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1. Introdução
Será que as mulheres têm o direito de interromper uma gravidez não
desejada? Ou estará o estado habilitado (senão mesmo eticamente
obrigado) a proibir o aborto intencional? Deverão alguns abortos ser
permitidos enquanto outros não? O estatuto legal do aborto decorre
directamente do seu estatuto moral? Ou deverá o aborto ser legalizado,
mesmo que seja algumas vezes, ou mesmo sempre, moralmente
errado?
Estas questões suscitaram intensos debates ao longo das duas
últimas décadas. Curiosamente, em grande parte do mundo
industrializado o aborto não era considerado um crime até que uma
série de leis anti-aborto foram promulgadas durante a segunda metade
de século XIX. Por essa altura, os proponentes da proibição do aborto
realçavam os perigos clínicos do aborto. Por vezes também se
argumentava que os fetos são seres humanos a partir do momento da
concepção e, como tal, o aborto intencional seria uma forma de
homicídio. Agora que os avanços médicos tornaram os abortos, quando
correctamente efectuados, mais seguros que os partos, o argumento
clínico perdeu toda a força que alguma vez possa ter tido.
Consequentemente, o ponto central dos argumentos anti-aborto
mudou-se da segurança física das mulheres para o valor moral da vida
do feto.
Quem defende o direito de as mulheres escolherem o aborto
respondeu de diversas formas ao argumento anti-aborto. Examinarei
três linhas de argumentação da perspectiva do direito de escolha: 1)
que o aborto deve ser permitido pois a proibição do aborto leva a
consequências altamente indesejáveis; 2) que as mulheres têm o direito
moral de escolher o aborto; e 3) que os fetos ainda não são pessoas e,
como tal, ainda não têm um direito substancial à vida.
6. Humanidade genética
Os opositores do aborto dirão que é errado abortar não apenas porque
os fetos humanos estão vivos, mas porque são humanos. No entanto,
por que razão deveremos nós acreditar que a destruição de um
organismo humano vivo é sempre moralmente pior que a destruição de
um organismo de outra espécie qualquer? A pertença a uma espécie
biológica em particular não parece, em si, um factor mais relevante
para o estatuto moral que a pertença a uma raça ou sexo em particular.
É um acidente da evolução e da história que toda a gente a quem
actualmente reconhecemos plenos direitos morais pertença a uma
única espécie biológica. As “pessoas” do planeta Terra poderiam muito
bem ter pertencido a muitas outras espécies diferentes — e na verdade
talvez pertençam. É bem possível que alguns animais não-humanos,
tais como os golfinhos, as baleias e os grandes símios, tenham
suficientes capacidades “humanas” para serem correctamente
considerados pessoas — ou seja, seres capazes de raciocínio,
consciência, relacionamento social e reciprocidade moral. Alguns
filósofos contemporâneos consideram que (alguns) animais não-
humanos têm essencialmente os mesmo direitos morais básicos que as
pessoas humanas. Quer estejam certos ou errados, é sem dúvida
parcialmente verdade que qualquer estatuto moral superior atribuído
aos membros da nossa própria espécie deve ser justificado em termos
de diferenças moralmente significativas entre os seres humanos e as
outras criaturas vivas. Defender que a espécie por si só nos fornece a
base para um estatuto moral superior é arbitrário e vão.
7. O critério da senciência
Alguns filósofos defendem que a senciência é o critério primordial no
que se refere à atribuição de estatuto moral. A senciência é a
capacidade de ter experiências — por exemplo, experiências visuais,
auditivas, olfactivas, ou outras experiências perceptivas. No entanto, a
capacidade de sentir prazer e dor parece ser particularmente pertinente
para o estatuto moral. É um postulado aceite pelas éticas utilitaristas
que o prazer é intrinsecamente bom e a dor intrinsecamente má. Na
verdade, a capacidade de sentir dor é frequentemente uma mais-valia
para o organismo, habilitando-o a evitar ferimentos ou a sua própria
destruição. Por outro lado, a longo prazo, alguns prazeres podem ser
prejudiciais para o organismo. Não obstante, podemos dizer que os
seres sencientes têm um interesse basilar em sentir prazer e em evitar a
dor. O respeito por este interesse fundamental é o cerne das éticas
utilitaristas.
O critério da senciência sugere que, em igualdade de circunstâncias,
é moralmente pior matar um organismo senciente que um organismo
não senciente. A morte de um ser senciente, mesmo quando indolor,
priva-o de quaisquer experiências agradáveis que pudesse vir a
disfrutar no futuro. Assim, a morte é tida como um infortúnio maior
para esse ser do que para um ser não senciente.
Mas como podemos saber quais são os organismos vivos sencientes?
Bem, quanto a isso, como podemos saber que os seres não vivos, tais
como as rochas ou os rios, não são sencientes? Se esse conhecimento
requer a absoluta impossibilidade de erro, então provavelmente nunca
saberemos a resposta. Mas aquilo que de facto sabemos indica
claramente que a senciência requer um sistema nervoso central
funcional — que está ausente nas rochas, nas plantas e nos
microorganismos simples. Esse sistema nervoso central também está
ausente nos fetos com poucas semanas. Muitos neurofisiologistas
acreditam que os fetos humanos normais começam a ter uma certa
senciência rudimentar pelo segundo trimestre da gravidez. Antes dessa
fase, os seus cérebros e órgãos sensoriais estão demasiado
subdesenvolvidos para permitirem a ocorrência de sensações. As
provas comportamentais apontam na mesma direcção. No fim do
primeiro trimestre o feto pode já ter alguns reflexos inconscientes, mas
ainda não responde ao seu ambiente de uma forma que sugira
sensibilidade. No entanto, no terceiro trimestre algumas partes do
cérebro do feto estão já funcionais e o feto pode reagir a barulhos, luz,
pressão, movimento e outros estímulos sensíveis.
O critério da senciência apoia a crença comum de que o aborto tardio
é mais difícil de justificar que o aborto feito ainda no inicio da gravidez.
Ao contrário do feto pré-senciente, um feto no terceiro trimestre da
gravidez é já um ser — ou seja, já é um centro de sensações. Se for
morto, pode sentir dor. Além disso, a sua morte (como a de qualquer
ser senciente) será o fim de uma corrente de sensações, algumas das
quais poderão ter sido agradáveis. Na realidade, o uso deste critério
sugere que o aborto não coloca qualquer questão moral séria quando é
efectuado cedo, ao menos no que diz respeito ao impacto no feto.
Enquanto organismo vivo mas não senciente, o feto no primeiro
trimestre ainda não é um ser com interesse numa vida continuada.
Como o óvulo não fecundado, pode ter o potencial de se tornar um ser
senciente. Mas isto apenas significa que tem o potencial de se tornar
num ser com interesse numa vida continuada, não significa que já
tenha esse interesse.
Se por um lado o critério da sensibilidade implica que o aborto tardio
é mais difícil de justificar que o aborto nas primeiras semanas da
gravidez, tal não significa que o aborto tardio seja tão difícil de
justificar quanto o homicídio. O princípio de respeito pelos interesses
dos seres sencientes não implica que todos os seres sencientes tenham
um igual direito à vida. Para vermos por que isto é assim temos de
pensar um pouco mais no alcance deste princípio.
A maior parte dos animais vertebrados adultos (mamíferos, aves,
répteis, anfíbios e peixes) são claramente sencientes. É também
bastante provável que muitos animais invertebrados, tais como os
artrópodes (ou seja, insectos, aranhas e caranguejos), sejam sencientes.
Pois também eles têm órgãos sensoriais, sistemas nervosos e
comportam-se frequentemente como se pudessem ver, ouvir e sentir
bastante bem. Se a senciência é o critério de estatuto moral, nesse caso
nem sequer uma mosca deveria ser morta sem uma boa razão.
Mas o que conta como um motivo suficientemente bom para matar
uma criatura viva cuja principal reivindicação para o seu estatuto
moral é a sua provável senciência? Os utilitaristas geralmente
defendem que os actos são moralmente errados se aumentarem a
quantidade total de dor ou sofrimento existentes no mundo (sem que
esse aumento de dor seja compensado com um aumento da quantidade
total de prazer ou felicidade), ou vice-versa. Mas a morte de um ser
senciente nem sempre tem tais consequências adversas. Em qualquer
ambiente há espaço para apenas um número finito de organismos de
uma determinada espécie. Quando um coelho é morto (de um modo
mais ou menos doloroso) é provável que outro coelho tome o seu lugar,
portanto a quantidade total de “felicidade coelhar” não diminui. Além
disso, os coelhos, como muitas outras espécies que se reproduzem
rapidamente, têm de ser caçadas por outras espécies para que a saúde
do sistema biológico seja preservada.
Assim, sob a perspectiva utilitarista, a morte de seres sencientes não
é sempre um mal. Contudo, seria moralmente ofensivo sugerir que as
pessoas podem ser mortas simplesmente porque existem em grande
número e, como tal, perturbam o meio ambiente. Se matar pessoas é
mais difícil de justificar do que matar coelhos — como até os mais
radicais defensores dos direitos dos animais acreditam — deve ser
porque as pessoas têm um estatuto moral que não se baseia
simplesmente na sensibilidade. No próximo capítulo analisaremos
alguns dos possíveis argumentos deste ponto de vista.
Referências
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Outras Leituras
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