Lacerda Filho e Rodrigues

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Peixoto (1876), Löfgren (1893) e Krone (1914), socialização de um saber científico. Deparamo-nos
estudiosos vinculados ao Museu Nacional com extensões da tecnologia digital na prática
do Rio de Janeiro e à Comissão Geográfica e fotográfica que demandam um alfabetismo cons-
Geológica do Estado de São Paulo (Cf. Figuras tante do arqueólogo em relação ao quê, porque e
2 e 3). Foi o próprio Löefgren que produziu como fotografar, ou mesmo em relação ao plane-
as 17 fotografias que ilustram seu trabalho de jamento e organização da própria pesquisa. Surge
1893 sobre os sambaquis de São Paulo, assim a questão dos múltiplos implementos tecnológi-
como Krone foi o fotógrafo das escavações que cos voltados a produção de imagens (fotográficas,
realizou nos sambaquis do rio Ribeira entre fins fílmicas, eletrônicas, digitais) e suas formas de
do século XIX e a primeira década do XX. uso e interpretação na arqueologia.
Muito do trabalho fotográfico produzido
durante uma escavação arqueológica está rela-
cionado a uma série de problemas científicos,
cada qual devendo ser resolvido em ordem para
que seja produzido um registro compreensível.
Esse registro expressa elementos inerentes à
prática arqueológica, aos métodos e técnicas de
escavação e aos objetivos e justificativas de uma
pesquisa. Assim, um levantamento fotográfico
inclui: um diário de registro fotográfico da
escavação; registros detalhados de perfis estra-
tigráficos; registro de estruturas arquitetônicas;
registros de artefatos e outros vestígios in situ;
um registro catalográfico de todos os objetos;
vistas panorâmicas do sítio e diapositivos para
ilustrar palestras e para divulgação acadêmica e
ao grande público: uma história em imagens do
sítio, das atividades diárias e das descobertas.
A identificação do potencial de análise e
interpretação de um photowork para relatar os
diferentes sentidos, propósitos, interesses e
Fig. 3: Impressão de documento fotográfico publicado funções do discurso arqueológico passaria a ser
em Krone, 1914. a) esqueleto n° 8 do sambaqui do considerada como uma contribuição metodo-
Roccio, Iguape; b) esqueleto do sambaqui de Vila Nova, lógica, vinculada à interpretação e a compre-
Mar Pequeno Iguape, coberto com osso chato de baleia. ensão da cultura material do passado ou em
(Fonte: KRONE, 1914). determinadas instâncias da teoria arqueológica
explanatória, formativa, de recuperação, formal
e inferencial. Essa identificação das fotografias
Usos da fotografia na arqueologia: os olhares como documentos visuais na pesquisa arque-
positivos dos manuais ológica depende do sistema de registro adotado
e sua relação com o discurso arqueológico,
O emprego da técnica fotográfica – tradicio- subordinando-se aos propósitos, interesses e
nal, digital, instantânea, entre outros –, quer pelo funções desse mesmo discurso. Essas imagens
arqueólogo ou fotógrafo técnico especializado, constituem informação, prova, registro, ilustração,
busca uma variedade de propósitos. As imagens testemunho visual de um fato arqueológico.
produzidas constituem meios ou fins de etapas Os registros fotográficos são fixos, mas com
dentro da pesquisa, durante uma escavação, diversidades de interpretações tantos quantos
análises laboratoriais e musealização do conhe- forem seus interpretantes. A análise e a inter-
cimento arqueológico, cumprindo a missão de pretação desses registros partem do pressuposto

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do entendimento dos significados do caráter o sujeito da observação. Este primeiro nível me-
múltiplo objetividade-prova e representatividade-sub- todológico permite o acúmulo de observações
jetividade que contém. Assim o universo real da qualitativas e sua determinação quantitativa
prática arqueológica de campo, impregnado das (ARENAS, 1986). Nesse sentido, as observações
diretrizes teóricas, passa a ser objetivamente repre- em Arqueologia devem estar imbuídas do co-
sentado pelo olhar do fotografo através da câmara nhecimento de que todo dado arqueológico se
e seu resultado mediante a ampliação das fotos manifestou em um espaço e tempo dados. Estas
em suportes sensíveis ou o seu processamento duas variáveis permitem estabelecer, para efeitos
digital e reconhecidos pelo olhar dos intérpretes. da observação, o conhecimento do movimento
Utilizar imagens como fontes fotográficas signi- e as interações de causalidade. Assim, observar
fica considerar o seu caráter de registro, relacio- dados arqueológicos pressupõe registrar as
nado à maneira como o arqueólogo documenta manifestações espontâneas dos fenômenos que,
o contexto arqueológico. A fotografia aqui está em suas relações ou associações contextuais, ma-
sendo considerada como artefato e registro nifestam uma temporalidade, uma espacialidade
visual de uma forma iconográfica empregada no e uma dinâmica próprias:
trabalho arqueológico. Para Boris Kossoy,
Ao obter e registrar seus dados em
[...] as imagens que contenham um campo, o arqueólogo destrói parte das
reconhecido valor documentário são evidências, não obstante a recrie em suas
importantes para os estudos específicos notas; entretanto esta recriação nunca
nas áreas da arquitetura, antropologia, corresponderá exatamente a realidade da
etnologia, arqueologia, história social e qual foi obtida. Ao não poder reprodu-
demais ramos do saber, pois representam zir fielmente a realidade observada, o
um meio de reconhecimento da cena arqueólogo produz alterações nos dados,
passada e, portanto, uma possibilidade referentes do processo que estuda (ARE-
de resgate da memória visual do homem NAS, 1986, p.17)
e do seu entorno sociocultural. (KOS- As perturbações ocasionadas durante a ob-
SOY, 1989, p. 35-36). tenção dos dados arqueológicos devem ser mi-
Nessa perspectiva, uma teoria não só confere nimizadas por meio das técnicas e instrumentos
qualidade ao dado, senão também permite de escavação adequados, registrando e quantifi-
reconhecer os vazios de informações existentes cando as modificações ocasionadas pela esca-
e as falhas e acertos presentes nas interpretações vação que serão posteriormente consideradas
realizadas dentro de marcos teóricos diferentes. no momento da análise dos resultados. Como
Serve para ordenar, classificar e comparar os da- princípios que norteiam a acumulação do dado
dos arqueológicos visando dar inteligibilidade aos empírico em arqueologia (LUMBRERAS, 1982).
vestígios arqueológicos, objeto da arqueologia. temos os meios de acesso ao objeto de estudo,
Entretanto, conforme a abordagem teórica e me- constituídos pelos equipamentos de medição e
todológica despendida num estudo arqueológico, os instrumentos para a escavação; um sistema de
as imagens podem se tornar não significantes no registro e a descrição detalhada de todos os aspec-
projeto científico em questão, mas significantes tos do processo de acumulação de dados.
para outros estudos de ciências correlatas, como As imagens feitas ou produzidas no passa-
a Antropologia Visual e a História. do e as imagens produzidas para reapresentar o
A Arqueologia, tanto quanto a Antropo- passado são igualmente difíceis de analisar. Para
logia – a Antropologia Visual – e a Etnografia Molyneaux (1997), é comum o uso de figuras
utilizam-se dessas duas categorias perceptivas na pesquisa acadêmica como auxílio as ideias ex-
para suas produções de conhecimento. Obser- pressas de outras maneiras. Imagens podem ser
var em arqueologia implica, segundo Arenas criadas com qualidades estéticas, mas tendem
(1986), em conhecer previamente o que se vai a ser re(a)presentações de ideias, ou ilustrações de
observar: é decidir, determinar qualitativamente eventos. Aquilo que cada figura comunica aos re-

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Arqueologia Visual: o Uso das Imagens Fotográficas na Produção do Conhecimento Arqueológico e Historiografia da
Arqueologia
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ceptores, a natureza de suas mensagens silencio- description. But the imperative remains, in
sas, raramente é discutido. As imagens possui- spite of any emphasis on photowork and
riam um poder e influência como depoimentos discourses of archaeology, to record and make
diretos sobre ideias sociais e relações, mensagens inventories. Her too new storage technologies,
visuais que podem ser vigorosas e distintas da- recording and retrieval systems are already
quelas contidas nos textos. No território da pro- having effect. Multimedia databases are now
dução de conhecimento arqueológico inúmeros cheap and efficient. Videos, still images, text,
manuais destacaram-se, entre os anos 1950 e sound, and graphics can all be combined
1990, no processo de direcionar a fotografia within the same coordinated recording system.
como auxílio dessa produção em campo ou no This has been much taken up in archaeology
laboratório, como os trabalhos específicos sobre already as an extension of conventional me-
a fotografia de arqueologia de Cookson (1954), thods (SHANKS, 1997, p. 92-99, 100-101)
Conlon (1971), Harp (1975) e Dorrell (1995).
Durante o tempo em que o arqueólogo
Manuais, abrangendo técnicas arqueológicas em
trabalha no sítio, vai naturalmente estudando
geral incluem seções sobre fotografia, como os
trabalhos de Heizer e Graham (1967), Barker fenômenos diretamente observáveis. Quando
(1977) e Joukowsky (1986). A fotografia repre- um contexto é totalmente escavado deixa de
senta na arqueologia a implementação da prática existir no sítio e passa a estar representado em
da conservação, do registro objetivo de campo e sistemas de registro, bancos de dados de ima-
de laboratório e da documentação com fins de gens e textos, para quaisquer revisões e análises
catalogação, divulgação e propaganda das pes- posteriores. Um contexto de escavação deverá
quisas arqueológicas. Mesmo o posicionamento sempre vir a ser uma representação arqueoló-
da câmera e a normatização do olhar para o gica, suficiente ou insuficiente, desse mesmo
registro fotográfico objetivo, a fotografia vertical contexto. Nessa perspectiva, Harp (1975) res-
e oblíqua, é uma preocupação recorrente em saltou importantes observações sobre o uso das
Barker (1977), reafirmando as prerrogativas de fotografias para a análise de coleções:
Cookson (1954) e Mathews (1968), retomadas In winder perspective, all stages of ar-
mais tarde por Pallestrini e Perasso (1984). Os chaeological analysis and interpretation can
primeiros questionamentos e problematizações benefit from the use of documentary specimen
sobre a produção e o uso das fotografias pela photography. If one needs to examine compa-
arqueologia advém dos estudos de Harp (1975) rative materials that happen to be stored in
e Shanks (1997). some institution half-way around the world,
A identificação de um potencial do traba- good photography will usually be an adequate
lho fotográfico de arqueologia serve ao relato substitute. Even in one’s own laboratory it
dos propósitos, interesses e funções dos discur- will sometimes be easier to work analytically
sos arqueológicos. Esse procedimento contri- from a bath of photographs than it is to
buiria as novas metodologias arqueológicas, manipulate a collection of specimens. This
preocupadas com a interpretação e compreen- consolidation and concentration of images
são dos remanescentes do passado. Quando os and information often saves time for the
catálogos de materiais arqueológicos contém research worker (HARP, 1975, p. 11)
muitas informações descritivas, com ilustrações
complementares de croquis, plantas e fotogra- Harp (1975) considerou as fotografias
fias de tipos de vestígios para comparações, arqueológicas como possuidoras de quatro
constituem instrumentos de pesquisa. Assim: propósitos básicos: o da aquisição e registro de
dados, análise e interpretação e para comunicações.
The visual is not merely illustrative. […] Suas funções específicas na obtenção de dados
Photographs and drawings of artifacts in a estariam na pesquisa e descoberta, análise
catalogue are there to provide information ambiental, fotogrametria e mapeamento. Como
which cannot be encapsulated in verbal registro de dados funcionaria como documen-

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tário operacional, registrando os trabalhos de análise e interpretação dos documentos visuais


campo e servindo a catálogos e arquivos. Com pode resultar em reformulações dos métodos e
objetivo de análise e interpretação prestar-se-ia técnicas de registro-documentação na disciplina
a análise de dados de campo e de coleções e arqueológica.
como comunicação seriam utilizadas em aulas, Determinado potencial informativo a ser
palestras e publicações (Quadro 2). identificado pela análise e interpretação dos
documentos fotográficos (KOSSOY, 1989, 1999)
produzidos na Arqueologia poderá ser assim
A fotografia como auxílio na produção do esquadrinhado (Quadro 3):
conhecimento arqueológico: os photoworks e Em decorrência das atividades de escavação,
seus potenciais as possibilidades de observação sistematizada
dos vestígios e estruturas arqueológicas, suas
O interesse em explorar as possibilidades relações, sua distribuição espacial e temporal
dos registros visuais produzidos em arqueologia tornam-se iminentes e logo originam certas
e examinar sua integração como evidência do categorias de documentos visuais representados
passado, entre outras formas tradicionais de pelas imagens fotográficas, fílmicas, eletrônicas
transcrever e transmitir informações arqueo- e informáticas. Entre os meios e instrumentos
lógicas, deve contribuir para a compreensão utilizados para gravar as impressões de deter-
arqueológica dos vestígios produzindo dados ar- minados momentos da escavação arqueológica
queológicos sob a forma de photowork, dentro podem, ainda, surgir os desenhos manuais
de um amplo sistema de registro. (croquis, planos e mapas), coloridos ou não, em
O estudo dos registros fotográficos deve es- associação com pequenos textos, constituindo
tabelecer um diálogo entre os trabalhos de cam- uma forma de nota arqueológica.
po e de laboratório, propondo possibilidades de Para Collier (1995), arqueólogos, em suas
interelação dos dados observáveis (da observa- necessidades de definir detalhes e precisar associa-
ção visual humana) entre o vestígio, os dados ções de materiais in situ, genuinamente estabelece-
escritos e os dados fotografados no contexto de ram três modos de uso científico das fotografias:
campo mediante um “alfabetismo visual”. A de- para mensurar, para contar e para comparar. Uma
tecção do estado desse “alfabetismo” através da escavação arqueológica – início de um processo

Fotografia arqueológica
Análise e inter-
Objetivos principais Obtenção de dados Registro de dados Comunicação
pretação

Pesquisa e descober- Documentário opera- Comunicações


Análise de dados
ta, análise ambien- cional, fotografia dos profissionais,
Funções específicas de campo, análise
tal, fotogrametria e trabalhos de campo, aulas, relações
de coleções
mapeamento catálogos e arquivos públicas

Ambientes Ártico, temperado, desértico, tropical, marinho


Métodos Aéreo, superficial, subaquático
Sistemas técnicos Câmera, lentes, emulsões, processamento
Escalas Macro, micro
Modos Plano, estereoscópico
Audiências Pessoais, profissionais, para estudantes, palestra pública

Quadro 2: Elementos da prática fotográfica na pesquisa arqueológica, segundo Harp (1975)

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Arqueologia
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Quadro 3: Fluxograma representando o processo de produção, análise, interpretação e uso dos documentos
fotográficos em arqueologia.

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que resulta em grandes acúmulos de dados não serem projetadas na forma de slides em palestras,
utilizados, com efeitos paralisantes – necessaria- aulas, elaboração de catálogos para consulta e
mente perturba muitos aspectos de um sítio. Sen- ilustrações, exposições museológicas, entre ou-
do assim, as fotografias arqueológicas constituem tros fins. Essas imagens são, geralmente, usadas
documentos para refinadas comparações possíveis para registrar, documentar e ilustrar o que a escava-
durante a escavação ou, anos depois, em análises ção ofereceu. Os manuais de fotografia arqueo-
de laboratório (os estudos de coleções ). lógica ensinam como obter registros precisos ou
Os documentos fotográficos em Arque- satisfatórios e funcionais, explorando questões
ologia, referentes aos vestígios escavados em técnicas, para servir, inicialmente, como meios
determinado sítio podem ser separados em dois e não como fins. Como meios prestam-se como
grupos e ocorreriam em momentos de espaço e registros objetivos, demonstrando e representan-
tempo distintos: do o objeto fotografado. Michael Shanks, então
a) Fotografias de campo11: são aquelas arqueólogo do Department of Archaeology da St
produzidas pelo arqueólogo e/ou fotógrafo da David’s University College, escreveu um texto pri-
equipe e estão relacionadas com o registro, a mordial e introdutório (SHANKS, 1997) sobre a
documentação. A notação dos vestígios em seu relação entre Arqueologia e fotografia que difere
contexto de escavação, na matriz de sedimento daqueles dos manuais de fotografia arqueológica
em que estão amalgamados. Ainda referem-se a que são apresentados neste artigo.
vegetação que recobre o sítio, sua morfologia, b) Fotografias de laboratório: são aquelas
aspectos geológicos, zoológicos, humanos, a produzidas pelos fotógrafos e/ou arqueólogos
própria equipe da escavação e os habitantes em ambiente com iluminação artificial e con-
da região. Podem ser verticais ou oblíquas, de trolada. O uso de escalas métricas ou numéricas
acordo com o posicionamento e orientação da acentua o caráter de objetividade desse registro.
lente (seu eixo maior) em relação ao plano da su- O assunto fotográfico, assim como nas fotogra-
perfície a ser fotografada. As fotografias oblíquas fias de campo, torna-se possuidor de referências
relacionam-se às notas e observações pessoais do de proporção métrica linear com o seu referente
arqueólogo, enquanto que as verticais prestam- fotografado, mesmo que a escala não se mante-
-se ao registro objetivo para fins de documentar nha constante devido as distorções causadas pelo
os achados, servindo à elaboração de croquis próprio registro óptico. É forçada a relação de
de laboratório, fotointerpretação( no caso das semelhança com o real a fim de tornar a imagem
aerofotografias e do método da estereoscopia) o mais natural possível, objetiva, isto é, um
e fotoidentificação (as sombras saturadas bem registro científico. Uma vez em laboratório, as
como as luzes intensas desgastam o seu caráter dificuldades de controle de luz e sombra passam
objetivo). As fotografias verticais e as oblíquas a ser outras. Os objetos posicionados e esquadri-
podem ser obtidas em close-up, representando o nhados para o seu novo registro, o fotográfico,
objeto nas escalas de 1:10 a 1:112. Servem para funcionam como verdadeiros moduladores da
usos em publicações científicas, jornais, para luz artificial incidente, manuseados pelo fotó-
grafo , bem como pelo arqueólogo, na busca da
volumetria, dos contornos, dos sulcos, texturas e
cores. A objetividade do registro está na superfí-
(11) São três as categorias de fotografias requeridas para os cie fotograficamente bem representada (próxima
registros fotográficos de uma escavação: a vertical e a oblíqua, do real, mais semelhante possível ao referente).
em preto e branco e em cores, objetivando complementar os
As fotografias obtidas em laboratório podem
desenhos dos planos e das secções; as transparências colori-
das para aulas e palestras e fotografias, ambas do sítio e dos ser verticais ou oblíquas, macrofotografias13
achados, servirão para ilustrar uma publicação eventual sobre
a escavação, segundo Barker (1977, p. 157-160).
(12) Viabilizada por meio de lentes e extensores, esse tipo de (13) Fotografia de objeto pequeno, em tamanho maior que o
fotografia tem sido empregado tanto em campo quanto em natural (1:1 a 50:1). São fotografias em close-up, tiradas dentro
laboratório e museus por arqueólogos e conservadores como de uma faixa de ampliações que abrange desde o tamanho
notas de escavação, em bancos de dados sobre determinados natural até dez vezes essas dimensões. Esse tipo de fotografia
objetos expostos nas vitrines, em catálogos e nas análises e foi descrito por Lefkowitz (1979) e no manual da Eastman
obtenção de fotografias em infravermelho e ultravioleta. Kodak Company, de 1977.

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Arqueologia
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ou microfotografias14, sinaléticas, infraverme- seus novos suportes, seria necessária uma inter-
lhas, de Raios –X, digitais, espectroscópicas e -relação de documentos (orais, textuais, visuais),
estereoscópicas. como os arquivos fotográficos, os cadernos
Assim, os documentos do “grupo a” referem- de campo e demais registros pertencentes aos
-se as representações fotográficas cujos referentes próprios autores ou as instituições pelas quais
estavam sofrendo ações sistemáticas de desman- publicaram seus artigos.
telamento , desarticulação e desenterramento Entretanto a bibliografia teórica sobre
ocasionados pelas atividades da escavação. Deste interpretação de fotografias é escassa (desconsi-
modo, relacionam-se diretamente à realidade derando as aerofotografias, fotografias de raio-X)
mesma do contexto arqueológico de acordo . Existem poucas publicações sobre metodolo-
com os métodos e técnicas de escavação (abor- gias de análise de fotografias como os trabalhos
dagem arqueológica) adotados. As fotografias de de Vilches (1987) e Lima (1988), ambos volta-
laboratório (ou estúdio) prestam-se a representa- dos ao estudo das produções fotojornalísticas;
ção visual do referente fora do seu contexto. É de Collier (1995), sobre a produção e uso das
criado um contexto laboratorial, museológico, fotografias nas pesquisas antropológicas e o
para o mesmo. potencial de interpretação simbólica das fotogra-
Estes grupos de imagens, ao serem estuda- fias de arquivos pessoais, discutido por Lacerda
dos enquanto photoworks , intimamente relacio- (1993). A maior parte da bibliografia refere-se ao
nados a construção do conhecimento arqueo- estudo de técnicas da fotografia que reconstitui
lógico, constituiriam o próprio objeto de uma a sua história. São comuns os estudos que uti-
Arqueologia através das imagens, Arqueologia lizam a fotografia como ilustração para reforçar
Visual. O estudo desses documentos fotográficos o conteúdo do texto e os estudos que partem
através de estratégias de recepção por interpreta- da utilização das fotografias como objeto de
ções controladas (KOSSOY, 1999) constituiria o trabalho, restringindo-se a narrar e a descrever
fazer dessa modalidade de Arqueologia. esses documentos visuais.
O esquema acima acresce à Arqueologia O processo de identificação dos detalhes
outra modalidade metodológica e técnica, icônicos fotográficos, ou a forma sistemática de
relacionada ao estudo das imagens por ela observar e identificar eventos em uma fotogra-
produzidas, assim como pelos grupos humanos fia, pode estar relacionado aos preceitos de divi-
extintos. A cultura material dos grupos estuda- são do campo fotográfico sugeridos por I Lima
dos passaria ao domínio das demais subdivisões (1988). Essa forma de esquadrinhar a superfície
da Arqueologia. A Arqueologia Visual estaria do documento fotográfico com a finalidade
interessada, por exemplo , nas relações entre de situar e identificar visualmente os detalhes
fotografia e arqueologia , iconografia e arque- icônicos a serem examinados constitui um es-
ologia, necessitando de abordagens multidisci- quema de observação útil à Arqueologia Visual.
plinares no campo da percepção visual humana A fotografia pode constituir ainda, uma fonte
e da semiótica. Acervos fotográficos de antigas imediata de informação ou documento para
escavações prestam-se a testar as hipóteses posteriores interpretações e usos. Trabalhos que
referentes a importância da Arqueologia Visual buscam a relação entre a fotografia documental
e sua viabilidade. e a investigação etnológica, procurando confron-
Para a decodificação das informações tar maneiras de apreender o mundo pela arte e
contidas nos documentos fotográficos e em pela ciência, unindo segundo Maresca (1998),
a criação ao rigor documental representam
uma perspectiva da produção do conhecimen-
(14) São obtidas com a câmara acoplada a um microscópio e to antropológico. Entretanto, a arqueologia
representam os objetos entre as escalas 25:1 a 1500:1. Equivalen- pode utilizar dessas mesmas prerrogativas para
te à fotomicrografia, é também entendida como técnica usada a análise crítica de sua construção científica.
para a reprodução de documentos e materiais afins, em filme de
A arqueologia busca estabelecer um caráter de
formato extremamente reduzido, possibilitando a armazenagem
de uma grande quantidade de informações em pouco espaço. cientificidade ao seu objeto de estudo, no qual,

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a fotografia, como documento, aporta parte de lada, o tempo é restrito as vistas e os detalhes
um sistema de registro que auxilia nessa busca. são escolhidos de acordo com o momento da
Um segundo recurso, o da interpretação escavação. Representar o contexto arqueoló-
iconológica que possa ocorrer em conjunto com gico, da escavação, ou mesmo os vestígios em
o decorrer da análise iconográfica, diz sobre o laboratório, constitui uma atividade difícil, que
contexto histórico do próprio assunto repre- depende de um “alfabetismo visual” relacionado
sentado. Através de uma iconologia da imagem à arqueologia e seus problemas. As fotografias,
(interpretação que depende do imaginário do juntamente com os instrumentos de escanea-
próprio receptor) são buscados significados mento laser 3D representam sistemas de registro
referentes à primeira realidade fotográfica, ao possivelmente mais eficazes em campo. No
referente, ao processo criativo e dos procedi- laboratório, imagens tomográficas 3D e o regis-
mentos científicos e as condições ideológicas, tro de informações dos espectros ultravioletas
culturais, técnicas e estéticas que o recompuse- e infravermelhos representam novas formas de
ram em objeto fotográfico. A primeira realidade observar os materiais arqueológicos.
está nos métodos e técnicas empregados para a As fotografias obtidas nessas circunstâncias
escavação, seus objetivos e justificativas. possuíram um caráter científico desejável às
Para uma interpretação iconológica das escavações sistemáticas. Outra forma de buscar
fotografias convém recuperar os propósitos das elementos para a interpretação iconológica esta-
escavações, seus motivos geradores e a importân- ria na pesquisa das recomendações dos manuais
cia do registro visual dos referentes, dos objetos de arqueologia de campo e de fotografia arqueo-
e suas situações. lógica que foram utilizadas pelos pesquisadores
Uma vez evidenciados e exumados os vestí- que poderiam estar refletidas nos seus registros
gios estes podem ser fotografados com diversos fotográficos. Estes, quando são usados para aná-
recursos tecnológicos e mesmo refotografados lise do dado de campo, aplicam-se nos estudos
– impressos sobre papel ou não. Esses vestígios indiretos do fenômeno observável do contexto
estão disponíveis à representação fotossensível: arqueológico. Uma vez terminada a escavação,
in situ podem ser registrados com restrições e qualquer recorrência a esses dados, implica na
dificuldades – a luz solar nem sempre contro- dependência do arqueólogo em relação aos

Fig. 4: Régua exploratória de Plecy aplicada sobre fotografia de enterramento do sítio Tenório. Destaque para a
possibilidade de situação dos dados do enterramento.

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Arqueologia
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Figura 5: Réguas quadriculadas sugeridas para auxiliar durante o processo de obser-


vação da imagem. Sobrepostas à fotografia, ajudam a localizar de maneira sistemática
cada elemento construtivo do tema fotografado. Assim, torna-se possível localizar
um acompanhamento funerário, entre outros, a partir de sua plotagem na régua.

registros fotográficos. Esses fornecem imagens corpos – é a expressão dos acontecimentos, é a


estáticas da pesquisa de campo, momentos está- fotografia-expressão. Concordamos com Rouillé
ticos da experiência visual que restou analisar e (2009) quanto ao contexto da transformação do
interpretar. O exame visual direto das fotografias mundo das substâncias, coisas e corpos em um
de campo e laboratório, com o auxílio de réguas mundo de acontecimentos, de incorporais. A
auxiliares sugerido por Lima (1988) e Vilches sociedade industrial passa a uma sociedade da
(1987) constitui um dos recursos para o estudo informação, a qual:
dessa categoria de documentação arqueológica
[...] se estende ao ritmo das redes
que compõe um photowork. (Cf. Figuras 4 e 5).
digitais de comunicação, age profunda-
mente sobre o conjunto das atividades,
particularmente sobre as práticas e as
Considerações finais: a necessidade de uma
imagens fotográficas, segundo processos
Arqueologia Visual
muitas vezes subterrâneos e silenciosos,
mas que colaboram para o esgotamento
A relação profunda do registro fotográfico
da fotografia-documento (ROUILLÉ,
arqueológico com os valores, paradigmas técnicos,
2009, p. 187)
físicos e econômicos, teóricos e perceptivos da
sociedade industrial contemporânea – segundo Nessa perspectiva, a fotografia arqueológica
Rouillé (2009) – determinou, evidentemente, encontra-se no limiar entre a fotografia-documento
o desenvolvimento e a involução da fotografia e a fotografia-expressão, já explorada pela Antropo-
tradicional quando do surgimento da sociedade logia Visual há algumas décadas, considerando
da informação. as resistências e inovações no uso do dispositivo
A fotografia-documento que engloba e expri- fotográfico na ciência arqueológica. A fotografia-
me um acontecimento – e não apenas designa -expressão, ainda com finalidade documental,

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Daniela Cisneiro

somente propõe vias indiretas de acesso às dispositivo fotográfico, são essenciais na configu-
coisas, fatos e acontecimentos. Assim, construir ração desta nova área da arqueologia. Os filmes
novas visibilidades implica na revisão dos regis- de exposição, exploração e avaliação (PESSIS,
tros diretos, objetivos e exatos insatisfatórios. 2000) são recursos da Antropologia Visual que
No contexto da arqueologia moderna o desafio se enquadram perfeitamente no universo da Ar-
está em equilibrar o dispositivo fotográfico na queologia (PESSIS, 1982, 1986), servindo como
tríade documento/expressão/arte na sociedade documentos importantes na análise da constru-
da informação, pós-industrial. O novo meio de ção do conhecimento científico arqueológico.
produção e divulgação da fotografia arqueológi- Na arqueologia, as fotografias constituem
ca é digital, na tela do computador e aparelhos apoio técnico, de modo algum recente nessa ciên-
correlatos, com áreas de circulação em rede, cia, para o registro ou identificação de contextos
implicando na severa desterritorialização da e artefatos, ou também, para fornecer cenários
fotografia na medida em que o seu acessar é ilustrativos para exposições museológicas. A foto-
globalmente instantâneo. Como um documen- grafia tornou-se uma documentação de momen-
to na produção arqueológica tradicional, as foto- tos específicos, recortes de tempo-espaço do sítio
grafias em suportes multicompostos apresentam arqueológico em processo de escavação e dos
um potencial de análise, interpretação e circula- vestígios encontrados. Conforme esse olhar, a:
ção amplo e algumas vezes surpreendente.
Uma Arqueologia Visual na perspectiva “[...] arqueologia depende essencial-
similar à da Antropologia Visual torna-se neces- mente de uma minuciosa documentação
sária como uma área da arqueologia vinculada com fotografias, plantas, gráficos, plota-
ao estudo das imagens fotográficas, fílmicas, em ções, etc. para o acompanhamento do
suportes variáveis, conquanto esteja vinculada à processo de trabalho, já que a escavação
historiografia da arqueologia ou a uma história é, simultaneamente, a destruição do sítio
da produção do conhecimento arqueológico. arqueológico” (MAGNI e BRUSCHI,
Os conceitos de photowork, sistema de registro, 1998, p. 189).

Fig. 6: Fotografia oblíqua geral de parte do setor já limpo e quadriculado (de leste para oeste), com as
quadras 45 a 48 e 24 a 27 desbastadas e separadas por divisórias que preservam os perfis laterais das
mesmas. Sítio Tenório, Ubatuba, SP, 1970. (Fonte: MAE - USP, 2001)

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Arqueologia Visual: o Uso das Imagens Fotográficas na Produção do Conhecimento Arqueológico e Historiografia da
Arqueologia
R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 22: 137-156., 2012.

Além desse caráter de documentação do práticas estéticas e novas relações com o tempo
objeto de estudo arqueológico, as fotografias remodelaram o modo de ver o ato fotográfico na
retêm, em seu arcabouço de registro, informa- arqueologia. O estudo das imagens produzidas
ções que podem ser explorados para a análise pelos arqueólogos sobre os seus objetos/sujeitos
da própria construção e evolução da ciência representam um fazer específico que caracteriza
arqueológica. Novos regimes de verdades, uso uma parcela da área correlata à Antropologia
de imagens e múltiplos conhecimentos técnicos, Visual: a Arqueologia Visual (Cf. Figura 6).

SILVA, S.F.S.M.; MÜTZENBERG, D.; CISNEIROS, D. Visual Archaeology: The use of


Photography in the production of Archaeological knowledge and to the History of
Archaeology. R. Museu Arq. Etn., São Paulo, 22: 137-156, 2012.

Abstract: This paper presents perspectives for the study of visual data
produced by archaeologists during their research. The conscious use of photo-
graphic images as variations of a broader archaeological record system, inclu-
ding its systematic production, dissemination and context in the production of
scientific knowledge are reviewed in this preliminary study. From the earliest
archaeological photographs produced in the nineteenth century, scientific
catalogs and manuals, and until recently, with the accelerated development of
digital technologies to capture and produce visual images of old photoworks
with analytical potential and interpretive perspectives, this work contributes to
the understanding about the scientific use of field and laboratory photographs
with its relationship with the historiography of archaeology with contribution
to Visual Archaeology.

Keywords: Visual Archaeology, Archaeological record, Archaeological


Methodology, Photography, Historiography of Archaeology

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