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A democracia é possível?

Relações entre racismo e neoliberalismo na filosofia de Mbembe

Renato Noguera

Sem dúvida, Achille Mbembe é um dos mais instigantes pensadores


contemporâneos, herdeiro de Franz Fanon, leitor de Michel Foucault e de Gilles
Deleuze, o filósofo camaronês traz uma tese original: o neoliberalismo é uma reedição
da escravização negra moderna. Essa formulação pode até soar inquietante. Mas, uma
das teses mais interessantes de Mbembe está numa argumentação que situa radicalmente
a escravização dos povos africanos como a condição de possibilidade do capitalismo
moderno (liberalismo) e o advento do capitalismo contemporâneo (neoliberalismo)
como um projeto de revitalização da própria escravização. Se no capitalismo moderno
tínhamos dois tipos de pessoas: donas do meio de produção e trabalhadoras. No
capitalismo contemporâneo existe um terceiro tipo: especuladoras do sistema financeiro
(rentistas). Ora, para que esse tipo de personagem do sistema capitalista exista é preciso
usar e explorar as pessoas trabalhadoras tal como se escravas fossem. Conforme
Mbembe (2014), o neoliberalismo é um momento da história da humanidade em que
todos os acontecimentos passam a ter valor de mercado. Uma época em que o tempo,
por mais curto que seja, passa se converter em força reprodutiva da forma-dinheiro.
Mbembe argumenta que no contexto neoliberal o sujeito “está aprisionado no
seu desejo” (MBEMBE, 2014, p.15). Pois bem, trata-se daquilo que podemos
denominar de um sujeito neuroeconomico, isto é, uma pessoa que precisa publicar sua
vida íntima como moeda de troca no mercado da “felicidade” – o que explicaria o
fenômeno das redes sociais em que as fotos estão repletas de sorrisos. Outro modo de
entendermos o sujeito neuroeconomico é associando-o à figura da pessoa negra
escravizada. Eis a hipótese, o sujeito neuroeconomico do neoliberalismo é uma reedição
da mão de obra negra que ergueu possibilitou que a Europa acumulasse excedente
descomunal e fez com que as elites eurodescendentes da América concentrassem o
capital. Tal como a pessoa escravizada, o sujeito neuroeconomico vive entre dois
mundos: animalidade e coisificação. Por um lado, busca realizar seus desejos primários
de alimentação, excreção, sono e sexo. Por outro, a sua transformação consentida em
ferramenta de um sistema. Não é de estranhar que uma forma de entender melhor o
sujeito da neuroeconomia esteja justamente em sua dupla injunção de coisa e animal.
Sem dúvida, o racismo e a escravização que criaram as condições suficientes para
implementação da raça negra como sinônimo de elo perdido da evolução humana. O
darwinismo em suas primeiras versões intensificou a ideologia da África como território
dos quase-humanos. O que, em termos políticos e econômicos, significou dizer: corpo-
moeda, corpo-mercadoria e corpo-ferramenta. Essas três caracterizações foram
assumidas pelo neoliberalismo como a oportunidade de implementação radical da
liberdade de mercado. Em certa medida, uma imitação, ou melhor, adaptação do sistema
escravocrata racista que vigorou nos países da América até o século XIX. O projeto de
dominação europeu-branco (ou branco-europeu) produziu o racismo moderno como um
discurso para justificar a exploração da população negra como mão de obra, o
extermínio dos povos indígenas da América o quanto fosse possível e a ocupação
“redentora” do novo mundo como modelo de gente. Ora, o racismo contemporâneo do
contexto neoliberal está dizendo que a população negra não é suficiente para o trabalho.
O racismo continua; mas, sua extensão parece de curto alcance para garantir a
especulação do mercado financeiro.
A partir dessas considerações podemos entrar num aspecto do pensamento
mbembeano que merece destaque neste artigo: a democracia e o neoliberalismo são
inconciliáveis. A democracia só é viável se o racismo for combatido radicalmente. Daí,
o título-pergunta: “a democracia é possível?”. Nossa conjectura mbembeana, a
democracia só será possível com o fim do racismo. Mas, como o racismo não é um
sistema que se elimina com “boa consciência”, “boa vontade” ou “boas intenções”.
Numa análise de conjuntura mundial podemos especular que o racismo deve ser
aprofundado, expandido e cada vez mais criativo novos códigos e formas novas.
Portanto, o maior obstáculo à democracia é o racismo.
Vale a pena situar o que entendemos por democracia. A história da democracia
remontaria à Grécia antiga e sua consolidação estaria na modernidade no contexto de
emergência do iluminismo. Em termos gerais, um regime político que se opõe ao
autoritarismo. Vale a pena mencionar o historiador africano do tronco linguístico bantu,
o angolano Patrício Batsîkama publicou Lûmbu: a democracia no antigo Kôngo (2014).
Os estudos de Batsîkama apresentam o Lûmbu como a instituição máxima da antiga
Confederação do Reino do Congo que se subdividia, já no século 5º Antes da Era
Comum, em quatro órgãos. Pois bem, o Lûmbu previa uma assembleia consultiva para
execução do poder. Em certa medida, a antiga Confederação do Congo – mais
conhecida como o Reino do Congo – e Grécia antiga convergem na postulação de um
princípio formal da cidadania – elemento fiador da democracia. Democracia seria
justamente o exercício do poder sem que os grupos políticos e instituições fossem
constituídos por raças. A partir desse ponto de vista, o racismo é o rival estrutural da
democracia, o discurso racial e suas implicações corroem e destroem a possibilidade do
regime democrático. Em poucas palavras, a democracia e o racismo são incompatíveis.
Conforme Mbembe, a identificação da ideia moderna de democracia com o
próprio liberalismo traz uma inconveniente aproximação do projeto de globalização
comercial que precisa produzir e manter centros e periferias, sem perder de vista o
modelo escravocrata em que a racialização da humanidade é indispensável para o
sucesso do projeto. A insuperável contradição imposta à democracia é justamente a
importação de elementos que a desestabilizam. Esses elementos são justamente os
aspectos que constituem o racismo. Por isso, consideramos importante criticar a tomada
da razão mercantilista como lógica da democracia. Afinal, no contexto dessa
racionalidade o mundo seria uma superfície para livre concorrência e competição.
Pois bem, a partir das contribuições mbembeanas, conjecturamos que a
democracia só é possível um combate ao racismo em todas as suas frentes. Vale
ressaltar que Mbembe é herdeiro de Fanon. Os “condenados da terra” continuam
existindo e são indispensáveis para a manutenção da “democracia” que se traduz como
neoliberalismo. Diante do controversíssimo projeto de civilizar o mundo da Europa e
das relações assimétricas de poder com as elites africanas; o pensador camaronês esteja
sugerindo que a população negra mundial, assim como os povos indígenas, abandone o
estatuto da vítima (o que não podemos confundir com vitimização) e a população
branca deixe de negar os privilégios e a responsabilidade histórica. Daí, as reflexões de
Mbembe trazerem duas categorias analíticas para a cena da democracia: reparação e
restituição. Em outros termos, a democracia só é possível mediante os esforços de
reparar e restituir. A liberdade não é uma lei natural que o mercado e a humanidade tal
como princípios sobrenaturais; a liberdade, no contexto democrático, só é possível
superando o racismo num exercício profundo e generoso de restituir e reparar as
condições de bem viver para todas as populações que têm sido historicamente
zoomorfizadas.

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