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AS CARTAS DE ABELARDO E HELOÍSA: ENTRE PAIXÃO E RAZÃO


SILVA, Pedro Rodolfo Fernandes da (UFAM)

Introdução
Passaram-se quase nove séculos do romance entre Abelardo e Heloísa. A história
do affair se assemelha a muitas outras aventuras amorosas: a atração, o envolvimento, o
flagrante, a gravidez inesperada, o casamento secreto, a separação dos amantes, a
punição imposta ao sedutor e, por fim, o recolhimento de ambos na vida monástica. Fim
trágico. Mas talvez muito próximo, guardadas as devidas proporções, de outros tantos
romances legados pela história.
Fosse somente por conta dos elementos elencados acima, provavelmente em nada
esse romance se destacasse de tantos outros. Mas há motivos que o fazem único.
Motivos estes que tem recebido a atenção de estudiosos de vários ramos da ciência:
filósofos, literatos, cientistas sociais, historiadores, etc. Sejam quais forem os interesses
e as motivações dos estudiosos, é certo que o romance retratado nas cartas proporciona
o conhecimento de um modo de se compreender a relação entre razão e paixão, além de
oferecer um excelente retrato de época.

As Cartas
As origens do romance foram legadas pelo próprio Abelardo em sua Historia
Calamitatum (História das minhas calamidades), escrita provavelmente em 1132. Com
a intenção de confortar um amigo anônimo que passava por provações, Abelardo narra,
numa espécie de autobiografia, suas próprias desventuras, pois assim aquele ao
comparar suas provações a deste, poderia sentir-se consolado ante as vicissitudes da
vida. A Historia Calamitatum pode ser vista como uma autêntica apologia pro vita sua
ou como um astuto exercício de romance histórico, pois este documento definiu,
inevitavelmente, a percepção do caráter e da personalidade de Abelardo.
Tal texto faz parte de uma coletânea de cartas que compõe a correspondência, que
inclui ainda: uma Consolatio (carta de Heloísa a Abelardo, escrita depois que esta
tomou conhecimento da Historia Calamitatum); uma série de três cartas (de Abelardo a
Heloísa; de Heloísa a Abelardo e novamente de Abelardo a Heloísa); outras três cartas
escritas por Abelardo para orientar Heloísa e demais religiosas sob sua direção no culto
2

divino no mosteiro do Parácleto; por fim, uma regra também escrita por Abelardo para a
organização da vida religiosa das monjas sob a autoridade da abadessa Heloísa.
Quanto à datação e o contexto das cartas, as datas mais prováveis são os anos de
1132 a 1137. Heloísa, já no mosteiro do Parácleto, após a História das Minhas
Calamidades chegar às suas mãos, escreve a Abelardo reclamando uma atenção deste
que dispõe de tempo para escrever a um amigo, mas negligencia no cuidado necessário
à orientação das religiosas que reuniu e que lhe são como filhas. Abelardo, por sua vez,
em 1132, era abade no mosteiro de São Gildas, onde passou por outras provações
devido à vida corrupta que os monges, sob sua administração, cultivavam.
Com relação à autenticidade das cartas, parece fora de contestação a autoria da
História das Minhas Calamidades – disso não se segue, necessariamente, que Abelardo
apresenta um relato factual e objetivo da sua experiência ou das suas relações com
Heloísa. As demais cartas, sobretudo as que são atribuídas à Heloísa, foram motivo de
inúmeras controvérsias e, até hoje, não há um consenso sobre tal. Apesar das recentes
pesquisas1 realizadas após a publicação do primoroso estudo de Gilson, este ainda
continua se colocando como muito plausível:

A correspondência de Heloísa e de Abelardo está aí, diante de nós, como um


fato que podemos glosar ao infinito e cuja origem se presta às hipóteses mais
diversas. Muitas foram feitas e certamente muitas outras serão feitas; porém,
a mais convincente e a mais sábia de todas consiste ainda em supor que
Heloísa seja autora das cartas de Heloísa, Abelardo, o autor das cartas de
Abelardo, e Heloísa, a provável editora do conjunto da coletânea2.

A história do Romance
Em linhas gerais, a história se passa do seguinte modo. Abelardo, por volta de
1115, então com 36 anos aproximadamente, gozava de excelente reputação como
professor em Paris, ao mesmo tempo em que já angariava certas inimizades resultantes
de sua postura intrépida frente a seus antigos mestres, notadamente Guilherme de
Champeaux e Anselmo de Laon. Apesar de ter abandonado completamente a corte de
Marte para se recolher no regaço de Minerva e ter preferido a dialética e seu arsenal em

1
WETHERBEE, 2004, p. 46-7, menciona David Luscombe e Peter Dronke como dois recentes estudiosos
que reforçam a autenticidade das cartas.
2
GILSON, 2007, p. 196.
3

detrimento das armas de guerra3, Abelardo dotou as disputas dialéticas do espírito


beligerante.
Assim, se de um lado se destacou inicialmente na Filosofia e depois na Teologia
por conta de sua perspicácia e argúcia dialéticas, de outro, seus infortúnios foram se
acumulando à medida que o número de seus detratores aumentava.
É neste contexto de glória e fama, mas também de perseguições, que Abelardo
toma conhecimento da existência de uma jovem em Paris, Heloísa, sobrinha de um
cônego que a amava com ternura e que nada havia poupado para lhe dar uma educação
refinada. Afirma Abelardo que ela era bastante bonita e a extensão de sua cultura
tornava-a uma mulher excepcional4.
Utilizando-se de amigos comuns, Abelardo se faz apresentar a Fulberto, tio de
Heloisa, planejando se aproximar da jovem pela qual se sentia atraído. O plano não
encontrou resistência por parte do tio de Heloísa, pois este estava por demais desejoso
em ver a sobrinha progredir nos estudos. Associado a esse desejo, a confiança de
Fulberto era tamanha que em pouco tempo Abelardo tornara-se soberano na instrução
de Heloísa, a ponto de ter acesso à residência da jovem, a qualquer hora do dia ou da
noite, onde as aulas deveriam acontecer. O próprio Abelardo, diante da exacerbada
confiança do tio de sua amada, assim se pronuncia:

A ingenuidade do ancião me deixou estupefato. Eu não me recobrava do meu


espanto: confiar assim uma terna ovelha a um lobo esfaimado! Encarregou-
me não apenas de instruí-la, mas de castigá-la sem reservas [...]5

Além da intenção e do desejo de Abelardo, a ocasião era a mais favorável


possível. Como não consentir naquilo que a natureza arrasta inexoravelmente? No Scito
te ipsum, Abelardo questiona: “Quem presumirá chamar de culpa a essa deleitação que
a natureza tornou necessária?6 A diferença é que aqui, ele o reconhece7, o consentimento
e a intenção se fizeram presentes.

3
ABELARDO, EP I, 2002, p. 30. Considerando que a tradução aqui utilizada diz respeito ao conjunto das
cartas: CORRESPONDÊNCIA DE ABELARDO E HELOISA. Apresentação de Paul Zumthor e
Tradução de Luciana Martins. São Paulo: Martins Fontes, 2000; adotar-se-á a seguinte regra: EP I
(Epístola I), para a Historia Calamitatum, de Abelardo; EP II, de Heloísa para Abelardo; EP III, de
Abelardo para Heloísa; EP IV, de Heloísa para Abelardo e EP V, de Abelardo para Heloísa,
conservando-se, na sequência, o ano e a página da referida fonte.
4
ABELARDO, EP I, 2002, p. 39.
5
Ibidem, p. 41.
6
ABELARD, 1971, p. 20.
7
ABELARDO, EP V, 2002, p. 140.
4

Pelo que segue, as lições entre os enamorados não tardaram a ignorar os livros e
se voltar aos prazeres amorosos, de modo que quanto mais experimentavam esses
prazeres, mas os prolongavam fervorosamente. Nas palavras de Le Goff, “entre o
mestre e a aluna é o amor à primeira vista: comércio intelectual, sem demora comércio
carnal8”. Heloísa é demasiado jovem, muito inocente e extremamente enamorada para
compreender que a chegada de Abelardo sob seu teto é o resultado de cálculos bastante
mesquinhos e que a ele não anima um sentimento da qualidade do dela9.
A situação ficou insustentável. Afirma Abelardo que a paixão voluptuosa que
sentiu o tomou completamente, de modo que negligenciou a filosofia e abandonou sua
escola, causando várias queixas de seus alunos10. Aquele Abelardo racionalista,
dialético, intrépido e beligerante havia baixado a guarda para os prazeres da carne.
Os cursos e os estudos, até então suas únicas paixões, há muito não o entretinham
mais. Pelo contrário, entediavam-no e fatigavam-no. Seu único prazer estava em
entreter-se com Heloísa e em escrever versos cantando a beleza da amada. “Em lugar de
comentar Aristóteles e a Bíblia, ele compõe canções em honra a Heloísa. Enfim, de
filósofo e teólogo, torna-se poeta, e ele próprio tinha bastante discernimento para não
considerar essa mudança como um progresso11”
Tal mudança repentina no comportamento de Abelardo não passaria muito tempo
despercebida. Primeiro os alunos e, apesar da proximidade com os acontecimentos, só
bem depois Fulberto. Recordando São Jerônimo, o qual afirma que “somos sempre os
últimos a conhecer as chagas de nossa casa e, enquanto todos os vizinhos se riem dos
vícios dos nossos filhos, das nossas esposas, somente nós os ignoramos 12”, Abelardo
sabia que não tardaria para que a verdade viesse à tona. A consequência do escândalo
foi a separação dos corpos, o que fez com que os corações se aproximassem ainda mais.
Pouco tempo após a descoberta do mal feito, Heloísa escreve a Abelardo
comunicando-o da gravidez. Abelardo, por sua vez, aproveita a ausência de Fulberto e
resolve raptar Heloísa e enviá-la para a casa da irmã dele, na Bretanha, onde nasceria
Astrolábio. Quando o tio da jovem toma ciência do seu rapto, aflige-se a ponto de beirar
à loucura. Abelardo decide então procurá-lo, prometendo reparar sua ação desposando
Heloísa com a única condição de que o casamento fosse mantido em segredo.

8
LE GOFF, 2003, p. 63.
9
Cf. PERNOUD, 1973, p. 55.
10
ABELARDO, EP I, 2002, p. 42.
11
GILSON, 2007, p. 34.
12
ABELARDO, EP I, 2002, p. 42.
5

A confidencialidade do casamento exigida por Abelardo ensejou as mais variadas


especulações por parte de vários estudiosos. Gilson é um dos que se coloca a refletir
sobre a razão dessa exigência de Abelardo. Em resumo, alega Gilson que

[...] a decadência de sua sabedoria, Abelardo não irá divulgá-la e torná-la de


algum modo irrevogável ao estabelecê-la no estado matrimonial? Trata-se,
para ele, de escolher entre dois estados, um superior, aquele de clérigo, outro
inferior, o de homem casado. O clérigo, podia-se então ler no Corpus juris
atribuído a São Jerônimo, devia se dedicar inteiramente ao serviço divino, à
contemplação e à oração; ele devia, portanto, afastar-se de todo ruído das
coisas temporais. Ora, se Abelardo desposar Heloísa, Heloísa terá direitos
sobre ele.13

Assim, para Abelardo o que está em jogo é a aparência que pretendia ostentar de
um estado de vida superior, conforme as concepções de Sêneca e São Jerônimo.
Ressalte-se que Heloísa, ao saber da promessa feita por Abelardo para reparar o mal
causado à imagem de Fulberto, reprovou tal intenção de Abelardo e tentou dissuadi-lo
do feito.
Heloísa sabia que seu tio não se daria por satisfeito com tal ato reparador. Além
disso, aceitar tal situação implicaria em duas ocasiões igualmente nocivas a Abelardo: o
perigo que este corria e a desonra que não deixaria de atrair contra ele. Além disso, ela
estava convicta de que o mundo exigiria dela uma explicação por obscurecer luminar
tão grande14. Ademais, a glória de Abelardo seria a glória de Heloísa. A desonra de
Abelardo, seria a desonra de Heloísa.
De nada adiantaram os argumentos de Heloísa. O casamento se fez como
Abelardo queria e naquilo que era possível. Casaram-se na presença de Fulberto e de
alguns amigos dos nubentes. Na esteira dos acontecimentos, a separação do casal é
novamente imposta, interrompida senão por alguns furtivos encontros.
Como já previsto por Heloísa e, aliás, invocado por ela como argumento contrário
à realização das núpcias, Fulberto, sempre que a ocasião permitia, tornava público o
casamento, violando o juramento de mantê-lo na confidencialidade. Heloísa, por sua
vez, sabendo da intenção de seu tio em prejudicar a reputação de Abelardo pela
divulgação do casamento, negava o ocorrido e protestava peremptoriamente. Tais

13
GILSON, 2007, p. 60. Necessário dizer que o termo clérigo no século XII designa todo estudante, de
modo que não é uma ordem religiosa e por isso, o clérigo não estava impedido de contrair matrimônio,
mas uma vez casado, não poderia casar-se novamente. O que ocorre é que um clérigo casado é visto como
incontinenti e, portanto, não vive um estado de perfeição.
14
Cf. ABELARDO, EP I, 2002, p. 44-5.
6

atitudes da moça lhe custaram o sofrimento de maus tratos por parte de seu tio. Diante
disso, Abelardo não hesitou em enviar Heloísa a um mosteiro próximo de Paris.
Frente a essa atitude de Abelardo, Fulberto sente-se vítima de um engodo: entende
que Abelardo enviara Heloísa para o convento para se livrar dela. Não tardou para que a
vingança de Fulberto fosse concretizada. Nestes termos descreve Abelardo o castigo
imputado a ele:

Certa noite, um dos meus servidores, comprado a preço de ouro, introduziu-


os no quarto retirado onde eu dormia, e eles me fizeram sofrer a vingança
mais cruel, a mais vergonhosa e que todo o mundo conheceu com
estupefação: amputaram-me as partes do corpo com as quais eu cometera o
delito de que se queixavam15.

A vergonha sentida por Abelardo, ele nos diz, foi maior do que a dor causada pela
própria mutilação16. Ele, a glória de Paris, o cavaleiro da dialética, o mais ilustre dos
professores e o mais livre dos amantes, vê-se arruinado em toda sua carreira. Não
encontraria mais coragem para sua atividade docente, pois sua vergonha certamente
seria motivo de muitos risos e desrespeito diante do alunado – afinal, é sabido que os
espaços escolares são também lugares onde os gracejos e as traquinagens ocorrem com
frequência17 - assim como não dispunha mais das condições que a vivência do amor
torna necessária.
As duas paixões de Abelardo estariam impossibilitadas: nem a glória das escolas,
nem os prazeres de Heloísa. Que paixão mais poderia prendê-lo a esse mundo? Sua
decisão é resoluta: retirar-se do mundo, refugiar-se no mosteiro.

Entre Paixão e Razão


Marcados pelos estigmas do casamento e da mutilação de Abelardo, a sequencia
dos fatos permite dizer que, apesar de alguns encontros e da troca epistolar, os amantes
foram separados e condenados a sofrer a ausência um do outro. A partir desse momento,
“os dois amantes entram em revolta contra a moral e contra a opinião pública18”. Se
Abelardo já colecionava infortúnios antes do affair com Heloísa, eles se multiplicarão
durante e após esse fato. E Heloísa, que ainda muito jovem tomou parte nesse romance

15
ABELARDO, EP I, 2002, p. 50.
16
ABELARDO, EP I, 2002, p. 51.
17
Le Goff, ao tratar dos goliardos e da vagabundagem intelectual no século XII, é incisivo em afirmar que
os goliardos, por exemplo, “representam o maior escândalo para os espíritos tradicionais. LE GOFF,
2003, p. 47-52.
18
GILSON, 2007, p. 35.
7

(é provável que ela tivesse na época entre 17 e 18 anos), também sofrerá infortúnios de
várias ordens.
Abelardo, que é criticado por seus opositores como extremamente racionalista,
como alguém que julgava a razão humana capaz de compreender tudo o que é Deus e,
consequentemente, esvaziar a verdade da fé cristã19, no princípio do romance assume tal
postura, desejando apenas a satisfação sexual com Heloísa20. O amor não o motiva, mas
apenas o prazer. Mas por que Heloísa e não antes uma meretriz?
Abelardo afirma que não apreciava o “comércio grosseiro das prostitutas 21”. Ao
mesmo tempo, declara que mantinha uma vida casta antes de envolver-se com Heloísa 22.
Pode-se invocar como argumento a favor de tais afirmações o fato de que Abelardo
exigiu que o casamento fosse secreto porque desejava continuar ostentando uma vida
superior, ou seja, uma vida que não desfrutasse dos prazeres libidinosos.
Assim, Heloísa reunia qualidades além daquelas necessárias à satisfação sexual de
Abelardo. Ela representava um novo desafio que ele, no auge da sua presunção, tinha de
conquistar e o qual julgava que não lhe seria tarefa nada difícil, pois que brilhava pela
reputação, juventude e beleza, e julgava que não havia mulher junto a quem seu amor
temesse recusa23.
A fama de Heloísa era conhecida por muitos. Pedro, o Venerável, que acolheu
Abelardo em Cluny quando este marchava em direção à sede do catolicismo com
intenções de reverter a sentença imposta pelo concílio de Sens em 1140, testemunha a
admiração que devotava à jovem amante de Abelardo:

Eu mal acabava de transpor os limites da adolescência, e não era nem mesmo


jovem, quando tomei conhecimento da reputação, não ainda de sua vida
religiosa, mas de teus nobres e louváveis estudos. Ouvia-se então falar desta
extraordinária raridade: uma mulher ainda envolvida nos laços do século e
que se entregava, entretanto, completamente ao estudo das Letras e da
Sabedoria sem que nada, nem os desejos do mundo, nem suas vaidades, nem
seus prazeres, pudesse desviá-la do louvável desígnio de aprender as Artes
Liberais24.

19
“Petrus Abaelardus christianae fidei meritum evacuare nititur, dum totum quod Deus est, humana
ratione arbitratur se posse comprehendere”. SANCTI BERNARDI Abbatis Clarae-Vallensis, Epistola
Cxci ad Innocentium ex Persona Domini Archiepiscopi Remensis. Patrologiae Latina tomo CLXXXII, col
337.
20
“Meu amor, que nos arrastou a ambos no pecado, chamemo-lo de concupiscência, não de amor”.
ABELARDO, EP V, 2002, p. 147.
21
ABELARDO, EP I, 2002, p. 39.
22
Cf. ABELARDO, EP I, 2002, p. 42.
23
Idem, ibidem.
24
Pedro, o Venerável, Epístola XXVIII, Patrologia Latina, t. 189, col. 347ss. IN: GILSON, 2007, p. 148.
8

Heloísa se afigurava como bem mais do que uma possibilidade de satisfação


sexual: era luxúria, vaidade, glória e fama reunidas na mesma oportunidade. Que outro
troféu poderia almejar espírito tão orgulhoso e conquistador? Esse foi o provável
motivo da atração de Abelardo por Heloísa. Segundo Gilson, “não há o menor traço de
paixão romântica no seu caso; nada mais que luxúria, como ele próprio reconhece, e
orgulho25”.
Essa inclinação à luxúria associada à razão da glória que acrescentaria a sua
reputação foi, indubitavelmente, a causa do romance sob a perspectiva de Abelardo.
Mas e Heloísa? Que intenções ela tinha ao envolver-se com Abelardo? O que a
motivou? Será possível encontrar nas motivações de Heloísa elementos de paixão e
razão? Se sim, serão eles da mesma qualidade das motivações passionais e racionais de
Abelardo?
Desde o primeiro encontro com Abelardo, Heloísa confessa o amor exclusivo que
lhe terá até o último suspiro. Amor violento que nada o debilitará, porque Heloísa é de
uma naturalidade absoluta26. Ela nunca omitira a real motivação de seu envolvimento
com Abelardo:

Deus o sabe, jamais procurei em ti senão a ti mesmo. Era somente tu que eu


desejava, não aquilo que te pertencia ou aquilo que representavas. Não
esperava nem casamento nem vantagens materiais, não pensava nem em meu
prazer nem nas minhas vontades; buscava apenas, bem o sabes, satisfazer
teus desejos27.

Esta manifestação do mais puro amor de Heloísa coloca-a em outro nível de


sentimento com relação ao de Abelardo. Se Abelardo a amou, certamente não deixou
também de calcular a glória e depois a degradação de sua imagem com o casamento – e
por isso o exigiu confidencial. Heloísa, porém, amou Abelardo de tal modo que não
relutou em momento algum em fazê-lo feliz e bem-sucedido, pois sabia que da
felicidade de Abelardo dependia a sua. Heloisa é “a grande amorosa de estilo francês,
com essa estranha avidez de justificação racional, ou sofística28.” Mas do que Heloísa
precisaria se justificar? Que crime cometeu esta que parece somente ter amado?
Heloísa não se perdoa do único crime que cometeu: desposar Abelardo. Ela, que
sabia tão bem quanto Abelardo o que representava o casamento com relação ao estilo de

25
GILSON, 2007, p. 32.
26
PERNOUD, 1973, p. 55.
27
HELOÍSA, EP II, 2002, p. 95.
28
GILSON, 2007, p. 117.
9

vida de um filósofo, confessa que preferiria ser uma meretriz a ser esposa de Abelardo e
motivo de sua ruína:

O nome de esposa parece mais sagrado e mais forte, entretanto o de amiga


sempre me pareceu mais doce. Teria apreciado, permiti-me dizê-lo, o de
concubina ou de mulher de vida fácil, tanto me parecia que, em me
humilhando ainda mais, aumentaria meus títulos a teu reconhecimento e
menos prejudicaria a glória do teu gênio29.

Mesmo sabendo do que representava o casamento e após opor-se veementemente


a ele, Heloísa submete-se a essa imposição de seu amado. Carregará esse fardo para o
resto de sua vida e amargará o fato de estar casada, mas impossibilitada de usufruir seus
direitos conjugais com Abelardo30.
A vida de Heloísa, depois que conhecera Abelardo, fora agradar-lhe, atendê-lo em
todas as suas vontades. A segunda grande prova de amor que Abelardo exigiu de
Heloísa foi o ingresso dela na vida religiosa. Precedendo a Abelardo na vida monástica,
Heloísa novamente apresenta sua renúncia a si e ao mundo para viver por amor a
Abelardo.
Emasculado e impossibilitado de viver a plenitude do amor, Abelardo castra
Heloísa impondo-lhe o véu monástico. Numa análise de gênero do papel da mulher na
Idade Média e diante do sofrimento de Heloísa, talvez se pudesse colocá-la contra
Abelardo, assumindo a defesa da primeira e o ataque ao segundo. Porém, aquilo que
Heloísa legou em suas cartas, longe de permitir tal análise, sugere bem o contrário: “Em
todos os estados a que a vida me conduziu, Deus o sabe, foi a ti, mais do que a ele, que
temi ofender; foi a ti, mais do que a ele, que procurei agradar31”.
Gilson, imbuído do espírito que perpassa toda a correspondência de Abelardo e
Heloísa, sabedor da psicologia dos amantes e da moral que os envolve, nestes termos se
expressa quanto à possibilidade de uma leitura diferente daquela que corresponde ao seu
sentido próprio:

É verdade que Heloísa sofreu muito, e sofreu por Abelardo, mas duas coisas
ao menos são certas: que ela faria novamente dez vezes aquilo que fez, com o
risco de subir dez vezes o mesmo calvário, e que experimentaria como a pior
injúria se se desejasse engrandecê-la rebaixando Abelardo32.

29
HELOÍSA, EP II, 2002, p. 95.
30
Pela instituição sacramental do casamento, um passa a ter direito sobre o corpo do outro, de modo que
não somente Heloísa não poderia ter direito sobre Abelardo, porque este estava impossibilitado de atender
às exigências das relações conjugais, como também a própria Heloísa desejava uma vida para ambos
compatível àquela ideologia que se tinha acerca do estilo de vida dos intelectuais.
31
HELOÍSA, EP IV, 2002, p. 121.
32
GILSON, 2007, p. 27.
10

Se no início do romance é Abelardo que corteja Heloísa para alcançar a satisfação


de seus prazeres, agora é o amor cortesão que se manifesta com toda sua força e beleza
em Heloísa. Alguém poderá perguntar: será isso justo? Injusto? O amor não parece ser
necessariamente uma questão de justiça, ao menos não no sentido da participação
equitativa nos prazeres e infortúnios dos quais padecem os amantes.
Porém, justiça seja feita! Se a postura de Abelardo foi, no início, a de um lobo
esfaimado por devorar sua presa – postura reafirmada na carta à Heloísa em que
confessa que seu amor foi concupiscência33 - ele também expiou em sua vida os males
que cometeu e, ainda que não da mesma forma que Heloísa, é muito provável que a
tivesse amado, tanto assim que uma vez impossibilitado fisicamente de viver o
casamento, exigiu dela o amor casto obrigando-a ao ingresso na vida religiosa. Além
disso, quando abade no mosteiro de São Gildas, sabendo que Heloísa e suas irmãs
religiosas foram expulsas do mosteiro onde residiam, empenhou-se em ampará-las de
modo a proporcionar-lhes as instalações do mosteiro do Parácleto, onde outrora havia se
recolhido com alguns alunos para escapar das perseguições dos monges da abadia de
São Denis.
Seja como for, pela leitura e análise das cartas de Abelardo e Heloísa percebe-se
que a paixão e a razão se fizeram presentes como duas forças que marcaram
indelevelmente suas vidas e os projetou na história como um romance único.

Conclusão
O dramático romance entre Abelardo e Heloísa, legado pelas cartas que
escreveram, figura como um dos mais belos textos em que o amor cortês se manifesta.
Paixão e razão não se dissociam no caso de Abelardo e Heloísa. Abelardo, se
inicialmente se deixa envolver no romance por interesses meramente libidinosos, não
muito depois dá mostras de amor por Heloísa, ainda que ao seu modo e não
necessariamente ao modo que Heloísa esperava e como muitos leitores gostariam de
encontrar – mas às vezes é necessário assistir a essa trama como expectador e não como
diretor que pretende mudar o roteiro.
Heloísa, por sua vez, encarnou o amor. Dedicou sua vida toda a esse sentimento
que nutria por Abelardo. Não se lhe opôs em momento algum, pois mesmo no episódio
33
Cf. nota 19 supra. Ressalte-se que nessa carta, supostamente a última de Abelardo a Heloísa de cunho
pessoal, Abelardo assume diante de Heloísa toda a culpa das desventuras que sofreram e se mostra
conformado com a sorte que teve.
11

do casamento, atendeu à vontade dele. Amou Abelardo por ele mesmo, sem esperar
nada em troca, nenhum reconhecimento qualquer. Nem mesmo o de Deus ao ingressar
na vida religiosa, pois ela é taxativa em afirmar que Deus não a poderia recompensar
por algo que fez somente pelo amor de Abelardo34, não obstante sua vida como abadessa
ter sido elogiada por muitos de seus contemporâneos como de grande piedade.
Heloísa não esconde nada: tudo o que pensa e sente, explicita nas cartas. Seu amor
por Abelardo, sua conversão e até sua piedade religiosa, ela o disse, não passavam de
hipocrisia, de modo que o hábito religioso (vestimenta) não poderia suplantar o hábito 35
da religiosa.
Abelardo e Heloísa experimentaram com intensidade os sofrimentos impostos
pelas vicissitudes de suas vidas marcadas pela paixão e pela razão. Apesar disso e talvez
por causa disso, entregaram-se vivamente a esse romance imortalizado na história e na
literatura.
Desse modo, pode-se concluir com Gilson afirmando que

[...] a paixão que devia dominar a vida inteira de Heloísa parece ter sido total
desde o início. Essa paixão não devia, aliás, tardar a ganhar o próprio sedutor.
Pois, após a sedução de Heloísa, Abelardo não é mais o frio calculista que
fora inicialmente. Esses dois amantes foram amantes felizes36.

Referências

34
HELOÍSA, EP IV, p. 99.
35
A propósito da distinção entre o hábito como vestimenta e o hábito como simulação (hipocrisia), cf. o
interessante artigo de: FINDLEY, 2006, pp. 248-275.
36
GILSON, 2007, p. 34.
12

ABÉLARD, P. Historia Calamitatum. Texte critique avec une introduction, ed. J.


Monfrin. Paris, 1959.

ABELARD, Peter. Ethics. An edition with introduction english translation and notes by
D. E. Luscombe. Oxford University Press, 1971.

CAMELLO, Maurílio José de Oliveira. Pedro Abelardo: da razão à fé. In:


Leopoldianum, XIII, nº 38, Filosofia Medieval: Estudos e Textos. Porto Alegre, 1986,
pp. 23-30.

CARVALHO, Mario Santiago de. Lógica e Paixão: Abelardo e os Universais.


Coimbra: Minerva Coimbra, 2001.

CORRESPONDÊNCIA DE ABELARDO E HELOÍSA. Texto apresentado por Paul


Zumthor; tradução Lúcia Santana Martins. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FINDLEY, Brooke Heidenreich. Dos the Habit Make the Nun? A Case Study of
Heloise’s Influence on Abelard’s Ethical Philosophy. Vivarium, 44, 2-3. Leiden:
Koninklijke Brill NV, 2006, p. 248-275.

GILSON, Étienne. Heloísa e Abelardo. Tradução Henrique Ré. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2007.

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