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Teologia Sistemática a-4

3a edição
A In -miri <tl(|o viável em nossos dias? Mais que isso, nos diz
....... (ui A \k oHtrt presente, e é necessária, em todos os perío-
>ln.i <1.1 hlmórln humana: quer como força integradora, que une
0 il i loim n ti todos os elementos intelectuais, emocionais e
1>ii11<unia do ser pessoal perante o in fin ito e incondicional;
i|im» mn distorções, como fé idólatra, não voltada para o infi-
nlto, munifestando-se então como força que desintegra e des-
tról. Leia-se como o autor chega a tais conclusões partindo de
definições positivas e negativas da fé; dos símbolos adequados
piirn tratar da mesma; descrevendo vários tipos de fé, que por
«ua vez geram vários tipos de ação, atitudes e comunhões de
fó; desenvolvendo a relação e tensão entre certeza e dúvida;
ontre fé e razão, entre verdade de fé e verdades científica, his­
tórica e filosófica; concluindo que uma ciência que permane­
ce ciência não pode contradizer uma fé que permanece fé. Pois
a fé se justifica a si mesma e pode ser atacada só em nome de
outra fé. Este é o triu n fo da dinâmica da fé: Que toda nega­
ção de fé já é expressão de fé. Tal assunto é de extrema atua­
lidade.
Paul Tillich

DINAMICA DA FE

Tradugao de W a lte r 0 . S chlupp

A.

33 Edi?So

1985
T ítulo d o o rig in a l in g lê s DYN AM IC S OF FAITH, H arper & Row,
P ublishers, Inc., N e w Y o rk. T raduzido com apoio na versão alemã
"W esen und W and el des G la u b e n s" (Evang. V e rla g s w e rk , S tu ttg a rt,

1970).

C o p y rig h t (c) 1957 b y Paul T illich, com perm issão de H arper


& Row, P ublishers, Inc., N e w Y ork.

Urn vo lu m e de " W o rld Perspectives S eries" - série planejada e


e ditada p o r Ruth N anda A n sh e n .

D ireitos da edição p o rtu g u e sa reservados à EDITORA SIN O D AL


Rua E pifânio Fogaça, 46 7 , 9 3 0 0 0 SÃO LEOPOLDO, RS, Brasil

Capa: A r y Schm achtenberg

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IMPRESSÃO: G R Ã FIC A S IN O D A L
[JIN Ã M IC A DA FÉ

O bservações In tro d u tó ria s


D ific ilm e n te haverá 3lgum a palavra na lin g u a g e m religiosa —
seja ela e ru d ita ou p o p u la r — que tenha sid o mais in co m p re e n d id a ,
distorcida e mal d e fin id a d o q u e a p a la vra " fé " . Ela é um desses
term os que p rim e iro precisam ser curados, antes de poderem cu ra r
pessoas. H oje a palavra " f é " causa mais d esorientação do _gue^ cura.
Ela co n fu n d e as pessoas, le v a n d o a e xtre m o s com o ceticismo ou~Tá^
natism o, resistência pela razão ou^ suieicão em ocional., rejeição de
re lig iã o genuína ou aceitação acrítica^H e"sucedâneos. Às vezes até
surge a tentação de suge rir que se abandone co m p le ta m e n te a palavra
" fé " . Mas por mais desejável q u e seja, isso d ific ilm e n te é possível.
Uma poderosa tradição está p ro te g e n d o esta p alavra. A lém disso
não possuím os nenhum o u tro te rm o q u e faça jus à realidade e x­
pressa p o r " fé " . Assim não nos resta p o r e n q u a n to nenhum a o u tra
saída senão te n ta r re in te rp re ta r esta p a la vra e e x c lu ir suas cono­
tações d istorcidas e enganadoras, as quais se lhe associaram através
dos séculos. É a esperança d o a u to r alcançar ao m enos esse p ro p ó sito ,
mesmo se não lhe fo r d a d o ch e g a r à m eta m u ito mais ambiciosa
de convencer alguns leitores d o p o d e r o cu lto da fé que se encontra
em seu íntim o, m ostrando-lhes a im e n su rá ve l im p o rtâ n cia d a q u ilo
que é expresso na fé.

I. O QUE É A FÉ

1. Fé como estar p ossuído p o r a q u ilo que nos foca in c o n d i­


cionalm ente
Fé é estar possuído p o r a q u ilo que nos toca in co n dicio n a lm e n te .
Como todos os outros seres viv o s , o hom em se preocupa com m uitas
coisas; so bretudo ele se p re o cu p a com coisas tão necessárias com o
alim ento e m oradia. Mas à d ife re n ç a d e ou tro s seres vivos, o hom em
tam bém tem preocupações e s p iritu a is , isto é, estéticas, sociais, p o ­
líticas e cognitivas. A lg u m a s dessas preocupações são urgentes,
m uitas vezes até e xtre m a m e n te u rgentes, e cada uma delas,
tanto qu a n to as exigências d o sustento, pod e ser considera-

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<ln to m o Im prescindível para a vida de um in d iv íd u o bem
<i .iiii • i Ir* IckIíi uma co m u n id a d e . Q u a n d o isto acontece, a preocupação
um I ...... c<ige dedicação to ta l p o r parte d a q u e le que aceita essa
BXkinncln Mas ao mesm o te m p o ela p ro m e te realização p e rfe ita ,
n if . m o *.f! ostras exigências passam para o se g u n d o p la n o ou mesmo
| iimc:| m iih Mir rejeitadas. Q u a n d o um p o vo fa z da vid a e do cres-
i im n ilu iJ.i nação a sua preocupação suprem a, é e x ig id o que se
lhe '..ii rific|uem todas as ou tra s coisas, com o sejam bem -estar, saúde
.■ vlcl.i, fíim d ia , valores c o g n itiv o s e estéticos, justiça e hum anidade.
A-. form as extrem as de na cio na lism o como as conhecemos em nossa
>'l .<m .i servem até de m o d e lo para v e rific a rm o s os efeitos de uma
"p reocupação suprem a" sobre todos os â m b ito s da existência hu-
iii.iiu i, até nas questões m ais triv ia is da v id a co tid ia na . Tudo deve
s e rvir ao deus único: a nação. Q u a n d o fin a lm e n te esse deus tam bém
no e vid e ncia como um d e m ô n io , ele dem o n stra claram ente a e x i­
gência incondicional leva n ta d a p o r toda preocupação suprem a".
Mas a preocupação suprem a de uma pessoa não se esgota na
■.imples exigência de sujeição in c o n d ic io n a l; ela contém igualm ente
.1 prom essa de realização suprem a, que é esperada num ato de fé.

I '.ki prom essa de m aneira a lg u m a precisa ser d e te rm in a d a em d e ­


talhes. Ela pode v ir à tona em sím bolos in d e fin id o s ou concretos,
npenas não ',e pode com p re e nd ê -lo s ao pé da letra. Isto acontece
p o r e x e m p lo com a "g ra n d e z a " da p ró p ria nação, da qual, ao que
d ize m , se participa até d e p o is de se m o rre r p o r ela; ou com a
salvação da h um anidade através de uma raça s u p e rio r, etc. Em cada
um desses casos se p ro m e te uma "re a liza çã o ú ltim a ", ameaçando-se
e x c lu ir dessa realização a to d o aquele q u e fo g e à exigência in ­
c o n dicional.
Um e xe m p lo — e mais do q u e um e x e m p lo — é a fé que se
m anifesta na re lig iã o do A n tig o Testam ento. Ela tam bém tem o
caráter incondicional na e x ig ê n c ia , ameaça e prom essa. Mas a q u ilo
q u e interessa in co n dicio n a lm e n te não é a nação, se bem que o
nacionalism o judeu ocasionalm ente lhe te n to u d a r esta fo rm a d is­
to rcid a ; o que, porém , preocupa in c o n d ic io n a lm e n te é o Deus da
justiça, que é cham ado de Deus Todo-Poderoso, o Deus de toda a
criação, p o rq u e para to d o hom em e para cada p o vo ele encarna
.1 justiça. Ele é a preocupação inco n dicio n a l de to d o judeu devoto,

o p o r isso em seu nom e é p ro cla m a d o o m andam ento de m aior


em inência: "A m arás o S enhor teu Deus de to d o o teu coração, de
Ioda a tua alm a, e de toda a tua fo rç a " (Dt 6, 5). N isto está expresso
o que q u e r d ize r preocupação ú ltim a , estar possuído in condicional­
m ente, e é desse m a nda m en to suprem o que d e riva o conceito da
"preocupação ú ltim a ", ou d o "q u e nos preocupa in c o n dicio n a lm e n te ".

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Este m a n dam ento proclam a in e q uivo ca m e n te a natureza da fé g e ­
nuína e a e xigência de dedicação total à q u ilo que pe rfa z a p re o ­
cupação últim a . O A n tig o Testam ento está re p le to de m andam entos
que esclarecem a natureza dessa dedicação, associando-os a um
sem -núm ero de promessas e ameaças. A q u i ta m b é m as promessas
são de uma in d e fin içã o sim b ó lica , se bem que no centro se e n ­
contre a realização da vid a nacional e pessoal. C om o ameaça, p o ré m ,
surge a exclusão dessa realização; ela sig n ifica decadência do p o v o
ou extin ção do in d iv íd u o . Para o hom em d o A n tig o Testam ento a
fé é o estar possuído ú ltim a e in co n d icio n a lm e n te p o r Javé e p o r
tu d o a q u ilo que ele representa através de seus m andam entos, am ea­
ças e promessas.
O u tro e xe m p lo , que é quase um c o n tra -e xe m p lo , se bem que
ig u a lm e n te reve la d o r, está na m aneira em que sucesso na v id a ,
"s ta tu s " social e ascensão econôm ica se tra n sfo rm a m numa p re o ­
cupação inco ndicio nal. Este é o "d e u s " de m uitas pessoas no m u n d o
o cid e nta l, d o m in a d o pe lo e sp írito de concorrência. Com o to d o in ­
teresse ú ltim o , tam bém ele re iv in d ic a o b e d iê n cia incondicional às
suas leis, mesm o que isso s ig n ifiq u e que a pessoa terá que sacrificar
relações hum anas genuínas, convicções p ró p ria s e cria tiv id a d e . Sua
ameaça é decadência social e econôm ica; sua promessa — vaga
como todas as promessas desse tip o —, a realização da p ró p ria es­
sência. O colapso de sem elhante fé é um traço característico da nossa
lite ra tu ra contem porânea, a q ual justam ente p o r esta razão recebe
um s ig n ific a d o religioso. O que se m anifesta em novelas como P oint
o f no Return (1) de John P. M a rq u a rd não é um cálculo falso, mas
sim uma fé desenganada. N o m o m e n to da realização a promessa se
evidencia com o nula.
Fé é o estado em q u e se é possuído p o r a lgo que nos toca
in co ndicion alm ente . Está ce rto que o conteúdo específico da fé é
de m áxim a im portância para o crente, mas este conteúdo é irre le ­
vante para a d e fin içã o de fé . Este é o p rim e iro aspecto que precisa­
mos reconhecer, se quiserm os c o m p re e nd e r a dinâm ica da fé.

2. Fé com o ato da pessoa in te ira


Fé com o estar possuído p o r a q u ilo que nos toes in co n d icio n a l­
mente é um ato da pessoa com o um todo. Ele se realiza no ce n tro
da vida pessoal e todos os elem entos desta d e le p a rticip a m . Fé é
o ato mais ín tim o e g lo b a l d o e sp írito hum ano. Ela não é um p ro ­
cesso que se dá numa seção parcial da pessoa nem uma fu n çã o
especial da vivê n cia hum ana. Todas as funções do hom em estão con-

(1) N. d o T.: Em p o rtu g u ê s este títu lo p o d e ria ser: " N ã o há que v o lta r a trá s ".

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jugadas no ato de fé. A fé , no entanto, não é apenas a soma
das funções in d iv id u a is . Ela ultrapassa cada um a das áreas da
vida hum ana ao mesm o te m p o em que se faz s e n tir em cada uma
delas.
Uma ve z que a fé é um ato da pessoa to d a , ela participa da
dinâm ica da vid a pessoal. Essa dinâm ica já fo i descrita de muitas
m aneiras, mas as publicações mais recentes no cam po da psicologia
^ a n a lític a é qu e mais se a p ro fu n d a ra m aqui. Todas elas têm em comum
o pensam ento em po la rid a d e s e a observação das tensões e conflitos
d aí resultantes. Com isso a psicologia da pessoa se torna extrem a­
m ente d in â m ica , levando necessariam ente a uma te o ria dinâm ica da
fé , a q u a l, mais do que q u a lq u e r outra m anifestação v ita l do homem ,
tem sua raiz no centro da pessoa. A p o la rid a d e p rim e ira e decisiva
na p sico logia analítica está e ntre o assim cham ado inconsciente e
o consciente. Fé com o m anifestação da pessoa in te g ra l não pode ser
im agin ada sem a atuação concom itante dos elem entos inconscientes
na estrutura da pessoa. Eles sem pre estão presentes e determ inam
em a lto grau o conteúd o da fé. Por o u tro lado, po ré m , a fé é um ato
consciente, e com isso os elem entos inconscientes só participam do
s u rg im e n to da fé quan do são levados ao centro da pessoa e por ele
são im p re g n a d o s. Se isto não acontece, q u a n d o apenas as forças in ­
conscientes d e te rm in a m a constituição in te rio r da pessoa, então o
que surge não é fé , mas atos obsessivos de diversos tip o s que tom am
seu lug ar. Mas fé é uma questão de lib e rd a d e . Liberdade por sua
vez é nada mais d o que a p o ssib ilid a d e de a g ir a p a rtir do centro
da pessoa. Esta m aneira de v e r poderia ser m u ito ú til em freqüentes
discussões em que fé e lib e rd a d e são apresentadas com o opostos. A q u i
lib e rd a d e e fé são vistas com o uma só coisa.
A outra p o la rid a d e , assinalada p o r Freud e sua escola como ego
e super-ego, é de igual im p o rtâ n cia para a com preensão da fé. O
conceito d o super-ego é bastante am bíguo. Por um lado ele é o
fu n d a m e n to de toda vid a c u ltu ra l na m edida em que não perm ite
q ue se dê rédeas soltas à lib id o sempre insistente. Por o u tro lado
ele castra a v ita lid a d e da pessoa, gera o "m a l-e sta r da cu ltu ra ",
le vando sob certas circunstâncias à neurose. Sob esse p o n to de vista
os sím bolos da fé aparecem com o expressão d o super-ego ou, em
term os concretos, da "im a g e m do p a i", que dá ao super-ego seu
conteúdo p ro p ria m e n te d ito . é d e v id o a esta teoria inadequada do
super-ego que, com o o n a tu ra lism o , Freud rejeita normas e p rin c í­
pios. Q u ando o super-ego não se ju stifica p o r norm as objetivas, ele
se tra n sfo rm a num tira n o . M as a fé real consegue vestir-se da im a­
gem paterna, tra nsfo rm a n d o -a mesmo assim num p rin c íp io de ve r­
dade e justiça, o qua l, se fo r o caso, precisa ser d e fe n d id o mesmo

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contra o " p a i" . Em todos os casos, fé e cu h u ra só p o d e m ser m a n ­
tid o s, se o super-ego encarna norm as e p rin c íp io s o b je tiv o s d o ser
(Sein).
Neste p o n to surge a se g u in te p e rg u n ta : Q u a l é a relação entre
a fé com o um ato pessoal c e n tra d o e a e stru tu ra racional d o hom em ,
q u e se m anifesta em sua lin g u a g e m lógica, sua capacidade de d is ­
tin g u ir o v e rd a d e iro e de fa z e r o bem , assim com o em seu senso
estético e de justiça. É tu d o isso, e não só a sua capacidade de
d is tin g u ir, ca lcular e fu n d a m e n ta r q u e faz d o hom em um ente ra­
cional. Mas apesar desse co n ce ito m ais g lo b a l da razão, precisam os
re je ita r a o p in iã o de que se possa id e n tific a r a natureza p ró p ria do
hom em com a estru iu ra racional de seu e s p írito . O hom em tem a
p o ssib ilid a d e de se d e c id ir a fa v o r ou contra a razão; ele tem a
capacidade de ir além da razão em sua c ria tiv id a d e , bem com o de
d e stru ir, c o n tra ria n d o toda a razão. O que dá ao hom em essa capa­
cidade é o p o d e r do seu eu (2), em cujo cerne estão co n ju ga d o s
todos os elem entos de seu ser. Fé não é, p o rta n to , um ato de forças
irracionais q u a isqu e r, assim co m o ta m b é m não é um ato d o incons­
ciente; ela é, isto sim, um ato em que se transcendem ta n to os e le ­
m entos racionais com o não-racionais da v iv ê n c ia hum ana.
Sendo o ato g lo b a l e m ais ín tim o da pessoa, a fé é "e x tá tic a ".
Ela é mais do que os im pulsos d o subconsciente irracio n a l e ta m b é m
vai além das estruturas d o consciente racional. Ela os transcende,
mas não os de stró i. O caráter e x tá tic o da fé não exclu i a razão, se
bem que não é idêntica a ela; além disso e le ta m b é m e n g lo b a
elem entos não-racionais, sem q u e se resuma nesses. N o êxtase da
fé há uma consciência da v e rd a d e e de va lo re s éticos; am or e
ód io, brig a e conciliação, in flu ê n c ia s in d iv id u a is e co le tiva s, com o
fo ra m exp e rien ciadas no d e curso da v id a , tu d o isso está in te g ra d o na
fé. "Ê xtase" q u e r d iz e r "e sta r fo ra de si", sem d e ix a r de ser a gente
m esm o, sem sacrificar um só dos elem entos re unidos no centro
da pessoa.
Para co m p re e nd e r a fé ainda é necessário saber da tensão e ntre
a função c o g n itiv a de um la d o , e s e n tim e n to e vo n ta d e d o o utro.
N um ca p ítu lo p o ste rio r te n ta re i p ro v a r que m u ito s m a l-e n íe n d id o s
acerca da fé têm sua raiz na te n d ê n cia de re la c io n a r a fé com uma
dessas funções. Q u e ro a firm a r a q u i com toda ênfase q u e to d o ato
de fé tam bém contém um e le m e n to c o g n itiv o , mas não com o re su l­
tado de um processo in d e p e n d e n te de p e nsam ento, mas com o um
e le m en to ind isp ensáve l de um ato g lo b a l de receber e d e d ic a r. Assim
tam bém é reje itad a a o p in iã o d e q u e a fé é o re su lta d o de um
ato in d e p e n d e n te do vonta d e . E cla ro que a v o n ta d e ta m b é m par-

(2) N. d o T.: O te rm o o rig in a l "S e lb s t" (in g lê s " s e lf " ) sem pre será re p ro d u z id o p o r " e u " .

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ticipa q u a n d o aceitam os a q u ilo que nos toca in co n dicio n a lm e n te ;
mas a fé não é uma o bra da v o n ta d e . N o êxtase da fé a p ro n tid ã o
para aceitar e dedicar-se é apenas um e le m e n to da fé , mas de m odo
a lg u m é a sua causa. Fé não brota de um tu rb ilh ã o de sentim entos;
não é isso qu e se q u e r d iz e r com êxtase. N ão há d ú v id a de que o
s e n tim e n to está incluso na fé , com o em toda m anifestação de vida
e s p iritu a l. Mas sen tim ento não p ro d u z fé . Esta contém conhecim ento,
com o ta m b é m é uma decisão da vo n ta d e , isto é, ela é a u n id a d e de
todos esses elem entos no eu "c e n tra d o ". N a tu ra lm e n te esta unidade
não e x c lu i a p o ssib ilid a d e de que um ou o u tro e le m e n to tenha p re ­
d o m in â n cia em certas fo rm a s especiais da fé ; esse e le m e n to d e term ina
então o caráter da fé , mas não a produz.
Com isso tam bém respondem os à p e rg u n ta se é possível uma
p sico lo g ia da fé. Tudo o que acontece na p e rs o n a lid a d e (personhaftes
Se:n) do hom em pod e ser o b je to da p sico lo g ia . Tam bém é im p o r­
tante que ta n to o filó s o fo da re lig iã o com o o cura d'a!m as se dêem
conta de com o o ato da fé está in se rid o na to ta lid a d e dos processos
p sicológicos. Esta fo rm a le g ítim a e até necessária de uma psicologia
da fé se encontra, p o ré m , em contraposição com uma outra que
procura d e riv a r a fé de a lgo que nada tem a v e r com fé , e sim
com m e do , na m aioria dos casos. Tal p ro c e d im e n to se apóia na
suposição de q u e o m e d o ou q u a lq u e r o u tra coisa, da qual se d e riva
a fé , seja m ais o rig in a l e fu n d a m e n ta l do q u e a p ró p ria fé. Mas esta
suposição não pode ser p ro va d a . M u ito p e lo c o n trá rio , pode-se d e ­
m o n stra r q u e em to d o p ro c e d im e n to c ie n tífic o que leve a tais con­
clusões, a fé sem pre já está atuando. A fé p recede a todas as tenta­
tivas de d e rivá -la de algum a o utra coisa; pois essas tentativas já
p ressupõem a fé.

3. A Fonte da Fé
Nós descrevem os a fé e sua relação com a to ta lid a d e da pessoa.
Neste se n tid o a fé é um ato in te g ra l p ro ce d e n te do centro d o eu
pessoal, no qual percebem os o in c o n d ic io n a l, o in fin ito , e p o r ele
somos possuídos. Mas o que é a fo n te dessa preocupação que tu d o
e n g lo b a e tu d o transcende? A expressão "p re o cu p a çã o in c o n d ic io ­
n a l" indica dois lados de um re la cio n a m e n to : ela mostra para
aquele que p o r ela é possuído com o para a q u ilo que o possui. Daí
resulta q u e precisam os nos conscientizar da situação do hom em
com o tal p o r um lado, e d o hom em em relação com o seu m u n d o
p o r o u tro . O fa to de o hom em ter uma preocupação ú ltim a revela
a lg o de sua natureza, isto é, q u e ele tem a capacidade de trans­
ce n der o flu x o contínuo de exp e riê n cia s fin ita s e passageiras. As
e xp e riên cias, os sentim entos e pensam entos d o hom em são co n d i­

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cionados 61 passageiros. Isío não só q u e r d iz e r que su rg e m e desa­
parecem , mas tam b ém se re fe re ao seu c o n te ú d o , a não ser q u e
sejam elevados ao nível de v a lid a d e in c o n d ic io n a l. Isto, p o ré m , p res­
supõe uma fa cu ld a d e especial e a presença d o e le m e n to do in fin ito
no hom em . O hom em , num ato d ire to , pessoal e ce n tra l, é capaz
de captar o sen tid o do que é ú ltim o , in c o n d ic io n a l, a b so lu to e in f i­
n ito . A penas isso faz da fé um a p o ssib ilid a d e d o hom em .
Possibilidades humanas são forças que u rg e m em se re a liza r.
O hom em é im p e lid o para a fé ao se conscientizar d o in fin ito d e que
faz pa rte , mas do qual ele não pode to m a r posse com o de um a
p ro p rie d a d e . Com isso está prosaicam ente fo rm u la d o a q u ilo que
ocorre no curso da vida com o " in q u ie tu d e do coração".
Estar possuído in co n d icio n a lm e n te — ou seja: fé — é estar to ­
m ado pe lo incon diciona l. A p a ixã o in fin ita , com o ta m b é m já se
cham ou a fé , é a paixão p e lo in fin ito ; ou, v o lta n d o à nossa fo r m u ­
lação a n te rio r, na "p reo cu p a çã o in c o n d ic io n a l" se trata d a q u ilo que
o hom em e xp e rim e n to u com o in c o n d ic io n a l, d e v a lid a d e ú ltim a .
Com isso já nos voltam os d o aspecto s u b je tiv o da fé com o um ato
central da pessoa para o seu s ig n ific a d o o b je tiv o , para a questão
d o que é e x p e rim e n ta d o no ato da fé . Nesta a ltu ra de nossa in ve s­
tigação, de nada nos adia nta ria cham ar a q u ilo q u e é e x p e rim e n ta d o
no ato da fé , de "D e u s" ou "u m deus". Â.ntes p e rg u n ta m o s aqui:
Q ue é que fu n d a m e n ta a d iv in d a d e na idéia de Deus? A resposta é:
Trata-se d o ele m e n to do in c o n d ic io n a l, d o que tem v a lid a d e ú ltim a .
Isto d e te rm in a o caráter d o d iv in o . Uma vez e n te n d id o isto, co m ­
preende-se ta m bé m p or que quase tu d o "n o céu e na te rra " já alcançou
o caráter d o incondicional no d ecurso da história da re lig iã o . M as ta m ­
bém podem os co m p re e nd e r q u e na consciência re lig io sa do hom em
sem pre já esteve e ainda está a g in d o um p rin c íp io crítico, o q u a l p ro ­
cura separar o que é rea lm e n te in condicional d a q u ilo q u e re iv in d ic a
para si o caráter de in co n d ic io n a l, mas na re a lid a d e é apenas p ro ­
vis ó rio , passageiro e fin ito .
A expressão "preocupação in c o n d ic io n a l" e n g lo b a os aspectos
s u b je tiv o e o b je tiv o (3) d o ato de crer: a fid e s qua c re d itu r, isto é,
a fé pela qual se crê, e a fid e s quae c re d itu r, isto é, a fé que é crida.
A p rim e ira fó rm u la é a expressão clássica para o ato s u b je tiv o , p ro ­
ve n ie nte do ín tim o da pessoa, ou sua preocupação in c o n d ic io n a l. A
segunda fó rm u la é a expressão clássica para a q u ilo a q u e se d irig e
o ato, para o incondicional com o tal, expresso em sím bolos d o d i­
v in o . N ão há d ú v id a de que esta d ife re n cia çã o é m u ito im p o rta n te ,

(3) N. d o T.: Na re a lid a d e , a expre ssã o p ortu g u e sa para " u n b e d in g te s A n lie g e n "
("p re o c u p a ç ã o in c o n d ic io n a l") re fle te apenas s u tilm o n te o a spe cto o b je tiv o do
ato da fé .

11
mas não absoluta, pois n e n h u m dos dois lados d o ato de crer
p o d e p e rs is tir por si m esm o. Não e xiste fé sem c o n te ú d o que a
p ree ncha, pois a fé sem pre se d irig e a algo d e te rm in a d o . Por o u tro
la d o é im p ossíve l assim ilar o co n te ú d o da fé a não ser por um ato de
crer. N ão tem sentido fa la r de coisas d iv in a s se não se está tom ado
in c o n d ic io n a lm e n te p o r elas. Pois a q u ilo que está expresso no ato
de crer não pede ser alcançado senão p e lo p ró p rio ato de crer.
Em expressões com o de v a lid a d e ú lrim a , in c o n d ic io n a l, in fin ito ,
a b so luto está superada a d istin çã o e n tre s u b je tiv o e o b je tiv o . O
estar to m a d o in co n d icio n a lm e n te no ato da fé , e o in c o n d ic io n a l, que
é e x p e rim e n ta d o no aio crèr, são um a coisa só. Os m ísticos o
e xpressam sim bo lica m ente ao d ize re m q u e seu conhecim entó d e Deus
é o co n h e cim e n to que Deus tem de si m esm o. Em I Co 13, 12 Paulo
q u e r d iz e r basicam ente a mesm a coisa: “ então conhecerei com o tam ­
bém sou co n h e cid o ", isso é, p o r Deus. Deus nunca pod e ser o b je to sem
ser s u je ito ao mesm o tem p o . S egundo Paulo, nem mesm o um a oração
chega aos o u vid os de Deus, se- não fo r o Espírito de Deus que ora
d e n tro de nós (Rm 8). Pode-se fo rm u la r a bstratam ente a mesma
e x p e riê n c ia com o sendo a anulação da contraposição su je ito -o b je to
na e xp e riê n c ia do in co n d ic io n a l. No ato de crer, a o rig e m dessa fé
está p resente de um m o d o que transcende a separação de sujeito
e o b je to .
Essa caracterização da n .itu ro /ii da fó nos dá um c rité rio adi­
cio n al para a distinção de ino>ndi< io n a11<I•1 1 1<v falsa e ve rd a d e ira . As
coisas fin ita s , que ilu so ria m e n te ro iv in d ii •un in fin itu d e para si, como
p o r e x e m p lo a "na çã o " ou "v e n c e r n i v id a ", não tom a capacidade
d e su p e ra r a separação de s u je ito e o b je to A q u i se trata sem pre de
um o b je to , ao qual o crente se d i r ic).• com o um sujeito. Ele o pode
alcançar com os m eios c o g n itiv o s com uns o com ele lid a r com os
m é todos usuais. N a tu ra lm e n te existem m uitas d ife re n ça s de g ra u no
ca m po in fin ito de valores q u e falsam ente reclam am a categoria de
in c o n d ic io n a l. A noção, p o r e x e m p lo , se a p ro xim a mais d o incon­
d ic io n a l d o que o sucesso na vid a . () d e lírio nacionalista pode g e ra r
um estado em que o su je ito ó quase Ira rja d o p e lo o b je to . Mas algum
te m p o d e p o is ele ressurge sóbrio, re jo ita n d o agora com ceticism o
e crítica descom edida as ju st.r. re ivin d ica çõ e s da nação. Q u a n to mais'
a fé se tra n sfo rm a em id o la tria , menos ela consegue superar a se­
paração de su je ito e o b je to . Pois esta é a d ife re n ça entre a fé v e r­
d a d e ira e a falsa: Na fó v e id a d e ira a preocupação inco n dicio n a l é
o estar to m a d o pelo que é v e rd a d e ira m e n te in c o n d ic io n a l; a fé
id ó la tra , em contraste, eleva coisas passageiras e fin ita s à categoria
de in condicionais. Esta ad u lte ra çã o leva fa ta lm e n te à "fru s tra ç ã o
e x is te n c ia l", q u e solapa as bases da e xistência hum ana. A fé id ó la tra

12
é d ia lé tic a no que ela é fé e com o tal um ato central da pessoa; mas
o c e n tro do q ual ela p a rte se encontra m ais na p e rife ria , e com
isso essa fé leva à perda d o ce n tro da essência e à d e s tru iç ã o da
pessoa. O caráter e xtá tico , q u e tam bém é p ró p rio de tal crença,
só disfarça tra n s ito ria m e n te esta conseqüência.

4. A Fé e a D inâm ica d o Sagrado (4)


Q u e m penetra na esfera da fé , está p is a n d o no S antíssim o da
vid a. O n d e há fé tam bém se e n c o n tr^ um co n h e cim e n to d o que é sa­
g ra d o . Esta constatação não c o n tra d iz à q u ilo que fo i d ito acima
sobre a id o la tria ; mas ela c o n tra d iz ao c o n ce ito p o p u la r da p a la vra
"s a n to ". A lg o que nos toca in c o n d ic io n a lm e n te se torna sagrado. A
e x p e riê n cia do sagrado é e x p e riê n c ia do d iv in o . Isto está expresso
d e m aneira m a gnífica no A n tig o T estam ento, desde ás visões dos
pa triarcas e de Moisés até as im p re ssio n a n te s exp e riê n cia s dos g ra n ­
des p ro fe ta s e salmistas. O sagrado perm anece m isté rio , se bem que
é re ve la d o . Q uem se lhe d e p a ra é p o r ele a tra íd o e ao m esm o te m p o
estrem ece. R ud olf O tto , em sua obra clássica sobre " O S a g ra d o ",
cham ou esses dois aspectos na essência d o sagrado de fa scinosum
e tre m e n d u m . A m bos os aspectos se e n co n tra m em todas as re lig iõ e s ,
pois em am bos o hom em se d e fro n ta com a q u ilo que o toca in co n ­
d ic io n a lm e n te . O m o tiv o paro esse e fe ito d u p lo d o sagrado fica
claro q u a n d o entendem os a relação e ntre a e xp e riê n cia d o sagrado
e a e xp e riê n c ia d o in fin ito . O coração h u m a n o pro cu ra o in fin ito ,
p o rq u e o fin ito q uer repousar no in fin ito . N o in fin ito ele vê a sua
p ró p ria realização. Nisso é q u e se baseia a atração e x tá tica e a
fascinação de tu d o que re ve la o in fin ito . Por o u tro la d o o hom em
e x p e rim e n ta sim ultanea m e n te a distância in fin ita e n tre o fin ito e o
in fin ito , e com isso ele e x p e rim e n ta ao m esm o te m p o o v e re d ito
n e g a tiv o sobre todas as le n ta tiv a s do fin ito d e alcançar o in fin ito .
O se n tim e n to de ser a n iq u ila d o pela presença d o d iv in o é o que
expressa mais p ro fu n d a m e n le a relação em q u e se e ncontra o hom em
d ia n te d o sagrado. E esse s e n tim e n to perpassa to d o ato d e fé le g í­
tim o e to d o estar possuído em ú ltim a instância.
Esse sig n ific a d o o rig in a l e u nicam ente c o rre to d o sagrado p re ­
cisa ser colocado no lu g a r da d isto rçã o c o rre n le dc? seu se n tid o p ró ­
p rio . "S a n to " tom ou o sentido de p e rfe içã o m o ra l, p rin c ip a lm e n te em
alguns g ru p o s protestantes. As causas históricas dessa m udança de
se n tido são im po rta ntes para um a n o v a ' com preensão da natureza
do santo. O rig in a lm e n te santo s ig n ific a v a a lg o que estava separado

(4) N. d o T.: Os term os " s a g ra d o " e " s a n to " :e rã o usados aqui co m o m e lh o r c o n v ie r


p ara re p ro d u z ir o te rm o o rig in a l " h e ilig " .

13
d o rn u n d o a o cotidiano e das e xp e riê n cia s com uns das pessoas. Ele
está separado do â m b ito do fin ito . Por isso todos os cultos religiosos
m a n tin h a m seus lugares santos e atos sagrados isolados de todos
os outros lugares e atividades. E ntrar no Santíssim o s ig n ific a en­
contro com o sagrado. A q u i o in fin ita m e n te d ista n te se m ostra p ró x im o
e presente, sem p e rd e r sua m ajestade. Por esse m o tiv o o sagrado
tam bém fo i cham ado de "c o m p le ta m e n te o u tro ", a saber, a q u ilo que
é d ife re n te d o curso o rd in á rio das coisas, ou, para re to m a r um a fo r­
m ulação a n te rio r, ele é d ife re n te d o m u n d o , o q ual se caracteriza pela
separação em sujeito e o b je to . O sa g ra d o ultrapassa esse â m b ito , este
é o seu m is té rio e seu caráter inacessível. Não há p o s s ib ilid a d e de
alcançar o incondicional a p a rtir d o c o n d icio n a l, assim com o não se
pode co n se g u ir o in fin ito p o r um m e io fin ito .

O sagrado é essencialm ente "m is té rio ", e p o r isso ele se en­


contra com o hom em de duas m aneiras. O sagrado pod e aparecer
com o força criadora bem com o d e s tru id o ra . Seu e le m e n to fascinador
pode te r conseqüências criadoras e d e stru id o ra s — lem brem o-nos
apenas da fascinação que em anava da id o la tria d o nacionalismo,-
mas ta m b é m o tre m e n d u m do sagrado tem um lado c ria d o r e o u tro
d e s tru id o r — é só pensar na natureza d u p la das d iv in d a d e s hindus
C hiva ou C áli. Essa n a tu re /a d u p la , c*a q ual ainda há vestígios no
A n tig o Testam ento, se re fle te nos atos rituais ou qu a se -ritua is das
re lig iõ e s ou quase-religiões, p o r e x e m p lo no sacrifício de outros
seres ou d o p ró p rio eu corpóreo ou <“ p iritu o l, um ritu a l altam ente
a m b íguo . Pode-se ca ra cte ri/a i <■■■•..i a m b ig ü id a d e de d iv in o -d e m o -
níaca, sendo que o aspecto d iv in o se m anifesta no v itó ria das possi­
b ilid a d e s criadoras sobre as d e s tru id o r.r. do saçjrado, ao passo que
in ve rsam e nte o dem oníaco roprosenla o aspecto d e s tru id o r d o sa­
g ra d o . Esta natureza polarizado do s.K jtado le ve sua percepção mais
p ro fu n d a na re lig iã o p ro fé tii.i d o A n tig o le sta m e n to . Mas este co­
nh ecim ento fo i afastado polo p o s to rio r com bate ao e le m e n to dem o-
n ía co -d e stru id o r do sagrado. Com Iv.o o sagrado se tra n sfo rm a em
justiça e v e rd a d e ; ele não ó m or. d e s tru id o r mas apenas cria d o r. O
sacrifício v e rd a d e iro consiste do o b e d iê n cia p e ra n te a lei. Esta é
uma linha d e pensam ento que levo ò id e n tifica çã o de santidade com
p e rfeição m o ral. Mas com iv.o o •.. i f j r tj d o perde seu caráter de se­
parado, transcendente, fascinante e o lo m o riz a d o r, o co m p le ta m e n te
o u tro . Tudo isso se v o la tili/o u e o santo ficou sendo o que é m o ra l­
m ente bom e racio nalm en te ve rd a d e iro , isto é, d e ix o u de ser sagrado
no sentido o rig in a l da palavra. R esum indo, pode-se d iz e r o seguinte
sobre toda essa evolução: O santo ou sagrado em p rin c íp io nada
tem a ve r com a a lte rn a tiv a do bom e m au: ele é tanto d iv in o como
dem oníaco. Com a repre.sao do e le m e n to dem oníaco, o seu signi-

14
fic a d o se tra n sfo rm a : ele é racionalm ente id e n tific a d o com o v e rd a ­
d e iro e o bom . T udo isso s ig n ific a que seu sentido o rig in a l p rim e iro
precisa ser redescoberto.
A q u ilo que fo i d ito a n te rio rm e n te a respeito da d in â m ica da
fé é agora c o n firm a d o pela dinâm ica d o sagrado. Nós estabelecem os
a d ife re nça entre fé v e rd a d e ira e fé id ó la tra . O sagrado, na m e d id a
em que atua dem oníaca e p o r isso d e s tru tiv a m e n te em ú ltim a ins­
tância, é idên tico com o o b je to da fé id ó la tra . M esm o assim ta m b é m
a fé id ó la tra ainda é fé . O sagrado perm anece sagrado, ta m b é m em
sua fo rm a dem oníaca. A q u i se m anifesta n itid a m e n te o caráter am- .
b íg u o da re lig iã o e com isso tam bém o p e rig o da fé. O p e rig o da
fé é a id o la tria , e a a m b ig ü id a d e do sagrado resulta de sua possi­
b ilid a d e dem oníaca. Nossa preocupação ú ltim a — a q u ilo q u e nos
toca in co n dic io n a lm e n te — p o d e nos d e s tru ir assim com o ta m b é m
nos pode curar. Mas sem uma preocupação ú ltim a não podem os
v iv e r.

5. Fé e D ú vida
C hegam os agora a um a descrição mais g lo b a l da fé com o ato
central da pessoa com o um tod o . Um ato de fé é realizado p o r um
ser fin ito , que está to m a d o p e lo in fin ito e para este ^e v o lta . Trata-se
d e um ato no â m b ito d o fin ito , com toda a lim itação que com o tal
lhe é p ró p ria ; mas ta m b é m é um ato d o q u a l pa rticip a o in fin ito
transcendendo os lim ite s d o fin ito . Fé é certeza na m e d id a em que
ela se baseia na e xp e riê n c ia do sagrado. Mas ao m esm o te m p o a
fé é cheia de incerteza, um a vez que o in fin ito ,' para o q u a l ela
está orientad a, é e x p e rim e n ta d o p o r um ser fin ito . Esse e le m e n to de
insegutança na fé n ã o 'p o d e ser arfulado; nós precisam os aceitá-lo.
E esta aceitação é um ato d e coragem . A fé e n g lob a a am bos: co­
n hecim ento d ire to , do q ual p ro vé m a certeza, e incerteza. A c e ita r
os dois é te r coragem . Ê s u p o rta n d o corajosam ente a incerteza que
a fé dem onstra o mais fo rte m e n te o seu caráter d inâm ico.
Nós só podem os co m p re e n d e r a relação e ntre fé e coragem se
tom arm os o te rm o co rre n te d e coragem num a acepção mais am pla (5).
C oragem com o e le m e n to da fé é arriscar a afirm a r-se a si m esm o
d ia n te dos poderes d o "n ã o -s e r", pelos quais to d o ser fin ito está
ameaçado. Mas o nde há risco e coragem tam bém existe a p o ssib i­
lid a de do fracasso, e essa p o s s ib ilid a d e se encontra em to d o ato
de crer. É um risco q u e precisa ser le va d o em troca. Q uem fa z de
seu p o vo a quilo que lhe toca em ú ltim a e in co n dicio n a l instância,
necessita de coragem para se m anter fie l a essa decisão. Certa é

(5) C f. a obra do a u to r " A C o ra g e m de S e r", Paz e Terra (Ed.), Série Ecum enism o e
H um anism o, V o l. 6, 1967, p p . 1 ss.

15
apenas a in con dicio n a lid a d e com o tal, a p a ixã o in fin ita como paixão
in fin ita . Esta é uma realidade que é intrínseca à natureza do eu. Ela
é tão im edia ta e fora de d ú v id a com o o eu está fo ra de d ú v id a para
o p ró p rio eu. Sim, ela é o eu, na m e d id a em q u e este se transcende
a si mesm o. Mas acerca do co n te ú d o d e nossa preocupação últim a,
seja ela a nação, o sucesso na v id a , um deus ou o Deus da Bíblia,
não há certeza desse tip o . Todos eles são coisas que não apresentam
certeza im ed iata . A ceitá-las com o o b je to de nossa preocupação ú l­
tim a , in co n dicio n a l, é um risco e com o tal um ato de coragem . O
risco consiste em que o o b je to de nossa preocupação ú ltim a pode
evidenciar-se com o algo de im p o rtâ n cia p ro v is ó ria e passageira, por
e x e m p lo , a nação. O risco da fé com o dedicar-se a a lg o que me toca
in co n d icio n a lm e n te é de fa to o m a io r risco que uma pessoa pode
to m a r sobre si. Pois se a fé de urna pessoa se e vid e ncia com o ilusória,
isso pode levar a que essa pessoa perca o sentido de sua vid a . Ela
vê que se e n tregou a si mesma, a v e rd a d e e a justiça a algo que
não merecia esta dedicação. Tal pessoa desistiu do que lhe é mais
in tim a m e n te p ró p rio , sem le r q u a lq u e r esperança de recuperá-lo.
O desespero causado po r e x e m p lo p e lo desm o ro na m e n to de espe­
ranças e pretensões nacionaií. p ro v a irre fu ta v e lm e n te o caráter idó­
latra de seu patriotism o. Em ú ltim a análise, toda preocupação su­
prem a cujo o b je to não é v e rd a d e ira m e n te in co n dicio n a l leva ao
desespero. Mas essa po ssib ilid a d e n fé r.empre precisa le va r em
troca. Ela nunca pode ser exclu íd a , q u a n d o um ser fin ito procura
a realização do seu eu. Uma preocupação suprem a e xig e risco su­
p re m o e m áxim a coragem . Isso não resulta da dedicação ao incon­
d icio n a l com o tal, e sim da aceilaçâo de a lgo d e te rm in a d o que teria
in c o n dicio n a lid a d e . Toda fé contém urn e le m e n to concreto; ela se
o rie n ta para um o b je to ou uma pessoa. Mas pode se to rn a r evidente
qu e esse o b je to ou essa pessoa nado tenham d e n tro de si que possua
v a lid a d e ú ltim a . Neste caso, no que d iz respeito ao seu conteúdo
concreto, a fé terá sido uma ilusão, se bem que a experiência do
in c o n d icio n a l, a qual tam bém estó presente nesse tip o de fé , nada
te m de ilusória. Um deus pode se e v id e n c ia r com o nu lo , mas o
d iv in o perm anece. A fé tom a sobre si o risco de o deus concreto em
q u e fo i colocada a fé ser uma im agem falsa. E então pode acontecer
q u e o crente seja arrasado p o r essa decepção e não tenha forças
para en con trar um novo co nteúdo para a sua ânsia pelo eterno e
com isso v iv e r novam ente a p a rtir do ce n tro de seu ser. O risco do
ato de crer, poré m , não pode ser e lim in a d o . Existe uma só atitude
q u e não encerre risco e contenha certeza im ediata: a de o homem
fic a r entre sua p ró p ria fin itu d e e a p o s s ib ilid a d e de alcançar o in fi­
nito . N isto se resum em a grandeza e a d o r da existência humana.

16
Isso se expressa bem claram ente na relação e n tre fé e d ú v id a .
Se a fé é e n te n d id a com o acre d ita r em a lgum a coisa, entã o d ú v id a
e fé são irre co n ciliá ve is. C om preendendo-se a fé com o estar to m a d o
p o r a q u ilo q u e nos toca in co n d icio n a lm e n te , a d ú v id a se torna um
ele m ento necessário da fé. A d ú v id a se encontra encerrada no risco
da fé.
A d ú v id a que fa z p a rte inseparável da fé não é um a d ú v id a
em to rn o de fa tos ou certas conseqüências lógicas. N ão é a d ú v id a
que dá im p u ls o a toda pesquisa científica. Pois nem um te ó lo g o
tra dicional ha ve ria de n e g a r o d ire ito da d ú v id a m etódica na pes­
quisa em pírica ou na aplicação d o m étodo d e d u tiv o . Um cientista
que afirm asse estar uma d e te rm in a d a te o ria cie n tífic a acima d e q u a l­
q u er d ú v id a , se desacreditaria com o cientista. A pesar d e sua d ú v id a ,
porém , ele p o d e c o n fia r em que na prática a sua te o ria se m ostre
d igna de confiança, senão a sua aplicação técnica seria de to d o im ­
possível. Por isso se pode a trib u ir a esse tip o de confiança uma certa
certeza p ra g m á tica, que é ple n am e n te su ficie n te para a prática. A
d ú vida rem anescente nesses casos se re fe re à te o ria subjacente.
Existe, p o ré m , ainda o utra espécie de d ú v id a , a q ual querem os
d e no m in a r d e cética, à d ife re n ça da d ú v id a cie n tífic a , que é mais
de natureza m etódica. A d ú v id a cética é uma certa a titu d e d ia n te
de tu d o q u e o hom em considera ve rd a d e iro , desde as percepções
dos sentidos até as convicções religiosas. Ela é mais uma m aneira de
pensar do qu e uma a firm a tiv a ; pois, com o a firm a tiv a , essa d ú v id a
cética e n tra ria em contradição consigo mesma. A p ró p ria a firm a tiv a
de que para o hom em não existe ve rd a d e de v a lia un ive rsa l seria
declarada insustentável p e ra n te o juízo do p rin c íp io cético. A d ú v id a
cética genu ína não se m anifesta na fo rm a de a firm a tiv a . Ela é uma
orientação que nega toda certeza. Por isso não se p o d e re fu tá -la
com m eios lógicos. Isto p o rq u e ela não se coloca na categoria de
uma tese qu e se pudesse a v e rig u a r. A d ú v id a cética leva necessa­
riam ente ao desespero ou ao cinism o ou a am bos a lte rn a d a m e n te .
E quan d o esta a lte rn a tiv a se torna in su p o rtá ve l, aparece fre q ü e n te ­
m ente a in d ife re n ç a e um a a titu d e que q u e r se m a n te r liv re de
q u a lqu e r co m prom isso. M as um a vez que o hom em é o ente cuja
natureza é a de se pre o cu p a r essencialm ente com o seu p ró p rio
ser ("S ein"; H e id e g g e r), ,essa fu g a no fim das contas fracassará. Este
é o p o d e r da d ú v id a cética. M esm o que ela tenha um e fe ito de
sacudir e lib e rta r, ela tam bém pod e im p e d ir o d e s e n v o lv im e n to em
direção a uma p e rson alid a d e centrada. Pois o hom em com o pessoa
não é possível sem fé. O desespero d o cético d ia n te da im p o s s ib ili­
dade da v e rd a d e m ostra que a ve rd a d e ainda assim é a sua paixão
in fin ita . O s e n tim e n to cínico de su p e rio rid a d e sobre toda ve rd a d e

( 17
d e te rm in a d a dem onstra q u e o cetico ainda leva a seno a ve rd a d e
„ c ; t A disposto a p e rg u n ta r p e lo que é in co n d icio n a lm e n te v a lid o
0 c ^ flc o que é realm en te cético não v iv e sem fe , m e sm o -q u e essa fc
n ão lo n h a conte údo concreto.
A d ú v id a que está co n tid a em to d o ato d e fé não é nem a
d ú v id a m etódica nern a cética. Ela é a d ú v id a que acom panha to d o
risco Não se trata aqui nem da perm anente d u v id a do cientista nem
d l d ú v id a v o lá til d o cético; é, isto sim, a d ú v id a de um a pessoa que
está serissim am ente possuída p o r algo concreto. Em contraste com
aS fo rm a s acima descritas, poder-se-ia d e n o m in a r esse tip o de d u v id a
1 d ú v id a existencial. Ela não pe rg u n ta se um a d e te rm in a d a tese e fa l­
s a ou ve rd a d e ira , nem reje ita toda verdade concreta, mas ela conhece> o
e le m e n to de incerteza p ró p rio a toda ve rd a d e existencial. A duV1^
in e re n te à fé sabe dessa incerteza e a to m a sobre si num ato de
cmacaem Fé encerra coragem . Por isso a fé consegue resistir a _pro-
o ria dúvida de si mesma. N a tu ra lm e n te fé e coragem nao sao a ^
m esm a coisa. A fé ainda encerra outros elem entos alem da coragem ,
e a coragem ainda tem outra-, funções q u e nao a de a p o iar a fé .,
i i n d a fa z parte da fé a coragem que está pronta a to m a r um risco
so b re si.
Este conceito d in â m ic o de íé parece não dar lu g a r aquela con­
fia n ça crente e ao se n tim e n to de segurança que encontram os nos
d o cum e ntos de todas as g ra n d e s re lig iõ e s e n a tu ra lm e n te J a m b e m
no cristianism o. Mas este não é o caso. Pois a acepção d in â m ica da
fé resulta de uma análise te rm in o ló g ic a d o aspecto su b |e tiv o com o
ta m b é m o b je tiv o da fé . N ela não se descreveu um esta_do de es-
o írito constante. Uma análise estrutural nao é a descrição de um
c e rto estado. A confusão de análise e descrição é uma fo n te de
num erosos m al-en tendid o s e enganos em todos os campos da v id a .
Um e x e m p lo típ ico para tal confusão se apresenta na presente discus­
são em to rn o da natureza d o m edo. A d e fin iç ã o d o m edo com o o
Conscientizar-se da p ró p ria fin itu d e é ocasionalm ente r e a ta d a con-
siderando-se o estado de e sp írito m édio das pessoas. M e d o , assim
se a firm a , aparece sob certas condições, mas nao e um sintom a
c o n c o m i t a n t e da fin itu d e d o hom em . É cla ro que o m edo aPari- ce
em sua fo rm a mais a flitiv a sob circunstâncias de te rm in ad a s. Ma
I a sua estrutura subjacente da vida fin ita q u e é a condição u n ive rsa l
aue p ossibilita o s u rg im e n to d o m edo sob determ inadas condiçoes.
Oa mesm a m aneira a d ú v id a não se im poe em to d o ato d e fe ; mas
ela sem pre está presente com o um traço fu n d a m e n ta l na e strutura
d , fé Esta é a d ife re n ç a e n tre íé e certeza im ediata, seja ela sen­
sível ou lógica. N ão e xiste fé sem um "m esm o assim que d ela
f a ç a parte e sem a corajosa afirm ação d o p ro p n o eu na situaçao

18
de estar possuído in co n d ic io n a lm e n te . A d ú v id a como e le m e n to
essencial da fé surge d e n tro de certas circunstâncias in d iv id u a is e
sociais. Q uando a d ú v id a se fa z presente, não se d e ve ria entendê-la
com o rejeição da fé ; pois ela é um e le m e n to sem o q ual nenhum
ato de fé é concebível. D ú vid a e xiste n cial e fé são os pólos q u e
d e te rm in a m o estado in te rio r da pessoa possuída pe lo in co n dicio n a l.
O conhecim ento desta relação d e fé e d ú v id a é da m a io r im ­
portância prática. M uitos cristãos bem com o m u ito s adeptos de outras
re lig iõ e s, acometidos de m e d o , culpa e desespero, ficam p e rp le x o s
d ian te do que chamam d e "p e rd a da fé " . A d ú v id a séria, p o ré m ,
é uma confirm ação da fé . Ela pro va a se rie d a d e e a in c o n d ic io n a li-
dade da sua p e rp le xid a d e . Isso ta m b é m d iz re sp e ito aos cura d 'alm as
ou clé rig os principia ntes, q u e não são apenas acossados pela d ú v id a
científica acerca da fid e d ig n id a d e de certas d o u trin a s — essa d ú ­
vida é tão necessária e in a m o v ív e l q u a n to a p ró p ria te o lo g ia —,
mas os quais tam bém e xp e rim e n ta m a d ú v id a existencial em to rn o
da m ensagem de sua ig re ja , p o r e x e m p lo a d ú v id a se Jesus p o d e
ser cham ado de o Cristo. O c rité rio se g u n d o o qual eles d e ve ria m
julgar-se a si mesmos é a se rie d a d e e a in c o n d ic io n a lid a d e d o seu
serem a tin gidos por a q u ilo em que eles crêem e de que ao m esm o
te m p o d u vid a m .

6. Fé e Com unhão
A exposição q u e acabamos de fa ze r em to rn o da fé e d ú v id a
no que tangem as confissões religiosas nos levaram àquelas qu e s­
tões que geralm ente estão em p rim e iro p la n o na discussão de p ro ­
blem as de fé. A q u i a fé é e n te n d id a com o o p in iã o qu a n to à d o u trin a
ou com o confissão de um certo dogm a. Seu pano de fu n d o socio­
lógico é mais salientado d o que o ato pessoal em que se baseia seu
caráter o rig in a l. Os m otivo s históricos para essa m aneira de ve r são
evidentes. Os tem pos em q u e a lib e rd a d e de pensam ento no cam po
cu ltu ra l e religioso era re p rim id a em nom e de um certo d o g m a
re lig io so ficaram gravados na m e m ó ria das gerações posteriores. A
luta de vida e m orte e n tre uma auto n o m ia in su rg e n te e os poderes
de repressão religiosa d e ix o u p ro fu n d a s cicatrizes no "in co n scie n te
c o le tiv o ". Isso ainda vale até para a nossa época, que já d e ixo u bem
para trás essa repressão d o m in a n te nos fin s da Idade M é d ia e d u ­
rante as guerras religiosas. Por isso não parece d e sa p ro p ria d o d e ­
fe n d e r a concepção dinâ m ica da fé contra a acusação de que ela
levaria a novas form as de o rto d o x ia e de repressão religiosa. Mas
uma coisa é certa: q u a n d o a d ú v id a é considerada como parte in ­
trínseca da fé, então a lib e rd a d e d o e sp írito c ria d o r do hom em não é
de m o do algum re strin g id a . Mas p ro v a v e lm e n te surgirá a p e rg u n ta ,
se essa acepção de1 fé pod e ser coadunado com a com unhão de
fé " , que é uma realidad e decisiva em todas as re lig iõ e s. Não é
assim que a concepção d in â m ica da fé m anifesta um in d iv id u a lis m o
protestante im pre g n a d o de auto n o m ia hum anística? Será que uma
com unhão de fé, isto é, p o rta n to , uma ig re ja , p o d e ria aceitar uma
fé que encerra a d ú vid a com o parte essencial e até considera a
seriedade da d ú vid a urna expressão de fé? E m esm o se a igreja
se conform asse com tal m aneira de pensar entre os leigos de suas
com unidades, seria isto ta m b é m possível para seus te ó lo g o s e seus
órgãos diretores?
Existem muitõs respostas — algum as das quais bem sinuosas —
para estas perguntas, m uitas vezes a rd e n te m e n te lançadas. A q u i
precisamos fa zer a constatação e v id e n te , mas m u ito s ig n ific a tiv a , de
que o ato de crer necessita, com o to d o fe n ô m e n o do e s p írito hum ano,
da lingua gem e com isso ta m b é m da com unhão. Pois a lin g u a g e m
só está viva em m eio a um a com unhão de seres d o ta d o s de espírito.
Sem lin g u a g e m não existe fé nem experiência re lig io sa . Isso vale
para a ling uage m em g eral bem com o para todas as linguagens
especiais e xig id a s nos d ive rso s cam pos da vida do e s p írito hum ano.
A lingua gem religiosa, ou seja, o lin g u a g e m do sím b o lo e do m ito ,
form a-se na com unhão dos crentes e não é bem com preensível fo ra
dessa com unhão. Mas d e n tro da r e f c id a com unhão ela fa z com
que a fé em com um possa receber um conteúdo concreto. A fé e x ig e
a sua p ró p ria lin g uag em , com o la m b é m acontece com toda m a n i­
festação da vid a personal (6). Sem lin g u a g e m , a fé seria cega, sem
conteúdo nem clareza sobre si mesma. A q u i se encontra a im p o rtâ n ­
cia p rim o rd ia l de uma com unhão de fé. É só com o m e m b ro de uma
com unhão que o hom em p ode o b te r um conteúdo para a sua p re ­
ocupação incondicional. Isso ta m b é m ainda vale para aquele que
está separado ou e xpulso de um g ru p o .
A go ra , porém , se lançará novam ente a p e rg u n ta já tratada, da
seguinte fo rm a : Se não há fé sem com unhão de fé , não será então
necessário fix a r o conteúdo da fé na fo rm a de confissão de fé , e x i­
g in d o que essa confissão seja reconhecida por to d o m e m b ro da
confissão de fé? É verd a d e que todas as confissões de fé su rgiram
dessa m aneira; daí elas receberam o seu cunho d o g m á tic o e o b ri­
g a tó rio . Mas isso ainda não exp lica o enorm e p o d e r que tais con­
fissões fixa das exercem sobre g ru p o s inteiros e sobre in d iv íd u o s ,
de geração em geração. Isso tam bém não explica o fa n a tism o com
que foram reprim id as d ú vid a s e o p in iõ e s d ive rg e n te s, e isso não só
p o r m eio de violência física, mas em grau m u ito m a io r através

(6) N. do T.: " p e r s c n h a f t " , i. e., com o p e s E c a , na q u a lic b d e de pessoa.

20
de pressão in te rn a . Esses m ecanismos eram gra va d o s sem pre de
no vo nas m entes dos crentes in d iv id u a is e se e vid e ncia ra m com o
e xtre m am e nte e ficie n te s, m esm o sem pressão exte rn a . Para co m p re ­
e n d e r essa situação, precisam os le va r em conta q u e a fé , sendo o
estar possuído in c o n d icio n a lm e n te , sig n ifica a e n tre g a to ta l ao o b je to
do estar possuído, e isso com o resultado da decisão da pessoa in te g ra l.
Isso q u e r d ize r, p o rta n to , q u e está em jo g o o ser ou não-ser da
pessoa com o tal. A id o la tria pode d e s tru ir o centro da pessoa. Se
agora, com o fo i o caso na ig re ja cristã, o c o n te ú d o da fé em com um
precisou ser d e fe n d id o através de séculos contra a id o la tria intrusa,
com preende-se p e rfe ita m e n te que todo d e s v io da confissão de fé
era considerado p e rig o so para a bem -aventurança. Todo desvio da
confissão era a trib u íd o a in flu ê ncia s dem oníacas. Sob essa luz, os
castigos im postos pela ig re ja aparecem com o te n ta tiva s de salvar
o a tin g id o da a u to d e stru içã o dem oníaca. Todas essas m edidas re ve ­
lam um sério cu id a do em to rn o da substância da fé , d o qual d e p e n ­
diam vida ou condenação eternas.

Mas não é apenas para o in d iv íd u o q u e a aceitação da con­


fissão de fé fix a tem im p o rtâ n c ia decisiva. A p ró p ria com unhão de
fé precisa ser p ro te g id a contra in flu ê ncia s perniciosas. Por isso a
igreja exclui de sua co m u n h ã o tooos aqueles q u e parecem negar o
fu n d a m e n to da ig re ja . Isso é que está no fu n d o d o te rm o "h e re s ia "
em seu sentido o rig in a l. O hereje não é a lg u é m que tenha um credo
e rra do — esse é um s ig n ific a d o possível de heresia, mas não a sua
essência —, mas um a pessoa que d e ix o u a fé ve rd a d e ira para se
e n tre g a r a um a fé falsa e id ó la tra . É possível que ele in flu e n c ie
outros da mesma m aneira, corrom pendo-os in te rio rm e n te e p o n d o a
com unhão em p e rig o . A g o ra , se as auto rid a d e s seculares consideram
a igreja com o fu n d a m e n to necessário para um pensam ento em co­
mum e para a u n id a d e da v id a cu ltu ra l, sem a qu a l nenhum a socie­
dade pode p e rsistir, elas perseguem os herejes com o um crim inoso
com um e apelam para a d o u trin a çã o e ta m b é m para a vio lê n cia a
fim de assegurar a u n id a d e da sociedade no â m b ito re lig io so e p o lí­
tico. Contra isso as pessoas começam a re a g ir em nom e da autonom ia
do espírito. E q u a n d o o e s p írito a u tônom o se im p õ e , e le não só
e lim ina a coação política q u e q u e r apoiar um certo sistema re lig io so ,
mas além disso ele ainda se v o lta contra o p ró p rio sistema re lig io so
e m uitas vezes até contra a fé com o tal. Isso, e n tre ta n to , se evidencia
como im possível. Uma reje içã o da fé só pode ser realizada na m edida
em que uma o u tra fé assuma o lu g a r da fé re je ita d a . Na história d o
m undo, em todas as lutas e n tre a igreja e seus críticos liberais, uma
fé está se d e fro n ta n d o com a outra. M esm o a fé dos lib e ra is precisa
de expressão e de certas fo rm u la çõ es em com um , pois ela precisa
ser d e fe n d id a contra os ataques a u to ritá rios. N o lib e ra lis m o , a q u ilo
que toca in co n d icio n a lm e n te precisa se crista liza r em conteúdos con­
cretos. E o lib e ra lis m o não pode ir mais longe do que isso, sem
d e te rm in ad a s instituições cunhadas pela história. Ele tam bém desen­
v o lv e u um a lin g u a g e m p ró p ria e u tiliz a sím bolos p ró p rio s. Sua fé
não consiste d e um a afirm a çã o abstrata da lib e rd a d e , mas é uma
fé na lib e rd a d e com o e le m e n to in serido num a d e te rm in a d a situação
histórica. Se, em nom e da lib e rd a d e , ele nega esse relacionam ento
com o concreto, ele cria um vácuo em que as forças a n tilib e ra is pene­
tra m sem q u a lq u e r esforço. A penas a fé c ria tiva consegue resistir
à fé d e stru id o ra . Som ente o estar possuído p o r a q u ilo que é real­
m ente inco n dicio n a l pode opor-se à fé e n d e m o n in h a d a .
Tudo isso leva à p e rg u n ta : Com o é possível uma com unhão de
fé sem re p rim ir a auto n o m ia do e sp írito hum ano? A p rim e ira res­
posta que de ve ser dada aqui procede da relação e n tre o estado e
a com unhão de fé . Ela d iz o seguinte: M esm o que uma determ inada
sociedade seja p raticam e nte idêntica com uma com unhão de' fé , e
sua vid a seja cunhada essencialm ente pela substância e sp iritu a l de
um a ig re ja , as autorid ad e s seculares não d e ve ria m se im iscuir nas
questões de fé , aceitando a p o ssib ilid a d e de fo rm a çã o de novas
fo rm a s de fé . Pois se o seu e m p e n h o em fo rça r a u n id a d e em ques­
tões de fé fo r bem sucedido, exc!uem -se com isso o risco e a cora­
gem que fazem parte de toda fé real. Elas fiz e ra m da fé um
esquem a de co m p o rta m e n to q u e não p e rm ite a decisão liv re e que
jam ais terá o caráter de v a lid a d e ú ltim a , m esm o se todos os deveres
religiosos fo re m cu m p rid o s com toda a seriedade. Tal situação d i­
fic ilm e n te ainda existirá hoje. Na m aioria dos países o estado tem
d ia n te de si diversas com unhões de fé e nem terá a capacidade de
im p o r uma certa confissão a um p o vo in te iro . A un iã o do espírito
de tal sociedade é então g a ra n tid a p o r a q u ilo que as diversas con­
fissões têm em com um e p o r tradições e instituições reconhecidas
p o r todos os cidadãos. Esses bens comuns podem te r caráter mais
secular ou mais re lig io s o . Mas em todos os casos eles são fru to
de uma fé . Isso vale por e x e m p lo para a constituição norte-am ericana,
que para alguns tem o caráter de preocupação in co n dicio n a l. Mas
eles são exceções; a m a io ria vê nela algo con d icio n a d o e p ro visó rio ,
se bem q u e de enorm e im p o rtâ n cia . Por isso as a utoridades estatais
nunca d e ve ria m te n ta r re p rim ir m anifestações de d ú v id a acerca das
leis básicas d o estado, se bem que precisam , p o r o u tro lado, in sistir
na observância das leis vig e n te s.
O seg undo passo na solução de nosso p ro b le m a se refere a
fé e d ú v id a d e n tro da p ró p ria com unhão de fé. A questão aqui é
se a concepção dinâm ica da fé pode de algum a m aneira ser coadu­

22
nada com a essência da com unhão, a q ual precisa oxprcssar o
conte údo concreto de sua preocupação suprem a com alcjumo fo rm a
de confissão. Das análises precedentes resulta q u e não existo so lu ­
ção para esse p ro b le m a , se uma confissão d e fé e x c lu ir a p o s s ib ili­
d a d e de d ú v id a . O conce ito de " in fa b ilid a d e " , esteja ele associado
à decisão de um concílio , de um bispo ou de um liv ro , não p e rm ite
d ú v id a em questões de fé para aqueles q u e se sujeitaram a essas
a u toridades. Eles po d e m estar expostos a c o n flito s in te rio re s p o r
causa dessa sujeição, mas uma vez d e c id id o s , eles re p rim e m toda
d ú v id a acerca da in fa b ilid a d e das a u to rid a d e s. Com isso a fé se
to rn a estática.

Ela se transfo rm a num a entrega cega, e não só ao in co n dicio n a l


que é aceito no ato de crer, mas tam bém às fo rm a s concretas de
fé fixa d a s pelas a u torid a d e s eclesiásticas. Com isso se outo rg a a
a lgo p ro v is ó rio e co n d icio n a d o , isto é, à in te rp re ta çã o hum ana de
conteúdos de fé — a com eçar pelos autores da B íblia até o presente —
o caráter de in co n d icio n a lid a d e , tira n d o toda p o s s ib ilid a d e d e d ú v id a .
A luta contra os elem entos id ó la tra s que se fiz e ra m presentes em
conseqüência dessa fé estática, fo i encetada p e lo p ro te sta n tism o e,
q u a ndo este perdeu a fle x ib ilid a d e , ela fo i co n tin u a d a p elo llu m i-
nísmo. M esm o que esse protesto tenha sido in s u fic ie n te em sua
essência e em seu e fe ito , seu a lv o o rig in a l era um a fé dinâm ica, e
não a negação da fé nem a rejeição de certas d o u trin a s . Assim nos
encontram os mais uma vez d ia n te da p e rg u n ta : C om o se pod e coa­
d u n a r a fé que reconhece a d ú v id a com o p a rte intrínseca sua, com
a confissão de uma com u n h ã o de fé? Para isso só e x is te um a res­
posta: Toda expressão de fé que- m anifesta a q u ilo que toca um a
com unhão de fé ú ltim a e in c o n d ic io n a lm e n te , precisa in c lu ir a crítica
a si mesma. Em todas as a firm a tiv a s confessionais, sejam elas de
natureza litú rg ic a , te o ló g ica ou ética, é necessário que esteja bem
m a nifesto que elas não tenham v a lid a d e ú ltim a nem in co n dicio n a l.
A sua função é, isto sim , in d ica r o v a lo r ú ltim o e o in co n dicio n a l que
a todas transcende. Isso é o que eu cham o de "p rin c íp io p ro te s ta n te ",
o ele m ento crítico nas fo rm a s confessionais da c o m u n h ã o de fé e com
isso o e le m e n to de d ú v id a no ato d e crer. N em a d ú v id a nem a
crítica estão sem pre em ação, mas com o p o s s ib ilid a d e s elas sem pre
estão presentes no ato d e crer. P artindo d o p o n to d e vista cristão,
isso sign ifica que a ig re ja , com seus m estres, suas instituições e
a utoridades, se encontra sob o juízo p ro fé tic o , e não acima desse.
Crítica e d ú v id a indicam q u e a com unhão de fé "está sob a c ru z",
isso se a cruz é en te n d id a com o o juízo d iv in o sobre a v id a re lig io sa
da hum anidade, sim até sobre o cristianism o, na m edida em que
esse se colocou sob o sinal da cruz.

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Com isso a dinâm ica da fé , a q ual discu tim o s p rim e ira m e n te no
que d iz respeito ao in d iv íd u o , tam bém fo i colocada em relação a
vid a de toda um a com u n h ã o de fé . Não há d ú v id a que a vida
de um a com unhão de fé é um risco constante, se a pró p ria fé é
co m p re e nd id a com o risco. M as essa é a natureza de uma fé viva
e a conseqüência do p rin c íp io pro te sta n te .

II. O QUE A FÉ N Ã O É

1. A D istorção da Fé com o A to do C onhecim ento

Nossa descrição p o sitiva da fé , acima apresentada, contem ao


m esm o te m p o uma reieição de todas aquelas concepções que dis­
torcem perigosa m ente o se n tid o da fé . Mas as distorções nesse
cam po exercem uma in flu ê n c ia e x tra o rd in á ria sobre o pensamento
p o p u la r; e em nossa época cunhada pela ciência elas contribuíram
p rin c ip a lm e n te com que' m uitas pessoas se afastassem da re lig iã o ;
po r esses dois m otivo s precisam os tratá-las mais detalhadam ente.
Mas não fo i som ente o p ensam ento p o p u la r que d e tu rp o u o sentido
da fé ; em ú ltim a análise concepções filo s ó fic a s e teológicas é que
são responsáveis po r isso, as quais m esm o em nível mais elevado,
ig u a lm e n te m al-e nte nd era m a natureza da fé.
As diversas in terpretações errôneas da fé podem ser atribuídas
a um a só raiz. Fé, com o estar to m a d o p o r a q u ilo que nos toca incon­
d icio n a lm e n te , é um ato ce n tra l da pessoa in te ira . Se acontecer que
apenas uma das funções q u e co n stitu e m a pessoa é id e n tificad a com
a fé , desfigura-se o sentido da fé . Essa com preensão não está com ­
p le tam en te errada, p o rqu e cada fu n çã o do e sp írito hum ano participa
do ato de crer. Mas cada v e rd a d e parcial será parte de um e rro
g lo b a l.
A distorção mais fre q ü e n te da fé consiste em considerá-la como
um conhecim ento que apresenta m e n o r g ra u de certeza do que o
conhecim ento cie n tífico . C onform e- essa concepção o ato de fé con­
siste de um a suposição de p ro b a b ilid a d e m a io r ou m enor, a qual
em si não pode ser de m o n stra d a . Tal fé n a tu ra lm en te não pode
ser nada mais do qu e um " d a r c ré d ito " (7). "C rê-se" que certas in fo r­
mações sejam exatas; "crê -se " que d o cum entos históricos sejam úteis
para a com preensão de acontecim entos passados; "crê-se" que uma
teoria científica esclareça a relação e n tre d e te rm in a d o s fatos; "crê-se"
que uma pessoa se com p o rta rá de uma d e te rm in a d a maneira ou que

(7) N. d o T. "F u e r-w a h r-H a lte n " (lite ra lm e n te " te r p o r v e rd a d e iro ") tam bém pode ser
re p ro d u z id o p o r " a c re d ita r" e " a c h a r" ; esse ta m b é m é o se n tid o de " c r e r " nas
frases seguintes.

24
a situação p o lítica e volu a nessa ou naquela d ireção. Em todos esses
casos a suposição se baseia em dados que g a ra n te m uma p ro b a b ili­
d ade s u fic ie n te . Às vezes "crê -se " a lg o que é menos p ro v á v e l ou
p ro p ria m e n te im p ro v á v e l, se bem que não im p o ssíve l. Os m o tivo s
para esse tip o de " c re r" no cam po te ó rico ou p rá tic o são bem diversos.
Há coisas qu e "c re m o s ", p o rq u e lem os bons m o tiv o s para isso, se bem
que não suficie n te s. A in d a mais fre q ü e n te m e n te nós "c re m o s ", p o rq u e
as respectivas a firm a tiv a s fo ra m fe ita s p o r pessoas que nos parecem
d ignas d e confiança. Isto sem pre acontece, p o r e x e m p lo , q u a n d o
c o n fia m os em dados e inform ações q u e o u tro s consideram seguros,
apesar d e não os po de rm os v e rific a r pessoalm ente; esse é o caso
no que d iz respeito a todos os acontecim entos d o passado. A q u i
entra em jo g o um n o vo e le m e n to : a confiança num a a u to rid a d e , cuja
a firm a ção nos parece d ig n a de " f é " (8). Sem essa confiança nada
podem os " c re r" q u e não e xp e rim e n ta m o s pessoalm ente. Nesse caso
o m u n d o se nos to rn a ria m u ito mais re s trito do que ele de fa to
é. Por isso é sensato co n fia rm o s em a u to rid a d e s que nos a la rg u e m
os h o rizo n te s, sem nos d e ixa rm o s to m a r a lib e rd a d e do p ró p rio p e n ­
sam ento. Se usarm os a palavra " fé " para esse tip o de confiança,
pode-se d iz e r com razão que quase to d o o nosso co n h e cim e n to se
baseia em " fé " . Mas o uso das palavras " fé " e " c re r" (9) nesses casos
cria confusão. Nós "a c re d ita m o s " no que nos d ize m a u to rid a d e s num
certo ca m p o , nós confiam o s no seu parecer, se bem que não ce g a m e n ­
te; mas nós não crem os neles. Fé é m ais do q u e confiança em a u to ri­
dades, apesar de a confiança sem pre ser um e le m e n to da fé. Essa
d istinção é im p o rta n te , p o rq u e a n tig a m e n te h o u ve te ó lo g o s que
tentaram c o rro b o ra r a a u to rid a d e in co n d icio n a l da B íblia sa lie n ta n d o
a fid e d ig n id a d e de seus autores. O cristão p o d e a c re d ita r no q u e
eles re la ta m , mas ele não o d e ve ria fa z e r sem reservas. Ele não crê
nos autores dos liv ro s b íblicos, sim , ele nem d e v e ria crer na B íblia.
Isso p o rq u e fé é mais d o que confiança, mais do que confiança em
a u to rid a d e s religiosas. Fé é p a rticip a çã o no q u e toca in c o n d ic io n a l­
m ente — p a rticip a çã o com to d o o ser. Por isso a p a la vra " f é " não
d everia ser usada q u a n d o se trata de co n h e cim e n to te ó rico , ta n to faz
se é um co n h e cim e n to que se baseia num a certeza p ré -c ie n tífica ou
cie n tífica , ou num a confiança em au to rid a d e s.
Com esse exam e te rm in o ló g ic o nós chegam os ao p ró p rio tem a.
A fé não c o n firm a nem nega nada q u e faça p a rte d o conh e cim e n to
p ré -c ie n tífic o ou cie n tífic o d o nosso m u n d o , seja ele baseado em
e xp e riê n cia p ró p ria ou de outros. O co n h e cim e n to do nosso m u n d o
(inclusive de nós mesmos, que somos parte desse m u n d o ) nos é

(8) Aspas d o tra d u to r.


(9) N. d o T.: Os d o is te rm o s estão para o su b sta n tivo a le m ã o " G la u b e ".

25
d a d o pela nossa p ró p ria investigação ou pelas fo n te s em que con­
fia m o s. Ele não é um a questão de fé. A d im e n sã o da fé não é uma
d im e nsão da ciência. A aceitação de um a h ip ó te se cie n tífica que
possui a lto grau de p ro b a b ilid a d e não é fé, mas um c ré d ito p ro v i­
sório, qu e precisa ser c o m p ro v a d o c ie n tific a m e n te e le va r em conta
novos d ados. Quase to d o s os con fro n to s e ntre fé e saber têm sua
raiz na falsa concepção de fé como um a fo rm a de saber que tem
um b a ix o g ra u de certeza, mas é g a ra n tid o pela a u to rid a d e . Mas
não fo i som ente essa co n fu sã o dos dois cam pos q u e o rig in o u as
históricas lutas e n tre fé e saber, mas ta m b é m o fa to de q u e fr e ­
q ü e n te m e n te interesses da fé se ocultam p o r detrás de um a a fir­
mação q u e se d iz p u ra m e n te científica. O n d e esse fo r o caso, e n ­
contra-se fé contra fe , e não fé contra o saber.
A d ife re n ça e n tre fé e conhecim ento se m ostra no tip o de
certeza q u e os dois suscitam . Há dois tip o s de co n h e cim e n to carac­
terizados p e lo mais a lto g ra u de certeza. Uma é a certeza im e d ia ta
dada pela percepção dos sentidos. Q uem percebe uma cor ve rd e , vê
o v e rd e e está certo disso. Mas ele não pode te r certza, se o o b |e to
q u e lhe depara com o v e rd e realm ente tem essa cor. Ele pode se
e n ganar; mas ele não p o d e d u v id a r de que cie vê a lg o ve rd e . Certeza
suprem e tam b ém é dad a p o r leis lógicas e m atem áticas, que ta m b e m
são perssupostas co m o irre fu tá v e is , q u a n d o aparecem em fo rm u a-
ções d ife re n te s ou até c o n tra d itó ria s. N ão se p o d e d is c u tir questões
de lógica sem p re ssu p o r estruturas lógicas básicas; sem essas uma
discussão não teria se n tid o . A q u i tem os certeza absoluta; mas com
isso nós percebem os tã o pouco da re a lid a d e com o pela percepção dos
sentidos. N em p o r isso elas são fu n d a m e n ta is para o nosso conhe­
cim ento. Isso p o rq u e nen h u m a verdade é possível sem o m a te ria l que
nos é fo rn e c id o pela percepção dos sentidos e sem a fo rm a que é
dada a esse m aterial pelas leis lógicas e m atem áticas, sobre as quais
se baseia a estrutura d o pensam ento. Um dos piores erros que a
te o lo g ia e a concepção co rre n te de re lig iã o p ode co m e te r, consiste
em e x te rn a r p ro p o sita d a ou in v o lu n ta ria m e n te idéias que c o n tra d i­
zem a p ró p ria e stru tu ra d o pensam ento. Tais afirm ações e a a titu d e
que lhes dá o rig e m não são fé ; elas p ro v ê m d e um a confusão de
crer e acred itar.
O co n h e cim e n to da re a lid a d e concreta nunca tem o caráter de
certeza absoluta. O processo de conhecim ento nunca chega ao fim
— a não ser num co n h e cim e n to de "tu d o em tu d o ". Mas tal co n h e ­
cim ento excede in fin ita m e n te a todo e sp írito fin ito e som ente pode
ser a trib u íd o a Deus. T od o conhecim ento hu m a n o da re a lid a d e apenas
tem o cará ter de m a io r ou m e n o r p ro b a b ilid a d e . A certeza re fe re n te
a uma lei física, uma fa to h istó rico gu uma constatação psico ló g ica p ode

26
ser tam anha, qu e ela na prática é p le n a m e n te s u ficie n te . Mas te o ri­
cam ente tal certeza sem pre tem a lgo d e im p e rfe ito , pois a q u a lq u e r
m o m e n to ela p o d e ser questionada pela crítica e p o r novos co n h e ­
cim entos. Bem d ife re n te é a certeza da fé. Ela ta m b é m não se baseia
em fo rm as da in tu içã o e d o pensam ento. A certeza da fé é " e x is ­
te n c ia l", e isso s ig n ific a que toda a e xistê n cia d o hom em dela
p a rticip a . C om o já constatam os, a certeza da fé tem duas co m p o ­
nentes. Uma se d irig e a a lgo d e v a lid a d e ú ltim a e in c o n d ic io n a l. A q u i
há certeza a bsoluta, fé sem risco. A o u tra co m p o n e n te encerra um
risco e e n g lo b a d ú v id a e coragem , p o rq u e a qui se trata da a firm a ­
ção de a lg o n ã o -ú ltim o , de a lg o que- se to rn a d e s tru tiv o se fo r to m a d o
in co n d icio n a lm e n te . Na certeza da fé não existe o p ro b le m a te ó rico
de certeza m a io r ou m enor, d o p ro v á v e l ou im p ro v á v e l. A fé gira
em to rn o de um p ro b le m a existe n cial: em to rn o da questão de ser
ou não-ser. Ela se encontra num a o u tra d im e n s ã o que to d o parecer
teórico. Fé não é dar cré d ito , nem um c o n h e c im e n to de m enor p ro ­
b a b ilid a d e . Certeza da fé não é a certeza co n d icio n a d a de um [uízo
teórico.

2. A D istorção da Fé como A to da V o n ta d e

Existe um tip o católico e um e v a n g é lic o da d isto rçã o vo lu n ta rís-


tica da fé . O tip o católico tem uma v e n e rá v e l tra d iç ã o na ig re ja
rom ana. Ele tem a sua o rig e m em Tomás de A q u in o , q u e a firm a va
q u e a im p o s s ib ilid a d e de dem onstração in e re n te à fé precisa ser
com pensada p o r um ato da v o n ta d e . Essa tese se baseia na pres­
suposição de que a fé é um ato de c o n h e c im e n to de b a ixo grau de
certeza; som ente q u a n d o isso é pressuposto, a fa lta d e certeza pode
ser contrapesada p o r um ato da vo n ta d e . C om o vim o s , essa con­
cepção de fé não fa z jus ao seu caráter e x is te n c ia l. Nossa crítica à
distorção in te le ctu a l da fé re fu ta ao m esm o te m p o a d isto rçã o v o lu n -
tarística, p o rq u e essa d e riv a d a q u e la . Sem um c o n te ú d o te oricam ente
fix a d o da fé , a "v o n ta d e para c re r" não fa ria s e n tid o . Esse conteúdo
é dado pela razão à vonta d e . C onsiderem os um a vez o fa to de alguém
d u v id a r da im o rta lid a d e da alm a. Ele sabe- que a afirm ação de
a alma c o n tin u a r a v iv e r após a m orte d o co rp o não p o d e ser nem
provada nem assegurada p o r a u to rid a d e de confiança. Nós nos e n ­
contram os, p o rta n to , d ia n íe de uma a firm a ç ã o teórica insegura. Mas
existem outros m o tivo s que levam as pessoas a essa suposição. Elas
se decid em p ara a fé e preenchem com a v o n ta d e a lacuna da
d e m o n s tra b ilid a d e . Na te o lo g ia ca tólico-rom ana clássica a "v o n ta d e
para c re r" não é uma decisão que surge do e sfo rço d o hom em , mas
ela lhe é concedida pela graça. Deus leva a v o n ta d e a aceitar a v e r­
dade da d o u trin a da igreja. Mas tam bém c o n fo rm e essa concepção não

27
é o in te le cto que é le v a d o p o r Deus à fé , mas a vo n ta d e m o vid a
p o r Deus com pleta a q u ilo que o intele-cto não consegue re a liza r so­
zinho. Tal interpretação co rre sp o n d e à o rie n ta çã o a u to ritá ria da igreja
rom ana. Isso porque a fin a l de contas é a a u to rid a d e da ig re ja que
fix a os conteúdos da fé , a cuja aceitação o in te le cto é in cita d o pela
vo n ta d e . Excluindo-se agora a idéia d e q u e Deus m o ve a v o n ta d e ,
o ato v o litiv o se tra n s fo rm a , com o no p ra g m a tis m o , num ato a rb i­
trá rio . Ele se torna uma decisão q u e sem d ú v id a é am parada por
a lguns fu ndam ento s — se bem que in s u fic ie n te s —, a q u a l, porém ,
p o d e ria com a mesma ju s tific a tiv a te r sido bem o utra. Tal ato de
"d a r c ré d ito " com base num ato da v o n ta d e não é fé .

A fo rm a protestante da "v o n ta d e para c re r" resulta da concep­


ção básica da re lig iã o com o m o ra l. Exige-se aqui "o b e d iê n c ia d e fé ",
em alusão a uma p a la vra de Paulo. Essa expressão pode s ig n ific a r
duas coisas. Ela pode s u b lin h a r um a ve z o e le m e n to de entre g a que
sem pre está presente no estado de ser possuído in co n d icio n a lm e n te .
Julga-se então, com razão, q u e nesse estar possuído in c o n d ic io n a l­
m ente colaboram todas as funções d o e s p írito hum ano. Ou entã o a
expressão "ob ediê ncia da fé " s ig n ific a sujeição à o rd e m de crer,
com o ela é pregada pelos p ro fe ta s e apóstolos. N a tu ra lm e n te , q u a n d o
um a palavra profética é reconhecida com o "p ro fé tic a " , isto é, como
p a la vra p ro ve n ie n te de Deus, entã o o b e d iê n cia da fé nada s ig n ific a
senão reconhecer uma m ensagem com o p ro v in d a de Deus. M as se
h o u v e r d ú vid a se uma p a la vra é " p ro fé tic a " ou não, a expressão
"o b e d iê n c ia da fé " perd e seu sen tid o . Ela se tra n s fo rm a então num a
a rb itrá ria "disposição (vo n ta d e ) para c re r". Essa situação ainda pode
ser m e lh o r esclarecida, se cham am os atenção para o fa to d e que
fre q ü e n te m e n te estam os possuídos p o r a lg u m a coisa (por e x e m p lo
p o r passagens bíblicas), as quais nos parecem ser expressão o b je tiv a
de a lgo incondicional e ú ltim o , mas nós hesitam os e usamos su b te r­
fú g io s para não fazer d e la ta m b é m s u b je tiv a m e n te um o b je to de
nossa p ró p ria preocupação ú ltim a . Nesses casos se ju lg a que o
a p e lo à vo n ta d e é ju s tific a d o e não parece p o r isso ser uma incitação
a um ato a rb itrá rio . N ão há d ú v id a d e que isso está certo. Mas tal
ato da vonta de não p ro d u z fé, pois fé com o preocupação in c o n d ic io ­
nal já estava presente antes d o ato da vo n ta d e . A e xig ê n cia de
o b edecer não é então nada mais d o q u e a e xig ê ncia de ser a q u ilo
que já se é, isto é, uma pessoa que na re a lid a d e já se e n tre g o u ao
in co n d icio n a l, mesmo se ela lhe q u e r escapar. A pe n a s nessa situação
pode-se e x ig ir "o b e d iê n c ia da fé " ; mas ela pressupõe q u e a fé
preceda à obediência e não seja a sua conseqüência. N em a ordem
de crer nem a "v o n ta d e para c re r" conseguem p ro d u z ir fé.

28
Esse fa to é im p o rta n te para toda educação re lig io s a , cura d 'alm as
e pregação. N unca sed e v e ria d a r a im pressão de que a fé seria um a
e xig ê ncia , cuja rejeição re v e la ria má vontade. O h o m e m fin ito não
pode criar v o lu n ta ria m e n te o estar possuído p e lo in fin ito . Nossa v o n ta ­
de inconstante não consegue g e ra r a certeza q u e está p re se n te na fé.
Isso corre sp o nd e em tod o s os sentidos à q u ilo que já fo i d ito acerca
da im p o s s ib ilid a d e de ch e g a r à fé através de provas ou d e confiança
em a u torid ades. N em a razão, nem a vo n ta d e , nem a u to rid a d e s con­
seguem cria r fé.

3. A disto rção da fé com o se n tim e n to

As d ific u ld a d e s que surgem q u a n d o se e n te n d e afé como


uma questão da razão ou da v o n ta d e ou da cooperação de ambas
levaram a qu e se a concebesse com o sentim ento. Essa concepção fo i
sustentada em p arte até h oje ta n to d o lado re lig io s o co m o d o secular.
Para os defen sores da re lig iã o esta fo i uma re tira d a para uma p o ­
sição a p a re n te m e n te segura, d e p o is que fracassou a te n ta tiv a de
ju s tific a r a fé com o uma q u estão do conhecim ento ou da vo n ta d e .
O pai da te o lo g ia p ro te s ta n te m o d e rn a, S chleierm acher, descreveu a
re lig iã o com o "s e n tim e n to d e d e p e n d ê n cia in c o n d ic io n a l" (10). É claro
que se n tim e n to não é usado p o r S chleierm acher no m esm o sentido
que na psico lo g ia corre n te . Ele não é vago e o scila n te, mas tem um
conte údo d e te rm in a d o , ou seja, "d e p e n d ê n c ia in c o n d ic io n a l", uma
expressão análoga ao que cham am os de '"p re o cu p a çã o in c o n d ic io n a l".
M esm o assim a pa la vra "s e n tim e n to " levou m uitas vezes à falsa su­
posição de qu e a fé seria s im p le sm e n te uma q u e stã o d e emoções
sem nenhum a relação com a lg u m conte ú d o que se pudesse reco­
nhecer e sem e xig ê ncia a q u e cabe obed iê n cia ...)
Essa in te rp re ta çã o de fé fo i p ro n ta m e n te aceita p o r cientistas
e políticos. Eles v ira m a qui a m e lh o r o p o rtu n id a d e de- e lim in a r toda
e q u a lq u e r in te rfe rê n c ia da re lig iã o na pesquisa c ie n tífic a e no âm ­
b ito p o lític o . Se a re lig iã o não é nada mais d o que s e n tim e n to , ela
é in o fe n siva . C hegaram entã o ao fim os a ntigos c o n flito s e n tre c u l­
tura e re lig iã o V A cu ltu ra , d irig id a p e lo conh e cim e n to c ie n tífic o , pode
se d e s e n v o lv e rH iv re m e n te . A re lig iã o , no e n ta n to , é assunto p a rtic u la r
d o ,in d iv íd u o e nada mais é d o que um re fle x o de sua v id a e m ocio­
nal. Ela não tem acesso à v e rd a d e , e n a tu ra lm en te não p o d e haver,
por isso, c o n flito s e n tre a re lig iã o e ciência n a tu ra l, h is tó ria , psicolo-
gi.i e p o lític a ^ D e p o is que a re lig iã o fo i assim d e c la ra d a um senti­
m ento s u b je tiv o e tira d a d o m e io d o cam inho, ela não mais re p re ­
senta p e rig o para a vid a c u ltu ra l d o hom em .

(10) N. cio T.: " s c h le c h th in n ig " , in g lê s " u n c o n d itio n a l" .

29
Mas n en h u m dos d o is lados, nem re lig iã o nem cu ltu ra , conse­
g u iu ater-se fie lm e n te a essa separação das du a s áreas. A fé rnm n.
estar possuído p o r aq u ilo que to c a in c o n d ic io n ü lix ie o íe _reclama a
pessoa in te jra e não sg_ d e ixa re s trin g ir à s u b ie tiv id ada-jdo. sim ples
s e n tim e n to . TaI Te re ivin d ic a ve rd a d e para si e e x ig e entrega à q u ilo
q u e toca in co n d icio n a lm e n te . Ela não p o d e se c o n te n ta r em ser iso­
lada num canto com o se n tim e n to sem co m p ro m isso . Q u a n d o a pes­
soa in te ira está possuída, todas as suas forças estão tom adas. Se
é negada essa reivin d ica çã o da re lig iã o , nega-se a p ró p ria re lig iã o .
M as não apenas para a re lig iã o fo i in a c e itá v e l a lim itação da fé
à esfera do se n tim e n to . Os p ró p rio s cie n tista s, artistas e políticos
m o straram fre q ü e n te m e n te contra a sua v o n ta d e que eles tinham
um a preocupação in co n d icio n a l, se bem q u e eles m anisfestavam um
v iv o interesse em afastar a re lig iã o para o ca m p o d o sim ples senti­
m e nto. E isso se expressava v is iv e lm e n te m esm o naquelas obras em
q u e eles se v o lta v a m m ais d u ra m e n te co n tra a re lig iã o . Uma análise
exata da m a io ria dos sistemas filo s ó fic o s , c ie n tífic o s e éticos" mostra
q u a n ta "p reocupa çã o in c o n d ic io n a l" eles co n tê m , mesm o quando
d e sem p enh am um papel im p o rta n te na lu ta co n tra a q u ilo que eles
e n te n d e m sob re lig iã o .
Essa exposição m ostra a d e fic iê n c ia de um a concepção que en­
te n d e a fé apenas com o sentim ento. N ão há d ú v id a de que na fé como
ato da pessoa in te ira o ele m e n to d o s e n tim e n to está fo rte m e n te
re p re se nta d o . Um sentim e n to m u ito v iv o sem pre dem o n stra que a
pessoa in te ira está p a rtic ip a n d o d e um a e x p e riê n c ia ou de um a in­
tu içã o d o e sp írito . Mas o se n tim e n to não é a "onte da fé . A fé
tem um a orienta çã o bem d e te rm in a d a e um c o n te ú d o concreto. Por
isso ela reclam a v e rd a d e e e ntrega. Fé está o rie n ta d a para o incon­
d ic io n a l, o qu a l surge num a situação concreta q u e e xig e e ju stifica
essa entre ga.

III. SÍMBOLOS D A FL=

T. O C onceito de Sím bolo

A q u ilo q u e toca o hom em in c o n d ic io n a lm e n te precisa ser ex­


presso p o r m e io de sím bolos, p o rq u e apenas a lin g u a g e m sim bólica
consegue expre ssar o inco n dicio n a l. Essa tese precisa ser e xplicada.
A p e sa r dos m ú ltip lo s esforços da filo s o fia c o n te m p o râ n e a em o bter
clareza acerca da natureza e da fu n ç ã o d o s ím b o lo , as opiniões
q u a n to a esse p o n to ainda são m u ito d iv e rg e n te s . Q u e m , p o rta n to ,
u tiliz a o te rm o "s ím b o lo ", precisa e x p lic a r o q u e ele q u e r d iz e r com
isso.

30
S ím bolos e sinais têm uma característica essencial em com um :
eles indicam algo que se encontra fora deles. O sinal v e rm e lh o no
cruzam e n to indica a prescrição se gundo a q u a l os carros têm que
parar p o r um d e te rm in a d o p e río d o . A luz v e rm e lh a e o p a ra r dos
carros em si nada têm a v e r um com o o u tro ; mas p o r uma co n ­
venção ambos estão relacionados, e isso d u ra tanto q u a n to a co n ­
venção estive r de pé. A mesma coisa vale para letras e n úm eros, em
parte até para palavras. Esses ta m b é m in d ica m para além de si,
isto é, para sons e sig n ifica d o s. Eles receberam a sua fu n çã o esp e ­
cífica p o r um acordo e n tre o p o vo ou p o r convenções in le rn a c io n a is ,
p o r e x e m p lo os sinais m atem áticos. Às vezes esses sinais são cham a­
dos d e sím bolos. Isso e n tre ta n to é la m e n tá v e l, p o rq u e d ific u lta a
d iferenciação entre sinal e sím b o lo . De im p o rtâ n c ia capital nesse
se n tid o é o fa to de qu e os sinais não p a rtic ip a m da re a lid a d e d a q u ilo
que eles indicam ; q u a n to aos sím bolos, no e n ta n to , esse é o caso.
Por isso os sinais podem ser su b stitu íd o s em liv re acordo p o r questões
d e conveniência; com os sím bolos não é assim.
Isso nos leva a mais uma característica d o s ím b o lo ; ele faz parte
d a q u ilo que ele indica. A b a ndeira fa z p a rte d o p o d e r e d o p re s tíg io
da nação pela qual ela flu tu a . Por isso ela não pode ser s u b stitu íd a ,
a não ser após uma derrocada h istórica q u e m o d ific o u a re a lid a d e
d o p o vo representado pela b a n d e ira . O desrespe-ito à b a n d e ira é
considerado ofensa à d ig n id a d e d o p o v o q u e a co n s titu iu com o
sím bolo. Tal ato é visto até com o sacrilégio.
A terceira característica do sím b o lo consiste em q u e ele nos
leva a níveis da re a lid a d e que, não fosse ele, nos p e rm a n ece ria m
inacessíveis. Toda arte cria sím bolos para um a d im e n sã o da re a li­
dade que não nos é acessível d e o u tro m o d o . Um q u a d ro ou uma
poesia, p or e xe m p lo , re ve la m traços da re a lid a d e que não podem
ser captados cie n tifica m e n te .
A q uarta característica d o sím b o lo está em que e le a bre d i­
m ensões e estruturas da nossa alm a que co rre sp o n d e m às dim ensões
e estruturas da reaPdade. Um g ra n d e 1 d ram a não nos dá apenas uma
nova intuição no m u n d o dos hom ens, mas ta m b é m re ve la p ro fu n ­
dezas ocultas do nosso p ró p rio ser. Com isso nos to rn a m o s capa­
citados a e n te n d e r a q u ilo que a peça p ro p ria m e n te q u e r d ize r.
Existem aspectos d e n tro de nós m esm os, dos quais apenas nos p o ­
dem os conscientizar através de sím bolos. Assim ta m b é m m e lo d ia s e
ritm os na música podem se tra n s fo rm a r em sím bolos.
Em q u in to lugar, sím bolos não po d e m ser in ve n ta d o s a rb itra ria ­
m ente. Eles provêm d o inconsciente in d iv id u a l ou c o le tiv o e só tom am
vida ao se radicarem no inconsciente d o nosso p ró p rio ser.

31
O ú ltim o d is tin tiv o d o s ím b o lo é um a conseqüência d o fa to de

s z W s=r i r a
PSrab t V í r P^ er pT»d 0o p .,,^ n u m r d " , eU S , época

í S S n f . S iS . % » r r ^ ^ ^ rc S m c a T t
S ím bolos não ™ " * ” * „ ' „ So' c n c o n . „ m mais reper-

^ ................

S ím bolos genuínos e xiste m nas *c ” mos citar a

™ f n r o “ eS
m ,P t p eac« i= o são os sim bolos religlosos.

2 Os Sím bolos R eligiosos

. r r sç t s

re ligiosos nao Bpode 5ser » e, p 3 »


^ i í r í a
g r a
cupaçaos

Q u a n d o , p o r e xe m p lo , d m h e .ro sucesso j d ire ta m e n te ,


m á xim a d e um a pessoa, P ° ^ ue " a° * P° A is o deve-se dizer: De
sem u tiliz a r a lin g u a g e m dos sím bolos? A sso ae

q u a lid a d e s d iv in a s que em m u ito ® ^ i d o n a l,


dS ümH “ Ç"ss :^ r r d o T o aV oTsod0coV;odapd,eoc„paçlo 01,im,
to rn a n d o -se assim um ia o .. , DOSSÍDilid a d e s humanas

M ã m á È s m
ju ízo d e Deus: sucesso e g r re a lid a d e p o r dem ais

lX 'u ° d t n S e ^ r í n h u " " “ a M a d e lin ila . Falando em lermos

32
re lig io so s, isso q u e r d ize r: Deus transcende o seu p ró p rio nom e. É
ta m b é m p o r esse m o tiv o que seu nom e é tã o abusado e p ro fa n a d o .
Seja lá com o d esignam os nossa preocupação suprem a, se a cham am os
d e Deus ou não, as nossas afirm ações se m p re têm s ig n ific a d o s im ­
b ó lico ; e os sím bolos entã o usados m ostram para além d e si m esm os
e têm p a rticipação n a q u ilo q u e eles d e s ig n a m . N ão há o u tra m a n e ira
ad e quad a de a fé se expressar a d e q u a d a m e n te . A lin g u a g e m da
fé é a lin g u a g e m dos sím bolos. Isso já não p o d e ría m o s d iz e r, se a
fé fosse apenas um acre d ita r, apenas v o n ta d e ou se n tim e n to . M as
a fé com o estar possuído p o r a q u ilo q u e toca in c o n d ic io n a lm e n te não
conhece o utra lin g u a g e m senão a dos sím b o lo s. D iante de sem e­
lh a n te constatação eu sem pre ag u a rd o a p e rg u n ta : A p e n a s um sím ­
b o lo ? Q u e m indaga assim, no e n ta n to , d e m o n stra que lhe é estranha
a d ife re n ç a e ntre sinal e sím bolo. Ele nada sabe d o p o d e r da lin ­
g u a g e m sim bólica, a qu a l suplanta em p ro fu n d id a d e e força as
p o ssib ilid a d e s de toda lin g u a g e m n ã o -sim b ó lica . Nunca se d e v e ria
d iz e r "apen as um s ím b o lo ", mas sim: "n a d a m enos que um s ím b o lo ".
É isso q u e se d e ve m an te r em m ente na e xp o sição q u e fa re m o s em
se g uida acerca dos dive rso s tip o s de s ím b o lo s da fé.

O sím b o lo fu n d a m e n ta l para a q u ilo q u e nos toca in c o n d ic io n a


m ente é Deus. Esse sím b o lo está presente em to d o ato d e cre r, m esm o
q u a n d o esse ato de cre r in c lu i a negação d e Deus. O n o e re a lm e n te
e xiste o estar possuído p e lo in co n d icio n a l, Deus só p o d e ser n e g a d o
em no m e de Deus. Um deus p ode n e gar o o u tro deus, mas o estar
possuído in co n dicio n a lm e n te não pode n e g a r o seu p ró p rio caráter
— o d e in co n d ic io n a l. Nesse fa to é que se encontra a c o n firm a ç ã o
d a q u ilo q u e se q u e r d iz e r com a p alavra "D e u s ". A te ísm o , p o rta n to ,
só p o d e ser co m p re e n d id o com o te n ta tiv a de re je ita r to d a p re o c u ­
pação in co n d ic io n a l, o que s ig n ific a , p o r c o n s e g u in te , rejeição da
p e rg u n ta p e lo sentido da v id a . A in d ife re n ç a d ia n te dessa p e rg u n ta
de e n o rm e p e rtin ê n cia é a única fo rm a co ncebível de ateísm o. Se
é possível sem elhante ateísm o, não q u e re m o s d is c u tir aq u i. Em
todos os casos perm anece de pé que a q u e le q u e nega a Deus com
pa ixã o in c o n d icio n a l, a firm a a Deus, p o rq u e e le m a n ife sta alg o in ­
co n d icio n a l. Deus é o s ím b o lo fu n d a m e n ta l d a q u ilo q u e preocupa
in co n d icio n a lm e n te . M ais uma vez, seria to ta lm e n te e rra d o p e rg u n ta r:
Q u e r d iz e r que Deus é apenas um s ím b o lo ? Isso p o rq u e a p e rg u n ta
se guinte te ria que ser: Um s ím b o lo de que? E a isso só se p o d e ria
re sp o n d e r: De Deus. "D e u s " é sím bolo para Deus. Isso s ig n ific a q u e
precisam os d is tin g u ir dois elem entos em nossa concepção de Deus:
um a vez o e le m e n to inco n d icio n a l, que se nos m anifesta na e x p e riê n ­
cia im e d ia ta e em si não é sim b ó lico , e p o r o u tro lado o e le m e n to
concreto, que é o b tid o d e nossa e xp e riê n cia no rm a l e é sim b o lica -

33
5 ^ - ^ 5 S ® a £ S 3

o ró p rio e u n iv e rs a lm e n te v á lid o da fé.


Está c la ro c,ue

X ^ n I o tem Í S S Í V S u “ * (-“ in c o n d ic io n a lid a d e d o incon

s ^ / s s r s n í^ s y s t iz

% x s s x s t t + £ - ~ & s .« - -
se en te n d e p o r existência a go q P n e n h u m e n te d iv in o .

E E ít . M í r i S M

rSn Due apresenta uma co m binação im possível de p a la vra s, ueus

S a f e r * « a £ “
p ró p rio eu. Mas reconhecer Deus no sím bolo de uma im a g e m d ivm a
é uma q uestão de fé , coragem e risco. _
Deus é o sím bolo fu n d a m e n ta l da fé , mas nao e o um co. Todas
i Har)p<; nue lhe a trib u ím o s , com o poder, am or, |ustiça, p
: - mqud t dbe :,o qdu: ^ • t r g s s . t s
,o r : z s s t f s z : *
p o d e ^ p ^ ra d e^g na r s im b o lic a m e n t e o o b ie to d . - - ta r p o s s u .d o

In c o n d ic io n a lm e n te ; m as com is s o e la não c a r.d e n z a

p re n '° , ‘ •“ • „ S S S r f T d : T o s : com lo d a f a s ações no passado,


“ eseur . f o . l C,„e o I,ornem lh e a trib u i. Tudo isso são s.m bolos

34
re tira d o s de nossa exp e riê n cia co tid ia na , e não afirm ações sobre o
qu e Deus fez em tem pos antiquíssim os ou fa rá em fu tu ro d is ta n te .
A fé não é d a r cré d ito a sem elhantes re la to s, e sim aceitação de
s ím bolo s que e x p rim e m através da im a g e m da ação d iv in a o nosso
estar possuído incondicio n a l.

O u tro g ru p o de sím bolos são m anifestações do d iv in o em


coisas e eventos, em in d iv íd u o s ou g ru p o s , pa la vra s ou escritos. Todo
esse cam po de o bjetos sagrados é um te so u ro re p le to de sím b o lo s.
M as o b je to s santos não são em si santos, mas m ostram além de si
para a fo n te de toda santidade, para a q u ilo q u e é o p ró p rio in c o n ­
d ic io n a l.

3. Sím bolo e M ito

Os sím bolos da fé não ocorrem in d iv id u a lm e n te . Eles estão


associados a "h istó ria s dos deuses", p o is é isso mesm o que s ig n ific a
o rig in a lm e n te a palavra g re g a " m ito " . Nesses, os deuses se a p re ­
sentam com o personagens in d iv id u a is e se parecem com seres
hu m a nos. C om o esses, eles se d ife re n c ia m p e lo sexo, têm a ntepas­
sados e descendentes e estão cheios d e a m o r e ó d io d e um para
com o o u tro . O m u n d o e os homens são criados p o r eles, q u e ta m ­
bém atuam d e n tro d o espaço e do te m p o . Eles p a rticip a m da g ra n ­
deza e da m iséria dos hom ens, da sua a tiv id a d e criativa bem com o
d e s tru tiv a . Eles dão à h u m a n id a d e c u ltu ra e re lig iã o e p ro te g e m
rito s sagrados. Eles ajudam e ameaçam o g ê n e ro hum ano, e s p e c ia l­
m e n te certas estirp es, trib o s e povos. Nós os encontram os em e p i­
fa n ia s e encarnações; eles fu n d a m lu g a re s e ritos consagrados,
in s titu e m sacerdotes e criam cultos. M as eles mesmos se e n co n tra m
sob o d o m ín io e ameaça d o d estino, a q u e está su je ito tu d o q u e
e xiste. Tudo isso é m ito lo g ia , a qual s u rg iu de m odo m ais im p re s ­
sionante na antiga Grécia. Mas m uitos dos traços aqui e n u m e ra d o s
se e n co ntram em q u a lq u e r m ito lo g ia . C o m u m e n te os deuses do m ito
não são e q uiparado s. Há uma h ie ra rq u ia encabeçada p o r um deus
su p re m o , com o na G récia, ou por um a trin d a d e , com o na ín d ia ,
ou p o r uma d iv in d a d e po la r-d u a lista , co m o na Pérsia. Há re d e n to re s,
que m e d ia m e ntre os deuses suprem os e os hom ens, e q u e , apesar
de sua im o rta lid a d e intrínseca, so fre m , m o rre m e ressuscitam . Esse
é o m u n d o do m ito , um m u n d o vasto e e stra n h o , sem pre em tra n s ­
form ação , mas fu n d a m e n ta lm e n te sem pre o mesm o: uma m a n ife s ­
tação da suprem a preocupação do g ê n e ro hum ano, re p re se n ta d o
'.im b o lica m e n te em personagens e atos d iv in o s . M itos são, p o rta n to ,
sím bolos da fé associados a lendas, os q u a is fa la m dos e n co n tro s
dos deuses entre si e dos deuses com os hom ens.

35
é a lin g u a g e m da fé /U a ^ e n -i", H " ' ° * f ™ ' P° ,c<u° ° s™ b ° ' °
d a d e eles L cd icado“ e , Z S i d ò ^ n " * 5/ ' " 8 ^ d " hum »n "
própria „ „ u r e z , do m i t o / ^ b í m
rie ncia co tid ia n a e coloca m Q
seu ™ ZfT
u im aterial da nossa exp e -
"a

d o te m p o e d o espaco Mac um e x periencias dos deuses d e n tro


é e xa ta m e n te que ele está a l é n ^ d T !!n$tlCa V'fal d o in co n d icio n a l
p o ré m , o m it o d n d e o d iv in o em uma séríe J ^ S° b re tu d ° '
tra in d o -lh e s assim a in c o n d ic io n a lid a d e sem e L I n ^ ? 9 6 " 5' SUb'
vin d ica çõ e s d e in c o n d ic io n a lid a d e Isso fo rc o T a m Ín T ? suas re.-
e n tre essas d ife re n te s re iv in d ic a -õ e s a u e n S f ™ ' eva 3 c o n fl't° s
p o n to d e p ô r em o e rin n * e A t - ' ^ , f!"1 ser 0 v e e m entes a
g ru p o s in te iro s. 'S enC' a ° ln d lvlc,u o bem com o de

d iv in o , S u p e ra n d o T c o m o conceito d H m " D e u s ^ ' V * ® 0 d °


esse con ceito p od e a p re se n ta r traços bem d ife re n te s ' n L d™ ^

S S J S i^ S falaDd
cado d e n tro de espaço e te m p o Sim
l Úe t ° -
n ^ essa^ m e n t e colo-

Sucede^d^ ° q u e a ^ T Í t í c a ^ o n í o C° ,nCre,° *
m itologia politeísta. 030 S° es9° ,a com 3 reie|Ção de uma

Tam bém o m o n o teísm o está su ie ito A rríti,-=


com o ho je se d iz da " d e m it i^ r » « " c cnílca ao m ito e precisa,
c o n te x to da descoberta dnq r»I *’® ,
s im b q lo s d a I S .r ~ ••»
fra ta-se aq u i d e relatos c o m o rl p ° m° j ovo Testam ento.

em q u e se descreve atuação d iv in a e n tre os hom n a rfa tiva s


com o m ito ló g ic a s em sua essênria í S3° e n ,e n d id a s

s .T u m r r r o S r ? - -

s ''" “ 1" Se ele ■*>">«« o expurgo d ^ S T a r S


porque sím bolo em ?,Õ ^ « *» *> .

- - ° z -
Isso p o rq u e o m ito é a associação de sím bolos q u e e x p rim e m o que
nos toca incon diciona lm e n te .
Um m ito que é e n te n d id o com o m ito , sem ser re je ita d o ou
s u b stitu íd o , pode ser cham ado d e " m ito q u e b ra d o ". Em c o n fo rm i­
d a d e com a sua essência, o c ris tia n is m o precisa re je ita r to d o m ito
n ã o -q u e b ra d o ; pois isso está baseado no p rim e iro m a n d a m e n to , no
re conh ecim e nto de Deus com o Deus e na re jeição de to d o tip o de
id o la tria . Todos os elem entos m ito ló g ic o s presentes na B íb lia , na
d o u trin a e na litu rg ia precisam ser reco n h e cid o s com o tais. M as eles
d e v e ria m ser m antidos em sua fo rm a s im b ó lic a , e não ser s u b s titu í­
dos p o r fó rm u la s científicas. Pois não há s u b stitu to s para s ím b o lo s e
m itos, eles são a lin g u a g e m da fé.
A crítica radical ao m ito é um a reação ao fa to de q u e a cons­
ciência m ítica p rim itiv a resiste o b s tin a d a m e n te a toda te n ta tiv a de
e n te n d e r o m ito com o m ito . Ela te m e to d o ato de d e m ito lo g iz a ç ã o
e acha que um "m ito q u e b ra d o " p e rd e a sua v e rd a d e e a sua capa­
cid a de de persuasão. Q uem v iv e num m u n d o m ítico in a b a la d o , sen-
t te-se seguro e abrigado. Ele se o p õ e fa n a tic a m e n te a toda te n ta tiv a
! d e "q u e b ra do m ito ", p o rq u e essa cham a a atenção para o ca rá te r
! s im b ó lico e cria um e le m e n to d e insegurança. Essa resistência é
, fa v o re c id a po r sistemas a u to ritá rio s , sejam eles d o tip o re lig io s o ou
p o lític o . Pois está em seu interesse e m b a la r em segurança as pessoas
q u e se encontram sob a sua d o m in a ç ã o , d a n d o assim aos d o m in a ­
do res o p o d e r inconteste. A o p o sição à d e m itiz a ç ã o se m ostra num
ríg id o agarram ento à letra. Os sím b o lo s e m ito s são e n te n d id o s lite ­
ra lm e n te . Seu m aterial, e m p re s ta d o da natureza e da h is tó ria , é
in te rp re ta d o pelo que apresenta e x te rio rm e n te . A essência d c sím ­
b o lo , que indica além d e si para a lg o q u e se e ncontra fo ra d e le , não
é reconhecido. Entende-se en tã o a criação com o um ato m á g ico no
"Era uma v e z . . da fá b u la ; a q u e d a de A d ã o é localizada no espaço
e a trib u íd a a um hom em d e te rm in a d o ; o nascim ento v irg in a l d o
Messias recebe uma inte rp re ta çã o b io ló g ic a ; ressurreição e ascensão
se apresentam como eventos físicos, e o re to rn o de C risto é e n te n d id o
com o uma catástrofe que a tin g irá a Terra ou o cosmo. A condição
para sem elhante crença lite ra lística é a suposição de que Dsus tem
um a localização no te m po e no espaço e in flu e n c ia o curso das coisas
bem com o é p o r ele in flu e n c ia d o com o to d o o u tro ente no m u n d o .
Essa com preensão literal da B íblia d e sp o ja Deus d e sua in co n dicio n a -
lid a d e e, fa la n d o em term os re lig io s o s , ta m b é m de sua m ajestade.
Ela o rebaixa ao nível do fin ito e c o n d icio n a d o . Em tu d o isso não
estam os d ia n te de uma crítica ra cio n a l, mas sim in tra -re lig io s a . Uma
fé que e n te n d e seus sím bolos lite ra lm e n te é id o la tria . Ela cham a de
in co n dicio n a l à quilo que é m enos q u e in c o n d ic io n a l. A fé , e n tre ta n to ,

37
q u e está consciente d o caráter s im b ó lic o de seus sím bolos dá a Deus
a h onra q u e lhe cabe.
Tem os de d is tin g u ir a g ora duas faces na disto rçã o lite ra l da
c o m pre ensão dos símbolos.- a o rig in a l e a d e fe n siva . Na fase o rig in a l
o m ítico e o lite ra l não são d ife re n c ia d o s um d o o u tro . Nos p rim ó r­
d io s da h istó ria nem as pessoas nem os g ru p o s conseguem d is tin ­
g u ir as criações im a g in a tiv a s d e sím b o lo s, de fatos q u e podem ser
d e m o n stra d o s pela observação e a e xp e riê n c ia . Essa fase tem a
sua razão de ser até o in sta n te em q u e o e sp írito in v e s tig a d o r do
hom em supera o cré d ito lite ra l aos m ito s. Q u a n d o chega esse m o­
m e n to , abrem -se duas p o s s ib ilid a d e s . Uma consiste em s u b stitu ir o
m ito in c ó lu m e p e lo m ito q u e b ra d o . Esse é o ca m in h o o b je tiva m e n te
c o rre to , se bem que ele não é v iá v e l para m uitos, p o rq u e eles p re ­
fe re m re p rim ir seu q u e s tio n a m e n to d o q u e to m a r sobre si a incer­
teza q u e surge da qu e b ra d o m ito . A ssim eles são arrastados à
se gunda fase da com preensão lite ra l dos mitos. In tim a m e n te eles
sabem da razão do q u e s tio n a m e n to , mas o re p rim e m p o r m edo da
in segurança. G eralm ente essa repressão se dá com a u x ílio de uma
a u to rid a d e sagrada, com o p o r e x e m p lo a ig re ja ou a B íblia, às quais
se d e v e ob ediê ncia in c o n d ic io n a l. Tam bém essa fase é ju s tificá v e l,
q u a n d o a consciêncie crítica é p o u co d e s e n v o lv id a e pod e ser fa c il­
m e nte tra n q ü iliz a d a . No e n ta n to é im p e rd o á v e l, q u a n d o nesse es­
tá g io um e sp írito m a du ro é p a rtid o em seu âm ago p o r m étodos
p o lític o s e psicológicos e p re c ip ita d o num a p ro fu n d a cisão consigo
m esm o. O in im ig o da te o lo g ia crítica não é, p o r isso, a com preensão
lite ra l in g ê n u a dos sím bolos, mas sim a quela que é fe ita consciente­
m e n te, com uma agressiva supressão d o pensam ento in d e pe n d e n te .
Os sím bolos da fé não p o d e m ser su bstituídos p o r outros sím­
b olos, artísticos p o r e xe m p lo , e eles ta m b é m não podem ser anulados
p ela crítica científica . Como a ciência e a arte, eles estão firm e m e n te
e n raiza dos na essência do e s p írito h u m a n o . Em seu caráter sim b ó lico
é q u e está a sua verdad e e o seu p o d e r. N ada que seja in fe rio r a
sím b o lo s e m itos pode e xp re ssa r a q u ilo que nos toca in c o n d ic io n a l­
m ente.
Por ú ltim o precisa-se p e rg u n ta r se m itos são capazes de re p re ­
sentar to d o tip o de p re ocupação in co n d icio n a l. A lg u n s teólogos
cristãos são da o p in iã o de q u e a p a la v ra " m ito " som ente d e ve ria ser
usada com relação à natureza, isto é, q u a n d o se trata da descrição
d e processos da natureza q u e se re p e te m ritm ica m e n te (p o r e xe m ­
p lo , as estações do ano) e são in te rp re ta d o s em se n tid o re lig io so . Os
m esm os te ó lo g o s não aceitam q u e se cham e de m ito a evolução do
m u n d o , a q ual a fé cristã bem com o a judaica vê com o um processo
h is tó ric o q u e tem um começo, um ce n tro e um fim . S em elhante co n ­

38
cepção lim ita ria consid era ve lm e n te a uhl.zaçao d o te rm ° m ito . O
m ito não p o d e ria mais então ser co m p re e n d id o com o a e * P r® ^a
lin q ü ística da nossa preocupação in c o n d ic io n a l, mas apenas
um id io m a a n tiq u a d o dessa lín g u a . Mas a histó ria dem onstra que
não existem apenas m itos da natureza, mas tam bem mrtos h.stoncos
Se na Pérsia antiga o m u n d o é vis to com o o cam po de bata ha de
dois poderes d iv in o s , nós tem os d ia n te d e nos um m ito da h isto r a_
Q u a n d o o Deus da criação e lege um po vo e o leva através da h istoria
em direção a um a lvo que transcende a toda a h isto ria , entao sso
é um m ito da história. Q u a n d o o C risto, um ser transcendente, d iy .n o ,
aparece na p le n itu d e d o te m p o , v iv e , m o rre e ressuscita, isso e no­
va m e n te um m ito da história. O cristia n ism o e a critica a tod a a
reT qiões que estão presas a m itos da natureza. M a s_co m o toda
o utra re lig iã o , o cristianism o fa la a lín g u a d o m ito , senao c» cristia­
n ism o não seria expressão d a q u ilo que nos toca in co n dicio n a lm e n te .

IV. TIPOS DE FÉ

1. Os Elem entos da Fé e sua D inâm ica

Fé com o estar possuído p o r a q u ilo que nos toca in co n d icio n a l­


m e n te existe sob m uitas fo rm a s, e isso va le ta n to para o ato de
" e r com o para o conteúdo da fé . Todo g ru p o re lig io s o e cu ltu ra l e
ãté certo p o n to to d o in d iv íd u o tem uma e xp e rie n cia de fe especial
com co n te ú d o de fé p ró p rio . O estado su b je tiv o d o crente se trans­
fo rm a e provoca transform ações dos sím bolos da fe e vice-versa.
Para se p o d e r co m p re e nd e r as m ú ltip la s fo rm a s de expressão da te ,
d e verem os d is tin g u ir em seguida alguns tip o s básicos e descrever a
sua m útua relação dinâm ica. Tipos religiosos em si sao estáticos.
Mas isso não é a ú ltim a coisa que se p ode a f ir n w acerca dos tip o s
de fé , um a vez que eles contém um e le m e n to d in â m ico na m edida
em que eles re ivin d ica m v a lid a d e in co n dicio n a l para o_aspecto es-
pecial da fé que eles representam . Daí resultam tensões e^ lu as,
ta n to e n tre os d ife ro n te s tip o s de fé d e n tro de uma com unhão re li­
giosa bem com o entre as grandes re lig iõ e s.
Não se de ve esquecer que tipos sem pre são construçoes do
p ensam ento e com o tais nunca se encontram em estado p u ro na
rea lid ade. Em nenhum â m b ito da vida existem tipos^ puros. Todos
os objetos reais pertencem a vários tip o s. Existem porem traços pre
d o m in antes q u e d e te rm in a m um a coisa e a p e rm ite m class.fica-la sob
um certo tip o . Esses traços precisam ser destacados, se a dm am ica
da vida d e ve ser explicada. Isso tam bém vale para as form as
fé e seus sím bolos.
39
Fundam ental para a distinção dos tip o s de fé são os dois e le ­
m entos que estão presentes na e xp e riê n cia d o sagrado. Um e le m e n to
é a presença d o sagrado aqui e agora. Ela santifica o lu g a r em q u e
aparece e a rea lid a d e em que ela se m anifesta. Essa e xp e riê n cia
to m a posse d o e s p írito h u m a n o com uma violência estrem ecedora e
fascinante. Ela irro m p e na re a lid a d e costum eira e a im p e le e x ta tic a ­
m ente para além de si mesm a. Ela fu n d a m e n ta regras, pelas quais
se pod e co m p re e nd e r o sagrado. O sagrado precisa estar presente
e precisa ser e x p e rim e n ta d o com o estando presente, se é que e le
d e ve ser e xp e rim e n ta d o .
A o mesm o te m p o o sagrado é o juízo sobre tu d o que é. Ele e xig e
santidade, no sen tido de justiça e am or, ta n to para o in d iv íd u o com o
para um g ru p o . Ele representa a q u ilo q u e somos de acordo com
o qu e pela p ró p ria essência somos e p o r isso tam bém d everíam os
ser. Com o lei do nosso p ró p rio ser, ele está contra nós e a fa v o r de
nós. O nd e q u e r que o sagrado seja e xp e rim e n ta d o , tam bém se e x­
p e rim e n ta o seu p o d e r de e x ig ir a q u ilo q u e deveríam os ser.
Nós querem os cham ar o p rim e iro e le m e n to na e xp e riê n cia d o
sagrado de "sa n tid a d e d o se r", o segundo, de "santidade d o d e v e r".
Poder-se-ia cham ar a p rim e ira fo rm a d e fé , em term os breves, de
tip o o n to ló g ico , a segunda de tip o ético. Em toda re lig iã o a d in â ­
m ica da fé está co n sid e ra ve lm e n te d e fjn id a p o r esses dois tip o s e
p o r sua in te rd e p e n d ê n cia e seu anta g o n ism o . A m bos os tip o s de
fé in flu e ncia m ta n to a mais íntim a v id a de fé pessoal com o ta m b é m
as grandes re lig iõ e s históricas. Eles estão presentes em to d o ato de
crer. Mas um dos dois sem pre prevalece, pois o hom em é fin ito e
nunca capaz de possuir todos os elem entos da verdade. Por o u tro
la d o o hom em não pode descansar no reconhecim ento de sua fin itu d e ,
p o rq u e a fé gira em to rn o do inco n dicio n a l e de suas fo rm a s d e
expressão adequadas. Toda expressão inadequada da fé pod e le va r
a que o hom em não a tin ja o in co n dicio n a l e seja então d e te rm in a d o
em toda a sua existência p o r a lgo que perm anece aquém d o in co n ­
d ic io n a l. Por isso o hom em sem pre precisa te n ta r ro m per os lim ite s
de sua fin itu d e e alcançar a q u ilo que nunca pode ser alcançado;
o p ró p rio in co n d icio n a l. Dessa tensão surge o problem a da relação
e n tre fé e to lerância . Uma tolerância que nada mais é d o que rela-
tiv is m o , uma a titu d e em q u e nada de incondicional se e x ig e , é
n e gativa e sem peso; ela não escapa à sina de se tra n s fo rm a r em
seu oposto, um d e sp o tism o in to le ra n te . A fé , no entanto, precisa
c o n ju ga r ambas as coisas: a tolerância consciente da c o n d icio n a lid a d e
de toda fé d e te rm in ad a , e a certeza fu n d a m e n ta d a no in c o n d ic io n a l.
Em todos os tip o s de fé , porém especialm ente no p ro te sta n tism o ,
esse p ro b le m a é s ig n ific a tiv o . A grandeza e o p e rig o da fé protes-

40
ta n te está na autocrítica e na coragem de aceitar ,1 prc‘>|>t! ■ n l-'t* •
d a d e . Daí a dinâm ica da fé se m a n ife s ta r m ais fo rlo m c -n lc im | ■»*.).
ta n tis m o d o que em q u a lq u e r o u tro lu g a r: a in a n u là v o l tnii-..iu ........
a in c o n d ic io n a lid a d e da e xig ê ncia da fé e a c o n d ic io n a ll< U In .1,.
v id a concreta de fé .

2. Os Tipos O n to ló g ic o s de Fé

O sagrado é e x p e rim e n ta d o com o e sta n d o presente. I lo


a qui e agora, isto é, ele senos depara n u m _ o b je to , num a p f . ' ...
num acontecim ento. A fé v ê num a porção concreta i .1 ir>n
lid a d e o fu n d a m e n to ú ltim o de toda a re a lid a d e . N en h um .,
p a rte da re a lid a d e está e x c lu íd a da p o s s ib ilid a d e de se to rn a i pm
ta d o ra d o sagrado, e de fa to quase tu d o q u e é real fo i no cur:.o d.,
h is tó ria das re lig iõ e s cha m a d o uma v ez, em atos^ de fé , d<-
g ra d o , seja por g ru p o s ou p o r in d iv íd u o s . Tal porçao da re a lid .u lr
q u e é e x p e rim e n ta d a num ato de crer com o p o rta d o ra do sa grado, l<-n.,
com o d iz o te rm o tra d ic io n a l, caráter "s a c ra m e n ta l". Este calice
pão, esta á rvore, este gesto da m ão, este a joelhar-se, ^este edi um ,
este rio , esta cor, esta p a la v ra , este liv ro , esta pessoa são portador«",
d o sagrado. A tra vés deles a pessoa cre n te e x p e rim e n ta a q u ilo que
a toca in co n diic o n a lm e n te . Eles não são er,colhidos a rb itra ria m e n te
com o p o rta d o re s d o sagrado, e sim pe la in tu iç ã o vis io n a ria de inc 1
v íd uo s. Eles são aceitos p e lo consenso com um de to d o um 9 ru PO
tra n s m itid o s de geração a geração; eles são m o d ific a d o s , re d u zid o s
e a m p lia d o s. D iante deles as pessoas são tom adas de reverência,
fascinação, veneração, id o la tria e crítica e fin a lm e n te os su b stitu e m
p o r ou tro s p ortado re s d o sa grado. Esse tip o sacram ental d e fé se
e ncontra em todo o m u n d o e aparece em todas as re lig iõ e s . Ele é o
"p ã o d iá rio " da fé , sem o q u a l uma fé se to rn a ria vazia e abstrata,
p e rd e n d o seu s ig n ific a d o para a vid a d o in d iv íd u o e d o g ru p o .

Fé no tip o sacram ental de re lig iã o não q u e r d iz e r q u e certas


coisas são sagradas e outras não. Fé é o estar p ossuído, q u e é tran
m itid o p o r um d e te rm in a d o m eio. A a firm a ç ã o de que a lg o seja
"s a g ra d o " só tem se ntid o p ara aquela fé q u e o te ste m u n h a . Como
ju ízo te ó ric o , q u e re iv in d ic a v a lid a d e g e ra l, essa a firm a ç ã o é
um a com binação absurda de palavras; apenas no in te rre la c io n a m e n to
e n tre su je ito e o b je to da fé ela é v e rd a d e ira e fa z sentido. O ob se r­
v a d o r qu e está à distância so m e n te p o d e con sta ta r que há um a re­
lação de fé . Mas ele nunca p o d e rá d e p o r a lg o acerca da g e n u in id a d e
de sem e lha nte relação. Q u a n d o , p o r e x e m p lo , um p ro te s ta n te vê
um ca tó lico orar d ia n te d e um a im a g e m da V irg e m M a ria , ele
perm anece um o b se rva d o r iso la d o e não é capaz de p a rtic ip a r d o

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que esta acontecendo ali em te rm o s de fé. A coisa é o utra se fo r
um catohco q ue e s tiv e r o b s e rv a n d o . Ele poderá acom panhar aquele
que ele o bse rva em seu ato de fé . Um c rité rio pelo qual se pudesse
ju lg a r a fe nao existe, q u a n d o o q u e ju lg a se encontra fo ra da fé .
Por o u tro la do o crente p o d e p e rg u n ta r a si mesm o ou ser p e rg u n ta d o
p o r o u tre m se o m e io através d o q u a l ele e x p e rim e n ta o in co n d i­
cional e x p rim e o qu e é v e rd a d e ira m e n te inco n dicio n a l. Essa p e r­
gunta e a força d inâ m ica na h is tó ria da re lig iã o , ela se v o lta d e c id i­
d am ente contra o tip o sacram ental da fé e rom pe suas lim itações
em m uitos sentidos. A ju s tific a tiv a dessa pergunta está em que o
ini o la m b e m o fin ito m ais sa g ra d o — pode som ente in d ica r a q u ilo
que toca o hom em in c o n d ic io n a lm e n te . O hom em , p o ré m , esquece
esse lim ite e id e n tific a o o b je to sa g ra d o com o p ró p rio sagrado. O
o |e t° sacram ental é vis to com o sa g ra d o em si mesmo. Desaparece
o seu carate r de in d ica r, com o p o rta d o r do sagrado, para além de si
u ato de c re r nao se d irig e m ais p ara o incondicional com o tal, mas
para o re presenta nte do in c o n d ic io n a l: a árvore, o liv ro , o .e d ifício
a pessoa. Perde-se a tra n sp a rê n cia d o ato de fé. O p o n to de vista
p rotestante vê na d o u trin a católica da substanciação, segundo a
quai pao e v in h o são tra n s fo rm a d o s em corpo e sangue do Cristo,
essa perda da transparência d o d iv in o , uma vez que o d iv in o é
ig u alad o a um a porção lim ita d a da re a lid a d e . É ve rd a d e que a fé
e xp e rim e n ta a presença do sa g ra d o que se apresenta na im agem
do C risto, no pão e v in h o d o sacram ento. Uma distorção dogm ática
no en tanto , ^e tra ta r o p ró p rio pão e v in h o como objetos santos, que
como tais sao e fe tivo s e p o d e m ser guard a d o s num re licá rio . Nada
ex,ste de sa gra do fo ra da fé v iv a . A té os santos som ente são santos
p o rq u e a fo n te do sagrado p o r eles transparece.

Os lim ite s e p e rig o s d o tip o sacram ental de fé levaram os


místicos em todas as epocas da h is tó ria ao passo radical de trans­
cender a re a lid a d e , seja em um a d e suas partes, seja em seu to d o
J e s id e n tific a ra m o in co n d icio n a l com a base ou a substância de
todo o ser e o cham aram de o "U n o " , o "In e fá v e l", o "S er acima do
ser O m ístico nao esta in te re ssa d o em re je ita r as fo rm a s sacra­
mentais concretas da fe, mas em ultrapassá-las. A e xp e riê n cia mística
se encontra ao te rm o de um lo n g o c a m in h o , que leva das fo rm a s mais
concretas da fe a um p o n to em q u e to d o d e te rm in a d o desaparece
no abism o da d iv in d a d e pu ra . A m ística não é irra cio n a l. A lg u n s
dos m aiores místicos da Europa e da Asia eram ao m esm o te m p o
grandes filo s o fo s , q u e se sobressaíam na clareza e conseqüência d o
seu pensam ento. Eles reconheceram q u e a q u ilo que nos toca in co n ­
d ic io n a lm e n te o o b je to de nossa fé , não pode ser ig u a la d o a
uma parte da re a lid a d e , com o o tenta a fé sacram ental, nem

42
ser co m p rim id o num sistem a racional. Fé é oxp& riôncia # x lá tica . Por
isso somente se pode fa la r d o in c o n d ic io n .il num a lin g u a g o m que
está consciente de que em si não se p o d e fa la r dole
Essa é a única m a ne ira em que a e xp e riê n cia místico consogue
se expressar. Pode-se, p o ré m , p e rg u n ta r: Existe então ali a lgum a coisa
que possa ser expressa, já que o o b je to da fé mística ultrapassa toda
p o ssibilidade de expressão? N ão se baseia a fé na e xp e riê n cia d o
sagrado como estando esse presente? C om o é possível sem elhante
experiência, se o in c o n dic io n a l é a q u ilo q u e transcende toda exp e
riência? A isso os m ísticos respondem q u e há um lu g a r em que
o incondicional está p resente no m u n d o fin ito : nas p ro fu n d e za s da
alma humana. Essas p ro fu n d e z a s são o lu g a r em que o fin ito se
toca com o in fin ito . A fim de lá chegar, o hom em precisa despojar-se
de todos os conteúdos fin ito s . Ele precisa renunciar a todas as p re o ­
cupações p rovisó rias em p ro l da preocupação ú ltim a . Ele ta m b é m
precisa transcender todas as coisas reais, em que a fé sacram ental
experim enta o in co n dicio n a l. Ele precisa transcender a cisão da
existência, mesm o a mais p ro fu n d a e ge ra l d e todas as cisões: aquela
entre sujeito e o b je to . O in co n dicio n a l se encontra além dessa cisão,
e o homem qu e o q u e r alcançar precisa superar essa cisão d e n tro
de si através da m editação, contem plação e êxtase. Nesse m o v i­
m ento da alma, a fé se acha num estado de oscilação e n tre te r e
não te r a q u ilo que a toca in c o n d ic io n a lm e n te . A fé está num m o v i­
m ento de aproxim ação g ra d a tiv a , de recaídas e de realização re p e n ­
tina. A fé mística não despreza nem re je ita a fé sacram ental, mas
ela a transcende em dire çã o à q u ilo que está presente em to d o ato
sacram ental, mas perm anece o cu lto sob os objetos concretos em que
se encarna. Por alg um te m p o os te ó lo g o s contrastaram fé e e x p e ­
riência mística. Eles achavam que a fé perm aneceria num a distância
intransponível d o in co n dic io n a l, e n q u a n to que a m ística p ro cu ra ria
a fusão do e sp írito hu m a n o com o fu n d a m e n to do ser e do sentido.
Sem elhante contraposição de fé e m ística, porém , som ente tem v a li­
dade condicional. O p ró p rio m ístico sabe da in fin ita distância e n tre
o in fin ito e o fin ito e se co n fo rm a com uma vid a em que a união
extática com o in fin ito é apenas ra ram ente ou mesmo jam ais alcan­
çada. E o crente só po d e te r fé na m edida em que ele é possuído
p o r aquilo qu e o toca in c o n d ic io n a lm e n te . A mística é, com o o
sacram entalism o, um tip o de fé , e não o co n trá rio de fé ; e em to d o
tip o de fé há um e le m e n to m ístico bem como um sacram ental.
A mesma coisa vale para a fo rm a hum anística da fé o n to ló g ic a ,
cuja consideração é especialm ente im p o rta n te , p o rq u e fre q ü e n te ­
m ente hum anism o é id e n tific a d o com fa lta de fé e é con tra p o sto à
fé. Isso, porém , só é possível se fé é d e fin id a com o a cre d ita r na

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-x is encia de seres d iv in o s . Se, no e n ta n to , fé é e n te n d id a como
ta m b é m °SSUh ROr SqU qU8 n° S t0Ca in c o n d icio n a lm e n te , então
ta m b e m o hu m anism o encerra um e le m e n to d e fé. Sob hum anism o
nos entendem os aqui a orientação q u e faz do que é v e rd a d e ira m e n te
hum ano o cn.érlo e alvo d , vida do espfri.o, L na ,,,e e f i S i l
C o n 'n m p 13 * P° Lc\ nas rel«ÇÕ<!s sociais e na ética pessoal!
C o m o rm e a concepção hum am stica, o d iv in o se revela com o hum ano
h o m e m Vr Sa‘ " ° qU® t0Ca 0 hom em in c o n d ic io n a lm e n te é o
' l S0 56 q ü 0 r diZer 0 hom em em sua essência, o hom em
v e rd a d e iro , o hom em com o "id é ia ", não o hom em real na alien™
çao de sua natureza v e rd a d e ira . Q uan d o , sob essa pressuposição
a fe hum am stica d iz que o o b je to de sua preocupação suprem a é o
h o m e m , entao ela vê o in fin ito e in co n d icio n a l em a lgo fm fto °
nisso e,a nao se d ife re n c ia da fé sacram ental, que q u e r abarcar o
in .m ito num a porçao de fin itu d e , ou da fé m ística, que encontra nas
p ro fu n d e z a s da pessoa o lu g a r do in fin ito . P e r l t e , p o íé m uma
m anoT' tiP °? ,Sacra™en ,a l e m ísfi«> ro m p e m os lim ite s do hu-
H ' sacram ental em direção ao u n ive rso e todos os seus conteú-
ím m H o n em eça° à q u il° que transcende o hom em e seu
u n d o . O hum anista, em contraste, perm anece d e n tro do â m b ito
fana ^ ^ 3 f ® hum anística é chamada de "p ro -
r ,/ e n 9 uant° q L’e se designa os outros d o is d e "re lig io s o s ". "P ro-
ano s ig n ific a nesse co n te xto perm anecer d e n tro do q u a d ro do
b ito , « 0 T 6In? 1 aS CO' SaS' S6m u l,ra Passá- '° em direção a um âm ­
b ito sagrado. N o latim e nas línguas d ele d e riva d a s fala-se de oro
fa m d a d e no sentido o rig in a l da p alavra, isto é: "estar d ia n te das
po rtas do te m p lo . M uita s pessoas d ize m de si mesmas que elas
v iv e m d ia n te dos portões d o te m p lo " e que não têm fé. No entanto
? n c o n H -S r9y 36 P° dem VÍVer S6m q u e a l9um a coisa as to q u e
lr ° r ? d SSm qUe ,eVem a '9 ° 'c o n d ic io n a lm e n te a séHo
e s d e cid id a m e n te o negariam . Com isso elas testem unham que
n° estado de fe - Elas representam o tip o hum anístico de fé
q u e po d e te r cunhos diversos. O fa to de a lg u ém d iz e r de si mesmo
qu e ele esta co m p le tam en te na p ro fa n id a d e não o exclui da com u­
nhã o dos crentes. Seria uma tarefa in te rm in á v e l, se quiséssemos
E l T e T V / 7 ' t,plaS f ° rmas em q ue se e x Pr ime a fé hum anística.
a a esta d ifu n d id a em vastas áreas d o m u n d o ocidental bem como

ra " d e T A dÍStÍnç5° e n tre f i P ° S o n t° ló 9 ic- *


fflT p r na ‘ que _ a p ' lcamos nos tipos re lig io so s, tam bém podem os
e x Z n i Onen,aÇía0 tlu m a n |sfica de fé. - O tip o o n to ló g ic o tem a sua
m o o tin n ma,S í r^ e « S rom ân,ic° - c°n s e rv a d o ra d o hum anis-
t: ''P 0 m oral da fe - na progressista-utópica. A palavra "ro m â n ­
tic o m dica nesse co n te xto a experiência d o in fin ito no fin ito , como

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ele pode ser c o n te m p la d o na natureza e na h istória Q uom vô o
sagrado num a flo r, em com o ela se d e se n vo lvo , no •inim ol, corno
ele se m ove, no hom em , com o ele apresenta um a in d lv ld u n lid a d o
s in g u la r, ou num d e te rm in a d o p o vo , num a cu ltu ra e s p e titil, num
sistema social específico, esse tem experiências que desem penham
um im p o rta n te papel no tip o rom ântico-conservador. Para o rom ântico,
a q u ilo que já está da d o é sagrado e é co n te ú d o de sua preocupação
ú ltim a . A analogia dessa fo rm a de fé com a fé sacram ental é ó b v ia .
A fo rm a rom ântico-conservadora da fé hum anística é fé sacram ental
secularizada: o sagrado está presente aqui e agora. O co n se rva d o ris­
mo cu ltu ra l e p o lítico se d e riv a em ú ltim a análise desse tip o d e fé
secularizada. Ela é fé real, mas encobre o in co n d icio n a l que ela p re s­
supõe. Sua fraqueza e p e rig o consiste em p e rd e r sua substância
religiosa o rig in a l. A h istó ria de m o n stro u isso em todas as cu ltu ra s
p u ram ente seculares, as q u a is sem pre de n o vo recaíam nos estágios
anteriores de sua re lig io s id a d e , dos quais elas h aviam p a rtid o .

3. Os Tipos M orais d e Fé
A característica com um dos tip o s m orais de fé é a idéia da lei.
Deus é so bretud o aquele q u e deu a lei — com o d á d iv a e e xigência.
Som ente aquele que segue a lei pode ch e g a r a Deus. É v e rd a d e
que tam bém a fé mística e sacram ental conhece leis; tam bém a qui
n ingué m consegue alcançar o ú ltim o e in c o n d ic io n a l, sem c u m p rir
essas leis. Existe, porém , um a d ife re n ça im p o rta n te q u a n to ao tip o
Jas leis. N o caso do tip o o n to ló g ic o , a lei im p õ e a sujeição a ordens
rituais ou a exercícios ascéticos. N o caso d o tip o m o ra l, uma lei
m oral dem anda obediência m o ra l. Está certo que a d ife re n ça não
é absoluta, pois a lei ritu a l ta m b é m contém exig ê ncia s m orais, e a lei
ética encerra elem entos o n to ló g ico s. Mas essa d ife re n ç a já é s u fi­
ciente para to rn a r co m pre e nsíve l o s u rg im e n to das diversas grandes
religiões. Elas seguem a um ou ao o u tro tip o básico.
N o â m b ito do tip o m o ra l de fé podem os d is tin g u ir a form a ju rí­
dica, a convencional e a ética. A p rim e ira recebeu sua expressão
mais fo rte no judaísm o ta lm ú d ic o e no islam ism o; o m e lh o r e x e m p lo
para a fo rm a convencional se encontra na C hina d e C onfúcio; a
form a ética, no entanto, é encarnada pelos p ro fe ta s judaicos. A fé
do m uçulm ano é fé na revelação através de M aom é, e essa re v e la ­
ção é a q u ilo que o toca in c o n d ic io n a lm e n te . A. revelação trazida p o r
M aom é consiste p rin c ip a lm e n te de leis rituais e sociais. As leis ritu a is
lem bram a fase sacram ental, da qual p ro v ê m todas as re lig iõ e s e
culturas. As leis sociais vã o mais longe d o que o e le m e n to ritu a l e
santificam " a q u ilo que d e v e ria ser". Leis desse tip o p e rm e ia m a vid a
inteira (p or e xe m p lo , no ju d a ísm o o rto d o xo ). A lei sem pre se apre-

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h c n tíi c
‘ I V Íd d
r Poo « “ 7 r d ° x„ fd e d : e í s r y ? a ^
m ed ia n o d o islam ism o bem com o oara ‘ mT*55™0 Va f 3ra ° adePto
nessa mesma base um h u m a n iw m L i ° S qU6 desenv° ,veram
ciado pe lo pensam ento da A n tig a G ré d a a b 9/ an^ e Parfe in f,u e "-
relig io sa dos povos islâm icos " q u í T u a f é e T l m Í
isso esta em c o n flito com a fé em C ris‘ o J n rJ ri M aom e' e Por
D ecisivo no Islam ism o não é a fé em M a o m é d e ve ' se, re tru c a r:
a fe num a orde m que está co n sa a r-da p como P a le ta , mas
m a io ria das pessoas A L t l T í - qUe d e te rm i" a a vida da
M aom é; a q íe s tã o é m u l t o a X e , Q uI i T J ° U JeSUS ou
nos toca in c o n d ic io n a lm e n te ’ A ssim n r , f e x p n m e a q u ll° q ue
giões não se trata d o s c o n te ú d o s d e ' f . C° " r° ntos e " tre as reli-
De que fo rm a a preocupação in co n d icio n a l T ° ^ questão;
m ída? Decisões de fé são decisões e x is te n c ia is "e I T t e Z s * * ^ '

regras convencionais q u e ^ i em° p l ^ c ^ ' -d '0 ^ ° 5ÍStema de


p o r C onfúcio. F r e q ü e n t U e ^
mando-se da concepção chinesa de v id a q u f n d a "não T ™ ' - ^
ao menos na m edida em aue el-, è. a J haveria fe,
ta m b é m no C o n fu cion ism o existe fé e Ís T n ã P° r C° nfÚCÍ0' Mas
respeito à veneração ?n* snt» ' t ja som ente no que d iz
m e n to sacram ental, mas tam bé P<3SSa ° S' q u e rePresenta um ele-
m andam entos m oreis, cujo p ano d e T u n d o ^ lncond icio n a lid a d e dos
e s tru tu ra m etafísica d o ú n i» e r"o I o " do . H “ í « " » " * * d.
apenas uma fo rm a especial em q u e „ m ° f f t í ” d * SOded8de é
apesar desses elem entos r e lin ir v L „ . - estrutura. Mas
fu c io n ism o é secular um fa to n ' ° Care,cr Tundam ental do Con-
e n o rm e e n v e rg a d u ra 'h is tó ric a : em p r i m e í o lu q a r í '* f T ^ 05 de
re lig iõ e s sacram entais e m ística . r J a H 9 m flu e n cia das
sua fo rm a p o p u la r o L ! s T 6 Ta° ismo tanto ^
fá c il vitó ria alcançada T s t e p a ^V ^T é s ^ d o ^ ^ ^ 3
qual igualm ente pertence ao tipo "m oral da ,é hurnan Z T ™ ’ °
de fé e T d e tó o T s e J t ó S ,’ $ -V* , iaçõ9! , do «P° moral
C om o toda fo rm a de fé tam bém i rC ' 9 'a° A n tl9 ° Testamento,
m e n tal: a idéia do p o v b e le ito Ho ? ^ Uma 3m pla base sa^ a -
ritu a l em toda a ,ua l u e 2a ° ^ f ^ ° eUS 6 ° Po v o ' e a f é
do ser nunca afa~stou 3 s a n tid a d e d o d í v e V X T t f 3
sucessores — sacerdotes r^h in ^c ♦ m os profetas e seus

x ^ s s r J is s í s;:' '"■ 7us° ( - a m ;t


- O co'm o noP O Z Z S S + Í ' 3 ^ 2 ^
fé e fornece as regras para uma constante conscientização cio Siigrado
na vida cotid ia na . O sagrado sem pre d e ve estar presanto, o ele
d e ve ser le m b ra d o tam b é m na mais in s ig n ific a n te ação da vida
d iá ria . E inversam en te, to d o a g ir só tem va lo r, se está associado à
obediência d ia n te da lei m o ra l, a lei da justiça. A grandeza d o pro-
fe tism o vé te ro -te sta m en tá rio está em que ele sem pre conden/i o
p o vo bem com o seus líderes, q u a n d o eles n e g lig e n cia m o e le m e n to
m oral da lei — a q u ilo que de ve ser — em fa v o r do e le m e n to sacra­
m ental. É a missão h istó rico -m u n d ia l da fé judaica, sacudir a segu­
rança sacram ental acrítica, e isso não só no p ró p rio judaísm o, mas
tam bém em todas as outras re lig iõ e s.
A in flu ê n cia do judaísm o não se faz sentir apenas no cristia ­
nism o e no islam ism o, mas ta m b é m na fo rm a progressista-utópica
da fé hum anística em to d o o m u n d o o cid e nta l. O h um anism o a n tig o
conhecia a lei do d e ve r. Tanto a m ito lo g ia grega com o a tra g é d ia
greg a, a filo s o fia grega bem com o o d ire ito rom ano e o hum anism o
p o lítico dos estóicos rom anos acentuam a q u ilo que de ve ser. Mas
assim m esm o o tip o o n to ló g ic o p re d o m in o u em toda a A n tig u id a d e .
Isso está dem o n stra d o de um lado pela v itó ria do m isticism o na filo ­
sofia grega ta rd ia e de o u tro lado pela im p o rtâ n cia das re lig iõ e s
de m istério no Im p é rio Romano bem com o pela ausêpcia d o pensa­
m ento progressista e u tó p ico em to d o o m u n d o a n tig o .
O hum anism o m o d e rn o , e specialm ente desde o século X V III, se
dese nvo lve a p a rtir de um fu n d a m e n to cristão e coloca o peso
na lei do d e v e r, no sentido dos p ro fe ta s judaicos. Já em seus p ri­
m órdios ele mostra fo rte s elem entos progressistas e utópicos. Seu
p re lú d io é uma crítica ao sistema fe u d a l com seus fu n d a m e n to s
sacramentais. Ele exige justiça, p rim e ira m e n te para os camponeses,
d epois para a sociedade burguesa, e fin a lm e n te para as massas p ro ­
letárias. A fé dos precursores d o llu m in is m o desde o século X V III
é o tip o m oral da fé hum anística. Os ilu m in ista s lu ta ra m pela lib e r­
tação da servidão fe u d a l consagrada pela re lig iã o , e pela justiça
para to d o ser hum ano in d iv id u a l. Sua fé era fé hum anística, suas
form as de expressão eram mais seculares do que religiosas. Mas
tratava-se de fé , e não de in tu içã o cie n tífic a , se bem que eles acre­
d itavam no p o d e r s u p e rio r da razão, conjugada com justiça e v e r­
dade. A d inâ m ica de sua fé hum anística tra n s fo rm o u a face da
ferra, p rim e iro na m etade o cid e nta l d o m u n d o , d e p o is no O rie n te .
A fé hum anística de cunho m oral e m prestou aos m o vim e n to s re v o ­
lucionários das massas p ro le tá ria s nos séculos X IX e XX a sua
paixão. Sua dinâm ica ainda hoje é vis ív e l. Como em toda fé , tam ­
bém a fo rm a utópica da fé hum anística gira em to rn o d a q u ilo que
nos toca inco n dicio n a lm e n te . É d a í que ela recebe- sua força in críve l,

47
* i S » > - « S S 5 S E

4. A U n id a d e dos T ip o s de Fé

r^VS&ly&rArs
fre q ü e n te m e n te levam a rn n xlit^c ^ * • ~
T
/
* * ° * —
Se seParam e

rrs-f e
elem entos ritu ais existem
« S P -tí *
nas re lig iõ e s le q a lis J s

£ $ ssn* & X B 2 3 = ™ r* ~ ~
presente. A interpe netra çã o dos tipos d e ef f e transcende a situação
tentes de fé g lo ía is , d in V w « ? * " * eXÍS‘

r e lig ife ,h,n i d coníínuae o s d l f ° " í * a m p la d.° a história da


dos mais d ife re n te s tipos de fé 'is s o 'v a le T a m o ^ ™ 3 ° f d ‘Vergência
com o para o conte údo da fé A para a form a da fé
d ic io n a l pode se exnH m r nãn J f " 6 Preoc“ PaSão incon-
ilim ita d a s de Po s s ib ilid a des

s s r » = r S S F r «

decisão. "O b ie tiv o " s ia n ifir * n« j *, o b letlvas Para a sua


q u e fund am e nta todos os tipos d f f é ! ^ da fé '

48
O catolicism o caracterizou a si m esm o, m m r.t/.ín, ..................
sistema que eng lob a elem entos cu ltu ra is <: ro li<jio •.i >•. <liv<<i•.
e n tre si. Suas fonte s são: o A n tig o Testam ento, quo i*m ii |.i im in i
o tip o sacram ental e o m o ra l, as re lig iõ e s helénicas cli’ m l .I<• >>■• >
m ística, o hum anism o clássico g re g o e o m o d o de ................. . 1 1 1 1 11 . ..
da A n tig u id a d e tardia . S obretudo, p o ré m , o catolicism o I>.i .*>i .*
no N ovo Testam ento, o qual em si já e n g lo b a um a sério do t l|n »•» <
representa uma conjugação de elem entos éticos e místico:.. Ü n *n m
p io mais s ig n ific a tiv o para isso é a d o u trin a de Paulo .ic c n .i .1"
Espírito Santo. Espírito nesse se n tid o é a presença do e sp írito d lv ln u
no e sp írito hum ano, e Espírito Santo é o e s p írito d o am or, d.i jm lii.n
e da verdade. Eu não hesitaria em e n x e rg a r nessa concepção tio
e sp írito a resposta à p e rg u n ta p elo s e n tid o da dinâm ica e da hisló
ria da fé. Mas sem elhante resposta não é um pon to em quo so
pode fic a r parado. Ela sem pre precisa ser dada de uma nova rn.i
neira, a p a rtir de novas exp e riê n cia s e sob condições m u ta n te .
A penas se isso acontece, ela perm anece sendo uma resposta ro.il
e inclui a p o ssib ilid a d e de realização. N em o catolicism o nem o
fu n d a m e n ta lism o reconhecem essa e xig ê n cia . A m b o s pe rd e ram clO'
m entos que fazem p a rte do conceito o rig in a l de fé , p o r causa da
pred om in ância de um ou de o u tro lado. Esse é o p o n to em que entrou
o protesto protestante na época da R eform a. E é o p o n to em que
o protesto protestante precisa ser le v a n ta d o em todos os tem pos
em nom e da in c o n dicio n a lid a d e do in co n dicio n a l.

A crítica básica de todos os g ru p o s protestantes ao catolicism o


se volta contra o fa to de que o sistema a u to ritá rio e xclu iu a auto­
crítica da igreja e que os elem entos sacram entais da fé sufocaram
os elem entos p roféticos. Uma ve z que o sistema a u to ritá rio to rnou
im possível uma reform a de base, restou apenas uma cisão to ta l.
Essa, poré m , tam bém tro u x e consigo a perda daqueles elem entos
contra os quais se d irig ira o p ro te sto p rotestante: o sacram entalism o
e a a utorid ade da igreja nele baseados. Em conseqüência dessa perda,
o protesta ntism o se to rn o u cad3 vez mais um representante u n ila te ra l
do tip o m oral de fé. N ão se p e rd e u apenas a riqueza dos ritos trans­
m itid o s pela tradição, mas tam bém a com preensão do fa to de que
o sagrado está presente em exp e riê n cia s sacram entais e místicas.
A im portância do conceito p a u lin o de e sp írito , em que estão re u n i­
dos o tip o sacram ental e o ético, não fo i reconhecido nem pe lo
catolicism o nem pelo pro te sta n tism o . A presente exposição tenta
in dicar, na lin guag em d o nosso te m p o , aquela re a lid a d e que Paulo
de signou com a palavra "e s p írito " com o sendo a u n id ad e d o e xtá ­
tico com o personal, do sacram ental com o m o ra l, do m ístico com o
, acionai. A penas qu a n d o o cristia n ism o fo r capaz de reconquistar,

49
com o experiência v iv id a , essa unidade- dos d ife re n te s tip o s de fé,
p o d e rá ele m anter de pé a sua re iv in d ic a ç ã o de responder às
g randes questões resultantes da d in â m ica da fé.

V. A VERDADE D A FÉ

1. Fé e Razão

Nos capítulos precedentes nós m ostram os a d iv e rs id a d e dos


sím bolos e tipos de fé . Isso p o d e ria ser in te rp re ta d o com o d esistir da
reivindicação da v e rd a d e p o r p a rte da re lig iã o . Por isso precisamos
p e rg u n ta r agora, se é v iá v e l falar-se de um a re ivin d ica çã o de v e r­
d ade por parte da fé, e em que sentido.

A té agora era costum e colocar fé e razão uma ao lado da outra,


e p e rg u n ta r se elas se e xclu e m m u tu a m e n te , ou se elas poderiam
ser unidas numa especie de fé racional. Se a segunda hipótese fo r
possível, com o se rela cio n a ria m a razão e a fé nessa fé racional?
Se o sentido da fé fo r m al e n te n d id o nos m odos acima expostos
então elas se excluem m u tu a m e n te . Se, no entanto, fé é estar pos­
suído incondicionalm ente , então fé e razão não são necessariamente
opostos.

Maò essa resposta não é s u ficie n te , um a vez que a v id a e sp iritu a l


do hom em é uma u n id a d e que não p e rm ite um lado-a-lado isolado
dos diversos elem entos. Todas as funções do e sp írito hum ano estão
in tim a m ente ligadas, apesar d o seu ca rá te r d iverso. Isso tam bém
vale para a relaçao e ntre fé e razão. Por isso não é su ficie n te a
resposta de que estar possuído p o r a lgo q u e nos toca in co n d icio n a l­
m ente não contra diz a e stru tu ra racional d o espírito. É necessário
especificar a relação entre a fé e a razão d o espírito hum ano. In icia l­
m ente,^ precisa-se p e rg u n ta r em q u e se n tid o é usada a palavra
razão , qua n d o ela é contraposta à fé . Será no se n tid o d o p ro ce d i­
m e nto científico, do pensam ento rig id a m e n te lógico e d o cálculo
tecmco? Ou será ela e n te n d id a , com o em quase todas as épocas de
nossa cultura o cidenta l, com o a fo n te do s e n tid o , norm as e p rincípios?
Na prim eira hipótese a razão é o in s tru m e n to para o conhecim ento
e d o m ín io da realida de, ao passo que a fé indica o a lvo , a cujo ser­
viço está to d o cálculo e d o m ín io da re a lid a d e . O p rim e iro 'tip o de
razão poderia ser cham ado d e razão técnica, uma vez que ela se
ocupa com os meios, e não com o fim . Razão nesse se n tid o abarca
a vida diária de cada um e d o m in a a c iviliza çã o técnica do nosso
tem po. A segunda significa çã o de razão está relacionada com aquilo
q ue faz do hom em um hom em e o d ife re n c ia d e to d o o u tro ser.
Ela é a base de sua lín g u a , sua lib e rd a d e e sua capacidade criadora.

50
Ela atua na procu ra pela verdade, na e xp e riê n cia da arte e na re.i-
lização da lei de conduta; ela faz possível uma v id a com o pev.oa
e participação na com unhão. Se a fé estivesse em co n tra d içã o à
razão, ela teria que leva r à desum anização do hom em . Esse p e rig o
de fa to existe — tanto na esfera teórica com o no cam po p rá tico
em todos os sistemas a u to ritá rios, e isso ta n to na área da re lig iã o
com o na p o lítica. Uma fé que se encontra em contraposição à razão,
não se destrói apenas a si mesma, mas ta m b é m a q u ilo q u e é p ro ­
p ria m e n te hum ano no hom em . Isso p o rq u e som ente um ser d o ta d o
de razão pode ser possuído por a lgo in co n dicio n a l e d is tin g u ir p re o ­
cupações últim as das p ro visó ria s; ele p o d e assim ilar a e xigência
da lei de conduta e p erceber a presença d o sagrado. Tudo isso,
aliás, só co n fe re , qu ando não se pressupõe a p rim e ira sig n ifica çã o
d o conceito de razão, razão no sentido da razão técnica, e sim a
segunda significação, de razão com o e stru tu ra d o e s p írito e da
re a lidade , dotad a de sentido.

— Razão é uma condição necessária para a fé, e fé é o ato em


que a razão irro m p e extaticam ente para além de si. Essa é a u n i­
dade e a d ife re n ça entre as duas. A razão hum ana é fin ita . Por
Isso , todas as criações da cultura possuem esse caráter fin ito , ta n to
aquelas em q u e o hom em conhece seu m u n d o , com o aquelas em
que ele tra n sfo rm a seu m undo. Daí elas não p ertencerem à q u ilo
que toca o hom em incon dicio n a lm e n te . Mas a razão não está presa
à sua p ró p ria fin itu d e ; ela a reconhece, e através dessa mesma in­
tuição ela se eleva acima de sua fin itu d e . O hom em fa z a e xp e riê n cia
de que ele fa z parte d o in fin ito , o qual p o r sua vez não é uma
parte do hom em , nem se encontra em seu pod e r. O in fin ito precisa
to m a r posse de le como a q u ilo que o toca in co n d icio n a lm e n te . Q u a n d o
a razão é possuída pelo in co n dicio n a l, ela é elevada acima de si
mesma; mas com isso ela não d e ixa de ser razão, razão fin ita . A
experiência extática de uma preocupação ú ltim a não de stró i a e stru ­
tura da razão. Êxtaj[e_é razão rea_[izadaJ_fi_Djo__razão qu e b ra d a . Razão
só chega a ser realizada qu a n d o ela é levada parã^lfrem ~3os~lim ites
de sua fin itu d e e experim e n ta a presença do sagrado. Sem essa
e xperiência ela se perde a si mesma. Ela é fin a lm e n te pre e n ch id a de
conteúdos irracionais — m itica m e n te fa la n d o : dem oníacos — e p o r
eles destruída. O cam inho se g u ido é o da razão plena de fé através
da razão sem fé para a razão d e m o niacam ente d iv id id a . A segunda
fase é apenas uma transição; pois nem na v id a do e sp írito nem na
natureza existe vácuo. Razão é a pressuposição da fé, e fé p re e n ­
che a razão. Fé como estar possuído em ú ltim a instância é razão
extática. Entre a natureza v e rd a d e ira da fé e a natureza ve rd a d e ira
da razão não há contradição.

51
Nesse p o n to a te o lo g ia fará algum as perguntas. Ela indagará,
se a natureza da fé não está d isto rcid a sob as condições da existência
hum ana. A lé m disso ela p e rg u n ta rá , se não se p e rd e tam bém a
ve rd a d e ira natureza da razão na situação de alienação d o homem
de si mesm o. F inalm ente ela p e rg u n ta rá se a u n id a d e de fé e razão
e a natureza v e rd a d e ira de ambas não precisa ser restabelecida
através da "re v e la ç ã o ", com o o diz a re lig iã o . E se esse fo r o caso,
a razão, em seu estado obscurecido, não terá que se sujeitar à
revelação? E não será essa sujeição sob os conteúdos da revelação
o sen tido p ró p rio d o te rm o " fé " ? A resposta a essas p e rg u n ta s seria
m atéria para toda um a te o lo g ia . A q u i só podem os tra ta r desse
assunto em poucos traços fu n d a m e n ta is. In icia lm e n te precisa-se d ize r
que o hom em é hom em tam bém no estado de alienação. Razão e fé
não se pe rderam co m p le ta m en te , mas elas não p u d e ra m m anter a
sua natureza o rig in a l, sendo in e v itá v e is os c o n flito s e n tre uma ra­
zão usada erro n e am e n te e uma fé d isto rcid a no s e n tid o da supersti­
ção. A ve rd a d e ira natureza da fé e a ve rd a d e ira natureza da razão
transparecem apenas vag a m e n te na vid a real da fé e na utilização
prática da razão sob as condições da alienação.

D evido a isso, a lg u m a coisa precisa acon+ecer, que s jp e re


ta n to a distorção da fé com o a da razão e restabeleça a ralação ver­
da d e ira e ntre ambas. A e xp e riê n cia em que isso se dá é chamada
de "re ve la çã o ". O conceito de revelação já fo i tão abusado, que
apenas se pode usá-lo com hesitação, sendo que algo sem elhante se
dá com o conceito d e razão. Na lin g u a g e m p o p u la r, revelação s ig n i­
fica uma com unicação sobrenatural sobre Deus e sua atuação. Tais
com unicações fo ra m tran sm itid a s, c o n fo rm e essa concepção, aos p ro ­
fe tas e apóstolos e aos autores da B íblia, d o A lco rã o e de outros
escritos sagrados, no qu e o p ró p rio Espírito Santo conduzia a pena.
A aceitação solícita dessas doutrinações sobrenaturais, p o r mais
absurdas que sejam , é então chamada de fé. Cada p a la vra da p re ­
sente exposição co n tra d iz a essa distorção do conceito de revelação.
Revelação é a exp eriê n cia em que uma preocupação ú ltim a m ove
o e sp írito da pessoa, cria n d o assim uma com unhão em que essa
preocupação se expressa em sím bolos de ação e de pensam ento.
O n d e isso acontece, fé e razão são renovadas. Seus c o n flito s in te ­
riores e tensões recíprocas são superados, e reconciliação tom a o
lu g a r da alienação. Esse é o sentido p ró p rio de revelação; em todos
os casos, é isso que ela d e ve ria s ig n ific a r. Ela é um e v e n to em que
a q u ilo que nos toca in co n dicio n a lm e n te se m anifesta, nisso fazendo
estrem ecer e tra n s fo rm a n d o a situação dada na re lig iã o e cultura.
Nessa experiência não há c o n flito e ntre fé e razão. Isso p o rq u e o
hom em é to m a d o e tra n s fo rm a d o em todô a sua e stru tu ra de ser

52
racional pela revelação d a q u ilo que o toca in c o n d ic io n a lm e n te . E
m esm o assim: revelação é revelação ao hom em que sic e n c o n lia no
estado de alienação. A tra v c s da revelação é q u e b ra d o o p o d e r da
alienação, mas ele não é a n u la d o . A alienação pen e tra na nova e x p e ­
riência de revelação assim com o ela havia e n tra d o na a n tig a . Ela
faz da fé uma id o la tria e c o n fu n d e os p o rta d o re s d o in co n dicio n a l
com o p ró p rio in c o n d ic io n a l. Ela rouba o razão de seu p o d e r e xtá tico ,
de sua tendência d e se transcender a si mesma e de se v o lta r
para o in co n d icio n a l. D e v id o a essa d u p la distorção,^ ela fa ls ific a
ta m bém a relação e n tre fé e razão, tra n s fo rm a n d o a fé num a p re o ­
cupação p ro v is ó ria , que se in tro m e te nas preocupações p ro visó ria s
da razão e eleva a razão, apesar de sua fin itu d e natural,, à va lid a d e
in con diciona l. Daí surgem novos c o n flito s e n tre fé e razão, os quais
e xig e m uma revelação nova e su p e rio r. A h istó ria da fé é urna luta
constante com a distorção da fé , e o c o n flito e n tre razão e fé é um
dos mais nítidos sintom as dessa distorção. As batalhas decisivas nessa
luta são os grandes even to s d e revelação, e a batalha re a lm e n te v i­
toriosa seria um a revelação de va lid a d e ú ltim a , em que a d istorção
e n tre fé e razão está em p rin c íp io superada. O cristia n ism o clama
de si estar fu n d a m e n ta d o em sem elhante revelação. É essa uma
re ivin dicação que precisa ser com p ro va da sem pre de n o vo no curso
da história.

2. A V e rd a d e da Fé e a V e rd a d e C ientífica

Entre a natureza da fé e a natureza da razão não existe con­


flito . Isso inclu i a a firm a tiv a d e que não há um c o n flito e n tre fé
e conhecim ento no q ue d iz respeito à sua essência. M esm o assim
sem pre já se con siderou o co n h e cim e n to aquela fu n ç ã o da razão
hum ana que com m a io r fa c ilid a d e e ntra em c o n flito com a fé. Isso
acontecia especialm ente q u a n d o se via a fé com o um a espécie in ­
fe rio r de saber, cuja v e rd a d e é, p o ré m , assegurada pela a u to rid a d e
d iv in a . Nós re je itam os esse conceito fa lso de fé e com ele e lim i­
namos uma das mais fre q ü e n te s causas para os c o n flito s e n tre fé
e saber. Precisamos, p o ré m , ir mais lo n g e , m ostra n d o a relação con­
creta da fé com as diversa s fo rm a s da razão c o g n itiv a , ou seja, com
a fo rm a das ciências natu ra is, da h istó ria e da filo s o fia . A q u ilo que
a fé denom ina de v e rd a d e é d ife re n te d a q u ilo que é v is to com o v e r­
dade pelas citadas fo rm a s da razão. A in d a assim todas elas tentam
alcançar a v e rd a d e , isto é, ve rd a d e no se n tid o d o v e rd a d e ira m e n te
real, como esse pode ser a ssim ilado p e lo e sp írito h u m a n o . Erros sur­
gem qua ndo o hom e m , em sua p rccu ra pe lo c o n h e cim e n to , não
percebe o que é v e rd a d e ira m e n te real e considera real a q u ilo que
apenas parece ser real, ou q u a n d o ele vê o que é v e rd a d e ira m e n te

53
real, mas o e x p rim e de fo rm a in a d e q u a d a . M u ita s vezes é d ifíc il
v e rific a r se não fo i p e rc e b id o o v e rd a d e ira m e n te real ou se a q u ilo
q u e fo i reco nhe cido com o ve ro apenas fo i m al e x p rim id o , pois ambos
os tip o s d e erro se con d icio n a m m u tu a m e n te . Em todos os casos,
em cada ato c o n g n itiv o está presente v e rd a d e ou e rro , ou uma
das m ú ltip la s transições e n tre v e rd a d e e e rro . Também na fé está
a tu a n te a capacidade co g n itiv a d o hom em . Por isso precisam os p e r­
g u n ta r: Q u e sig n ifica "v e rd a d e " em relação à fé , quais são seus
c rité rio s , e qu e relação existe e n tre a v e rd a d e da fé e as outras
fo rm a s da v e rd a d e com seus c rité rio s tão d ife re n te s ?
As ciências naturais descrevem e s tru tu ra s e relações do u n i­
verso fís ic o , na m e did a em que elas p o d e m ser ve rifica d a s e x p e ri­
m e n ta lm e n te e fo rm u la d a s m ate m a tica m e n te . A ve rd a d e de uma a fir­
mação cie n tífic a d e p e n d e de quão a d e q u a d a m e n te as leis e struturais
são descritas e confirm a d as através de re p e tid a s experiências. Toda
v e rd a d e cie n tífica é p ro v is ó ria e sujeita a constante ve rifica çã o , ta n to
no qu e d iz respeito à sua com preensão da re a lid a d e com o no que
ta n g e a sua fo rm u la çã o cie n tífica . Esse e le m e n to de insegurança não
re d uz o g ra u de ve ra cid a d e de um a a firm a ç ã o cie n tífica e x p e rim e n ­
ta lm e n te exa m in a d a e p rovada. Mas ele im p e d e to d o d o g m a tis m o
c ie n tífic o . Por isso é um p ro c e d im e n to q u e s tio n á v e l, q u a n d o te ó lo ­
gos, no in te n to de d e fe n d e r a v e rd a d e da fé contra a v e rd a d e da
ciência, cham am a atenção para o caráter p ro v is ó rio de toda a firm a ­
ção c ie n tífic a e alegam com isso te r p ro v id o um re fú g io seguro para
a v e rd a d e da fé. Isso p o rq u e , se am anhã o progresso c ie n tífic o res­
trin g ir. ain d a mais a área de co n h e cim e n to c ie n tífic o in se g uro , a fé
terá qu e se recolh er ainda mais. Esse é um p ro c e d im e n to in d ig n o
e in fru tífe ro , pois a ve rd a d e cie n tífica e a v e rd a d e da fé fazem parte
dé dim en sõe s d ife re n te s . N em a ciência tem o d ire ito ou a capaci­
dade de se in tro m e te r nos interesses da fé , nem a fé tem o d ire ito
ou a capacidade de in te rfe rir na ciência.
Uma ve z c o m p re e n d id o isso, vêem -se nu m a luz bem d ife re n te
os c o n flito s acima tratados e n tre fé e ciência. Na ve rd a d e não se
trata d e um c o n flito entre fé e ciência, mas sim e ntre um a fé e
uma ciência que esqueceram am bas, a q u e dim ensão pertencem .
Q u a n d o os defensores da fé p ro curaram im p e d ir o su rg im e n to da
a strono m ia m o derna, eles não levaram em conta que os sím bolos
cristãos, apesar de re fle tire m a concepção da astronom ia aristotélico-
p to lo m a ica acerca d o m u n d o , dela não d e p e n d e m . A penas q u a n d o
sím bolos com o "D eus no cé u ", "o hom em so b re a te rro " e "d e m ô n io s
d e b a ix o da te rra " são vistos com o descrição de lugares povoados
com deuses, hom ens e dem ônios, aí a a stro n o m ia m oderna precisa
e n tra r em c o n flito com a fé cristã. Q u a n d o , p o r o utro lado, re p re ­

54
sentantes da física m ode rn a q u e re m a trib u ir a re a lid a d e in te iro ao
m o v im e n to m ecânico de m inúsculas m oléculas, n e g a n d o com iv .o a
re a lid ade p ró p rio da v id a , então eles m a n ife s ta m a sua U \ ta n to
su b jetiva com o o b je tiv a m e n te . S u b je tiv a m e n te a ciência o, c n t.io ,
para eles a q u ilo q u e os toca in c o n d ic io n a lm e n te e p e lo q u a l cies
estão dispostos a sa crifica r tu d o , ta m b é m a v id a , se necessário for.
O b je tiva m e n te eles criam um sím b o lo d e m o n ía co d o in c o n d ic io n a l,
a saber, um u n iv e rs o em q u e tu d o , ta m b é m a sua p a ix ã o cie n tífica ,
é d e vo ra d o p o r um m ecanism o sem sen tid o , é com razão que a fé
cristã re je ita esse sím bo lo d e fé.
A ciência só pode e n tra r em c o n flito com a ciência, e a fé apenas
com a fé . Uma ciência q u e perm anece ciência não p o d e c o n tra d iz e r
a uma fé que perm anece fé . Isso ta m b é m c o n fe re no que ta n g e
outros campos d e pesquisa cie n tífic a , p o r e x e m p lo , a b io lo g ia e a
psicologia. A conhecida d is p u ta e n tre te o ria da e vo lu çã o e te o lo g ia
.ião era um a d is p u ta e n tre ciência e fé , mas sim e n tre um a ciência,
cuja fé n ã o -e xp rim id a rouba o hom em de sua h u m a n id a d e , e um a
fé , cuja expressão te o ló g ica é cunhada p o r u m a com p re e nsã o lite ra l
da B íblia e p o rta n to é d is to rc id a , é in e g á v e l que um a te o lo g ia que
in terpreta a h istó ria bíblica da criação com o descrição fie l aos fatos
de um e ve n to um a vez su ce d ido , fo rço sa m e n te terá de c o lid ir com
a pesquisa c ie n tífica sistem ática. E um a te o ria da e vo lu çã o que e x ­
plica a descendência do h o m e m d e fo rm a s mais antigas da vid a
de tal m aneira q u e é a n u lad a a d ife re n ç a ce n tra l e n tre hom em e
anim al, é fé , e não ciência.
Sob o m esm o p o n to d e vista precisam os co n sid e ra r os c o n flito s
presentes e fu tu ro s entre fé e psico lo g ia c o n te m p o râ n e a . A p sico lo ­
gia m oderna e v ita , p o r e x e m p lo , o conceito de alm a, p o rq u e ele
parece fu n d a m e n ta r uma re a lid a d e q u e não p o d e ser in ve stig a d a com
m étodos científicos. Esse receio tem a sua razão de ser, j d o í s a
psicologia não se d e ve ria s e rv ir de q u a lq u e r te rm o q u e não seja
e labora do pela sua p ró p ria pesquisa c ie n tífic a . Ela tem a tarefa de
descrever os processos psíquicos d o hom em da m a n e ira mais ade­
quada possível, e ela precisa estar sem pre p ro n ta a s u b s titu ir uma
suposição p o r o u tra . Isso v a le para os te rm o s: Ego, super-ego, eu
(Selbst), p e rso n a lid a d e , in consciente, consciente, bem com o para os
termos tra d icio n a is: alm a, e sp írito , vo n ta d e , etc. A p sico lo g ia de
pesquisa m etódica está tão sujeita à co n firm a ç ã o c ie n tífic a com o toda
outra ciência. E tod os os seus term os e d e fin iç õ e s , m esm o os m e lh o r
fu n da m e ntado s, são p ro v is ó rio s .
Q uan do, p o ré m , a fé fa la da d im e n sã o do in c o n d ic io n a l, na
qual o hom em v iv e e em q u e ele p o d e g a n h a r sua alm a ou botá-la a

55
p e rd e r, ou quando a fé fa la do sentido ú ltim o da existência, então
ela de m o d o algum co n tra d iz a rejeição c ie n tífic a d o conceito de
alm a. N em uma p sicologia que re je ite o conceito de alma pode negar
essa d im ensão, nem uma p sico lo g ia que conhece o conceito de alma
p o d e co n firm á -la . A v e rd a d e sobre o d e s tin o e te rn o d o hom em se
e ncontra num a outra dim e n sã o que a v e rd a d e d e conceitos psico­
lógicos.
A p sicolog ia p ro fu n d a contem porânea em m u ito s casos e n trou
em co ntra dição com afirm ações p ré-teológicas e te o ló g ica s da fé.
N o e n ta n to não é d ifíc il d is tin g u ir, nas constatações da p sicologia p ro ­
fu n d a , e n tre a q uilo q u e é observação c ie n tific a m e n te fu n d a m e n ta d a
ou hipótese científica, e a q u ilo que são m anifestações de fé do psicó­
lo g o , p o r e x e m p lo a sua visão d o hom em , de sua natureza e destinação.
Os e le m e n to s naturalistas tra zid o s p o r Freud d o século X IX para o sé­
c u lo X X , seu p u rita n ism o co n v ic to no cam po do a m o r, seu pessim is­
m o q u a n to à cultura e sua a trib u içã o da re lig iã o a desejos racionali­
zados id e o lo g ica m e n te são afirm ações d e fé , e não resultados de
pesquisa científica. N ão se p ode negar a um cientista que fa la da
natureza do hom em e das condições de sua existê n cia, o d ire ito
de pensar a p a rtir d e uma fé . Se, po ré m , acontecer q u e ele, como
Freud e alguns de seus discíp u los, ataca as convicções de fé de
ou tro s em nom e da p sico lo g ia cie n tífica , e n tã o ele está m istu ra n d o
as dim ensões. Nesse caso os representantes d e um a fé d ife re n te têm
razão em se o po r a esses ataques. Nem sem pre é fá c il, num a e x p o ­
sição psicológica, d is tin g u ir e n tre elem entos de fé e elem entos cien­
tífic o s, mas isso sem pre é possível e necessário.
A d istin çã o entre v e rd a d e de fé e v e rd a d e cie n tífic a d everia
a le rta r os teólogos contra a u tilização de descobertas científicas re­
centes no in tu ito de c o n firm a r com seu a u x ílio a v e rd a d e da fé.
A física sub-atôm ica, através da teoria dos quantas e da relação de
in d e te rm in a çã o colocou em questão hipóteses a n te rio re s sobre a
e strita causalidade dos processos físicos. D iante disso autores re li­
giosos quiseram a p ro v e ita r esses novos co nhecim entos para c o n fir­
m ar suas idéias acerca de lib e rd a d e hum ana, capacidade d iv in a de
criação e m ilagres. Esse p ro c e d im e n to não p o d e ser ju s tific a d o nem
p e lo p o n to d e vista da física nem da re lig iã o . As te o ria s físicas não
têm nen hum a relação d ire ta com o fe n ô m e n o da lib e rd a d e humana
e a em issão de e nerg ia nos quantas não tem relação d ire ta com o
s e n tid o re lig io s o da p ala vra m ila g re . Q u a n d o a te o lo g ia u tiliz a teo­
rias físicas dessa m a neira , ela está c o n fu n d in d o as dim ensões d o
saber com a dim ensão da fé. A ve rd a d e da fé não pod e ser nem
c o n firm a d a nem negada pelas mais recentes descobertas no cam po
da física, b io lo g ia ou p sico lo g ia .

56
3. A V erdade da Fé e a V e rd a d e H istórica
V erdad e histórica e v e rd a d e cie n tífica p o r n a tu re /,i se cn
contram em níveis d ife re n te s . A h istó ria relata e ve n to s únicos, e não
processos que se repe tem , os quais podem ser v e rific a d o s a q u .il
q u e r m om ento através de e xperiências. A única analogia e n tro a
pesquisa histórica e um a e xp e riê n cia no cam po da física é o exam e
e a com paração cuidadosa de docum entos. Q u a n d o docum entos in d e ­
pendentes um do o utro estão concordes e n tre si, entã o uma a firm a ­
ção histórica é considerada de m o n stra d a d e n tro dos lim ite s d o m é ­
to d o histórico. Mas a pesquisa histórica não apenas relata uma série
de fatos. Ela tam bém pro cu ra c o m p re e n d e r esses fa to s no q u e d iz
re speito a suas origens, suas relações e n tre si e seu sig n ific a d o . Pes­
quisa histórica descreve, e xp lica e c o m p re e nd e . E com preensão
pressupõe "p a rticip a çã o ". Nisso se encontra a d ife re n ç a e n tre v e r­
dade histórica e verda de cie n tífic a . Na v e rd a d e histó rica o respectivo
pesquisador está p a rtic ip a n d o e xiste n cia lm e n te , mas não na v e rd a d e
cie n tífica . Já que tam bém a v e rd a d e da fé toca o hom em e x is te n ­
c ia lm e nte, tentou-se fa ze r da v e rd a d e histórica o fu n d a m e n to da
v e rd a d e da fé. E in versa m e n te chegou-se a a firm a r q u e a fé p o d e ria
g a ra n tir a ve rd ade de afirm ações históricas inseguras. A m bas as
afirm ações são errôneas. O tra b a lh o h istó rico g e n u ín o _exige um
m é to d o o b je tiv o e exato, precisam ente como a observação de p ro ­
cessos físicos e bio lógico s. V e rd a d e histórica é p rim e ira m e n te um a
ve rd a d e baseada em fatos. Nisso ela se d ife re n c ia da ve rd a d e de
um poem a épico e da v e rd a d e m ítica da lenda. E essa d ife re n ça e
decisiva para a relação e n tre a v e rd a d e da fé e a v e rd a d e da h is tó ­
ria. A fé não pode c o n firm a r ou re je ita r uma v e rd a d e que está
apoiada em fatos seguros, mas ela m u ito bem p o d e e precisa in ­
te rp re ta r os fatos à luz de sua p ró p ria e xp e riê n c ia . Com isso ela
traz o aspecto histórico para d e n tro da d im e n sã o da fé . Mas ela
não prescreve ao h is to ria d o r a q u ilo que ele d e ve achar, nem se
baseia ela em algum re su lta d o de pesquisa histórica.
Desde que a pesquisa histórica de sco b riu o caráter lite rá rio
dos escritos bíblicos, esse p ro b le m a se to rn o u cada vez mais cons­
ciente no pensam ento p o p u la r e te o ló g ic o . M ostrou-se que o A n tig o
e o N ovo Testam ento em seus trechos n a rra tivo s lig a m elem entos
históricos, lendários e m ito ló g ic o s , e que em g ra n d e parte é im p o s­
sível separar esses elem entos com segurança s u fic ie n te . A pesquisa
histórica e videncio u que os relatos bíblicos acerca d o Jesus h istórico
têm em parte um baixo g ra u de p ro b a b ilid a d e . Investigações seme­
lhantes sobre a fid e lid a d e histórica dos escritos e tradições religiosas
de re lig iõ e s não-cristãs alcançaram o mesm o re su lta d o . A ve rd a d e
da fé não pode ser fe ita d e p e n d e n te da v e rd a d e h istórica dos re-

57
latos e das lendas em q u e essa fé se e x p rim e . Trata-se de uma
fatídica m á-com preensão d o se n tid o de fé , q u a n d o ela é igualada
a um acre dita r das histórias bíblicas. Mas isso acontece em todos os
níveis da exposição cie n tífica e p o p u la r. M uitas pessoas dizem de
si e de outros que elas não têm fé cristã p o rq u e elas não acreditam
que as histórias de m ila g re s d o M ovo Testam ento estejam fid e d ig ­
nam ente docum entadas. C ertam ente elas não o estão, e é necessário
a p lica r todos os meios de um m étodo de pesquisa filo ló g ic o e his­
tó rico e xa to para d e te rm in a r o g ra u de p ro b a b ilid a d e ou im p ro ­
b a b ilid a d e de uma h istó ria b íblica. Tam bém a decisão, se a edição
a tu alm ente em uso do A lc o rã o coincide com o te x to o rig in a l, não é
uma questão de fé, se bem que to d o m aom etano crente in a b a la v e l­
m ente a ela se apega. A decisão, se g ra n d e parte d o Pentateuco
contém sabedoria sacerdotal da época após o e x ílio b a bilónico ou
se o liv ro de Gênesis encerra mais m itos e lendas do que história,
não é uma questão de fé. A decisão em to rn o da questão, se a
e x p e cta tiva da catástrofe cósmica fin a l com o ela é vista nos ú ltim os
liv ro s d o A n tig o Testam ento e no N o vo Testam ento, tem sua o rig e m
na re lig iã o persa, não é um assunto da fé . A decisão em to rn o de
q u a n to m aterial le n d á rio e q u a n to de histó rico está co n tid o nas
rações do nascim ento e ressurreição do C risto, não é uma questão
de fé . A decisão em to rn o de que versão dos relatos sobre os p ri­
m ó rd io s da igreja tem o m a io r grau de p ro b a b ilid a d e não e um
p o n to de fé. Todas essas p e rg u n ta s têm que ser decididas pela
pesquisa histórica, cujas afirm ações sem pre só po d e m te r um g rau
m a io r ou m enor de p ro b a b ilid a d e . Essassão p e rg u n ta s em to rn o da
v e rd a d e histórica, e não questões de fé. A fé pode d ize r que a lei
vétero-testam en tária tem v a lid a d e in co n dicio n a l para todos aqueles
que p o r ela fo re m possuídos, in d e pe n d e n te m e n te de quantas
dessas leis p oderiam ser a trib u íd a s a um personagem histórico,
ou seja, Moisés. A fé pod e d iz e r que a re a lid a d e apresentada
na im agem neotestam entária de Jesus com o o C risto encerra força
te d e n fo ra para todos os que p o r ela são possuídos, independente^
m ente de quanto se possa a firm a r com segurança acerca da pessoa
histórica de Jesus de N azaré. A fé pode g a ra n tir o seu p ró p rio
fu n d a m e n to : Moisés com o o Legislador, Jesus como o Cristo, M aom é
com o o Profeta e Buda com o o Ilu m in a d o . Mas a fé não pode a firm a r
nada acerca das circunstâncias históricas que fiz e ra m possível com
que esses hom ens se tornassem p o rtadores d o d iv in o para grandes
porções da hum anidade. A fé encerra a certeza sobre o seu p ró p rio
fu n d a m e n to , p o r e xe m p lo , acerca de um e ve n to na história que
tra n sfo rm o u a história bem com o o p ró p rio crente. Mas a fé não
pode d ize r nada acerca da m aneira em que se deu esse evento. A

58
fé , p o r isso, não pode ser abalada pela pesquisa cie n tífica , m esm o
se os resultados da pesquisa põem em d ú v id a a tradição tra n s m i­
tid a em to rn o do e ve n to . Essa in d e pe n d ê n cia da ve rd a d e histórica
é um a das conseqüências mais im p o rta n te s da nossa com preensão
de fé com o estar possuído p o r a q u ilo q u e nos toca in c o n d ic io n a l­
m ente. Isso libe rta os crentes d e um peso que eles não podem mais
s u p o rta r d ep ois que a sua consciência fo i a le rta d a pela e xig ê ncia
de honestidade in te le ctu a l. Se essa h o n e stid a d e estivesse em con­
f lito irre m e d iá ve l com a assim chamada "o b e d iê n c ia de fé " , entã o
Deus teria que ser visto com o d iv id id o em si m esm o. Ele te ria carac­
terísticas demoníacas. A fé então não seria um estar possuído em
ú ltim a instância, e sim um c o n flito de preocupações fin ita s .

4. A V e rdade da Fé e a V e rdade Filosófica

Nós vim os que nem a verdade cie n tífica nem a ve rd a d e h is tó ­


rica podem co n firm a r ou c o n tra p ro va r a v e rd a d e da fé. O m esm o
ta m bém se dá inversam e n te : a ve rd a d e da fé não pode nem co n ­
firm a r nem negar a v e rd a d e científica ou a histórica. Levanta-se
agora a questão, se tam b é m a ve rd a d e filo s ó fic a tem sem elhante
relação com a verd ade da fé ou se aqui a situação é mais c o m p li­
cada. Esse realm ente é o caso, e essa d ific u ld a d e da relação e n tre
a ve rd a d e da filo s o fia e a da fé tam bém com plica a relação da v e r­
dade cie ntífica e histórica com a ve rd a d e da fé em grau mais a lto d o
q u e parecia na exposição precedente. Essa é a m otivação para as
inúm eras dissertações sobre a relação e n tre fé e filo s o fia e para a
o p in iã o corrente de que a filo s o fia seria o in im ig o e d e s tru id o r da
fé. Teólogos já foram m uitas vezes acusados de h a ve r tra íd o a fé
p o r se terem servido de conceitos filo s ó fic o s a fim de e x p lic a r a fé
para uma com unidade religiosa.

A d ific u ld a d e de toda discussão em to rn o da natureza da f ilo ­


sofia está em que a d e fin iç ã o de filo s o fia d e p e n d e da filo s o fia
d a q u e le que está d e fin in d o . Isso é in e v itá v e l. Mas m esm o assim e x is te
no cam po p ré -filo só fico uma am pla concordância a respeito da na­
tureza da filo s o fia , e num a exposição com o a presente nada nos
resta senão u tilizarm os a concepção p ré -filo s ó fic a . Pode-se então
e n te n d e r sob filo s o fia a te n ta tiva de re sp o n d e r às p e rguntas mais
gerais acerca da natureza das coisas e sobre a existência hurnana.
As pergu ntas mais gerais são aquelas q u e não se relacionam com
um d e te rm in a d o cam po da re a lid a d e , com o natureza ou histó ria , mas
com o ser com o tal, com o ele serve de base para todas as áreas
d a q u ilo que é. A filo s o fia procura categorias gerais, d e n tro das
quais se encontra e se e xp e rim e n ta a q u ilo que é.

59
Se é pressuposta essa concepção acerca da natureza da filo s o ­
fia , podem os d e fin ir da se g u in te m aneira a relação e n tre verdade
filo s ó fic a e verdade de fé : V e rd a d e filo s ó fic a é v e rd a d e no que
tange o ser e suas estruturas; v e rd a d e de fé é ve rd a d e no q u e d iz
respeito à q u ilo que nos toca in co n d icio n a lm e n te . A té aqui o rela­
cio nam e nto se assemelha com aquele e n tre v e rd a d e de fé e v e r­
d a d e cie n tífica . Uma d ife re n ç a d ig n a de nota consisle, porém , de
que no inco ndicio nal p ro c u ra d o pela filo s o fia e na preocupação
in co ndicion al em to rn o da q ual g ira a re lig iã o existe um ponto em
q u e am bos se tocam . Na filo s o fia e na re lig iã o se procura e se tes­
tem unha a v e rd a d e ú ltim a ; na filo s o fia isso se dá em term os con­
ceituais, na re lig iã o em te rm o s sim bólicos. V e rd a d e filo s ó fic a se
baseia em conceitos v e rd a d e iro s , que d ize m respeito à realidade
ú ltim a , a v e rd a d e da fé consiste da verdade dos sím bolos para a q u ilo
que nos toca in co n d icio n a lm e n te . A relação e n tre conceito e sím­
bo lo é o p ro b le m a com que nos tem os de ocupar.
Nesse conte xto talve z se fará a p e rg u n ta : Por que é que a filo ­
sofia usa conceitos e a fé usa sím bolos, se am bos e x p rim e m o mesmo
in co n d icio n a l? A resposta só pod e soar: Isso é necessariam ente assim,
p o rq u e nos d ois casos a relação com o inco n dicio n a l não é a mesma.
Em p rin c íp io , a filo s o fia pro cu ra uma descrição o b je tiv a das estru tu ­
ras básicas em que se apresenta o in co n dicio n a l. A relação da fé
com o inco n d icio n a l é, em p rin c íp io , uma asserção existencial sobre
a q u ilo que toca o crente in co n d icio n a lm e n te . A d ife re n ç a é ó b via
e fu n d a m e n ta l. Mas, com o o d iz a expressão "e m p rin c íp io ", trata-se
de uma d ife re n ça que não é m antida na p ra xis, seja da filo s o fia ou
da fé. Isso tam b ém seria im p o ssíve l, p o rq u e o filó s o fo é um ser
hum ano para o qual existe a lgum a coisa que ele consciente ou in ­
conscientem ente leva a sério in co n d icio n a lm e n te . E o crente é um
ser hum ano que tem a capacidade bem com o a necessidade de e n ­
te n d e r em term os conceituais. Isso e n v o lv e em p ro fu n d a s conse­
qüências para a vida da filo s o fia no filó s o fo e para a v id a da fé no
crente.
Uma análise de sistemas filo s ó fic o s e de obras filo só fica s de
todo tip o m ostra que a d ire çã o em que o filó s o fo p e rg u n ta e as
respostas que ele p re fe re não d e p e n d e m apenas de re fle xõ e s lógicas,
mas ta m bé m d a q u ilo que o toca in c o n dicio n a lm e n te . Os grandes
filó s o fo s não possuíam apenas g ra n d e capacidade de re fle xã o , mas
tam bém a m a ior paixão na apresentação d a q u ilo q u e os possuía in ­
c o n d icio nalm en te. Isso vale para os antigos filó s o fo s h in d u s e gregos
bem com o para os m odernos, de Leibniz e Spinoza até Kant e
Hegel. Tam bém a linha p o sitivista de Locke e H um e a1é o p o s iti­
vism o ló g ico de hoje em si não co nstitui exceção a essa regra.

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O cam po a que se re s trin g e m esses filó s o fo s , .1 le o n .i d o c n i i l v l
m e n to e análise da lin g u a g e m filo s ó fic o -cie n tífica , não <• filo .o fin im
se n tid o tra d icio n a l, mas é ta m b é m para eles um a q u o ila o de m .ÍK im .i
seriedade e paixão filo s ó fic a .
A filo s o fia co njuga a p a ixã o p e lo co n h e cim e n to com .1 o Iim t
vação e stritam ente o b je tiv a das fo rm a s em que o ser se ro v o lii
nos processos do u n ive rs o . A e xp e riê n cia d o in co n dicio n a l na p ro
fu n d id a d e da in ve stigaçã o filo s ó fic a é a fo n te da v e rd a d e de fó que
nela está ab rigada. A v isã o filo s ó fic a da natureza e- da situaçao
hum ana é uma junção d e fé e p e nsam ento. A filo s o fia não é apenas
o colo m aterno de o n d e p a rtira m as ciências n aturais e a pesquisa
h istórica, ela perm aneceu in s e p a ra v e lm e n te lig a d a com to d a ciência
até o dia de hoje. O sistem a de referências em q u e todos os g randes
físicos e nquadraram o to d o de suas in ve stig açõ e s é filo s ó fic o , m esm o
se a sua verdade só é d e m o n stra d a com m é to d o s cie n tífico s. Em
caso algum esse q u a d ro sistem ático é re s u lta d o de sua pesquisa,
uma descoberta c ie n tífic a , p o r assim d iz e r. S em pre é um a visão
da to ta lid a d e do ser, q u e d e te rm in a consciente ou in conscientem ente
o esquema de seu p e nsa m e n to . Uma v e z q u e isso é assim, pode-se
d iz e r que tam bém a visã o cie n tífic a d o m u n d o encerra um e le m e n to
da fé . É com razão q u e os cientistas se o p õ e m a que fé e pre ssu p o ­
sições filosófica s in flu e n c ie m as suas in ve stig açõ e s. Em g ra n d e parte
eles o conseguem fa ze r. M as mesm o um a e xp e riê n c ia e m p re e n d id a
com todas as precauções nesse se n tid o não é liv re de elem entos
su bje tivos. O o b se rva d o r p o d e ser tão p o u co e x clu íd o com o a in
flu ê n cia exercida pela m a n e ira de ele p e rg u n ta r a natureza sobre o
p ró p rio resultado da pesquisa. M esm o em seu tra b a lh o , o cientista
perm anece um ser h u m a n o que está possuído p o r a lg o ú ltim o e
in co ndicio nal e que p e rg u n ta p elo se g re d o d o ser; e ju sta m e n te essa
é a p e rgun ta filo só fica .
Da mesma m aneira ta m b é m o h is to ria d o r é, consciente ou in ­
conscientem ente, um filó s o fo . Seu tra b a lh o , na m e d id a em q u e ele
ultrapassa a sim ples pesquisa de fa to s , se baseia na a valiação de
fa tore s históricos com o a natureza d o h o m e m , sua lib e rd a d e , seu
co ndicionam ento e seu d e s e n v o lv im e n to no d e c o rre r d o te m p o . E
mesm o na localização de fa to s históricos estão presentes pressuposições
filo sóficas. Isso vale em p rim e iro lu g a r para a questão de quais fatos,
d e n tre o núm ero in fin ito d e eventos, p o d e m ser considerados com o
historicam ente im p o rta n te s. A lé m disso, o h is to ria d o r se vê fo rç a d o
a se m a nife sta r acerca d o v a lo r e da fid e d ig n id a d e de suas fo n te s —
um e m p re e n d im e n to q u e não é in d e p e n d e n te da in te rp re ta ç ã o da
natureza hum ana. As pressuposições filo s ó fic a s estão p atentes ali

61
o n d e um a obra histórica dá seus v e re d ito s acerca da im portância
d e acontecim entos históricos para a e xistê n cia hum ana. Mas onde
h o u v e r filo s o fia atuando, ali se e n co n tra um e le m e n to de fé, por
m ais que esse se o culte p o r detrás da p a ix ã o d o h is to ria d o r pelos
fa to s reais.
Essas considerações m ostram que apesar d e suas diferenças
s ig n ific a tiv a s , a ve rd a d e filo s ó fic a e a v e rd a d e da fé estão conju­
gadas em to d a filo s o fia e q u e essa co n ju nçã o tem conseqüências
ta n to para o tra b a lh o do cientista com o para o tra b a lh o do histo­
ria d o r. Essa conjunção fo i d e n o m in a d a d e " fé filo s ó fic a " (Jaspers).
Esse te rm o é enganoso, p o rq u e aparenta m is tu ra r a v e rd a d e filo s ó ­
fica com a v e rd a d e da fé . A lé m disso e le parece d a r a e n te n d e r que
som ente e xiste um a fé filo s ó fic a , uma " p h ilo s o p h ia p e re n n is ", como
fo i d e n o m in a d a . Mas a p a la vra " p e re n n is " só vale para as perguntas
filo s ó fic a s , e não para as respostas filo s ó fic a s . Existe apenas um
processo constan te de in te rp re ta çã o m ú tu a e n tre elem entos filo s ó ­
fico s e ele m ento s da fé , mas não há a lg o com o um a fé filo só fica .
A v e rd a d e filo s ó fic a encerra v e rd a d e d e fé , e na ve rd a d e de fé
está contida v e rd a d e filo s ó fic a . Para se c o m p re e n d e r isso, é neces­
sário c o m p a ra r a expressão conceituai da v e rd a d e filo s ó fic a com a
expressão sim bó lica da v e rd a d e da fé . Pode-se d iz e r que a m aioria
dos conceitos filo s ó fic o s tem raízes m ito ló g ic a s , e que a m a io r parte
dos sím bolos m ito ló g ico s contém e le m e n to s conceituais. Esses são
e la b orados assim que a consciência filo s ó fic a é d espertada. A idéia
de Deus encerra os conceitos d o ser, da v id a , d o e s p írito , da u n id a d e
e d iv e rs id a d e . No sím b o lo da criação estão co n tid o s os conceitos de
fin itu d e , m e d o , lib e rd a d e e te m p o . O s ím b o lo da "q u e d a d e A d ã o "
abarca a id éia da natureza essencial d o h o m e m , de sua contradição
c o nsigo m esm o e de sua alienação de si m esm o. S om ente po rq u e
to d o sím bolo m ito ló g ic o tem em si a p o s s ib ilid a d e d e form ação de
te rm o s filo s ó fic o s é que é possível a "te o -lo g ia ", e em cada um
desses sím bolos está a sem ente d e toda um a filo s o fia . N o entanto,
a fé não d e te rm in a o m o v im e n to d o p e n sa m e n to filo s ó fic o , tam pouco
com o a filo s o fia d e te rm in a a q u ilo que toca o hom em in co n d icio n a l­
m e nte. S ím bolos de fé podem a b rir os o lh o s d o filó s o fo para d i­
m ensões da re a lid a d e , as quais e le nunca teria d iv is a d o sem esses
sím bolos. M as a fé não e x ig e uma d e te rm in a d a filo s o fia , se bem
q u e igrejas e teolo g ia s tenham fe ito essa re ivin d ica çã o em todas as
épocas, e usaram Platão, A ris tó te le s, K ant ou H um e para seus fins.
As sem entes filo só fica s nos sím bolos da fé po d e m ser d e senvolvidas
d e m uitas m aneiras, mas a ve rd a d e da fé e a v e rd a d e da filo s o fia
não d e p e n d e m um a da o utra.

62
5. A V erd ade da Fé e seus C rité rio s
Em que se ntido pode-se fa la r agora da ve rd a d e da fé , já que
ela não pode ser ju lg a d a p o r nenhum o u tro lip o de v e rd a d e —nem
pela cie n tífica , nem pela histórica, nem pel i lilo s ó fic a ? A resposta
procede da p ró p ria nature za da fé; ela é o e sta r possuído p o r a q u ilo
q ue nos toca in c o n d icio n a lm e n te . C om o acontece com o co n ce ito d e
"a q u ilo que nos toca in c o n d ic io n a lm e n te ", ta m b é m a resposta tem
um lado s u b je tiv o e um la d o o b je tiv o , e a verdade' da fé tem que
ser co m p reendida sob am bos os aspectos. A p a rlir d o la d o s u
deve-se d ize r o s e g u in te : Fé é "v e rd a d e ira " q u a n d o ela e x p rim e
a dequadam ente um a p re ocupação in c o n d ic io n a l. Vista d o lado o b je ­
tiv o , fé é "v e rd a d e ira " q u a n d o seu c o n te ú d o é re alm ente o in c o n d i­
cional. A p rim e ira resposta reconhece que v e rd a d e de fé está co n ­
tid a em todos os sím b o lo s e tip o s g e n u ín o s d e fé. Com isso são
justificadas ao m esm o te m p o todas as re lig iõ e s históricas, e sua
h istória se torna co m p re e n s ív e l com o a h is tó ria d a q u ilo que toca
o hom em em ú ltim a e in co n d icio n a l instância, com o a h istória de
sua resposta a m anifestações do sagrado em m uitos lugares e sob
m uitas form as. A seg und a resposta indica um c rité rio in c o n d ic io n a l,
p e lo qual as re lig iõ e s históricas são ju lg a d a s, não no se n tid o de
negação, mas no servfido d e um "s im e n ão".
Fé tem v e rd a d e na m e d id a em que ela e x p rim e a d e q u a d a m e n te
uma preocupação in c o n d ic io n a l. Esse é o caso q u a n d o o p o d e r d o
in co ndicio nal nela su rg e d e tal m aneira que provoca no hom em uma
resposta, ação e co m u nhã o . S ím bolos capazes de causar sem elhantes
e fe ito s estão vivos. Mas a v id a dos sím bolos é lim ita d a ; a relação
d o hom em com o in c o n d ic io n a l está sujeita a transform ações. C on­
teúdos de preocupação ú ltim a desaparecem ou são su b stitu íd o s p o r
outros. Às vezes acontece que a encarnação d o d iv in o num d e te r­
m in a d o personagem a um a certa a ltu ra da história não desperta
mais aquele eco no ho m e m ; ela não é mais um sím b o lo d e v a lid a d e
u niversal e perde o p o d e r de conclam ar à ação. Há sím b o lo s que
e x p rim e m a ve rd a d e da fé p o r a lg u m te m p o num d e te rm in a d o lu g a r
para uma certa co m u n h ã o e que ho je apenas ainda le m b ra m a fé
de uma época passada. Eles p e rd e ra m a sua ve rd a d e , e é q u e s tio n á ­
vel se sím bolos m o rtos p o d e m ser reanim ados. P ro va ve lm e n te isso
é im possível. Se olham os desse p o n to de vista a h istó ria da fé até
o dia de hoje, evide ncia -se q u e os c rité rio s para a v e rd a d e da fé
consistem d e sua v ita lid a d e . Esse c rité rio certam ente não é exato
no sentido cie n tífico , mas ele é um a escala prática para se ju lg a r
com acerto o passado com sua p ro fu s ã o d e sím bolos e v id e n te m e n te
extinto s. Para o p resente, no e n ta n to , esse c rité rio é d ifíc il de aplicar,
p o rq u e não se p o d e d iz e r com certeza q u e um sím b o lo está d e fi-

63
m tiv a m e n te m o rto e n q u a n to ele a in d a é aceito p o r alguém em
a lg u m lu g a r. P oderia ser q u e ele, p o r assim d iz e r, apenas esteja
a d o rm e cid o , e então não se pode e x c lu ir a p o s s ib ilid a d e de um
re a v iv a m e n to .
O o u tro c rité rio que d e cid e sobre a ve rd a d e de um sím bolo
de fé é a sua capacidade d e expressar em toda a sua p le n itu d e a
in c o n d ic io n a lid a d e d o in co n d icio n a l, e x c lu in d o assim tu d o d e n tro de
si que é m enos d o qu e in co n d icio n a l. O s ím b o lo não pode se to rn a r
um íd o lo . Pois esse é o p e rig o de to d o s ím b o lo da fé . C alvino des­
creveu o e s p írito h um a n o com o uma fá b ric a em que constantem ente
estão sendo p ro d u z id o s ídolos. N e n h u m tip o de fé se eleva acima
desse p e rig o , e m esm o o p ro te s ta n tis m o , que está m u ito consciente
d e le , não lh e escapa. Tam bém ele é passível de distorções d e m o ­
níacas e precisa m edir-se a si mesm o com o m esm o c rité rio com que
ele m ede outras re lig iõ e s. Todo tip o d e fé tem a tendência de
e le v a r seus sím bolos concretos à v a lid a d e absoluta. Por isso o crité rio
para a v e rd a d e da fé está em que e le contenha em si um elem ento
de auto-crítica. O sím bo lo de fé q u e m ais se a p ro xim a da verdade
é a quele q u e e x p rim e não apenas o in c o n d ic io n a l, mas ao mesmo
te m p o a sua p ró p ria fa lta de in c o n d ic io n a lid a d e . O cristia n ism o possui
esse s ím b o lo d e m aneiro p e rfe ita na cruz d o C risto. Jesus não
p o d e ria ter-se to rn a d o o C risto, se e le com o Jesus não se tivesse
sa crificado a si m esm o com o o C risto. Toda aceitação de Jesus como
o C risto q u e não inclua ao m esm o te m p o a aceitação do Jesus cruci­
fic a d o , é um a fo rm a de id o la tria . A preocupação ú ltim a do cristão
não é Jesus, e sim o C risto no Jesus cru c ific a d o . O e v e n to que criou
esse sím b o lo é co m esm o te m p o o c rité rio a p a rtir d o qual a v e r­
d a d e do c ristia n ism o e a v e rd a d e d e todas as outras re lig iõ e s p re ­
cisa ser ju lg a d a . A única ve rd a d e in c o n d ic io n a l da fé , aquela v e r­
dade na q u a l o in co n dicio n a l se re ve la a si mesm o com o in condicio­
nal, é o fa to de q u e toda afirm ação da fé se encontra sob um "sim
e não".
O rie n ta d o p o r esse c rité rio , o p ro te s ta n tis m o se v o lto u contra
a ig re ja rom ana. N ão fo ra m tanto as d o u trin a s que c in d ira m as
igrejas na época da R eform a, mas sim a redescoberta d o p rin cíp io
básico de q u e n enhum a ig re ja tem o d ire ito de se colocar no lu g a r
do in co n d ic io n a l. Toda v e rd a d e d e um a ig re ja é ju lg a d a a p a rtir
do in c o n d ic io n a l, e a q u ilo q u e vale p ara a igreja tam bém vale para
a B íblia. A pesquisa prote sta n te m ostrou que e xistem m uitos estratos
d e n tro dos escritos bíblicos, e que p o r isso é im possível id e n tific a r
a B íblia com o um to d o com a v e rd a d e da fé. Tam bém sobre a
h istó ria da re lig iã o e cu ltu ra re sta n le está o "s im e n ão". Trata-se
de um " s im " , p o rq u e é aceita toda v e rd a d e da fé , seja em que

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fo rm a ela apareça na h istó ria da re lig iã o ; e é um "n ã o ", p o rq u e
nenhum a ve rd a d e de fé é reconhecida com o in co n dicio n a l, a não
ser aquela que diz que n e n hum a pessoa a pod e possuir. O fa to de
que esse c rité rio coincide com o p rin c íp io p rotestante e se to rn o u
realidade na cruz d o C risto pe rfa z a grandeza d o cristianism o p ro ­
testante.
VI. A V ID A DA FÉ

1. Fé e Coragem

Tudo que fo i d ito até aqui acerca da fé fo i to m a d o da e x p e ­


riência real da fé, ou, fa la n d o fig u ra d a m e n te , da v id a da fé. Essa
experiência deverá ser o . r .,u nto d o ú ltim o ca p ítu lo dessa e x p o ­
sição. A "d in â m ica da fé " náo so m ostra apenas nas tensões e nos
co nflitos do conteúdo de fé, mas tam bém na p ró p ria vida da fé.
O nde h o u ve r fé, ela v ive rá na tensão e ntre a participação no
incondicional e o estar sep.ira d o dele. Nós usamos a im agem do
"estar possuído " a fim de descrever a relação com o in co n dicio n a l.
Dada a natureza do estar possuído, aquele que está possuído e a q u ilo
de que ele é possuído tem , p o r assim d ize r, um lu g a r em com um .
Sem participação no o b je to de q u e se está possuído não é possível
v e rd a d e iro estar possuído. N< sse sentido to d o ato d e crer pressupõe
participação n a q u ilo para que está d irig id o . Sem um a e xp e riê n cia
an te rio r d o incondicional não pode haver fé no in co n dicio n a l. O
tip o m ístico de fé salientou com a m a io r ênfase essa relação; nisso
se encontra a sua verdade, que; não pode ser d e stru íd a p o r nenhum a
teologia de mera fé ". Sem a revelação de Deus no hom em não é
possível a p e rg unta po r Deus e pela fé em Deus. Não existe fé sem
participação no objeto da fé.
Mas a fé deixaria de ser fé sem o ele m e n to oposto da separação.
Quem crê tam bém está separado d o o b je to .d e sua fé ; de o u tro m o d o
ele o possuiria. Então haveria certeza d ire ta , e não fé. O e le m e n to
do assim m esm o fa lta ria a fé. A situação do hom em , sua fin itu d e
e alienação im pedem a p a rticipação dire ta no in co n dicio n a l. A q u i
despontam os lim ites da mística. Não há fé sem o ele m e n to da
separação do que é crido.
Do elem ento de p a rticipação advém a certeza da fé ; do e le ­
mento da separação resulta a d ú v id a d e n tro da fé. A m b a s são parte
da natureza da fé. Às vezes a certeza vence sobre a d ú v id a , sem
jamais conseguir anulá-la com p le ta m en te , às vezes a d ú v id a vence
sobre a fé, encerrando, po ré m , em si elem entos da fé, senão ela
redundaria em ind ife re n ça to ta l. Nem a fé pode desaparecer na
d ú vid a , nem a d ú vid a na fé, se bem que cada uma das duas se

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pode p e rd e r quase que co m p le ta m en te na v id a da fé. Mas uma vez
que n enhu m ser hum ano é capaz de v iv e r sem uma preocupação
ú ltim a , ta n to fé como d ú v id a sem pre estão p o r natureza presentes
no hom em .
Fé e d ú vid a têm sido colocados com o opostos, exaltando-se a
certeza da fé como o fim de toda d ú v id a . É v e rd a d e que existe
sem elhante serenidade m u ito além das agitadas lutas entre fé e
d ú v id a ; e alcançar esse estado é um desejo natural e justo. Mas
m esm o q u a n d o ele é a tin g id o — com o, p o r e xe m p lo , p o r santos ou
p o r pessoas que estão firm e s em sua fé —, nunca está ausente o
e le m e n to da d ú vid a . Nos santos a d ú v id a aparece, como o m ostram
as lendas em to rno dos santos, sob a fo rm a de tentação, a qual
aum enta na m edida em q u e cresce a santidade. Nas pessoas que
clam am te r uma fé ina b ala d a , o farisaísm o e o fanatism o são fr e ­
q ü e n te m e n te a prova in fa lív e l de que a d ú v id a p ro va ve lm e n te fo i
re p rim id a ou de fa to ainda está atuando secretam ente. A d ú v id a não
é superada pela repressão, e sim pela coragem . A coragem não nega
que a d ú v id a está aí; mas ela aceita a d ú v id a como expressão da
fin itu d e hum ana e- se confessa, apesar da d ú v id a , à q u ilo que to
in condiciona lm e nte. A coragem não precisa da segurança de uma
convicção in q u estio n á ve l. Ela e n g lob a o risco, sem o qual não é
possível q u a lq u e r vida cria tiv a . Q uando, p o r e xe m p lo , a preocupação
in co ndicio nal de uma pessoa é a convicção de que Jesus é o C risto,
então sem elhante fé não é uma questão d e certeza isenta de d ú v id a ,
e sim de coragem que se arrisca, que encerra o p e rig o do fracasso.
M esm o quan d o a confissão "Jesus é o C ris to " é e x p rim id a com a
convicção mais p ro fu n d a , ela contém risco e coragem . A p ró p ria
"c o n fissã o " indica isso (11).
Tudo isso é v á lid o para a fé viva , para a fé como uma p re o ­
cupação viva , e não com o a titu d e m eram ente tra d icio n a l, uma a ti­
tu d e sem tensões, sem d ú v id a s e sem coragem . Sem elhante fé tra ­
d icio n a l, isto é, a fo rm a de fé de m uitos cristãos de igreja de hoje
e da sociedade toda, carece d o caráter d in â m ic o que é p ró p rio à fé
viv a . Poder-se-ia d ize r que essa fé co nvencional é um resquício
m o rto de antigas experiê n cia s vivas do in co n d icio n a l. Ela está m orta;
mas ela pode ser ressuscitada, pois ta m b é m a fé pe trifica d a v iv e
em sím bolos. Nesses sím bolos ainda está co n tid o o p o der da fé o ri­
g in a l; p o r isso não se d e ve ria subestim ar a im portância de uma a ti­
tude tra d icio n a l de fé. Ela não é fé viv a ; mas ela é fé "a d o rm e c id a ",

(11) N. d o T.: Essa afirm açã o V3le para o te rm o a lem ão "B e k e n n tn is ". O auto r não a
fa z na versão a n te rio r, ing le sa, com referência ao te rm o inglês "c o n fe s s io n ", que
está p ró x im o ao p o rtu g u ê s ; mas, no que tange o te rm o p ortu gu ê s "c o n fis s ã o ", ela
te m a mesma va lid a de .

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q u e p o d e ser despertada novam ente para a fé v iv a . Esse fa to é
especialm ente im p o rta n te para a educação. N ão é insensato fa m ilia ­
riz a r crianças e jovens com os sím bolos da fé , já q u e neles se
expressa a fé v iv a de gerações anteriores. M e sm o assim isso é s im u l­
taneam ente p erig oso, um a vez que a fé de sta rte tra n s m itid a p o d e
fic a r presa à tradição , sem nunca a tin g ir a fé com o tal. O reconheci­
m e n to desse p e rig o levo u a que alguns educadores hesitassem em
tra n s m itir a jovens q u a is q u e r sím bolos tra d ic io n a is q u e fossem , de
m o d o a p re fe rire m esperar até que surjam p o r si p e rg u n ta s p e lo
se n tid o da vida. Sem elhante orientação p o d e le v a r a um a p u ja n te
vid a de fé ; mas ela tam bém p ode fa z e r com q u e surjam o v a zio e
o cinism o, sendo que, em reação, o v a zio s u rg id o é d e p o is p re e n ­
ch id o p o r sím bolos concretos, mas dem oníacos.
Fé viva contém a d ú v id a a respeito de si m esm a, a coragem e
o risco de s u p o rta r essa d ú v id .i A o m esm o te m p o há em to d a fé
um e le m ento d e certeza im e d ia t.i, q u e não está sujeita à d ú v id a ,
à coragem e ao risco — a c e rte /,i d o p r6 p rio in c o n d ic io n a l. A pessoa
e xp e rim e n ta o in co ndicio n a l em pa ixã o, m e d o , desespero e êxtase;
mas ele nunca o e xp e rim e n ta do m o d o d ire to , mas sem pre no e n ­
co n tro com um conteúdo concreto. O in co n d icio n a l é e x p e rim e n ta d o
no, com e através do co n te ú d o concreto, e apenas o e s p írito que
in vestiga analiticam ente o p ode co m p re e n d e r te o rica m e nte . (Tal con­
sideração teórica é em si o o b je tiv o desse liv ro .) Por esse ca m inho
chegam os a d e fin ir a fé com o o líotiir p ossuído p o r a q u ilo que nos
toca in con dicion alm e nte. Mas a v ld .i d,i fé está além d e sem elhante
análise. Esta, p o ré m , revela que a d ú v id a ante o co n te ú d o concreto
de uma preocupação in co n dicio n a l se d irig e contra a fé em sua
to ta lid a d e . E d ia n te disso a fé com o ato da pessoa in te ira precisa se
c o n firm a r na coragem .

O uso da palavra "c o ra g e m " nesse co n te x to (12) necessita de


um a explicação, especialm ente no que ta n g e a sua relação com a
fé . Em term os bem breves se p o d e ria d iz e r: A coragem é o e le m e n to
da fé que incorre no risco da fé. N ão se p o d e s u b s titu ir a fé pela
coragem ; mas tam bém não se pod e separar a fé da coragem . Nas
obras dos místicos a "v is ã o d o ser" é descrita com o um ser em q u e
é transcendido o estado d e crer. Isso se dá ou após o d ecurso da
v id a terrena ou em raros m om entos já a q u i na terra. Na u n iã o p e r­
fe ita com a base d iv in a d o ser é anulada a separação, e com essa
se e lim in a incerteza, d ú v id a , coragem e risco. O fin ito é e n g lo b a d o
no in fin ito ; ele não é e x tin to , mas ta m b é m não está m ais separado
do in fin ito . Esse não é, p o ré m , o estado c o tid ia n o da pessoa, na

(12) C f. a e xposição deta lh a da n o m eu liv ro "A C o ra g e m de S e r", loc. c it. pp. lss.

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q u a l antes p revalecem fin itu d e e separação, e com essas a fé e
a coragem de se arriscar. O risco d iz respeito ao conte ú d o concreto
de um a preocupação inco n dicio n a l. Nisso pod e acontecer que não
é o ve rd a d e ira m e n te incondicional que está c o n tid o na fé , e sim
a lg o cond icio nado , d o qual fo i fe ito um ídolo. Dessa m aneira os
p ró p rio s desejos podem d e te rm in a r o co n te ú d o da fé ; mas tam bém
p ode acontecer que os interesses d o g ru p o social a que pertencem os
nos p re ndam a tradições m ortas, le va n do a uma espécie de id o la tria .
O u ta m b ém p o d e acontecer que uma porção lim ita d a da re a lid a d e é
tra n sfo rm a d a num ídolo com o no p o lite ís m o a n tig o e novo, ou se
te n ta abusar d o in con dicio n a l para os fin s a rb itrá rio s d o crente, como,
p o r e x e m p lo nas práticas mágicas de todas as re lig iõ e s. S obretudo,
p o rém , o p o rta d o r, o in v ó lu c ro d o sagrado, é c o n fu n d id o com o pro-
p rio sagrado. Tam bém isso se dá em todos os tip o s d e fé , consistin­
d o esse desde o início um p e rig o especial para o cristianism o. Um
pro te sto contra sem elhante confusão encontram os na exclam ação de
Jesus no e va n g e lh o de João: "Q u e m crê em m im , crê, não em m im ,
mas naquele que me e n v io u ." Mas d o g m a , litu rg ia e devoção p o p u ­
lar não perm aneceram isentos dessa confusão. O cristão sabe da
p o s sib ilid a d e e quase in e v ita b ilid a d e da disto rçã o id ó la tra . Mas ele
ta m bém sabe que na im agem d o p ró p rio C risto está dado o juízo
sobre tu d o q u e é id ó la tra - na cruz. Da cruz tam bém p ro v é m a
m ensagem d irig id a ao hom em , a qual p e rfa z o âm ago d o cristia n is­
m o e antes de tu d o p ossib ilita a coragem de crer no Cristo: a m en­
sagem de que a separação entre Deus e hom em fo i superada pelo
p ró p rio Deus a d e sp eito de todos os p oderes separadores da des­
tru ição. Sem elhante pod e r da separação é a d ú v id a , a qual procura
im p e d ir a coragem de aceitar a fé . Mas m esm o então a fé p o d e ser
arriscada, uma vez que perm anece a certeza de que até uma fé
q u e fracassa não pode separar o hom em d o in co n dicio n a l. Essa é a
única certeza absoluta da fé , a qu a l corresponde ao único conteúdo
a b soluto da fé : em nossa relação com o in co n dicio n a l nós sem pre
só podem os receber, e nunca dar. Nós nunca seremos capazes de
tra n s p o r a distância in fin ita e ntre o in fin ito e o fin ito a p a rtir de
nós mesmos, a p a rtir d o fin ito . A risco d o fracasso, d o e rro e da
id o la trização, p o ré m , pode ser suportado, p o rq u e tam bém o fracasso
não nos pode separar d a q u ilo que nos toca in co n dicio n a lm e n te .

2. A Fé e a Integração da Pessoa

O que acabamos de d ize r e xp lica a im portância da fé para o


d e s e n v o lv im e n to da pessoa hum ana. Uma vez que fé é estar pos­
suído p o r a q u ilo que nos toca in c o n d ic io n a lm e n te , a ela se s u b o rd i­
nam todas as preocupações p rovisórias. A preocupação in condicional

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em p resta a todos os ou tro s interesses a sua p ro fu n d id a d e , d ire ç ã o e
u n id a d e , fu n d a m e n ta d o assim o hom em com o pessoa. Uma v id a de
ca rá ter realm en te personal é in te g ra l e u n id a em si; o p o d e r que
cria essa in te g rid a d e da pessoa é a fé . S em elhante a firm a çã o seria
a b surda , se fé fosse o d a r cré d ito a coisas que não se po d e m d e m o n s ­
tra r. Mas essa afirm ação não é a bsurda, e sim e v id e n te m e n te v e r­
d a d e ira , se fé é o ser a tin g id o p o r a q u ilo q u e nos toca in c o n d ic io ­
n a lm e n te .
Uma preocupação inco n dicio n a l se m a n ife sta em todas as áreas
da re a lid a d e e em todas as expressões de vid a da pessoa. Isso p o rq u e
o in co n d icio n a l não é um o b je to e ntre o u tro s , e sim a base e o rig e m
d e to d o ser, e com o ta l, o centro u n ific a d o r da v id a com o pessoa.
Estar sem uma preocupação in co n d icio n a l s ig n ific a estar sem um
ce n tro. Desse estado o hom em só p o d e se a p ro x im a r, mas nunca
lhe estará com p leta m ente e n tre g u e ; pois um ser h u m a n o sem ce n tro
a lg u m d e ix a ria de ser h um ano. Por esse m o tiv o não se p o d e co n ­
ceber q u e haja alguém sem uma p re ocupação in c o n d ic io n a l e p o r­
ta n to sem fé.
O centro da pessoa u n e todos os e le m e n to s da v id a da p e r­
so n a lid a d e : as forças corp o ra is, inconscientes, conscientes e in te le c ­
tuais. Do ato de fé p a rtic ip a to d o n e rv o d o corpo h u m a n o , toda
aspiração da alm a, to d o im p u ls o d o e s p írito hum ano. M as co rp o ,
alm a e e s p írito não são três partes isoladas d o hom em . Elas são
d im ensões d o ser pessoa e sem pre estão e ntrelaçadas; p o is o hom em
é um a u n id ad e , e não um com posto de dive rsa s partes. Fé, p o r isso,
não ta n g e som ente o e s p írito ou apenas a alm a ou e x c lu s iv a m e n te
a v ita lid a d e , e sim ela é a o rientação da pessoa in te ira em d ire çã o
ao in co n dicio n a l.
Fé é um ato de p a ixã o in fin ita , e p a ix ã o não é possível sem
ligação ao corpo, m esm o se se trata d e p a ix ã o in te le c tu a l. Tam bém
o co rp o pa rticip a de to d o ato de fé g e n u ín a . Isso p o d e acontecer
de m ú ltip la s form as, ta n to em êxtase v ita l, co m o pela ascese que
leva à êxtase e sp iritu a l. Mas seja em re alização de v ita lid a d e ou na
a utonegação, o corpo sem pre fa z p a rte da v id a da fé . O m esm o
va le para as aspirações inconscientes da alm a. Elas é q u e d e te rm i­
nam a escolha dos sím bolos re lig io so s e dos tip o s de fé . Por isso
toda com un hão de fé procura in flu e n c ia r o inconsciente de seus
crentes, especialm ente e n tre a geração jo ve m .
Q u a n d o a fé d e um a pessoa se e x p rim e em sím bolos q u e cor­
re spo ndem a seus im pulsos inconscientes, esses im p u lso s d e ix a m
de ser caóticos. Eles não precisam m ais ser re p rim id o s , um a vez
que eles e x p e rim e n ta ra m uma "s u b lim a ç ã o " le g ítim a e estão u nidos

69
.io a g ir consciente da pessoa. A fé tam bém d irig e a vid a consciente
d o hom em na m e d id a em q u e ela lhe dá a preocupação m ais íntim a
no âm ago do seu ser. Um dos grandes problem as de toda vid a do
p e rso n a lid a d e é a d iv e rg ê n c ia dos conteúdos do consciente. Q u ando
fa lta um ce ntro u n ific a d o r, a m u ltifo rm id a d e in fin ita d o m u n d o ao
re d o r e dos processos e s p iritu a is in te rio re s pode le va r à cisão ou
mesm o d e sinteg ra çã o to ta l da perso n a lid a d e . Nada há q u e possa
p ro te g e r contra essa constante ameaça senão a força u n ific a n te do
estar possuído in co n d ic io n a l. Isso p ode acontecer de d ive rsa s ma­
neiras. Uma p o s s ib ilid a d e é a d is c ip lin a com que uma pessoa dispõe
a sua vid a de m o d o o rd e n a d o ; o utra é a m editação. Tam bém a
busca de um a lvo d e te rm in a d o e a dedicação a uma o u tra pessoa
são cam inhos pelos q uais se p o d e re a liza r o estar possuído in c o n d i­
cio nalm e nte . Todos esses cam inhos pressupõem fé ; n e n h u m deles
p o d e leva r à meta sem fé . A vid a in te le ctu a l do h o m e m , as obras
de um artista, a pesquisa c ie n tífic a , a atuação ética ou p o lítica são
expressões conscientes ou inconscientes de uma preocupação ú ltim a .
S om ente assim elas são p re e n ch id a s de paixão e de eros criativos,
com isso recebendo u n id a d e e p ro fu n d id a d e .

Nós m ostram os com o a fé dá fo rm a e une a todos os elem entos


in telectu ais, em ocionais e co rp o ra is da pessoa e com o ela representa
a força in te g ra d o ra com o ta l. Essa im agem do poder; da fé contém ,
p o rém , apenas as cores alegres e não os aspectos so m b rio s da desa­
gregação e d o m ó rb id o , que po d e m im p e d ir a fé de c ria r um a vid a
in te g ra l da p e rso n a lid a d e , m esm o naquelas pessoas em q u e a força
de fé se m anifesta d e m o d o m ais vis ív e l; nos santos, m ísticos e p ro ­
fetas. O hom em nunca v iv e e x clu siva m e n te a p a rtir de um ce n tro da
vid a . Em todos os â m b ito s d e seu ser atuam forças co rru p to ra s.
Pode-se d iz e r que a fo rça u n ific a d o ra da fé possui e fe ito te ra p ê u tico .
Essa constatação necessita, p o ré m , de um esclarecim ento, isso p o r
causa dos m ú ltip lo s m a l-e n te n d id o s sobre a relação e n tre fé e cura.
Tanto no uso dos te rm o s com o ta m b é m na com preensão d o assunto
é necessário d is tin g u ir a força in te g ra d o ra da fé d a q u ilo q u e se
d e n o m in o u de "cura pela fé " . "C ura pela fé " no s e n tid o em que é
usada essa expressão, é a te n ta tiv a d e a ju d a r a outros ou a si mesm o
através da concentração psico ló g ica sobre as forças terapêuticas nos
outros ou em si m esm o. S em elhantes forças terapêuticas existem na
natureza e no hom em e p o d e m ser reforçadas através d o esforço
psicológico. Sem q u a lq u e r depreciação se poderia fa la r aqui da
aplicação de práticas "m á g ic a s "; e não há d ú vid a de q u e existe
m agia terapêu tica ta n to nas relações e ntre as pessoas com o tam bém
na autosugestão d o ho m e m . Essa é uma experiência c o tid ia n a , e é
notável às vezes a in te n s id a d e e o sucesso dessas forças. Mas aqui

70
não se d e ve ria u tiliz a r a p a la vra " f é " , e esses processos não d e v e ­
riam ser tom ados com o uma p ro va p ara a capacidade te ra p ê u tica
de um estar possuído in c o n d ic io n a l.
A fo rça in te g ra d o ra da fé num a situação concreta d e p e n d e das
condições subjetivas e o b je tiv a s Q u a n to ao aspecto s u b je tiv o tu d o
d e p e n d e do grau de a b e rtu ra d e um a pessoa para o p o d e r da fé
e da fo rça e paixão de sua p re o cu p a çã o suprem a. Essa a b e rtu ra é
uma d á d iv a e não pod e ser p ro v o c a d a in te n c io n a lm e n te , ela é o
que a re lig iã o chama de graç>. O la d o o b je tiv o é o g rau em que
a fé superou em si o p e rig o da id o la tria e está d irig id a para o que
é v e rd a d e ira m e n te in co n d icio n a l. A id o la tria não tem c o n tin u id a d e .
Ela pod e estar carregada de p a ixã o e e xe rc e r p o d e r in te g ra d o r. Ela
p ode cu ra r e levar a p e rs o n a lid a d e a u n id a d e . Os deuses d o p o li­
teísm o possuíam poderes de cura, não apenas no sentido m ágico,
mas ta m b é m como transm issores de re n o va çã o g e nuína. Tam bém os
objetos da id o la tria secularizad.i m o d e rn a , com o a "n a ç ã o " ou " v e n ­
cer na v id a " tem capacidade te ra p ê u tic a , não apenas pela fascinação
m ágica de um " líd e r" , de um slogan ou d e uma prom essa, mas
tam bém pelo fa to de criarem tarefas e um a v id a p ro v id a de se n tid o
para im pu lso s que de o u tro m o d o não p o d e ria m realizar-se. M as a
base dessa integração é m u ito estreita. A fé id ó la tra desm orona mais
cedo ou mais tarde, e a m iséria se to rn a p io r d o que antes. A q u e la
área lim ita d a da rea lid ad e que se e le v a ra à categoria de in c o n d ic io ­
nal é atacada em nom e d e outras preocupações fin ita s . A consciência
se fe n d e no m om ento e xa to em que se dá um alto v a lo r a cada um a
das preocupações em c o n flito . A re alização dos im pulsos inconscien­
tes não d u ra ; eles são re p rim id o s o u irro m p e m d e se n fre a d a m e n te .
Desaparece o po d e r o rie n ta d o r d o e s p írito p o rq u e o o b je to a que
ele se d irig ia perdeu seu p o d e r de c o n ve n ce r. A a tiv id a d e e s p iritu a l
criadora se torna cada vez mais s u p e rfic ia l; ela fica vazia, já que
não há nenhum sentido in fin ito q u e lh e e m p re ste p ro fu n d id a d e . A
p a ixão da fé se transform a num s u p o rta r d e d ú v id a s não superadas
e em desespero, sendo q u e em m u ito s casos o ú ltim o recurso é a
fuga para a neurose ou a psicose. A fé id ó la tra d e sin te g ra e d e stró i
mais do que a in d ife re n ça , e x a ta m e n te p o rq u e ela é fé e p o d e p ro ­
vocar um a integração passageira.
A fé é dotada de p o d e r de cura; p o r isso precisam os p e rg u n ta r
agora em que relação ela se e ncontra com outras forças terapêuticas.
A p o ssib ilid a d e de in flu ê n c ia de pessoa para pessoa nós já m e n ­
cionam os, mas ainda não tratam os da a rte m édica e de sua aplicação
bem com o de suas pressuposições c ie n tífic a s e técnicas. Existe um
gran de n ú m ero de m étodos de cura, dos q u a is n enhum p ode re i­
v in d ic a r ser o único v á lid o . Mas é p o ssível fix a r m etodicam ente cada

71
um deles a uma d e te rm in a d a ta re fa . Talvez se p o d e ria d iz e r que a
ca pacida de curadora da fé se estende à pessoa in te ira , in d e p e n ­
d e n te m e n te de q u a is q u e r d is tú rb io s específicos d o co rp o ou do
e sp írito , e que ela atua em cada m o m e n to de nossa v id a , seja em
se n tid o p o s itiv o ou n e g a tiv o . Ela precede todas as outras p o s s ib ili­
dades d e cura, as a co m p a n h a , transcende e lhes segue. Mas ela
sozinha não é s u fic ie n te para o d e s e n v o lv im e n to d o hom em como
"p e sso a "; isso p o rq u e o h o m e m , em conseqüência de sua fin itu d e e
alienação, não é um to d o , e sim está fe n d id o em d ive rso s campos.
Cada um desses cam pos p o d e d e ca ir in d e p e n d e n te m e n te dos outros.
Ó rgãos isolados d o c o rp o p o d e m adoecer sem que surja algum a
doença m e n ta l; e doenças m entais são possíveis sem que haja
pro b le m a s visíveis no co rp o . Em algum as fo rm a s de e n fe rm id a d e
psíquica, especialm en te na neurose, e em quase todas as doenças
do co rp o , a vid a in te le c tu a l p o d e perm anecer c o m p le ta m e n te sadia
e até g a n h a r força e in te n s id a d e . A arte m édica precisa in te rv ir
sem pre qu e um aspecto p a rcia l de toda a p e rso n a lid a d e adoece por
m o tivo s externos ou in te rn o s . Isso vale ta n to para a psicoterapia
com o para a m ed icina em g e ra l. Não existem c o n flito s e n tre seus
m étodos e a cura que p o d e ser alcançada pela fé; fà m b é m está claro
que ne nhum a in te rve n çã o m édica — tam bém não a p sicoterapia —
p ode le v a r à in tegraçã o da pessoa com o um to d o . Isso só a fé con­
segue fa ze r. As tensões e n tre as duas fo rm a s de te ra p ia desapare­
ceriam se elas reconhecessem suas tarefas específicas e seus lim ites
d e te rm in ad o s. Elas e n tã o ta m b é m não mais se d e ix a ria m p e rtu rb a r
pe lo te rce iro m é todo de cura, ou seja, a concentração m ágica. Elas
aceitariam sua ajuda, se bem q u e acentuando as p o ss ib ilid a d e s lim i­
tadas desta.
Existem tantos tip o s d e pe rso n a lid a d e s in te g ra d a s com o há
tip os de fé . A lé m disso, p o ré m , há ainda um tip o que re úne em si
m u itos traços dos o u tro s tip o s d e integração pessoal. Trata-se do
tip o de pe rso n a lid a d e cria d a p e lo cristia n ism o p rim itiv o q u e sem pre
de n o vo su rg iu e se p e rd e u no curso da histó ria da ig re ja . Sua
natureza não pode ser d e scrita apenas a p a rtir da fé ; isso p o rq u e ela
ainda reúne d e n tro d e si ou tra s características. Para com preendê-la,
é necessário re sp o n d e r p rim e iro a questão do re la cio n a m e n to entre
fé e am or e da relação e n tre ’ fé e ação.

3. Fé, A m o r e A ção

A questão sobre a relação da fé com o a m or e a ação sem pre


fo i colocada desde q u e o a p óstolo Paulo passou pela e xp e riê n cia
de q u e é a fé no p e rd ã o d iv in o e não a ação d o hom em q u e o faz
aceitável perante Deus. A s respostas são diversas, d e p e n d e n d o de

72
se a fé é entendida com o um acreditar ou com o o estar possuído p o r
a q u ilo que nos toca inco n d icio n a lm e n te . N o p rim e iro caso é contes­
ta d o que am or e ação d e p e n d a m d ire ta m e n te da fé; no segundo
caso am or e ação estão co n tid o s na fé e d ela não podem ser separados.
A p e sa r de todos os enganos e mal e n te n d id o s na in te rp re ta çã o da
fé , a últim a é a d o u trin a clássica da ig re ja , a q u a l m uitas vezes fo i
bastante mal expressa.
Só se é possuído in c o n d ic io n a lm e n te p o r a q u ilo a q u e se p e r­
tence pela p ró p ria essência, m esm o q u a n d o se está d e le separado
existencialm ente. Com o vim os, fé não é a mesm a coisa q u e a visão
p e rfe ita de Deus. Essa não acontece d e n tro d o te m p o . Mas existe
um a aspiração in fin ita de alcançar sem elhante visão, em q u e é con­
seguida a re-união do que está separado. E o im p u ls o para a re­
união do separado é o am or. A preocupação da fé co in cid e com o
a lv o d o amor: ambos procuram .1 reconciliação com a q u ilo a que
se pertence e de que se está alienado. N o "g ra n d e m a n d a m e n to "
do A n tig o Testam ento, o qual fo i c o n firm a d o p o r Jesus, Deus é
am bas as coisas: o o b je to d a q u ilo que nos toca in co n d ic io n a lm e n te
e o objeto de am or irre s trito . Desse am or se d e d u z o a m o r q u e se
d irig e à q u ilo que é "d e Deus", isto é: o p ró x im o e a p ró p ria pessoa.
Por isso o "te rn o r a D eus" e o "a m o r de C ris to " é que d e te rm in a m o
c o m porta m ento em relação às outras pessoas em toda a lite ra tu ra
bíblica. No h in duísm o e no b u dism o é a fé no "U n o ", d o q ual p ro ­
vém tu d o que é e ao qu a l vo lta tu d o que é, que d e te rm in a a p a r­
ticipação no p ró x im o . O conhecim ento da id e n tid a d e ú ltim a no
" U n o " torna possível e necessária a u n iã o com tu d o que é. Mas
isso não é a mesma coisa que o conceito b íb lic o d o am or. A m o r
p a rticipa, mas não se fu n d e com o o b je to do am or. A m b a s as
concepções de fé têm em com um que elas não apresentam a m or e
ação como a lgo que se encontrasse fo ra da fé (o q u e acontece em
toda fé que é menos d o que o estar possuído in co n d icio n a l), mas
sim amor e ação são elem entos da p ró p ria fé. A separação d e fé
e am or sem pre é conseqüência de um a degeneração da re lig iã o .
Q u ando a fé judaica se to rn o u um sistema de prescrições rituais,
qu a n d o as religiõ es dos h indus se d e g e n e ra ra m num sacram entalism o
m ágico, e qua ndo o cristianism o incorreu em ambos os enganos e
lhes acrescentou ainda um a ríg id a d o g m á tica , a relação e n tre fé e
am or se torno j um sério p ro b le m a para numerosas pessoas d e n tro
e fo ra de cada uma dessas re lig iõ e s, m o tiv a n d o que m uitos se v o l­
tassem para uma ética não-religiosa.
Elas tentaram escapar aos descam inhos da fé d e ix a n d o de lado
a p ró p ria fé. Mas a questão é: Existe a lg o com o am or sem fé ? Certa­
m ente que há am or sem a aceitação de certas d o u trin a s. Sim , a histó­

73
ria dem onstra que os mais te rrív e is crim es contra o am or fo ra m co­
m etidos em nom e de dogm as fa n a tic a m e n te d e fe n d id o s . Fé como
um a série d e d o u trin a s a p a ixon a d a m e n te d e fe n d id a s não gera amor.
Mas fé com o a q u ilo que nos toca in co n d icio n a lm e n te inclui o amor,
isto é, o desejo e a aspiração pela re-união do separado, seja entre
Deus e H om em , seja entre duas pessoas.
Mas a p e rg u n ta persiste: É possível o am or sem fé ? Uma pessoa
q u e não tenha fé é capaz de am ar? Essa é p ro p ria m e n te a form a
adequada para a p e rg u n ta , e a resposta é: Não há ser hum ano sem
um a preocupação incondicio n a l e p o rta n to sem fé e sem amor. O
a m or está a tu a n d o em todo ser h u m ano, m esm o q u e p ro fu n d a m e n te
o cu lto , pois to d o ser hum ano aspira a união com o fu n d a m e n to
ú ltim o do ser.
Nós d iscu tim os as interpretações errôneas do sentido de " fé " .
Ig u a lm e n te necessário seria agora — o que não é possível neste
presente co n te xto — m ostrar as más interpretações sofridas pelo
se n tido d o am or. Mas uma das m aneiras mais fre q ü e n te s de se en­
te n d e r mal o am or ainda precisa ser m encionada. Trata-se da
lim itação do am o r ao sentim ento. Assim com o a fé encerra o senti­
m ento, assim tam bém o am or; mas dessa m aneira o am or como tal
ainda não se torna sentim ento. A m o r é o p o der no fu n d a m e n to
ú ltim o de to d o o ser, o p o d e r que im p u lsio n a o ente para além de
si em d ireção à re-união com a outra pessoa e, em ú ltim a análise,
com o p ró p rio fu n d a m e n to d o ser, d o qual se encontra separado.
Costuma-se d is tin g u ir d iversos tipos de am or, co n tra p o n d o o eros
g re g o à ágape cristã. D efiniu-se eros com o a aspiração pela auto-
realização através de outros seres, e ágape como a disposição a
se e n tre g a r ao o u tro em p ro l d o o u tro com o tal. Mas essa a lte rn a tiva
não existe. Esses assim cham ados "tip o s de a m or" são na realidade
"q u a lid a d e s d o a m o r", características q u e aparecem reunidas e só
e n tram em c o n flito em sua fo rm a d e g e n e ra d a . N enhum am or é real­
m e n te am or sem a un id a d e de eros e ágape. Á g a p e sem eros é
sujeição a um a lei m o ral; ela é d e stitu íd a d e calor, de aspiração e de
reconciliação. Eros sem ágape é desejo dese n fre a d o , que não respeita
o d ire ito do o u tro de ser reconhecido com o alguém que ama e vale
a pena ser am ado. A m o r como u n id a d e de eros e ágape é um
traço característico da fé. Q u a n to mais am or h o u ve r na fé , tanto
m ais estarão superadas as suas p o ssib ilid a d e s dem oníaco-idólatras.
Uma fé , em que um a preocupação p ro v is ó ria alcança va lid a d e ú ltim a ,
está em c o n flito e em contradição com todas as outras preocupações
p ro visó ria s; isso de stró i a p o ssib ilid a d e d o am or e ntre os portadores
de sem elhantes fo rm a s de fé. O fa n á tic o não pode amar a q u ilo
contra que se d irig e seu fanatism o; e fé idólatra é necessariamente

74
fa n ática . Isso p o rq u e ela precisa re p rim ir d e n tro de si to d íi■; as dú
vidas que se levantam secretam ente contra a elevação de a lgo p ro
v is ó rio à categoria de in co n dicio n a l.

A expressão d ire ta d o am or é a ação. Teólogos já d iscu tira m .1


questão de com o a fé pode resultar em a gir. Isso é possível p o rq u e
té encerra am or e p o rq u e am or se m a n ife sta em ação. O e lo de
ligação entre fé e ação é o am or. Q u a n d o os R eform adores achavam
que a salvação só é alcançada pela fé e q u a n d o eles re je ita ra m
a d o u trin a católico-rom ana de que ta m b é m as obras são necessárias
para a salvação, então eles tin h a m razão em negar que nenhum a
ação do hom em pode p ro vo ca r a união com Deus. Som ente Deus
p o d e reconciliar o alienado consigo m esm o. Mas nisso os R eform a­
dores não se deram conta de algo que ta m b é m na d o u trin a católica
só está expresso de m aneira m u ito vaga: o fa to de que a m or é
um e le m ento da p ró p ria fé, qu a n d o fé é ente n d id a com o a q u ilo
que nos toca in co ndicio n a lm e n te . Fé in clu i am or, am or v iv e na
ação: nesse sentido a fé se realiza em "o b ra s ". O nde h o u v e r p re o ­
cupação in co ndicion al, ali tam bém existe o desejo ardente de re.i
lizar essa preocupação. Preocupação — na significação o rig in a l d.i
pa la vra — inclui o desejo de agir; mas o tip o de ação d e p e n d e do
tip o de fé. Na fé de tip o o n to ló g ic o é alm e ja d a a volta d o que er.tá
separado para a união. A fé d o tip o ético aspira a transform ação
da realidade alienada.

Em ambos os casos o am or está o p e ra n d o . Na fé de tip o o n to ­


ló g ico o eros pred o m in a no am or e leva à união do que ama com
o am ado n a q u ilo que os transcende a ambos: o fu n d a m e n to do
ser. Na fé do tip o ético a ágape leva à afirm ação d o am ado 0
procura a sua transform ação n a q u ilo que ele é por sua e v .rn c ia
e p o r isso deve ria ser. N o tip o m ístico o am or une atravó'. da ne­
gação do eu; no tip o ético o am or tra n sfo rm a através da afirm ação
d o eu. Uma ação baseada no am or d o tip o m ístico tem caráter p re ­
d o m in a n te m e n te ascético; uma ação que emana do a m or d o tip o
ético tem a tendência de a m o ld a r a re a lid a d e . Em am bos os casos
a fé d ete rm in a o tip o de am or e o tip o de ação.

Esses são exem plos para p o la rid a d e s fu n d a m e n ta is no caráter


da fé; mas ainda há m uitos outros. O p rin c íp io luterano d o pe rd ã o
in d iv id u a l, p o r e xe m p lo , está menos o rie n ta d o para o atuação social
do que a fé calvin ista, que tem em vista a honr.i de Deus. A fé
hum anística na natureza racional do hom em tem efeitos mais posi­
tiv o s para a educação e para uma o rd e m social dem ocrática do que
a fé cristã tra d icio n a l, que acentua o pecado o rig in a l e o caráter
dem oníaco da re a lid a d e terrena. A fé p ro te s la n le num e ncontro d ire to

75
d o hom em com Deus gera mais personalidades independentes do
que a fé católica, que ensina a fu n çã o m ediadora da ig re ja entre
Deus e hom em . Por mais d ive rso s, p o ré m , que sejam os 1ipos de
fé , fé com o estar possuído p o r a q u ilo q u e nos toca in co n d icio n a l­
m ente inclui o am or e d e te rm in a a ação. Fé é o p o der que baseia
ta n to o am or com o a ação.

4. A C om unhão de Fé e suas Formas de Expressão

Nossa exposição sobre a natureza da fé mostrou que fé só é


real e viv a num a com unhão de fé , e isso, mais exatam ente, apenas
q u a n d o ela cria uma lin g u a g e m com um da fé. A discussão da rela­
ção e ntre am o r e fé levou ao m esm o resultado: am or como elem ento
da fé e com o aspiração pela re-união d o que está separado cria
com unhão. E uma vez q u e tè leva necessariam ente à ação e ação
pressupõe com unhão, o estar possuído incondicionalm ente somente
é le g ítim o q u a n d o ele se realiza num a com unidade de ação.

A co m unida de de fé e de ação se baseia em sím bolos rituais e


m anifesta sua natureza em sím bolos m íticos. A m bos se condicionam
reciprocam ente; a q u ilo que ve m o ser expresso no culto se encontra
fig u ra d a m e n te no m ito, e vice-versa. N ão há fé sem essas duas
fo rm a s de autorepresentação. M esm o q u a n d o a "n a çã o " ou o "su ­
cesso" são objetos da fé, eles estão associados a ritos e mitos.
É sabido que sistemas to ta litá rio s possuem uma estrutura m u ito bem
elaborada de atos rituais e q u e além disso têm uma q u a n tid a d e de
sím bolos fig u ra d o s , os quais — p o r m ais absurdos q u e sejam —
e xp rim e m a fé que fu n d a m e n ta to d o o sistema. A sociedade tota­
litá ria v iv e em atos rituais e sím bolos in tu itiv o s que apresentam
algum a s im ilitu d e com os atos e sím bolos em que vive uma com u­
nidade religiosa presa à a u to rid a d e . AAas em todas as com unidades
religiosas genuínas acha-se um ve e m e n te protesto contra os e le ­
m entos id ólatras, os quais são sem mais adm itidos no to ta lita ris m o
p olítico.

A vida da fé é vid a na com unhão da fé; isso não va le apenas


para as a tivid a de s e instituições co m u n itá ria s, mas tam bém para a
vid a in te rio r de seus m em bros. Q u a n d o uma pessoa se isola tra n ­
s itoriam en te d o agir co m u n itá rio , p o r e x e m p lo da vida cu ltu a l da
co m unidade de fé , então isso não sig n ific a necessariamente uma
separação da com unidade com o tal. Isso até pode levar a que a vida
e sp iritu a l da com unidade seja fo rta le c id a . Isso porque fre q ü e n te m e n te
tal pessoa, após um isolam ento v o lu n tá rio , retorna como um re n o va d o r
da com unidade e de seus sím bolos. N ão existe vida de fé que não

76
seja vida na com unhão; isso tam bém vale para o isolam ento e s o li­
tude do místico e n q u a n to ele ainda fala a lin g u a g e m da c o m u n h ã o
de fé. E mais: não existe sim plesm ente com unhão algum a q u e não
fosse com unhão de fé. N a tu ra lm e n te existem g ru p o s quo so unem
d e v id o a interesses em com um e que perm anecem em u n iã o e n ­
q u a n to d u re o interesse. E há g ru p o s que com o fa m ília 1, e <I.i ■. têm
uma o rig e m natural e desaparecem algum dia p o r m o rle n a tu ra l
q u an d o se e xtin g u e m as suas condições de v id a . N enhum desses
dois tipos de associação é com o tal uma com unhão de té. ta n to faz
se um g ru p o surge de m aneira natural ou se ele se associa p o r
causa de um interesse: ele não deixa de ser um a ligação passageira.
A ligação se in te rro m p e q u a n d o desaparecem as bases m a te ria is ou
as condições b io lógica s de sua existência. Para uma com unhão de
fé essas condições não são decisivas; e xclu siva m e n te a forço v iv n
de sua fé é o fu n d a m e n to e c rité rio para sua duração. A q u ilo que
se baseia numa preocupação incondicional não está am eaçado p o r
nenhum a destruição através de preocupações provisórias ou p o r
fa lta de sucesso. A p ro va m ais a d m irá ve l para essa afirm ação ó .1
história dos judeus. Eles são na história da hum anidade .1 p ro v a
para o caráter ú ltim o e in co n dicio n a l da fé.

Nem um cu lto nem as expressões míticas da fé fazem so n tid o ,


se não lhes é reconhecido o seu caráter sim b ó lico . Nós tentam os
an te rio rm e n te a p o n ta r as conseqüências d e stru tiva s da com preensão
lite ra l d e sím bolos. C ontra essa se levanta fre q ü e n te m e n te uma
crítica religiosa e filo s ó fic a . O m ito é s u b s titu íd o por filo s o fia da
re lig iã o , e no lug a r do cu lto se coloca uma série de prescrições m orais.
Sem elhante situação pod e p e rsistir p o r a lg u m tem po p o rq u e .1 fó
o rig in a l ainda está atu a n d o nela. Uma rejeição das form as do e x ­
pressão da fé não precisa estar necessariam ente d irig id a contra a
fé em si. Mas isso tem v a lid a d e lim ita d a . Sem sím bolos de um a
preocupação in co n d icio n a l, sistemas de pura m oral d e g e n e ra m
numa ética de ajuste e convenções sociais, sejam elas ju s tific a ­
das em ú ltim a análise ou não. A paixão in fin ita que caracleriza toda
fé genuína vai desaparecendo aos poucos e é substituído p e lo cal-
culism o in te lig e n te , que nunca será capaz de resistir às in ve stid as
veem entes de uma fé id ó la tra . Sem elhante processo se d e se n ro lo u
no âm bito da cu ltu ra o c id e n ta l; ele perm aneceu oculto p o r ta n to
te m po apenas p o rq u e em m uitos representantes da fé hum anista
a capacidade ética era m a io r d o que em m uitos m em bros de algum as
com unidades religiosas. Nessas pessoas ainda estava viva a fé , elas
levavam in co n dicio n a lm e n te a sério a d ig n id a d e humana e a res­
p o n sa bilidade pessoal; nelas ainda estava v iv a a substância re lig io sa ,
e essa tem que desaparecer se a fé não fo r renovada. Isso, p o ré m ,

77
só p od e acontecer num a com u n h ã o de fé sob a constante influência
d e seus sím bolos m íticos e cúlticos.

Um dos m otivo s p o r que a ética autônom a se v o lto u contra sua


o rig e m re lig io sa é a distorção d e se n tid o sofrida pelos sím bolos e
m itos no curso da história da re lig iã o , ta m b é m nas igrejas cristãs.
Os sím bolos rituais de fé fo ra m p e rv e rtid o s com o o b je to s dotados
de p o d e r m ágico, aos quais se a trib u iu a mesma e ficácia de forças
naturais. Via-se neles forças sacram entais que sem pre atuam , con­
ta n to que o hom em não lhes oponha obstáculos. Essa interpretação
supersticiosa da ação sacram ental d e spertou o p ro te s to dos hum a­
nistas e os le vo u ao ideal da m oral sem re lig iã o . A deposição da
superstição sacram ental fo i uma das preocupações p rin c ip a is do p ro ­
testantism o. Mas com seu p ro te sto o p ro te sta n tism o não só e lim in o u
a superstição cultual com o ta m b é m o sentido le g ítim o da pró p ria
ação ritu a l e do sim b o lism o sacram ental. Com isso o protestantism o
c o n trib u iu contra sua vo n ta d e com um a ética a u tô no m a . Mas a fé
não p o d e fic a r viva sem fo rm a s visíveis e sem p a rticip a çã o pessoal
dos crentes nessas form as. Esse re conhecim ento le vo u o protestan­
tism o m o d e rn o a uma nova va lo riza çã o de culto e sacram ento. Sem
sím bolos em q ue o sagrado é e x p e rim e n ta d o com o e stando presente,
desaparece p o r co m p le to a e x p e riê n cia d o sagrado.

A mesm a coisa vale para as fo rm a s m ito ló g ica s de expressão


d o in co n d icio n a l. Q u a n d o o m ito é to m a d o lite ra lm e n te , a filo s o fia
tem que re je itá -lo com o absurdo. Ela precisa "d e m itiz a r" as histórias
sagradas.

O que acontece então é que o m ito se tra n sfo rm a em filo s o fia


da re lig iã o , tornando-se fin a lm e n te filo s o fia sem re lig iã o . Mas o
m ito em seu sentido v e rd a d e iro é o fu n d a m e n to c ria d o r de toda
com unhão re lig io sa ; ele não p o d e ser s u b stitu íd o nem pela filo s o fia
nem p o r uma coletânea de prescrições m orais.

C u lto e m ito m antêm viva a fé. N in g u é m se d e s lig o u co m p le ta ­


m e n te deles, pois n in g u é m está in te ira m e n te d e s titu íd o de uma
preocupação inco n dicio n a l. Não há d ú v id a de que são poucos os
q ue com pre endem o s ig n ific a d o e o p o d e r de c u lto e m ito , se bem
q ue a v id a da fé deles d e pende. Eles em prestam expressão visível
à fé de uma com u nhão e provocam fé pessoal nos m em bros de
uma co m u nidad e. E sem uma com unhão em que m ito e cu lto são
cridos e praticados, a fé desvaneceria, e tu d o que há de re lig io so
m e rg u lh a ria ao nível do inconsciente. N o consciente a experiência
d o sagrado ainda te ria uma in flu ê n c ia passageira sobre a ética,
mas a fé estaria e lim in a d a com o p o d e r v iv o .

78
5. O Encontro e n tre C om unhões de Fé

M u ita s com unhões de fé e xiste m , não apenas na re lig iã o ,


com o tam bém no cam po c u ltu ra l. P resentem ente a sua m a io ria se
e n c o n tra em contato recíproco e de um m o d o g e ra l é to le ra n te em
suas relações entre si. Mas há exceções im p o rta n te s , e pod e m u ito
bem ser que o n ú m e ro de exceções esteja crescendo sob as d if i­
cu ld a de s políticas e sociais de nossa época. Exceções co n stitu e m
s o b re tu d o os tipos po lític o s e p se u d o re lig io so s de fé . Incluem -se aí
não apenas as form a s to ta litá ria s , mas — em defesa de sua p ró p ria
e xistência — tam bém as form nr, dem ocráticas de fé p o lítica . N o
â m b ito pu ram ente re lig io s o , p o ré m , e xiste m ta m b é m exceções, p o r
e x e m p lo a d o u trin a o fic ia l da ig re ja ca tó lico -ro m a n a de q u e ela
sozinha esteja de posse da ve rd a d e . O u tra exceção é a o rto d o x ia
p ro te sta n te , que reje ita todas as outras fo rm a s d e cris tia n is m o e da
re lig iã o . É fa c ilm e n te co m p re e nsíve l que se m e lh a n te in to le râ n cia
possa se instalar no cam po da fé. Se fé é o estar possuído in co n ­
d ic io n a lm e n te que precisa se expressar de um a d e te rm in a d a fo rm a ,
e ntã o o sím bolo concreto p a rticip a d o in c o n d ic io n a l, se bem que
ele m esm o não seja in co n d ic io n a l. A q u i se acham as raízes da in to le ­
rância. Uma expressão do inco n dicio n a l exclu i todas as outras e assume
traços dem oníacos. Isso aconteceu em todas as re lig iõ e s , ta m b é m no
c ristia n ism o , apesar de ser a cruz o sinal da resistência contra toda
re lig iã o concreta que se e le ve a si m esm o à ca tegoria d e in c o n d ic io ­
nal. A verdad e do m isticism o consiste em q u e ele não a trib u i im ­
p o rtâ n cia últim a a nenhum a re lig iã o isolada, c o n s e g u in d o ultrapassar
assim o sistema de sím bolos em que v iv e q u a lq u e r re lig iã o . A in d i­
ferença d ia n te de toda expressão concreta d o in c o n d ic io n a l to rn a o
m isticism o to le ra n te ; mas fa lta -lh e a força de su p e ra r a alienação
da existência hum ana. N o judaísm o e no c ristia n ism o a re a lid a d e é
tra n sfo rm a d a p elo Deus que é o Senhor da h istó ria . O m on o te ísm o
e x clu sivo dos profeta s, sua luta contra as d iv in d a d e s d o p a g a n ism o ,
a m ensagem de justiça un ive rsa l no A n tig o Testam ento e de graça
u n ive rsa l no N ovo Testam ento — tu d o isso to rn o u o ju d a ísm o , o
Islã e o cristianism o in to le ra n te s p e ra n te toda o u tra re lig iã o . A s re li­
giões da justiça, da histó ria e da e x p e cta tiva fin a l (13) não p o d ia m
aceitar a tolerância m ística, p o r e x e m p lo , das re lig iõ e s h in d us. Elas são
in to le ra n te s e podem in te n s ific a r essa a titu d e até ao fa n a tis m o . Isso
d is tin g u e o m onoteísm o dos p ro fe ta s com sua re ivin d ica çã o aberta
de e x c lu sivid a d e da fo rm a aberta d o m o n o te ísm o m ístico.

(13) N. d o T.: "E n d e rw a rtu n g ": que espero a realizaçã o p le n a no fim dos te m p o s.

79
Surge ig o ra a p e rg u n ta : O e n co n tro e n tre duas fo rm a s de fé
precisa le va r necessariam ente ou à to le râ n cia acrítica ou à in to le ­
rância sem a u to crítica ? Se fé é c o m p re e n d id a com o estar possuído
in c o n d ic io n a lm e n te , essa a lte rn a tiv a estará superada. O c rité rio de
toda fé é sua capacida d e de expressar a in c o n d ic io n a lid a d e d o in ­
co n d icio n a l. A a u tocrítica de to d a fo rm a de fé é uma conseqüência
d o re co nhecim en to da v a lid a d e lim ita d a dos sím bolos concretos em
q u e transparece essa fé .

Daí se c o m p re e n d e o se n tid o de "c o n v e rs ã o ". A p a la vra "c o n ­


v e rs ã o " tem conotações q u e d ific u lta m o seu uso. Ela p ode d a r a
e n te n d e r o d e s p e rta r d e um estado em q u e o aspecto re lig io so
estava o cu lto , e o abrir-se para o sagrado de que se tom a consciência.
Se "c o n v e rs ã o " é c o m p re e n d id a dessa m aneira, então to d a e xp e ­
riência re lig io sa o rig in a l te m o caráter d e conversão. Mas conversão
tam bém po d e s ig n ific a r a m udança de um a confissão de fé para
o u tra . C onversão nesse se n tid o é q u e stio n á v e l. Ela só é s ig n ific a tiv a
se na nova fé a in c o n d ic io n a lid a d e do in co n dicio n a l é m e lh o r g u a r­
dada d o q u e na fé a n tig a .

N o m u n d o o cid e n ta l é esp e cialm e n te im p o rta n te o e n co n tro d o


cristia nism o com as fo rm a s de fé secularizada. Tam bém a fé p ro fa n a
é fé e nunca é d e s titu íd a de uma preocupação in c o n d ic io n a l; p o r
isso o enco n tro com ela é um en co n tro e n tre fo rm a s de fé d ife re n te s .
N um en co n tro e n tre fé re lig io s a e secular é necessário d is tin g u ir
d o is e lem entos: a fé com o tal e a fo rm a em q u e ela se expressa.
N o que tang e a fé com o ta l, nada se p o d e conseguir com arg u m e nto s
racionais que q u e ira m ju lg a r à distância a sua ve rd a d e ou fa ls id a d e
Só se pode te n ta r le v a r a um a nova e xp e riê n c ia de fé . Mas no que
toca e xclu s iv a m e n te às fo rm a s de expressão da fé , sejam elas id e o ­
lógicas ou prática s, é possível re fle tir sobre elas num c o n fro n to .
Mas é uma ilu sã o te n ta r tra n s fo rm a r a fé com o tal com arg u m e nto s
racionais. A fé é e x c lu s iv a m e n te uma q uestão de estar possuído e
de entrega pessoal. M u ita s vezes não é fá c il estabelecer a linha
d iv is ó ria e n tre um a fé e sua expressão, mas isso precisa ser te n ta d o
sem pre de n o vo no e n co n tro e n tre as fo rm a s de fé. Só então pode-se
e v ita r o fa n a tis m o ao m esm o te m p o em que é m antida a certeza
in te rio r da fé .

A travé s da conversã o o tra b a lh o m issio n á rio das g randes re li­


giões procura alcançar a u n id a d e de todas as form as de fé. N in g u é m
pod e estar ce rto de q u e tal u n id a d e será conseguida no curso da
histó ria da h u m a n id a d e ; mas n in g u é m pod e negar que ela é a

80
aspiração e esperança da h u m a n id a d e em todos os tem oos e em
todos os lugares. Existe, p o ré m , som ente um a p o s s ib ilid a d e de a tin ­
g ir essa u n id ad e : a fé precisa ser d ife re n c ia d a das form as de e xp re s­
são em que ela aparece. O cam inho para um a única fé que e n g lo b e
toda a terra é o cam inho dos profetas, que re je ita ra m a id o la tria e
p roclam aram o Deus que é realm ente Deus. Pode ser que nenhum a
fé conseguirá se expressar em um s ím b o lo u n ive rsa lm e n te v á lid o —
se bem que ta m b é m seja a esperança de toda g ra n d e re lig iã o criar
esse sím bolo g lo b a l, em q u e se pode expressar a fé da h u m a n id a d e .
Mas essa esperança só é ju stifica d a se um a re lig iã o está cônscia do
caráter cond icio n a d o de seus p ró p rio s sím bolos. Na "cru z d o C risto ''
o cristianism o tem um s ím b o lo que expressa o estar consciente de
sua p ró p ria c o n d icio n a lid a d e e que perm anece v á lid o m esm o se as
igrejas cristãs esquecerem o sentido desse s ím b o lo e a trib u íre m in-
c o n d icio n a lid a d e a form as específicas de fé . Dado a sua autocrítica
radical o cristianism o , d e n tre todas as re lig iõ e s , é a que apresenta
m a ior vocação para a u n iv e rs a lid a d e — isso e n q u a n to ele p e rm itir
que essa autocrítica prossiga atuando em sua p ró p ria vid a .

CO N CLU SÃO

A P ossibilidade da Fé e seu S ig n ific a d o no Presente

Fé é uma re a lid a d e em cada p e río d o da h istória da h u m a n id a d e .


Esse fa to não pro va que ela esteja in se p a ra ve lm e n te lig a d a com a
natureza mais íntim a d o hom em ; uma d e te rm in a d a fé p o d e ria ser
— com o a fé supersticiosa — uma d isto rçã o da v e rd a d e ira essência
do hom em ; isso tam bém acham m uitos q u e rejeitam a fé . Nesse
liv ro nós p erguntam os se sem elhante o p in iã o se baseia em intuição
real ou num m a l-e n te n d id o , e nós respondem os que a rejeição da
fé pro vé m de um desconhecim ento da natureza da fé . Nós d iscutim os
várias form as desse m a l-e n te n d id o e m uitas distorções d o conceito
de fé . Fé é d ifíc il de se d e fin ir. Quase cada palavra com que se
descreveu a fé — e isso tam bém vale da nossa exposição — encerra
possibilidades de novos m a l-e n te nd id o s. Isso não p o d e ria ser d ife ­
rente, uma vez que a fé não é um fe n ô m e n o e n tre outros, mas sim
a mais íntim a preocupação na vid a d o hom em com o pessoa, sendo
p o r isso m anifesto e o cu lto ao m esm o te m p o . Ela é re lig iã o e s im u l­
taneam ente mais do que re lig iã o ; ela é o n ip re se n te e concreta; ela
é m utável e m esm o assim perm anece sem pre a mesma. Fé está inse-

81
p a ra ve lm e n te ligada com a natureza d o hom em , sendo p o r isso
necessária e u n iversal. Ela é o estar possuído in co n dicio n a lm e n te ,
e p o r isso ela não pode ser refutada nem pela ciência nem pela filo ­
sofia. Ela é possível, sim , até necessária em nosso te m p o . Ela tam bém
não pod e ser desva loriza d a pela distorção supersticiosa ou auto ritá ria
de seu se n tid o d e n tro ou fo ra das ig re ja s, das seitas ou de m o vi­
m entos ide ológ icos. A fé se justifica a si mesma e d e fe n d e seu d i­
re ito contra todos que a atacarem, p o rq u e ela só pode ser atacada
em nom e de uma outra fé. Este é o tr iu n fo da dinâm ica da fé: que
toda negação da fé já é expressão de fé.
EPÍLOGO *

O Q ue é a Série "P e rsp e ctiva s do M u n d o "

p o r Ruth N anda A nshen

Esta é uma reim pressão d o V o lu m e X da Série P erspectivas do


M u n d o , a qual a signa tá ria p la n e jo u e e d ito u em colaboração com
uma Comissão de Editores com posta p o r N ie ls Bohr, Richard C ourant,
Hu Shih, Ernest Jackh, R obert M . M a c iv e r, Jacques M a rita in , J. Robert
O p p e n h e im e r, I. I. Rabi, S a rve p a lli R adhakrishnan, A le x a n d e r Sachs.

Este vo lu m e fa z p a rte de um p la n o de apresentar pequenos


liv ro s em uma varie d a d e de cam pos, escritos p o r pensadores co n te m ­
porâneos da m a io r re sp o n s a b ilid a d e . O o b je tiv o é re v e la r novas
tendências básicas na c iv iliza ç ã o m o d e rn a , in te rp re ta n d o as forças
criativas que estão em ação ta n to no O rie n te como no O c id e n te , e
cham ar a atenção para a nova consciência que pode c o n trib u ir para
uma com preensão mais p ro fu n d a da in te rre la çã o e n tre hom em e u n i­
verso, in d iv íd u o e sociedade, e dos valores co m p a rtilh a d o s p o r todos
os povos. Perspectivas d o M u n d o representa a co m u n id a d e m u n d ia l
de idéias em um u n ive rso em discurso, e n fa tiz a n d o o p rin c íp io de
u n id ad e em uma h u m a n id a d e d e c o n tin u id a d e d e n tro da tra n s fo r­
mação.

Recentes evoluções em m u ito s cam pos d o pensam ento a b rira m


horizontes insuspeitados para um a com preensão mais p ro fu n d a da
situação do hom em e para a apreciação adequada de va lo re s hu m a ­
nos e aspirações hum anas. Esses h o rizo n te s, mesm o sendo resu lta d o
de estudos a lta m ente especializados em cam pos lim ita d o s , re querem
para sua análise e síntese um a nova e stru tu ra e um n o vo q u a d ro
de referências em que eles possam ser e xp lo ra d o s, e n riq u e c id o s e
fo m e ntad os em todos os seus aspectos, para o bem d o hom em e da
sociedade. O in te n to d e P erspectivas do M u n d o é d e fin ir sem elhante
e strutura e q u a d ro de re fe rê n cias, le va n d o , assim esperam os, a uma
d o u trin a acerca do hom em .

(*) N. d o T.: Este e p ílo g o fo i tra d u z id o d e "D y n a m ic s o f F a ilh ", versão inglesa do
prese n te liv ro .

83
O u tro o b je tiv o dessa Série é te n ta r su p e ra r uma das p rin cip a is
doenças da h u m a n id a d e , ou seja, os e fe ito s da atom ização d o conhe­
c im e n to p ro d u z id a p e lo esm agador acréscim o de fatos o rig in a d o s
pela ciência; esclarecer e s in te tiza r idéias através da fe rtiliz a ç ã o em
p ro fu n d id a d e das m entes; m ostrar a p a rtir d e d iversos e im portantes
p o n to s d e vista a correlação de id é ia s, fa to s e valores que estão
em constante interação; d e m o n s tra r o caráter, a fin id a d e , lógica e
o p e ra ção d e to d o o o rg a n is m o da re a lid a d e , m ostrando ao mesmo
te m p o o in te rre la c io n a m e n to dos processos da m ente humana e nos
in te rstício s do conh ecim e n to ; re v e la r a síntese in te rio r e a u n id ad e
o rg â n ica da p ró p ria vid a .

É a tese d e Perspectivas d o M u n d o q u e , apesar da d ife re n ça e


d iv e rs id a d e das d iscip lin a s representadas, e x is te uma fo rte concor­
dância e n tre os autores no q u e d iz re s p e ito à urg e n te necessidade
de co n tra b a la n ça r a p ro fu s ã o de c o n stra n g e d o ra s a tividades cie n tí­
ficas e investigações de fe n ô m e n o s o b je tiv o s , desde a física até a
m e ta física , h istó ria e b io lo g ia , re lacionando-as à e xp eriência e xis­
tencial. A fim de alcançar esse e q u ilíb rio é necessário e stim u la r uma
consciência do fa to fu n d a m e n ta l de q u e em ú ltim a análise a perso­
n a lid a d e hum ana irrd iv id u a l precisa lig a r todas as pontas soltas num
to d o o rg â n ic o , relacionando-se co nsigo m esm o, com a h u m a n id a d e
e com a sociedade, a p ro fu n d a n d o e p ro m o v e n d o ao mesm o te m p o
sua co m u n h ã o com o u n ive rso . A n c o ra r esse e sp írito e im p rim i-lo à
v id a in te le ctu a l e e s p iritu a l da h u m a n id a d e , ta n to sobre os que
pensam com o sobre os que agem , é re a lm e n te um enorm e d e sa fio
que não pod e ser re le g a d o in te ira m e n te à ciência natural p o r um
la d o nem à re lig iã o org a n iza d a p o r o u tro . Isso p o rq u e estamos con­
fro n ta d o s com a im p e ra tiv a necessidade d e d e sco b rir um p rin c íp io
de d ife re n cia çã o mos q u e seja ao m esm o te m p o relação s u fic ie n te ­
m e n te lúcid a para ju s tific a r e p u rific a r o conhecim ento c ie n tífic o ,
filo s ó fic o e de qu e tip o fo r, a ceitando sim u lta n e a m e n te sua in te rd e ­
p e n d ê n cia m útu a. Essa é a crise na consciência, articulada através da
crise no cam po da ciência. Esse é um n o v o despertar.

P erspectivas d o M u n d o se dedica à ta re fa de m ostrar q u e o


c o n h e cim e n to te ó rico básico está re la c io n a d o com o conte ú d o d in â ­
m ico da to ta lid a d e da v id a . Essa série p ro cu ra uma nova síntese,
ta n to c o g n itiv a com o in tu itiv a . Ela se p re o cu p a com a u n id a d e e
c o n tin u id a d e d o conhecim e n to em relação com a natureza d o hom em
e sua com preensão, uma tarefa para a im aginação sin te tiza d o ra e
suas visões u n ifica nte s. A situação d o h o m e m é nova e sua resposta
tem q u e ser nova. Isso p o rq u e a na tu re za d o hom em pode ser
co nhecida de m uitas m aneiras, e to d o s esses cam inhos d o conheci­

84
m e n to podem ser postos em conexão — a lg u ns já estão em con e xã o , —
com o uma g ra n d e rede, u m a g ra n d e rede d e pessoas, lig a n d o idéias
e sistem as de co n h e cim e n to , um a espécie de estrutura ra c io n a liz a d a ,
que é a cu ltu ra hum ana e a sociedade hum ana.

C onhecim ento, com o é m o s tra d o nesses volum es, não consiste


mais d e uma m a n ip u la ç ã o d o ho m e m e da natureza com o forças
opostas, nem de uma re d u çã o d e d a d o s a um a o rd e m estatística, mas
s ig n ific a um m eio de lib e rta r .1 h u m a n id a d e do p o d e r d e s tru id o r
do m e do, m ostran do o c a m in h o cm d ire ç ã o ao a lvo da re a b ilita ç ã o
da vo n ta d e hum ana c o ren a scim e n to da fé e da c o n fia n ça na
pessoa hum ana. As obra s p u b lic a d a s ta m b é m procuram re v e la r que
o cla m o r por esquem as, sistemas e a u to rid a d e s está se to rn a n d o
m enos insistente à m ediei, 1 q u e cresce o desejo tan to no O rie n te
com o no O cide nte pela re c u p e ra rã o d e um a d ig n id a d e , in te g rid a d e
e autorealização que são d ire ito s in a lie n á v e is do hom em , q u e não
é um a mera ta b u la rasa sobre que q u a lq u e r coisa possa ser im p r i­
m id a a rb itra ria m e n te p o r circunst.lncias e xternas, mas q u e possui a
p o te n cia lid a d e única da liv io c ria tiv id a d e . O hom em se d ife re n c ia de
outras form as de v id a no que ole p o d e d ir ig ir a m udança através
de um o b je tiv o consciente, à luz d.i e xp e riê n c ia racional.

Perspectivas d o M u n d o eslá p la n e ja d o a o b te r in tu içã o no s ig n i­


fic a d o do hom em que não só e s l á d e te rm in a d o pela histó ria mas q u e
f am bém d e te rm in a a h istó ria . H istó ria d e v e ser c o m p re e n d id a não
apenas com o relacionada com .1 v id a d o hom em sobre este p la n e ta ,
mas in c lu in d o tam bém in flu ê n c ia s cósmicas que in te rp e n e tra m nosso
m u n d o hum ano. Esta geração está d e s c o b rin d o que a h is tó ria não
se sujeita ao o tim is m o social da c iv iliz a ç ã o m oderna e q u e a o rg a ­
nização de co m u n id a d e h um ana e o e s ta b e le cim e n to de lib e rd a d e ,
justiça e paz não são apenas co nquistas intelectuais mas ta m b é m
e s p iritu a is e m orais, e x ig in d o um a valo riza çã o da p e rs o n a lid a d e
hum ana com o um to d o , a " in te g rid a d e não-m ediada de s e n tim e n to e
p e n sam ento", e c o n s titu in d o um e te rn o d e sa fio para o h o m e m ,
de e m e rg ir do abism o da fa lta d e se n tid o e d o s o frim e n to para ser
re n o va d o e re stabe lecido no to d o de' sua vid a .

P erspectivas d o M u n d o está e n g a ja d o com 0 re co n h e cim e n to de


que todas as g ra ndes m udanças são p recedidas p o r uma vig o ro s a
reavaliação e reorg anizaçã o in te le c tu a l. Nossos autores estão cônscios
de que o pecado da h y b ris p o d e ser e v ita d o ao se m o stra r q u e o
p ró p rio processo c ria tiv o não é um a a tiv id a d e liv re , se e n te n d e m o s
liv re com o sendo a rb itrá rio e não re la c io n a d o com a lei cósm ica. Isso
p o rq u e o processo c ria tiv o na m e n te hum ana, o processo e v o lu tiv o
na natureza orgânica e as leis básicas d o â m b ito in o rg â n ic o p o d e m

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ser sim ple sm ente expressões va ria d a s d e um processo fo rm a tiv o
u n ive rsa l. D estarte P erspectivas d o M u n d o espera m o stra r que, apesar
das tensões excepcionais d o presente p e río d o apo ca líp tico , tam bém
está em ação um m o v im e n to e xce p cion a l em d ireção a uma u n id a d e
com pensadora que não p ode o b lite ra r a fo rça m o ra l ú ltim a que
p e rv a d e o un iverso, aquela força mesm a d e que to d o esforço hu­
m a no fin a lm e n te d epen de . Dessa m aneira nós podem os v ir a co m p re ­
e n d e r que existe um a in d e p e n d ê n cia d o crescim ento e s p iritu a l e
m e n tal q u e , mesm o c o n d ic io n a d o p o r circunstâncias, nunca é d e te r­
m in a d o pelas circunstâncias. A ssim a g ra n d e p le to ra de conhecim en­
to hum ano pode ser corre la cio n a d a com um a in tu içã o na natureza
da natureza hum ana, ao ser sin to n izad a com a am pla e p ro fu n d a
gam a d o pensam ento h u m a n o e da e x p e riê n c ia hum ana. Porque o
q u e fa lta não é o co nhe cim e n to da e s tru tu ra d o u n ive rso , mas uma
consciência da q u a lita tiv a s in g u la rid a d e da v id a hum ana.

E fin a lm e n te , é a tese desta Série, q u e o hom em se encontra


n um processo de d e s e n v o lv im e n to de um a nova consciência, a qual,
õpesar de seu aparente c a tiv e iro e s p iritu a l e m o ra l, pod e e v e n tu a l­
m e n te e le v a r a raça hum ana acima e além d o m edo, da ig n o râ n cia ,
b ru ta lid a d e e isolam ento que a acossam a tu a lm e n te . É a essa cons­
ciência nascente, a esse conceito de ho m e m p ro v e n ie n te d e uma
vis ã o fresca da re alida de que Perspectivas d o M u n d o é de d icad o .
Observações lntrodi/l«'irIn■. ........................................
I. O Que é a Fó . ......................................
1. Fé como cr.!.ii p i.', m /I i Io p o r a q u ilo q u e nos toca
in c o n d ic io n o lin o n lii ....................................................... 5

2. Fé como ato iln | n-•.m ., 1 In ln ira ................................. 7

3. A fonte da fé ...................................... ]q
4. Fé e dinâm ica ch> ungindo ..................................... 1 3

5. Fé e d ú v id a ...................................... 1 5

6 . Fé e com unhSo ........................................... 1 9

II. O Q ue a Fé não ó . ............................ 24


1. A distorção da (<*> to rn o « lo d o co n h e cim e n to . . . 24
2. A distorção da li> i m iin n lo da v o n ta d e ............. 27
3. A distorção da ( r m iiiu •.n iillm o fito ........................ 29
III. Os Símbolos da Fó 3 q
1. O conceito de sím b o lo ................................. 3 0

2 . Os sím bolos r e lig lo im .............................. 3 2

3. Sím bolo e m ito . . . .............................. 3 5

IV. Tipos de Fé ................. 3 ç


1. Os elem entos da fó t< mi« dlnA m lca ..................... 39
2. Os tipos o n to ló g ico s de !>'■ ...................... 4 1

3. Os tipos m orais d o fó ...................... 4 5

4. A u nidade dos tip o s do In ...................... 4 8

V. A V erdade da Fé ................ 5 q
1. Fé e razão ............................................................. 5 q
2. A verdade da fé e a v c rd a d n (.Innlfflcn ............... 5 3

3. A verdade da fé e a vorcladc lilitó r lc a ................. 5 7

4. A verdade da fé e a v e id a d n fllo n ó flc n ............ 59


5. A verdade da fé e seur. « rilA ilo 1. ....................... 63
VI. A V ida da Fé ...........................................
1. Fé e coragem ....................................................... 6 5

2. A fé e a integração da pc-.-.oa ................. 6 8


3. Fé, am or e ação ................. 7 2

4. A com unhão de fc r mm \ 1 0 1 iim*, ,l c• h1 1 r<**.stjo . 76


5. O encontro e n tre com unhôos do I T* .................. 7 5

Conclusão ............................................................... g]

A p o ssib ilid a d e da fé e seu s ig n ific a d o no p ro to n l« . . . . 81


E pílogo ........................................................................... no

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