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(Rogers), Orgon (Reich), experienciar-se (Gestalt-terapia), fundamentando


uma visão otimista e positiva da vida humana. Repercute na simpatia a
intervenções não verbais, corporais, 'artísticas' e situa o lugar do psicólo-
go na facilitação do fluxo energético vital. O caráter científico da Psico-
logia é relegado a segundo plano (Figueiredo, 1991).
Já a matriz fenomenológica remonta a Husserl e seu projeto de VII
fundamentação de todo conhecimento através de rigor epistemológico,
constante análise crítica de fundamentos e atenção metodológica. Uma das
consequências é revigorar a reflexão sobre o ser humano, por ser ele a base
de todo conhecimento. Com isso, a fenomenologia prepara os Existencia- A Fenomenologia
lismos do século XX. Mas quando a Psicologia recorre a eles traz junto
Nietzsche e Kierkegaard, que, cada qual a seu modo, tenta compreender o
ser humano (Figueiredo, 1991). Neste sentido, a matriz fenomenológica se
opõe ao descaso vitalista (Humanista) com o conhecimento. Revela-se
incrível a confusão da fenomenologia com a Psicologia Humanista! A fenomenologia é um dos dois mais importantes movimentos
Além de método de pesquisa, a fenomenologia aparece como filosóficos surgidos no início do século XX. Não pode ser considerada
suporte teórico para modalidades de prática psicológica já desenvolvidas uma doutrina de pensamento, pois reúne muitas vertentes em tomo de um
sob a influência da Abordagem Centrada na Pessoa. Já se insinua que esta mesmo núcleo: o método fenomenológico. O segundo movimento impor-
abordagem psicológica está distante da ontologia heideggeriana, sendo tante é o Existencialismo, relacionado àfenomenologia histórica e con-
mais um fruto da metafisica. Mas o esforço metódico da investigação dos ceitualmente, porém distinto. Quando influenciam a psicologia, o termo
fenômenos exige que dela me aproxime e deixe-a mostrar por si mesma. _'fenômeno' passa a ser sinônimo de "dados de experiência que podem ser
Por isso, essa abordagem deve ser a próxima a ser investigada. Será a observados e descritos pelo sujeito que os experiencia num dado momento"
psicologia rogeriana fundamentada ou mesmo uma expressão possível da (Misiak & Sexton, 1966, p. 406), caracterizando psicologias chamadas de
ontologia heideggeriana? 'psicologia fenomenológica', 'psicologia existencial' ou 'psicologia fe-
Mais dúvidas aparecem: 'Será que recorrer a autoresfenomeno- nomenológica existencial', termos usados indistintamente por muitos
lógicos é suficiente para caracterizar uma psicologia como fenomenoló- historiadores da Psicologia.
gica? É isso que pode um psicólogo fenomenológico existencial: recorrer _ Na filosofia, 'fenomenologia' recebe vários significados. Apare-
I· à filosofia fenomenológica para legitimar sua prática, qualquer que seja? ce pela primeira vez no livro Novo Õrganon, de J. H. Lambert, de 1764,
Será a fcnomenologia na Psicologia apenas um método? A investigação significando teoria da ilusão. Kant usa esse termo em esboço da Crítica da
da psicologia fenomenológica brasileira dá a entender que a fenomenolo- Razão Pura para se referir a uma disciplina propedêutíca precedente à me-
gia na psicologia é apenas um suporte metodológico visando dar credibi- tafísicaHegel escreve a Fenomenologia do Espírito em 1807 (Dartigues,
lidade científica a resultados, podendo ser usado também como funda- 1992). E o significado atribuído por Husserl que vige atualmente e que é
mentação para a prática psicoterapêutica e deaconselhamento psicológi- incorporado pela psicologia, mesmo que ao longo de sua obra filosófica o
co, no qual a ontologia heideggeriana aparece dispersa, como um desdo- sentido de 'fenomenologia' tenha se alterado. Heidegger, no início de Ser e
""-- bramento da fenomenologia de Husserl ou do Existencialismo,
~.. Tempo, propõe uma definição distinta de 'fenomenologia', como já visto
11· !~ A pergunta norteadora desta investigação segue em aberto. O nesta pesquisa.
que pode um psicólogo fenomenológico existencial, baseado na ontologia. _ O termo 'fenomenologia' vem dos termos gregos phenomenon e
heideggeriana? O próximo passo a ser dado é investigar o sentido da con-- logos. Phenomenon significa, literalmente, aparecer, mostrar-se a si
fusão da fenomenologia de Husserl com a de filosofia do -ser de Heide- . mesmo e contextualíza o surgimento da fenomenologia no embate entre a
gger, já que é assim, misturadas, que chegamà Psicologia. Depois disso, filosofia e as ciências positivas no final -do século XIX, quando estas
a Abordagem Centrada na Pessoa será indagada quanto à fenomenologia apresentam resultados e abrem possibilidades de conhecimento e controle
e a analítica existenciária nela presentes.
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logia fenomenológica qua ciência empírica fenomenológica, distinta da
da natureza nunca vistos na história ocidental, colocando a metafísica em ,.. fenomenologia filosófica. Faz isso também para delimitar o que é uma
descrédito. Husserl se empenha em fazer da filosofia uma ciência de ri- j
psicologia fenomenológica fundamentada em Husserl. Seus resultados
gor, capaz de fundamentar todas as ciências empíricas. A ~enomenologia revelam a importância desse tipo de esclarecimento. Ademais, mostram
surge como uma investigação das possibilidades de conhecimento, que esse esclarecimento é 'fenomenológico', pois é um esforço metódico
. A grande maioria dos psicólogos fenomenológicos inicia suas de apresentar uma essência (no caso, o conceito de psicologia fenomeno-
pesquisas com a retomada dos principais conceitos dessa .filosofia. Gio- lógica) usando termos que o apresentam, não o ocultam.
vanetti (2012) indica a necessidade de conhecer os conceitos de retomo Mas tentar compreender a Fenomenologia de 'dentro' da Psico-
às coisas mesmas, redução eidética e redução transcendental, teoria da logia já delimita as perguntas possíveis, correndo o risco de girar em fal-
intencionalidade, intuição das essências, mundo da vida e intersubjetivi- so. A tradição na qual estou imerso antecipa meus passos. O esforço de
dade. Forghieri (1993) fala dos mesmos, além de redução fenomenológi- estranhamento para o confrontamento e a destruição exige um folego
ca, suspensão fenomenológica (epoché) e atitudes natural e fenomenoló- maior. Vejo a necessidade deme aproximar do sentido da Fenomenologia
gica. Holanda e Freitas (2011) discorrem sobre as reduções eidética e e de algumas de suas ideias básicas por outro caminho, que não o psico-·
transcendental; a primeira alcançando a vivência concreta e singular e a lógico. Assim, tento me aproximar da Fenomenologia pela filosofia. A guia
segunda, "o ego puro, a essência, a transcendentalidade que escapa a desta tentativa é Hannah Arendt, filósofa que conhece bem as filosofias de
I
, lr . qualquer materialidade" (p.l09). Moreira (2001), em livro sobre o mét~:.. Hussel e Heidegger. Ademais, colocar a mes,ma questão partindo de outro
.rt do fenomenológico de pesquisa qualitativa, também apresenta os concei- ponto pode revelar aspectos antes ocultos. E como viajar ao estrangeiro,
tos de essência, evidência apodítica, redução eidética e método de varia- que pode revelar aspectos ocultos da terra natal quando voltamos.
ção livre. Misiak e Sexton discutem a intuição das essências, redução
eidética, epoché, redução transcendental e intencionalidade. Apresenta- A filósofa Hannah Arendt, conhecida por seu pensamento sobre
'1 ções semelhantes estão presentes ainda em Ewald (2008), Lima (2008) e política, foi aluna e amante de Heidegger ant~s de fugir na Alemanha
~
.\", .
Amatuzzi (2009), Sá (2007). . nazista na década de 1930 (Safranski, 2000). E de sua lavra uma breve
n..
introdução sobre as filosofias da existência (Existenz Philosophie), na
. Todos estes autores afirmam ser complicada a transposição de
qual defende a radical divisão entre os sentidos da fenomenologia de
conceitos originados na filosofia para a ciência empírica psicológica, pois
Husserl e de Heidegger. Para ela, as filosofias existenciais, que culminam
o projeto de Husserl é refundar a filosofia, fornecendo-lhe um método
nas filosofias de Martin Heidegger, Karl Jaspers e Max Scheler, com-
rigoroso que a legitime. Para Figueiredo (1991),
partilham uma posição contrária à unidade entre Ser e Pensamento,
iniciada poi; Parmênides, que é a base da filosofia ocidental. As Filoso-
Convém assinalar, todavia; uma grande diferença entre a fenomenolo- fias da Existência são tentativas de confronto com a filosofia racional,
gia filosófica e as ciências humanas fenomenológicasrenquanto as postulando o limite do Pensamento no acesso ao Ser, isto é,defendendo
ciências compreensivas visam os sujeitos empíricos, suas vivências, que a realidade (Ser) extrapola as possibilidades de conhecimento (Pen-
atos e produções concretas num universo de valores e significados his-
samento) (Arendt, 1994).
toricamente determinados, a fenomenologia .filosófica visa o sujeito
transcendental como condição de todas as experiências humanas pos- Trocando em miúdos, encontro em debate aqui um tema que
síveis. A fenomenologia filosófica deve captar - pela contemplação atravessa as. psicologias humanistas é fenomenológicas e que eu assumi
imediata - as essências ideais dos fenômenos; as estruturas e os modos com óbvio e inquestionável: a afirmação de que as categorias do pensa-
intencionais da consciência transcendental. A universalidade destas mento não são capazes de abarcar a experiência vivida, isto é, que a expe-
estruturas apriorísticas é que permitiria, naprática das ciências com- riência é maior, mais rica, mais diversa do que a razão consegue compre-
preensivas, a captação do psíquico na esfera da consciência individual
ender. A indicação 'de Arendt de que a fenomenologia surge neste debate
e da consciência coletiva. (p. 175)
me obriga a questionar esta posição dogmática.
A fenomenologia é um acontecimento na história da filosofia.
o psicólogoTommy Goto (2008) é o primeiro brasileiro a mer- Isto é, é muito mais do que uma "perspectiva" psicológica. A Psicologia é
gulhar na obra de Husserl em busca de esclarecer o que seria uma psico-
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Pensar, dizer, ser
apenas um capítulo tardio na história do pensamento ocidental, emanci-
pando-se da filosofia ao, determinar-se como ciência. Será que a Fenome-
Na história da filosofia, esse princípio do pensamento é chama-
nologia também se transforma em outra ao deixar a filosofia e tomar-se
do de "princípi? de identidade" e "princípio de não contradição". É o que
Psicologia? Um psicólogo precisa conhecer a história da filosofia? O que
o psicólogo precisaria saber para compreender a Psicologia como um garante a veracidade do pensamento lógico. Afirmar que ser é (ser) signi-
fica afirmar sua identidade consigo mesmo, A = A. Como consequência
todo e a psicologia fenomenológica, especificamente? Penso que estas
segue que sendo idêntico a si mesmo, ser não pode ser idêntico a seu
reflexões tocam na questão crucial da formação de psicólogos. Será este oposto (não-ser). Se A = A, A :I; B. Pensar e dizer só são possíveis em
profissional um técnico, aplicador de métodos e técnicas criadas na acade- relação ao que é. _ -
mia? Ao começar a me aprofundar nos estudos sobre a obra de Heidegger
me descubro num impasse: ser psicólogo ou ser filósofo? Será possível Seguindo os mesmos princípios, "nada não e'. Isso significa
uma conciliação? Ou será esta uma decisão inevitável? Ou será, ainda, que nada, entendido como sinônimo de não-ser, é idêntico a si mesmo.
Do nada (ou não-ser), não se pode afirmar que é, o que seria uma contra-
que perguntas erradas preparam supostos impasses? Pois a psicologia
fenomenólógica existencial (ou qualquer psicologia) não pode ser 'apli- dição. Não sendo, o nada (não-ser) é inacessível ao pensamento e à lin-
guagem; estes delimitam e são delimitados pelo ser.
cação' da ontologia heideggeriana (filosofia), assim como esta não pode
ser um universal que fundamente a prática com exemplares singulares. Nos fragmentos que restam do Poema filosófico de Parmênides,
Não se trata de subordinação de uma a outra, como nos embates por uma ele narra ser levado pela deusa ao conhecimento da "verdade bem redonda",
ciência primeira no século XIX. Segundo Sá (2014), a alétheia, e das opiniões, doxai. Encontro aqui uma clara indicação de
qu~ nas doxai não há verdade. Doxa costuma ser traduzido por "opinião".
Hoje em dia, essa palavra é sinônimo de falsídade.jíe oposição à verdade.
A fenomenologia, na elaboração de Heidegger, não é um método neu- E em oposição às opiniões que o método científico surge, com o sentido
tro que pode ser aplicado no âmbito das diferentes disciplinas científi- de eliminar a singularidade do pesquisador. Mas o sentido original do
cas. Para ele, a fenomenologia é ontologia. Uma suposta psicologia
termo grego doxa não é opinião. Doxa é a exposição em praça pública de
fenomenológico-existencial que pretende utilizar as estruturas existen-
como uma situação. aparece para alguém, tendo em vista uma deliberação
ciais descritas pela analítica de Ser e Tempo - ser-no-mundo, ser-para-
a-morte, cuidado - para apreender a subjetividade humana, contor- e/ou tomada de decisão. Está relacionada à percepção, exprimindo "como
nando, assim, a própria questão do ser, não toca à compreensão feno- algo parece e aparece para mim". - . - -
menológica do modo de ser do homem como existência. (p. 84) Na polis fica evidente que a doxa pode ser manipulada pela per-
suasão. Aquilo que antes era uma crença ou conjectura "verdadeira",
mostra-se passível de ser sem fundamento ou mesmo falsa. Parmênides
- Diante das dificuldades para compreender o sentido da fenome-
entende opinião (doxa) e verdade (aletheia) como opostas.
nologia à luz dos desdobramentos da história da filosofia ocidental des-
cobri-me. chamado a 'dela me aproximar. Segundo Arendt (1994), a feno- . Toda história da filosofia, segundo Heidegger, tem sido uma
menologia, como filosofia moderna, é um desdobramento da filosofia de _tentatIv~ de superar a oposição entre aparência e ser. O Posítivismo, que
Heg~l! que, P?r su~ vez, retoma e oferece a .derradeira interpretação da ganha VIgor no fmal XIX, é o capítulo mais recente desta história. Nele,
te~at1ca filosóficainaugurada por Parmênides. Hegel é um dos responsá- as aparências recolhidas pelos sentidos humanos são contornadas na dire-
veis pela recuperação das filosofias "pré-socráticas", anteriormente inter- ção da verdade objetiva, inscrita na realidade mesma. Hipóteses, induções
pretadas- como preinfancia da filosofia. Parmênides inaugura e deixa co- e abstrações superam o engano das doxai. Quando a Psicologia começa a
mo l~gado a Íntima ligação entre ser, pensar e dizer. Só pode ser pensado se separar da Filosofia no XIX, pende para o Positivismo como -modo de
ou dito o que é (sei"). Correspondentémente, só é (ser) o que pode ser s~ legitimar. Implícitos nesse movimento estão a descrença na experiên-
pensado e dito. Ser, pensar e dizer correspondem-se. Isso traz à tona o CIa humana como fonte de conhecimento e a afirmação de uma realidade
problema do conhecimento baseado na experiência sensível, pois a reali- externa objetiva existente em si mesma, conhecível pela razão. A Feno-
menologia de Husserl surge na Filosofia como questionamento da valida-
dade transforma-se, deixando de ser, e vindo a ser constantemente. A
de total e irrestrita do Posítivismocomo fundamento da ciência. Quando
transformação é ser e não-ser ao mesmo tempo e isso é incoerente.
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Psicologia em ciência experimental. O significado do termo Psicologia
é transformada em psicologia fenomenológica e/ou aparece na Psicologia neste 'contexto é o explicitado pela etimologia: ciência (logia) da mente
Humanista, faz a defesa de que a experiência sensível é o modo como a (psique). Psicologia é uma investigação teórica do funcionamento mental,
realidade aparece - contraditória, mutável, perspectival - e, portanto, por isso é ramo da filosofia. O lugar da Psicologia é abalado quando sur-
deve ser reconhecida. ' ge a possibilidade de nela aplicar o método hipotético-dedutivo experi-
, A correspondência entre o conhecimento verdadeiro, ao qual se mental. " ,
chega pelo pensamento, e a realidade (ser) acompanha as involuções e Este modelo científico parte do pressuposto de que cada aconte- •
revoluções da história da filosofia. Seu capítulo mais tardio, segundo cimento singular é regido por leis gerais passíveis de conhecimento atra-
Arendt (1994), é a fenomenologia de Husserl, que é uma tentativa mo- vés da abstração. Wundt é o psicólogo que, fundando o priineiro laborató-
derna de "restabelecer a antiga ligação entre Ser e Pensamento que sem- rio de Psicologia na Universidade de Leipzig em 1875, efetiva a em~ci~
pre garantiu ao homem seu lar no mundo" (1994, p. 164). Ao postular a pação da Psicologia da Filosofia. Sua investigação objetiva descrever a
intencionalidade da consciência, Husserl retoma a harmonia entre a cons-
consciência a partir de seus elementos mais básicos, os dados: de percep- ,
tituição da realidade e a consciência; isto é, o Ser é constituído no e pelo
'ção. A consciência é a organízadora dos dados elementares' (Schultz ~
pensamento, superando a dicotomia sujeito-objeto que fundamenta todos
Schultz,1992). . ,
os problemas epistemológicos que a filosofia tenta resolver desde Platão
(como é possível conhecer?). A intencionalidade da consciência é a chave , Brentano, por outro lado, é critico desse modelo e defende que a
para essa reunião. Como tal postulado reestabelece a harmonia entre ho- Psicologia é empírica, isto é, fundada na possibilidade de experienciação. '
mem e mundo, pensamento e ser? Seu postulado é de que há uma diferença ontológica entre atos psíquicos
e atos fisicos. Os fenômenos psíquicos, correlatos dos atos psíquicos,
Edmund Husserl inicia sua trajetória filosófica na Matemática.
, podem ser percebidos. Essa percepção é original e pode fundamentar todo
À medida que ruma em direção à Filosofia, cresce o seu descontentamen- '
to com a quantidade de pressupostos e especulações inquestionados na o conhecimento. "Ninguém pode verdadeiramente duvidar que o estado,
tradição filosófica. Destes, o mais evidente é a divisão entre res cogitans .psíquico que em si mesmo percebe não existe e não existe tal como o
(coisa pensante) e res extensa(coisa extensa), enunciada claramente por percebe" (Dartigues, 1992, p. 10). ,
Descartes. Como matemático, Husserl procura o mesmo grau de rigor O que caracteriza os atos psíquicos é que 'eles são intencionais.
matemático para a filosofia, que no início do século XX cai em descrédi- Brentano, estudioso de Aristóteles, recupera da Escolástica o co~ceito ~e
to, avassalada pelas incríveis possibilidades inauguradas pela aplicação intentio, por qual os atos da consciência contêm de alguma manetra aqui-
do método positivista de conhecimento na natureza. Diante dos resultados '10 a que se dirigem. Defme Brentano que: •
previstos e realizados pelo método experimental, a filosofia parece uma
gangorra de opiniões, especulações e fabulações contraditórias e inúteis.
Cada fenômeno fisico é caracterizado por aquilo que os Escolásticos
Com o objetivo de reencontrar um lugar para a Filosofia no campo do, da Idade Média chamaram de inexistência intencional (ou" às vezes,
conhecimento, Husserl recorre às ideias de Franz Brentano, de quem foi mental) de um objeto e que gostaríamos de cham~ não tão .ine9-uiv.~-
aluno. Este psicólogo vislumbrou a possibilidade da Psicologia afirmar-se cadamente, de referência (Beziehung) a um conteudo, de direcionali-
como ciência empírica ("experiencial"), opondo-se à naturalização dessa dade (Richtung) aum objeto (que, neste contexto, não deve ser enten-
ciência nascente. Fez isso filosoficamente. Daí a importância de compreen- - dido como algo real) ou imanente qualidade de objeto (imanente
der suaproposta, ' Gegenstãndlichkeiô. Cada qual contém algo como seu objeto, ~mbora
não da mesma maneira. Na representação (Vorstellung) algo e repre-
sentado, no julgamento .algo é confirmado ou-rejeitado, no desejar é
desejado, etc. A inéxistência intencional é peculiar somente aos fenô-
Brentano e uma Psicologia do Ponto de Vista Empírico menos psíquicos. Nenhum fenômenofísico apresenta algo assim.'
Assim, podemos definir fenômenos psíquicos afirmando quesão os
fenômenos que contêm objetos em si mesmos por.meio da intenção
No livro Psicologia doPonto de Vista Empírico, Franz Brenta- .timencionais]. (Brentano apud Spiegelberg, "19~4)
no rivaliza com a tentativa de sua contemporaneidade de transformar a , '
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Leu William James e ficou bem impressionado, conheceu os escritos
o ato psíquico de ver uma árvore contém de alguma maneira as de Theodor Lipps e também conheceu pelo menos algumas das obras
cores, as formas, as texturas etc. Estas estão dadas como fenômenos psí- das escolas de Würzburg e daGestalt. (p. 12) .
quicos como cor-vista, forma-vista, textura-sentida etc. Ele reconhece que
nada pode ser verdadeiramente afirmado sobre a árvore física ("objetiva",
Com base nisso, Husserl tenta revelare resolver os impasses da
externa), mas é irrecusável que a consciência possa perceber o seu perce-
filosofia no :final do XIX. A crise de fundamentos que ele denuncia é a
ber algo (árvore) (Rehfeld, 2006).
tentativa de fundamentar toda possibilidade de conhecimento na objetivi-
A mente, na concepção de Brentano, é o conjunto momentâneo dade (materialismo) ou na subjetividade (idealismo), que .leva aos "is-
de atos psíquicos (intencionais). Estes podem ser acessados por intros- mos" - psicologismo, sociologismo, biologismo, historicismo ..Estes sufi- ,
pecção, Com isso, a psicologia empírica prescinde do método experimen- xos apontam a contradição inerente nessas ciências ao se postularem co-
tal para conhecer as leis gerais de funcionamento que se esconderiam por mo ciências fundamentais, isto é, como aquelas que fornecem as bases'
trás das percepções singulares, como postulava Wundt. E possível des- epistemológicas para todas as demais. Por exemplo, quando ,a Psicologia'
crever os atos psíquicos atuais e, ao fazer isso, a consciência, 'objeto' de , do XIX determina que todo conhecimento verdadeiro é fruto de uma ope-' ,
estudo da Psicologia. A rigor, para Brentano, o objeto de estudo da Psico- ração mental, esse mesmo postulado aplica-se a essa premissa. Cai por"
logia é o fenômeno psíquico. Como conjunto de atos, a mente é um fluxo. '. terra sua validade quando suas raízes estão suspensas miar; a Psicologia
Espanta-me que este tão importante debate tenha esmorecido ao vira Psicologismo.· . .
longo do-século XX. Como formando em Psicologia tive poucos contatos Essa contradição interna que tornaquesti6náveis suas afirma-:
com as ideias de Wundt e de Brentano e com o sentido de suas investiga- ções é aonde chegam todas as ciências que partem de hipóteses e pressu- ,
ções. Estes me foram apresentados como curiosidades da pré-história da postos. O principal pressuposto do qual partem as ciências é a crença
Psicologia, irrelevantes para a vida do psicólogo contemporâneo e da
numa realidade objetiva acessada pelo sujeito, isto é, a cisão Sujeito-
prática psicológica. Será mesmo assim? Será que os rumos ~ as decisões
-Objeto (S - O). É disso que falava minha primeira aula no curso de Psi-
tomados no início do século não influenciam os modos-de-ser da Psico-
cologia, mas foram anos até que isto fosse se clareando para mim.
logia atual?
A Psicologia parte e depende da cisão Sujeito-Objeto, pois é a
Por ora, preciso compreender como a Psicologia de Brentano
ciência da subjetividade, do sujeito, da consciência ou do comportamen- .
ajuda Husserl a "reconstituir este mundo atualmente estilhaçado" (Arendt,
to, dos neurotransmissores, da espécie mais evoluída, ou ainda.da relação
1994,p. 165).
dialética sujeito-objeto, teoria-práxis. Quase todas as .psicologias que me
,. foram apresentadas ao longo da faculdade, assim como outras que vim a
estudar depois, partem desse preconceito teórico que Husserl, em 1900,
Husserl e a re-união de sujeito e objeto mostrava como enganoso. A Fenomenologia exige a suspensão, a coloca-
ção entre parênteses a cada Vez de crenças, pressupostos, preconceitos.'
Na Psicologia, isso significa que é preciso estranhar até me~mo os con-
Husserl é aluno de Brentano e parte destes dois aspectos cen-
ceitos usados pelas psicologias que se apresentam como fenomenológi-
trais da psicologia empírica para resgatar o sentido da filosofia: 1) a in-
caso Essa suspensão é necessária para que se possa. conhecer o que se
tencionalidade da consciência e 2) a consciência como fluxo. O matemá-
busca conhecer, assim como para se compreender como o conhecimento
tico é conhecedor das psicologias alemã e austríaca contemporâneas, mas
é possível.
. denomina-as empíricas, ciências positivas, que devem ser distintas de
uma psicologia filosófica e da Fenomenologia. Relatam Misiak & Sexton . Os estranhos esquemas S - O que eu vejo no primeiro semestre
(1973) que ele do curso de psicologia indicavam que a fenomenologia é epistemologia.
Epistemologia, termo composto por episteme + logos, remete ao conhe-
cimento teórico decorrente de raciocínios. Na história da filosofia se con-
[.:.] conheceu Wilhelm Wundt,estudou com Brentano, foi amigo de .solida como oposto a Emperia. É daí que vem a oposição~ entre teoria e
Carl Stumpf e colega de GiE, Müller na Universidade de Gõttingen,
• .............,
__ ~r-.

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~... ] O conceito de redução fenomenológica adquire uma determinação
prática, raciocínio e experiência, tão comum na psicologia. Entretanto, o mais precisa, mais profunda e um sentido mais claro: não é a exclusão
verbo epistemai significava, em grego, aptidão, capacidade, de modo que do verdadeiramente transcendente (por ex., no sentido empírico-
não se distinguia conhecimento teórico e conhecimento prático. Com psicológico), mas a exclusão do transcendente em geral como de uma
Aristóte1es se consolida a definição de epistéme como ciência racional, existência a admitir, isto é, de tudo o que não é dado evidente no sen-
obediente ao princípio de não contradição. tido genuíno, dado absoluto do ver puro. Mas, naturalmente, mantém-
-se tudo o que dissemos: ficam excluídas e aceitam-se só como 'fe-
A fenomenologia de Husserl é um esforço para compreender os nômenos' as vigências ou as realidades, etc., derivadas nas ciências
fenômenos tal como são, não de àcordo com as teorias sobre eles. En- por indução ou dedução a partir de hipóteses, factos,' axiomas; e fica I
, .quanto epistemologia, a fenomenologia é um esforço metodológico de igualmente em suspenso todo o recurso a qualquer 'saber', a qualquer
,i desconfiar de todos os pressupostos, preconceitos, dogmas e compreen- 'conhecimento': a investigação deve manter-se no puro ver (im reinem I
n
li sões prévias. Schauen) ... (Husserl, 1907/1986, p. 29)
ii
1\
i' Quantas vezes ouvi a máxima da fenomenologia, "de volta às I
I! coisas mesmas!" Sinto que só a entendi. dez anos após ouvi-Ia pela pri-
i; Na atitude fenomenológica, o fenomenólogo encontra os fenô-
I
li meira vez. Não quer dizer de volta às coisas objetivas, reais, livres de menos no seu aparecer na consciência, que recebe e constitui esse aparecer,
11 distorções subjetivas. Quer dizer de .volta aos fenômenos, que surgem sendo isso indubitável, autoevidente, apodítico, tal como a experienciação I
;f. ~ ~.
"lj
,) após a suspensão metodológica da atitude natural pela epoché. i ,~. defendida por Brentano. A partir da suspensão fenomenológica; deixa-se de
.
li ~'

I
li Por "atitude espiritual natural" (Natürliche Denkhaltung ou na- ! .~.
perceber as coisas como objetos fora da consciência para descobri-Ias no
" türlicher Einstellung) Husserl (1907/1986) se refere à postura ingênua, \ seu aparecer na consciência; esta, não pensada como uma cápsula, mas
pré-fenomenológica, de crença na imanência da consciência etranscen- como um ato, Assim, consciência e objeto acontecem concomitantemente, I
dência dos objetos, isto é, a cisão S - O, que é o limite de toda teoria do constituindo-se mutuamente. Os fenômenos são, portanto, inianentes.
conhecimento. Nessa atitude cotidiana, as coisas ao redor são encontradas Imanência costuma significar interioridade, mas, para Husserl, a I
e conhecidas como obviamente estando aí fora, acessíveis por meio da consciência não é uma interioridade, ela é ato; a fenomenologia suspende
percepção. Essa atitude deve ser contrastada com a "atitude filosófica" ou a dicotomia interior (sujeito) - exterior (objeto). Assim, a imanência dos
"fenomenológica" (Philosophische Denkhaltung). A fenomenologia, no fenômenos é imanência intencional, isto é, apreensão dó fenômeno no seu
seu esforço de não se submeter a teorias, preconceitos, suspende (reduz aparecer. O significado de fenômeno para Husserl é tanto o aparecer
fenomenologicamente) a cisão sujeito-objeto e a obviedade do mundo
quanto o que aparece. Esclarece ele:
como dado. Assim, "O conhecimento, a coisa mais óbvia de todas no
'pensamento natural, surge inopinadamente como mistério" (Husserl,
1907/1986, p. 41). A obviedade da cisão S - O é suspensa e mundo reve- IDa.lVÓj.l.SYOV (Phainomenon) significa efectivamente'o que aparece' e,
la-se imanência. no entanto, utiliza-se de preferência para o próprio aparecer, para o fe-
nômeno subjetivo (se se permite esta expressão grosseiramente psico-
O termo atitude indica uma postura; sua origem está no latim do lógica, que induz a mal-entendidosj.Hlusserl, 1907/1986; p. 35)
século xvn -.:. aptitudinem - indicando a postura corpórea num quadro ou
escultura, sendo generalizado no século seguinte para indicar um estado
mental. Também está ligado ao latim aptitudo, que significa tendência Portanto, a Fenomenologia é 'ciência' do aparecer.
(Online etymology dictionary, 2015). Em alemão o termo empregado é
Haltung, traduzível por "postura". Denkhaltung pode ser traduzido por A fenomenologia do conhecimento é ciência dos fenômenos cognosci-
. "modo de pensar", "estado de espírito", ou "atitude". Sinônimo usado por tivos neste duplo sentido: ciência dos conhecimentos como fenômenos
Husserl ao longo de sua obra é Einstellung, que significa "postura", "po- tErscneinungen), manifestações, actos da consciência em que se exi-
sição", "atitude". A noção de atitude e os termos empregados por Husserl bem, se.tornam conscientes, passiva ou activamente, estas e aquelas
estavam em voga na Psicologia do século XIX (Moran & Cohen, 2012). objectalidades; e, por outro lado, ciência destas objectalidades enquan-
Na atitude fenomenológica, à qual se chega pela epoché, to a si mesmas se exibem deste modo. (Husserl, 1907/1986, p. 35)
Psicologia Fenomenológica Existencial 165
" 164 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista
(Moura, 1998). A redução fenomenológica afasta dos fatos, levando às
A Fenomenologia é O estudo dos múltiplos atos intencionais essências. Com isso, a Fenomenologia de Husserl é Fenomenologia Eidé-
. i
\
(noese) e objetos intencionais (noema). O sentido dos fenômenos aparece
na correlação do ato que visa (noese) e que, ao captar os dados, dota-os
tica. A essência dos fenômenos é o que eles são, o significado pelo qual
aparecem. Desde' Platão, a essência é o que faz de algo aquilo que esse
! de sentido e da coisa visada (noema). A consciência, por sua vez, é con-
cebida corno -"estrutura sintética (processo de constituição) dos múltiplos
algo é, permitindo que seja conhecido, ~~ignado e nomeado.
í atos intencionais que constituem o sentido" (Goto, 2008, p. 71).
A Fenomenologia enfatiza que as coisas sempre aparecem sig-
,I
nificativamente. No exemplo de van den Berg (1955/1994), em que um
\ Isto significa que os fenômenos são constituídos na consciência.
i homem espera seu amigo com uma garrafa de vinho, a garrafa aparece
Para Husserl, portanto, ela é a estrutura que fundamenta a possibilidade como garrafa - isto é, significando "garrafa" - e também como solidão.
de todo conhecimento científico e de toda lida cotidiana com a "realida- Esses significados são constituídos na correlação intencional. O signifi-
de" ao redor, pois é na correlação intencional que surgem os significados cado não é algo que se agrega ao objeto, pois lhe é imanente. Não há
de tudo o que aparece. significado oculto ou por trás da aparência, portanto.
A concepção fenomenológica da consciência repercute na com- Husserl segue a Metafisica na determinação da essência como
preensão do "eu" como fluxo. Desde a Fenomenologia de Husserl, por- . una e imutável. Um exemplo ao qual recorre é da sinfonia. A sinfonia é
tanto, o "eu" entificado, substantivado, é suspendido, aparecendo em seu
um conjunto de. aconteciinentos: as minhas impressões ao escutá-Ia, o
lugar um "eu" fenomenológico, feixe de experiências (Feijoo, 2012).
som, a partitura, a atividade dos músicos etc. Mas há algo essencial ~a
Com esta superação da dicotoniiasujeito-objeto, a realidade sinfonia, que é a ordem e combinação das notas, que permite. que seJ.a
mostra-se atravessada pelo pensamento, constituída por ele. Mundo é reconhecida independentemente das circunstâncias da execução. Darti-
constituído pelo homem (consciência), sendo imediatamente dada a har- gues (1992) sintetiza:
monia e a correspondência de ambos (Arendt, 1994). A consciência surge
como condição a priori de todo conhecimento científico e de toda lida I
cotidiana; posicionando a Fenomenologia como "Ciência Primeira", ~is Independentes da experiência sensível, muito embora se dando através .1

é a queexplicita como é possível a aparição de todos os objetos tematiza- dela, as essências constituem corno que a armadura inteligível do ser,
dos pelas ciências; mais especificamente, explica o aparecer das essências tendo sua estrutura e suas leis próprias. Elas são a racionalidade ima-
nente do ser, o sentido a priori no qual deve entrar todo mundo real ou
que determinam cada ciência empírica, como a essência do social, do
possível e fora do qual nada pode se produzir, já que a ideia mesma de
fisico, do psicológico etc. Por isso é Filosofia Primeira.
produção ou de acontecimento é uma essência e cai, pois, nessa estru-
Goto (2008) sintetiza o método fenomenológico em três etapas. tura a priori do pensável. (p. 16)
A primeira é a epoché, termo grego que significa ter sobre, abster-se,
reter-se. Seu sentido é um projetar-se para trás, possibilitando o ver; E o
momento conhecido popularmente como "colocação entre parênteses", . Será daí que deriva para a Psicologia Fenomenológica a con-
que suspende a atitude natural (crença na evidência da objetividade exte-. cepção de que o psicólogo desta "abordagem" li~ com si~cações e
rior) e promove um estranhamento metódico. ressignificações?Esta concepção revela um entendiment? eqUlvoc~do. da
Fenomenologia. A noção de que cada pessoa tem a capacidade de SIgnifi-
O segundo momento é a redução eidética, que' elimina os ele-
car ou ressigníficar suas experiências postula que estas têm uma existên-
mentos naturais e contingenciais da experiência para chegar à essência
cia autônoma e independente às quais se agregam significações. Perma-
..(eidos) do fenômeno. O termo eidos está presente na filosofia desde PIa; nece velada a dicotomia do sujeito significante e do objeto significado.
tão, significando essência e idéia, conceito puro, uno.universal, eterno. E
Mas a significação é constituída na correlação intencional, não realizada
.;a busca por essências que motiva as investigações de Descartes, levado a
por um sujeito dotado da capacidade de significar.
, desconfiar do conhecimento a que chega pelos sentidosçpoiseles só co-
nhecem o mutável , e a assumir o método como acesso ao conhecimento A Fenomenologia nunca pode ser uma "perspectiva" ou "abor-
.

verdadeiro sobre a realidade (Descartes, 1641/1994). Husserl é cartesia- dagem". No contexto da prática psicológica, "fenomenológico" é um
no, no sentido de que também ele busca o conhecimento das essências' adjetivo que poderia ser substituído por "psicanalítico", comportamen-
Psicologia Fenomenológica EXistencial 167
166 Paulo Eduardo Rodrigues AlvesEvangelista . .

Fenomenologia como FilosofiaTranscendental


tal", "sócio-histórico" etc. Seria a Fenomenologia naPsicologia uma
"abordagem", uma "perspectiva"? Quando eu sigo a indicação de Husserl
de que sua meta é voltar-se às coisas mesmas, entendo que a fenomeno- o método fenomenológico que Husserl elabora ao longo de to-
logia é a supressão de toda perspectiva e abordagem a favor do mostrar- da sua obra, tendo por objetivo a recuperação da Filosofia da perdição e
se do próprio fenômeno. É o próprio fenômeno que aparece, tomando falta de credibilidade em que estava, explicitando .a crise das ciências
necessário um captar correspondente. Isto é, as perspectivas e abordagens europeias e propondo uma saída, compreende ainda mais um passo. É a
podem ser muito mais encobridoras daquilo que pretendem investigar do redução transcendental, por qual se chega à subjetividade transcendental.
que reveladoras, o que me remete ao Leito de Procusto, mencionado ante- A investigação deixa para trás os aspectos acidentais, fácticos, da cons-
riormente. Penso que é por isso que os fenomenológos recorrem a essa ciência empírica, tomando manifesta a "essência" da subjetividade co-
personagem mitológica. Se eu estiver correto, a expressão "Psicologia mo constituidora do sentido de toda a:realidade. Neste terceiro passo do
Fenomenológica" torna-se redundante, pois o que interessaria ao psicólo- método, a Fenomenologia diferencia-se de toda Psicologia. Esta lida
go é o mostrar-se diretamente de seu objeto de estudo. . com a significação e é ôntica, enquanto aquela é ontológica, nos termos
Como a definição de 'fenomenologia' para Heidegger muda, o de Heidegger.
uso da expressão 'fenomenológica' para predicaruma Psicologia exige Husserl considera esta redução o segundo grau da investigação'
grande atenção. Fica claro para mim também que a Fenomenologia de fenomenológica, pois, através dela, abandona a constituição fenomênica
Husserl não se apresenta como uma perspectiva ou abordagem. Ao longo circunstancial - a que corresponderia a uma psicologia descritiva, por
dos meus estudos e de minha prática docente encontro com frequência a descrever como determinado fenômeno aparece numa situação específica
Psicologia Fenomenológica alinhada com outras perspectivas como mais - na direção do "fenômeno puro". Diz ele:
um modelo teórico. 'Perspectiva' vem do latim perspectiva, formado por
per + specere, olhar (specere) através (per-), significando claramente um Abandonamos definitivamente o solo da psicologia, inclusive da psi-
viés de olhar para. Já abordagem vem do francês abordage, que remete cologia descritiva. Assim se reduz igualmente a pergunta que, origi-
.ao estar a bordo de uma embarcação. Por extensão esta locução marítima nalmente, nos impelia. Não é - 'Como posso eu, este homem, atingir
significa qualquer tipo de aproximação (Online Etymology Dictionary, ,. nas minhas vivências um ser em si, fora de mim?' - Em vez desta
2015). A Fenomenologia de Husserl desfaz a concepção de uma aborda- pergunta, de antemão ambígua, :..-em virtude de sua. carga transcen-
gem do Pensamento cognoscente ao Ser conhecível, pois ambos aconte- dente - complexa e multifacetada, surge agora a questão fundamental
:i
"
cemconcoriritantemente, constituindo-se mutuamente. A consciência não pura: 'Como pode o fenômeno puro do conhecimento atingir algo que
II'i· "aborda" um objeto. O modo como o objeto aparece na correlação inten- lhe é imanente, como pode o conhecimento (absolutamente dado em si
cional é apenas isso: um modo de' aparecer do fenômeno, que comporta mesmo) atingir algo que não se dá em si absolutamente? E como pode
uma infinidade de outros modos . compreender-se esse atingir? (Husserl, 1907/1986, pp. 26-7)
. Isso remete a uma' questão aberta anteriormente. Tanto' a ex-
pressão 'psicologia fenomenológica existencial' quanto 'psicologia fe- A Fenomenologia dá um passo atrás da experiência, colocando
nomenológico-existencial' são fruto do equívoco de predicar psicologia. em questão como é possível a' experiência. Ao mesmo tempo que reco-
Mas a analítica existenciária indica o caráter hermenêutico-discursivo do nheço um distanciamento de minha prática psicológica - pois me interes-
"'I.~', ;!
!
• existir, revelando a condição fenômeno-lógica do existir, isto é, de mos- sa conhecer como uma pessoalida com seu existir - noto um traço carac-
. trar e fazer ver (logos) o que se lhe aparece (fenômeno). Fenomenologia terístico de meu modo de ser psicólogo, que atribuo à fenomenologia: o
Existencial significa tanto o pôr em curso uma fenomenologia da existên- interesse epistemológico. A'Fenomenologia de Husserl é epistemologia,
cia, isto é, deixar e fazê-Ia mostrar-se como. é, quanto a condição de ser pois investiga a possibilidade de todo conhecimento verdadeiro.
fenomenológica - reveladora de ser - da-existência. Correto seria dizer: Com isto fica claro seu lugar no campo dos saberes de Filosofia
sou psicólogo e soufenomenológico-existencial. 'Psicólogo' indica meu Primeira. A Fenomenologia reflete sobre a possibilidade de todo conhe-.
campo de ação e 'fenomenológico existencial', meu modo de assumir a cimento possível. Todas as ciências são fundadas. .
existência minha e daqueles que encontro.
Psicologia Fenomenológica Existencial 169
168 Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista .
possibilidade de entender todo comportamento humano explic~do-o I?or
o psicólogo lida com os "fenômenos psicológicos", sendo que suas causas. A explicação causal busca recuperar uma harmonia perdida
não é ele quem determina a essência dos mesmos, isto é, o que eles são. com seu entorno e consigo mesmo.
Também não cabe ao psicólogo refletir sobre a possibilidade de tal ciên- A re-união de consciência e mundo, a morada buscada pela Fe- .
cia. Partindo de um âmbito científico aberto - a Psicologia -, seu papel é nomenologia de Husserl nunca é encontrada, pois o. ~s~ério de que as
de levar adiante as pesquisas, produzindo novos conhecimentos mais coisas são e de que eu existo não encontra resposta definitiva. Enquant~ a
correspondentes ao modo de ser de seu objeto temático,o "psicológico". .Fenomenologia fornece uma resposta para esse enigma, as filosofias exis-
Portanto, o psicólogo não pode misturar alhos com bugalhos. São refle- tenciais sublinham seu caráter de incontornável e insolúvel (Arendt,
xões diferentes e têm sentidos diferentes a Fenomenologia, a Psicologia 1994). A indicação da origem das significaçõe~ que I?erfazeI? o r~al ~ão é
Fenomenológica, o Existencialismo e a psicologia fenomenológica exis- o suficiente para eliminar o estrangeirismo existencial e a inospitalidade
tencial. Descubro meu equívoco ao afirmar, quando me perguntam sobre
do mundo.
minha "abordagem" de trabalho, que sou psicólogo fenomenológico exis- .
Nas reflexões acima, descubro possibilidades abertas pela Fe-
tencial. Fenomenologia não pode predicar a Psicologia.
nomenologia para a Psicologia, assim como o ponto de ~ptura e~tre ~-
O objetivo do fundador da Fenomenologia é, enfim, revelar bas. O contato com a filosofia toma mais claro o sentido da PSlc~~o~a
como são produzidos os sentidos da totalidade de fenômenos possíveis, fenomenológica delineada por van den Berg '. Ao d~fender a exp;~encla
chamada pela filosofia de 'realidade' ou 'mundo'. Sua resposta é que subjetiva, o psiquiatra está apoiando-se na pSlcolo~a f~nomenologIca ~e
mundo é constituído na consciência; o sentido do que é experienciado Husserl, que é a investigação da constituição dos significados dos feno-
surge na consciência. Assim, a Fenomenologiaresgata a intimidade entre menos para cada pessoa. A experiência sin~m: ~ão pode ser recusada,
Ser e Pensamento, homem e mundo. O que as coisas são é constituído na muito menos suplantada por uma suposta ~bJetlVldade. Neste .contexto,
relação com o homem. O·pensamento tem a priori uma harmonia com o até a objetividade é uma significação constituída fenomenologicamente.
que é nele pensado. Ser e Pensamento são um, tal como indicado por É somente uma significação, uma perspectiva.
Parmênides no Poema.
E a Abordagem Centrada na Pessoa, tão indicada como veículo
A intencionalidade da consciência responde a um estranhamen- da fenomenologia existencial na Psicologia brasileira, como fica? A l.uz
to diante do ser (mundo, realidade) aí, cujos origem e sentido são desco- desta apresentação da fenoinenologia husserliana e ~s.reflexõ~s ant~n~-
nhecidos. Mais precisamente, elimina-o. Esseestranhamento pode ser res, retomo-a para nela buscar seus traços fenomenológicos e existenciais,
espanto - como no início da Filosofia na Grécia -, como pode ser uma
se houver.
sensação de mal-estar, evidente na literatura e na arte do fmal do XIX e
no XX e nos Existencialismos. Na Fenomenologia o homem redescobre-
-se criador do mundo.

Tal reconstituição do mundo pela consciência equivale a uma segunda


criação, no sentido de que através desta reconstituição o mundo perde-
ria seu caráter contingente, que significa seu caráter de realidade, e
não apareceria mais ao homem como um mundo dado, mas, criado por
ele. (Arendt, 1994, p. 165)

Arendt considera este esforço uma nova tentativa de fundar um


Humanismo,dando ao homem um lar. Por outro lado, expressa a hybris
.:moderna de "fmalmente tornar o homem, num modo tão inconspícuo,
o
aquilo que ele não. pode ser: criador do mundo e de si mesmo" (Arendt,
r :

1994, p. 167). Penso que é a mesma hybris que eleva a razão e crê na

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