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Mauro Odoríssio
SALMOS E CÂNTICOS BÍBLICOS
Cânticos do Antigo e do Novo Testamento
IVº Volume
Introdução
Falou-se, no 1º Volume, que tomaríamos por Salmo as 150 composições poéticas contidas
no Livro que os acolhe. Mesmo assim, não se deixou de observar que outros cânticos, igualmente
inspirados, estavam disseminados por toda a Escritura: pág. Moisés canta após passar a pé enxuto
o mar Vermelho, os profetas se revelam poetas nos momentos mais elevados da inspiração. Daniel
e companheiros exultam em plena fornalha pela vitória sobre os inimigos; hinos misteriosos da
liturgia celeste chegam aos humanos, pelo Apocalipse.
Alguns cânticos são bem conhecidos e usados pelas comunidades cristãs. Basta citar, como
exemplo, o tão rezado e cantado Magnificat. Outros vão tomando o merecido lugar no coração das
pessoas piedosas e sem suas celebrações. Bom número deles foram selecionados pela Liturgia das
Horas, que cada vez mais chega às mãos, também, dos cristãos leigos. São flores colhidas nos
exuberantes canteiros das páginas das Escrituras, a começar do Êxodo até o Apocalipse. Vale a
pena sentir seu perfume.
O presente volume, comentando essas preciosidades literárias, fontes de oração duplamente
inspiradas, espera prestar serviço ao número cada vez maior dos que estudam tão belas páginas,
aos que rezam a Liturgia das Horas e que mais participam das celebrações comunitárias.
Mais uma vez queremos deixar públicos nossos agradecimentos aos caros Rui March e Ir.
Maria Inês Marchesi CP que, além do incentivo, enriqueceram o texto com observações, idéias,
revisão, testando as inúmeras citações bíblicas.
O Autor
ÊXODO 15,1-6.8-13.17-18
O Canto na vida
Embora seja um Livro à parte, o Êxodo está intimamente vinculado ao Gênesis, ao qual se
refere, como também aos demais que o seguem imediatamente, nos quais encontra continuidade. É
como que parte de um todo, o Pentatêuco, para não se falar no Exatêuco, com a inclusão de Josué:
Gn, Ex, v, Nm, Dt e Js. Não é o caso de se falar das partes componentes do Livro, ou das diversas
tradições ou documentos autônomos, existentes antes da redação final; esta teria acontecido pelos
anos 400 aC.
Num contexto narrativo e legalista, emerge o chamado “cântico do mar”, celebrando a
passagem da escravidão para a liberdade: Ex 14,15ss. O Hino, embora bem posterior, se refere a
algo extraordinário que Javé operara em favor dos israelitas, no séc. XIII aC. O caráter litúrgico do
Canto mostra que podia ser usado nas grandes festas, como a páscoa e tabernáculos.
A Poesia é Hino (1º Vol. pág. ), com acentos de Ação de Graças: 1º Vol. pág. .
Divisão
Introdução
Propósito de cantar o Senhor: vs. 1-2.
Corpo
O Senhor é descrito como guerreiro poderoso contra os inimigos: vs. 3-7.
É Javé quem controla o mar: v. 8,
Duelo entre os egípcios e o Senhor: vs. 9-10.
Narração da grandeza e da bondade divinas: vs. 11-13.
Conclusão
Estabelecimento do povo e reinado eterno de Javé na Palestina: vs. 17-18.
Recursos literários
O chamado epinício de Moisés é um dos cantos mais belos da Escritura. O texto litúrgico da
travessia do mar Vermelho, em estilo narrativo (Ex 14,21-31), é a base para um texto altamente
lírico, com cores epopéicas. De acordo com a ação de Javé, com a movimentação das águas, das
tropas, do povo, o ritmo é variado, predominando a simetria quaternária: 4 + 4 (1º Vol. pág. )
O Poeta coloca o Canto nos lábios de Moisés, que cantaria no lugar do povo. Uma a 1ª
pessoa do singular. Depois da introdução, o leitor é conduzido para três ambientes distintos: mar
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Vermelho onde os egípcios foram derrotados (vs. 3-12); deserto, onde povos se atemorizaram ante
o poder divino (vs. 13-16), e finalmente a terra do repouso: vs. 17-18.
Inicialmente o Cantor usa a 1ª pessoa singular e, fala de Javé, servindo-se para isso da 3ª
pessoa singular: vs. 1-5. A partir do v. 6, dialoga ainda com o Senhor, trocando a 3ª pela 2ª pessoa.
A partir do v. 11, continua dialogando com o Senhor, mas na verdade faz um sermão a todos os
ouvintes, exaltando a grandeza divina. Por fim, os vs. 17-18 mostram Deus reinando no meio do
povo que foi conduzido para a santa morada.
Notas exegéticas
1
Ao Senhor quero cantar, pois fez brilhar a sua glória: precipitou no mar Vermelho o
cavalo e o cavaleiro!
De antemão o Cantor diz porque cantará o Senhor: ele se manifestou salvificamente:
poderoso fez brilhar a sua glória: Ex 16,7. O mar Vermelho, que separa a escravidão da liberdade,
deixou passar os oprimidos, engolindo os opressores: cavalos e cavaleiros (nos LXX: cavalos e
carros).
2
O Senhor é minha força, é a razão do meu cantar, pois foi ele neste dia para mim
libertação!
Falando em nome do povo, o Cantor se coloca como o pobre de Javé: não tendo em quem
confiar, põe sua segurança em Deus. Ele é sua força. Num lado estão os que confiam nos carros e
nos cavalos; noutro, os que colocam sua segurança em Javé: Sl 20 (21),8.
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O Senhor é um Deus guerreiro, o seu nome é “Onipotente”:
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os soldados e os carros do Faraó jogou no mar; seus melhores capitães afogou no mar
Vermelho,
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afundaram como pedras e as ondas os cobriram.
Diferentemente de tantos outros povos que tinham deuses da guerra, o Cantor apenas afirma
que Javé tomou partido em favor dos judeus, com os quais faria uma aliança. Pouco antes, ao sair
da escravidão, os israelitas receber o nome divino como memorial: Ex 3,13-14. Uma vez
invocado, pelo seu nome, o Senhor se fazia presente, mas para livrar, para libertar, para conduzir.
Em virtude desse nome, a força opressora foi engolida pelas ondas. Tudo vai como uma pedra, isto
é, rapidamente, para as profundidades onde morava o monstro marinho Leviatã: Is 27,1.
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Ó Senhor, o vosso braço é duma força insuperável! Ó Senhor, o vosso braço
esmigalhou os inimigos!
“O Senhor nos libertou do Egito com mão poderosa e braço estendido”: Dt 26,8. Esta
expressão é bastante freqüente no Antigo Testamento e indica o poder divino sempre pronto para
libertar os israelitas e para punir os inimigos, se necessário. Agora se diz a mesma coisa, falando
em braço forte. A idéia fica mais clara no v. 7 omitido pela Liturgia das Horas.
8
Ao soprar a vossa ira amontoaram-se as águas, levantaram-se as ondas e formaram
uma muralha, e imóveis se fizeram em meio ao mar as grandes vagas.
O vento impetuoso soprava sobre as águas, na criação, e daí foram surgindo o céu, os mares
e a terra: Gn 1,1ss. Fala-se, agora, do sopro da ira (no original = sopro das narinas), pois a pessoa
excitada, irada, realmente funga. A expressão, além de significar a ira celestial que agita as águas
salvadoras para os judeus, mortíferas para os soldados de Faraó, pode trazer também uma ponta de
ironia: não é necessário tanto, para aniquilar a pretensão humana.
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O inimigo tinha dito: “Hei de segui-los e alcançá-los! Repartirei os seus despojos e
minh’alma saciarei; arrancarei da minha espada e minha mão os matará!”
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Mas soprou o vosso vento, e o mar o recobriu; afundaram como chumbo entre as
águas agitadas.
É enriquecedor colocar frente a frente os dois versículos. Evidencia-se, de um lado, o projeto
humano. Os seis verbos sucessivos denotam a autoconfiança egípcia: seguir, alcançar, repartir,
saciar-se, arrancar, matar. A tudo se antepõe o vento divino. A ironia do versículo fica mais
evidenciada.
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Quem será igual a vós, entre os fortes, ó Senhor? Quem será igual a vós, tão ilustre
em santidade, tão terrível em proezas, em prodígios glorioso?
O autor está interessado em descrever o possível milagre das águas que se dividem,
formando alas acolhedoras para o povo recém liberto, e armando cilada para o povo escravocrata.
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Toda sua atenção, todo seu cuidado é exaltar e proclamar Javé, como o maior de todos os deuses,
que em nosso modo de pensar significa, o único.
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Estendestes a vossa mão e a terra os devorou;
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mas o povo libertado conduzistes com carinho e o levastes com poder à vossa santa
habitação.
O braço estendido e a mão poderosa de Deus (Dt 26,8), trouxe para seu regaço o povo que
elegera: Ex 19,4-6. Agora com o mesmo carinho, os eleitos são conduzidos a uma pátria que se
torna também a morada do Senhor, na terra. Os egípcios que receberam tantos sinais (Ex 7,1-
11,10; 12,19-36), em vista de sua impenitência, são tratados com rigor.
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Vós, Senhor, o levareis e o plantareis em vosso monte, no lugar que preparastes para a
vossa habitação, no Santuário construído pelas vossas próprias mãos.
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O Senhor há de reinar eternamente, pelos séculos!
O Hino que descreveu um ambiente bastante agitado: o povo que foge da escravidão,
soldados que perseguem, o mar que se move inusitadamente, a condução pelo deserto, superando
povos hostis, entra num clima diferente. Agora, reina a paz, a serenidade: Israel, qual videira
transplantada, é estabelecido na região montanhosa (em vosso monte) da Terra Santa: Is 5,1ss. De
sua parte, o Senhor lança tenda no meio do seu povo, e aí se instala o reino e inicia o reinado de
Deus.
Ensinamento
O Salmista, mesmo com toda a liberdade poética e celebrativa, não exagera ao descrever a
ação maravilhosa de Deus em benefício do povo. Narrando, não enfatiza o portentoso da ação, ou
a exterioridade do fato, mas sim, o Deus poderoso e santo, o Deus misericórdia, isto, mesmo
abordando um fato importantíssimo na história salvífica dos justos.
Sair da terra da escravidão foi algo fundamental na reflexão judaica. Indissoluvelmente
ligado a esse fato, está o da travessia do mar Vermelho; ambos constituem uma unidade. O mar
Vermelho, porém, está entre duas realidades importantíssimas: a libertação de um lado, e o
ingresso na Terra Prometida, de outro. Um é o ponto de partida e o outro, de chegada.
No momento de ingressar na pátria, novamente os judeus precisariam atravessar as águas
com os pés enxutos: Js 3,14-17. “Atravessar as águas” passou a ter um sentido especial para eles:
ode indicar um processo libertário. A travessia do mar Vermelho foi um fato na história do povo,
diz o autor, mas que tem significado de caminhada com Deus, com os irmãos. Na vida pessoal, na
vida comunitária urge passar sempre pelas águas: deixar a escravidão, adentrando cada vez mais a
terra da liberdade plena, definitiva e para todos.
Oração
Venturosamente, meu Deus, tantas pequenas coisas colaboraram para que, desde pequeno,
passasse a olhar com olhos especiais o batismo: a especial data escolhida, vigília pascal, que
depois soube ser tão significativa, o manto batismal religiosamente conservado, a veneração pelos
padrinhos.
Mais tarde me foi dado conhecer o significado e a importância do “passar pelas águas”.
Encarei, então, tudo sob novas luzes: não era questão de um simples rito, o que acontecera. Como
o povo judeu, fui descobrindo minha vida em vosso coração amoroso, forte e santo, a conduzir-
me, por tantos caminhos, à vossa libertação: v. 13. Compreendi que só em vós devo colocar minha
segurança, razão do meu cantar: v. 2.
Revendo minha vida, descobri o que vossa ira é capaz de fazer contra meus inimigos (v. 8),
precipitando os soldados e os carros do pior dos faraós (v. 4), que sempre projetou alcançar-me,
agarrar-me, repartir meus despojos, matar-me: v. 9.
Inegavelmente, me protegeis em minha travessia pelo deserto. Que por vós seja conduzido
segura e celeremente ao vosso monte, ao lugar preparado para a vossa habitação: v. 17. Que em
minha caminhada eu deixe cada vez mais longe a escravidão do Egito, e torne mais próxima, a
verdadeira Terra Prometida, que em semente já pulsa em meu peito.
Senhor, que vós reinais eternamente, pelos séculos: v. 18.
Resumo e reflexão
O Senhor fez o povo passar maravilhosamente pelas águas, quando da saída do Egito.

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Quando da entrada na Terra Prometida, a arca da aliança, postada no meio do leito do
Jordão, permitiu que os israelitas o atravessassem a pé enxuto.
O Senhor há de reinar eternamente, pelos séculos.
DEUTERONÔMIO 32,1-12
O Canto na vida
O Canto ocupa a parte final do Deuteronômio que aborda a despedida e a morte de Moisés:
Dt 31-34. O Livro passou por sucessivas edições, recebendo acréscimos e enriquecimentos. A
redação da parte na qual está o Canto, é da época do Cativeiro da Babilônia: 586-538 aC
Este dado é digno de se levar me consideração, uma vez que é fruto de reflexão em um
momento dificílimo na história da salvação. Tudo parecia perdido para os judeus. Teriam o fim
comum a tantos povos: desaparecer sem deixar sinal.
Na ocasião, porém, é feita uma releitura da história, para dar-lhe continuidade,
transformando-a em história salvífica. Narrar história, para os judeus, era fazer com que ela
continuasse acontecendo. O Canto pode ser considerado como um Hino ao Todo Poderoso: 1º Vol.
pág. .
Divisão
Introdução
Habitantes do céu e da terra são convocados para testemunhar Javé: vs. 1-4.
Corpo
Culpabilidade do povo: vs. 5-6.
Recordação dos benefícios divinos em prol do povo amado: vs. 7-11
Conclusão
Só o Senhor foi guia dos judeus: v. 12.
Recursos literários
O Deuteronômio se destaca entre os livros do Pentateuco. As frases são melhor elaboradas,
bem estruturadas, ritmadas. Supera o peso que costuma acompanhar os textos legislativos e
narrativos, impregnando-os com calor, paixão, e muita espiritualidade.
O Canto não foge à regra. É uma peça harmoniosa num contexto também harmonioso, ou
um salmo didático com temas sapienciais (vs. 1-3), hínicos (v. 4), processual (vs. 5-6), históricos:
vs. 8-10. Há, portanto, uma variedade de sabores. O Poeta se revela dotado de recursos literários
pelos numerosos paralelismos que usa, e paralelismos diversificados. O v. 2 é digno de ser
mencionado, como exemplo. Para dizer e enfatizar que a palavra divina é penetrante, serve-se do
exemplo da chuva, do orvalho, da torrente e dos aguaceiros que caem do alto, tudo irrigando.
Além do mais, era um recurso bem conhecido, portanto, ilustrativo para todos.
Notas exegéticas
1
Ó céus, vinde, escutai; eu vou falar, ouça a terra as palavras de meus lábios!
O céu e seus habitantes, a terra e seus moradores, são convidados a ouvir a palavra divina. É
mais que convite; trata-se de uma convocação para uma sessão que se instala no tribunal. Todos
são convocados como testemunhas.
2
Minha doutrina se derrame como chuva, minha palavra se espalhe como orvalho,
como torrentes que transbordam sobre a relva, e aguaceiros a cair sobre as plantas.
A palavra de Deus a ser proferida por Moisés, é viva e eficaz, é penetrante como espada de
dois gumes: Hb 4,12. Esta idéia aparentemente simples, não somente é rica, como merece ser
enfatizada, e o é, comparação quádrupla, onde são usados elementos vitais para a agricultura,
máxime, para o palestino: chuva, orvalho, torrente e aguaceiro. Quem vive da agricultura e do
pastoreio, em terras áridas, compreende sobremaneira o vigor das imagens.
3
O nome do Senhor eu vou invocar; vinde todos e daí glória ao nosso Deus!
Está instalado o tribunal, e em nome do Senhor. Que se acheguem as testemunha favoráveis
a Javé, para glorificá-lo, isto é, para justificá-lo, para depor a favor.
4
Ele é a Rocha: suas obras são perfeitas, seus caminhos todos eles são justiça; é ele o
Deus fiel, sem falsidade, o Deus justo sempre reto em seu agir.
Depoimento favorável a Deus: se as coisas mudaram para pior, não é dele a culpa, pois ele é
sempre constante, é veraz, é fiel a si e em si mesmo. Nele não é possível a falsidade, nem mesmo a

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mudança. É de sua natureza não mudar. Por isso é a “Rocha”. Este título ocorre outras vezes no
capítulo, como um título predileto ao Patriarca: vs. 15.18.30.31.37.
5
Os filhos seus degenerados o ofenderam, esta raça corrompida e depravada!
Acusação contra os judeus. O que aconteceu de pior é devido à infidelidade do povo. Apenas
daí poderia vir. Acusações graves contra os israelitas degenerados, corrompidos, depravados.
6
É assim que agradeceis ao Senhor Deus, povo louco, povo estulto e insensato? Não é
ele o teu Pai que te gerou, o Criador que te formou e te sustenta?
Nova acusação contra o povo eleito: ingratidão. Trocou o Senhor por ídolos. Por isso é um
povo estulto, louco, vazio. Desdenhou Deus que, além de Criador, é também Pai.
7
Recorda-te dos dias do passado e relembra as antigas gerações; pergunta e teu pai te
contará, interroga, e teus avós te ensinarão.
Tem início o tema principal. E começa com um desafio: sejam interrogados os antepassados:
alguém poderia depor contra Deus? Teria feito algo errado? Incompleto? Deixou de fazer o bem?
8
Quando o Altíssimo os povos dividiu e pela terra espalhou os filhos de Adão, as
fronteiras das nações ele marcou de acordo com o número de seus filhos;
9
mas a parte do Senhor foi o seu povo, e Jacó foi a porção de sua herança.
Fala-se da especial eleição do povo judaico. Quando da criação, os povos receberam suas
terras, e foram divididos, conforme os anjos disponíveis ( = filhos de Deus ou deuses, no original).
Segundo Dt 4,19; 7,6, os povos todos tinham anjos tutelares, enquanto que os judeus eram a
porção e a herança de Deus: Ex 19,5.
10
Foi num deserto que o Senhor achou o seu povo, num lugar de solidão desoladora;
cercou-o de cuidados e de carinhos e o guardou como a pupila de seus olhos.
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Como a águia esvoaçando sobre o ninho, incita os seus filhotes a voar, ele estendeu as
suas asas e o tomou, e levou-o carregado sobre elas.
Recorda-se a aliança. No deserto, à mercê de tudo e de todos, o povo foi escolhido, amado.
Pela aliança, tornou-se a única entre as demais nações da terra. Tornou-se uma propriedade
particular, uma nação consagrada. Os judeus foram libertados do Egito, não para serem
posteriormente abandonados à própria sorte, e sim, para um encontro especial com Javé: Ex19,1ss.
12
O Senhor, somente ele, foi seu guia, e jamais um outro deus com ele estava.
Javé lançou tenda no meio do povo, durante a peregrinação pelo deserto. Por isso, os judeus
caminhavam ou acampavam, conforme a coluna de fogo ou a glória de Deus indicavam: Nm
9,15ss.
Ensinamentos
O Cântico não foi escrito por Moisés, pois nele se desenvolvem idéias muito posteriores ao
Santo Patriarca. Todavia, ele é inteligentemente colocado nos lábios do grande Servo de Deus, e
precisamente nos últimos dias de sua vida. Conduzira os israelitas até as portas da Terra
Prometida, por ele contemplada, agora, do Nebo, antes de morrer. Passa, então, as derradeiras
recomendações com suas idéias fundamentais: Deus é fiel e bondoso, e os israelitas sempre foram
filhos degenerados. Com isso se visava levá-los à obediência da lei.
O interessante é que se coloca a lei em contexto amoroso, pois recém libertos do Egito, os
judeus foram tratados com carinho, tornando-se pupila dos olhos divinos.
Séculos depois, grupos passaram a cultuar a lei como lei, fora do contexto de eleição do
contexto de amor, do contexto de aliança. Surgiu o legalismo que se preocupava apenas com a
exterioridade, com a observância do preceito, e não com seu cumprimento. Isto degenerou no
chamado farisaísmo.
Então fica claro que a lei, fruto do amor, deve ser acolhida e vivida também amorosamente.
Assim, deixa de ser peso, deixa de ser imposição; torna-se fruto de mútua aceitação em aliança.
Foi o que propôs Jesus em seu confronto com o legalismo farisáico.
Oração
Cedo, Deus amado, me foi dado acolher a vossa palavra que a mim chegava nos mais
variegados modos. Vós sabeis com que entusiasmo e interesse me dedicava à leitura da História
Sagrada, chegando a esquecer meus folguedos infantis e, como não, até mesmo minhas pequenas
obrigações. Ela me era realmente a chuva derramada num coração desarmado e sem
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impedimentos: v. 2. Tenho certeza de que eu o considerava, se não em profundidade, ao menos na
pureza de criança, como minha rocha, o meu Deus justo e fiel: v. 4.
Depois vieram novas descobertas. Considerei conquistas minhas o que eram dons vossos.
Dons por mim absolutizados, indevidamente apropriados. Cheio de empáfia, achei que me
bastava. Já não éreis mais a minha Rocha. Nem foi necessário tanto para que aprendesse
amargamente como era limitado.
Agora, porém, bastante adiantado na estrada da minha vida, ouço o apelo do Santo Patriarca,
para que me coloque ante o vosso tribunal. Que ouça vossa argumentação.
Quem sou eu, Divino Juiz, para contestar vossas palavras, vossas acusações? Sim, fui objeto
do vosso amor, dos vossos cuidados, do vosso carinho: v. 10.
Sem o menor merecimento meu, não de uma vez para sempre, mas a cada instante do dia,
estendestes vossas asas sobre mim, acolhendo-me, conduzindo-me: v. 11. Eu, porém, fui louco e
insensato, comportei-me sempre como filho degenerado. Fui ingrato: vs. 5-6.
Não obstante tudo, quero contar sempre com vosso amor, quero que sejais meu único guia.
Não permitais que siga outros deuses (v. 12), pois só vós sois minha rocha, só a vós quero
glorificar: vs. 3-4.
Resumo e reflexão
O povo é desafiado a mostrar onde Deus errou, onde deixou de fazer o bem.
Jacó passou a noite toda lutando contra Javé que lhe aparecera como em forma humana.
O Senhor, somente ele foi e é o guia do povo.
1 SAMUEL 2,1-10
O Canto na vida
Samuel, profeta e juiz, ocupa um lugar central na conturbada história judia. Nasceu no
período tribal, tendo que preparar, embora a contragosto, a dificílima passagem para a monarquia:
1Sm 8,1ss. Seu nascimento também foi difícil, pois Ana, sua mãe, era estéril. Como a mãe de
tantos patriarcas. Depois de lágrimas e orações a brava mulher conseguiu o desejado filho: 1Sm
1,1ss.
O Hino (1º Vol. pág. ) está nesse contexto de alegria, com Ana agradecendo o dom recebido.
O livro é uma coletânea de muitas tradições que foram ajuntadas e enriquecidas no decurso
do tempo. O Canto é colocado nos lábios de Ana (Deus agracia), porém é bem posterior, pois nele
se descobrem elementos monárquicos: 1Sm 2,10.
Divisão
Introdução
Incontidas palavras de louvor: v. 1.
Corpo
Exaltação à santidade e à onisciência de Deus: vs. 2-3.
Deus forte e poderoso exalta os humilde e abate os soberbos: vs. 4-5.
Javé é condutor da história: vs. 6-8.
Tem vez perante o Senhor apenas quem nele confia: v. 9.
Conclusão
Súplica pelo rei e por seu reinado: v. 10.
Recursos literários
O Hino, conhecido como o canto de Ana, por outros é chamado de o Magnificat do antigo
Testamento. Fala do presente, agradecendo a Deus pelo dom do filho, mas ao mesmo tempo,
projeta o futuro: o Senhor é exaltado pelo que fez, preparando sempre o tempo messiânico. Retrata
a inata esperança de Israel.
A Poesia começa com palavras de exaltação a Deus; o pouco simpático “eu” é substituído,
segundo a sensibilidade semita, por meu coração, minha força ou minha fronte: v. 1. A seguir se
sucedem três passos. O primeiro (vs. 2-5) canta o Senhor como santo e onisciente. Com esses
atributos organiza tudo sabiamente, abatendo o soberbo e exaltando o humilde. O segundo (vs. 6-
7) está intimamente vinculado ao final do primeiro: Javé é onipotente: tudo dispõe. Tanto eleva
como abate, não para demonstrar poder, mas para organizar o mundo. O terceiro (vs. 8-9) também
está bem vinculado ao tema anterior para, a seguir, falar em Deus como o fundamento do
universo, o que dirige os passos humanos.
6
7
Termina com uma prece em favor do rei, constatando, a vitória final do reino davídico.
Notas exegéticas
1
Exulta no Senhor meu coração, e se eleva a minha fronte no meu Deus; minha boca
desafia os meus rivais porque me alegro com a vossa salvação.
A exultação é no Senhor e não ante ele, o que é auto-afirmação, prepotência. Ainda é nele
que ele eleva a minha fronte, modo singelo de colocar toa a capacidade no Senhor. O original, em
lugar de fronte, usa “chifre“, sinal de fortaleza. Os rivais, apresentados como poderosos, são
desafiados pela Cantora, pois no Senhor ela coloca a sua confiança.
2
Não há santo como é santo como é santo o nosso Deus, ninguém é forte à semelhança
do Senhor!
3
Não faleis tantas palavras orgulhosas, nem profiram arrogâncias vossos lábios! Pois o
Senhor é o nosso Deus que tudo sabe. Ele conhece os pensamento s mais ocultos.
O texto original diz que não há rocha como nosso Deus, para dizer que ninguém é imutável e
sólido como ele. Tanta fortaleza é a segurança dos seus. Os insolentes e arrogantes que se
levantam contra ele buscam a própria ruína. Nem chegarão a levantar-se uma vez que o Senhor
tudo conhece, até os mais recônditos pensamentos.
4
O arco dos fortes foi dobrado, foi quebrado, mas os fracos se vestiram de vigor.
Por mais poderosos que sejam os inimigos, terão suas armas aniquiladas. Os fracos, os que
nele confiam, são revigorados.
5
Os saciados se empregaram por um pão, mas os pobres e os famintos se fartaram.
Muitas vezes deu à luz a que era estéril, mas a mãe de muitos filhos definhou.
6
É o Senhor quem dá a morte e dá a vida, faz descer à sepultura e faz voltar.
7
é o Senhor quem faz o pobre e faz o rico, é o Senhor quem nos humilha e nos exalta.
Os que confiam em si mesmos ou nos bens terrenos terão que trabalhar por um pedaço de
pão, enquanto que os pobres serão saciados. Ou, como sugere o texto: nem precisarão trabalhar.
Os desempregados, como as mulheres estéreis, caso de Ana, serão glorificados: 1Sm 1,1-8. Tudo
vem das mãos do Senhor que distribui seus dons a quem quer, e com os critérios que melhor lhe
aprouver. E esses critérios são sempre salvíficos.
8
O Senhor ergue do pó o homem fraco, e do lixo ele retira o indigente, para fazê-los
assentar-se com os nobres num lugar de muita honra e distinção. As colunas desta terra lhe
pertencem, e sobre elas assentou o universo.
Os pobres eram obrigados a encontrar subsistência no lixo da cidade. Era a condição mais
humilhante à qual poderia chegar o ser humano, o Senhor vai aí buscá-lo, mas para exaltá-lo,
colocando-o entre os mais destacados da terra. E quem assim faz é o que criou e organizou a terra.
9
Ele vela sobre os passos dos seus santos, mas os ímpios se extraviam pelas trevas.
Os ímpios perecem ou se perderão nas trevas, enquanto que nada acontece aos justos, por
serem assistidos por Deus.
10
Ninguém triunfa se apoiando em suas forças; os inimigos do Senhor serão vencidos; sobre
eles faz troar o seu trovão, o Senhor julga os confins de toda a terra. O Senhor dará a seu Rei a
realeza e exaltará o seu Ungido com poder.
Jamais se enfatizará sobejamente: o ser humano não se basta. É insanidade tentar construir-
se a si mesmo ou ao mundo sem Deus ou contra ele. Apenas se criará um ambiente impossível
para se viver. Que a segurança humana seja colocada no Senhor. O poder (chifre, no original) do
rei, do descendente de Davi, será elevado. O príncipe era ungido ao assumir o trono, e por isso era
chamado de messias ou cristo ( = ungido). O Cântico, atribuído a Ana começa a vislumbrar o
reinado messiânico a se concretizar em Jesus.
Ensinamentos
O Canto de Ana poderia ser considerado como o de uma beduína que exulta pela felicidade
de ser mãe. O segundo dístico do v. 5 justificaria, ainda mais, se comparado com cânticos
congêneres encontráveis na literatura profana de então. O de Ana vai além; é comum colocá-lo ao
lado do Magnificat. Há, todavia, uma grande diferença: o da mãe de Samuel é menos pessoal para
não dizer que é total a visão de reino divino.
Os judeus, depois da quase necessária mas desastrada passagem do sistema tribal para o
monárquico (Sm 8,1ss) e da dura experiência que tiveram com os seus reis e com os estrangeiros,
7
8
passaram a suspirar pela vinda do verdadeiro descendente de Davi, pela instauração do tempo de
paz e de justiça: Is 11,1ss. A preocupação com a paz e com a fraternidade messiânica perpassa
todos os versículos do Canto. Tudo o que a elas se opõe deve ser destruído.
A visão de Ana é, portanto, messiânica. Vai além de um simples cântico de ação de graças
pelo tão almejado filho que chegou. Ela agradece e louva a intervenção de Deus na história,
principalmente por meio do verdadeiro descendente de Davi. Tanto que pela primeira vez ocorre
na Bíblia o termo “messias”.
Oração
Com tantas crianças do mundo também eu sempre ouvi que sois santo, e que ninguém, ó
meu Deus, é como sois: v. 2. Com que cuidado pronunciava eu, então, o vosso nome, ou até
evitava pronunciá-lo, porque éreis a tudo superior (v. 3), tudo sabendo, penetrando até o íntimo do
meu coração ao qual eu mesmo sentia ter tão pouco acesso: v. 3. Sim, sabíeis tudo, e eu não punha
a menor dúvida, e não queria profanar o vosso nome.
Sabia que podíeis quebrar o arco dos fortes, fortalecer o desvalido. Não duvidava que como
alimentáveis os pássaros dos campos, poderíeis fazer mais e melhor pelos vossos filhos, os pobres,
os famintos: vs. 4-5. Quem ousava duvidar que éreis vós quem dava a vida e a morte, quem
elevava e humilhava (vs. 6-7)? Sim, era inabalável a minha crença de que a terra era sustentada
pelo vosso poder, e em vós o universo repousava: v. 8.
Porém, cheguei também a pensar que muitos poderosos o eram por suas próprias
capacidades e que tantos pobres e famintos o eram pela própria negligência.
Quão distante estava da realidade. Sei, sim, que ninguém triunfa verdadeiramente, apoiando-
se em suas forças: v.10. e é em vós que os pobres e marginalizados se apoiam. Velais, pois, os
passos de vossos santos: v.9. que se imponha cada vez mais a realiza de vosso Ungido: v. 10.
Exultarei, então, em meu coração, e me alegrarei com vossa salvação: v.1.
Resumo e reflexão
É Deus quem dobra os arcos dos fortes e que sacia os famintos.
Às ricas mulheres de Samaria, carregadas de jóias conquistadas com a exploração dos
pobres, o profeta dizia que tais adornos seriam substituídos por algemas e correntes: Os 4,2.
É o Senhor quem dá a vida e a morte.
1CRONICAS 29,10-13
O Canto na vida
Quem sou eu, quem é meu povo para vos fazer estas ofertas, Senhor? Pois tudo o que temos
vem de vossas mãos: 1Cr 29,14. Assim rezou Davi depois da oferta de tesouros para a construção
do templo. O autor, para ressaltar a participação davídica na edificação do santuário que o rei não
pôde construir, fornece números fantásticos: 1Cr 29,1ss. A oração atribuída a Davi seria anterior
ao ano 970 aC., quando morreu. Todavia foi escrita não antes do Cativeiro da Babilônia (586-538),
ou mais precisamente, pelos anos 400-300 aC.
O Canto é um Hino (1º Vol.. pág. .
Divisão
Introdução
Deus é bendito por toda a eternidade por ser quem é: v. 10.
Corpo
A Deus são atribuídas a honra e a glória: v. 11a.
Do Senhor é a realeza: v. 11b.
Todos os benefícios vêm das mãos de Deus: v. 12.
Conclusão
Auto-oferenda e agradecimento davídico: v. 13.
Recursos literários
Brota do peito do Cantou uma profunda interjeição por ser Deus quem é. Ele é eterno, desde
todo o sempre e para sempre: v. 10. Constata, ainda, que o Deus eterno é sumamente grande e
poderoso, tudo lhe pertencendo: . 12. Esta fonte inspiracional transforma o santo em poeta.
Tanto poder e tanto domínio não ficam como que encerrados em limites asfixiantes, em
barreiras acanhadas. Deus se abre ao mundo por ele criado. Tudo vem das mãos divinas: v. 13.

8
9
Ante esta contemplação tão abrangente, conseqüente e lógica, o Cantor se coloca de coração
aberto: eis-nos aqui. Agradece, louva e celebra, sabendo que há fundamento para isto tudo: v. 13.
A contemplação e o louvor são feitos por um místico e poeta, ao mesmo tempo. Nesse
momento ambos se misturam, não se sabendo quem é mais quem. Nada melhor que especial forma
para ilustrar tão profundo conteúdo.
Notas exegéticas
10
Bendito sejais vós, ó Senhor Deus, Senhor Deus de Israel, o nosso pai, desde sempre e
por toda a eternidade.
Poder louvar a Deus, de per si justificaria a existência do ser humano. A oração mais sublime
é a latrêutica: adorar o Senhor por ser ele quem é. O Orante reconhece que Deus, mesmo em sua
grandeza, faz gratuitamente aliança com os israelitas, sendo por isso, o deus de Israel.
11
A vós pertencem a grandeza e o poder, toda glória, esplendor e majestade, pois tudo é
vosso: o que há no céu e sobre a terra. A vós, Senhor, também pertence a realeza, pois sobre
a terra, como rei, vos elevai.
Tendo exaltado a natureza divina, o autor reconhece o senhorio do Criador. Tudo foi por ele
criado, tudo deve proclamá-lo santo: Sl 18 (19), 1ss. A realeza divina deve ser reconhecida por
tudo e por todos.
12
Toda glória e riqueza vêm de vós! Sois o Senhor e dominais o universo, em vossa mão
se encontra a força e o poder, em vossa mão tudo se afirma e tudo cresce.
O mundo criado, o que de bom existe na terra, vem de Deus. Mais que esto está o serviço do
ser humano. A oração atribuída a Davi foi feita depois que o Santo Rei deixara fortunas para a
construção do templo: 1Cr 29,1ss Oferecendo o que foi oferecido, ele reconhece estar apenas
restituindo ao Senhor o que lhe pertence.
13
Agora, pois, ó nosso Deus, eis-nos aqui! E, agradecidos, nós queremos vos louvar e
celebrar o vosso nome glorioso!
Chega-se ao ponto alto da oração: postar-se ante o Senhor em sintonia com o mundo
igualmente orante. É de se reconhecer o devido peso que o Poeta dá aos verbos estar ante Deus,
agradecer, louvar, celebrar o nome divino.
Ensinamentos
Numa visão equivocada de prática religiosa, o ser humano pode imaginar-se proprietário de
tantos bens existentes, pretendendo, com eles, comercializar com Deus. Isto, sem o menor
interesse de conversão e de comunhão com o Pai e com os irmãos. Esta espécie de culto foi
severamente condenada pelos profetas: Is 1,11-17. O Senhor não se interessa por coisas; tudo lhe
pertence. Quer diálogo com corações amáveis. Ele opera suas maravilhas no coração que se abre à
ação da graça. Estas maravilhas, então poderão ser visualizadas, celebradas, alimentadas por meio
do culto.
Oferecendo dádivas, o fiel simplesmente quer, pessoal e comunitariamente, manifestar seus
sentimentos, bem como alimentá-los. Jamais comercializar com a divindade, ou submetê-la a uma
espécie de obrigatoriedade, em força de ritos considerados mágicos. Oferecendo, no culto o fiel
manifesta o desejo de doar-se a si mesmo.
Davi oferecera tesouros inimagináveis: 1Cr 29,1ss. Em oração, após isso, afirma: quem sou
eu, quem é o meu povo para vos fazer estas ofertas, pois tudo o que temos vem de vós, Senhor
(1Cr 29,14))? Cada rito religioso, para não cair no cultualismo, deve ser um modo de dizer: eis-me
aqui, agradecido, louvando, celebrando: 1Cr 29,13.
Oração
Nem saberia dizer como foram meus primeiros passos, meu modo de pensar, em minha
caminhada religiosa, ó meu Deus. Acredito que não fui diferente dos demais. Caminhei em tantas
direções... Cheguei a pensar em pura interioridade religiosa que dispensaria qualquer celebração,
embora as considerasse bonitas. Mesmo sem compreendê-las. Não bastaria apenas o que acontecia
em meu coração?
Estáveis, porém, sempre em meu encalço. Encontráveis em mim um mínimo de boa
vontade. Fui descobrindo a riqueza da comunidade. Então, por vossa graça, aqui estou. Não como
deveria ser, mas aqui estou. Mendigo de vós.

9
10
Quero, agora e sempre, com a pureza de então, mas com a plena consciência de adulto, d
quem teve oportunidade de caminhar, de refletir, de aprender, proclamar: “bendito sejais vós ó
Senhor Deus, desde sempre e por toda a eternidade”: v. 10. Quero ainda, reconhecer, com a
candura de então, que tudo é vosso, quer celeste, quer terrestre. Que a vós pertencem a grandeza e
o poder: v. 11. A vós a realeza deste mundo.
Senhor, reconheço, sim, que de vós vem tudo. Começando pelo mais íntimo de meu íntimo:
v. 12. Quero ainda estar aqui louvando, celebrando o vosso nome glorioso: v. 13.
Resumo e reflexão
Tudo é de Deus, pois dele veio tudo.
O ser humano sempre desejou roubar o fogo divino do Olimpo, diz a lenda. Adão auto-
afirma-se querendo ser como o Criador.
A vós pertencem a grandeza e o poder.
TOBIAS 13,2—11.13-18
O Canto na vida
Como Moisés canta após libertar o povo da escravidão egípcia(Ex 15), o mesmo fazendo
Judite depois de vencer Holofernes (Jd 16), assim faz Tobit, com o bom término da empresa de
seu filho. O canto do piedoso judeu, parte é Ação de Graças (1º Vol. pág. ), parte é de Sião: 1º Vol.
pág. A primeira, com elementos hínicos, vai do v. 1 ao v. 8, e a segunda, do v. 9 ao v. 18.
O Canto praticamente encerra o livro que foi escrito uns dois séculos aC., embora literária e
artificialmente seja localizado após a destruição de Samaria: 722. Na ocasião muitos judeus foram
levados para Nínive. Lá sonham com a querida Jerusalém, conforme relata o final do Canto.
As versões variam sensivelmente, dependendo dos textos escolhidos, uns são mais longos,
outros, mais breves. O texto seguido é o apresentado pela Liturgia das Horas que também
apresenta variações.
Divisão
Tb 13,1-18 é um único canto que a Liturgia das Horas divide de diversas maneiras e com
traduções ligeiramente alteradas, pode ser assim considerado:
Introdução
Proclamação da grandeza do senhor e apresentação do tema: v. 2.
Corpo
O povo judeu foi disperso para narrar a glória divina: vs. 3-4.
A dispersão é fruto do pecado. É necessário converter-se e glorificar a Deus: vs. 5-6.
Propósito de alegrar-se no Senhor e de glorificá-lo: vs. 7-8.
Jerusalém também foi castigada pelos pecados: v.9 .
Convertida, será reconstruída e brilhará entre as nações: vs. 10-11.
Imprecação contra os destruidores da Cidade Santa: v. 12.
Jerusalém exultará pelos filhos e será feliz quem a ama: vs. 13-14.
Louva-se o Senhor que libertará e reconstruirá Sião: vs. 15-17.
Conclusão
Jerusalém reconstruída exalta Javé: v. 18.
Recursos literários
O Cantor é seguramente um piedoso judeu que vive na Diáspora, após o retorno da
Babilônia (538), e que, para levar conforto e esperança aos irmãos, coloca-se como um dos
exilados após a destruição do Reino Norte: 722 aC, assim, dá autoridade à sua profecia, ao seu
ensinamento: Jerusalém será reconstruída, e o sofrimento do exílio é fruto do pecado. Este terá
fim. O sofrimento de outrora passou, passará também o presente.
O deslocar-se no templo e no espaço, recurso usado pelo Autor, é um engenho literário
inteligente para fazer com que sua Poesia atinja o objetivo: confortar, levar esperança.
A Poesia é feliz em seu objetivo de orientar e de encorajar. Inicialmente mostra que o
sofrimento presente é fruto do pecado passado. Mas não se sofre em vão; por intermédio dele vem
a purificação e a difusão da salvação: vs. 1-10. Que os ânimos se levantem: Jerusalém reconstruída
acolherá seus filhos e tornar-se-á atração para todos os povos: vs. 11-18. O Autor é, portanto, um
escritor de grandes recursos literários.
Notas exegéticas
10
11
2
Vós sois grande, Senhor, para sempre, e vosso reino se estende nos séculos! Porque vós
castigais e salvais, fazeis descer aos abismos da terra, e de lá nos trazeis novamente: de vossa
mão nada pode escapar.
Não obstante estar vivendo na provação, o Cantor exalta o Senhor. Justifica o agir divino ao
punir o seu povo. Quem pune o faz em vista da conversão, e providencia uma alegria sem fim: Br
4,28-29. Prepara os corações ao que será dito na Poesia.
3
Vós que sois de Israel, dai-lhe graças e por entre as nações, celebrai-o! Senhor
dispersou-vos na terra
4
para narrardes a sua glória entre os povos, e fazê-los saber, para sempre, que não há
outro Deus além dele.
A dispersão dos judeus pelos diversos países deve ser motivo para ação de graças e de
louvores. É apresentada a primeira razão: Javé será conhecido como o único Deus, e sua glória se
difundirá entre as nações. Assim aconteceria com a perseguição aos cristãos: abandonando
Jerusalém, levaram o Evangelho a outros lugares, a outros povos: At 8,1-8. Os exilados se tornam
portadores da luz.
5
Castigou-nos por nossos pecados, seu amor haverá de salvar-nos. Compreendei o que
fez para nós, dai-lhe graças, com todo o respeito!
Consoante à pregação profética se afirma que as provações pelas quais passa o povo são
frutos do pecado. O castigo não é definitivo, pois quem fere, igualmente cura (Jó 5.18). e sua ira
dura pouco: Sl 29 (30),6. O Senhor é digno de louvor, pois é misericordioso.
6
Vossas obras celebrem a Deus e exaltem o Rei sempiterno! Nesta terra do meu
cativeiro, haverei de honrá-lo e louvá-lo, pois mostrou o seu grande poder, sua glória à nação
pecadora! Convertei-vos, enfim, pecadores, diante dele vivei na justiça; e sabei que, se ele
vos ama, também vos dará seu perdão!
Ao judeu piedoso e de visão iluminada cabe louvar o Senhor não apenas nos átrios o
santuário, mas também no exílio, punindo, Javé continua manifestando poder, mas também o seu
amor misericordioso. O Senhor deve em todos os lugares ser exaltado, glorificado.
7
Eu desejo, de toda a minh’alma alegrar-me em Deus, Rei dos céus.
8
Bendizei o Senhor, seus eleitos, fazei festa e alegres louvai-o!
Tobias mostra seus propósitos de louvar o Rei do Céu, animando os ouvintes a fazê-lo.
9
Jerusalém, cidade santa, o Senhor te castigou, por teu mau procedimento, pelo mal
que praticaste.
10
Dá louvor ao teu Senhor, pelas tuas boas obras, para que ele, novamente, arme, em ti,
a sua tenda. Reúna em ti os deportados, alegrando-os sem fim! Ame em ti todo infeliz pelos
séculos, sem fim!
Jerusalém está arrasada porque também pecou. A cidade, aqui é tomada por seus habitantes,
por seus dirigentes. Cabe a ela imitar os demais judeus, para que seja reconstruída e novamente
habitada.
11
Resplenderás , qual luz brilhante, até os extremos da terra; virão a ti nações de longe,
dos lugares mais distantes, invocando o santo nome, trazendo dons ao rei do céu. Em ti se
alegrarão as gerações das gerações e o nome da Eleita durará por todo o sempre.
Uma vez convertida, a Cidade Santa será reanimada por enormes multidões. Todos os povos
a ela acorrerão, atraídos por luz fulgente, concretizando Is 49,6.
12
Malditos, todos os que te falarem com dureza. Malditos, todos os que destruírem e
derrubarem teus muros, e todos os que abaterem tuas torres e incendiarem tuas casas.
Abençoados, , porém, todos os que te temerem para sempre.
Versículo imprecatório omitido pela Liturgia das Horas. São amaldiçoados os que destruírem
ou danificarem Jerusalém, não tanto como cidade material, mas pelo que ela contém, e pelo que
ela significa.
13
Então, te alegrarás pelos filhos dos teus justos, todos unidos, bendizendo ao Senhor, o
Rei eterno.
14
Haverão de ser ditosos todos quantos que te amam, encontrando em tua paz sua
grande alegria!

11
12
Mais uma vez a profecia se cumprirá: os judeus, embora disseminados pelo mundo como
ossos áridos, serão atraídos por luz fulgente, concretizando Is 49,6.
15
Ó minh’alma, vem, bendize ao Senhor, o grande Rei:
16
libertou Jerusalém das angústias e aflições! Serei feliz, se há de restar alguém de
minha raça, para ver o teu fulgor e louvar o Rei dos céus. Jerusalém, as tuas portas hão de
ser reconstruídas, com safiras e esmeraldas; e todos os teus muros, com pedras preciosas,
com ouro as tuas torres;
17
e as tuas fortalezas, com ouro refinado; tuas praças com brilhantes e com pedras de
Ofir.
O autor prevê a reconstrução de Jerusalém e rejubila. Antevê não apenas a Cidade Santa
histórica, mas também a teológica, pois não faltarão esmeraldas, safiras, pedras preciosas e ouro,
referindo-se às portas e muralhas: Is 60,14-17; Ap 21,10-21. Estes elementos mostram que não
retrata tanto uma realidade física, mas teológica.
18
Tuas portas cantarão as canções de regozijo, cantarão as tuas casas: Aleluia, Aleluia!
Bendito o Deus de Israel! Bendito seja quem bendiz o nome santo do Senhor pelos séculos
sem fim!
Mais que a Jerusalém material, a escatológica exaltará o Senhor, em plena glória, com um
hino de louvor. A Jerusalém celeste é aqui profeticamente vislumbrada.
Ensinamentos
O povo israelita passou pela dura experiência do Cativeiro da Babilônia. Tudo indicava que
Judá, como Israel, estava fadado ao desaparecimento, e que os judeus perderiam a identidade,
como povo singular. Contrariando a previsão de todos, os profetas anunciavam o retorno. O povo
pecador pagara caro seu pecado: Is 40,1ss.
O retorno predito pelos profetas não seria apenas ao espaço físico da cidade, nas antes de
tudo, ao Senhor. O verbo shub (retornar), passou a significar, também, converter-se. Somente os
que se abrissem à ação purificadora de Deus habitariam a verdadeira Jerusalém.
Tb 13,1ss é um ponto de partida para a revelação plena a dar-se na Nova Aliança: serão
habitantes da real Jerusalém, quem bendiz com a vida, e pelos séculos sem fim, o nome do
Senhor: Tb 13,18. Ir a Jerusalém, é antes de tudo uma iniciativa de Deus: apenas ele justifica. Ao
ser humano cabe unicamente abrir-se à ação santificadora do Senhor. A primeira justificação é
dom gratuito de Deus, não dependendo das boas obras: Rm 3,21-26.
A partir daí, sim. Cabe ao ser humano cooperar ativamente com a graça divina, praticando o
bem. Caminhar de conversão em conversão.
Oração
Meu Deus! Não sei que me diziam as palavras “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”
que rezava entre atos de fé, de esperança, sem falar dos Pai Nosso, das Ave Maria. Acredito que
tudo aceitáveis. Não tinha a menor idéia de vale de lágrimas, de caminhar pelo exílio. Tudo era tão
bom, tão belo, salvo pequenos aborrecimentos infantis, que por sinal, eram tão rapidamente
olvidados.
Depois surgiram sonhos, a ponto de parecer que o mundo todo com sua imensidão começava
a ficar-me pequeno. Houve tanto apego, e descobri que com meus descaminhos eu me exilava
cada vez mais da verdadeira pátria. Descobri-me exilado, disperso pela terra: v. 3. Era um
castigado pelo meu próprio pecado (V. 5), e que nesta terra de cativeiro deveria converter-me,
assim como louvar-vos pela verdadeira conversão, descobrindo, ainda, o vosso amor: v. 6.
Descobri-me por vós amado, tendo portanto, a salvação ao alcance de minhas mãos: v. 5. E
mesmo punido, fui compreendendo que vosso castigo era medicinal.
Quero, pela vossa bondade, não obstante minha maldade, em vós alegrar-me (v. 7),
bendizer-vos, festejar e louvar-vos: v. 8 . Quero, mesmo gemendo e chorando neste vale de
lágrimas, narrar vossa glória entre as nações (v. 3), dar meu contributo para a construção da amada
Jerusalém: v. 10. Quero que vossa luz atinja e acolha todos os povos da terra: v. 11.
Agradeço-vos de coração a Jerusalém celestial que para nós construístes (v. 16), e vos rogo:
que nela, possa estar reunido com todos os irmãos: v. 13. Quero, para todo o sempre cantar:
“Aleluia. Aleluia. Bendito o Deus de Israel”: v. 18.

12
13
Resumo e reflexão
Exilado na Diáspora, o piedoso Tobias suspira pela destruída Jerusalém.
Durante séculos, sem pátria, sem governo, sem terra, os judeus celebravam a páscoa,
dizendo ao término: “até o próximo ano em Jerusalém.”
Eu desejo de toda a minha alma alegrar-me em Deus, Rei dos céus.
JUDITE 16,1-2.13-15
O Canto na vida
A leitura de Jd aqui referida reporta-se aos versículos 3-12, por sinal, omitidos pela Liturgia
das Horas. Falam eles dos assírios que, confiados nas miríades de seus exércitos, e dos medos e
dos persas que se propunham devorar Israel. Foram impedidos pela “força” de uma única mulher.
Estranhamente são misturados inimigos de Israel que existiram em épocas muito distantes:
séculos VII e VI antes de Cristo, respectivamente. Logicamente neles estão subentendidos todos
os inimigos do povo de Deus.
Os judeus, meados do II século aC., estavam sob a dolorosa opressão do ímpio Antíoco IV.
Era necessário levantar o ânimo do povo que parecia cordeiro à mercê do lobo. É, então, escrito o
livro no qual está o Canto de Judite, que é um hino a Javé Todo-Poderoso: I Vol. pág.
Divisão
Introdução
Convite ao louvor e à exaltação a Deus: v. 1
Corpo
O Senhor é o vencedor das batalhas: v. 2.
Todos devem cantar ao Senhor, poderoso e universal: v. 13.
Deus é criador de tudo. As criaturas devem servi-lo: v. 14.
Conclusão
Ante Deus, tudo treme. Os justos serão grandes no Senhor: v. 14.
Recursos literários
Engenhosa e artificialmente o Autor põe lado a lado, povos que oprimiram os judeus em
épocas muito distantes: assírios, medos, persas: Jd 16,3-12. Todos em condições de devorar uma
nação tão pequena e impotente. Ironicamente são frustrados em seus passos por uma fraca viúva
judia. Com isto se afirmava ao povo, no séc. II aC., sob o domínio dos selêucidas: com Javé
ninguém nos destruirá. Além de elegante, este recurso é bastante irônico. Era, ainda, um meio para
não provocar a ira do inimigo.
Hino pequenino mas harmonioso, mesmo aproveitando elementos comuns, encontráveis em
salmos congêneres. Constituído de duas estrofes, apenas. Na primeira, as palavras de exaltação a
Deus convidam ao louvor. A seguir se justifica tanta alegria, tanta exaltação: o Criador é forte, é
invencível; ninguém lhe resiste. Todo esse poder é benfazejo. Pode derreter os montes; os justos,
porém, estão tranqüilos na presença divina.
O Hino é como um ramalhete de flores, tornando-se antológico, pois é uma coletânea de
citações sálmicas, não se diz, com isto, que é uma colcha de retalhos unidos sem nexo. Ao
contrário, o autor revela ser um bom conhecedor do Saltério e colhe flores cá e lá, formando,
assim, um vaso belo e colorido.
Notas exegética
1
Cantai ao Senhor com pandeiros, entoai seu louvor com tambores! Elevai-lhe um
salmo festivo, invocai o seu nome e exaltai-o!
Convite de louvor a Deus em celebração festiva, usando instrumentos musicais então em
uso, na língua judaica: Sl 80 (81),3-4. Há motivos para tanta solenidade: Deus libertou o povo da
opressão inimiga.
2
É o Senhor que põe fim às batalhas, o seu nome glorioso é “Senhor’!
Deus que libertou o povo do jugo faraônico com mão forte e braço estendido (Dt 5,15),
continua ao lado dos seus. Agora vencendo novos inimigos não menos poderosos que o Egito. Na
ocasião do Cântico os judeus estavam apavorados ante a impiedade do violento Antíoco IV: 1Mc
1,10ss.; 2Mc 5,5ss. Surgem palavras de profunda fé, num momento difícil: o Senhor é quem põe
fim às guerras: Sl 45 (46),10. E o faz agora, por meio de Judite ( = judaica), aqui representando
Judá.
13
14
13
Cantemos louvores a Deus, novo hino ao Senhor entoemos! Vós sois grande, Senhor-
Adonai, admirável, de força invencível!
Cantar um cântico novo ao Senhor é o mesmo que cantar com renovado fervor. Adonai, de
`adon, significa senhor, ou meu Senhor. Título atribuído à divindade. A ele é tributado todo o
poder: Sl 85 (86),10.
14
Toda a vossa criatura vos sirva, pois mandastes e tudo foi feito! Vosso sopro de vida
enviastes, e eis que tudo passou a existir; não existe uma coisa ou pessoa, que resista à vossa
palavra!
O versículo se refere às duas narrações da criação: a primeira, quando tudo foi criado em
virtude da palavra divina: Gn 1,3ss. A segundo ao dizer que o Criador insufla na narinas do boneco
de barro o hálito vital: Gn 2,7. Nem mesmo o nada pode resistir à voz divina. Tudo e todos devem
louvar o Senhor, pois saíram de suas mãos: Sl 148,5.
15
Desde as bases, os montes se abalam, e as águas também estremecem; como cera,
derretem-se as pedras diante da vossa presença. Mas aqueles que a vós obedecem junto a vós
serão grandes em tudo.
Os fundamentos da terra, das montanhas e dos abismos, estremecem ante o Senhor. Ante o
fogo de seu ardor tudo estremece e derrete como cera. Não o justo, pois este se fundamenta em
Deus: Dl 45 (46),2-4. Quem construi no Senhor jamais será abalado.
Ensinamentos
Deus elege o fraco para confundir o forte. Escolheu o povo judeu como depositário da
revelação, não porque era o maior, o melhor. Ao contrário, entre todas as nações, era a menor: Dt
7,7. No seio desse povo foi escolhendo os patriarcas, os profetas. Sempre pessoas insignificantes
aos olhos humanos.
Em muitos momentos pareceu que o povo santo seria devorado por potências fortes, ricas,
organizadas: Egito, Assíria. Babilônia, Medo-Persas, Grécia, Roma. Todas passaram...
Quando da composição do livro de Judite, os judeus sofriam violenta opressão grega,
principalmente no tempo de Antíoco IV, como relatam os livros dos Macabeus. Tudo parecia estar
perdido. Precisamente neste momento, esperando contra toda esperança, surge o livro de Judite.
Diante de um povo guerreiro, os selêucidas, sob Antíoco IV, figurados nos assírios e em
Holofernes, respectivamente, levanta-se uma simples judia, Judite, símbolo da fraqueza, e derrota,
com oração e astúcia, o feroz inimigo. Jd 16,7-13. É clara a mensagem, chegando a ser irônica: no
Senhor o pequeno destrona o poderoso. E Davi continua vencendo Golias.
Oração
Vi tantas vezes o mal triunfar, a desonestidade se impor. Vi o justo humilhado, a verdade
abatida. Cheguei a pensar que verdadeiramente estáveis distante deste palco terreno, Senhor!
Jamais duvidei que sois admirável, de força invencível: v. 13. Não duvidei jamais que vosso
nome é glorioso, e se quereis, pondes fim às batalhas: v. 2. Mas não me parecia que era esse vosso
desejo. Tínheis, pensava eu, vossos motivos insondáveis.
Porém me foi dado ver tantas vezes a reversão dos projetos humanos que pareciam tão
seguros, constatei que não existe que ou quem resista à vossa palavra: v. 14. Ela, ou apenas um
vosso sopro são capazes de criar, de dar vida: v. 14.
É verdade, basta o vosso olhar para que os fundamentos da terra sejam abalados, e tudo
derreta como cera. apenas o justo que em vós permanece é inabalável: v. 15.
Senhor, com o mundo todo, com meus irmãos elevo a vós, entre gritos de exaltação, um
cântico novo: v. 1. Bendito sois para sempre! Que toda criatura vos sirva: v. 14.
Resumo e reflexão
É de se cantar um cântico novo ao Senhor.
Holofernes estava pronto para destruir Betúlia. Judite o seduz com seu rosto, decapitando-o,
para desespero de seus comandados.
É o Senhor que põe fim às batalhas.
PROVÉRBIOS 9,1-6.10-12
O Cântico na vida
Até mesmo o leitor mais distraído da Bíblia, tomando Provérbios nas mãos, descobre entrar
num terreno bem diferente. Sentenças incisivas, avulsas ou não, práticas, bem elaboradas,
14
15
“religiosas” ou “profanas”, substituem narrações históricas, textos jurídicos, pregações, profecias.
São os provérbios.
Entre os judeus, Salomão é tido como sua grande fonte: 1Rs 5,12ss. É difícil reconhecer a
paternidade, a origem judaica ou não dos provérbios. O Livro é a ele atribuído: Pr 1,1. O fato de
novas intestações do escrito ao rei (Pr 10,1; 22,17; 24,23; 25,1) e a outras personagens (Pr 30,1;
31,1ss), mostra que não se está perante um único autor. Pr 9,1-9 do qual faz parte o Canto, é bem
posterior às outras coleções. Pr 9,1-6.10-12 pode ser considerado Sapiencial: 1o. Vol. pág.
Divisão
Introdução
Apresentação da sabedoria: vs. 1-2.
Corpo
A sabedoria se coloca a serviço dos necessitados: vs. 3-4.
Ensinamentos da sabedoria aos insensatos: vs. 5-6.
O temor de Deus é a base da sabedoria: vs. 10-11,
Conclusão
Na sabedoria está a felicidade: v. 12.
Recursos literários
O breve canto deve ser assumido dentro da primeira coleção de provérbios (não
necessariamente a mais antiga) que está em Pr 1,8-9.18. O ambiente todo é o de um pai que ensina
a sabedoria ao filho. Tudo é apresentado de um modo muito prático: fugir das más companhias,
ser prudente. Dentro desse contexto são apresentados os conselhos contidos em Pr 9,1-6.10-12.
A sabedoria às vezes é apresentada como o acúmulo de conhecimentos práticos. Aos poucos
ela vai-se objetivando, torna-se uma realidade auto-existente, ela, que deveria ser conquistada pelo
sábio, lhe penetra o coração. Pr 9,1 fala em sabedoria que construi sua casa, e é como alguém que
se procura como a uma esposa, que é amada como companheira, como mãe: Eclo 4,11-19.
Nesse ambiente de sabedoria personalizada, o Escritor faz o mesmo com a estultice. Ambas
são apresentadas didaticamente como duas mulheres: uma convidando para a mesa do bem, do
verdadeiro conhecimento, do amor a Deus, para a felicidade, numa palavra: Pr 9,1-6.10-12. A
estultice, ao contrário, convida para a vida desregrada, para a desonestidade. É um convite para a
moradia dos mortos: Pr 9,13-18.
Notas exegéticas
1
A sabedoria construiu a sua casa, talhou e erigiu sete colunas;
2
sacrificou, em holocausto, suas vítimas, o seu vinho misturou e pôs a mesa.
A sabedoria é apresentada como mulher ativa, previdente (Pr 31,10ss): construi a casa, talha
e erige colunas, sacrifica as vítimas, prepara o vinho, serve a mesa. É onipresente, onividente. As
colunas talhadas e erigidas projetam a idéia de templo. O número sete ajunta a imagem de algo
completo, perfeito. O holocausto, o vinho misturado, a mesa posta, embora difíceis de serem
precisados, somam novos elementos sacramentais à ação da sabedoria.
3
Enviou suas criadas, que clamassem dos pontos elevados da cidade;
4
“Quem for simples e ingênuo, venha aqui!” Ela diz aos insensatos, igualmente:
A riqueza criada no interior da casa é servida aos presentes pela sabedoria. Envia as servas
para que proclamem os benefícios, e convidem a todos para que se sentem à mesa tão farta.
Clamam do ponto alto da cidade, como os arautos, para que ninguém fique sem a boa notícia.
5
“Vinde aqui, e o meu pão saboreai, bebei o vinho que para vós já misturei!
6
Deixai a insensatez e vivereis, e andai pelo caminho da inteligência!”
A estulta também se dirige aos insensatos, mas apenas promete água e pão, ambos
contaminados pela maldade: Pr 9,13-17. A sabedoria serve abundante banquete, agora
simbolizados no pão e no vinho. Para este banquete sacrificou vítimas: v. 2. Não faltará carne. O
alimento servido é vida, é inteligência, é caminho certo.
10
Respeitar ao Senhor Deus é condição, para alguém, sabedoria alcançar. Prudência,
somente, se obtém. Se do Santo alguém houver conhecimento.
A sabedoria começa com o respeito ao Senhor, com o espírito de vida religiosa. Só daquele
que é proclamado santo pelos querubins (Is 6,3 vem a verdadeira sabedoria, vem a prudência.
11
É por mim que os teus dias serão muitos, e os anos de tua vida serão longos.
15
16
12
Se fores sábio, o serás para o teu bem; se de tudo ter tornares zombador, tu mesmo
sofrerás as conseqüências.
A verdadeira vida vem apenas da verdadeira sabedoria. Pr 10,27 afirma que os dias do sábio
são prolongados, em oposição aos do ímpio, que serão abreviados. Aos poucos as portas da
revelação da vida eterna vão se abrindo, na teologia judaica, ficarão escancaradas com a revelação
de Jesus.
Ensinamentos
Ouvir ou não a Deus. Preferir ou não os conselhos da serpente, ao dado pelo Criador: Gn
3,1ss, o que parece uma ingênua historinha para recrear crianças é o retrato da condição humana.
Constantemente homem e mulher estão entre as solicitações que os levam para o bom ou para o
mau caminho.
Duas senhoras, a sabedoria de um lado e a estultice, do outro, se sentam à porta da casa;
uma, convidando para o verdadeiro conhecimento, para a vida correta, prudente, santa. Vida que
leva à plenitude dos anos, para a vida eterna: Pr 9,11.
A outra, para a vida irresponsável, para a vida desonesta. Em poucas palavras, para a casa
das sombras, para o fundo do sheol: Pr 9,18.
Assim, sem maiores abstrações, mas de maneira concreta, prática, e ao alcance de todos,
volta um tema sempre presente nas Escrituras: ante o ser humano o caminho do bem e do mal: Sl
1. Conforme a estrada escolhida, se produzem ou se deixam de produzir, os frutos eternos.
Oração
Como corri atrás de vossa casa, da casa de Deus! Encontrei-as, ou assim imaginava, umas
mais bonitas, outras mais humildes. Umas melhor cuidadas. Outras que mereceriam maior
atenção. Até que descobri que não precisáveis de construção feita por mãos humanas, para morar:
At 7,48-50. A verdadeira morada, onde procurais abrigo, é o coração humano: 1Cor 3,16-17.
Pelo vosso Filho foi construída uma morada santa em meu peito, santuário adornado. Aqui é
servido o grande banquete da comunhão com a divindade: v. 2. Escrituras, vida sacramental,
orientações espirituais, conselhos amigos, voz da consciência são os mais variados meios (v. 3)
pelos quais sou chamado a saborear do vosso banquete: v. 5.
Mas em meu peito parece ter-se instalado a estultice que me quer levar para outras direções:
Pr 9,13ss. Precisamente como denunciou Paulo: Rm 7,14ss.
Que eu ouça a vossa voz e vos respeite, ó meu Deus: v. 10. Que eu deixe minha insensatez e
ande pelo caminho da inteligência: v. 6. E, desta maneira tenha com todos os irmãos, os dias
prolongados e, assim,, glorificar-vos por toda a eternidade: v. 11.
Resumo e reflexão
Vinde aqui e meu pão saboreai.
“É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto da árvore do jardim”, perguntou
maliciosamente a serpente a Eva.
Deixai a insensatez e vivereis.
SABEDORIA 3,1-9
O Canto na vida
O livro da Sabedoria parece ter sido escrito originariamente em grego. Os LXX o chamam
de Sabedoria de Salomão, mas o estilo, o pensamento, as particularidades lingüísticas mostram ser
bem posterior ao filho de Davi. Pelo fato de Sabedoria se servir da versão dos LXX, terminada,
mais ou menos pela metade do II século aC., mostra que não é anterior a esse período. E por não
citar Filon, que viveu pelos anos 20 aC. A 54 dC., com o qual comunga o pensamento, o Livro não
deve ser a ele posterior. Deve ser colocado entre essas duas datas limites.
Sabedoria é, o último escrito inspirado do Primeiro Testamento. Escrito no Egito,
provavelmente em Alexandria, onde florescia uma ativa comunidade judaica. Aí, nesse ambiente e
nessa época teve origem Sb 3,1-9.
O Cântico, belo exemplar parenético, é Sapiencial: 1 Vol. pág.
Divisão
O Cântico, como um todo pode ser assim dividido:
Introdução
Afirmação sobre a sorte das almas dos justos: v.1.
16
17
Corpo
Idéia dos todos a respeito da morte dos justos: vs. 2-3.
Descrição do viver dos justos: vs. 4-5.
Sorte final dos justos: vs. 7-8.
Conclusão
Palavras de ânimo aos ouvintes: v. 9.
1ª Parte litúrgica: vs. 1-6
Introdução
Sorte da alma dos justos: v. 1.
Corpo
Idéia que os tolos fazem da morte dos justos: vs. 2-3.
Real situação das almas dos justos: vs. 4-5.
Conclusão
Sorte final dos justos: v. 6.
2ª Parte litúrgica: vs. 7-9
Recompensa dada às almas dos justos: v. 7.
Poder de julgar dado aos justos: v. 8.
Palavras de ânimo aos ouvintes: v. 9.
Notas exegéticas
ª
1 Parte litúrgica: vs. 1-6
1
As almas dos justos estão na mão do Senhor e o tormento da morte não há de atingi-
los.
Diversamente do que afirmavam os tolos, a sorte final dos justos não é um nada, um sopro,
uma sombra (Sl 38 (39),6-7), mas segurança e perenidade nas mãos de Deus. Portanto gozam da
mesma sorte da dos antepassados: Dt 33,3. Todos puseram sua segurança em Deus; sofrimento e
morte não os atingirão.
2
Aos olhos dos tolos são tidos por mortos, e o seu desenlace parece desgraça. A sua
partido do nosso convívio
3
é tida, igualmente, por destruição, porém, na verdade, na paz estão eles.
O Autor volta à terra retratando com que visão os privados da luz da fé encaram a morte dos
justos. Julgam apenas as aparências percebidas pelos olhos corporais. Por isso são tolos. Embora
se fale vagamente da vida após a morte, é significativo dizer estarem os justos na paz, no shalom,
que é o complexo de todos os bens.
4
Se aos olhos dos homens sofreram tormentos, sua esperança era plena de vida imortal.
Este versículo merece destaque: pela primeira vez ocorre no Primeiro Testamento a
expressão “athanasia” (vida imortal). Os tolos encontrariam fundamentação na teologia judaica: o
sofrimento era fruto do pecado. O justo, todavia, tinha visão superior, era animado pela esperança.
Vislumbrava algo consistente, a vida imortal, após a morte. Como Jó, não liga necessariamente o
sofrimento e a morte ao pecado.
5
Provados em pouco, terão muitos bens, pois Deus os provou e achou dignos de si.
6
Como ouro os provou no calor da fornalha, como grande holocausto junto a si os
acolheu: no dia da Vinda terão vida nova.
A provação pode ter duas finalidades diferentes: uma, para armar cilada, para fazer cair. Não
é este o objetivo de Deus a respeito do justo. A prova pode ser ainda meio para purificar, meio
para que ele manifeste sua fidelidade ao Senhor. Este ensinamento é encontrável em Dt 8,2-5. A
pequena provação é ocasionada para recompensa incomensurável. O justo não diz palavra: apenas
se oferece em holocausto: Rm 12,1. É então acolhido por Deus. Com a vida nova é superada a
morte.
2ª Parte litúrgica: vs. 7-9
7
Os justos brilharão e serão como centelhas que se alastram velozmente através da
palha seca.
Volta-se ao espaço celeste. O brilho e o fulgor dos justos é fruto da glória recebida de Deus:
Dn 12,3. Tanta glória se alastrará incontrolável e veloz como o fogo em palha seca.

17
18
8
Aos povos julgarão e às nações dominarão, o Senhor há de reinar sobre eles, para
sempre.
Os justos julgarão ou governarão as nações e os povos: Dn 7,19-27. Descreve-se, assim, o
triunfo dos servos de Deus, em visão escatológica. Participarão do poderio do Senhor.
9
Os que nele confiarem, a verdade entenderão e com ele, no amor, viverão os seus fiéis,
pois merecem seus eleitos sua graça e compaixão.
Pelo fato de se terem abandonado em Deus, os justos não apenas estão nas mãos divinas,
como também participarão de sua vida íntima. Entender a verdade é abrir mente e coração a Deus.
A verdade é uma vida em comunhão entre Javé e o justo.
Ensinamentos
Para a antropologia judaica o ser humano é um todo, sem composições metafísicas. Alma,
portanto, não é um componente da criatura racional, e que existiria separadamente após a morte.
Nesse contexto, alma tanto pode ser tomada como 1ª pessoa singular ( = eu: Lc 1,46), como
indicar um ser vivo. O v. 1, porém, indica que o Escritor Sagrado já estava impregnado pela
cultura grega, contudo, sem deixar de considerar o justo como um ser completo, na glória. Tanto
que participa da plena vida mortal (v. 4), passando a governar os povos.
O autor de Sb 3,1-9 mostra ter superado as limitações da teologia hebraica, para a qual, com
a morte o falecido tornava-se uma sombra incomunicável a vagar pelo sheol. Abriu as portas para
que se compreendesse a especial revelação que Jesus faria da ressurreição.
Oração
Por que, Senhor, tantos irmãos zombam dos que “não sabem viver”, dos que perdem a
oportunidade da “boa vida”, como se olhassem galinhas voando, em lugar de ter ovos nas mãos?
Aos olhos deles, a morte é o somatório de uma seqüência de perdas: vs. 2-3.
É verdade, como o vosso servo Jó, tantos justos passam por duras provações, sem que lhes
arrefeçam o ânimo, a esperança na plena vida em vós: v. 4. Por tão pouco que sofrem, porém,
receberão prêmios sem fim de vossas mãos: v. 5. Provados como o ouro no cadinho, se oferecem a
vós em holocausto, sendo por isso acolhidos pelo vosso coração, recebendo vida nova: v. 6.
Quantos deles brilham em vossa glória (v. 7), e estão sentados nos tronos, julgando não só as doze
tribos de Israel, como as nações todas.
Senhor, que nenhum dos vossos filhos deixem de confiar em vós (v. ), em vós buscando
segurança, jamais sendo atingidos pelo tormento e pela morte: v. 1. Que por vossa misericórdia
todos recebamos vossa graça e compaixão.
Resumo e reflexão
1ª Parte litúrgica: vs., 1-6
Os justos vencem as provações e até a morte.
Orfeu, com seus cânticos dominava as feras. Quem dominará a morte?
As almas dos justos estão nas mãos do Senhor.
2a Parte litúrgica: vs. 7-9
Os servos fiéis participarão da glória, julgando e dominando povos e nações.
Caronte, o timoneiro da barca sagrada, tinha a missão de levar os falecidos da margem da
vida para a da morte.
Os justos brilharão para sempre.
SABEDORIA 9,1-6.9-11
O Canto na vida
Atribuído a Salomão, o livro da Sabedoria lhe é bem posterior. Último escrito do Antigo
Testamento, deve ter sido publicado poucos anos antes da era cristã. O Canto evoca a oração que
Salomão teria feito ao substituir o pai no trono: 1Rs 3,6-9; 1Cro 1,8-10.
Os judeus que viviam no Egito durante o domínio grego, deviam sentir o fascínio da
sabedoria helênica. O Escritor Sagrado lhes mostra que não tinham nada a invejar: a que possuem
vem do céu e lhes mostra o verdadeiro caminho. A sabedoria para os hebreus não era pura
abstração; tinham fortíssimas conotações práticas.
O Canto pode ser considerado, então, como Sapiencial (1º Vol. pág. ), ou também como
Súplica: 1º vol. pág.
Divisão
18
19
Introdução
Evocação ao Deus criador de tudo: v. 1.
Corpo
Deus cria o ser humano dando-lhe a missão de reger o mundo: vs. 2-3.
Súplica pedindo sabedoria: vs. 4-5.
Até o ser humano mais dotado precisa da sabedoria do alto: v. 6.
Louvor à sabedoria eterna: v. 9.
Conclusão
Confiança e segurança na sabedoria: v. 11.
Recursos literários
O Canto é parte de uma poesia maior com 18 versículos: Sb 9,1-18. Apenas uma parcela se
faz presente na Liturgia das Horas.
Como um todo Sb 9,1-18 se divide em três estrofes concêntricas. Primeira estrofe: vs. 1-6,
segunda: vs. 7-12. Terceira: vs. 13-18. As três unidades estão bem vinculadas entre si, numa lógica
bastante procedente. Inicialmente se afirma que tudo foi criado por Deus, inclusive o ser humano
que deve reger o mundo. Como um deles, Salomão pede sabedora para tanto.
Além desta vocação comum a todos, o rei se sente especialmente chamado a governar o
povo de Deus. Pede, então, uma sabedoria especial. É a segunda estrofe da Poesia. Na terceira se
justifica o porquê do pedido: o ser humano precisa da sabedoria, mas ela lhe é inacessível.
O Autor Sagrado, em seu Canto, faz o papel de Salomão, inspira-se na oração que o rei teria
feito, faz uma releitura do fato, passando, assim, uma mensagem aos co-nacionais, questionados
pela sabedoria helênica, até correndo o perigo de abandonar a fé.
Notas exegéticas
1
Deus de meus pais, Senhor bondoso e compassivo, vossa palavra poderosa criou tudo,
Para melhor entender o espírito da oração é de se ter presente o pensamento teológico do
autor: somente Deus pode dar-lhe a necessária sabedoria: Sb 8,21. Reafirma-se o dogma judaico
de Deus único criador de tudo (Gn 1,1ss), em desacordo com a cosmogonia dos demais povos.
Deus criador é invocado também como um Deus histórico-salvífico, o Deus da aliança. Portanto, o
Deus dos pais: Abraão, Isaac, Jacó. Acima de tudo, é um Deus de misericórdia, o que ama mesmo
ante o demérito do ser humano: Sl 135 (136),1.
2
vosso saber o ser humano modelou para ser rei da criação que é vossa obra,
3
reger o mundo com justiça, paz e ordem, e exercer com retidão seu julgamento:
Enfatizado o poder divino, o Autor disse que bastou a palavra do Senhor para que tudo
passasse a existir. Agora dirige sua atenção ao ser humano. Tendo presente Gn 1,26-28 e Gn 2,7, à
idéia anterior de criação por meio da palavra, agora ajunta a de modelador, referindo-se ao boneco
de barro. À mais sublime das criaturas é dada uma missão: dirigir e governar o mundo, o que
exige muita sabedoria. Mas o Autor, como se fôra Salomão, deseja fazer pedido pessoal, e mostra
que alguns, e é o caso dele, devem governar com retidão. Desta maneira, prepara o ambiente ao
que será dito.
4
Dai-me vossa sabedoria, ó Senhor, sabedoria que partilha o vosso trono. Não me
excluais de vossos filhos como indigno:
O Suplicante pede a sabedoria, mas não qualquer uma, e sim a que partilha o trono de Deus.
A personalização da sabedoria é uma maneira de afirmá-la como atributo divino. Se todos dela
precisam, muito mais ele, pela função que exercerá. Que não seja considerado indigno aos olhos
divinos.
5
sou vosso servo e minha mãe é vossa serva; sou homem fraco e de existência muito
breve, incapaz de discernir o que é justo.
Deus foi invocado como bondoso e compassivo: v. 1. A si mesmo, agora, o rei se chama de
servo, como serva é a mãe. A expressão poderia ter o sentido religioso de “fiéis servidores”, mas
não é o que deixa entender o contesto. Apresenta-se como mendigo da misericórdia divina, não
confia nas próprias capacidades; precisa desse dom divino. O versículo se inspira em 1Rs 3,7.9.
Não tendo condições de discernir o que é justo, estaria desprovido do mínimo necessário para bem
governar.
6
Até mesmo o mais perfeito dentre os homens não é nada, se não tem vosso saber.
19
20
Dois pensamentos fundamentais emergem do versículo. O primeiro está oculto e pode
significar: se uma pessoa nada é sem vossa sabedoria, que dizer de mim mesmo? O segundo, mais
importante para a circunstância, diz que a verdadeira sabedoria é a que vem de Deus. Com isto,
relativiza a sabedoria pagã que fascinava não poucos judeus,
9
Mas junto a vós, Senhor, está a sabedoria que conhece as vossas obras desde sempre;
convosco estava ao criardes o universo, ela sabe o que agrada a vossos olhos, o que é reto e
conforme às vossas ordens.
Supondo aceita a afirmação do v. 6, o Escritor Sagrado passa a exaltar a sabedoria. Ela que
partilha o trono de Deus (v. 4) estava-lhe ao lado como se fosse “conselheira”, quando da criação.
Conhecendo o que agrada a Deus, ao lado de Salomão, ela o guiará para que governe com retidão.
10
Enviai-a lá de cima, do alto céu, mandai-a vir de vosso trono glorioso, para que esteja
junto a mim no meu trabalho e me ensine o que agrada a vossos olhos!
11
Ela, que tudo compreende e tudo sabe, há de guiar meus passos todos com prudência,
com seu poder há de guardar a minha vida.
Pede-se explicitamente que a sabedoria desça do céu, do trono divino, para estar com ele,
Salomão, no trono humano, Com tal assistência dinâmica, exercerá bem seu reinado, terá uma
vida pessoal conforme os desígnios de Deus, e governará em benefício da maioria. A sabedoria
será a nuvem que pairava sobre a arca da aliança; era ela que dirigia o povo judeu: Ex 40,34.38.
Todavia, não foi precisamente isto que aconteceu com Salomão: desviou-se do bom caminho (1Rs
11,1ss), e, por tanto explorar o povo, aconteceu o doloroso cisma: 1Rs 12,1ss.
Ensinamentos
Os pagãos consideravam a sabedoria como um acúmulo de qualidades pessoais inatas e
adquiridas, por meio das quais a pessoa se libertava da ignorância, a pior das escravidões. Por
meio dela era possível penetrar em todos os mistérios, até mesmo nos dos deuses. Para o autor de
Sabedoria, ela está ao lado de Deus (vs. 4.9), sendo-lhe um atributo: Sb 7,22-27. Sem ela somos
nada.
A sabedoria pagã é um humanismo antropocêntrico: tudo se centraliza no ser humano, em
suas capacidades herdadas ou adquiridas. Não é esta a visão apresentada pelo Autor do Canto. Por
mais rica que seja, tal sabedoria não vai além do plano horizontal. É necessário tornar-se um ser
espiritual para penetrar na esfera divina, dirá mais tarde Paulo: 1Cor 2,11-16.
Por isso, o judeu suplica pela sabedoria que partilha o trono divino. Não só penetra
verdadeiramente na esfera celeste, como terá condições de ser, pensar e agir, segundo a ótica do
Senhor. Trata-se de um humanismo teocêntrico, com Deus no centro de tudo.
Isto não aliena, mas faz viver a justiça, que tanto agrada a Deus.
Oração
Sempre me disseram que era necessário estudar, Senhor! Quem não estuda fica “burro”, não
progride na vida, terá que fazer trabalhos duros e “humilhantes”. Era mais ou menos nestes termos
que me falavam. Passei a olhar os livros, a escola, como uma fonte de sabedoria. Foi uma graça,
meu Deus!
Mais tarde vi que essa sabedoria não libertavam necessária e completamente o coração
humano. Quantos se serviam de seus conhecimentos até sofisticados, para fazer o mal. E
precisamente por serem assim dotados, sentiam-se liberados a tudo; os meios que dispunham os
livrariam de maiores complicações.
Mas me foi sendo revelado que vós sois a sabedoria. Com ela, com vosso amor, tudo
criastes: v. 1. Por meio dela modelastes o ser humano para que regesse o universo com justiça, paz
e ordem: vs. 2-3. Mesmo por vós enriquecido amorosamente, sinto-me limitado, fraco e incapaz
de discernir o bem do mal: v. 5. Como os outros e mais que eles, preciso de vosso auxílio: v. 6.
Dai-me, portanto vossa sabedoria, por vosso amor gratuito: v. 4.
Ela que vos conhece, sabe o que agrada ou não aos vossos olhos: v. 9. Dessa maneira,
melhor dirigirá os meus passos: vs. 10-11. Assim, mais vos louvarei, e melhor servirei a meus
irmãos.
Resumo e reflexão
Junto de Deus está a sabedoria.

20
21
No Louvre a célebre estátua da deusa da sabedoria, Ísis, é apresentada amamentando o filho
Horus. Mas esse dom só vem do Deus verdadeiro.
Dai-me vossa sabedoria, ó Senhor.
SABEDORIA 10,17-21
O Canto na vida
O judaísmo, principalmente depois do Cativeiro da Babilônia, tornou-se severo e fechado.
Praticamente um povo segregado, com pouco contato com os demais. Este tipo de vida era
relativamente fácil de ser vivido na própria terra. Mas, e os que viviam no exterior, na diáspora?
Era numerosíssima a comunidade hebraica em Alexandria, no Egito. O choque cultural
tornava-se inevitável. É de se imaginar o fascínio que as facilidades, o progresso, a beleza, a arte
de uma cidade tão célebre exerciam, principalmente sobre os jovens. A sabedoria helênica deveria
influenciar, questionar tantos judeus fora de seu ambiente.
Como reação a isso tudo, e, procurando orientar os menos seguros, surgiu o livro de
Sabedoria. O Autor não desprezava a cultura da terra onde vivia. Porém, mostra que a judaica era
mais forte, mais sublime, mais transformadora. É nesse contexto que está o Cântico que é um
Hino: 1 Vol. pág.
Divisão
Introdução
O Senhor sempre esteve ao lado do povo: v. 17.
Corpo
Os judeus atravessam a pé enxuto o mar Vermelho: v. 18.
Os egípcios perecem nas águas do mar: v. 19.
Celebração judaica pelos benefícios concedidos por Javé: v. 20.
Conclusão
A sabedoria faz falar os mudos e os pequenos: v. 21.
Recursos literários
Falar de problemas presentes evocando implicitamente o passado é um dos recursos
literários bastante apreciados pelos judeus. É o que acontece em Sb 10,17-21. O recurso literário é
o midráxico.
Era importante apresentar aos judeus que viviam em Alexandria, e por extensão, aos outros,
uma visão mais aprofundada da sabedoria bíblica. A comunidade estava envolvida pelo melhor
que a cultura helênica podia apresentar. A atração que exercia nos membros da comunidade era
enorme.
O Autor, fazendo um confronto entre a sabedoria grega e a judaica, deixa claro aos leitores
que a sua está muitos furos acima. Sem citar pessoas ou fatos explicitamente, mostra como os
hebreus foram extraordinariamente libertados pela sabedoria divina. Só quem conhece a história
do povo sabe que o Escritor se refere à libertação do Egito.
A sabedoria divina estava ativa e viva para libertar os judeus de toda opressão, e conduzi-los
à pátria. O mesmo pode acontecer hoje.
Recursos literários
17
O Senhor deu a seus santos o prêmio dos trabalhos na sua vida conduziu-os por
caminhos admiráveis, pois de dia lhes foi sombra e, de noite, luz dos astros.
Os judeus são chamados de “santos”. Pela aliança eles se transformaram em povo sagrado:
Ex 19,6. Eram assim chamados porque santificados por Deus. Duramente explorados pela
escravidão egípcia, ao sair, levam muitas riquezas (Ex 12,35-38), como se fosse uma recompensa
pelos muitos anos de trabalhos forçado lá feito: Ex 12,40. A peregrinação pelo deserto era árdua.
Porém, com as manifestações divinas, foi um caminhar admirável. Javé manifestava sua presença
protetora pelas colunas de nuvem e de fogo, que também os guiava pelo caminho certo: Ex 13,21;
Nm 10,34.
18
O Senhor os fez passar através do mar Vermelho e os fez atravessar águas muito
violentas;
19
porém, seus inimigos no mar, os afogou e do fundo dos abismos para a praia os
lançou.

21
22
Embora não seja o fato mais importante do Primeiro Testamento, a passagem do mar
Vermelho, aqui acenada explicitamente, faz parte da epopéia judaica. Evoca Ex 14,21-30, quando
o fraco Israel, pelo fato de ter a sabedoria divina ao seu lado, vê um inimigo poderoso ser
aniquilado.
20
Sendo os ímpios despojados, os justos celebraram, com louvores, vosso nome que é
santo, ó Senhor e louvaram, todos juntos, vossa mão que os protegera.
A travessia do mar a pé enxuto e o desbaratamento dos perseguidores foram solenemente
celebrados pelos hebreus. Agora começava realmente a caminhada para a Terra Prometida. A mão
de Deus sobre os retirantes eram um penhor, uma garantia: Ex 14,31. Ao povo cabia celebrar: Ex
15,1ss.
21
Pois abriu a sabedoria a boca do que é mudo e soltou, em eloqüência, a língua dos
pequenos.
O versículo parece ser uma afirmação hiperbólica para dizer como o fato marcou a todos, a
começar pelas crianças de peito. É possível ver o “mudo” em Moisés (Ex 4,10) que com todos e à
frente de todos, exalta o Senhor.
Ensinamentos
Midraxe. É muito mais que uma simples recordação, mais que uma recapitulação do
passado, embora isto tenha seu valor. É uma releitura livre de um texto sagrado numa
interpretação também livre, mas trazendo resposta para problemas presentes, trazendo novos
ensinamentos. É o que faz o Canto, por sinal, belo exemplar midráxico, e que a comunidade de
Alexandria deve ter saboreado até a última gota.
Mas, o interessante é ver como o pano de fundo é a comunidade de um povo que permanece
idêntico a si mesmo. Javé, que libertou o povo no passado, continuaria a libertá-lo. O mesmo
Deus, o mesmo povo, a mesma salvação. As pessoas passaram, mas não Javé e nem o seu povo e a
sua salvação.
Oração
No início eram as páginas da História Sagrada tantas vezes lidas e sempre tendo algo novo a
dizer. Sabíeis, meu Deus, com que pureza de coração o fazia, e como me entusiasmava pelas
maravilhas que operáveis. Depois tive acesso ao Livro dos livros, a estudos mais aprofundados e
críticos. Como as coisas ficaram diferentes! Quantas interpretações! Vossas mãos me conduziam.
Quanta maravilha emergia de um texto tão rico, embora tivesse que superar uma fé mais infantil!
Valeu a pena, Senhor! Nem sei como agradecer! Rendo-vos graças por me terdes conduzido
por caminhos admiráveis à vossa sombra, à vossa luz. Quantos dons por quase nenhum trabalho:
v. 17. Inimigos poderosos soçobraram, enquanto me era dado passar pelas águas salvadoras: v. 18.
Não fui eu quem as fendeu, encontrei-as abertas, até acolhedoras.
Uno-me agradecido ao coro de tantos que vos louvam. Vosso nome é santo: v. 20. Que na
minha insignificância eu vos louve, que na minha mudez, eu vos exalte: v. 1.
Resumo e reflexão
Deus, com a divina sabedoria acompanhava salvificamente os passos dos judeus.
“Onde estáveis quando eu passava por tantas provações? Perguntou ao Senhor a alma recém
saída da tribulação. Carregando-te no colo. Foi a resposta.
SABEDORIA 16,20-21.26; 17,1a
O Canto na vida
O Autor, servindo-se do recurso literário midráxico, reflete passagens da caminhada dos
judeus pelo deserto, rumo à Terra Prometida. Reflete interpretando. Fazendo-o com arte, retém a
atenção do leitor e abastece-lhe o coração. Dessa maneira terá condições, com tantos outros
compatriotas na mesma situação, de enfrentar com maior probabilidade de êxito, as solicitações do
meio ambiente alexandrino, verdadeiramente tentador para os judeus que lá viviam.
No Canto sobressai o amor misericordioso de Deus para com o povo eleito. Cada israelita se
saberá beneficiado pelo Senhor, podendo olhar o futuro com esperança e confiança.
A Poesia é um Hino: 1º Vol. pág.
Recursos literários
A beleza do Hino não está tanto na forma, geralmente a mais procurada e apreciada pelos
leitores, e a mais trabalhada pelos escritores. O que toca o leitor, agora, é o conteúdo. Chega a
22
23
ofuscar a apresentação literária. Não que o Escritor se sirva de recursos mais peregrinos.
Simplesmente deixa que seu coração agradecido, fale.
A Liturgia das Horas não apresenta o Canto na íntegra, mas oferece apenas alguns
versículos. Mesmo assim, não se perde o nexo lógico, e se pode saborear e avaliar o quilate do
Escritor. Seu grande mérito é transformar o texto originário narrativo em poesia midráxica, usando
toda a liberdade que é dada aos poetas judeus, conseguindo, assim mesmo, não desviar a atenção
da mensagem que pretende passar para seus leitores.
Notas exegéticas
20
Alimentastes, Senhor, vosso povo com alimento dos anjos; um pão preparado, de
graça, do céu enviastes. Ele toda delícia continha, ao gosto de todos.
Os egípcios opressores, que não queriam a libertação dos hebreus, foram tratados por Javé
com pragas. No deserto, o povo da aliança é tratado com um alimento do céu, o maná. O pano de
fundo é Ex 16,1ss. O maná, chamado de pão dos anjos ou dos fortes (Sl 77 (78),25) é, segundo o
Poeta. Oferecido gratuitamente. Ao povo era poupado todo o esforço, pois ele já vinha preparado.
Falando em todos os sabores, mais uma vez o Autor floreia, contrariando Ex 16,31. Ele bem
conhecia a passagem, mas não pretendia trazer dados históricos conflitantes, e sim, mostrar o
carinho divino. Além disso, as tradições rabínicas usavam a mesma linguagem.
21
O sustento que dáveis, mostrava a vossa doçura, a vossa doçura com a qual vossos
filhos tratais. Adaptava-se ao gosto de todos, os que o saboreavam; mudava-se ele naquilo,
que cada um desejava.
O Escritor Sagrado mais uma vez dá asas à fantasia, afirmando que o maná adquiria o sabor
desejado pelo consumidor. Era realmente o que afirmavam os entusiasmados rabinos em seus
ensinamentos. Mas ele não saboreia apenas no paladar o maná. Saboreia-o também com o coração.
Considera-o como grande dom de Deus ao qual chama de “doce”.
26
Para que vossos filhos amados aprendessem, Senhor, que não são os frutos diversos,
que alimentam o homem, mas que é a vossa palavra, Senhor, que sustenta os que crêem.
O povo que ontem foi alimentado pelo maná, continua hoje sendo sustentado por um pão
superior, o pão da palavra. Que ninguém o esquecesse ou o trocasse por alimentos passageiros,
perecíveis. Mesmo se sedutores, como o oferecido pela sabedoria grega.
17,1ª
Os vossos juízos são grandes e insondáveis, Senhor!
Quem pode entender os desígnios divinos (Sb 9,13)? O ser humano é pequeno demais ante a
gratuidade do Senhor: Sb 9,14. Em seus desígnios misteriosos puniu os egípcios opressores e,
cumulou de graças os hebreus oprimidos.
Ensinamentos
Comparando o Hino com Ex 16,1ss., nota-se que esta última passagem bíblica é bem mais
longa e com estilo mais sóbrio. Em ambas as perícopes, é o teólogo quem fala, sendo que na
primeira, sobressai o poeta, com estilo mais fantasioso. Enfeita, comenta, recorre a hipérboles.
Todavia, nota-se que não quer se deter tanto no possível fato portentoso, e sim, no amor de Deus
que cumula de atenção o sofrido povo, acompanhando-o passo a passo, no seu peregrinar pelo
deserto.
Mostra o Senhor como um Deus apaixonado, preocupando-se com pormenores para revelar
sua paixão. Alimenta o povo com o manjar dos anjos, poupando-lhe o menor esforço, e dando ao
maná mil sabores, ao gosto de cada um. Conclui chamando o Senhor de Deus-doçura. Agora ele se
oferece por meio da palavra.
Oração
É possível, Senhor, meditar, estudar o que fizestes no deserto, alimentando
extraordinariamente nosso povo, sem pensar em vosso Filho, no longo discurso que fez, no que
nos deixou (Jo 6,22ss)?
Refletindo o que fizestes ao povo peregrino, servindo-o com o manjar dos anjos, evitando
que tivesse a menor preocupação, a não ser a de servi-se do pão de tantos sabores (v. 20), me
questiono: quem é assim tratado verdadeiramente? Pergunto-me: quem é realmente servido com
um alimento que se adapta aos mais variados e desejados sabores (v. 21)? Sim, a mim é servido o
pão que cura, que fortalece, pão que encaminha para a vida eterna, pão que gera comunhão. É
comigo que mostrais a vossa doçura.
23
24
Que eu aprenda a bem me alimentar do pão eucarístico e do pão da vossa palavra: v. 26.
Resumo e reflexão
Com carinho Javé alimentava seu povo, no deserto, evitando-lhe toda preocupação.
A multidão que o procurava com interesses imediatistas, o Mestre recomenda: “Vossos pais
comeram do pão no deserto e morreram. Procurem o pão que dá a vida eterna.
“Vossos juízos são insondáveis, Senhor!”
ECLESIÁSTICO 14,22; 15,3-4.6b
O Canto na vida
º
O Canto é Sapiencial (1 Vol. pág. ), e faz recordar de imediato o Sl 1. É parte de um livro
deuterocanônico, por sinal dos mais longas das Escrituras, sendo catalogado entre os sapienciais.
Foi escrito pouco tempo antes de Cristo. É conhecido como “Sabedoria de Jesus Bem Sirac”,
“Sirácide”, “Bem Sirac”, “Eclesiástico”. O autor é Bem Sirac, de Jerusalém, e que nasceu no final
do III século antes de Cristo. Mestre que era, dedicou sua obra aos que procuravam a sabedoria.
Lamentavelmente as diversas traduções não enumeram uniformemente os versículos. Umas
seguem o texto grego e outras, a latina. Isto pode gerar confusão inicial. Conforme a tradução o
presente Canto pode ser encontrado em Eclo 14,20; 15,3-4.6.
Divisão
Feliz quem procura e reflete a sabedoria: v. 14,22.
A sabedoria sacia quem a procura com o pão da prudência e com a água do conhecimento:
vs. 15,3-4.
A herança do sábio é um nome eterno: v. 15,6b.
Recursos literários
A Liturgia das Horas apresenta apenas uns versículos seletos de um canto todo. Mesmo se
escolhidos aleatoriamente, o pensamento do Autor não fica truncado. Inicialmente a sabedoria é
apresentada como um bem a ser procurado e assimilado precisamente no coração. A seguir ela,
personalizada, se comporta como pródiga dona de casa, alimentando e dessedentando
respectivamente com a paciência e com o entendimento. Quem por ela é assim alimentado herdará
um nome para sempre.
A pequena poesia não é desprovida de imagens coloridas e de idéias felizes.
Notas exegéticas
14,22 (14,20)
Feliz é quem se aplica à sabedoria, quem no coração medita nos seus segredos e
caminhos e que com inteligência reflete e raciocina.
Pr 9,1-4 apresenta a sabedoria como uma mulher previdente que edificou uma esplêndida
casa, enviando, a seguir as servas para convidar todos à sua mesa. Agora ela é procurada e quem o
faz é chamado de “feliz”. Entrar nessa mansão eqüivale comungar a sabedoria pela inteligência e
pelo coração. Logicamente, deixando-se por ela ser conduzido pelos segredos do bom caminho.
15,3
Com o pão da prudência ele há de nutri-lo e o saciará com a água do conhecimento.
Ela o sustentará, para ele não vacilar,
A todos a sabedoria ofereceu pão e vinho: Pr 9,5. Agora são servidos pão e água
simbolizando a prudência e o conhecimento. Quem prova desse alimento e dessa bebida não mais
desejará outros, mas os almejará cada vez mais: Eclo 24,19-21.
4
nela confiará e não será envergonhado. Ela o exaltará entre todos os outros
Quem for comensal na casa da sabedoria será exaltado. Alcançará níveis inatingíveis. Os
demais, os que preferiram entrar na moradia da estultice (Pr 9,13) constatarão a loucura de uma
escolha mal feita.
6b
e um nome indelével do Senhor herdará,
A prudência, pão servido pela sabedoria, e o conhecimento, água por ela levada à mesa não
apenas sustentarão, mas evitarão que o comensal vacile (V. 3), e mais que isto, farão que os assim
saciados atinjam a eternidade.
Ensinamentos
Dicotonomicamente são colocados apenas dois caminhos, duas alternativas ante o ser
humano: a trilha do bem e a do mal. A primeira o transformará numa como que árvore plantada à
beira da água corrente. Jamais deixará de produzir o fruto no tempo oportuno. A segunda o deixa à

24
25
mercê do tempo. Torna-se volúvel, passageiro, estéril: Sl 1. Agora se fala ou em sabedoria ou em
estultice.
A sabedoria, anteriormente apresentada como pródiga dona de casa (Pr 9,1ss), se apressa em
servir agora, os alimentos que proporcionam a vida eterna: prudência e conhecimento. Pela
prudência se percorrem os caminhos da vida com equilíbrio e acerto. O conhecimento faz com que
se vislumbre com segurança a razão de ser da própria existência.
Então, estar em comunhão com a sabedoria é ter a herança do Senhor: um nome que dura
para todo o sempre.
Oração
Sempre pensei, ó meu bom Deus, ter idéia clara a respeito da sabedoria. Seriam frutos de
orientações recebidas dos mais experientes, frutos de minha própria experiência pessoal, e
principalmente, os que a mim chegavam através dos livros, dos estudos. Como me entusiasmava
com o que me proporcionavam as diversas matérias. Não sabia qual delas era a mais bela, a mais
importante. Queria a todas abraçar como o mesmo vigor, com o mesmo entusiasmo. Todas me
seduziam.
Mas a vida me ensinou que tantos possuíam tal sabedoria, e em altíssimo grau. Delas,
porém, se serviam para melhor atingir seus objetivos escusos. Não era possível que tanta
maravilha e tanta beleza também se prestassem vilmente ao mal.
Em nossa bondade, ó meu Deus, me fizestes compreender que a verdadeira sabedoria é a
que atinge o coração, a que transforma o ser humano. Rogo-vos ser por ela servido do pão da
prudência, da água do entendimento: v. 15,3. Que eu saiba meditá-la em meu coração, refleti-la
com inteligência: v. 14,22. Que nela confie para não ser envergonhado: v. 15,4. Ao contrário, que
eu herde um nome par todo o sempre: v. 15,6. Amém.
Resumo e reflexão
Feliz quem se aplica à sabedoria.
Durante a caminhada pelo deserto, Javé alimentou o povo com o pão do céu e com a água do
rochedo.
O sábio herda o nome indelével do Senhor.
ECLESIÁSTICO 31,8-11
O Canto na vida
Bem Sirac, autor do Eclesiástico, teve oportunidade de fazer longas viagens: Eclo 34,12-13.
Entrou necessariamente em contato com novos modos de pensar, com a sabedoria de outros
povos: Eclo 34,12 (11). Inteligente e aberto, soube adaptar e incorporar vários desses
pensamentos, dessa sabedoria ao tesouro judaico, ou mais precisamente, à sua obra: Eclo 39,1-11.
A sabedoria grega, bastante difusa por causa do imperialismo helênico, deveria ser um
atrativo quase irresistível para os judeus de então. Assim mesmo, o Autor não a afronta
diretamente. Com tino mostra que a verdadeira sabedoria vem de Deus, por meio dos judeus.
Canto sapiencial: 1o. Vol. pág.
Divisão
Introdução
Quem não se mancha e nem põe suas esperanças na riqueza, é feliz: v. 8.
Corpo
Raros os que não se deixam contaminar pela fortuna: v. 9.
É digno de louvor quem passa incolumemente pelos bens terrenos: v. 10.
Conclusão
A assembléia louva os benfeitores: v. 11.
Recursos exegéticos
A Poesia começa proclamando bem-aventurado quem é capaz de não se apegar aos bens
terrenos. É uma colocação, um princípio universal. A afirmação ficam mais evidenciada se cada
estico, no v. 8, é enfatizado pelo reticente “feliz”. Feliz quem não se mancha, feliz quem não corre
atrás do ouro, feliz quem não coloca a esperança nas riquezas. Finalmente a Poesia termina com
louvor a tais bem-aventurados: v. 11.

25
26
O ponto central do Canto (vs. 9-10) são palavras céticas, de dúvida: existe verdadeiramente
alguém que passa pelos bens criados, sem apegos, sem manchas? Esta interrogação valoriza mais
ainda a razão de se exaltar que a eles não se apega.
Notas exegéticas
8
Feliz é todo aquele, que sem mancha foi achado, que não correu atrás do ouro, nem
colocou sua esperança no dinheiro e nas riquezas!
Pelo simples fato de terem sido criador por Deus, os bens materiais são bons. Tanto que
foram canonizados tão logo passaram a existir: Gn 1,1ss. Todavia, ao manipula-los, a criatura
humana freqüentemente os absolutiza. Tornam-se finalidade. Ou mais concretamente, viram
ídolos. Feliz, ou melhor, bem-aventurado (makários) quem não se deixa corromper. Colocar a
esperança na riqueza é o mesmo eu idolatria.
9
Quem é ele? E o louvaremos, pois, fez prodígios em sua vida!
A pergunta chega a ser irônica, para não se dizer, cética. O Escritor Sagrado apenas quer
dizer que é muito difícil encontrar quem não se apegue aos bens materiais. Isto é o mesmo que
idolatria.
10
Quem foi tentado pelo ouro e perfeito foi achado, glória eterna há de alcançar. Ele
podia transgredir a lei, mas não o fez; fazer o mal ele podia, mas não o praticou;
Em quem colocar as esperanças (v. 8): em Deus ou nas potências terrenas? A tentação da
segurança mais palpável, mais imediata é gritante. Deixar Deus pelas riquezas chega a parecer
prudência ou até sabedoria, ao menos em determinadas circunstâncias. Só o verdadeiramente santo
não o faz. A questão é ou de bem-aventurança (v. 8), ou de maldição: Jr 17,5-8.
11
seus bens serão consolidados e a assembléia dos eleitos louvará seus benefícios.
Quem põe no Senhor sua segurança terá garantido os verdadeiros bens, e será por todos
proclamado bem-aventurado.
Ensinamentos
Pouco antes do Canto, o Autor escrevera o lamentável estado do rico desonesto: a insônia
lhe devora a vida. Quem ama os bens terrenos, diz, cai inevitavelmente no pecado. No fim,
contrariando todo o pensar humano, afirma que o ouro é uma cilada: Eclo 31,1-7. Em
contrapartida, é apresentado não o pobre, como se esperaria, mas o rico honesto, o que se alimenta
à mesa da sabedoria, da prudência, e do entendimento que lhe são servidas: Eclo 15,3.
Sintetizando, poder-se-ia dizer que o Canto recomenda a confiança, a segurança em Deus,
embora sejam tantas as solicitações dos ídolos ocultos nas riquezas.
Oração
Sou fruto de uma cultura, ó meu Senhor. Por mais que tenha sido catequizado em vossos
ensinamentos, sinto-me impregnado pelo pragmatismo de um ambiente consumidor, fruidor,
acumulador. Insistem em me mostrar a chamada eficácia dos bens terrenos, que abrem tantas
portas. Esforçam-se por me provar que isto é previdência e providência.
E tantos desses bens foram colocados ao meu serviço, dados a mim, pessoalmente. Como é
atraente essa tentação! Até mais que as outras. Como é pequeno o passo que me leva a transformá-
los em finalidades.
Reconheço, portanto, que é feliz quem não corre atrás do ouro, como se fora o único ou o
maior dos bens: v. 8. Sim, é feliz quem não coloca suas esperanças nas riquezas: v. 8. Reconheço:
faz prodígios em sua vida: v. 9. É digno de todo louvor e de toda recompensa quem pode fazer o
mal e não o faz: v. 10.
Meu bom Deus! Dai-me a firmeza do verdadeiro discípulo, e que a minha eu a coloque em
vós, somente. Que eu, contemplando os lírios do campo e as aves do céu, descubra o quanto me
amais e como em vós devo colocar minha segurança.
Resumo e reflexão
Feliz é quem não corre atrás de ouro.
“Olhai os lírios do campo e as aves do céu.” Disse Jesus aos que não confiavam na
providência.
Feliz quem coloca no Senhor sua esperança.
ECLESIÁSTICO 36,1-7.13-19
O Canto na vida
26
27
O Eclesiástico deve ter sido escrito pelo ano 180 aC. Uma das razões é que não se sente no
livro a forte oposição à cultura helênica, que aconteceu principalmente a partir de 167, quando
Antíoco IV dedicou o templo de Jerusalém a Zeus Olímpico, dando início à revolta dos macabeus:
1Mc 1-2.
Isto não significa que pelo ano 180 a situação estivesse absolutamente tranqüila entre os
judeus; haviam disputas internas entre os sumo-sacerdotes, atritos com os seleucidas. Ajunta-se o
grave problema dos inúmeros judeus vivendo na diáspora. As mais variadas razões levaram grande
número deles viver fora da pátria, o que além de tudo era um perigo contra a unidade nacional e
contra a fé.
O Canto é Súplica Comunitária (1o. Vol. pág. ), e deve ser colocado nesse contexto.
Dada a diferente escolha dos originais, os versículos são enumerados com alguma alteração,
conforme a edição bíblica. Em caso de diferença confrontar Eclo 36,1-7.13-18 com Eclo 36,1-
5.10-17.
Divisão
a
1 . Parte litúrgica: vs. 1-16
Introdução
Súplica introdutória pedindo auxílio divino: v.1.
Corpo
Roga-se que os povos que não querem conhecer os desígnios Deus, o façam: 2-3.
Que os povos conheçam a glória do único Deus: vs. 4-5.
São pedidos portentos, unificando o povo disperso: vs. 6-7.11.
Súplica de perdão em prol do povo santo: vs. 14-15.
Conclusão
Roga-se pela glória de Jerusalém com a unificação do povo: v. 16.
2a. Parte litúrgica: vs. 14-19
Introdução
Súplica de piedade em prol do povo e de Sião: vs. 14-15.
Corpo
Pedido de unificação do povo em Jerusalém: v. 16.
Roga-se que o Senhor testemunhe em prol dos hebreus: v. 17.
Invocação do cumprimento das profecias benfazejas ao povo: b. 18.
Conclusão
Que os habitantes da terra reconheçam o poder de Javé: v. 19.
Recursos literários
Não se fala explicitamente qual é o problema que os hebreus vivem no momento. Mas a
tonalidade suplicante se faz presente em cada verso. Várias vezes se repete a expressão “tende
piedade”, sem maior explicitação da presença do pecado.
No lugar a esperada confissão de culpa, quando dos pedidos de piedade, aparece a menção
de povos opressores. Ao menos a povos encarados com pouca simpatia. Portanto, roga-se
poeticamente, por uma nova manifestação divina, como aconteceu por ocasião do êxodo. Desta
maneira o Canto podia ser usado nas mais variadas situações, quando surgiam problemas de
relacionamento com outras nações.
Notas exegéticas
a
1 . Parte litúrgica: vs.1-16 (1-13)
1
Tende piedade e compaixão, Deus do universo, e mostrai-nos vossa luz, vosso perdão!
Velada referência ao pecado ocasionador de tanto sofrimento pelo qual passa o povo. Pedido
de piedade que é, ao mesmo tempo, de perdão e de libertação.
2
Espalhai vosso temor sobre as nações, sobre os povos que não querem procurar-vos,
para que saibam que só vós é que sois Deus, e proclamem vossas grandes maravilhas.
3
Levantai a vossa mão contra os estranhos, para que vejam como é grande a vossa
força. (v. 2)
Javé, que é o Deus do universo (v. 1), tem condições de restaurar a ordem alterada pelas
nações. Com isto o reconhecerão como o único Senhor, o que opera maravilhas, o que é poderoso.

27
28
4
Como em nós lhes demonstrastes santidade, assim mostrai-nos vossa glória através
deles (v. 3)
5
para que saibam e confessem como nós que não há um outro Deus, além de vós! (v. 4)
Quando da saída do Egito, Javé mostrou sua santidade aos opressores, libertando os
escravos. Aos judeus, por meio do castigo infligido a quem o oprimia, manifestou a glória. Que o
Senhor se repetisse da mesma maneira, agora, dado que passavam por necessidades semelhantes.
Deste modo as nações se uniriam aos hebreus para louvara a Deus.
6
Renovai vossos prodígios e portentos,
7
glorificai o vosso braço poderoso! (v. 5)
Pedidos de libertação, a qual, acontecendo, revelaria aos mais refratários o poder divino.
Deus testemunharia o seu poder.
8-12 (6-9)
Versículos fortemente imprecatórios (1o. vol. pág. ) omitidos pela Liturgia das Horas.
13
Reuni todas as tribos de Jacó, e recebam, como outrora, a vossa herança. (v. 10)
As diversas tribos, chegando a Canaã, depois do êxodo, foram se acomodando cada qual
numa porção de terra. Pede-se, agora, que os judeus dispersos pelo mundo, possam, como outrora
se reunir, recebendo a herança que lhes cabia.
14
Deste povo que é vosso, tende pena, e de Israel de quem fizestes primogênito, e a
quem chamastes com o vosso próprio nome! (v.11)
Em força da aliança os hebreus se tornaram o povo de Deus por excelência: Ex 19,5-6. Daí
os judeus se chamarem primogênitos do Senhor, o povo que traz o nome divino.
15
Apiedai-vos de Sião, vossa cidade, o lugar santificado onde habitais! (v. 12)
16
Enchei Jerusalém com vossos feitos, e vosso povo, com a luz de vossa glória! (v. 13)
Roga-se agora por Jerusalém. Que ela possa acolher todos os judeus vindos das diásporas,
da mesma maneira como a Terra Prometida fizera com os hebreus vindos do Egito.
2a. Parte litúrgica: vs. 14-19 (11-17)
14-16 (vs. 11-13)
Ver 1a. Parte litúrgica
17
Dai testemunho em favor dos que são vossos, que são vossas criaturas desde o início!
(v. 14)
Os judeus são criaturas de Deus, porque previstos quando da vocação de Abraão: Gn 12,1-2.
A especial criação, contudo, se deu por ocasião da aliança. Tornaram-se o povo predileto
entre os demais povos: Ex 19,5ss. Tanto que quando pecavam, rompiam a aliança com o Senhor,
precisando, como tal ser “recriado”.
18
Fazei que se realizem as palavras, que em vosso nome os profetas proferiram. Dai
recompensa aos que a vós se confiaram, para os profetas serem tidos verdadeiros. Ouvi as
orações de vossos servos, (v.15)
Os profetas afirmavam que, havendo a conversão, Javé acolheria seu povo, libertá-lo-ia de
seus problemas. Todavia, em sua misericórdia chegava a libertá-lo antes mesmo da conversão,
pois sempre foi fiel à palavra dada. Esta mensagem profética é agora recordada ao Criador.
19
conforme a bênção de Aarão ao vosso povo e conduzi-nos no caminho da justiça, para
que saibam os que habitam toda a terra, que sois o Deus, que contemplais todos os séculos.
(vs. 16-17)
A bênção de Aarão era preceituada aos sacerdotes em favor do povo: Nm 6,22-27. Assim
deveriam invocar a proteção divina, sobremaneira depois das funções litúrgicas. Concretizada a
bênção, os judeus caminhariam pelo caminho da justiça, e os demais povos reconheceriam Javé
como o Deus único e para sempre.
Ensinamentos
O clamor dos hebreus escravos no Egito chegou aos céus, e com isso Javé desce para libertá-
los: Ex 3,7ss. Concretizando a libertação, o povo teria os memoriais dados pelo Senhor, e por eles
Javé continuaria se fazendo presente no longo processo libertário, através da história. Mas no
decurso de sua existência, o povo prevaricava e as inevitáveis provações eram vistas como
purificação que levavam à sucessiva libertação. Assim, Deus continuava sempre fiel à sua palavra.

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29
Agora, conseqüência da destruição de Israel (722 aC.), conseqüência do Cativeiro da
Babilônia (586-538), e por razões outras, tantos judeus estavam fora da pátria. Em Israel a
situação se complicava com o passar dos dias. Era o momento de Javé intervir criando um novo
êxodo. Desta maneira todas as nações o reconheceriam como o Deus único, e se concretizariam as
profecias anunciando que todos os povos acorreriam a Jerusalém a qual, como mãe os abrigaria na
paz: Is 60,1ss.
Oração
Sois o Deus do universo (v. 1) e eu o reconheço com todas as veras do meu coração. Nem
sempre, porém, vejo povos e nações obedecendo a vossa vontade. Parecem ignorá-lo, quando não,
afrontá-lo. E com isso cresce tanto o sofrimento na face da terra. Chego, então, a interrogar:
quando sobre eles manifestareis vossa força (v. 3) para que proclamem vossas maravilhas (v. 2),
quando em nós mostrareis vossa santidade, tocando-as sensivelmente, para que vejam vossa glória
(v. 4)?
Ante tanto desacerto, sinto a necessidade de suplicar como os discípulos: quando se
instaurará o vosso Reino? Quando se reunirão todas as tribos de Jacó (v. 13), quando todos os
povos serão uma única família, sem explorados e sem exploradores? Quando todos se abrigarão às
sombras da verdadeira Sião (vs. 15-16) para que em comunhão vos louvemos?
Que se cumpram as palavras de vossos mensageiros (v. 18), e que confraternizadas, todas as
nações caminhem na justiça e vos reconheçam como o único Senhor: v. 19.
Resumo e reflexão
1a. Parte litúrgica: vs. 1-7.13-16 (1-13)
Mostrai vossa luz, Deus do universo, e vosso perdão.
De Jerusalém arrasada o Profeta afirmou que se transformaria em mãe acolhedora de todos
os povos.
Enchei Jerusalém com vossos feitos.
2a. Parte litúrgica: vs. 14-19 (11-17)
Tem compaixão de vosso povo, ó Senhor.
As trevas que no Egito envolviam os opressores, para que os judeus escravos era luz
fulgurante.
Enchei Jerusalém com vossos feitos.
ECLESIÁSTICO 39,17-21
O Canto na vida
Ben Sirac, o autor de Eclesiástico, cedo iniciou seus estudos escriturísticos, segundo o
Prólogo de seu livro. Preocupou-se para que tantos outros tivessem a mesma ventura. Dedicou-se,
então, ao ensinamento, formando gerações: Eclo 51,23-30. Revelou-se exímio escritor, usando
com maestria os mais variados gêneros literários e modalidades de composição: prosa, hinos,
provérbios, comparações, aforismos, poesia, etc.
Eclo 39,17-21 é um exemplo a capacidade literária e artística de Ben Sirac. O Canto é uma
bela e elegante composição que vai crescendo poeticamente a cada verso. Trata-se de um Hino (1 o.
Vol. pág. ) no qual se convida a louvar a Deus Criador.
Dadas as diferentes enumerações dos versículos segundo as traduções, Eclo 39,17-21 pode
ser confrontada com Eclo 39,13-16.
Divisão
Introdução
Chamada de atenção ao que será dito: v. 17a.
Corpo
Que os rebentos santos:
 Desabrochem como a roseira: v. 17b.
 Exalem perfume como o incenso: v. 18.
 Floresçam e perfumem como o lírio: v. 19 a.
 Entoem hinos ao Senhor: v. 19b.
 Exaltem e glorifiquem a Deus com cantos e musica: v. 20.
Conclusão
29
30
As obras do Senhor são excelentes: v. 21.
Recursos literários
O Autor de imediato se revela mestre: antes de abrir os lábios, chama a atenção dos alunos, e
o faz muito elegantemente. Conquistado o objetivo, demonstra logo que não o fez em vão. Num
crescendo ritmado parece envolver a classe para que uníssona e crescentemente louve a Deus.
Evoca as rosas belas e perfumadas, o incenso exalante, o lírio inebriante. Que todos, como eles, se
vestissem de beleza, de sacralidade, de trescalância no louvor ao Senhor.
A seguir, dirige-se às criaturas racionais, para que livres, com os corações inflamados e com
belas palavras nos lábios, glorifiquem a Deus. No louvor não podem se inferiorizar aos demais
seres. E a conclusão incisiva é o toque final de tudo: “todas as obras do Senhor são excelentes”.
Notas exegéticas
17
Ouvi-me e escutai, rebentos santos, desabrochai como a roseira, junto ao rio! (v. 13)
Como que se dirigindo a alunos, o Autor pede um mínimo de atenção. A importância do que
será dito e feito impõe tanta concentração. Os discípulos ou ouvintes são chamados de rebentos
santos, isto é, de piedosos filhos ou descendentes de Abraão. Deverão, inicialmente, desabrochar
os corações como roseiras plantadas à beira do rio.
¨18
Como incenso, exalai suave aroma, (vs. 14a)
Todos sabiam da importância do incenso no culto sagrado, quando das celebrações, no
templo em Jerusalém. Sua fumaça subia qual agradável perfume ante o trono divino: Ex 30,34-36.
Cada judeu deveria ser um agradável incenso ante o Senhor.
19
Como o lírio, florescei e perfumai! Entoai os vossos cantos de louvor, bendizei por
vossas obras o Senhor! (vs. 14b-c)
O lírio, com sua beleza original, com seu olor característico, seria fonte inspiradora ao
coração do piedoso israelita. Como todos eles juntos (rosa, incenso, lírio), e mais que eles, o
seguidor do Senhor deve exaltá-lo, louvá-lo.
20
O nome do Senhor engrandecei, glorificai-o com a voz dos vossos lábios! Com a
música e ao som de vossas harpas, e, à guisa de louvor, assim dizei; (v. 15)
21
“Todas as obras do Senhor são excelentes!” (v. 16)
Insistência no louvor ao Senhor, agora com o acompanhamento de harpas. E enquanto se
louvava, era de se declamar em altas vozes o objetivo final do Canto: dizer que a obra do Senhor
era perfeita.
Ensinamentos
Embora fosse da teologia judaica mais proclamar as maravilhas do Senhor na história
salvífica, também dela é aclamar a grandeza da criação. E quem o fazia era um povo que vivia
atribulado pelas injustiças humanas. Ao judeu, dadas as seguidas dominações e invasões sofridas,
era de se interrogar se não poderia o Criador ter feito uma obra melhor.
Refletindo a criação, reconhecia que os desacertos no mundo não saíram das mãos divinas.
Eram frutos do pecado, quer do povo santo, quer dos demais povos, é o que dizem os primeiros
capítulos do Gênesis: tudo saiu perfeita das mãos divinas. Na maravilha da criação, e precisamente
por meio do ser humano, entrou o pecado desestruturador na face da terra. Agora, tudo deve ser
reestruturado no Senhor.
Digna de atenção, ainda, é que a exaltação ao Senhor é de serem puros , santos e belos os
corações, como belos e santos são as flores e o incenso que sobre a Deus.
Oração
Quem pode ficar insensível às obras de vossas mãos, ó meu Deus? Tudo grita, tudo
proclama vosso nome santo. Tudo fala de vosso amor, de vossa sabedoria, de vossa bondade.
Todavia, vejo o quanto danificamos as obras de vossas mãos. Nossa ganância nos leva a uma
auto-destruição. Pior ainda: contemplando tantas conquistas humanas, fruto da inteligência a nós
concedida, permito que suas vozes sufoquem a vossa, em meu peito. Deixo de ler no livro pura da
criação, para apenas admirar a alta tecnologia, freqüentemente desumana, quando não assassina.
Agora quero escutar vossa voz: v. 7 . Por isso vos rogo: dai-me antes um coração belo e
fragrante como a rosa e seu perfume, dai-me a leveza e a santidade do incenso perfumado que
sobe a vós: vs. 17-18. Fazei que antes de entoar cantos de louvor, eu me vista e me ornamente
como um lírio: v. 19.
30
31
Exalto o vosso nome com meus lábios, com meu coração, ao som da harpa: v. 20. Clamo
sinceramente: todas as vossas obras, ó Senhor, são excelentes.
Resumo e reflexão
Entoai os vossos cantos de louvor.
O artista nada mais faz que retratar as maravilhas da natureza. Mais digno de louvor e de
admiração é quem a criou.
Todas as obras do Senhor são excelentes.
ISAIAS 2,2-5
O Canto na vida
Por muito tempo Isaias foi tido como um livro uno e único. Hoje aceita-se pacificamente ser
originário de três autores distintos, que viveram em épocas diferentes, consequentemente se
envolvendo com pessoas e fatos bem distantes, uns dos outros. Portanto, o Livro se divide em três
grande partes:
1. Proto-Isaias: 1-39.
2. Deutero-Isaias: 40-55.
3. Trito-Isaias: 56-66.
Os autores têm vínculos conceituais e literários muito próximos, revelando pertencer à
mesma escola. O autor de Proto-Isaias é o Isaias, filho de Amós: Is 1,1. O nome significa Javé
salva. Ao que tudo indica, era de Jerusalém, de sangue azul ou ao menos nobre. Nasceu entre os
anos 770-760 aC. Alma piedosa e escritor dotado, foi chamado ao profetismo, no templo. No ano
da morte do rei Ozias (Is 6,1), tendo na ocasião cerca de 25 anos. Como jerosolimitano, terá
escrito com o maior orgulho o Canto que estudamos, que pode ser classificado como de Sião: 1 º
Vol. pág.
Divisão
Introdução
Proclamação da excelência do monte do Senhor: v. 1.
Corpo
Os povos, à porfia, ocorrem a Jerusalém, buscando a santidade: v. 3.
Descrição da paz messiânica entre as nações: v. 4.
Conclusão
Convite para se caminhar com o Senhor: v. 5.
Recursos literários
Isaias, um dos maiores poetas judeus, manobra com maestria os mais variados gêneros
literários. Presenteia-nos com um oráculo de salvação, fazendo preciosos vaticínios escatológicos
sobre Jerusalém. É verdade que o mesmo Canto, com algumas variantes é encontrável em Mq 4,1-
3. Não é o caso de se investigar o problema da fonte. Outros escritos do Poeta testemunham sua
capacidade de escrever o texto em estudo.
Is 2.2-5, um dos mais belos Cantos do Antigo Testamento, deixa a impressão de que
primeiro o Poeta contempla, donde está, o fim do templo. Nesse futuro indeterminado descobre
que o monte do santuário excede as demais montanhas.
A seguir, deixa a impressão de que, desse pondo nobre e altaneiro, ele tanto ouve os povos
se convidando, se animando para a subida, assim como vê as caravanas a ele acorrendo. Mais
impressionante se torna a visão descortinada das armas se transformando em instrumento
agrícolas.
O v. 3 é uma sucessão de belos paralelismos sinonímicos enfatizando as mesmas idéias, mas
usando recursos variados que eliminam qualquer monotonia.
Notas exegéticas
2
Eis que vai acontecer no fim dos tempos, que o monte onde está a casa do Senhor será
erguido muito acima de outros montes, e elevado bem mais alto que as colinas. Para ele
acorrerão todas as gentes,
O templo de Jerusalém foi construído por Salomão, sobre o monte Mória. Sem dúvida, não
são os aproximados 770 metros acima do nível do mar que levam o Profeta ao entusiasmo de
compará-lo às demais colinas, num confronto mundial. É movido não pela altimetria, e sim, por

31
32
razões teológicas, religiosas. Basta dizer que os israelitas consideravam o templo de Jerusalém
como réplica do celestial, onde Deus morava: Ê 25,40.
3
muitos povos chegarão ali dizendo: “Vinde, subamos a montanha do Senhor, vamos à
casa do Senhor Deus de Israel, para que ele nos ensine seus caminhos, e trilhemos todos nós
suas veredas. Pois de Sião a sua Lei há de sair, Jerusalém espalhará sua Palavra”.
Primeiro há um afluxo natural para o tempo de Jerusalém que se torna o centro de atração
universal, por algo que de lá emana. A seguir, parece que os povos falam a língua comum da
fraternidade, animando-se mutuamente para a subida, sentindo que vai além do simples galgar
alturas. Finalmente se descobre o centro gravitacional a atrair todos: lá está o Senhor. Dele é que
vem a lei, os ensinamentos, as sendas da felicidade. Javé deixa de ser o Deus nacional, o Deus só
dos israelitas.
4
Será ele o Juiz entre as nações e o árbitro dos povos numerosos. Das espadas farão
relhas de arado e das lanças forjarão s suas foices.
As pendências entre os povos não serão mais resolvidas pela força das armas, quando o mais
forte leva a melhor, sendo a força, sinônimo de verdade. Deus será o árbitro entre os povos. Então,
acontecerá o reinado da verdade e do amor. Neste ambiente, as armas se tornarão obsoletas, sendo
transformadas em arados e foices. O que era sinônimo de morte passa a ser instrumento de vida.
Não haverá mais exercícios para a guerra; ao contrário, “cada qual sentar-se-á sob sua videira e
sua figueira, sem sobressaltos”, como diz Mq 4,4, cujo término é duplicata de Is 2,2-5.
5
Vinde, ó casa de Jacó, vinde, achegai-vos, caminhemos sob a luz do nosso Deus!
O convite se dirige à casa de Jacó, isto é, aos judeus fiéis, para que encabecem o grande
cortejo que deve caminhar à luz divina, tema querido na escola isaiana: Is 60,1ss.
Ensinamentos
Inúmeras religiões tiveram suas montanhas sagradas. Assim, os judeus, com o monte Mória,
os samaritanos com o Garizim: Jo 4,20. É de se recordar o Sinai, o Carmelo. Os israelitas,
principalmente em seus momentos de fraqueza, como tantos povos, cultuavam nos lugares altos.
As explicações para tal predileção são várias. Uma, por se destacarem na planície, rasgando
o céu, dando a impressão de estarem mais perto de Deus. Os formatos característicos, quando era
o caso, alimentavam a alma dos povos primitivos. Outra, a inacessibilidade, assim como a
estabilidade terão chamado a atenção dos primeiros cultuadores. Estas e outras razões mais
transformaram tantas montanhas em verdadeiros Olimpos, em moradias dos deuses.
Exaltando o monte onde está a casa do Senhor, Isaias fala na transcendência divina, tema do
coração do Profeta: Is 6,1ss. Mas fala também de um Deus que está com os seus, e que quer
acolher todos, indiscriminadamente.
A acolhida é para construir, começando aqui na terra, um convívio pacífico entre os seres
humanos. É a Jerusalém, mãe de todos os povos: Sl 86 (87). Não é ela uma cidade física, mas
espiritual. A Jerusalém almejada por todos, iluminada apenas pela glória de Deus: Ap 21,23.
Oração
Quantas pessoas, Senhor, sentem-se alucinadas e envoltas por uma curiosidade mórbida,
pretendendo conhecer o que acontecerá no chamado fim dos tempos. Quantas, por meios tão
estranhos, imaginam desvendar segredos que são só vossos. Como se fôsseis manipulável.
Quão lamentável é a alienação que daí se origina, deixando-se de assumir um presente
comprometido; e mais lamentável ainda, é a inexistência de qualquer apelo à conversão.
Anunciais, pelo Profeta, maravilhosos tempos futuros, quando vosso monte santo será o
centro de atração de todos os povos: vs. 2-3. Todos se sentirão atraídos por vós, pois só de vós
vem a lei, a luz, a santidade: v. 3.
Mais importante ainda: os que se deixam ser guiados por vós, o Juiz de todos os povos,
darão início ao almejado reinado da paz, quando o ódio cederá lugar ao amor, quando não haverá
mais lugar para as armas mortíferas: v.4.
Com vosso Filho e nosso irmão, Cristo Jesus, teve início, e não o fim, a plenitude dos
tempos: Gl 4,4. Com ele o reinado das bem-aventuranças, marcado pela presença atuante dos
pacíficos, dos pacificadores: Mt 5,1ss. Que eu seja, bom Pai Celestial, acolhedor e irradiador da
paz doada por vosso Filho: Jo 20,19-21. Agente desta paz, colaborarei para que a humanidade toda
caminhe, à vossa luz (v. 5), até o encontro definitivo convosco, com os irmãos.
32
33
Resumo e reflexão
O monte do Senhor atrairá todos os povos que procuram a luz divina.
A montanha do Sinai fumegava, quando da aliança, pois o Senhor descera sobre ela em meio
ao fogo. Ela tremia violentamente.
Caminhemos sob a luz do Senhor.
ISAIAS 9,1-6
O Canto na vida
Isaías viveu numa época conturbada para os judeus. A Assíria, sob Teglat-Falasr III (747-
727), tornou-se potência militar imbatível e expansionista. Israel logo sentiria o tacão das botas
dos militares assírios. A seguir, algo sobraria também para Judá.
A guerra siro-efraimita contra Judá, e o apelo que seu rei fez à Assíria (2Rs 16,5-9), foi
ocasião para a intervenção de Teglar-Falasar, em Israel, tomando o norte da Palestina, em 732 aC.
Isaias dirigiu-se, então, às tribos anexadas de Zebulon e de Neftali, anunciando que os dias de
humilhação, seguiriam outros de glória: Is 8,23.
O Cântico está intimamente ligado a esses fatos, porém faz parte de um grande bloco
conhecido como “Livro do Emanuel”: Is 7-12. O centro animador e unificador, o centro de
interesse é uma misteriosa e excepcional criança, descrita com prerrogativas reais e questionantes.
O Canto pode se enquadrar entre os Reais: 1º Vol. pág.
Divisão
Introdução
Anúncio de salvação a um povo oprimido: v. 1.
Corpo
Promessa de grande alegria a um povo sofredor: v. 2.
Promessa de vitória contra o dominador: vs. 3-4.
Anúncio do nascimento de uma criança salvadora: v. 5.
Conclusão
A criança, rei davídico, reinará sempre: v. 6.
Recursos literários
Isaias nos brindou com belos e excelentes cânticos, peças raras da literatura israelita. O que
se estuda, no momento, é uma página messiânica das mais brilhantes. Paralelismos sinonímicos e
sentenças lapidares se sucedem, cadenciados, incisivos. “Vagar nas trevas” e “estar deitando na
sombra da morte” (v. 1), são perfeitos paralelismos sinonímicos, e por mais paradoxal que possa
parecer referem-se aos habitantes do sheol, região dos mortos.
O v. 3 é também paralelismo sinonímico com reticências e progressivo:
“Porque o jugo que pesava sobre eles, por vós foi quebrado.
E a vara que feria os vossos ombros “ “ “ “ “ “, como no dia de Madian”.
O Profeta é envolvente, concentrando a atenção de seus ouvintes. Com imagens ricas e
coloridas, vai falando de algo extraordinário a acontecer, criando suspense. No final se descobre
que a causa de tamanha alegria e mudança, é o nascimento de uma criança mui dotada e
misteriosa, cuja natureza deve ser descoberta.
Notas exegéticas
1
O povo que vagava, em meio às trevas, viu uma luz de grande brilho; aos que na
sombra da morte estão deitados, uma luz resplandeceu.
O Profeta se dirige diretamente aos judeus das tribos de Zabulon e de Neftali, então sob o
domínio assírio. Estavam nas trevas, mas uma luz brilharia para eles, por algo especial que
aconteceria. Vagar pelas trevas ou estar deitado à sombra da morte, é o mesmo que habitar no
sheol ou pertencer ao reino da morte. O versículo retrata a dolorosa situação dos judeus que lá
viviam.
2
Tornastes este povo numeroso e a alegria lhe aumentastes. Como aqueles que se
alegram na colheita, perante vós se rejubilam; como exultam os guerreiros vencedores na
partilha dos despojos.
O Canto agora se dirige inesperadamente ao povo israelita. Consequentemente há mudança
da pessoa pronominal. A passagem das trevas para a luz, ou da morte para a vida, não foi imagem
suficientemente completa, no pensar do Profeta, para descrever a grande felicidade do povo. Duas
33
34
outras, e bem inteligíveis, são ajuntadas: a alegria da colheita, que por sinal era celebrada
ritualmente (Lv 23,39-43), e a alegria do butim. Os soldados não recebiam soldos; uma vez
vencedores, tornavam-se proprietários de tudo o que podiam espoliar: Jz 5,30
3
Porque o jugo que pesava sobre eles por vós mesmo foi quebrado e a vara que feria os
seus ombros, como no dia de Madian.
O Profeta detém outros recursos literários para mostrar quão grande seria a alegria: como a
de quem se liberta de pesada carga. Jugo era a peça de maneira colocada sobre os bois, para puxar
a carga. Vara está por canga, também peça de maneira, adaptada aos ombros, para se carregar
pesos colocados nas duas extremidades. Tudo recordava a vitória sobre os madianitas, sem esforço
da parte dos judeus: Jz 7,9-25.
4
Pois toda bota com que marcha o guerreiro, no tumulto da batalha, e toda veste
ensangüentada, entre chamas, de pasto ao fogo hão de servir.
Em Is 2,4, as armas são transformada em utensílios agrícolas, Agora se diz que os coturnos e
as fardas ensangüentadas serão devoradas pelo fogo. Os assírios usavam botas de guerra, mais ou
menos como os calçados com cravos, usados pelos soldados sirio-gregos. É anunciada uma era de
paz!
5
Pois nasceu um menino para nós, e um filho nos foi dado. Ele tem sobre os seus
ombros o domínio e seu nome há de ser: “Admirável”, “Conselheiro”, e “Deus forte”, “Pai
eterno” e “Rei da paz”;
Causa de tamanha mudança: nasceu-nos um menino. Anteriormente se falou de uma criança
especial, nascida excepcionalmente: Is 7,14-15. Sutilmente se esboça os traços da criança; não é
retratada com nitidez. Como que para não impactuar. A criança é príncipe (tem domínio). O termo
“mishra”, aqui usado, é repetido no versículo seguinte, com o sentido de principado. Como que
num jogo de mostrar e esconder, desafinado a perspicácia do leitor, são apresentados quatros
nomes (companheiro, herói, pai, príncipe), com especificações significativas que desafiam até os
especialistas: admirável, divino, eterno, pacífico. É lícito interrogar se não existem conotações
divinas nos diversos apelativos, embora isto não passasse necessariamente pela cabeça do Profeta:
Conselheiro excepcional, admirável: Is 28,29.
 Herói divino ou Deus forte: Is 10,21.
 Pai ou chefe eterno.
 Príncipe da paz.
Os dois primeiros nomes questionam até a exegese hebraica pelas inegáveis conotações
divinas do nascituro descendente de Davi.
6
Seu reinado sempre mais se estenderá e a paz não terá fim. Sobre o trono de Davi se
assentará e sobre ele reinará, a fim de reerguê-lo e firmá-lo no direito e na justiça. Isto, o
zelo do Senhor do universo haverá de realizar.
A profecia de Natã se cumpre, indo além do simples enunciado (2Sm 7,16), pois não é
apenas a dinastia davídica, mas também um príncipe e um reinado que serão eternos. Reinado de
paz, do amor, da justiça, do direito. É o zelo do Senhor que realiza estas maravilhas.
Ensinamentos
Com razão se disse que o profeta não profetizava para si, mas para os pósteros. É lícito,
então perguntar o que pensava Isaias quando foi inspirado a escrever o que escreveu. É lícito
investigar, em primeiro lugar o chamado sentido literal do texto, que é o sentido dado pelo Escritor
Sagrado. Só uma especial revelação poderia dizer-lhe que profetizava o que hoje deduzimos do
texto, e cremos. Mas além do ser humano, também Deus é autor das Escrituras. Então é de se
interrogar igualmente: que desejou o Senhor dizer por meio do Profeta, que nos fala por meio do
chamado sentido pleno?
A exegese judaica fez várias aplicações desta passagem, incluindo uma célebre, vendo-a
concretizada no rei Ezequias. Todavia, nenhuma delas correspondeu, mesmo aproximadamente ao
que diz o texto. Foi ainda forçada a explicar as conotações de divindade que adornam a criança, o
que se choca frontalmente com a teologia judaica.
A teologia cristã, não ignorando algumas dificuldades, vê em Cristo e em sua mensagem, o
cumprimento da profecia. Realmente Jesus é o príncipe da paz, ou a mesma paz, o Deus-conosco,

34
35
o descendente de Davi, o único a reinar. É o Deus poderoso que reina com a força do amor, o que
assenta as bases de um reinado de paz e de justiça.
Oração
Ó meu Deus! Quem imaginaria que a guerra se tornasse um espetáculo televisivo, como uma
partida de futebol?!... Isto foi dado ver a esta geração!
Quantos milhões, quanta tecnologia a serviço da morte, a serviço da ganância! E nossos
hospitais morrendo às minguas, juntamente com os pacientes, que ainda morrem mais
celeremente.
Como a vida e a cultura valem pouco ante os interesses mais obscuros, ante a fome de
domínio e de lucros fáceis! Como ainda estamos vagando em meio às trevas, como estamos
sentados na mais negra escuridão! Como os corações carecem de uma luz que ilumine: v. 1!
E já nos foi dada uma criança que tem o domínio em seus ombros, o Deus forte, o Rei da
paz: v. 5. A verdade, porém, é que as trevas continuam não o recebendo: Jo 3,19. Continuamos
com o jugo nos abatendo, com a vara ferindo nossos ombros que carregam um fardo odioso: v. 3.
Como desejamos que se calem os estrépitos das batalhas, que os coturnos dos guerreiros e as
fardas ensangüentadas sejam para sempre, consumidas pelo fogo: v. 4. Queremos a alegria e a
felicidade de quem colhe na abundância: v. 2.
Que o reinado definitivo do vosso Filho mais se estenda, que impere a paz, o direito, a
justiça: v. 6. Que possamos ser cada vez mais um cidadão desse reino.
Resumo e reflexão
Foi-nos dada uma criança para que os povos que vivem nas trevas, vejam a luz.
“Descubram onde nasceu o menino e me comuniquem”, disse Herodes aos magos, “para que
eu vá adorá-lo.”
Seu reinado é para sempre, e a paz não terá fim.
ISAIAS 12,1-6
O Cântico na vida
Is 12,1-6 são dois Cânticos com os quais termina o “Livro do Emanuel”, cuja introdução
está em Is 6. Fala-se de uma libertação, quando os israelitas cantarão, como acontecera com o
primeiro êxodo.
Há hipóteses afirmando que no início os dois cânticos eram uma única composição.
Alterações no texto transformaram-na em duas, sendo que a primeira (vs. 1-2) é de Ação de
Graças (1º Vol. pág. ), e a segunda (vs. 3-6), é Hino: 1º vol. pág. Não é apenas pela temática
desenvolvida que se chega a essa conclusão, mas pelas palavras introdutórias, antes de cada
Cântico: vs. 1a. 3-4. A Liturgia das Horas não traz o v. 1a.
O Canto está no Proto-Isaias (Is 1,1-39,8), e embora nele sejam encontráveis elementos
isaianos, nem todos o aceitam como originário da pena do Profeta. A razão é que apresentam
elementos pós-exílicos, como Ex 15,2 = v.2; Sl 104 (105),1 e Sl 148,13 = v.4. Porém, é válida a
pergunta: quem depende de quem?
Divisão
Tomando os Cânticos como um todo é possível a seguinte divisão:
Introdução
Ação de graças pela ira divina aplacada: v. 1.
Corpo
Apresentação de Javé como salvador: v. 2.
O Profeta convida ao louvor: vs. 3.4a
Os habitantes de Sião são convidados a louvar o Senhor: vs. 4b-6a.
Conclusão
Proclamação das grandezas divinas: v. 6b.
Recursos literários
O Autor do Hino compila com felicidade idéias, títulos e temas dos capítulos anteriores. O
pecado do povo acendera a ira divina, a Assíria se torna um bastão punitivo nas mãos de Deus (Is
10,5), e a guerra sirio-efraimita (735 aC) uma fonte de sofrimento. Javé, porém, é sempre fiel a si
mesmo, prometendo a salvação, prometendo o Salvador: Is 7,14. Assim, as vozes de
agradecimento e de louvor encontradas no Hino e tão bem trabalhadas pelo Profeta.
35
36
Agradecendo e louvando, o Cantor passa da 3ª pessoa singular onde se fala de Deus, para a
2ª plural, com uma série de imperativos: louvai, invocai, anunciai, proclamai, cantai, publicai,
exultai.
Notas exegéticas
1
Dou-vos graças, ó Senhor, porque estando irritado, acalmou-se a vossa ira e enfim me
consolastes.
Como acontece nos salmos do gênero, é dado o motivo do agradecimento, usando o
“porque” seguido de verbos no perfeito (texto original). Enfim aplacara-se o furor divino, que
como chama, tudo destruía: Is 9,7-20. Além disto, foi dada a consolação, por meio de uma criança
misteriosa: Is 7,14; 11,1ss.
2
Eis o Deus, meu Salvador, eu confio e nada temo; o Senhor é minha força, meu louvor
e salvação.
Ante a invasão dos sirio-efraimitas, Isaias mostra ao descrente Acaz que a salvação não
estava na aliança com os assírios, e sim, em Javé: Is 7,1ss. Em virtude do mal generalizado entre
dirigentes e dirigidos, o povo seria punido (Is 9,12-20); mas do rescaldo sairia o resto de Israel (Is
10,20-22), daí a segurança do Profeta.
3
Com alegria bebereis no manancial da salvação.
A primeira parte do versículo são palavras introdutórias do Profeta, ao iniciar o segundo
Canto. Javé é comparado a uma fonte onde se haure a salvação. A fonte é sinônimo de vida e de
salvação, e esse dom messiânico é dado a todos: Is 55,1. O Novo Testamento se servirá desta
metáfora mais de uma vez: Jo 7,37-39; Ap 7,17.
4
e direis naquele dia: “Daí louvores ao Senhor, invocai seu santo nome, anunciai suas
maravilhas, entre os povos proclamai que seu nome é o mais sublime.
O versículo traz lugares comuns encontráveis nos Sls 104 (105),1; 148,13. É uma série de
convites à ação. Deus deve ser louvado (ou agradecido),o nome santo ( = o próprio Javé) deve ser
invocado. As maravilhas divinas, de modo especial a salvação operada pelo Senhor, anunciadas
entre os povos. O nome santo deve ser proclamado.
5
Louvai cantando ao nosso Deus, que fez prodígios e portentos, publicai em toda a
terra suas grandes maravilhas!
A publicação das maravilhas de Deus será anunciada com cânticos. Portanto, deve haver
comunhão entre as palavras proferidas e o estado de alma. Tais maravilhas, conhecidas por toda a
terra, serão primordialmente os fatos extraordinários do Êxodo.
6
Exultai cantando alegres, habitantes de Sião, porque é grande em vosso meio o Deus
Santo de Israel, porque é grande em vosso meio o Deus Santo de Israel!”
Os habitantes de Jerusalém são convidados a exaltar o Santo de Israel. Afinal, era a cidade
por ele escolhida como morada. É clara a referência ao templo, que não tanto tempo depois, seria
destruído.
Ensinamentos
Buscar as consolações em Deus ou fora dele! Buscar a salvação e não necessariamente o
Salvador! Estas são duas realidades que assolam o coração humano.
Na azáfama de agarrar o concreto, o palpável, deixa-se a verdadeira fonte da felicidade:
Deus. Foi o que teria acontecido com nosso Cantor. Optando pelo transitório, sentiu a mão divina
que o punia, sentiu que nada o satisfazia. Reconhece que só Javé é a salvação, só nele se encontra
a verdadeira consolação! Fora dele há ira e com ela, sofrimento e frustração humana.
Tendo encontrado o manancial da salvação no Senhor, rende-lhe graças e convida todos os
habitantes de Sião para que publiquem em toda a terra suas grande maravilhas.
O Autor traz suas experiências de desencontro e encontro, para que sejam refletidas por
outros. Testemunha, ainda, a não conivência do Senhor com o mal, bem como a bondade e
misericórdia divinas; tudo traduzido na irritação. Com ela, pune o culpado, mas o faz
medicinalmente: para que se converta e viva. E de tal maneira o Salmista estava seguro da
misericórdia divina, que não obstante seus deméritos, e precisamente por isso, confia no Senhor, e
nada teme: v. 2.
O Senhor é perdão onde houver arrependimento.
Oração
36
37
Reconheço, ó meu Deus, que nem sempre os meus caminhos foram os vossos caminhos.
Tateei à procura de bens, de segurança, de consolações fora de vós, transformando-os em ídolos.
Estava seguro de viver realisticamente.
Mas estáveis em cada quebrada de meus caminhos. Sempre bondosamente. Fiz meus
ouvidos moucos aos vossos apelos, usastes outra linguagem... Provei o remédio amargo.
Vossa mão que pune conduziu-me ao manancial da salvação (v. 1), e acalmou-se vossa ira: v.
1. Encontrando em vós a verdadeira consolação (v. 1), posso, entre louvores, invocar o seu santo
nome, anunciar as vossas maravilhas entre os povos: v. 4.
Posso proclamar que sois meu salvador e minha força: v. 2. Que meu testemunho faça todos
cantar o nosso Deus que faz prodígios (v. 5), pois é grande o Santo de Israel: v. 6.
Resumo e reflexão
Quem bebe do manancial da salvação proclamará por toda a terra as maravilhas de Deus.
“Senhor, dá-me dessa água para não sentir mais sede e nem precisar vir aqui buscá-la.”
Disse a Samaritana que não compreendia bem a oferta de Jesus.
O Senhor é minha força e salvação.
ISAIAS 26,1-4.7-9.12
O Canto na vida
O Cântico faz parte de uma unidade que apresenta sérias dificuldades comentadas até por S.
Jerônimo. Esta unidade (Is 24-27) é conhecida como Apocalipse de Isaias, embora proveniente de
diversos escritores pós-exílicos, se não, por escritores mais próximos da era cristã.
Em grande parte é justo o título de apocalipse, pois apresenta elementos muito próximos
desse modo de escrever. A situação toda é crítica ou até desoladora; parece não haver mais solução
ou condições para reformas. Resta destruir o passado, e iniciar tudo de novo, criando uma nova
ordem de coisas.
Nosso Canto está como que sobre um pano de fundo degenerado e de maldade, como na
época do dilúvio. Salva-se apenas quem entra na arca. O Canto pode ser tido como de Confiança:
1º Vol. pág.
Divisão
Introdução
Sião é apresentada como cidade invencível: v. 1.
Corpo
Ordem para que as portas da cidade se abram para acolher os justos: v. 2.
Tranqüilidade dos habitantes da cidade: vs. 3-4.
Deus aplaina o caminho dos justos: vs. 7-8.
O justo deseja o Senhor dia e noite: v.9.
Conclusão
Pedido de paz: v. 12.
Recursos literários
O autor do Canto alterna palavras de confiança (vs. 1-4.8), versículo sapiencial (v. 7),
manifestações místicas (v. 9), súplica: v. 12. Nessa mudança toda, mudam também as pessoas
pronominais. É interessante confrontar a ação de Deus em Sião (v. 1), e em Moab (Is 25,9-12),
assim como a cidade excelsa: v. 5. É um confronto bastante ilustrativo.
Não terá passado desapercebido ao judeu, como acontecerá o mesmo, com todo leitor
habitual e atendo das Escrituras, a referência implícita que o Canto faz a Gn 6-9: a corrupção
generalizada do gênero humano. É quando acontece a punição divina. Todavia, salva-se quem
entra na arca.
Agora está sendo salvo de todo dilúvio destruidor, quem entrar pelas portas de Sião, cuja
segurança é o Senhor. Descrever uma realidade presente tendo em mente narrações passadas das
Escrituras é muito do gosto dos judeus, pois além do aspecto pedagógico, ilustrativo e do especial
modo de se fazer exegese, há também o lúdico.
Notas exegéticas
1
Nossa cidade invencível é Sião, sua muralha e sua trincheira é o Salvador.
Os judeus se orgulhavam das muralhas de Jerusalém e de suas torres: Sl 47 (48),12-13. Elas
eram fator de segurança: Is 60,18. O Profeta, seguramente, está longe de pensar em tal segurança,
37
38
pois é inútil toda garantia, se o Senhor não vigiar a cidade: Sl 126 (127),1. Tanto que afirma
claramente ser o Senhor a verdadeira muralha, a verdadeira trincheira. Aí está sua
invulnerabilidade.
2
Abri as portas, para que entre um povo justo, um povo reto que ficou sempre fiel.
Tendo presente a arca que acolhe a família de Noé, única a não se corromper, e que por isso
se salva do dilúvio, é de fácil compreensão o fato dos justos que entram pelas portas da cidade.
Não se trata de pura fuga, pois havia um mundo a ser reconstruído, depois do dilúvio, há um reino
a ser trabalhado, partindo-se do interior de Sião.
3
Seu coração está bem firme e guarda a paz, guarda a paz, porque em vós tem
confiança.
4
Tende sempre confiança no Senhor, pois ele é nossa eterna fortaleza!
A firmeza, a segurança da cidade que tem como muralha o Senhor, propiciam um coração
firme aos seus moradores. À fortaleza se acrescenta a paz. A base de tudo, porém, é sempre o
Senhor.
7
O caminho do homem justo é plano e reto, porque vós o preparais e aplainais;
8
Foi trilhando este caminho de Justiça que em vós sempre esperamos, ó Senhor! Vossa
lembrança e vosso nome, ó Senhor, são o desejo e a saudade de noss´alma!
Acontecem duas mudanças. A primeira é no gênero literário, que passa de confiança a
sapiencial, e o segundo, no assunto; falou-se em segurança no Senhor, agora se aborda como Javé
se preocupa com os justos, preparando-lhes os caminhos. O v. 8 apresenta dificuldades de
tradução. Parece dizer que os justos se dirigem diretamente a Deus, constatando o quanto ele lhes
dá segurança, e que a simples recordação do nome santo lhes inflama os corações.
9
Durante a noite a minha alma vos deseja, e meu espírito vos busca desde a aurora.
Quando os vossos julgamentos se cumprirem, aprenderão todos os homens a justiça.
Agora o Cantor passa a falar de si, usando a 1ª pessoa singular. Elegantemente diz que dia e
noite almeja o Senhor. Revela ser uma alma mística, em constante união com seu Deus. Conclui:
quem se abre a Javé, sabe discernir o que é justo e o que deixa de ser.
12
Ó Senhor e nosso Deus, dai-nos a paz, pois agistes sempre em tudo o que fizemos!
O versículo tem acentos de súplica, rogando a paz, assim como o reconhecimento que todos
os bens vêm do alto.
Ensinamentos
“O caminho do justo é plano, é reto”, diz o Profeta, enquanto que Jesus afirma quão árduas
e estreitas são as sendas da salvação: Mt 7,13-14. Aparentemente temos uma flagrante
contradição. Também a experiência parece desmentir a afirmação do piedoso Escritor.
Estamos ante dois modos de refletir, de pensar, de argumentar. Determinadas culturas,
determinados círculos de pessoas preferem o caminho dedutivo: de formulações universais,
válidas sempre, chegam aos casos concretos. O referido princípio universal é aplicado a todos os
particulares que surgirem. Usa-se mais o recurso argumentativo, probatório.
Outras culturas, ou grupos mais populares preferem o caminho indutivo. Partindo dos
particulares, das diversas experiências, se forma um princípio universal. Ficam mais próximos do
recurso comparativo. Amam os fatos, os exemplos. A comparação, portanto.
Se um princípio universal é válido sempre e em todas as circunstâncias, o mesmo não
acontece com os exemplos, com as comparações. Estes são válidos, mas para o caso concreto que
se deseja ilustrar. Não podem ser transformados em leis universais.
Jesus diz que o caminho do bem é repleto de dificuldades, e isto é confirmado pela
experiência, embora não faltem tantos recursos espirituais que o facilitem, o que também é
confirmado pelo dia a dia. O Profeta pretende dizer, no v. 7, que Deus faz seu o caminho do justo,
que ele vela por ele, para que se atinja com segurança a meta final, enquanto que o mau caminha
só, e o faz porque assim quer. E seu caminho conduz à perdição.
Oração
Primeiro foram as fotografias, os quadros, as descrições, as histórias, os filmes. Depois
houve constatação pessoal. Mas sabeis, Senhor, que sempre me atraíram as cidades medievais
muradas, ilhadas, apertadinhas, no alto das colinas. A fortes portas, os bastiões, as torres, as

38
39
ameias, os baluartes, as portas movediças. Pareciam-me a cidade do bem a defender do mal. Mas,
qual delas foi verdadeiramente inexpugnável? E hoje?
Todavia, Senhor, confesso que me refugiei em falsas fortalezas em pseudo-cidadelas
inacessíveis. De nada me adiantou. Aprendi, lamentavelmente tarde, que somente a vossa Sião o é,
por vos ter por trincheira e muralhas: v. 1.
Rogo: que suas portas estejam sempre abertas para mim: v. 2. Dai-me a vossa paz,
fortalecendo o meu coração em vós; que somente em vós confie, que o transforme em minha única
fortaleza: vs. 3-4.
Preparai meus caminhos: v. 7. Mesmo que sejam árduos. Que entre tantos bens que passam,
eu procure somente a vós, e vos deseje dia e noite, sem cessar; v.9. Senhor, dai-nos a vossa paz:
v.12.
Resumo e reflexão
Sião é cidadela invencível; sua muralha é o Salvador.
Não entrarás. Cegos e coxos te rechaçarão! Diziam os jebuzeus a Davi , certo da
inexpugnabilidade de Jerusalém. E Davi tomou a cidade.
Senhor, dai-nos a paz.
ISAIAS 33,2-10
O Canto na vida
O capítulo 33 de Isaias, onde se localiza o Canto, revela parentesco com os cinco capítulos
anteriores (28-32), principalmente na ideologia, no estilo, na forma literária. Apenas como
exemplo: todos os capítulos, excetuando o 32, começam com a ameaçadora interjeição “ai”. Tais
capítulos, fora Is 28,1-6, são oráculos de salvação sobre Judá!
O Profeta condena os desvios dos jerosolimitanos, e luta contra a política de alianças,
principalmente com o Egito. Não existem alusões históricas precisas, o que impossibilita localizar
no tempo e no espaço esta unidade. As hipóteses são as mais disparatadas. Tanto que o cap. 33,
onde está o Canto, é também considerado como escatológico. Originariamente poderia se referir a
um povo determinado, como assírios, e que posteriormente ficam diluídos em todos os povos que
se levantaram contra Jerusalém.
Excetuando os versículos finais, Is 33,2-10 é um Canto de Esperança: 1º Vol. pág.
Divisão
Introdução
Súplica de auxílio em tempo de aflição: v. 2.
Corpo
Desespero e fuga dos inimigos: vs. 3-4.
Exaltação ao Deus que habita no céu: v. 5.
Paz entre os habitantes de Sião: v.6.
Descrição de situação calamitosa: vs. 7-8.
Conclusão
Palavras de Deus prometendo providência: v.10.
Recursos literários
O Canto é poesia com as costumeiras mudanças de ritmo, ao menos na poética hebraica.
Mudando o tema abordado, o ritmo se coloca a serviço das novas idéias, o que exige,
possivelmente, alteração.
Is 33,2-10 consta de duas partes distintas. A primeira, dos vs. 2 a 6, é um belo canto de
esperança, de confiança. Povos que devastavam, sem ter experimentado a devastação, se levantam
contra os judeus. Contra eles é lançado o “ai” anatematizador: v. 1. Tamanha é a confiança no
Senhor, que faz antever a fuga dos inimigos.
A segunda parte (vs. 7-10) descreve primeiro uma situação dolorosa generalizada. Termina
com Deus agindo na história.
Notas exegética
2
Senhor, tende piedade, pois em vós nós esperamos! Sede o nosso braço forte em todas
as manhãs, e no tempo da aflição sede a nossa salvação!
Súplica comunitária ante uma aflição não especificada. Ela se fundamenta na confiança, na
esperança de atendimento. Isto porque toda a segurança do judeu piedoso está no Senhor: Sl 43
39
40
(44),4. Ele que libertou o povo com braço forte, continuaria o processo libertário: Ex 6,6. A ação
de Deus é invocada “em todas as manhãs”. Para o israelita o dia começa logo após o por do sol:
Lv 23,5-6.32. Todavia, as atividades, incluindo as religiosas, tinham início com o surgir da luz.
Nesse momento os sacerdotes entravam em frenética atividade: Ex 30,7-8; Lv 6,5. De imediato
começava o sacrifício matutino, o despertar da vida religiosa.
3
Ao ouvir vosso trovão, os povos todos põem-se em fuga e quando vos ergueis, se
dispersam as nações.
Ao apelo da comunidade sofredora, Deus se levanta, entra belicamente em ação. Nem é
necessário tanto: os povos fogem ante a voz ameaçadora, ante o trovão. No original: voz de
multidão.
4
Vosso despojo é amontoado, como se ajuntam as lagartas; todos se atiram sobre ele,
feito vorazes gafanhotos.
Amontoar despojos significa vitória, e além disso, a recompensa dos soldados que se
apossavam dos bens dos vencidos. Pode-se imaginar com que sofreguidão o faziam, quando
descobriam fortunas, ou quando eram levados por ódio incontrolável: Is 10,6. Seria esta a ânsia
que levou o Poeta escolher a inesperada comparação do gafanhoto?
5
Sublime é o Senhor, pois, habita nas alturas; assegura a Sião o direito e a justiça.
Embora excelso e nas alturas, o Senhor não está distante; faz-se presente em Sião. Como sua
presença é sempre criadora, algo acontece com ela. Não seria algo completo libertar Sião das
opressões inimigas, se seu povo, principalmente os humildes, continuassem oprimidos pelos
concidadãos. E o céu assegura o direito e a justiça, na base da sociedade.
6
Haverá, Jerusalém, segurança nos teus dias, abundante salvação, sabedoria e ciência;
respeitar o Senhor Deus será a glória do teu povo!
Sobre as bases sólidas do direito é possível construir a vida religiosa. O povo de Sião será
glorificado por se distinguir pela sabedoria, pela ciência e pelo temor ou respeito a Deus, virtudes
anteriormente recordadas pelo Profeta: Is 11,2. A sabedoria se refere à compreensão das coisas,
não tanto no seu aspecto racional, e sim, relacional, a saber, em vista da bondade ou da maldade
que elas contêm, à luz do plano divino. A ciência, por sua vez, conduz à boa escolha entre o bem e
o mal, assim indicados pela sabedoria. O temor de Deus, finalmente, é o amor respeitoso, o
equilíbrio entre a distância e o avizinhamento. Não se identifica com o medo, não se agasta, não
foge da divindade, mas também não se aproxima abusadamente daquele que é o totalmente outro:
Is 6,5.
7
Eis, de Sião, “Lareira de Deus”, seus heróis a lamentar e da paz os mensageiros a
chorar amargamente.
8
Estão desertos os caminhos, ninguém passa pelas ruas, a aliança foi rompida, as
cidades desprezadas e não mais se considera o respeito pelo homem.
Os versículos apresentam dificuldades, mas é possível imaginar o sentido pretendido pelo
Escritor Sagrado. O citado “devastador” (Is 33,1), continuaria exercendo sua ação maléfica. A
aliança foi rompida, seguramente pelo devastador. Com isso há desolação nos campos desertos,
ninguém se expões pelos caminhos. Na cidade os arautos (heróis?) e os mensageiros lamentam,
pois não são portadores de boas notícias. Há um furacão ameaçador.
9
A terra está de luto e abatida desfalece, o Líbano esmorece e definha de vergonha.
Sarom já se tornou semelhante a um deserto, e Basã e o Carmelo já perderam seu verdor!
Descrevendo a desolação, o Profeta escolhe as regiões mais férteis e verdes, apresentando-as
como que tocadas pela seca, pela aridez.
10
Mas, agora, eu me erguerei, é o que fala o Senhor, vou levantar-me, neste instante,
serei, agora, exaltado.
Entra um novo personagem em cena: Deus. Apresenta-se resoluto, entrando na história e
alterando o seu curso. O Senhor concretiza o que foi anunciado no v. 3. E ele é exaltado com a
derrota dos inimigos. Todos reconhecerão que só o Senhor é Deus.
Ensinamentos
A história salvífica não é de leitura fácil, muito menos imediata. Quem pode atingir os
desígnios de Deus? Quem possui as medidas com as quais ele conduz, sem condicionar, sem
violar a liberdade humana?
40
41
O Canto tem como ponto de partida Is 33,1: há um devastador que ainda não foi devastado;
mas não tardará que chegue seu tempo. Tanto que foi advertido com um “ai” ameaçador. Tem-se a
impressão de que Deus dá tempo ao tempo, que se serve do devastador.
O Profeta desenvolveu maravilhosamente este tema, mostrando a Assíria como vara do furor
divino. Com esta fustiga seu povo para que caia em si e se converta. Terminando o período da
dolorosa purificação do povo, é a vez da vara: será espedaçada: Is 10.5-19.
O Senhor cura com remédios amargos o seu povo. Todavia, o remédio não pode ir além de si
mesmo, ao contrário, receberá o devido tratamento por não ter sido só instrumento de Deus.
Oração
“Sobrevêm muitas ondas e fortes tempestades, mas não tememos afogar, pois estamos
firmados sobre a pedra. Enfureça-se o mar, não tem forças para destruir a pedra.” Foi assim,
Senhor, que rezávamos esta manhã no dia de S. João Crisóstomo, ele que ganhou “no exílio, a
púrpura de mártir, a palma da vitória.”
Com ele e tantos irmãos que passaram por provações, cada qual ao seu modo e em diversas
proporções, também eu vos suplico: sede nosso braço forte: v. 1. Que sempre me mantenha
constante e fiel a vós. Mesmo quando sentir o chão fugir de sob meus pés, parecendo-me que a
terra está de luto, e que até as regiões verdejantes perderam seu verdor: v.9. Quando ver que os
arautos e mensageiros nos quais coloquei minha esperança, choram amargamente (v. 8), que eu
não perca a confiança em vós que habitais nas alturas: v.5. Que eu mantenha inabalável a minha fé
em vós, constatando que com vossa voz dispersais as nações e o mal que nos rodeia: v. 3.
Não somente peço a plena libertação, Senhor, mas que seja adornado com o direito e com a
justiça: v. 5. E que sobre tal fundamento, esteja a sabedoria, o entendimento que me levam a vós, e
o temor santo que a vós me une: v. 6.
Levantai-vos, Senhor, e em mim sejais glorificado: v. 10.
Resumo e reflexão
“Quando o Senhor se levanta, toda as nações se dispersam.”
Erguem-se as vagas, escreveu S. João Crisóstomo, mas não podem submergir o navio de
Cristo. Pergunto eu: que temeremos?
Senhor, sede nosso braço forte em todas as manhãs.
ISAIAS 33,13-16
O Canto na vida
O pano de fundo de Is 33,13-16 é o mesmo de Is 33,2-10. Agora, contudo, revela-se o juízo
de Deus, manifestado na eleição dos justos e na condenação dos maus. Os réus são os habitantes
de Jerusalém.
O Canto tanto pode ser considerado Sapiencial (1º Vol. pág. ), como de peregrinação (1º Vol.
pág. ), embora o início seja um processo judicial.
Divisão
Introdução
Convocação para o tribunal divino: v. 13.
Corpo
Antevisão do pavor dos ímpios: v. 14a-b.
Questiona-se a dignidade de estar ante a face do Senhor: v. 14c-d.
Resposta ao questionamento: só quem é justo e fraterno: v. 15.
Conclusão
O justo habitará com o Senhor: v. 16.
Recursos literários
O Poeta conduz suavemente, sem sobressaltos, sua Poesia, levando o leitor do espaço físico
ao espiritual, passando pelo litúrgico. Primeiro todos, vizinhos e distantes, são convocados para
que avaliem os feitos de Javé. A seguir interroga quem pode entrar no templo, quem está imune do
mal que torna o ser humano digno de estar ante Deus, que lá habita. Termina, no final, num
ambiente de comunhão eterna com o Senhor.
Outros recursos artísticos são encontráveis nos comentários dos Sl 14 (15),2-6 e Sl 23
(24),4ss.
Notas exegéticas
41
42
13
Vós que estais longe, escutai o que eu fiz! Vós que estais perto, conhecei o meu poder!
As palavras de Javé são um repto a todos, aos de longe, aos de perto. Que constatem o que
fez e como manifestou seu poder, sobremaneira em favor dos judeus. Que fossem examinados os
fatos passados e os presentes.
14
Os pecadores em Sião se apavoraram, e abateu-se sobre os ímpios o terror: Quem
ficará junto do fogo que devora? Ou quem de vós suportará a eterna chama?”
Os primeiros a se apavorarem são os pecadores de Sião, que fisicamente viviam ao lado do
templo. Mas quem pode ficar indignadamente ao lado do Senhor sem ser devorado pelo fogo
divino (Sl 67 (68),3)? A interrogação é também um questionamento litúrgico: quem pode subir ao
templo e estar ante o Senhor: Sl 14 (15),1? Ante o Senhor que pouco antes se apresentara como
fogo devorador (Si 33,11)?
15
É aquele que caminha na justiça, diz a verdade e não engana o semelhante; o que
despreza um benefício extorquido e recusa um presente que suborna; o que fecha o seu
ouvido à voz do crime e cerra os olhos para o mal não contemplar.
À pergunta segue uma série de exigências. Não há preocupação com a chamada pureza legal
(Lv 11-16), e sim com a moral, com o comportamental: viver a justiça, a verdade, a honestidade, a
incorruptibilidade. Compromete o ser humano como um todo: orelhas, olhos, mãos. São as
virtudes encontráveis e comentadas nos Sl 14 (15),2ss e Sl 23 (24),4ss.
16
Esse homem morará sobre as alturas, e seu refúgio há de ser a rocha firme. O seu pão
não haverá de lhe faltar, e a água lhe será assegurada.
O fogo devorador de Javé, consome os indignos. Todavia é acolhedor e benéfico com os
justos. Estes habitarão na casa de Deus com segurança. E nada lhes faltará.
Ensinamentos
Mesmo sendo amor e misericórdia, Deus não pode ser conivente com o mal. A santidade de
Deus, avessa ao mal, é retratada, entre outras maneiras, como o fogo que devora: v. 14.
Contudo, esse mesmo fogo que devora, é o fogo que purifica, como é o fogo que inflama: Jr
20,9. Deus se manifesta através dele: Ex 13,21; Ex 19,18.
Em vista disto tudo, Javé que é como o fogo que devora, como a chama eterna (v. 14), no
final do Canto acolhe os que lhe são fiéis, tornando-se refúgio e rocha firme para eles. A estes
jamais faltará algo, mas haverá abundância simbolizada no pão e na água que são assegurados. É
dado a eles, ainda, o direito de morarem nas alturas, o que significa estar inabalavelmente seguros,
em lugar inatingível.
Pode-se descobrir, sob a palavra altura, ao menos a semente de uma vida de maior e mais
profunda intimidade e comunhão com Deus. É o afastar-se do corriqueiro, e até mesmo do
profano, para adentrar-se na esfera do transcendental.
Oração
Sabeis, Senhor, como desde a primeira leitura fiquei tocado pelo profundo ambiente místico,
pela alta elevação espiritual da vocação de Isaias: Is 6,1ss. Foi algo inesperado e deslumbrante: a
vossa glória, meu Deus, inundando o santuário, o piedoso Profeta com os lábios purificados pela
pedra incandescente do altar. Vós, sem cessar, sendo proclamado santo, santíssimo, a própria
santidade.
Com o passar do tempo, fui como que me afastando, perdendo a sensibilidade de vossa
presença. Até mesmo me distanciando de vós. Não obstante tudo, meu bom Deus, aqui estou.
Reconhecidamente, carente de vós.
Não obstante tudo, e ciente de minha condição, não quero entrar em juízo convosco, não é
necessário que chameis testemunhas de longe e de perto: v. 13. Sei que seria consumido pelo
vosso fogo devorador: v. 14. Sei-me indigno de estar em vossa presença. Mas me coloco ante
vossa face, ó meu Deus. Não confiando em meus merecimentos, mas em vossa misericórdia.
Rogo-vos ser adornado com a justiça e a verdade. Que minha língua seja sempre veraz, que
eu não seja venal, nem me sinta atraído pelo crime: v. 15. Quero, Senhor, embora ciente de minha
indignidade, estar convosco nas alturas, vós, meus refúgio e proteção: v.16.
Resumo e reflexão
Quem ficará ante o fogo que devora? Apenas quem caminha na justiça.

42
43
Um fogo mandado por Javé devorou, no deserto, os 250 homens que ofereciam incenso
idolatricamente.
Quem pode suportar a chama eterna?
ISAIAS 38,10-14.17-20
O Canto na vida
Os últimos capítulos do Proto-Isaias (Is 36-39), são conhecidos como “Apêndice histórico”.
O aqui relatado corresponde ao que se narra em 2Rs 18,17-20,19, ou em 2Cro 32,9ss. Nos
capítulos narrativos de Isaias são encontráveis duas poesias, sendo que uma é Is 38,10-20.
Os tempos eram desesperadores: todos os reis se prostravam aos pés de Senaquerib. Idêntica
sorte parecia tocar também a Ezequias, o piedoso rei de Judá. Nessa ocasião coube a Isaias um
lugar de destaque. Por isso foram a ele atribuídos tais escritos.
Neste contexto se fala de uma doença mortal do rei. Mais uma vez intervém o Profeta.
Precisamente neste ambiente é colocado o Canto do piedoso monarca, que é uma ardente Ação de
Graças: 1º Vol. pág.
Divisão
Introdução
Exposição do problema: morrer tão jovem: v. 10.
Corpo
Certeza de morte iminente: v. 11.
Série de comparações mostrando a fugacidade da vida: vs. 12-14.
O agonizante é atendido em seus pedidos: v. 17.
Razão para viver: só os vivos podem louvar o Senhor: vs. 18-19.
Conclusão
Propósito de testemunhar, na assembléia, a graça da cura: v. 20.
Recursos literários
O Canto tem duas parte distintas. Na primeira (vs. 10-14) se reevoca o doloroso estado de
morte iminente e na flor da idade. São citadas as lamentações e súplicas feitas pelo jovem
monarca. Predomina a 1ª pessoa singular. São usadas várias imagens, ricas em significado e
originais: tenda arrebatada, tecelão com a trama cortada, leão que tritura os ossos, lamúrias
semelhantes ao piar das andorinhas, gemidos como os das rolas, olhos suplicantes voltados ao céu.
Na segunda parte (vs. 17-20), Ezequias se dirige a Deus. Mudança pronominal. Ezequias
confessa que o Senhor o libertou dos pecados, arrancou-o das portas do sepulcro. Permanecendo
no mundo dos vivos poderá louvar a Javé. Com tal manifestação do amor divino, o pai
testemunhará aos filhos a fidelidade do Senhor.
Predomina a métrica 3 x 2 (quinária ímpar), adaptada às súplicas.
Notas exegéticas
10
Eu dizia: “É necessário que eu me vá no apogeu de minha vida e de meus dias; para a
mansão triste dos mortos descerei, sem viver o que me resta dos meus anos”.
Certo que lhe caberia ainda muito tempo de vida, o rei lamenta a desdita de morrer jovem.
Calcula-se que teria pouco mais de 30 anos, na ocasião. A mansão dos mortos é o sheol: lugar frio,
escuro, incomunicável, nas cavernas sob o mar inferior.
11
Eu dizia: “Não verei o Senhor Deus sobre a terra dos viventes nunca mais; nunca
mais verei um homem neste mundo!”
A mansão dos mortos ou o sheol, uma vez incomunicável não propiciava contato com Deus
e com os viventes. Portanto, não estaria mais em comunhão com os seus, por mais queridos que
fossem: Lc 16,19-30. Muito menos poderia subir ao templo para cultuar Javé.
12
Minha morada foi à força arrebatada, desarmada como a tenda de um pastor. Qual
tecelão, eu ia tecendo a minha vida, mas agora foi cortada a sua trama.
Peregrinos de origem, e tanto deles ainda semi-nômades, os judeus sabiam por experiência o
que era armar e desarmar sucessivamente as tendas. Os beduínos não ficavam muito tempo no
mesmo lugar. Tenda, aqui, significa vida. O rei sente que a sua está sendo arrancada antes do
tempo, é como se fosse carregada por furacão incontrolável. O rei vê sua vida interrompida, como
o tecelão que enovela sua tecedura e é forçado a terminá-la, pois lhe cortaram a trama, os fios.

43
44
13
Vou me acabando de manhã até à tarde, passo a noite a gemer até a aurora. Como um
leão que me tritura os ossos todos, assim eu vou me consumindo dia e noite.
O enfermo confessa esvair-se a cada momento que passa. Nada mais lhe resta a não ser
suspirar e gemer. Implicitamente afirma que Javé lhe estava tirando a vida. Agora compara o
Senhor a um leão que lhe tritura os ossos.
14
O meu grito é semelhante ao da andorinha, o meu gemido se parece ao da rolinha. Os
meus olhos já se cansam de elevar-se, de pedir-vos: “Socorrei-me, Senhor Deus!”
O doente compara seus gemidos ao lamentoso piar das andorinhas, ao arrulhar triste das
rolas. Assim mesmo, os olhos estão voltados para o céu, confiantes da acolhida por parte daquele
que lhe tritura os ossos, ou lhe arranca a tenda e lhe corta o fio da vida.
17
Mas vós livrastes minha vida do sepulcro, e lançastes para trás os meus pecados
Especial intervenção divina reverte a situação. O rei parece reconhecer que a libertação da
morte estava condicionada à libertação do pecado. Como o salmista que se sentiu livre do sepulcro
quando se libertou de suas faltas: Sl 31 (32),3-5.
18
Pois a mansão triste dos mortos não vos louva, nem a morte poderá agradecer-vos;
para quem desce à sepultura é terminada a esperança em vosso amor sempre fiel.
19
Só os vivos é que podem vos louvar, como hoje eu vos louvo agradecido. O pai há de
contar para seus filhos vossa verdade e vosso amor sempre fiel.
Explana-se um pouco mais o que foi anunciado no v. 11.: o sheol é lugar de isolamento onde
aos mortos não é dado nem mesmo cultuar o Senhor: Sl 6,6; Sl 29 (30),10. Só aos vivos cabe subir
ao santuário, ou testemunhar as maravilhas do céu. O restabelecimento de uma doença mortal é
considerada como argumento eloqüente de louvor, poderá, desta maneira, proclamar à viva voz as
maravilhas de Deus, como o pai que passa as tradições para o filho: Sl 21 (22), 31-32.
20
Senhor, salvai-me! Vinde logo em meu auxílio, e a vida inteira cantaremos nossos
salmos, agradecendo ao Senhor em sua casa.
Retorno à súplica inicial, especificando o propósito de testemunhar as graças no templo.
Ensinamentos
“Só os vivos é que podem vos louvar, como eu vos louvo agradecido”. Esta expressão é
profundamente cúltica, dada a idéia que os judeus tinham de vida após a morte. Esse povo que nos
legou páginas profundas de espiritualidade e santidade, só mui lentamente absorveu a idéia ou a
revelação de vida eterna. Mesmo depois de Cristo, parcela dos judeus religiosos, como era o caso
dos saduceus, não acreditava na ressurreição, ou numa vida com o Pai: At 23,6ss. Não afirmavam
que com a morte terminava tudo, como os materialistas, mas que com ela, os mortos passavam a
residir no sheol.
O sheol se localizava nas cavernas dos montes que estavam nas profundezas do mar inferior,
mar que sustentava a terra, e que alimentava os rios, os oceanos, as fontes. Nessa morada escura e
gélida não havia comunicação alguma, nem entre os habitantes daquelas lúgubres cavernas, nem
deles com o mundo dos vivos e com Deus. Não comunicar-se com Deus eqüivalia estar
impossibilitado de louvá-lo no templo.
Hoje, com a revelação plena, em Cristo, se sabe que nele, é dada aos seres humanos, uma
especial vida que começa aqui, concretizando-se, depois, em perfeita comunhão: Cl 3,1-4.
Verdadeiramente louva a Deus, quem participa da especial vida doada por Jesus.
Oração
Sei que até grandes baluartes da fé, como Elias e Jeremias, tiveram seus momentos de
desânimo, de abatimento, ó meu Senhor. E quem seria eu para não tê-los, para ser imune a tais
fraquezas?
Mais de uma vez senti que não me restava mais nada a viver, nem tanto a vida terrena, mas a
vida em vós: v. 10. Tudo era escuridão, nenhuma comunhão convosco, nenhum convívio com os
irmãos: v. 11. A razão de ser da minha existência estava sendo arrancada, como frágil tenda
carregada pelo forte tufão do deserto: v. 12. Parecia insuperável o desejo de abandonar tudo.
Em situação tão desesperadora, só me restava dirigir-me a vós, mas nem para isso tinha
ânimo: vs. 13-14.
Mas sois um Deus misericordioso, constantemente atento às minhas necessidades,
permanentemente criador; arrancastes-me da mansão dos mortos, conduzindo-me para o reino dos
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45
vivos: v.17. Quero viver sempre vossa vida, dom inestimável, fruto da vossa misericórdia. Assim
vos louvarei para sempre, pois somente os realmente vivos podem vos louvar: vs. 18-19.
Salvai-me sempre, Senhor! Preciso de vosso auxílio constante para cantar-vos em vossa
casa, entre os irmãos: v. 20.
Resumo e reflexão
Vós me livrastes do sepulcro perdoando meus pecados.
Segundo a mitologia, as irmãs Parcas fiavam, enovelavam e cortavam o fio da existência
humana.
Só os verdadeiramente vivos podem louvar o Senhor
ISAIAS 40,1-8
O Canto na vida
Já se considerou que Isaias é composto de três grandes partes, sendo que os capítulos 40-45
constituem uma delas; mais precisamente, o Deutero-Isaias. A parte anterior (Proto-Isaias) aborda
temas atinentes ao III século.
Agora, as circunstâncias de tempo, de lugar, fatos e pessoas, são outras, pois tudo diz
respeito ao VI século. Tudo é diferente, incluindo o estilo. Logicamente o Autor é outro, e que
viveu numa época diferente da vivida por Isaias. Agora se trata de um profeta anônimo, conhecido
como Deutero-Isaias.
Os capítulos 40-55 são ainda conhecidos como “Livro da Consolação”, pois começam com
essas palavras: Is 40,1. Por sinal elas se fazem várias vezes presente no texto.
Após a destruição de Jerusalém (587 aC), grande parte da população foi levada para o exílio.
É a essas pessoas que o Profeta se dirige, prometendo que chegou o tempo, e brevemente
regressarão.
O Canto que inicia o Livro da Consolação está mais próximo dos Salmos de Procissão (1º
Vol. pág. ), se é o caso de classificá-lo.
Divisão
Introdução
Incentivo à alegria com o anúncio do fim do Cativeiro: vs. 1-2a.
Corpo
Os pecados que ocasionaram o castigo estão perdoados: v. 2b-c.
Ordem de se preparar o caminho para o Senhor: vs. 3-4.
Manifestação da glória divina: v. 5.
Transitoriedade da vida: v. 6.
Conclusão
Tudo passa, menos a palavra do Senhor, que permanece: vs. 7-8.
Recursos literários
O Profeta escreve quase toda a sua obra em poesia, revelando-se escritor de grandes
recursos, além de transmitir pensamentos profundo e palavras de esperança, num contexto nada
animador.
Embora seja portador de boas novas, o Canto começa com o ritmo próprio das lamentações,
o “quiná”. Todavia, muda logo a métrica, fazendo predominar o 3 x 3.
Depois das palavras animadoras que leva ao povo, o Profeta, faz com que uma voz
misteriosa conclame a se preparar o ambiente por onde passará um cortejo especial. Não entra em
particularidades, mas deixa à fantasia do leitor completar os pormenores que envolvem pessoas,
ambientes, estados de alma, sonhos, objetivos, ânimos religiosos.
Na ocasião, revelar-se-á a glória de Javé. Sinal de garantia, sinal da presença divina: tudo
passa, menos a palavra do Senhor. Tudo é descrito em linguagem muito sonora.
Notas exegéticas
1
“Consolai este meu povo, consolai!”, é o que diz o vosso Deus, vosso Senhor.
2
“Bradai ao coração de Sião: o tempo do desprezo já findou! Perdoada está a sua
iniqüidade, pois, da mão do seu Senhor já recebeu uma dupla punição dos seus pecados!”
O Profeta recebe a missão de consolar o povo entregue ao desânimo, para não dizer à
descrença. A notícia era tão importante e urgente que a proclamação é feita de imediato, sem
preâmbulos. Como quem não vê a hora de dizer o que deve ser dito.
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46
A mensagem é dirigida ao “meu” povo, mostrando o restabelecimento da aliança. É dirigida
ao coração de Jerusalém que aguarda a notícia, como esposa saudosa. Portanto, a linguagem é de
coração a coração e diz: acabou o sofrimento. Razão: o pecado foi perdoado. Logo os filhos
sairiam livres do cativeiro, o que parecia loucura pensar, e muito mais, dizer em altas vozes.
A expressão “dupla punição” não é de se tomar ao pé da letra, como se os exilados pagassem
mais do que devido. A expressão é usual nas Escrituras: Is 61,7. Para o Profeta, o término do
exílio é um ato misericordioso de Deus: Is 43,16-21; Is 48,20. Poder-se-ia traduzir a expressão
por: “vocês já sofreram suficientemente, basta. Já se atingiu o objetivo.” Para um coração
misericordioso, como o divino, um mínimo de sofrimento por parte do povo, é como se fosse
sofrimento duplo.
3
Uma voz está clamando no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, abri uma estrada
reta na estepe, por onde o nosso Deus irá passar!
4
Que seja todo vale aterrado, todo monte e colina, rebaixados; os lugares escarpados
sejam planos e os ásperos se tornem nivelados.
Há uma voz que clama e não é necessariamente a de Deus, e sim, a de um emissário. Vários
motivos pedem que se substitua “voz que clama no deserto” por “uma voz clama: preparai no
deserto...” Os caminhos deviam ser preparados, aplainados, quer no deserto, que nas montanhas.
Um cortejo muito importante passaria por esses lugares.
5
Então, a glória do Senhor se mostrará e toda a terra há de ver seu esplendor, pois a
boca do Senhor o afirmou.”
A glória do Senhor, o que eqüivale a ele mesmo, se manifestaria no cortejo dos repatriados.
Era um novo êxodo. Todos constatariam a ação divina em favor dos libertos. Deus manifestaria
sua glória como na criação (Sl 18, (19),2), na travessia do mar Vermelho (Ex 14,17), no dom do
maná (Ex 16,10), quando da aliança: Ex 19,1ss.
6
“Proclama!”, uma voz me está dizendo. “O que eu devo proclamar?” lhe respondi.
“Toda carne é, apenas como a erva e sua glória é como a flor que está nos campos.
7
A erva fica seca e cai a flor, quando o sopro do Senhor passa por elas, o povo é, na
verdade, igual à erva.
As personagens envolvidas no diálogo não são especificadas. O objetivo é encorajar os
céticos. Babilônia estava no apogeu; ninguém previa uma queda imediata que permitisse o retorno
dos cativos. Mas, para o Senhor tudo e todos são passageiros, sendo que Babilônia não era
exceção. O sopro do Senhor é mais abrasador que o vento do deserto, que em minutos seca a erva.
8
A erva fica seca e cai a flor, mas a palavra do Senhor é para sempre!”
Tudo passa. Até a superpotência babilônica teria seu ocaso, jamais a palavra de Deus. O que
diz acontece: Is 48,1ss.
Ensinamentos
O paralelismo: “Preparai no deserto um caminho para o Senhor,
aplainai na estepe uma vereda para o nosso Deus” e outras razões mais,
pedem esta versão diferente das ordinariamente aceitas, como faz a Liturgia das Horas.
Não era propriamente função estatal preparar os caminhos. Pertencia mais à iniciativa
privada, às localidades interessadas, máxime quando pessoas importantes passariam por eles, os
arautos as antecediam, para que a população soubesse e fizesse algo.
O Senhor estaria no cortejo dos que voltariam livres da Babilônia para a pátria: Is 52,12.
Todavia este retorno não era um puro sair de um lugar para outro. Ez 36,24ss deixa claro que isso
exigia mudança de vida, uma nova criação. Tanto que o verbo “shub”, voltar, passou a significar
conversão.
Os hebreus puderam voltar para a pátria, quando se reencontraram com Javé, quando
tiveram os pecados perdoados. Quando aconteceu a conversão.
Isto é válido para todas as pessoas e para todos os tempos.
Oração
Pareceu-me, inicialmente, meu Deus e Criador, que vossas palavras de ânimo e de
consolação (v. 1), se dirigiam apenas a um povo do passado, com o qual pouco ou nada tinha a ver.
Depois fui compreendendo que nos judeus tinha minhas raízes cristãs, e mais ainda, que
Abraão é pai não tanto de um, mas de muitos povos (Rm 4,17), que filhos do Patriarca o são
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47
verdadeiramente os que crêem como ele. Passei a compreender que, como os israelitas, sou eu
agora que caminho com os irmãos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas, como rezo, desde
pequeno.
Sinto, então, que é para mim o que dizeis pelo Profeta, que perdoada está minha iniqüidade,
e que o tempo do desprezo já passou: v. 2. Tudo fruto da vossa misericórdia, do sacrifício do vosso
Filho no Calvário.
Mas compreendo, também, que, enquanto o Reino não chega definitivamente devo preparar
os caminhos, nos desertos, nas estepes, nas cidades, nas montanhas, nos corações: vs. 3-4. A saber,
no mundo onde vivo. Que vossa glória se manifeste e toda terra veja vosso esplendor, ó meu Deus:
v. 5. Creio em vós, creio em vossa palavra que é para sempre: v.8.
Resumo e reflexão
Preparai o caminho do Senhor, clama uma voz. Toda terra verá a glória de Deus.
Na festa do início do ano babilônico, o deus secundário Nabu, deviam preparar os caminhos
para a chegada do deus máximo, Marduk.
Tudo passa como a erva do campo,; menos a palavra de Deus.
ISAIAS 40,1-17
O Canto na vida
Pouco antes o Profeta consolara os conacionais no Cativeiro. Disse que acabara o período de
sofrimento, que preparassem os caminhos por onde passaria Javé, acompanhando os repatriados:
Is 40,1ss.
Semelhante afirmação podia parecer alucinação, dada a aparente estabilidade da Babilônia.
Poucos judeus acreditavam nas palavras do Profeta: não foi o primeiro e não seria o último a dizer
descalabros, afirmavam. Muito menos os observadores políticos levavam a sério tal tese.
Em nome de Javé, o Mensageiro procura levar ânimo aos desanimados, luz aos céticos. Este
é o objetivo do Canto, que pode ser considerado um Hino: 1º Vol. pág. Nele se mostra como Deus
conduzirá o seu povo no retorno à pátria.
Divisão
Introdução
Apresentação de Deus que vem como vencedor: v. 10.
Corpo
Javé conduz seu povo, como o pastor suas ovelhas: v. 11.
Deus não precisou de ninguém para criar o mundo: v.12.
O Divino Juiz não precisou de conselheiros, ao implantar a justiça: vs. 13.
Perante o Onipotente, tudo é pequeno e passageiro: v. 15.
Conclusão
O Criador é digno de todo louvor: vs. 16-17-
Recursos literários
O Cântico é um hino o Deus Criador, ao Deus Providência, ao Deus Previdência, ao Deus
Santificador. Ao Deus que quer continuar sendo o Deus-conosco, o Deus na história.
Poesia é uma sucessão de comparações tiradas da vida pastoril, comercial, pedagógica,
religiosa, cultual. De maneira alguma é repetitivo: pode insistir na mesma idéia, mas apresentando
variações. E para dar mais elegância ao escrito, inclui vária interrogações retóricas.
Ante o eterno, o Poeta chega a minimizar as coisas todas, tantas vezes absolutizadas pelos
seres humanos. É de se descobrir uma ponta de ironia e de humor polêmico, pois compara as
nações, incluindo, certamente, a todo-poderosa Babilônia a uma gota que escorre ou pinga de um
balde eu sai de um poço. As ilhas todas, que simbolizam os países distantes, pesam tanto quanto
um partícula de pó.
Notas exegéticas
10
Olhai e vede: o nosso Deus vem com poder, dominará todas as coisas com seu braço.
Eis que o preço da vitória vem com ele, e o precedem os troféus que conquistou.
Duas imagens relativamente fáceis de ser compreendidas, aparentemente se contradizem. Na
primeira, Javé é apresentado como o Todo-Poderoso, o que libertou do Egito com braço estendido
e mão forte (Dt 5,15), fazendo o mesmo, agora, com Babilônia. Na segunda, para uns, os
libertados seriam uma espécie de salário, fruto de algum trabalho divino, como aconteceu com
47
48
Jacó, que regressando da casa do sogro Labão, leva seus bens: Gn 31,17ss. Para outros, e assim
entende a Liturgia das Horas, o Senhor é um guerreiro que regressa com seu butim: Is 49,24ss. O
mais correto, talvez, é ver Deus como o divino “goel”, o redentor que liberta os escravos com mão
forte. Além do que fizera no Egito, ele continuava fazendo através do ano jubilar: Lv 25,54-55.
Esta idéia parece mais condizente com a manifestação da glória divina: Is 40,5.
11
Como o pastor, ele apascenta o seu rebanho. Ele toma os cordeirinhos em seus braços,
leva ao colo as ovelhas que amamentam, e reúne as dispersas com sua mão.
Há uma passagem brusca, mas ilustrativa: o Onipotente se faz um pastor doce e cuidadoso.
Os egressos do cativeiro são comparados a ovelhas às quais o Senhor faz questão de acompanhar
atenta e amorosamente. Como na caminhada pelo deserto.
12
Quem, no côncavo da mão, mediu o mar? Quem mediu o firmamento com seu palmo?
Quem mediu com o alqueire o pó da terra? Quem passou, pondo no gancho, as montanhas, e
as colinas, colocando-as na balança?
Com linguagem antropomórfica, fala-se do poder divino. Firmamento e terra são
minimizados, mostrando, assim, a grandeza do Criador. É possível descobrir no texto, intenção
contra a idolatria. E havia razão de ser. Boa parte dos hebreus, nos longos anos de cativeiro, quer
pelo contato com os babilônios, quer pela crise generalizada na fé, por causa de tudo o que
acontecera, se deixou levar pelo culto aos ídolos: Ez 36,25ss.
13
Quem instruirá o espírito do Senhor? Que conselheiro o teria orientado?
Gn 1,2 fala que um vento impetuoso ou o espírito de Deus, a saber, ele mesmo, com sua
inteligência, cria e organiza o mundo. Não precisou e jamais precisará de qualquer conselheiro.
14
Com quem aprendeu ele a bem julgar, e os caminhos da justiça a discernir? Quem as
veredas da prudência lhe ensinou ou os caminhos da ciência lhe mostrou?
O versículo confirma e amplia o que foi dito anteriormente. O mundo saído das mãos do
Criador, foi de imediato reconhecido bom: Gn 1,1ss. Ele é fruto da inteligência divina, inteligência
que não é puramente especulativa, mas também prática. É o modo de pensar judaico.
15
Eis as nações: qual gota d’água na vasilha, um grão de areia na balança diante dele; e
as ilhas pesam menos do que o pó perante ele, o Senhor onipotente.
O texto ridiculariza os que encaram a Babilônia como potência sem ocaso, assim como as
nações todas, incluindo as mais distintas, das quais se tinha vagas informações (as ilhas): não
passam de uma gota que se perde de um balde de água retirado do poço. Ou de um grão de areia,
imperceptível pelas balanças de então,, partícula de pó volátil ao vento. Não eram nada ante o
Onipotente.
16
Não bastaria toda a lenha que há no Líbano para queimar seus animais em
holocausto.
17
As nações todas são um nada diante dele, a seus olhos elas são quais se não fossem.
O Líbano era célebre pelas suas florestas. Usando tal quantidade de lenha em holocaustos de
todos os animais da terra, assim mesmo se estaria em débito com o Criador. Nem assim seria ele
devidamente cultuado.
Ensinamentos
Os judeus sempre foram um povo sem maior expressão, principalmente confrontando-os
com os impérios poderosos como Assíria, Grécia e, na época do Canto, Babilônia. Tanto poderio
deveria causar admiração e temor, então. A tentação de servir os deuses de tais potências não era
pequena.
Igual estupor causariam os fenômenos naturais tão misteriosos para os povos de então. Isto
os levava à adoração das criaturas. Para por as coisas nos seus devidos lugares, incluindo as
nações, começando pelas grandes potências, o mundo criado, tudo é minimizado ante o Criador.
Este, nem precisa ser maximizado. Basta que seja apresentado como é.
Era a maneira de fortalecer a fé de um povo e de uma nação arrasados por tudo de ruim que
acontecera à população, à cidade, ao templo. E teria ânimo para regressar, reconstruindo
Jerusalém, o templo, assim como reestruturar a confiança em Javé.
Oração

48
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Jamais me foi difícil, ó meu Deus, aceitar-vos como forte e vitorioso. Nem poderia
imaginar-vos diferentemente. Sei que tudo dominais com vosso braço: v. 10. É-me consolador
saber que exerceis tanto poder para meu bem.
Diversamente, é-me difícil compreender como algumas pessoas receberam tanto, e outras
serem tão carentes, a partir do seio materno. Não me refiro, o sabeis, aos problemas sociais,
econômicos, educacionais, frequentissimamente criados por nós. Ponho-me a refletir como fostes
um pastor carinhoso para mim. Como colocastes tantas graças em meu caminho, tornando-me em
vossos braços: v. 11. Não teríeis feito algo semelhante aos outros?
Compreendo, sim, como coisas tão admiráveis e que tanto me atraem e às quais me apego, a
ponto de trocar-vos por elas, tenham sido criadas pelo vosso espírito, sem conselheiro algum: v.
13. E que foram dispostas com tal sabedoria, de maneira que vendo algo errado, sei estar ante
interferências humanas: v. 14.
Meu Deus, neste mundo de atração que me tenta levar à idolatria sutil, mas não menos
idolatria, que eu encare tudo como gota de água a escorrer de um balde que sobe da fonte. Ou
como a partícula minúscula de pó, imponderável até por balanças de precisão: v. 15. Assim, minha
vida será uma oferenda a vós, a superar os holocaustos de todos os animais da terra: v. 16.
Resumo e reflexão
As nações são quais gotas de água a escorrerem pelo balde. Não devem ser absolutizadas
ante o Senhor.
Anibal, com seus elefantes, desconhecidos pelos inimigos, causou pânico e terror.
As nações todas são um nada ante Javé. Ninguém, nada o abala.
ISAIAS 42,10-16
O Canto na vida
Is 42,10-16 é um Canto do Livro das Consolações (pág. Is 40,1), que anuncia a próxima
libertação dos hebreus cativos na Babilônia. O tempo de provação foi longo: era uma exigência
para que os judeus se convertessem (Is 40,1ss), e para que Deus preparasse as meditações para
atingir os seus desígnios. Concretamente, suscita e prepara Ciro para abater Babilônia: Is 41,2.10.
Logo a seguir, o Senhor apresenta alguém misterioso, o Servo de Javé: Is 42,1-4. Os
versículos que seguem (vs. 5-9), são palavras do Senhor ao Servo. Como coroa de tantas
revelações, tem lugar o Canto que é uma Hino a Deus salvador (1 o. Vol. pág. ), intimamente
vinculado às revelações anteriores.
Divisão
Introdução
A terra é convocada a louvar o Senhor: v. 10,a
Corpo
Ilhas, oceanos e habitantes são convidados a louvar a Deus: v. 10b.
Desertos e cidades, montanhas e habitantes cantem o Senhor: vs. 11-12.
Deus se levanta como guerreiro em prol dos hebreus: v. 13.
Javé anuncia seu proceder: vs. 14-16c.
Conclusão
Deus reafirma seus propósitos salvadores: v. 16,d.
Recursos literários
Mesmo sendo hino de exaltação e louvor ao Senhor, ao menos nos primeiros versículos, o
ritmo dominante, é o quiná, próprio para as lamentações. O Poeta, porém, como é usual na poesia
hebraica, se sente em liberdade para variar a métrica escolhida, conforme a exigência do texto.
A Poesia tem 3 unidades. Na primeira, o deserto, os mares, as montanhas, e todos os seus
moradores são convidados a glorificar o Criador: vs. 10-12. Na segunda, o Senhor se levanta como
um herói ou guerreiro, emitindo um grito de batalha: v. 13. Finalmente, na terceira, Deus toma a
palavra, falando sobre si e sobre sua próxima ação: vs. 14-16.
Notas exegéticas
10
Cantai ao Senhor Deus um canto novo, louvor a ele dos confins de toda a terra! Louve
ao Senhor o oceano e o que há nele, louvem as ilhas com os homens que as habitam!
O Canto a ser cantado é novo, porque nova e grandiosa é a intervenção de Javé na história.
Ele deve ser louvado até nos lugares mais distantes. Como Moisés cantou os fatos extraordinários
49
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do céu a bem do povo (Ex 15,1ss), agora, no novo êxodo, deve-se louvar a Deus pelo que operara
a favor dos judeus. Começando pelos que estão longe: ilhas, desertos e seus habitantes.
11
Ergam um canto os desertos e as cidades, e as tendas de Cedar louvem a Deus!
Habitantes dos rochedos, aclamai; dos altos montes sobem gritos de alegria!
Cedar era uma tribo árabe; citada em Is 21,16; Is 60,7. No lugar de “habitantes do rochedo”
alguns preferem ler “habitantes de Sela (Petra), capital dos edomitas. A distribuição dos
louvadores parece atender os pontos cardeais: norte (montes), sul (edomitas), leste (deserto) e
oeste (mar). Teríamos, assim, um louvor universal. O algarismo 4 indica o orbe, para os hebreus.
12
Todos eles dêem glórias ao Senhor, e nas ilhas se proclame o seu louvor!
O convite de louvor é uma síntese do que se falou anteriormente; agora se passa a um novo
tema.
13
Eis o Senhor como um herói que vai chegando, como guerreiro, com vontade de lutar;
solta seu grito de batalha aterrador como um valente que enfrenta seus inimigos.
Javé que acompanharia os repatriados marchando na vanguarda e na retaguarda (Is 52,12),
se apresenta como herói e como guerreiro inflamado, pronto a lugar pelo seu povo. Os judeus se
precipitavam na batalha com o grito de guerra “IA”, que tanto era incentivo mútuo, como
invocação, pois se trata da abreviação de Iahweh.
14
“Por muito tempo me calei, guardei silêncio, fiquei calado e, paciente, me contive;
mas grito agora qual mulher que está em parto, ofegante e sem alento em meio às dores.
Javé toma a palavra falando de si mesmo. Seu silêncio, durante o Cativeiro, não foi omissão.
Era necessário que o povo caísse em si, era necessário preparar Ciro, que libertaria os israelitas: Is
45,1ss. Agora completou-se o tempo, como o da gravidez de uma mulher: é inevitável que a
criança nasça. Assim urgia a intervenção divina.
15
As montanhas e as colinas destruirei, farei secar toda a verdura que as reveste;
mudarei em terra seca os rios todos, farei secar todos os lagos e açudes.
Antes de liberar os israelitas do Egito, a natureza, os animais e as pessoas foram atingidos
pelo furor divino: Ex 7,14ss. Foram sinais fortes para os egípcios insensíveis aos apelos divinos.
Agora, metaforicamente, e evocando a ação de Javé no Egito, fala-se da presença extraordinária de
Deus, no fim do Cativeiro.
16
Conduzirei, então, os cegos pela mão e os levarei por um caminho nunca visto; hei de
guiá-los por atalhos e veredas até então desconhecidos para eles. Diante deles mudarei em
luz as trevas, farei planos os caminhos tortuosos. Tudo isso hei de fazer em seu favor, e
jamais eu haverei de abandoná-los!”
Anteriormente Deus se revelou como guia que acompanha os seus, como fazem os pastores
com suas ovelhas: Is 40,11. Agora, diz tomar pela mão quem é carente de visão. Pelo paralelismo
que vem a seguir, nota-se que é o caso de uma cegueira espiritual, pois as trevas se mudarão em
luz, e endireitados serão os caminhos. A assistência divina não era um ato fechado, pois duraria
para sempre.
Ensinamentos
Os israelitas tiveram experiência da ira divina, mas aprenderam igualmente que ele é
paciente e misericordioso: Is 50,8ss. A paciência e a misericórdia são mais que um simples tempo
de espera. É oportunidade para a conversão: Jl 2,13.
Essa doutrina vétero-testamentária fez com que Paulo desenvolvesse o difícil mas profundo
e rico tema da paciência divina, tempo em que o Senhor espera, mas muito mais: dá meios para
atingir um fim determinado. É o caso da justiça justificante ou salvífica: Rm 3,25ss; Rm 9,22ss. É
a justiça divina, fruto da paciência do Senhor, para o Apóstolo, é Cristo.
Todavia, se a justiça opera maravilhas nos que a ela se abrem pela fé, diversamente, para os
que a ela se opõem, é terror. O Profeta, no v. 14 mostra Javé guardando silêncio. Fica a impressão
de que desejaria atuar antes, pois o sofrimento que atingia seu povo, atingia, mais ainda o coração
divino. Mas era necessário que os judeus refletissem a própria vida, a história salvífica.
Caindo em si, tornaram-se com barro nas mãos do divino oleiro, o tempo de paciência
implicava que a história seguisse seu curso, que o ser humano tivesse sua participação. Em outras
palavras, surgiria Ciro, rei pagão, mas transformado em instrumento do céu, para que Javé
atingisse seu objetivo. Todavia, fica sempre a responsabilidade humana ante a graça: 1Cor 15,10.
50
51
Oração
Senhor, quero cantar-vos um canto novo (v. 10), pois sempre estais operando novas
maravilhas em meu benefício. Desejaria, outrossim, que este canto encontrasse eco em todos os
recantos da terra assim como ser comunhão com tantos irmãos igualmente agraciados (vs. 11-12),
que vos louvam mais e melhor que eu.
Mas não olho somente o passado, pois a cada instante levantais como destemido guerreiro
que com gritos de guerra, enfrentais meus inimigos: v. 13.
Mesmo manifestando tanto amor, e precisamente por isso – e devo conhecer um mínimo,
apenas, do que fazeis por mim – vos calais pacientemente, dando-me tempo, mais do que mereço:
v. 14. Tenho consciência de que estou até abusando de vossa paciência misericordiosa e
solicitante, ao mesmo tempo.
Quebrai toda resistência em meu coração, abatendo montanhas e colinas: v. 15. Que guiado
por vossa mão, saia eu de minha cegueira, das trevas que me envolvem, e finalmente , seja
arrebatado por vossa luz: v. 16. Assim cantarei sempre e cada vez mais, com minha vida, um canto
novo: v.10.
Resumo e reflexão
O Senhor que por muito tempo guardou silêncio e ficou calado, agora se levanta, qual
guerreiro, para liberar os hebreus do cativeiro.
Jesus, no tribunal, se calava ante as perguntas de Pilatos, causando-lhe admiração.
O Senhor jamais nos abandona.
ISAIAS 45,15-25
O Canto na vida
Os hebreus amargavam há anos o exílio e todas as esperanças de liberdade pareciam mortas.
Javé que se calava (Is 42,14), não era omisso. Entre outras providências, suscitou um profeta
desconhecido, o Deutero-Isais, que anunciou uma libertação imediata, contrariando todos os
prognósticos políticos de então.
O Criador se serviria, porém, do concurso humano, como costuma fazer. Desta vez, para
concretizar seu projeto, serviu-se de um personagem bastante conhecido: Ciro. O rei medo-persa
em 539 toma Babilônia, sendo este o primeiro passo da libertação dos hebreus.
Bem antes, Nabucodonosor foi chamado de servo do Senhor ou instrumento de Deus, mas
para punir o desvio dos israelitas: Jr 27,6. Ciro, porém, receberá o título de ungido, o ungido de
Javé, para executar uma missão elevada: punir as nações e salvar os prisioneiros: Is 45,1ss.
No contexto de convulsão política que favorecerá os judeus, está o Canto que se aproxima
dos salmos de Fidelidade: 1o. Vol. pág.
Divisão
Introdução
Deus é proclamado o único salvador: vs. 15-17.
Corpo
Javé é o criador e não há outro fora dele: vs. 18-19.
Debate judiciário entre Deus e possíveis adversários: vs. 20-21.
Javé é o único Deus: v. 22.
O Senhor é veraz: todos voltarão a ele: vs. 23-24.
Conclusão
Vitória final de Israel: v. 25.
Recursos literários
Não é fácil especificar o gênero do Canto, embora esteja próximo ao de Fidelidade a Javé: I
Vol. pág. O início segue as trilhas dos hinos, quando o Senhor é louvado e exaltado como
salvador: vs. 15-17. Mui suavemente passa a apresentar Deus como criador: v. 18ss. Quase não se
nota quando o Todo-Poderoso assume a palavra, apresentando-se como Deus veraz. Seguramente
há um fundo polêmico contra os que duvidam do anúncio da libertação. Falei com antecedência o
que aconteceria, é o que quer dizer o Senhor sem subterfúgios: vs. 19-20.
A partir de então, há como que um debate num tribunal, com interrogações desafiantes por
parte de Deus: v. 21. Tem-se a impressão de que os acusadores de Javé foram reduzidos ao

51
52
silêncio. O espaço vazio é tomado por colocações parenéticas como a substituir a sentença
judicial.
Notas exegéticas
15
Senhor Deus de Israel, ó Salvador, Deus escondido, realmente, sois, Senhor!
O versículo é de difícil entendimento, com várias tentativas de explicação. É o Profeta quem
afirma? Neste caso, é intempestiva a afirmação “Deus escondido”. A frase é dos adversários?
Como poderiam, então, chamar o Senhor de salvador? Parece-nos que o versículo diz respeito a Is
42,14: Javé parecia escondido, oculto e até omisso, mas coordenava as ações necessárias para a
salvação. Em outras palavras, trabalhava em silêncio. Estava como que escondido, porém,
salvando.
16
Todos aqueles que odeiam vosso nome, como aqueles que fabricam os seus ídolos,
serão cobertos de vergonha e confusão.
17
Quem salvou Israel, foi o Senhor, e é para sempre esta sua salvação. E não sereis
envergonhados e humilhados, não o sereis eternamente pelos séculos!
Quem duvidou de Javé, judeu ou não, passando a confiar nos ídolos, ficara coberto de
vergonha, pois foi ele quem salvou Israel. Além do mais, sua salvação não é algo fechado, mas
dura para sempre. Seus fiéis não passarão jamais pelas humilhações dos adoradores dos ídolos.
18
Assim fala o Senhor que fez os céus, o mesmo Deus que fez a terra e a fixou, e a criou
não para ser como um deserto, mas formou para torná-la habitável. “Somente eu sou o
Senhor, e não há outro!
19
Não falei às escondidas e em segredo, nem falei de algum lugar em meio às trevas;
nem disse à descendência de Jacó: “Procurai-me e buscai-me inutilmente!” Eu, porém, sou o
Senhor, falo a verdade e anuncio a justiça e o direito!
É comum a leitura desta passagem sob a ótica da criação. Ela praticamente se impõe. Mas há
um particular que não é levado em consideração: Gn 1,1ss. Deus não aparece apenas como
criador, mas também como organizador do mundo. Ele vence o caos, o vazio, e coloca a criação
em ordem. Semelhantemente, agora, ele organiza a história pervertida pelo ser humano. Não só
anuncia antecipadamente o que fará, como dará um duro golpe na opressão, na exploração. A
ordem é restabelecida pelo reinado da justiça e do direito.
20
Reuni-vos, vinde todos, achegai-vos, pequeno resto que foi salvo entre as nações:
como são loucos os que levam os seus ídolos e os que oram a uma estátua de madeira, a um
deus que é incapaz de os salvar!
Resto de Israel é a pequena porção dos que permaneceram fiéis na debandada geral dos
judeus, seguindo os ídolos babilônicos: Is 46,3. Através dele, a história da salvação terá
continuidade. Em oposição, os seguidores da idolatria são chamados de loucos.
21
Apesentai as vossas provas e argumentos, deliberai e consultai-vos uns aos outros:
Quem predisse estas coisas no passado? Quem revelou há tanto tempo tudo isso? Não fui eu,
o Senhor Deus, e nenhum outro? Não existe outro Deus fora de mim! Sou o Deus justo e
Salvador, e não há outro!
Seriam os ídolos capazes de anunciar o que aconteceria no futuro como fez Javé?
Respondam-me a esta interrogação, desafia o Senhor. Afinal, que são eles se não manufaturados
incapazes, pois nem podem se servir dos olhos, da boca, das mãos que possuem (Sl 113B
(115),3ss)? Poder-se-ia esperar a salvação por meio deles?
22
Voltai-vos para mim e seres salvos, homens todos dos confins de toda a terra! Porque
eu é que sou Deus e não há outro,
23
e isso eu juro por meu nome, por mim mesmo! É verdade o que sai da minha boca,
minha palavra é palavra irrevogável! Diante de mim se dobrará todo joelho, e por meu nome
hão de jurar todas as línguas:
Nada mais lógico que abandonar as obras das próprias mãos, os ídolos de madeira, prata e
ouro, e voltar para o único salvador. O apelo é para todos os povos e não apenas para os judeus!
Todas as línguas são chamadas a louvar Javé, todos os corações poderão adorá-lo.
24
Só no Senhor está a justiça e a fortaleza! Ao Senhor hão de voltar envergonhados
todos aqueles que o detestam e o renegam.

52
53
Os idólatras se achegarão ao Senhor, confundidos por terem sido tão fúteis, tão vazios. Por
outro lado, estarão felizes por engrossarem a legião dos que confessam que só nele está a justiça e
a fortaleza.
25
Mas será vitoriosa no Senhor e gloriosa toda a raça de Israel”.
A vitória final não é apenas de Javé, e nem mesmo só de Israel, mas também de toda sua
descendência. Quem é descendência de Israel? Unicamente os que trazem nas veias um
determinado sangue? Além de fisicista, esta visão contraria o universalismo que aparece pouco
antes: v. 22. Vitoriosos serão, e no Senhor, todos os que a ele retornam. Tanto judeus como pagãos.
Ensinamentos
De modo geral, o judaísmo não foi tão aberto aos outros povos. A maior ou menor abertura
dependeu de épocas e de grupos. Um dos períodos de forte fechamento aconteceu após o
Cativeiro. Muitos dos repatriados regressaram com mulheres estrangeiras que levavam os esposos
à idolatria de suas terras, ou então o sincretismo religioso. Muitos filhos desses casais só falavam a
língua da mãe.
A reação foi radical, tais israelitas eram obrigados a mandar de volta essas senhoras: Esd 9-
10 e Ne 13 trazem decisões chocantes contra os estrangeiros. Foi nessa época que se codificou as
leis da pureza e impureza, encontráveis principalmente no Levítico, fazendo os judeus se
distanciarem mais ainda dos pagãos. Com isto, afirmou-se o pensamento de que eles, os judeus
eram os puros, e os outros, impuros, consequentemente evitáveis. Radicalizou-se, ainda, que eram
o único povo amado por Deus. É bem verdade que Deutero-Isaias é anterior a tal radicalização.
Mas algo semelhante, sempre existiu...
É gratificante encontrar passagens de grande abertura, contra todo exclusivismo, como Is
45,22-23. O Senhor se abre a todos os povos, e esta passagem não é extemporânea, esporádica ou
acidentalmente lançada no texto. O Profeta é fiel ao pensamento de Proto-Isaias que se abre ao
universalismo. Deus não é prisioneiro ou propriedade inalienável de um povo. Diversamente,
abre-se a toda a humanidade: Is 2,2-4. Muros sólidos, mas fechados a outros povos começam a
apresentar fissuras.
Com tais fissuras estavam abertas as portas para quem viria depois, como luz a iluminar
todos os povos: Lc 2,29-32. Jesus enviaria seus apóstolos a todas as nações, para que recebessem
sua mensagem de salvação: Mt 28,18-20. Com o Mestre seria selada uma nova aliança, sem
fronteiras, sem limitações. Seria discípulo de Jesus, quem o recebesse, independentemente de raça
ou língua.
Oração
Quero vos louvar, meu bondoso Criador, porque tudo é obra de vossas mãos, mais ainda: de
vosso coração. Criastes a terra para que a habitássemos: v. 18. Todos os seres humanos, sem
distinção. E nesta terra, por vós criada acolhedora, entre todos os povos deveriam reinar a justiça e
o direito: v. 19.
Todavia, apeguei-me aos bens terrenos, absolutizando-os, transformando-os em ídolos
ilusórios, incapazes de me salvar (v. 21), incapazes de fazer algo por mim (v. 21), embora neles
colocasse tanta confiança. Tanta que no fundo, troquei-vos por eles.
Quero a vós voltar, em companhia de tantos irmãos (v. 27), mesmo coberto de vergonha e
confusão, pois sei que só em vós está toda a justiça e toda a fortaleza: v. 24. Em vossa presença,
somente ante vós dobro meus joelhos (v. 23), reconhecendo-vos como meu único Senhor.
Que vossa salvação seja para sempre, que jamais seja eu envergonhado: v. 17. Que ídolo
algum reine em meu coração: v. 16.
Resumo e reflexão
Deus promete a salvação a todos os convertidos, sem distinção.
Encontrou-se no templo de Jerusalém uma placa em várias línguas dizendo que morreria o
estrangeiro que lá entrasse.
Javé é o salvador de todos os povos.
ISAIAS 49,7-13
O Canto na vida

53
54
Is 42,1-7 apresenta o Servo de Javé, enquanto que em Is 49,1-6, é o Servo que se apresenta a
si mesmo. Esta passagem é o segundo, e a anterior, o primeiro de dois cânticos. A seguir, tem vez
o atual Canto.
Surge de imediato uma debatida questão: é uma poesia à parte? Refere-se à anterior, ou mais
precisamente ao 2º Canto do Servo de Javé (Is 40,1-6)? São personagens distintas que estão aqui e
nos dois Cânticos de Javé, ou se trata sempre da mesma?
Sem tecer maiores considerações ou argumentações, pode-se firmar serem pessoas
diferentes, as de Is 49,1-6 e de Is 49,7-13.
Divisão
Introdução
Deus se apresenta apostrofando o escravo dos tiranos: v. 7a.
Corpo
Reis e príncipes tributarão o escravo dos tiranos: v. 7b.
O escravo dos tiranos é ajudado, recebendo a missão de ser mediador: vs. 8-9.
Os peregrinos são assistidos pelo caminho: v. 10.
Os caminhos são facilitados para os peregrinos: vs. 11-12.
Conclusão
Céus, terra e montes são convidados a louvar o Senhor pela sua misericórdia: v. 13.
Recursos literários
O Poeta é hábil em reter a atenção de seus ouvintes ou leitores. Apresenta Deus falando de
um personagem misterioso, que ao mesmo tempo se revela e oculta. Suscita enorme curiosidade
no leitor que quer descobrir de quem se fala.
Para aumentar o suspense, mostra esse misterioso personagem, como alguém paradoxal:
desprezado, rejeitado, explorado. Mas ao mesmo tempo, cortejado pelos reis e pelos príncipes.
Ele foi projetado por Deus para cumprir uma missão em benefício da multidão. Javé estaria
com ele, o qual seria dotado de enorme espírito de liderança.
O Canto final fala ainda, de uma partida libertadora, esperada, planejada. Tudo é facilitado
para os que partem, mais parecendo com a multidão dos eleitos, pois não passarão pela mínima
provação. Céus e terra são convidados para uma especial liturgia, celebrando o evento.
Quem são esses que partem? Que está acontecendo? O Poeta desafia a perspicácia dos
leitores.
Notas exegéticas
7
Assim fala o Senhor, o Redentor, o Santo de Israel, ao desprezado, ao rejeitado entre
os povos, ao escravo dos tiranos: “Os reis, ao ver-te, haverão de levantar-se e os príncipes,
adorar-te, pelo Santo de Israel que te escolheu, pelo Senhor, que é fiel”.
É claro que quem fala é Javé, identificando-se como o Santo de Israel, e como o Redentor, a
saber, o que liberta os escravos. Mas, a quem se dirige? São possíveis várias respostas. Todavia, o
contexto dá a entender que se refere aos exilados. O povo anteriormente rejeitado e por nações
tiranizado, verá o opressor do momento, a saber, babilônios, tombar ruidosamente.
Libertando-se extraordinariamente das garras de Babel, os reis se levantarão à passagem dos
repatriados, e os príncipes o reverenciarão. Todos reconhecerão que a mão de Deus está com os
oprimidos.
8
Eis, ainda, o que diz o teu Senhor; “Eu te ouvi no tempo certo, no dia da salvação te
ajudei, eu te formei, a fim de seres mediador da Aliança com o povo e restaurares o país;
repartires as heranças devastadas e dizeres aos vencidos:
Gl 4,4 mostra que para o Criador existe tempo e tempo. Um deles é mais forte: o tempo de
graça, o tempo de salvação. Em sua paciência ele esperou e preparou o momento certo para agir,
não violentando, assim, o curso da história: Is 42,14. Quando passa a agir salvificamente, arranca
os cativos da escravidão.
Há uma séria dificuldade: o desprezado, agora liberto, identificado com o povo, parece, no
final do versículo, ser uma pessoa a serviço da comunidade. Isto levou estudiosos a pensar em
adendo posterior. Mas é possível imaginar o povo ao mesmo tempo sujeito e objeto da libertação.
Os hebreus foram objeto da ação libertadora de Javé, quando saíram do Egito. Mas, feita a aliança,
tornaram-se também, um povo sacerdotal (Ex 19,5-6): sacerdotes para si e para os outros,
54
55
portanto, também sujeitos de libertação. Assim, com o acompanhamento de Deus, caberia aos
agora repatriados, restaurar o país, assim como motivar os irmãos pouco animados em empreender
o retorno.
9
“Saí!” e aos que jazem entre as trevas: “Vinde à luz! Aparecei!” Encontrarão seu
alimento no caminho, nas colinas, pastos verdes.
É evidente o entusiasmo nas palavras dirigidas a quem parece estar pouco motivado em
regressar, como era o caso de muitos israelitas, em Babilônia. Asseguram-se a eles uma assistência
especial pelo caminho. Que recordassem a rudeza do deserto, no Êxodo, quando a mão forte do
Senhor agiu generosamente: maná, codornizes Ex 16,1ss), rochedo de Horeb: Ex 17,1ss.
Os retirantes seriam conduzidos por Javé, como ovelhas são guiadas pelo pastor: Is 40,11.
10
Fome e sede nunca mais padecerão, nem o sol os queimará. Pois, quem tem
misericórdia, os guiará e às fontes levará.
11
Converterei todos os montes em estradas, nivelarei os seus caminhos.
Fica cada vez mais patente a ação protetora do Senhor em benefício dos judeus. Teriam que
atravessar regiões desérticas. Todavia, não havia motivo para temores. Além da memória do
Êxodo, tinha-se como garantia, a palavra do Senhor. Volta-se a insistir na promessa dos caminhos
que seriam preparados de antemão para o regresso: Is 40,3-4.
12
Uns vêm de longe, vêm do Norte e do Poente e outros do Oriente.”
O Poeta tem Jerusalém como referência. Para lá convergem todos os que estavam longe da
pátria. Precisamente como Ez 36,24.
13
Cantai, ó céus, exulta, ó terra, de alegria, rompei em cantos ó montanhas! Pois, o
Senhor se compadece do seu povo e tem pena dos aflitos!
A ação maravilhosa operada por Javé merece ser celebrada. Céus e terra, isto é, o mundo
todo, são convidados para uma celebração cósmica.
Ensinamentos
É inevitável falar de Deus sem incorrer numa série de imperfeições e falhas no linguajar.
Sempre que o fazemos, deixamos nossa marca antropomórfica: falamos dele como se fora uma
pessoa humana. Assim se diz que o Senhor ouviu no tempo certo, que ajudou no dia da salvação:
Is 49,9.
Distingue-se com certa nitidez, no fluxo dos movimentos, que um momento é diferente do
outro: há maior ou menor intensidade, marcas mais ou menos acentuadas em cada um deles.
É assim o que chamamos de tempo: um é de tal maneira detectável que aparelhos mais
sofisticados o medem com precisão: mais cedo ou mais tarde, mais quente ou mais frio, chuvoso
ou não. Este tempo é comum a todas as pessoas que se encontram no mesmo ambiente.
Um outro tipo de tempo, porém, varia de pessoa para pessoa, são graças que o Senhor
concede a cada um, segundo seus desígnios, às quais se reage deferentemente. O primeiro é o
kronos, o segundo, o chairós. Assim Javé fez do Cativeiro de Babilônia um deserto de purificação
para as pessoas, para seu povo: Os 2,16-17.
Esse período de reflexão e de reencontro necessário para o povo, foi igualmente, o tempo de
Javé, para conduzir a história, preparando salvação dos seus. Nisso tudo o ser humanos é livre,
para aceitar ou não, o período forte de graça.
Oração
Sei da história do povo da Antiga Aliança, meu Deus, o quanto foi rejeitado e espezinhado:
dominações, perseguições, cativeiros, dispersões. Sei, também, como desapareceram aqueles que
o dominavam: v. 7.
Contudo, quando tudo indicava ter chegado ao fim da própria existência, ouvistes os
clamores, libertando-o no devido momento: v. 8. Nesse povo agraciado, mas também recalcitrante
e infiel, eu me vejo a mim mesmo. Sinto ser a mim que dizeis: urge sair da terra da escravidão,
urge partir: v. 9. E eu me deixo ficar. Tudo parece tão difícil, insuportável, quando se faz
necessário partir, quando se faz necessário caminhar. Busco um motivo para não me mover. E
insistir que nada me acontecerá pelo caminho, que por sinal estará todo preparado para mim: vs.
10-11.

55
56
Mais que os montes, Senhor, aplainais meu coração. Que eu tome decididamente o caminho
da Jerusalém eterna: v.12. E que os céus e a terra possam se alegrar, porque estou deixando a
Babilônia por Jerusalém.
Resumo e reflexão
Os repatriados encontrariam toda garantiria e assistência pelo caminho. Nada os perturbaria.
Daniel, com seus dois jovens companheiros passeavam cantando pela fornalha, pois Javé
estava com eles.
Urge sair da Babilônia, urge partir.
ISAIAS 61,6-9
O Canto na vida
Viu-se que Isaias se divide em 3 grandes partes (pág. ), sendo que os capítulos 56-66 são o
Trito-Isaias. Não há concordância sobre quando veio à luz. O consenso maior é que teria
acontecido logo depois do regresso do Cativeiro da Babilônia, isto é, depois do ano 538.
Quem o escreveu? Mais uma vez, não há concordância. Teria sido um profeta anônimo, o
Trito-Isaias, ou seria mais de um escritor? A questão permanece aberta.
O ambiente onde surgiu o Canto era difícil. Regressando da Babilônia, os judeus que de lá
voltaram, encontraram tudo arrasado: cidade, templo. Faltava tudo. Os antigos moradores, a saber,
os que lá foram deixados e alguns outros adventícios ocuparam o que lhes interessava. Receberam
mal os que chegavam trazendo certas pretensões, determinados ideais e sonhos. Os atritos foram
inevitáveis.
O Canto poderia ser colocado ao lado dos Salmos de Sião: 1º Vol. pág.
Divisão
Introdução
O povo é proclamado povo sacerdotal: v. 6a.
Corpo
Os judeus desfrutarão das riquezas das nações: v. 6b.
Felicidade desfrutada na pátria reconquistada: v. 7.
Aliança eterna com os repatriados: v. 8.
Conclusão
Exaltação dos judeus entre os povos. V.9.
Recursos literários
A Poesia fala bastante pela sua simplicidade. A ausência de maiores arroubos poéticos
permite que se atinja, sem maiores distrações, a mensagem pretendida pelo texto. Nem por isso o
Poeta deixa de cultivar seu escrito, principalmente usando paralelismos sinonímicos:
“Sacerdotes do Senhor sereis chamados,
de Deus ministros há de ser o vosso nome.”
Ou ainda:
“As riquezas das nações desfrutareis,
havereis de gloriar-vos em sua glória.”
Entre paralelismos e sentenças bem elaboradas, com esticos com 3 acentos, na sua maioria,
afirma-se o sacerdócio leigo do povo, que será herdeiro de Deus, usufruindo não apenas da terra
como riqueza das nações. Coroando tudo, os diversos povos reconhecerão serem os israelitas os
prediletos de Javé.
Notas exegéticas
6
Sacerdotes do Senhor sereis chamados, de Deus ministros há de ser o vosso nome. As
riquezas das nações desfrutareis, havereis de gloriar-vos em sua glória.
Em virtude da aliança, o povo se tornou um povo sacerdotal: Ex 19,6. Algo semelhante
acontece aqui: não se nega o sacerdócio cultual; tanto que a grande preocupação é reerguer o
templo. Os judeus, porém, seriam como que sacerdotes, numa mediação especial junto aos outros
povos. Com isto teriam o direito de receber riquezas e doações.
7
Por vossa dupla humilhação e ignomínia recebereis, com alegria, dupla nora. Em
vossa terra havereis de possuir o dobro e a alegria, para sempre!

56
57
O versículo está um tanto prejudicado, mas não impede a compreensão do sentido querido
pelo Poeta: os hebreus foram fortemente humilhados e explorados. Mereciam, consequentemente
uma compensação correspondente. Algo semelhante ou ilustrativo foi dito em Is 40,2.
8
Porque eu, vosso Senhor, amo a justiça e detesto a iniqüidade que há no roubo; eu lhes
darei a recompensa, fielmente, farei com eles uma eterna Aliança.
Inesperadamente Deus entra em cena usando a 1 ª pessoa singular, dando garantia ao que foi
prometido. Afirma, também o quanto é justo, e o quanto lhe aborrece a maldade. Parece dirigir-se
diretamente aos repatriados. A segunda parte do versículo deixa a impressão de que volta a falar
dos judeus como se estivessem distantes. Todavia, há promessa de uma aliança renovada e eterna:
Is 55,3.
9
Entre as nações, a sua raça será célebre, os seus filhos, conhecidos entre os povos. Ao
vê-los, todos reconhecerão, que são a raça abençoada do Senhor.
Israel será celebrado entre as nações com filhos numerosos. A fecundidade não é apenas
numérica; como raça abençoada deixa de ser apenas genética. Israel tão fecundo e abençoado é
imagem de um outro, universal, que o completaria.
Ensinamentos
Javé promete recompensa aos repatriados: v. 8. Como é a recompensa de Deus? De que
maneira acontecerá? Como compreendê-la? Serviam os hebreus a Deus por servir, ou havia
interesse?
A caminhada do pensamento judaico a respeito, não foi fácil. Pensou-se inicialmente, que
com a morte, os falecidos iam para o sheol, a habitação fria e incomunicável. Toda possível
recompensa se dava nesta vida. Quem cumpria a lei seria coberto de bênção e de bem estar. Aos
pecadores só restava o castigo, isso é, sofrimentos.
Não faltaram protestos e contestações. Jó é um exemplo claro: vê-se envolvido por
sofrimentos e se confessa inocente.
Por outro lado, manteria Deus um relacionamento mercantilista com a humanidade, pagando
na proporção em que fosse servido? Onde estaria o amor, tanto da parte divina como da humana?
Jave “recompensado”, como diz o texto, o faz tendo como medida o amor, e é próprio do amor
não ter medida, principalmente em se falando do misericordioso amor divino.
O povo no Cativeiro nada fez que merecesse a paga. O máximo que fez foi purgar-se de seus
pecados. Mas para o Senhor, bastou-lhe o desejo de retornarem, de converterem-se: Is 45,22.
Tanto que a libertação de Babilônia sempre foi considerada como obra da misericórdia divina, e
não mérito dos judeus. Deus ama mesmo quando as pessoas merecem ódio: Rm 5,6-11. Ele que
pela humanidade não poupou o Filho (Rm 8,12), exige o mesmo espírito da diaconia; servir e ser
grato por tanto: Lc 17,10.
Deus “recompensa” pautando-se pelo seu coração. Ao ser humano cabe servir, sem outro
interesse, por puro amor, como o Pai celestial.
Oração
Lembro-me de como vibrei, quando compreendi em maior profundidade o que destes aos
hebreus, ó meu Pai: serem um povo sacerdotal. Algo semelhante acontecera, ao inteirar-me do
sacerdócio batismal a nós concedido.
Agora me é dado considerar a vocação ao sacerdócio e ministério comuns, com direito à
riqueza das nações (v. 6), recebidos de vossa misericórdia. Nada fiz para tanto merecer. Ou se algo
pudesse apresentar, nada mais teria além das minhas limitações, dos meus pecados. E não
exigistes de mim dupla humilhação e ignomínia: v. 7. Tudo me foi concedido gratuitamente.
E porque amais a justiça, arrancastes a iniquidade do meu peito, renovando, sempre sem
merecimento meu, vossa aliança eterna, por mim tantas vezes rompida: v. 8. Sei o quanto vos
custou este dom: o sangue de vosso Filho por mim imolado.
Rogo-vos a graça de ser fiel, de ser autêntico, testemunhando com minha vida o que creio.
Não somente para ser reconhecido como abençoado por vós: v. 9. Mas para que possa ser uma luz
a iluminar meus irmãos.
Resumo e reflexão
Javé salva os cativos e os cumula de riquezas.

57
58
Deus arrancou os hebreus do Egito, conduzindo-os, depois da aliança, a uma terra com casas
e pomares não construídos e plantados por eles.
Senhor, dai-nos a alegria para sempre.
ISAIAS 61,10-62,5
O Canto na vida
Os repatriados do Cativeiro de Babilônia chegaram a Israel motivados pelas profecias do
Deutero-Isaias: reconstruir Jerusalém, reconstruir o templo.
Todavia, as dificuldades começaram antes do esperado: o cortejo de regresso não foi triunfal
e numeroso como se falara; antes, revelou-se até acanhado. Bom número de judeus preferiu ficar
onde estavam, um vez que conseguiram certo destaque social e econômico naquelas terras.
A recepção na própria pátria foi até hostil, e a empresa era demasiado grande, como
costumam ser as coisas de Deus. O Profeta procura levantar o moral dos egressos da Babilônia:
fariam uma especial restauração, reconstruiriam uma nova Sião, elevando-a à dignidade de esposa
de Javé.
É neste ambiente que deve ser colocado o Canto, que nos dois primeiros versículos é Ação
de Graças (1º Vol. pág. ), sendo que o restante, é Hino: 1 º Vol. pág. Pode, ainda, estar entre os
Salmos de Sião: 1º Vol. pág.
Divisão
Introdução
Sião exulta de alegria, como esposa amada pelo esposo: v. 60,10.
Corpo
O Senhor Deus exalta Sião ante todos os povos: v. 62,1.
Todos os povos contemplarão a glória de Sião: vs. 62,2-3.
A Cidade de Davi será, pelo Senhor, chamada de Minha Querida: v. 62,4.
Conclusão
A cidade-esposa de Deus terá seus muros guardados: v. 62,5.
Recursos literários
Embora seja um Canto marcado pela esperança e pela alegria, a métrica predominante é a
das lamentações: quiná.
O Poeta é dotado de uma fantasia fecunda: personaliza Jerusalém como esposa que traz
vestes e mantos especiais, que além da beleza a ser imaginada pelo leitor, tem significados a serem
descobertos e vividos. A veste da salvação e o mundo da justiça falam das muralhas e das portas
que defendem a cidade. Dentro dessas muralhas, e no seio da população deve reinar a virtude: Is
60,18.
É também de se dar atenção a “jardim”, ao qual é comparada Jerusalém. A comparação é
conhecida nas Escrituras: o jardim murado, isto é, a esposa, é o lugar de delícias e privativo do
esposo: Ct 4,12.
Notas exegéticas
61,10
Eu exulto de alegria no Senhor, e minh´alma rejubila no meu Deus. Pois me
envolveu de salvação, qual uma veste, e com o manto da justiça me cobriu, como o noivo que
coloca o diadema, como a noiva que se enfeita com suas jóias.
As personagens principais são Javé e Jerusalém, figurados num noivo e numa noiva,
respectivamente. Ela está envolvida pela veste da salvação e com o manto da justiça. Ez 16,9-14 e
Jr 31,4 ilustram-nos como as noivas se vestiam. Os noivos também traziam uma espécie de
turbante e uma coroa. Essas indumentárias são mais que simples atavios nupciais. Falam de uma
cidade murada e com portas: Is 60,18. E a população teria como vida a alegria, a justiça.
61,11
Como a terra faz brotar os seus rebentos e o jardim faz germinar suas sementes, o
Senhor Deus fará brotar sua justiça e o louvor perante todas as nações.
O jardim, como o jardim fechado de Ct 4,12, é a esposa, no caso, Jerusalém; beleza e delícia
reservadas só ao esposo. E a adornar a cidade, mais uma vez se fala em justiça.
62,1
Por ti, Sião, não haverei de me calar, nem por ti, Jerusalém, terei sossego, até que
brilhe tua justiça como a aurora e a tua salvação como um farol.

58
59
Parece ser o Profeta quem fala em nome de Deus, e não se calará e nem repousará até que
brilhe a justiça. Antes se usou a imagem botânica (v. 11), agora, a solar par retratar esta virtude.
São reassumidas tanto a justiça como a salvação do v. 10.
62,2
Então os povos hão de ver tua justiça, e os reis de toda a terra a tua glória; todos eles
te darão um nome novo: enunciado pelos lábios do Senhor.
62,3
Serás coroa esplendorosa em sua mão, diadema régio entre as mãos do teu Senhor.
62,4
Nunca mais te chamarão “Desamparada”, nem se dirá de tua terra “Abandonada”;
mas haverão de te chamar “Minha querida”, e se dirá de tua terra “Desposada”. Porque o
Senhor se agradou muito de ti, e tua terra há de ter o seu esposo.
Volta-se ao tema justiça. Jerusalém será reconhecida pela justiça e glorificada pelos reis.
Todos pronunciarão o nome novo dado pelos lábios divinos. Nome novo é o mesmo que uma nova
criação ou ao menos uma nova missão; Pedro recebe um nome novo (pedra: Mt 16,18), assim
como Maria (cheia de graça: Lc 1,28), mostrando qual seria sua função na história da salvação.
Não se fala qual é o nome novo da cidade, mas deve ser o complexo de todas as qualidades até
então abordadas, como agora, o de esposa, pela coroa que carrega nas mãos.
62,5
Como um jovem que desposa a bem-amada, teu Construtor, assim também, vai
desposar-te, como a esposa é a alegria do marido, serás assim a alegria do teu Deus.
Mais concisa a imagem de Jerusalém, esposa de Javé. Agora se refere não só à cidade, como
à região toda a ela subordinada. O casamento é na felicidade, fruto da aliança eterna: Is 61,8. Joga-
se contemporaneamente com duas imagens: de casamento e de reconciliação matrimonial.
Ensinamentos
Jerusalém vivia momentos dificílimos depois do retorno dos cativos. Tudo destruído,
faltando tudo, tudo a ser feito. Atrito entre repatriados e os que lá ficaram, e que se julgavam
senhores absolutos, atritos seríssimos, também com os samaritanos, que boicotavam o trabalho de
reconstrução: Esd 4,1ss.; Ne 4,9ss. Grupos iam-se formando, com convivência nem sempre
harmoniosa.
Jerusalém precisava não apenas de que os muros fossem reerguidos, como também a própria
sociedade. Ne 5,1ss é exemplo ilustrativo dessa situação nada agradável. A justiça era, então, um
sonho de todos.
Os judeus não tinham outro código a não ser o mosaico, auxiliado pelas tradições.
Incompleto para um povo que não era mais nômade. Justiça era sinônimo de observância da lei.
Todavia, com muita freqüência, pessoas e grupos se preocupavam mais com a observância e não
com o cumprimento da lei.
Era tranqüilo e fácil cultuar apenas a letra da lei – ainda mais quando se servia de tantos
subterfúgios para dela se esquivar – que seu espírito. Neste caso, a população mais simples ficava
desprotegida e à mercê dos grandes.
Daí o sonho de justiça e do príncipe da paz. A promessa profética era um alento aos
desamparados, era como a chuva em terra seca.
Oração
Ninguém mais que eu, meu Deus, deveria prostrar-se aos vossos pés e na grande assembléia
dos irmãos, exultar de alegria. Cumulastes-me de graças, envolvendo-me de salvação: v. 61,10.
Destes-me tanta condição para fazer brotar em meu peito e entre os irmãos, a vossa justiça: v.
61,11.
Honestamente, não posso afirmar que correspondi a tantos favores. Muito menos dizer,
como vosso Apóstolo, que tais graças não foram vãs em meu peito. Assim mesmo, jamais tivestes
sossego ou vos calastes: v. 62,1. Sempre me tivestes na palma de vossa mão. Repito
convictamente: tudo manifestação de vosso amor, sem o menor merecimento meu.
Que nas maravilhas em mim e por mim operadas, eu me abra mais aos meus irmãos. E que
com isto, todos vejam a obra de vossa justiça: v. 62,2. Que não obstante tudo, me vendo não
desamparado nem abandonado, e sim, por vós amado, todos se deixem levar pelo vosso amor: v.
62,4.
Que eu seja por vós assumido, ó meu Deus, como o esposo assume a esposa: v. 62,5. Que
meu coração repouse só em vós.
Resumo e reflexão
59
60
Jerusalém será ataviada como noiva para o encontro com o Divino Esposo.
A matrona Graco conversava com nobres romanas sobre jóias. Disse possuir duas de
inestimável valor. Para saciar a curiosidade das amigas apresentou-lhes os dois filhos.
Revesti-nos da veste da salvação.
ISAIAS 62,4-7
O Canto n vida
Como Is 61,10-62,5
Divisão
Introdução
Jerusalém é chamada de minha querida e não mais de desamparada: v. 4.
Corpo
Jerusalém é desposada por Javé: v. 5.
A Cidade terá vigias em seus muros para defendê-la: v. 6.
Conclusão
Compromisso de restaurar a Cidade de Davi: v. 7 .
Recursos literários
Poesia pequenina baseada na vida conjugal. Com paralelismos sinonímicos narra-se a
mudança radical de Jerusalém: de desamparada e abandonada, para desposada e querida.
Depois da comparação de esposos que se reencontram, ainda para manifestar o amor
existente entre Javé e Jerusalém, ambos são comparados não mais a cônjuges reconciliados, mas a
jovens enamorados que se assumem.
Notas exegéticas
4-5 Ver Is 61,10-62,5 na pág.
6
Jerusalém, sobre teus muros postei guardas; nem de dia, nem de noite, hão de calar-se.
Não vos caleis, vós que ao Senhor fazeis lembrar-se,
7
não descanseis nem deis a ele algum descanso, até que tenha restaurado a Sião, e, na
terra, a tenha feito afamada!
A Cidade terá guardas sobre os muros, atentos e preocupados com a integridade dos
cidadãos. Javé promete proteção constante e assistência para que seja restaurada dos males feitos
pelos babilônios, quando da destruição.
Ensinamentos
Javé não libertou os hebreus do Egito como ponto máximo e último em sua intervenção
salvífica. Libertou-os para com eles fazer uma nova aliança: Ex 19,1ss. A elaboração do
documento necessário em tais circunstâncias segue o esquema dos pactos que os reis faziam entre
si.
Por mais interessante que possa ser o estudo do aspecto jurídico de escritos tão antigos e
riquíssimos, é de se dar atenção a um pormenor de vital importância: na aliança entre Javé e o
povo, havia o contexto amoroso que era a base de tudo. É como se fôra uma aliança entre dois
jovens enamorados. Tanto que os judeus sempre celebraram o período no deserto como o tempo
dos amores.
Donde o freqüente recurso de se comparar Javé a um esposo que ama apaixonadamente
Israel, a esposa freqüentemente infiel. Os 1-2 é exemplo que fala por si só.
O amor conjugal, a maior experiência amorosa na face da terra, quando dois jovens deixam
pai e mãe, colocando tudo em comum, visando ser dois numa só carne, é o exemplo mais forte,
embora limitado, do quanto Deus ama a humanidade.
Oração
Existiria alguém que não teria passado pela experiência de sentir-se amado por vós, ó Pai
dos Céus? Só mesmo quem não parou para pensar, deixará de reconhecer o quanto sois
misericórdia. A começar pelo dom da vida, até a especial chamada para ser comunhão convosco,
quantas manifestações amorosas!
Em contrapartida, quem não experimentou igualmente o pecado entranhado na própria
carne?
Nem por isso, ó Pai celestial, podemos dizer que ficamos abandonados e desamparados.
Pelo vosso Filho tão amado por vós, mas não poupado, pelo nosso bem, é possível ver o quanto
60
61
somos queridos: v. 4. Por nós manifestais paixão superior ao jovem que desposa a bem amada.
Parece que encontrais vossa alegria e felicidade em nós: v. 5.
Guardai nossos passos, Divino Esposo, dia e noite, para que não prevariquemos: v. 6. Não
vos entregueis ao repouso, até que repousemos em vós.
Resumo e reflexão
Os judeus, libertos da Babilônia, serão a porção querida de Javé.
Gomer, a esposa infiel de Oséias, reencontrou-se, quando conduzida ao deserto. Voltou à sua
beleza e pureza primitiva.
Não mais te chamarão de abandonada, mas de minha querida.
ISAIAS 63,1-5
O Canto na vida
O lirismo do Canto não distrai a atenção dos estudiosos que questionam o lugar, a existência
da Poesia. Vincula-se com o capítulo anterior? Com o posterior? Teve uma existência à parte,
sendo depois, incluído onde está? Estaria no devido lugar? As opiniões se dividem.
É importante recordar que nossa Poesia se encontra no Trito-Isaias. Na ocasião os ânimos
contra os ex-opressores, os babilônios, estavam à flor da pele. Mostra o agir divino, libertando por
si, o povo da dura escravidão, viesse ela donde e como viesse.
O Canto mais se aproxima dos Hinos (1º Vol. pág. ), e dos Salmos Penitenciais: 1º vol. pág.
Divisão
Introdução
Interrogação ao ser misterioso que se apresenta: v. 1a-b.
Corpo
Resposta do ser misterioso, sem maior identificação: v. 1d.
Nova interrogação ao personagem desconhecido: v.2.
Resposta descrevendo o agir no dia da vingança: vs. 3-4.
Conclusão
Ação isolada do misterioso vingador: v. 5.
Recursos literários
O Poema de apenas seis versos conquista seus leitores à primeira vista. Uma leitura, mesmo
sem maiores pretensões e observações, faz com que se entre no ritmo andante, crescente e
envolvente de um herói misterioso que avança, de vitória em vitória.
A métrica passa de esticos com três acentos para o “quina” (1 º Vol. pág. ), alternadamente. A
alternância acompanha a movimentação da poesia, enriquecida pelo estilo dialogal. Este diálogo
parece acontecer antes, entre possíveis guardas nas muralhas de onde vigiam a chegada do
misterioso personagem. A seguir, é feito diretamente com ele que já estava próximo.
É interessante o jogo de palavras, na Poesia, como ADOM e EDÔM (vermelho e Edom:
v.1), diferenciados só na volcalização, assim como G´L (manchar – resgatar): vs. 3-4.
Notas exegéticas
1
“Quem é esse que vem de Edom, vem de Bosra, com vestes vermelhas, vem formoso,
em trajes de gala, caminhando com grande poder?” “Sou eu, que proclamo a justiça, sou eu,
poderoso em salvar!”
Edom é tido como pátria originária dos descendentes de Esaú, na Bíblia. Os edomitas e os
hebreus sempre foram inimigos tradicionais. Alguns estudiosos preferem substituir o nome por
“manchado de sangue”. Bosra é a capital de Edom. Embora não o diga agora, as vestes vermelhas
seriam o sangue dos inimigos, a formosura e os trajes de gala reforçam a mensagem de vitória..
À interrogação segue a resposta: agi como goel, como vingador do sangue: Dt 19,11-13. Era
o parente mais próximo da vítima, que eliminava o assassino, para que reinasse a justiça.
2
“Mas, por que tua veste é vermelha, como a daquele que pisa o lagar?”
A abundância do sangue na roupa do personagem misterioso intriga o questionador. A
indumentária estava tão empapada, que evocava um pisador de uvas, ao sair do lagar, terminando
o trabalho de fazer vinho.
3
“Eu sozinho pisei o lagar, e ninguém me ajudou dentre os povos. Com furor, eu, então,
os pisei e a eles, com ira, esmaguei. Salpicou-me seu sangue as vestes, o meu traje está todo
manchado.
61
62
A resposta clareia parcialmente a ação do goel ou redentor: era necessário vingar o opressor.
Ninguém colaborou. Coube a ele executar sozinho a ação que deve ter sido gigantesca. Furor e ira
estão por ações divinas, sagradas, pois só a Deus cabia agir assim, para eliminar o mal da face da
terra.
4
Da vingança o dia eu queria, da redenção já chegou o meu tempo.
5
Eu olhei, mas ninguém para ajudar; admirei-me, pois não tinha apoio. Então, apelei
ao meu braço, minha ira me veio ajudar,”
O misterioso personagem ensangüentado, aos poucos se revela como alguém divino.
Esperou e preparou o dia da vingança, que consistia na punição dos opressores. Ninguém o fez por
ele. É o furor divino que se inflama contra o mal, é o braço poderoso que abate os opositores: Is
51.9.
Ensinamentos
Os judeus não tinham direito penal desenvolvido para punir os que violentavam a ordem
comunitária. Tudo estava inserido na lei mosaica. Boa parte da execução da justiça dependia da
iniciativa privada. Quando de algum crime, cabia ao parente mais próximo da vítima ser o “goel”,
o vingador de sangue.
Essa vingança pode ser chamada de sagrada, pois o executor o fazia em nome de Deus que
não podia tolerar o mal. Considerava-se como o braço de Javé, pois a vingança como pura
iniciativa pessoal era condenada pela lei; só ao Senhor pertencia vingar: Dt 32,15. O “goel” era
um delegado divino.
É de se acrescentar ainda, que não distinguindo o pecado do pecador, eliminava-se este, para
acabar com aquele. Só na plenitude da revelação, com Cristo, imperaria a lei do amor que não
excluía os inimigos. Jesus será “goel”, o redentor que derrama seu sangue para a salvação dos
remidos.
Oração
É vosso Filho e meu irmão, ó meu Deus, aquele que sobe vitorioso, sim, mas não só com as
roupas: o corpo todo está coberto de sangue. E sem a falada formosura; bem ao contrário, não tem
em beleza nem aspecto que pudesse atrair nossos olhares: l 53,2.
Está banhado do próprio sangue não o dos inimigos. Foi para a salvação destes que morreu.
Morreu para nos salvar, para implantar a justiça: v. 1.
No grande dia da vingança, no dia da redenção, no devido tempo, no Calvário (v. 4), usou
não tanta da força de seu braço, mas a do seu coração misericordiosamente: v. 5. Banhados por
esse sangue, sejamos para sempre purificados e mais dignos de estar ante vossos olhos.
Resumo e reflexão
Quem proclama a justiça e salva, vem banhado em sangue.
Os judeus imolavam milhares de animais, no templo, para o perdão dos pecados pessoais e
do povos.
Cristo nos salva derramando por nós seu sangue.
ISAIAS 66,10-14a.
O Canto na vida
Uma das grandes preocupações dos repatriados de Babilônia era a de reconstruir Jerusalém e
o templo. Todavia, isto não era tudo, segundo a percepção dos mais atentos, caso do Trito-Isaias.
Em seu descortino profético viu que a cidade e o santuário seriam imagem de uma realidade
superior, e a nova Jerusalém tornar-se-ia a mãe fecunda de muitos filhos.
É o que proclama o Canto que é um Hino de Sião (1 o. Vol. pág. ), cujo contexto histórico é
do final do VI séc. aC. Está em Is 66, capítulo conclusivo do Livro.
Divisão
Introdução
Convite para que todos exultem com a nova Sião: v. 10.
Corpo
Os novos habitantes de Sião serão fartamente alimentados e enriquecidos: v. 11.
A paz e a riqueza das nações afluirão para Jerusalém: v. 12.
Sião será mãe de muitos filhos: v. 13.
Conclusão
62
63
Garantida a realização do que foi prometido: v. 14.
Recursos literários
O Autor do Canto se revela de alta sensibilidade e delicadeza. Serve-se das mais belas e
ternas imagens para falar do amor de Javé que acontecerá na nova Sião. Vai busca-las,
sobremaneira no recôndito da vida familiar: a mãe que alimenta seu filhinho e por ele zela com
carinho.
Embora se sirva de imagens que falam por si ao coração humano, nem por isso descura sua
Poesia. Serve-se do ritmo binário, com bastante felicidade e regularidade. No ar fica um delicioso
clima de ninar.
Rico em imagens e comparações, o Escritor passa de uma para outra com habilidade, sem
choque nem ruptura: mãe que gera sem trabalhos de parto, que amamenta, cidade inundada pela
paz, pelas riquezas, povo que se alegra e é feliz.
Notas exegéticas
10
Alegrai-vos com Sião e exultai por sua causa, todos vós que a amais; tomai parte no
seu júbilo, todos vós que a lamentais!
Jerusalém é focalizada como centro das atenções. Trata-se de uma Jerusalém nova e que se
supera a sim mesma. Será festejada por todos os que a amam. Os que anteriormente por ela se
cobriram de luto, trocarão a tristeza pelo júbilo. O Poeta demonstra que algo especial acontecerá
com a cidade.
11
Poderei alimentar-vos, saciar-vos com fartura com seu leite que consola; podereis
deliciar-vos nas riquezas de sua glória.
O versículo se refere implicitamente aos habitantes de Jerusalém. Serão consolados à
saciedade, como crianças que antes choravam de fome e de desconforto, mas agora são saciadas
no alentado regaço materno. A expressão “seio opulento”, indicando fartura e consolação, é
traduzido pela Liturgia das Horas por “riqueza e glória”.
12
Pois assim fala o Senhor: “Vou fazer correr a paz para ela com um rio, e as riquezas
das nações qual torrente a transbordar. Vós sereis amamentados e ao colo carregados e
afagados com carícias;
13
como a mãe consola o filho, em Sião vou consolar-vos.
Jerusalém era popularmente conhecida como cidade da paz. Ambas praticamente se
identificavam no pensar dos judeus: Sl 121 (122). Aqui, paz tem o sentido de cúmulo de todos os
bens, começando pelos materiais, por sinal, especificados nas riquezas das nações, que para lá
afluiriam, como torrentes transbordantes. A seqüência de manifestações de desvelo – criança
amamentada, levada ao colo, acariciada sobre os joelhos, consolada pela mãe – manifestam o
amor com o qual a nova população será tratada.
14a
Tudo isso vós vereis, e os vossos corações de alegria pulsarão; vossos membros, como
plantas, tomarão vigor.
O que foi prometido será constatado: vós vereis. Consequentemente haverá alegria a refletir
no bem estar físico comparado a plantas saudáveis que florescem abundantemente.
Ensinamentos
Amar ou temer a Deus? Esta interrogação questionou não só a teologia judaica, como
também a cristã. É justo falar em amor entre dois seres em ordem tão distantes, como sejam, o
Criador, de um lado, e as criaturas, do outro?
Se estas interrogações são interessantes no plano reflexivo, deixam de sê-lo no amoroso. O
amor aproxima as distâncias, supera barreiras, coloca tudo como que no mesmo nível. Assim,
Trito-Isaias, sem maiores considerações ou escrúpulos, coloca Javé, em Sião, amando com amor
desentranhado. O relacionamento entre ele e os seus, é um relacionamento interpessoal. E é
próprio da pessoa relacionar-se, pouco interessando ao Profeta se os níveis são tão díspares.
Deus é retratado amando com a forte e ilustrativa imagem da mãe que amamenta o filho com
amor, com seios abundantes, consolando-o, aconchegando e enriquecendo-o com toda sorte de
bens. Trata-se de um amor gratuito, o amor divino que é sempre misericordioso.
Da criança nada mais se espera, a não ser o abandono e a entrega total nos braços de quem a
ama sem reserva. E usufruir dos bens que a ela chegam gratuitamente. São estes os modos
próprios de Deus e do ser humano amarem.
63
64
Oração
Edificastes uma Sião para mim, ó Pai Celestial, rica e generosa, motivo para tanta alegria e
júbilo: v. 10. Mãe com seios dadivosos, nela encontro o leite da consolação e todos os deleites
jamais encontráveis alhures: v. 11. Penso em vossa palavra, nos sacramentos de vosso Filho.
Nela encontro novas interrogações, novas solicitações para perseverar na caminhada, e a paz
que me arrebata como torrente transbordante: v. 12. Paz que mora dentro de seus muros e que
jamais encontrei, em tantas tentativas fora de seu recinto. Paz abundante como a torrente, que
longe de me destruir, me envolve, afagando e consolando-me: v. 12.
Tenho esta Sião ao alcance de minhas mãos, eu a vejo com meus olhos. Nela me fortaleço e
me alegro: v. 14. E mais me conforto e alegro, por saber que ela é uma imagem pálida e distante
do que quereis dar-me, para que a desfrute eternamente.
Resumo e reflexão
Alegrai-vos com Sião, exultai por sua causa todos os que a amam.
A lenda diz que o pelicano, faltando comida, chega a alimentar seus filhotes com o sangue
do próprio peito abeto.
Vós sereis alimentados e ao colo carregados.
JEREMIAS 7,2-7
O Canto na vida
Jr 26,1-6 fala da ordem de Javé ao Profeta, para que se postasse no átrio do templo. Os
peregrinos que para lá se dirigissem deveriam ouvir o apelo divino de conversão. Isto se deu no
começo do reinado de Joaquim, filho de Josias. O referido rei começou a reinar em lugar de seu
irmão mais velho, Joacaz, deposto pelo faraó Necáo, do Egito: 2Rs 23,31-24,7. Teve seu nome
mudado de Eliacim para Joaquim. Subiu ao trono no ano 609, reinando até 598.
O Canto é do início da época conturbada e pecaminosa de Joaquim, antecedendo de pouca a
destruição de Jerusalém: 587. Antes, o Profeta insiste na conversão, para que a catástrofe fosse
evitada. Ele se aproxima mais dos Salmos de Fidelidade de Javé: 1o. Vol. pág.
Divisão
Introdução
Apelo direto aos passantes, para que ouçam a palavra de Javé: vs. 2b-3a.
Corpo
Proposta de conversão e eliminação das falsas seguranças: vs. 3b-4.
Condições para que se atinjam os benefícios divinos: vs. 5-6.
Conclusão
Promessa final de felicidade: v. 7.
Recursos literários
O Cântico é um veemente apelo moral, em forma de discurso, aos que subiam ao templo. É
uma peça parenética, um sermão bastante objetivo. Inicialmente como quem bate as mãos para
atrair as atenções distraídas. O Profeta pede para ser ouvido, que parassem, pois o Senhor a quem
procuravam ou imaginavam procurar, tinha um recado a lhes dar, antes que adentrassem o átrio
sagrado.
A seguir, passa a recomendar a conversão, pois é o que interessa a Javé; que não confiassem
em garantias fora dele, incluindo o templo. E como é do gênero profético, afirma que, havendo
conversão, teriam o Senhor morando com eles para sempre. O discurso se dirige ao povo em geral,
sem excluir os dirigentes, as pessoas de destaque.
Ordinariamente a parênese, como sermões e discursos, máxime os dirigidos a uma platéia
em geral, a uma multidão diversificada, é desprovida de maiores pretensões literárias, uma vez que
visa a melhor comunicação. Mas existem discursos que se tornaram jóias da literatura
internacional. Pode-se dizer que o texto em estudo é bem elaborado, pois, no mínimo é uma prosa
ritmada, com boa cadência, própria de um apelo veemente e ardoroso. Os sucessivos condicionais
“se” encontráveis no texto prendem a atenção dos ouvintes à proposta a ser feita.
Notas exegéticas
2
Escutai a Palavra do Senhor, todos vós, de Judá que aqui entrais por estas portas, a
fim de adorar ao Senhor e prostrar-vos diante dele.

64
65
Por meio do Profeta Deus espera as pessoas na entrada do templo, para dizer-lhes algo muito
sério. Não interessava tanto ao Senhor o culto latrêutico que motivava os pretensos adoradores,
mas que antes fosse ouvido e que mudassem de conduta. Por isso clama, insistindo: escutai.
3
Assim fala o Senhor, Deus do universo: “Corrigi vossa vida e conduta, e aqui vos farei
sempre morar!
Javé é apresentado como o Senhor dos exércitos, o Deus de Israel. Esses títulos são muito
usuais no Antigo Testamento. O primeiro, apresentado com algumas pequenas variantes, indica o
Deus criador do universo, e que domina sobre as forças cósmicas, sobremaneira os corpos
celestes, os quais seriam dirigidos por anjos. Quanto a Deus de Israel, é o Deus da aliança, pela
qual o povo se tornara propriedade do Senhor, mas este por sua vez se tornara o Deus do povo.
4
Não confieis em palavras mentirosas, repetindo: “È o templo do Senhor! É o templo, é
o templo do Senhor!”
Se os céus dos céus não podem conter o Senhor, como o templo terreno o conteria? Foi esta
a grande interrogação de Salomão, inaugurando o santuário. Mas, Javé moraria nessa habitação
terrena, cópia da celestial: 1Rs 8,27-29. Os judeus passaram a crer não somente na presença de
Deus entre eles, mas por causa de tal presença nenhuma desgraça adviria: Mq 3.11. Porém, o povo
hospedeiro pouco se incomodou em acolher com dignidade o divino hóspede; praticamente o
transformou em refém. A tríplice repetição, no versículo, demonstra o quanto a falsa segurança
penetrara na alma judaica, falsa segurança que tanto aborrecia o Profeta, e tirava a liberdade de
Javé.
5
Se, porém, corrigirdes vossa vida e emendardes o vosso proceder, se entre vós
praticardes a justiça, se o estrangeiro, igualmente, respeitardes,
6
não oprimirdes o órfão e a viúva, nem disserdes calúnia contra o próximo, nem o
sangue inocente derramardes, nem correrdes atrás de falsos deuses, para a vossa desgraça e
perdição,
Aos adoradores que subiam ao templo é mostrado que o culto não pode estar desvinculado
da vida pessoa e social honestas. O templo existe para nele se celebrar e alimentar uma vida em
comunhão com o Pai e com os irmãos, jamais como anestesia de consciências. Os condicionais
possibilitam a identificação de pessoas e classes: o povo em geral, que vivia dicotomicamente, isto
é, de um modo, no templo, e de outro, fora, os juizes e autoridades, os possuidores e proprietários
exploradores, os violentos e detentores do poder.
7
neste lugar, vos farei sempre morar, na terra que dei a vossos pais, desde sempre e por
toda a eternidade!”
Continuação da promessa anteriormente feita: coabitar para sempre com o povo, se este
criasse condições condignas: 1Rs 9,3-9.
Ensinamentos
Levados por interpretações nem sempre felizes e livres que seus líderes faziam das
Escrituras, os judeus foram criando uma literatura e princípios religiosos que lhes garantiam uma
falsa segurança ante Javé. Por serem descendentes de Abraão, filho da aliança, por terem a
circuncisão e a lei, imaginavam-se não só acima de qualquer suspeita, mas com a vida eterna
garantida. Deus seria um juiz severo para com os demais povos, enquanto que eles seriam tratados
com toda misericórdia.
À lista de garantia e segurança que os dispensava de serem justos, bastando o praticismo da
lei, ajuntava o fato de terem, em seu meio, o templo, moradia terrena de Javé. Para todo o sempre:
1Rs 9,3. Isto os levou ao ritualismo, à exterioridade, ao praticismo, ao que convencionou chamar
de farisaísmo. O envolvimento pessoal, integral, a conversão diuturna não estava na ordem do dia,
nisto eram freqüentemente condenados pelos profetas, que por sinal, nem sempre eram ouvidos e
acolhidos: Is 1,1ss.
Revelação e religião não são a mesma coisa, mas não se excluem, necessariamente. Ao
contrário, são de grande valia quando estão integradas, irmanadas. Esta revelação deve se
fundamentar naquela; diversamente se torna ritualismo, anestesia da consciência, tentativa de se
controlar, de se instrumentalizar Deus. E é precisamente contra isto que o Profeta levanta a voz.
Por mais importante e útil que fosse o templo na vida religiosa judaica, de modo algum podia
condicionar o Senhor. Era fundamental a coerência com o que esse celebrava. No fundo, a
65
66
verdadeira segurança não está no templo mas sim no Senhor, com o qual se deve ter o mais
absolto envolvimento pessoal.
Oração
Bem o sabeis, Senhor, que desde cedo fui iniciado, e com muita disciplina, no que era
chamado de vosso santo serviço, no altar. Tratar tudo com a máxima reverência, com a maior das
dignidades, assumindo os gestos solenemente. Descobrir certo poder mágico nas palavras, nos
objetos. É bem verdade, que com o caminhar, muitas coisas foram sendo redimensionadas e
colocadas nos seus devidos lugares. Posso até crer eu houve crescimento, progresso,
enriquecimento.
Sempre engrossei as fileiras dos que subiam ao vosso templo, transpondo as portas sagradas
para adorar-vos. Não sei, porém, se verdadeiramente movido e motivado por vossa palavra: v. 2.
Sei, com certeza, o quanto confiei no que fazia, no que tocava, no que falava ou cantava, no que
via ou no que celebrava. Agarrei-me em gestos, em cerimônias, em símbolos, sinais e
representações. Vós mesmo, Senhor, vós permanecíeis olvidado. Bastava-me a segurança do
templo; alimentava falsas garantias, pouco me envolvendo com mudança profunda de conduta: vs.
3-4.
Sinto, agora, que por meio do Profeta me convidais a ser um coração justo e caridoso no
convívio com irmãos (v. 5), que acolha com especial predileção os mais marginalizados, os mais
carentes, sendo ainda, um agente de vossa paz: v. 6.
Daí, sim, não somente habitareis comigo, para sempre (v. 7), mas o construireis em mim,
transformado-me em vosso templo santo: 1Cor 6,19.
Resumo e reflexão
Não alimenteis ilusões, repetindo, o templo do Senhor, mas emendeis a vossa conduta, diz o
Profeta em nome de Javé.
Heliodoro pensou em profanar o templo de Jerusalém. Não leva a efeito seu propósito,
sendo punido por misterioso cavaleiro.
Grande a responsabilidade dos que violentam o próximo, verdadeiro santuário do Senhor.
JEREMIAS 14,17-21
O Canto na vida
Jeremias, autor do Canto, nasceu pelo ano 650 aC. Em Anatot, cercanias de Jerusalém, e era
de família sacerdotal: Jr 1,1. Começou sua atividade profética no reinado de Josias (627) aC.): Jr
1,2. Em julho de 586, Jerusalém que fora tomada pelos babilônios, é governada por um amigo do
Profeta: Godolias, que os dominadores deixaram como responsável pela Província. Considerado
colaboracionista pelos conacionais, foi morto e os assassinos, fugindo, levaram o Profeta para o
Egito onde provavelmente morreu: Jr 39-44.
Embora seja espinhosa a função de todo profeta, Jeremias, assumindo seu ministério, sabia
que lhe tocava a dura missão de arrancar, destruir, exterminar, demolir, como também de construir
e plantar: Jr 1,10. Não o fez como profeta irado e vingativo, pois era apaixonado pelo seu povo. O
cap. 14, onde se localiza o texto, teria sido escrito antes da queda de Jerusalém. O Canto é
Lamentação ou Súplica individual (1o. Vol. pág. ), e aborda dois graves problemas: um a fome (Jr
14,1-6), e o outro, o que chegaria em breve: a guerra.
Divisão
Introdução
O Profeta manifesta seu estado ante o sofrimento do povo: v. 17.
Corpo
Descrição da conseqüência da fome e da guerra: v. 18.
Questionamento a Deus: v. 19.
Reconhecimento do pecado: v. 20.
Conclusão
Súplica conclusiva.
Recursos literários
Entre as várias lamentações do Profeta que se especializou no gênero, esta é uma das mais
plangentes. Explora os recursos próprios do estilo (1o. Vol. pág. ), de maneira que a cada
colocação, a cada grito de dor, se segue o eco, respondendo como que esvanecido, distante,
66
67
exangue, dando a impressão de ondas que se vão retirando, após lançarem-se encapeladas contra o
rochedo. O Profeta, sem multiplicar palavras, leva o leitor ao núcleo da dor que o afligia, fá-lo
acompanhar pelas ruas da cidade, pelas quebradas dos campos, encarar as pessoas. Deus também é
chamado em causa. Com poucos recursos, Jeremias apresenta uma obra completa. Com eles,
outros escritores não iriam além de um simples esboço.
Partindo de seu sofrimento pessoal, o Profeta conduz o leitor pelos campos e pela cidade:
ora pinta o horror da guerra, ora descreve a calamidade da fome. Tudo em poucas palavras. Mostra
a seguir a situação dos mais altos representantes do povo, os profetas e sacerdotes, perambulando
desvairados, aparvalhados. Javé é interrogado se nada mais sente por Judá e por sua capital,
Jerusalém, assim como pelo povo. A população esperou algo tão diferente do que estava
acontecendo! Antes de fazer a súplica, os pecados são reconhecidos e confessados.
Notas exegéticas
17
Os meus olhos, noite e dia, chorem lágrimas sem fim, pois sofreu um golpe horrível:
foi ferida gravemente a virgem filha do meu povo!
Os olhos que previram a queda de Jerusalém, choram dia e noite. Para Jeremias os horrores
da tomada da Cidade de Davi já é uma realidade presente. Em julho de 587, depois de muito
sofrimento, a cidade capitula ante os babilônios. O rei foge, é perseguido e capturado. Antes de ter
os olhos vazados, assiste ao espetáculo dos filhos sendo supliciados: 1 Rs 25,1-10.
18
Se eu saio para os campos, eis os mortos à espada: se eu entro na cidade, eis as vítimas
da fome! Até o profeta e o sacerdote perambulam pela terra sem saber o que se passa.
Fome e guerra se aliam para torturar a sofrida população. O Profeta se vê rodeado por
terrível e generalizada desolação. Até os sacerdotes e os profetas, classes mais conscientes,
condutores da população, perambulam sem rumo e de tudo ignaros, perdidos e alienados. Na
atitude desses homens se sente o silêncio de Deus.
19
Rejeitastes, por acaso, a Judá inteiramente? Por acaso a vossa alma desgostou-se de
Sião? Por que feristes vosso povo de um mal que não tem cura? Esperávamos a paz, e não
chegou nada de bom; e o tempo de reerguer-nos, mas só vemos o terror.
O Profeta se dirige a Deus, questionando-o, se Judá não teria um justo sequer, para atrair a
misericórdia celestial: Gn 18,16-33. Olvidar-se-ia ele de Sião, a terra escolhida para morada divina
entre os seres humanos?: 1Rs 9,1-9. Por que a sua punição deixou de ser medicinal, tornando-se
vingativa?: Jó 5,18. Ao final do versículo Jeremias se repete: Jr 8,15.
20
Conhecemos nossas culpas e as de nossos ancestrais, pois pecamos contra vós! Por
amor de vosso nome, ó Senhor, não nos deixeis!
Não é fato único nas Escrituras confessar, juntamente com os próprios, também os pecados
dos antepassados: Dn 9,8. Mas, castigaria o Senhor indefinidamente?: Ex 34,7. O Profeta usa os
mais variados recursos para atrair a misericórdia divina.
21
Não deixeis que se profane vosso trono glorioso! Recorda-vos, ó Senhor! Não rompais
vossa Aliança!
Deus é coagido, por uma série de razões, a atender o pedido do Profeta. Primeiro pela honra
do seu nome, como se revelou a Moisés, agindo e libertando: Ex 3,13-14. Insta com ele a fim de
que repita os feitos de outrora. Em seguida roga-lhe, pelo seu trono gloriosos, pelo templo de
Jerusalém que é sua habitação celeste: Ex 25,40. Em terceiro lugar, diz-lhe que se lembre dele
mesmo, de sua fidelidade: Sl 118 (119),90. Deus sempre fiel a si mesmo não poderia, segundo a
prece do Profeta, depender da instabilidade do povo pecador. Em quarto lugar, evoca a aliança.
Por meio dela Javé se tornou o Deus do povo: Ex 19,5-6. Como poderia deixar que seu povo se
torne o ludíbrio das nações? O Profeta se serve de todos os argumentos persuasórios para dobrar a
resistência divina.
Ensinamentos
A Lamentação nos apresenta Jeremias orando pateticamente ao Senhor, pelo bem do povo.
Antes, todavia, Javé lhe recomendara que não o fizesse: Jr 14,11. A vida do Profeta de Anatot foi
toda dedicada à sua gente e à sua terra. Sentiu-se chamado para “arrancar e destruir, para
terminar e demolir, para construir e plantar”:Jr 1,10. Embora passasse por momentos de
profunda depressão, dadas as muitas perseguições e torturas que sofrera (Jr 20,7-10), jamais

67
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esmoreceu, chegando a renunciar ao matrimônio e à vida social, para melhor servir sua pátria: Jr
16,1-13.
O texto que estudamos nos mostra Jeremias tentando a aproximação entre dois inimigos
irreconciliáveis: Deus sempre ofendido (Jr 15,1-4) e o povo apegado à maldade. Esta é a síntese de
vida de quem ora verdadeiramente, não colocando exclusivamente e acima de tudo os próprios
interesses, mas sim os da comunidade. Os pósteros reconhecerão em Jeremias o modelo do grande
orante: 1Mc 15,14.
Revelando os próprios sentimentos e constatando a dura realidade vivida ou a ser vivida pelo
povo (vs. 17-18), o Profeta questiona Javé, para a seguir, em nome dos seus, entrar em verdadeiro
rito penitencial. Esta é a real situação do ser humano perante Deus: reconhecer-se pecador e
carente de justificação. A proposta do Senhor é sempre a de conversão: Jr 3,14. À criatura humana,
consciente de ser pecadora, nada podendo oferecer de si, só resta colocar-se ante o Senhor,
suplicando perdão, em vista do amor misericordioso, do próprio nome do Senhor e da aliança
feita com o povo.
Oração
Ante vós, ó Senhor, tenho presente neste momento, a formação ufanista que recebi, a partir
dos bancos escolares. Tudo me era apresentado como o maior, o melhor, em nossas terras. Nossos
bosques tinham mais flores, nossa vida esplendores, nosso céu era mais anil. Nem teríamos
problemas maiores.
Mas aos poucos fui compreendendo que não tínhamos apenas praias sedosas, montanhas
alterosas. Nos campos havia irmãos mortos pelas armas da injustiça e da ganância, nas cidades,
irmãos vítimas da fome: v. 18. Até mesmo os mais responsáveis pelo destino do povo pareciam
tatear, como ébrios, e freqüentemente embebedados pela corrupção; sem falar nos que nem
tomavam conhecimentos de sofrimento algum de tanta dor generalizada: v. 18.
Cheguei a interrogar-vos se havíeis rejeitado para sempre esta terra que sempre se
proclamou tão vossa, se havíeis desgostado de um povo que sempre confessou vos pertencer. Por
que o feristes com um mal sem cura: v. 19? Sei agora que eu apenas transferia responsabilidades.
Reconheci que havia o meu pecado, o pecado de todos: v. 20. Reconheci que tudo era fruto de uma
organização pecaminosa a produzir tanto sofrimento no seio do povo.
Quero chorar, como o Profeta, lágrimas sem fim pelos golpes horríveis sofridos pela nação
inteira: v.21. Como Jeremias, me sinta chamado a lutar sem esmorecimento, por nossa terra, por
nossa gente.
Resumo e reflexão
Pecamos conta ti, concluiu o Profeta, vendo os sofrimentos do povo. Pede misericórdia a
Deus, usando todos os argumentos disponíveis.
Filho, tem compaixão de mim, que por nove meses te trouxe em meu seio, dizia a valorosa
mãe, animando o sétimo filho ao martírio. Quero receber-vos com teus irmãos na misericórdia:
2Mc 7,1ss.
Hoje rezamos ao Pai em nome de Cristo.
JEREMIAS 17,7-8
O Canto na vida
O ministério profético de Jeremias durou no mínimo quarenta anos. Foi protagonista de uma
época difícil de seu povo, povo que tanto amava, pelo qual e nas mãos do qual, tanto sofreu. O
reconhecimento, porém, é muito posterior: 2Mc 15,14.
Um dos grandes problemas do Profeta foi estar entre as duas facções que se digladiavam:
pró-Egito ou pró-Babilônia. O Profeta tinha sua visão política; não desprezava as mediações
humanas. Todavia, que fossem consideradas o que eram: simples mediações. Sabia ser maldito
quem confiava no que quer que fosse, fora de Javé. É esta a grande mensagem do capítulo 16, no
qual está o Canto.1
JEREMIAS 31,10-14
O Canto na vida

1
- Este Canto é quase idêntico ao Sl 1,3ss. A ele são remetidas as demais considerações.
68
69
O Êxodo foi uma experiência fundamental para os judeus. Antes eram desprovidos de
qualquer identidade, quer como pessoas quer como povo: estavam reduzidos ao abominável estado
de escravidão. Javé entra na história dessa multidão amorfa e libertando-a, com ela faz uma
aliança, um pacto amoroso de posse e de doação mútuas. O Senhor se faria sempre presente,
acompanhando o povo até a Terra Prometida, e alem. O espírito do Êxodo impregna cada palavra
do Canto de Jeremias.
Nele, o Profeta pode tanto estar se dirigindo aos judeus de Israel, que desde 722 amargavam
o duro exílio, como aos de Judá, que o enfrentariam, ou já estariam enfrentando o de Babilônia.
Todos eles, dispersos como ossos áridos pelos campos (Ez 37,1ss), estavam sendo vivificados e
congregados (israelitas), ou o seriam brevemente (judeus). O Canto, portanto, foi composto num
ambiente de dor, mas de muita esperança.
Divisão
Introdução
Os povos são chamados a testemunhar a ação de Javé: v. 10a.
Corpo
Israel será pastoreado como o pastor faz com o rebanho: v. 10b.
Jacó será resgatado: v. 11.
Alegria e festividade no retorno: v. 12a.
Estado de felicidade agora na própria pátria: vs. 12b-13.
Conclusão
Promessa e juramentos de Deus: v. 14.
Recursos literários
Não é fácil catalogar o Canto, conforme os critérios habitualmente aceitos. É o Profeta quem
fala, mas como porta-voz do Senhor. Ele o faz com tal maestria, que se tem a impressão de ouvir
Javé falando. O Hino, por alguns chamados de consolação, poderia ser considerado como
processional ou de Peregrinação: 1o. Vol. pág. Não é difícil ver a multidão caminhando
festivamente para o monte Sião, levando suas oferendas, as primícias de vinho, trigo, óleo,
renovando, assim, o primeiro êxodo.
O Canto é carregado de movimento: Israel é congregado, sendo trazido, quais ovelhas
dispersas em terras distantes, para o aprisco. Volta-se para o verdadeiro redil, o monte Sião. Uma
vez na Terra Prometida, além do animado movimento das danças, da passagem do luto para a
alegria, há ainda, o da chuva de graças e de bênçãos, na abundância de trigo, de vinho novo, de
azeite, símbolos de fartura. Acontece, assim, o paraíso de delícias nos corações transformados em
jardim bem irrigado.
Notas exegéticas
10
Ouvi, nações, a palavra do Senhor e anuncia-a nas ilhas mais distantes: “Quem
dspersou Israel, vai congregá-lo, e o guardará qual pastor a seu rebanho!”
A ação benfazeja do Senhor, em benefício dos judeus, repercute universalmente: até as ilhas
distantes e desconhecidas tomariam ciência da ação restauradora, se não vivificadora de Javé, em
prol de Israel. Com isto se tornavam testemunhas dos grandes feitos do Senhor e não propriamente
anunciadoras, pregadoras da Palavra, no sentido habitual. Os povos pagãos compreenderão o que
os judeus sentiram na carne: pelos desmandos, foram arrancados, arrasados, exterminados,
afligidos. Para que se convertessem. Agora seriam construídos, plantados (Jr 31,28), conduzidos
amorosamente, como um rebanho, pelo bom Pastor.
11
Pois, na verdade, o Senhor remiu Jacó e o libertou do poder do prepotente.
Remir, resgatar, libertar, surgem como sinônimos. Javé que libertara os judeus do Egito, com
mão forte e braço estendido (Dt 4,34), abatendo Faraó e seu exército, bem como outros povos (Ex
15,1-18), abateria novamente os considerados imbatíveis assírios e os babilônios, segundo o caso,
os que oprimiam os judeus, levando-os ao cativeiro: 2Rs 17,5-6; 1Rs 25,1ss.
12
Voltarão para o monte de Sião, entre brados e cantos de alegria afluirão para as
bênçãos do Senhor: para o trigo, o vinho novo e o azeite; para o gado, os cordeirinhos e as
ovelhas. Terão a alma qual jardim bem irrigado, de sede e fome nunca mais hão de sofrer.
A primeira parte do versículo recorda o júbilo dos repatriados regressando do cativeiro, seja
da Assíria, seja da Babilônia. O texto sagrado não deixa claro de que retorno se trata: do primeiro,
69
70
feito isoladamente, ou do segundo, mais grupal e organizado. O Sl 125 (126), falando deste último
retrata eloqüentemente o júbilo dos judeus que voltavam exultantes para a pátria. A outra parte
evoca as multidões de peregrinos, em romaria a Jerusalém, ofertando ao Senhor as primícias, quer
da agricultura, quer do pastoreio. O povo santo é comparado a um jardim perene, qual Éden
irrigado por mananciais fecundantes: Gn 2,8ss.
13
Então a virgem dançará alegremente, também o jovem e o velho exultarão; mudarei
em alegria o seu luto, serei consolo e conforto após a pena.
14
Saciarei os sacerdotes de delícias, e meu povo há de fartar-se de meus bens!
Antes do cativeiro, o Profeta anunciava que nas praças e nas ruas haveria luto e gemido: Am
5,16-17. Há um movimento que parte do pecado, portanto, da orgia para o sofrimento. Agora tem
lugar um outro movimento, um especial retorno: do sofrimento, do exílio, para a alegria, para a
felicidade na pátria. Isto é conseqüência do que aconteceu no interior dos corações: a conversão. A
exultação atinge a todos: dos jovens aos anciãos, do povo, nas praças, aos sacerdotes, no templo.
Ensinamentos
Jeremias teve momentos de profundo abatimento e desânimo. Sentia que todos zombavam
dele e que era motivo de escárnio. Muito sofreu, pois, em seu ministério. Cabia-lhe clamar contra
a violência, contra a opressão: Jr 20,7-8. A conseqüência foram dias amargos, com muita
perseguição, sofrimento e torturas, o que o levou a lamentar o dia de seu nascimento: Jr 20,14.
Agora, porém, feliz proclama em seu Canto, dias venturosos para seu povo. Não se sabe se exulta
pelos israelitas que voltavam do cativeiro, isoladamente, dado o enfraquecimento da Assíria ante o
crescimento de Babilônia, potência emergente, ou se pelos judeus que se libertariam desta, ante o
poderio de Ciro. Seja como for, mostra como Javé está sempre pronto ao perdão, a renovar e dar
continuidade ao primeiro êxodo.
Javé é apresentado como pastor, como quem dispersa e congrega. Parece haver contradição
ou incongruência, colocando os dois verbos lado a lado. Todavia, há um grande ensinamento,
típico dos profetas: o Senhor pune os pecados de seu povo. Nem poderia ser diferente, pois é
impossível a conivência com o mal. A punição divina, contudo, não e vingança; é salvífica, isto é,
visa à conversão e ao reencontro. Enfim, o Senhor que abate e arranca, o faz para construir e
plantar: Jr 31,28. Trata-se, portanto, de castigo medicinal. Desta maneira, Javé continua sendo fiel
a si mesmo, fiel à aliança.
Oração
Quem poderá sondar, investigar os vossos desígnios, Senhor? Tenho experiência desta
realidade. Enfim, me sois totalmente outro, e vossos projetos são realmente insondáveis. Máxime
quando me posto ante o sofrimento, quer das pessoas, quer do povo como um todo. Até onde vai
vossa providência que tudo governa, sem comprometer-se com a dor e o mal estar generalizado?
Até onde vai vossa providência, vosso governo, sem interferir em minha liberdade? Até onde vai
minha liberdade, sem afetar vossa vontade, vosso pleno poder? Não seria o sofrimento também
conseqüência de meus desmandos, dos desmandos do povo?
Superando os momentos críticos, refletindo mais à luz da fé, deu para descobrir, como sois
bom pastor, até mesmo quando dispersastes, pois o fizestes para congregar e guardar-nos como
vosso rebanho: v. 10. Quando vossa mão parecia-nos pesada e até contra nós, na realidade, mais
atingíeis o poder prepotente do mal, assim nos auxiliáveis em nosso resgate, em nossa libertação:
v. 11.
Peregrinos no deserto, entre brados de alegria, afluímos a vós (v. 12), certos de não caminhar
na ilusão. Levamos o melhor de nós mesmos, representado nas primícias do vinho novo, do azeite,
do trigo, nos cordeirinhos e nas ovelhas: v. 12. Tudo, Senhor, para que nosso povo encontre a paz
e a felicidade possíveis nesta dura peregrinação. Que todos dancem em vossa presença, trocando o
luto do sofrimento, da exploração, da marginalização, na paz e na alegria, na vossa paz: v. 13.
Que todos os povos possam testemunhar, Senhor, mesmo os mais distantes, os mais
indiferentes (v. 10), que nos libertais das mãos dos prepotentes: v. 11.
Resumo e reflexão
O Profeta anuncia que o luto e o sofrimento seriam transformados em alegria, abundância e
dança.

70
71
Oséias anunciou que as mulheres carregadas de adornos, fruto da injustiça, teriam os colares
e as pulseiras convertidos em correntes e algemas: Os 4,1-3. Agora, o anúncio é de alegria, após o
sofrimento.
Quem dispersou Israel, vai congrega-lo.
LAMENTAÇÕES 5,1-7.15-17.19-21
O Canto na vida
No ano 587, Nabucodonosor destruiu Jerusalém e incendiou o templo. O rei Sedecias,
fugitivo, foi capturado e assistiu à chacina dos filhos e teve os olhos vazados. Com tantos outros
conterrâneos foi levado para a Babilônia: 2Rs 25,1ss.
Essa catástrofe nacional abalou a fé mais basilar dos judeus que acreditavam na
inexpugnabilidade da capital, pois lá estava Javé, a rocha de salvação. Até os não judeus
consideravam Jerusalém invulnerável: Lm 4,12. Cria-se que com o Senhor no templo, nada
aconteceria à cidade e à população: Jr 7,4ss. Agora, não só Jerusalém era um monte de escombros,
como boa parte dos habitantes foi desterrada.
O Canto surgiu neste ambiente desolador. A diferença de estilo e de pensamento, todavia,
mostra que os livros de Jeremias e das Lamentações têm autores distintos.
Este último são 5 elegias que choram a dolorosa situação da cidade, dos que não mais lá
estavam e de seus míseros habitantes. O Canto é uma Súplica ou Lamentação: 1o. Vol. pág.
Divisão
Introdução
Invocação suplicante para que Javé veja a humilhação do povo da aliança: v. 1.
Corpo
Situação do povo: sem posses, órfãos e viúvas, sem bens, escravos e mendigos: vs. 2-6.
Sofrimento: conseqüência dos pecados: v.7.
Povo sem alegria, em luto, infeliz: vs. 15-17.
Súplica a Deus, para que de seu trono não abandone o seu povo: vs. 19-20.
Conclusão
Pedido de conversão e de renovação: v. 21.
Recursos literários
Lamentações consta de 5 poesias, sendo que as primeiras 4 são elegias alfabéticas. As letras
do alfabeto hebraico são colocadas em ordem, no início de cada verso ou de cada estrofe. Apenas a
última das poesias, por sinal, o Canto em estudo, não segue este modo de escrever e é uma
dolorosa Súplica: 1o. Vol. pág. Todavia são 22 versos, número das letras do alfabeto israelita.
A métrica escolhida é a que fez escola ao se escreverem lamentações ou súplicas, e que
melhor traduzem os sentimentos do Autor que grita, ferido pela dor, ouvindo a seguir, o eco
ressonando enfraquecido pelo amontoado de ruínas. Com variações segue o “quina”: 3 x 2.
O Canto começa e termina com uma invocação (vs. 1.21), como também no início e no fim
se joga com dois termos significativos na teologia hebraica: recordar – esquecer: vs. 1.20. O
pecado, por sua vez, está na parte central do Canto, sendo também lembrado duas vezes: vs. 7.16.
Notas exegéticas
1
Senhor, lembrai-vos do que nos sucedeu, olhai e vede a nossa humilhação!
Lembrar-se do passado glorioso e amoroso, quando houve especial intervenção divina, é
fazer presente de modo especial a libertação e a aliança. Que Javé, antiteticamente confrontasse o
presente de humilhação com um passado tão cheio de graças. O confronto falaria de per si,
dispensando maiores comentários.
2
Nossa herança ficou com estrangeiros, nossas casas passaram a mãos estranhas!
3
Somos órfãos, pois já não temos pai, nossas mães se tornaram quais viúvas.
Aos judeus foi prometida uma terra com casas por eles não construídas, e com árvores por
outros plantadas: Dt 6,10-11. Isto tudo era a herança de Javé: Ex 15,17. Agora tudo estava
arrasado e em mãos dominadoras. O povo que lá estava eram os órfãos e as viúvas que
sobreviveram ao cerco e tomada da cidade. Os mais válidos e capazes foram levados para
Babilônia. Restaram os fracos, os doentes, os incapazes. E sobretudo, estavam também órfãos pela
carência de autoridade e de liderança.
4
Nossa água, compramos por dinheiro, nossa lenha nos custa um alto preço!
71
72
Os que ficaram em Jerusalém estavam privados do mais elementar: da água e do alimento.
Este, se possuído, nem podia ser cozinhado. Isto acontecera também durante o assédio da cidade.
5
Perseguidos, com a canga no pescoço, sem repouso, estamos esgotados!
A população deixada em Jerusalém dada as limitações pessoais de cada um, voltou para a
antiga situação de escravos. Como no Egito: canga nos ombros, duros trabalhos, sem tempo para
refazer as forças.
6
Ao Egito e à terra dos Assírios estendemos a mão para ter pão.
7
Pecaram os pais, já não existem; levamos as culpas dos sus crimes.
É extemporânea recordação da Assíria que não mais existia. Provavelmente está no lugar de
Babilônia, não citada para se evitarem represálias e maiores sofrimentos. Um dos grandes pecados
dos judeus foi ter colocado toda confiança, não no Senhor, como recomendara o Profeta, e sim nas
alianças, ou com o Egito, ou com a Babilônia. As autoridades e o povo se dividiram entre as duas
potências. Mendigar o pão, aqui, seguramente tem também este sentido.
15
A alegria fugiu dos corações, converteu-se em luto a nossa dança!
16
A coroa caiu-nos da cabeça, infelizes de nós, porque pecamos!
Depois de elencar uma série de sofrimentos e violações infligidas ao povo (os vs. 8-14)
foram omitidos pela Liturgia das Horas), fala-se, agora, que não existe mais a alegria das festas e
do sábado. Isto voltaria depois do Cativeiro: Jr 31,13. O povo era como um rei destronado. Mais
uma vez o pecado é tido como causa de tudo.
17
Amargurou-se o nosso coração, nossos olhos estão anuviados!
O coração, fonte da alegria, é só amargor. Os olhos, sinal de vida, esmaecem. São como
chamas que se apagam por falta de combustível.
19
Ó Senhor, vós reinais eternamente, vosso trono perdura para sempre!
20
Por que persistir em esquecer-nos? Por que, para sempre, abandonar-nos?
O trono terrestre do Senhor podia estar derribado; porém, ele continuava reinando
eternamente nas alturas. Ainda dirigindo-se diretamente a Javé, é feito um apelo: que não
olvidasse o povo da aliança. Que se apressasse, mesmo sendo eterno e sentado para sempre em seu
trono. O povo não podia esperar tanto, pois estava humilhado e oprimido.
21
Convertei-nos a vós e voltaremos, renovai nossos dias, como outrora!
A conversão e a renovação são reconhecidas como dons do céu: Ez 36,25-27. A
conseqüência é o retorno aos bons tempos de outrora.
Ensinamentos
Pelo que a história nos dá a conhecer, o assédio de Jerusalém e a queima do templo, assim
como o Cativeiro de Babilônia, e a situação dos judeus remanescentes foram catastróficos.
Humanamente falando, esperar-se-ia o fim do povo judeu como tal. Só mesmo uma revelação era
capaz de anunciar a vida que retornava de ossos áridos: Ez 37,1ss.
A leitura apressada das Lamentações pode deixar a falsa impressão de uma dor estéril se não
mórbida. Ou que foram elaboradas como um recurso elegante, mas, quem sabe, alienadas, para
consolar um povo ferido de morte. A situação mostrava que havia muito pouco a consolar.
Nada disso é o que motiva o Escritor. Ele levanta vários questionamentos, como: quem está
na origem de todos esses males? Seria Javé impotente ante os deuses da Babilônia? Seria infiel à
aliança do Sinai? Ou o povo teria considerações a fazer sobre si mesmo, sobre sua possível
infidelidade? Que fazer, a partir disto tudo? Como dar continuidade à história da salvação, mesmo
parecendo que tudo chegara ao fim?
As Lamentações exigem reflexão, pois em plena dor, e de modo especial, a partir dela, é
possível descobrir algo estável a animar a esperança no fundo do coração. Afinal, Deus não falha.
Ele reina eternamente e é sempre fiel, houve o pecado pessoal, o pecado social, entre os judeus,
pecou a geração passada, como a atual. Com a conversão, haveria a volta, haveria o shub
(retorno), com tudo o que significa em profundidade, em amplidão, em extensão, em altitude.
Oração
Chorar sobe as ruínas da cidade amada! Quanto me foi dado ler e até refletir Jeremias e suas
lamentações sobre Jerusalém, ó meu Deus! Quanto a arte me propiciou contemplar telas com o
piedoso Profeta, solitário e abatido, sentado sobre os escombros da cidade tão santa! Recordo-me,

72
73
até com muita saudade, as imponentes celebrações da Semana Santa, quando se cantavam com
destaque, as lamentações, a ele atribuídas, que tanto me atraiam e me questionavam.
Isto tudo me marcou, bem o sabeis, ó meu Deus, que quando as investigações mais
especializadas me mostraram que aqueles escritos não eram do Profeta, senti certo
desapontamento.
Agora, conhecendo melhor a terra dadivosa que nos destes e a realidade de milhões de
conterrâneos, completamente marginalizados, de tudo privados, e entre tão poucos que vivem
nababesca e insensivelmente, como o Profeta devo dizer que a alegria fugiu de nossos corações: v.
15.
Pecamos nós, pecaram nossos pais: v. 7. Por isso caiu a coroa ufanista de nossas cabeças:
v.16. Embora esperançosos, amargurados estão nossos corações: v. 17. Parece exagero, Senhor,
mas ouso dizer que nossa herança ficou com estrangeiros: v. 2. E sei que não devo cair em
nacionalismo xenófobo, barato, e que a nada leva.
Sim, bondoso Pai celestial, por causa de nossa omissão, por causa de interesses escusos,
tantos irmãs estão privados dos mais elementares direitos humanos, privados de participar dos
direitos de cidadania. Irmãos e irmãs transformados em órfãos e viúvas: v.3. Tudo, começando
pelo mais básico, é pago a alto preço: v. 4. Tendo que estender as mãos a todos para terem o pão:
v. 6.
Senhor! Vós que reinais eternamente (v. 19), não nos esqueçais (v. 20), vede nossa
humilhação: v. 1. Convertei-nos e voltaremos a vós: v. 21.
Resumo e reflexão
Senhor, olha e vede nossa humilhação.
Numa primeira e feliz avaliação do Brasil, prevendo o quanto seu povo podia ser feliz, Pero
Vaz Caminha escreveu: nesta terra, em se plantando, tudo dá. Não obstante, o que se constata são
os enormes bolsões de sofrimento que clama ao céu.
Convertei-nos para vós, Senhor.
EZEQUIEL 36,24-28
O Canto na vida
O povo pecou e a ira de Deus foi derramada sobre ele, dispersando-o ente as nações. Foi
entregue à zombaria e o nome do Senhor foi profanado: Ez 36,17-20. Pelo seu santo nome, Deus
jura a Ezequiel, que os judeus retornarão à pátria: Ez 36,21. Levado com os primeiros deportados
(587 aC) e acomodado provavelmente com os demais, à margem do Grande Canal (Nar-Kabar),
tornou atalaia dos judeus: Ez 3,16. Seguramente o Canto é posterior ao Cativeiro da Babilônia,
que aconteceu em 586: Ez 33,21. É uma composição profética na qual Ezequiel fala em nome de
Deus, levando palavras encorajadoras aos companheiros de exílio. Portanto, o Canto foge dos
demais esquemas classificatórios até então feitos.
Divisão
Introdução
Deus promete intervir entre os judeus dispersos: v. 24.
Corpo
Purificação dos cativos: v. 25.
Revitalização dos purificados: v. 26.
Assistência no agir dos vivificados: v. 27.
Conclusão
Promessa de comunhão no agir dos vivificados: v. 28.
Recursos literários
O plano do Canto é lógico e conseqüente. Inicialmente Javé se propõe a percorrer povos e
nações para congregar os judeus dispersos: v. 24. De imediato, deverão ser purificados de toda
idolatria que os contaminou: v. 25. Uma vez purificados, receberão uma nova alma, um coração
novo: v. 26. Com novo coração, é possível amar diferentemente: v. 27. Como conseqüência de
tudo, Javé e o povo eleito reassumirão a íntima comunhão entres eles, fruto da aliança.
Ezequiel não se deixa levar tanto por arroubos poéticos. Preocupado com a mensagem,
descura os recursos literários que marcam os escritos dos outros grandes profetas. Mas, nosso
Canto nos apresenta alguns que merecem ser considerados. Ele é composto de cinco trísticos nos
73
74
quais ocorrem belas idéias paralelas, complementas por um outro estico: 1o. Vol. pág. No primeiro,
o relacionamento é a-b:
“Haverei de retirar-vos do meio das nações,
haverei de reunir-vos de todos os países,
e de volta eu levarei todos vós à vossa terra.”
No segundo, o relacionamento é b-c:
“Haverei de derramar sobre vós uma água pura,
e de vossas imundícies serei purificados;
e sim, sereis purificados de toda idolatria.”
Notas exegéticas
24
Haverei de retirar-vos do meio das nações, haverei de reunir-vos de todos os países, e
de volta eu levarei todos vós à vossa terra.
A promessa é a de retirar o povo da dispersão em que fora lançada pelo pecado (Ez 5,1ss), e
reconduzi-lo à terra que lhe fora dada: Ez 11,17. Quando Deus irado decidia eliminar o povo
pecador, Moisés se fazia forte, fundamentando a oração nestes mesmos dois pontos de honra (a
promessa de libertação, e a de dar uma terra), demovendo, assim, a vontade divina: Ex 32,11-12.
25
Haverei de derramar sobre vós uma água pura, e de vossas imundícies sereis
purificados; sim, sereis purificados de toda a idolatria.
Para os povos antigos, os deuses eram nacionais. Quando um povo era vencido, o primeiro a
ser considerado derrotado era o deus por ele cultuado. O culto deslocava-se com facilidade para a
divindade do dominador. Compreende-se que, ao serem reconduzidos, os judeus deveriam ser
purificados da idolatria prestada aos deuses babilônicos. A purificação seria feita com água pura,
derramada por Deus, e não como a usada pelos judeus, nas abluções.
26
Dar-vos-ei um novo espírito e um novo coração; tirarei de vosso peito este coração de
pedra, no lugar colocarei novo coração de carne.
Os que retornam do Cativeiro praticamente constituem uma outra nação. Além de
purificados, são como que revitalizados: novo modo de ser, novo modo de agir e profunda
transformação interior; no lugar do coração de pedra, um coração de carne e um novo espírito a
substituir o anterior. Não se trata de curar o coração de pedra, mas de substituí-lo por um de carne.
27
Haverei de derramar meu Espírito em vós e farei que caminheis obedecendo a meus
preceitos, que observeis meus mandamento e guardeis a minha Lei.
A renovação íntima e essencial prometida no versículo anterior deve produzir algo novo:
cumprimento integral dos mandamentos do Senhor. Pode-se dizer que estão em confronto dois
modos diferentes de viver; o carnal e o espiritual: Jo 3,6. É o espírito a dar vida aos ossos áridos, e
a reavivar um povo, reconduzindo-o à pátria: Ez 37,1ss. Os exilados receberão, como no Sinai, a
lei que seria então observada e vivida.
28
E havereis de habitar aquela terra prometida, que nos tempos do passado eu doei a
vossos pais, e sereis sempre o meu povo e eu serei o vosso Deus.
O versículo se refere ao tempo dos amores, quando Javé escolheu Israel dentre os demais
povos, fazendo com ele uma especial aliança: Ex 19,5-6. Concretizar-se-ia o que fora prometido a
Abraão (Gn 12,7) e a Moisés: Ex 3,8.
Ensinamentos
Os judeus sempre se consideraram o povo eleito de Deus. Esta eleição foi selada com uma
aliança: Ex 24,1-11. Mas, a aliança que acarreta privilégios, implica também deveres para ambas
as partes. Deus jamais deixou de ser fiel à palavra dada. Não assim os judeus. Eles que deveriam
viver como povo consagrado (Ex 19,5-6), deixaram-se contaminar por todos os pecados,
culminando pelo de idolatria. Consagrado quer dizer separado do uso profano para estar a serviço
do Senhor. Daí a necessidade de o povo ser novamente separado, “cortado” do contato com os
demais povos; de ser purificado da idolatria; numa palavra, receber um coração novo e o espírito
recebido na aliança. Deste modo teria condições de praticar o querer divino, de ser um sinal entre
os demais povos. Isto lhe restituiria a posse da Terra Prometida, donde fora brutalmente arrancado.
Terra é o penhor da verdadeira pátria, da qual a terrena é mera imagem. E como coroa de
tudo, a íntima comunhão com Deus: “sereis para sempre o meu povo e eu serei o vosso Deus”: Ez
36,28.
74
75
O que foi dito pelo Profeta aos seus contemporâneos no exílio é válido para todos os que
peregrinarem neste vale de lágrimas.
Oração
Não me foi necessário ser arrancado de minha casa e de minha terra. Não me foi necessário
ser tirado de minha gente para que ambulasse por países e nações. Eu mesmo, meu Deus, quando
assumi livremente os meus caminhos, que não eram os vossos (Is 55,7), expulsei-me da terra
presenteada, eu mesmo coloquei às portas querubins, vedando a ela o meu retorno: Gn 3,23-24.
Vaguei, então, às apalpadelas, servi deuses estranhos, tornei-me um tratador de porcos: Lc
15,15. E não o encontrei. Tomei consciência de que não fora criado para isto. Como o filho
pródigo, mesmo reconhecendo minha indignidade, ouso reaproximar-me. Antes, porém, suplico
que me arranqueis da terra da escravidão do pecado (v. 24), e que a água pura de vosso amor me
liberte das imundícies e da idolatria: v. 23.
Ah! O sangue de vosso Filho, meu Deus! Reconheço, todavia, que o mal está arraigado em
mim. Que seja extirpado meu coração de pedra tão comprometido e, em seu lugar, seja colocado
um de carne. Que meu espírito seja substituído pelo vosso espírito: v. 26.
Pensando em sintonia com os vossos pensamentos, amando segundo os critérios do vosso
coração, ser-me-á fácil obedecer aos vossos preceitos e guardar as vossa lei (v. 27), até, Senhor, o
dia em que me for dado habitar na terra prometida, em vossa comunhão, para sempre, e onde serei
todo vosso e vós sereis todo meu: v. 28.
Resumo e reflexão
Pelo Profeta. Deus promete libertar o povo, purificando-o e atraindo-o a si.
Antes do povo se aproximar das faldas do Sinai para a aliança, Javé exigiu que ele se
purificasse: Ex 19,10-11.
Nosso banho purificador é no sangue do Cordeiro.
DANIEL 3,26-27.29.34-41
O Canto na vida
O livro de Daniel, donde se origina o Canto, não constitui um todo, como parece afirmar o
redator final da obra. Um estudo aprofundado mostra que é originário de várias tradições
anteriores. Outra constatação importante: ele não é do período do Cativeiro da Babilônia, como
diz Dn 1,1ss. Na verdade, se situa no século II aC. ou mais precisamente, no período do pérfido
Antíoco IV. A perseguição era feroz, os perseguidos precisavam de algum alento, de alguma luz.
Mas não era prudente falar claramente que aquela situação seria passageira, até a vitória final de
Deus. Usa-se o gênero apocalíptico, então em voga. Com a particularidade de que este livro foi
recebido como inspirado.
A chamada oração de Azarias e o cântico dos três jovens condenados à fogueira (Dn 3,24-
90), chegou a nós em grego, enquanto que outras partes do livro foram escritas em hebraico e
aramaico. Nosso Canto é penitencial (1o. Vol. pág. ), e foi redigido por ocasião do domínio de
Antíoco IV (175-163), como deixa claro Dn 11,1ss. O povo reconhece estar pagando pelos
pecados cometidos; a penitência é comunitária. Os livros dos Macabeus falam longamente desse
pérfido rei.
Divisão
Introdução
Louvor introdutório a Deus: v. 26.
Corpo
Deus é justificado em sua providência: v. 27.
Reconhecimento do pecado que propiciou a punição: v. 29.
Súplica para que o castigo não seja definitivo: vs. 34-36.
Descrição da dolorosa situação do povo: vs. 37-38.
Que as súplicas sejam acolhidas, como se fossem holocaustos oferecidos: vs. 39-40.
Conclusão
Promessa de fidelidade: v. 41.
Recursos literários
O texto foi escrito em grego. Faz parte do capítulo 3, narrando que os judeus, entre os quais
Sidrac, Misac Abdênago, nomes de Ananias, Misael e Azarias, respectivamente (Dn 1,7),
75
76
recusaram adorar a enorme estátua construída por Nabucodonosor. Os três por serem pessoas de
destaque foram condenados ao fogo. O Canto é uma prece de Azarias.
O início é uma doxologia hínica. Louva-se o Senhor por ser quem é. A seguir, o Canto se
transforma em súplica penitencial, obedecendo uma seqüência lógica: Deus é reconhecido justo e
bom, mesmo quando toma decisões desagradáveis. Assim agiu, porque o povo pecou. Roga-se em
virtude do nome divino, em nome dos santos patriarcas, e da aliança feita, que a punição não seja
definitiva. É apresentada ao Senhor a situação desastrada na qual se encontra o povo: humilhado,
sem chefes e profetas, sem sacrifícios no templo. Que tanto sofrimento seja aceito como um
holocausto; assim, a face do Senhor será reencontrada.
É rica a imagem usada pelo Poeta, colocando o Canto nos lábios de alguém envolvido por
chamas ardentes, mostrando o sofrimento que envolvia o povo judaico: Dn 3,24-25. Todavia, as
chamas não consumiam os jovens que lá estavam; eram vencidas por fresca aragem e
principalmente por um anjo que os defendia: Dn 3,49-50. Era Javé fiel às suas promessas.
Notas exegéticas
26
Sede bendito, Senhor Deus de nossos pais. Louvor e glória ao vosso nome para
sempre!
Javé é invocado como “Deus de nossos pais”, evocando, é certo, sobremaneira Abraão, Isaac
e Jacó. Com isto o judeu se vinculava historicamente não só com seus antepassados, mas também
com as promessas a eles feitas. Este recurso o fazia forte, ante o Senhor, em suas súplicas. Isto
tudo se torna mais explícito no decurso da oração de Azarias: Dn 3,36-37. Louvar e glorificar o
nome de Deus, segundo o pensamento judaico, é faze-lo diretamente ao Senhor, pois nome e
pessoa se identificavam.
27
Porque em tudo o que fizestes vós sois justo, reto no agir e no julgar sois verdadeiro.
Mais que para captar a simpatia, Azarias professa profunda e irrestrita fé na providência.
Sabe que as ações divinas são sempre salvíficas, mesmo quando pune. O restante do versículo e o
seguinte, omitido pela Liturgia das Horas, reforçam a visão providencialista e medicinal que
anima o coração do jovem orante, sobe o sofrimento.
29
Sim, pecamos afastanto-nos de vós, agimos mal em tudo aquilo que fizemos.
Se Javé é justo e fiel, o mesmo não acontece com o ser humano, sempre tão volúvel.
Portanto, infiel. Reconhecida a fidelidade do Senhor, o orante, em nome de todos os irmãos, se
confessa pecador, a iniciativa do afastamento é humana. A parte omitida pela Liturgia das Horas
especifica mais os pecados cometidos, relatando, ainda, as conseqüências da opção pecaminosa.
34
Não nos deixeis eternamente, vos pedimos, por vosso nome: não rompais vossa
aliança!
O castigo pode ser medicinal ou vindicativo. O primeiro é passageiro e portador de salvação,
enquanto que o segundo, é definitivo, condenatório. Azarias roga para que a provação tenha um
fim, e o faz, por vosso nome, a saber, por ser o Senhor sempre fiel a si e em si mesmo. É, então,
recordada a aliança, quando os pactuantes, Javé e o povo, deram a palavra de fidelidade. Que o
Senhor não se comporte como se comportou o povo em sua infidelidade é o que diz o jovem do
meio das chamas.
35
Senhor Deus, não nos tireis vosso favor, por Abraão, o vosso amigo, por Isaac, o vosso
servo, e por Jacó, o vosso santo!
36
Pois a eles prometestes descendência numerosa como os astros que há nos céus,
incontável como a areia que há nas praias.
Roga-se que não seja retirada a misericórdia divina (melhor que amor, proposto pela Liturgia
das Horas, uma vez que é tradução de “eleos”). O amor divino é misericordioso, por ser um amor
oblativo, criador, e não fruitivo, pois ama quem é digno de compaixão e até merecedor de ódio.
Rogando, o israelita verdadeiro não confia tanto nos próprios merecimentos, mas nas promessas
feitas aos pais. Que ele fosse fiel à palavra dada.
37
Eis, Senhor, mais reduzidos nós estamos do que todas as nações que nos rodeiam; por
nossos crimes nos humilham em toda a terra!
38
Já não temos mais nem chefe nem profeta; não há mais nem oblações nem
holocaustos, não há lugar de oferecer-vos as primícias, que nos façam alcançar misericórdia!

76
77
Fala-se dos sofrimentos de então, da época de Antíoco IV, porém, como se estivessem
vivendo o duro exílio em Babilônia, ou esparramados pelos mundo nas diásporas. Os judeus
tinham tudo para perderem a própria identidade, portanto, para desaparecerem como povo sem
terra, sem autoridades, quer civis, quer religiosas. E mais: até os sacrifícios e holocaustos que
poderiam ser um vínculo unitivo entre as pessoas e um meio para se conseguir misericórdia, ante
Deus, tinham cessado.
39
Mas aceitai o nosso espírito abatido, e recebei o nosso ânimo contrito
40
como holocaustos de cordeiros e de touros. Assim, hoje, nossa oferta vos agrade, pois
não serão, de modo algum, envergonhados os que põem, a esperança em vós, Senhor!
Dada a impossibilidade de se imolarem hóstias propiciatórias ao Senhor, dada a ausência do
templo, que fosse aceito, como holocausto, o sacrifício do povo. Interessante a idéia de se
substituir o sacrifício de vítimas, pela própria imolação. Afinal, nessas vítimas humanas havia
confiança e livre doação de si mesmas.
41
De coração vos seguiremos desde agora, com respeito procurando a vossa face!
Propósito bem formulado com três verbos fortes: seguir, respeitar ou temer, e procurar a face
de Deus, o que eqüivale viver em sua presença.
Ensinamentos
Haverá um amanhã? Há motivo para a esperança? Que sentido tem o futuro? Há explicação
para o presente? Estas interrogações sempre afligiram os judeus, pois no decurso de sua história,
raramente deixou de ser um povo martirizado; as dominações se sucediam, como que desmentindo
Javé e as promessas de dar-lhes uma terra onde corria leite e mel, terem uma dinastia eterna (2Sm
7,16), um reino que atingisse de uma à outra extremidade da terra: Sl 2,8.
Iluminados pela aliança, os descendentes de Jacó tinham uma visão histórico-salvífica, nisto
se tornando um povo verdadeiramente original. Do pacto com Javé, viram-se presentes no que
fora, por meio dos antepassados, como se sentiam igualmente presentes no futuro, pelos pósteros.
Mas, amiudadamente o presente parecia comprometer o futuro; então, um deixava de ter sentido, e
o outro, parecia uma quimera. É precisamente nestes momentos, com o desaparecimento dos
profetas, que surgiu o gênero apocalíptico, marcante em Daniel. Não se ignora a dureza do tempo
presente, mas se deixa uma mensagem segura: não estamos abandonados, depois deste presente
doloroso, a verdadeira fogueira que vivemos será substituída pelo Reino de Deus que se faz mais
próximo. O gênero apocalíptico é sempre uma mensagem de esperança em pleno mar borrascoso.
Oração
Não posso dizer que já experimentei rezar numa fogueira, numa fornalha devoradora, como
Azarias, envolvido com seu povo em sufocante sofrimento. Uma, Senhor, porque eu não soube ser
verdadeiramente irmão dos irmãos sofredores. Outra, porque dada minha pouca resistência, me
poupastes de sofrimentos maiores. Mas também, não me faltaram provações. Em minhas
limitações, quero neste contexto todo, pelo passado, pelo presente, pelo futuro, louvar e glorificar
vosso nome para sempre: v. 26.
Hoje, examinando minha história, principalmente tendo presentes os fatos e acontecimentos
mais adversos, devo reconhece que sempre fostes justo, que no agir e no julgar sois verdadeiro: v.
27. Ante tanta justiça e verdade, só me cabe reconhecer: pequei: v. 29. Não fui justo aos vossos
olhos. Assim mesmo ouso pedir: não por meus merecimentos, mas por vossa misericórdia, pela
vossa promessa, não me castigueis para sempre, ficando eu eternamente abandonado, entregue a
mim mesmo: vs. 34-36.
Se merecimento houver no pouco de provação e de sacrifício, se vossos olhos
misericordiosos encontrarem algo de meritório em mim, tudo ofereço como holocausto. Quero eu
mesmo me oferecer: se valor houver neste desejo, quero me imbuir de espírito abatido e ânimo
contrito, e mais dignamente estar em vossa presença: vs. 39-40. Senhor! Que eu vos siga sempre,
que seja animado por santo respeito, que eu viva constantemente em vossa face: v. 41.
Resumo e reflexão
Ciente de ter pecado com seu povo, merecendo toda provação, o Cantor suplica o perdão,
confiando na misericórdia divina.
O publicano que subiu ao templo para rezar, não se julgava digno de estar ante o Senhor.
Punha toda sua esperança na misericórdia celeste. Voltou justificado para casa.
77
78
Senhor, que procuremos sempre a vossa face.
DANIEL 3,52-57
O Canto na vida
Os tempos eram difíceis para os israelitas: estavam sob o tremendo jugo dos selêucidas, de
modo especial sob a opressão de Antíoco IV, nos anos 175-163. Era necessário pensar, refletir,
julgar a realidade presente, dizer alguma coisa. Mas veladamente, para não exasperar ainda mais o
tirano. Daí o gênero apocalíptico, que é ao mesmo tempo um tanto profético, narrativo, analítico,
didático. Ele se serve de imagens aparentemente mirabolantes, jogando com o tempo, misturando
presente, passado e futuro. E muita imaginação. A linguagem pode ser até sibilina, enigmática,
caracterizando, em parte, o gênero.
Nosso Canto é um hino de louvor a Deus (1o. Vol. pág. ), em forma litânica, cantado agora
pelos três jovens. Segue a oração de Azarias: Dn 3,26-45. Portanto, numa obra marcadamente
apocalíptica, na qual não faltam prosas, temos duas poesias, de estilos diferentes.
Divisão
Introdução
Louvor e exaltação ao Senhor que é santo e digno de glorificação: v. 52.
Corpo
O Senhor é exaltado no templo da glória e em seu trono: vs. 53-54.
Quem sonda os abismos e se senta sobre querubins é proclamado bendito: v. 55.
É proclamado bendito o Senhor no firmamento: v. 56.
Conclusão
As obras do Senhor são convidadas à exaltação: v. 57.
Recursos literários
É de se observar a magistral colocação do Canto no contexto do capítulo 3, em que se fala
de uma enorme estátua de ouro (30 x 3 m.) a ser adorada. Não representaria Antíoco IV, o todo
poderoso, chamado Epífanes, epíteto que pode ser traduzido por majestoso? Todavia existem os
que não dobram os joelhos, contrariando a ordem real: são lançados nas chamas, sem serem
abandonados. O esplendor da estátua se ofuscaria, e ela mesma, ruiria, ante a vitória final de Javé,
simbolizada na incolumidade dos jovens em meio às chamas. O engenho do Escritor não está
apenas nas palavras do Canto, mas também na maneira como dispõe seu escrito. Seguramente, foi
alento e iluminação para os leitores, passando incólumes pela censura real.
O Canto é a sucessão de invocações, por sinal, engenhosamente colocadas. O macarismo,
isto é, versículos que começam proclamando Javé bendito, é enriquecido pela forma litânica. Após
cada invocação, o refrão repete: “a vós louvor, honra e glória eternamente.” O Hino começa
exaltando o Senhor que age salvificamente na história, evocado como o Deus de nossos pais. A
partir daí, o pensamento é cósmico, alcançando o vôo até o mais alto do céu, morada inacessível
de Deus, onde está o trono celeste. Das alturas, o olhar divino perscruta as profundezas da terra.
Finalmente, a criação é convidada a exaltar o Criador.
Notas exegéticas
52
Sede bendito, Senhor Deus de nossos pais! A vós louvor, honra e glória eternamente!
Sede bendito, nome santo e glorioso! A vós louvor, honra e glória eternamente.
A revelação na história é a base da fé judaica. Antes mesmo da aliança e em vista dela, Javé
foi escolhendo pessoas, dirigindo fatos, acompanhando acontecimentos, sendo com razão
invocado como o Deus de nossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, patriarcas antes
carinhosamente invocados como amigos, servos e santos: Dn 3,35. É ele merecedor de toda glória.
Ao convite de louvor feito possivelmente por um levita cantor, no culto, a comunidade repetiria,
no refrão, as mesmas palavras laudatórias.
53
No templo santo onde refulge a vossa glória! A vós louvor, honra e glória
eternamente!
54
E em vosso trono de poder vitorioso! A vós louvor, honra e glória eternamente!
A visão do Canto passa a ser cósmica, na cosmovisão judaica, Deus tinha sua morada e seu
trono acima das águas que cobriam a abóboda celeste e que eram o mar superior. A terra,
consequentemente, estava abaixo de seus pés, como escabelo: Is 66,1. Javé que lá habita é
proclamado digno de louvor.
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79
55
Sede bendito, que sondais as profundezas! A vós louvor, honra e glória eternamente! E
superior aos querubins vos assentais! A vós louvor, honra e glória eternamente!
A arca tinha sobre ela dois querubins que a cobriam com suas asas. Aí se dava o encontro
entre o Senhor e o povo e de sobre essas imagens de ouro Javé falava aos israelitas: Ex 25,10-22.
Por isso era invocado como o Deus que se sentava sobre os querubins. Javé que também estava
presente no templo terrestre, cópia do celeste, sonda das alturas, as profundezas ou os abismos, a
saber, o mar inferior, sobre o qual flutua a terra. Imersas nessas águas profundas, altas montanhas
sustentam a terra e detêm escuras cavernas, o sheol, habitação dos mortos.
56
Sede bendito no celeste firmamento! A vós louvor, honra e glória eternamente!
O firmamento acima da abóboda celeste, onde mora o Senhor, deve louva-lo. E o será pelos
habitantes da terra, pela corte celestial.
57
Obras todas do Senhor, glorificai-o! A vós louvor, honra e glória eternamente!
O olhar dos Cantores agora se volta para a terra e para tudo o que nela existe. Em uníssono à
sinfonia cósmica, devem louvar o Criador, neste ínterim, ilusoriamente, a orquestra organizada por
Nabucononosor e asseclas, exaltavam a imagem, ou idolatram o que ela representa: o rei Antíoco
V. Mas tudo seria passageiro, pois só o Deus verdadeiro e eterno era digno de louvor.
Ensinamentos
Não é fácil ser fiel ao Senhor quando das provações e principalmente das perseguições
religiosas. Sob o ímpio Antíoco IV era bem mais cômodo a tantos judeus voltar as costas a Javé;
sentir-se por ele abandonados e, seguir as divindades impostas pelo cruel dominador. Mas numa
resistência própria dos heróis, numa fidelidade própria dos santos, o Escritor propõe a
permanência ao lado de Javé. Só ele é digno de todo louvor.
O Hino é um exemplo da verdadeira oração. E de oração de louvor e de fidelidade em plena
perseguição. Embora o momento seja de dura provação, canta-se o Senhor como se deve
verdadeiramente rezar: adorando Deus por aquilo que ele é.
É sublime agradecer, é nobre suplicar e rogar, é humano pedir perdão pelos pecados. Mas ao
Senhor é devida toda honra e toda glória, a adoração, acima de tudo. E em todos os tempos e em
todos os lugares. E é precisamente o que faz o Hino. Proclama-o digno de todo o louvor. E para
sempre.
Oração
Deus Pai todo poderoso, eis que o céu e o mais alto dos céus não podem conter vossa
presença, como poderá um templo, e até mesmo a terra, abriga-lo? Vossa glória se faz presente,
quer no mais alto do céu, quer na terra, quer em suas profundezas. E vossa presença sempre
benéfica, criadora, mantenedora, santificadora. E onde estais, quero adorar-vos. Por serdes quem
sois e como sois, por fazerdes o que fazeis, sois digno de todo o louvor, por todo o sempre, vós,
Deus de nossos pais: v. 25.
Quero, Senhor, unir-me à corte espiritual no templo celeste, onde refulge vossa glória, e
prostrar-me ante vosso trono. Sois digno de louvor eternamente: vs. 53-54. Vós, Senhor, que vos
fazeis presente nas profundezas, sondando-as; vós, Senhor, que vos assentais sobre os querubins,
atendendo-nos, ouvindo-nos, a vós louvor, honra e glória eternamente: v. 55. Que todas vossas
obras vos glorifiquem, e que em sintonia com elas, possa clamar, com plenos pulmões, com o mais
inflamado coração, e com minha vida: a vós louvor, honra e glória eternamente: v. 57.
Resumo e reflexão
O universo todo, das alturas às profundezas, é convidado a louvar o Senhor, eternamente.
Enquanto os músicos tocavam para uma estátua efêmera, construída por Nabucodonodor, os
três jovens cantavam a Javé que os livrava do tormento das chamas.
Ao Senhor, louvor, honra e glória eternamente.
DANIEL 3,57-88.56
O Canto na vida
O livro de Daniel, e consequentemente os cânticos nele contidos, sempre foi atribuído a um
dos exilados em Babilônia, citado por Ez 14,14-20; 28,3, que por sinal é chamado de Daniel. O
capítulo 7 de Daniel parece confirmar a pacífica aceitação da autoria.
Estudos mais aprofundados, porém, mostram que antes da redação final, ao que parece,
existiram vários textos de origens diferentes; tanto que parte do livro está em grego, parte em
79
80
hebraico, e parte em aramaico. Além disto, os desencontros internos são gritantes. Nada indica que
o escrito seja da época exílica; aliás, tudo leva ao contrário. Um exemplo, entre tantos é de se citar
Dn 11,1ss que fala da guerra entre selêucidas e lágidas, que aconteceu séculos depois do Cativeiro
de Babilônia.
Excetuando possíveis acréscimos, o livro deve ser do II século aC. Seguramente foi escrito
para levar alento aos judeus perseguidos sob a tirania de Antíoco IV (175-163). O Canto é hino
(1o. Vol. pág. ), com elementos litânicos, continuação do proferido pelos jovens, no meio das
chamas.
Divisão
Introdução
A criação, como um todo, é convidada a louvar o Senhor: v. 57.
Corpo
Convite ao louvor: Corte celestial: vs. 58-59.
Mar superior: v. 60.
Exército celestial (estrelas): vs. 61-63.
Mundo atmosférico: vs. 64-73.
Mundo terrestre: vs. 74-76.
Mundo das águas: vs. 77-78.
Mundo animal: vs. 79-81.
Humanidade: v. 82.
Povo judaico: v. 83.
Sacerdotes: v. 84.
Servidores de Javé, justos, santos e humildes de coração: vs. 85-87.
Ananias, Azarias e Misael: v. 88.
Conclusão
Doxologia: v. 56.
Recursos literários
O Canto não é um poema que surge isoladamente, com sua beleza própria e, por sinal, bem
elaborado. Sobressai em sua riqueza, se lido em paralelo com a convocação feita por
Nabucodonosor. Ele constrói uma estátua perecível e intima toda espécie de músicos para que
abrilhantem o rio idolátrico do qual todos deveriam participar. Os não subservientes, representados
pelos três jovens lançados na fogueira preferem adorar ao verdadeiro Deus. Não é necessário
convocar músicos, pois há uma sinfonia cósmica elogiando silenciosa mas eloqüentemente o
Criador.
O Canto parece ter presente a narração da criação do mundo em seis dias, quando são
evocadas as três esferas então aceitas pelos antigos, na constituição do universo: céu, água e terra:
Gn 1,1ss. Fala primeiro do céu e de seus ornamentos, como as estrelas, o sol; das águas e de seus
habitantes; finalmente da terra e de todos os que nela vivem ou estão. As aves parece estarem
deslocadas; todavia para os semitas elas eram como que peixes do mar superior. Coroando, são
convidados à louvação os bons, os justos, e principalmente os três jovens mártires. Fazendo eco a
cada convite de louvar, está o refrão: louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim.
Notas exegéticas
57
Obras do Senhor, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
Antes de especificar as diversas criaturas, a criação toda é convidada a bendizer o Senhor,
louvando-o e exaltando-o eternamente. Apenas Ele é digno de tal veneração e, não a estátua
levantada por Nabucodonosor: Dn 3,1-8.
58
Céus do Senhor, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
59
Anjos do Senhor, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
O céu e tudo o que ele contém, deve exaltar o Senhor. Os anjos constituíam como que a
corte celestial, sendo considerados como executores da palavra divina: Sl 102 (103),20. Eram os
mediadores entre o céu e a terra. Considerados ainda, como espíritos puros.
60
Águas do alto céu, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!

80
81
Entre o céu e a abóboda celeste estava o mar superior (Gn 1,6; 7,11), segundo o modo de
pensar de então. Aquelas águas donde provinham as chuvas deveriam, sem sintonia com as demais
coisas, louvar a Deus.
61
Potências do Senhor, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
62
Lua e sol, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
63
Astros e estrelas, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
A abóboda celeste, na cosmovisão judaica, sustentava o mar superior. Ela e tudo o que nela
está deve cantar ao Criador. Potências do Senhor eqüivale a exércitos do céus (Mt 24,29), ou às
estrelas, em geral, que por sinal seriam dirigidas por determinados anjos. Sol e lua, os luzeiros que
iluminam o dia e a noite (Gn 1,14-17), com as estrelas do céu são nomeados no canto de louvor,
coisa que devem fazer (Sl 148,3), e que o fazem silenciosa mas eloqüentemente: Sl 18 (19),2-7.
64
Chuvas e orvalhos, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
65
Brisas e ventos, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
66
Fogo e calor, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
67
Frio e calor, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
68
Orvalhos e garoas, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
69
Geada e frio, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
70
Gelos e neves, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
As chuvas e o orvalho, vitais em terra tão seca, sinais de vida, juntamente com os
misteriosos ventos que as traziam, como traziam o calor e a umidade, devem fazer parte do coro.
Outros fenômenos ou habitantes do espaço, como fogo, calor, frio, gele, neves e geadas, devem se
juntar, formando um coral numeroso, pois Javé é digno de todo louvor.
71
Noites e dias, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
72
Luzes e trevas, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
Embora se excluam mutuamente, noite e dia, luz e trevas, devem, em uníssono, fazer sentir
suas vozes no concerto universal de louvor ao Senhor.
73
Raios e nuvens, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
Os raios e os relâmpagos, diurnos e noturnos, bem como o encastelar-se das nuvens, que
deveriam alimentar a fantasia um tanto mítica e interrogante dos israelitas, mesmo em seus
mistérios, não estarão alheios. Terão suas vozes próprias para proclamar que o Senhor é bendito.
74
Ilhas e terra, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
75
Montes e colinas, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
76
Plantas da terra, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
A terra dadivosa e com suas variadas saliências, montanhas e colinas, bem como as plantas
que misteriosamente surgiam do chão, tinham algo a dizer no coral macarista.
77
Mares e rios, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
78
Fontes e nascentes, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
Chegou a vez das águas: fontes borbulhantes, rios murmurantes, mares agitados ou serenos,
todos eles, que se abasteciam nos abismos inferiores, que louvassem o Criador.
79
Baleias e peixes, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
80
Pássaros do céu, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
81
Feras e rebanhos, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
A imensidão do espaço, as profundezas das águas e a terra descortinada eram povoadas de
vida: peixes, pássaros, feras e animais domésticos, em sua diversidade de formas, de cores e de
vozes. Que todos bendissessem o Senhor.
82
Filhos dos homens, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
O ser humano, mesmo não tendo recebido a revelação sobrenatural, tinha condições de ler
no livro da natureza, a ação benéfica do Senhor: Rm 1,19-20. Que ele, em plena liberdade,
portanto, conscientemente, fosse um hino de louvor.
83
Filhos de Israel, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
84
Sacerdotes do Senhor, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
85
Servos do Senhor, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!

81
82
Chegou a vez dos israelitas, do povo depositário da revelação. Que ninguém se omitisse na
louvação ao Senhor. Que ela começasse por aqueles que o faziam no culto, os sacerdotes e todos
os servos de Javé.
86
Almas dos justos, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
87
Santos e humildes, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
O grande louvor a Deus está na vida santa de seus servos. Isto não impede que almas eleitas
o façam com suas vozes, com seus testemunhos. Então, são convocados os justos, os santos, os
humildes para o louvor. Chega-se, assim, no ponto apoteótico.
88
Jovens Misael, Ananias e Azarias, louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!
Os três jovens que louvavam o Senhor, em plena fogueira, representando o povo santo, que
mesmo nas chamas da provação eram fiéis a Deus, são explicitamente nomeados, quem sabe, para
um trio de exaltação. Hino de louvor se torna um canto de ação de graças, pelo Senhor que liberta
da provação.
56
Bendito sois, Senhor, no firmamento dos céus! Sois digno de louvor e de glória
eternamente!
O hino termina com o v. 56, parte integrante do canto anterior: Dn 3,56.
Ensinamentos
A criação é a epifania de Deus, ou um livro aberto que fala de si mesma, mas que também
fala de seu Criador. Por ela chega-se a conhecer o cognoscível de Deus. Todavia, em lugar de
servir-se dela, segundo o projeto divino, freqüentemente se torna o objetivo da cobiça humana, o
que se transforma em verdadeira adoração. Torna-se uma finalidade, torna-se um ídolo: Rm
1,18ss.
Assim mesmo, continua sendo um dos inúmeros recursos pelos quais o Senhor se revela e
manifesta seu amor. Portanto, é um convite ao agradecimento: Sl 8. O Canto tanto convida ao
agradecimento como diz, também, que a criação toda pode louvar a Deus. E ela o faz sem
palavras, mas de maneira compreensível, inteligível por todos os povos, por todas as línguas: Sl 18
(19),1-7.
Esta adoração da natureza é inconsistente, pois nada na face da terra, além do ser humano, é
dotado de razão. O Hino, depois de passar por todas as esferas da criação, pelo céu e por tudo o
que nele existe, a abóboda com seus astros e planetas, a atmosfera, com seus fenômenos benéficos
mas, algumas vezes assustadores, considerando a terra e seus moradores, volve seu olhar aos
filhos dos homens, sobremaneira aos que foram agraciados pela revelação sobrenatural. A
adoração destes últimos deve estar em sintonia com todo o criado, sobressaindo no coral universal.
Mas que a oração dos servos do Senhor, além das preces de agradecimento, de súplica, de
propiciação, seja de modo especial, de adoração, a oração latrêutica. Oração que não sejam apenas
palavras, mas uma vida autêntica de amor com legível testemunho cristão.
Oração
Ensinaram-me, no decurso de minha vida, a grande riqueza de retirar-me para momentos
fortes de oração, ó meu Senhor. Sei que também vosso Filho procurava lugares desertos, isolados,
para mais desembaraçadamente, colocar-se em vossa presença. Mas nem sempre compreendi, que
se retirando, o fazia, não só para me dar exemplo, como também para me ter presente, e para
melhor assumir a dura missão que aceitara.
Distanciando-me em lugares mais apropriados, cheguei a isolar-me, e a oração se
transformou em espécie de deleite espiritual. Não fui comunhão, nem convosco, nem com meus
irmãos. Não pude voltar a eles revigorado. Cheguei a ter a impressão de perder tempo.
Compreendo, agora, como o mundo criado vos bendiz, começando pelos vossos anjos: v. 58.
Tanto o que pode estar sobre o firmamento, fugindo de meus olhos vos louva (v. 59), quanto seus
ornamentos, ao distantes, mas que me maravilham, o sol, as estrelas: vs. 61-63. A chuva que cai, o
calor que me acalenta, o frio que traz mensagens brancas e belas, com as geadas, com a neve,
falam de vós, como falam de vós e vos louvam, a luz, as trevas, o dia e a noite: vs. 64-73. Quero
com eles falar de vós, quero como eles bendizer-vos.
Mais diretamente ligado me sino, Senhor, à terra fecunda e generosa. Com suas águas, com
seus frutos e flores, com a fauna encantadora: vs. 74-81. Em cada ângulo, em cada minúcia há

82
83
louvor à vossa presença. Tudo vos louva, tudo fala de vós a mim. Agora sou eu, que com a terra
toda e com tudo o que nela existe, quero vos bendizer.
Mas de modo especial quero me unir aos meus semelhantes, a todas as pessoas de boa
vontade, a todos os que elevam a vós, as mãos e os corações, num hino de louvor: v. 82. Mas de
modo mais especial ainda, com todos o que crêem, com os que comigo celebram a divisão do pão,
no grande culto espiritual de louvor: vs. 83-87. Embora não mereça, quero cerrar fileiras com os
Misael, os Ananias e os Azarias; os irmãos que por serem fiéis, sofrem o pior das perseguições: v.
88.
Resumo e reflexão
Convida-se a criação toda, do micro ao macrocosmo, a louvar e bendizer o Senhor.
S. Paulo da Cruz, grande místico e missionário, deixou o exemplo e o ensinamento de como
adorar o Senhor. Deixar-se consumir de amor nos braços do Divino Amado.
Sois digno de louvor e de glória eternamente.
HABACUC 3,2-4.13a.15-19
O Canto na vida
De Habacuc conhecemos apenas o nome ( = hortelã?): Hab 1,1. Nenhuma outra referência
quanto ao lugar de nascimento, à família, época de sua vida. O texto traz referências históricas,
mas os dados são raros, permitindo aos estudiosos apenas levantar hipóteses.
Parece abordar problemas internos de sua terra, assim como externos. O maior, destes
últimos, é que a Assíria, terrível opressora dos judeus, caminhava para o ocaso, mas surgia uma
outra nação não menos dominadora: a dos caldeus (Hab 1,5-9) ou babilônios, que entre os anos
626-605 aC. atingiram o apogeu, impondo-se em todo o Oriente Médio.
O Livro parece ser pouco anterior ao ano 600. Portanto o Profeta viveu uma época com
problemas internos, e de grande conturbação internacional.
O Canto é a parte final do Livro e é um Hino (1 o. Vol. pág. ), com elementos de súplica e de
confiança: 1o. Vol. pág.
Divisão
Introdução
Invocação pedindo a intervenção divina: v. 2.
Corpo
Céu e terra manifestam o poder de Deus que vem: vs. 3-4.
Javé intervém em prol de seu povo: vs. 13a.15
Estupor do Profeta ante a ação divina: v. 16.
Conclusão
O Profeta confessa sua confiança em Deus: vs. 17-19.
Recursos literários
Hab 3,1 chama o Canto de oração em tom de súplica ou lamentação. É parte de um hino
triunfal a Deus vencedor, com o qual se encerra o Livro, e que também responde aos
questionamentos que Habacuc faz ao Senhor: é justo ver a sucessão de violências e opressões em
dano do povo santo (Hab 1,2-4)?
Diversas anotações mostram que o Canto teve uso litúrgico. O v. 1 fala que é súplica ou
oração, mas em tom de lamentação. Nos vs. 3.9.13 se encontra a conhecida anotação “selah”, (1 o.
Vol. pág. ), presentes em algumas traduções. Finalmente o v. 19 se refere ao mestre de canto e aos
instrumentos de corda. Isto ajudou não só a musicalidade do texto, como seu ritmo variado,
movimentado.
Dada a movimentação de Javé que desce teofanicamente para auxiliar os seus, a natureza
toda se agita: céu, terra, mares, rios, montes. Observou-se que o Poeta artística e mnemonicamente
formou pares correlatos: céu-terra, montes-colinas, rio-mares, águas-mares, sol-lua. Também os
recursos bélicos do Senhor são colocados em duplas evocativas: cavalos-carros, arcos-flechas,
flechas-lanças.
Notas exegéticas
2
Eu ouvi vossa mensagem, ó Senhor, e enchi-me de temor. Manifestai a vossa obra pelos
tempos e tornai-a conhecida. Ó Senhor, mesmo na cólera, lembrai-vos de ter misericórdia.

83
84
O Profeta se refere a conhecimentos anteriores, fruto, ao que parece, de sua observação e do
engajamento pessoal (Hab 1,3.5), e de especial iluminação: Hab 2,3. Deixa entender que se sente
ante o Dia do Senhor, salvador para uns, terrível para outros, mesmo atemorizado, suplica que este
dia se concretiza. Mas que tenha misericórdia dos seus.
3
Deus virá lá das montanhas de Temã, e o Santo, de Farã. O céu se enche com a sua
majestade, e a terra, com sua glória.
4
Seu esplendor é fulgurante como o sol, saem raios de suas mãos. Nelas se oculta a seu
poder como num véu, seu poder vitorioso.
As duas referências geográficas (Temã e Farãá) estão no roteiro do êxodo, correspondendo a
Edom e ao norte da península sinaítica. Como então, agora também, manifestam a majestade
divina que liberta o povo de novas opressões. Os elementos teofânicos ocultam o Senhor, mas
manifestam seu poder. Os versículos seguintes, omitidos pela Liturgia das Horas, descrevem
hiperbolicamente a marcha vitoriosa do Senhor. Ele tudo agita para restituir a ordem alterada.
13a.
Para salvar o vosso povo vós saístes, para salvar o vosso Ungido.
Javé que se arma de ira e de cólera, diz o v. 12, omitido na Liturgia das Horas, o faz para
destruir o mal, uma vez que seu objetivo é salvar e resgatar seu povo oprimido.
15
E lançastes pelo mar vossos cavalos no turbilhão das grandes águas.
O v. 19, tendo presente o anterior, omitido pela Liturgia das Horas, delineia Ex 14,15ss: a
travessia do mar Vermelho. De um lado, o mal derrotado; doutro, o Senhor, vitorioso.
16
Ao ouvi-lo estremeceram-me as entranhas e tremeram os meus lábios. A cárie
penetrou-me até os ossos, e meus passos vacilaram. Confiante espero o dia da aflição, que
virá contra o opressor.
Não somente a natureza que se convulsiona ante o poder divino; também o Profeta
estremece no mais íntimo de seu ser. Quem pode estar ante o Senhor que é a santidade (Is 6,5)?
Quem pode estar ante suas manifestações poderosas, sem temer (Is 21,1-4)? Todavia, o Profeta,
mesmo assustado, espera e confia. Sabe que tanto poder é para a salvação.
17
Ainda que a figueira não floresça nem a vinha dê seus frutos, a oliveira não dê mais o
seu azeite, nem os campos, a comida; mesmo que faltem as ovelhas nos apriscos e o gado nos
curais:
18
mesmo assim eu me alegro no Senhor, exulto em Deus, meu Salvador!
Mudança brusca: de ambiente agitado na natureza conturbada pela ação do Senhor, para a
tranqüilidade no campo, nos pomares, nas invernadas. Mesmo se aí faltar a fecundidade, o
Salmista continuará confiando no Senhor.
19
O meu Deus e meu Senhor é minha força e me faz ágil como a corça.
O versículo encerra o Hino como o Livro. No Senhor, o Profeta se sente ágil e revigorado
como um guerreiro. Na pugna com dimensão cósmica, sabe que não será atingido.
Ensinamentos
O Hino exalta o poderio de Deus ante o despotismo de povos que sucessivamente oprimiam
os judeus. O Profeta também se revela confiante naquele que é todo-poderoso, e o é, para salvar,
para restituir a ordem. Não só as palavras do Hino devem ser consideradas, como também o
contexto onde se encontra.
Diferentemente da maioria dos profetas, Habacuc não se contenta em ser mero porta-voz de
Javé. Ousa inquiri-lo, como pessoa cuja fé está sendo questionada pela história adversa. Crê no
Senhor, mas constata que seu povo sofre sucessivas opressões. Deus vai respondendo aos
questionamentos.
Habacuc “mostra” ao Senhor que no passado, sob os assírios, a situação foi dolorosa.
Estavam desaparecendo do cenário político. Foram libertados, mas, insiste o Profeta: isto adiantou
alguma coisa? Os antigos inimigos estavam sendo substituídos pelos babilônios, não menos
opressores.
A resposta de tudo é o Hino. Deus se revela poderoso e invencível. Mas pouco tinha a se
esperar, partindo de critérios puramente racionais. Mas é o bastante para quem crê, capaz de ler
além dos fenômenos e em profundidade. Algo semelhante aconteceu com o igualmente
questionador Jó. Constata que ante o Senhor, apenas lhe cabia tapar a própria boca: Jó 40,4. Por
isso mesmo, o justo vive da fé: Hab 2,3-4.
84
85
Oração
Apresentaram-vos, a mim, criança, como um Deus todo poderoso. Mas ao mesmo tempo,
como um Pai bondoso. Tudo podíeis, mas vosso poder era usado para o bem.
Cresci, fui descobrindo a maldade entre os seres humanos, até mesmo vós éreis desafiado.
Pedi vossa intervenção mais direta na história: v. 2. Assistiria ao espetáculo de Nínive reduzida a
cinzas. Para tanto tínheis tanta glória e poder (vs. 3-4), que por sinal, seriam reparadas. Depois,
jamais abandonaríeis vosso povo: v. 13. Os opositores mereciam o aniquilamento.
Porém, pelo vosso Filho vos conheci melhor: mandais o sol e a chuva para os bons e para os
maus (Mt 5,45), e não quereis a morte do pecador, mas que se converta e viva: Ez 33,11. Daí
vossa paciência para com o joio: Mt 13,24-30.
Compreendo, meu bom Deus, que vosso poder é para a destruição do mal, e para auxiliar os
que assumem vosso projeto. É esta a minha luta.
Senhor que sois a minha força, fazendo-me mais ágil que a corça, vós que me conduzis para
as alturas! Que eu vos louve entre cantos e salmos (v. 19), que coloque em vós toda minha alegria
e segurança, mesmo se me faltam ovelhas nos apriscos, gado nos currais e frutos nos pomares: vs.
17-18.
Resumo e reflexão
O Senhor desce para salvar o seu povo.
“Porei minha mão sobre a boca”, disse Jó, prometendo calar-se, após ter ouvido a réplica de
Deus que por ele fora questionado sobre a razão de ser do sofrimento.
O meu Deus é minha força e me conduz para as alturas.
OSÉIAS 6,1-6
O Canto na vida
Os nomes Oséias e Jesus são originários da mesma raiz (Yeheshua), e significa Javé salva.
Do Reino Norte, inicia seu profetismo pouco antes do ano 753, fim do reinado de Jeroboão: Am
1,1. Os anos posteriores à morte desse rei foram difíceis. Além dos sérios problemas internos,
soma-se o imperialismo assírio que nada respeitava. A crise era generalizada e crescente. O povo
se afastava de Javé, e sincreticamente, cultuava também Baal.
O Profeta é muito conhecido por sua vida conjugal conturbada. Todavia, num estilo muito
humano, rico de sentimento, deixou-nos páginas profundas. Entre estas, está o Canto, agora em
consideração, e que é Penitencial: 1o. Vol. pág. Deve ser refletido dentro do difícil contexto vivido
pelo Profeta.
Divisão
Introdução
Auto-convite à penitência, a uma celebração de conversão: v. 1.
Corpo
A vida será concedida como fruto da penitência: v. 2.
Certeza de que o Senhor não deixará de atender aos penitentes: v. 3.
Acusação divina aos falsos penitentes: v. 4.
Conclusão
O Senhor quer misericórdia e não sacrifícios: v. 6.
Recursos literários
O texto de Oséias chegou ao presente bastante danificado, passando ainda por revisões e
adaptações, antes da edição final, o que prejudica uma análise e uma avaliação mais completas.
Mesmo assim, é possível saborear, no Canto, recursos artísticos, pedagógicos, como o
confronto entre as palavras hipócritas e interesseiras dos falsos convertidos (vs. 1-4), e a resposta
que lhe dá o Senhor, com a recomendação final à verdadeira conversão: vs. 5-6.
A Poesia consta de duas partes antiteticamente colocadas. Na primeira, as paliavas falsas de
conversão, proferidas pelos seguidores do mal, e na segunda, a reprimenda, a condenação do
Senhor. Este confronto de sombra-luz propiciam a sentença final, destacada e que fica
indelevelmente gravada: “quero a misericórdia e não o sacrifício”: v. 6.
É também de se saborear, no v. 1 o paralelismo:
“Ele nos despencou e nos cuidará.
Ele nos feriu, e nos curará”
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A primeira parte do paralelismo não consta na Liturgia das Horas.

Notas exegéticas
1
Vinde todos, retornemos ao Senhor, pois, se ele nos feriu, nos curará.
São repetidas as palavras do pecadores, assustados com a ameaça de castigos. E estavam às
portas para quem tinha olhos para ver: a Assíria era, como foi, um terror, no momento. Pelas
palavras calculistas dos hipócritas, nota-se que já teriam passado por duras provações. Agora seria
de saciar ou contentar Deus com algumas “quirelas”, através de cultos penitenciais, no templo.
Sem preocupação real com o retorno a Deus, com a conversão.
2
Em dois dias nos dará, de novo, a vida e em três dias haverá de reerguer-nos e
viveremos na presença do Senhor.
No plano dos hipócritas, tudo estava cronometrado, medido, pesado. Dar o mínimo possível
ao Senhor, para dele receber o benefício desejado. Um comércio: ritos penitenciais no templo, em
troca de todo bem estar. Nada de relacionamento interpessoal Deus-ser humano. Depois, a vida
continuaria como antes.
3
Apliquemo-nos, a fim de o conhecer, esforcemo-nos, a fim de o seguir! Tão certa como
a aurora é sua vinda, como a chuva para nós ele virá, chuva tardia, que irriga toda a terra.
Javé não falha, afirmavam os calculistas hipócritas; basta dar-lhe exteriormente o que
deseja: um culto teatral, no templo. E a segurança, único interesse dessas pessoas, viria
maquinalmente, infalivelmente. Equivocadamente pensavam conhecer Deus! A resposta de céu
vem pronta e severa, para decepção deles.
4
“Que te farei, ó Efraim, e a ti, Judá? O vosso amor é como a nuvem da manhã, como
orvalho que, depressa, se dissipa.
5
Por isso, os castiguei pelos profetas e os matei pelas palavras de minha boca e meu
juízo resplandece como a luz.
Reação e resposta divina à falsa religião, à religião descompromissada, exterior, ritualista.
Se compromisso existe, este é apenas com o rito. A resposta vem seguramente por meio de um
profeta, de um oráculo; o Senhor diz não saber o que fazer com tal falta de autenticidade, quer dos
judeus de Israel (Efraim), quer dos de Judá. A piedade, a vida religiosa deles é como nuvem que se
dissipa ao vento. Sem consistência e interioridade. Por isso, os profetas, portadores da mensagem
divina os condenaram severamente. Entre outras coisas, foi anunciada a destruição de Samaria, o
domínio assírio, e o Cativeiro: Os 4,1-3; Os 6,1ss.
6
Misericórdia eu quero e não teus sacrifícios, conhecimento do Senhor, mais que
holocuastos.
Mensagem final do Cântico: Deus não precisa de coisas; ele quer corações sinceros. Os
animais “oferecidos” no templo, mesmo num rito penitencial, eram dele. Além disto, não era um
Deus faminto de carne ou sedento de sangue: Sl 49 (50),8-15. O Senhor quer acima de tudo, a
misericórdia e o conhecimento, a religião que vem do interior, o que será reafirmado por Jesus: Mt
9,13.
Ensinamentos
O Canto é uma diatribe, uma dura acusação contra a hipocrisia, contra a vida religiosa
puramente exterior. Jamais qualquer ato religioso pode condicionar, manipular o Senhor. Ele
sempre toma a iniciativa. O ato religioso do ser humano deve ser a exteriorização do que vai no
fundo do coação. Afinal, necessitamos de ritos, de sinais.
Os judeus, no templo, sacrificavam animais. Algumas vezes a vítima era totalmente
consumida pelas chamas (holocuasto), sendo assim, oferecidas inteiramente ao Senhor: Lv 1,1ss.
Outras, apenas parte do animal era queimada: a que tocava a Javé. O resto era banqueteado pelos
participantes do culto. Eram os sacrifícios, por sinal, variados: Lv 7,1ss.
O sentido desses atos cultuais foram aos poucos degenerando, transformando-se em
praticismo religioso. Com eles, imaginavam, controlariam completamente a vontade divina. Os
profetas continuamente levantavam, em nome do Senhor, a voz contra tanta falsidade: Is 1,11ss.
Ele não reprova as práticas cultuais; todavia, estas devem nascer num coração sincero e
alimentar a vida de piedade. Por isso se fala em misericórdia (hesed), que é fidelidade, coerência

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entre ser e agir, como se fala em conhecimento (da’at), que é compromisso de coração e não
apenas relacionamento cognoscitivo, que não envolve necessariamente.
Desta maneira fica claro que religião jamais pode ser iniciativa humana, por meio da qual se
colocaria Deus ao próprio dispor, ao contrário, é a abertura do ser racional ao Senhor que vem,
assim como celebração deste grande mistério de amor e de salvação.
Oração
Viver minha vida religiosa pareceu-me algo tão pacífico, meu Senhor. Seriam atos e palavras
misteriosas carregadas de energia, capazes de direcionar vossa vontade divina ao meu bel-prazer.
Pareciam-me que os atos eram capazes de agradar-vos, até de dobrar-vos.
Não sei se cheguei a crer que me bastava a exterioridade, a ponto de ficar automaticamente
curado pelas vossas mesmas mãos que antes me haviam ferido: v. 1. Não sei se imaginei controlar-
vos, fazendo que em dois ou três dias, o teria novamente sob controle: v. 2.
Sempre acreditei que vossa vinda era certa como a da aurora: v. 3. Sei que não falhais,
embora nem sempre compreenda vosso agir. Mas o que sei também, com certeza, é que em minhas
práticas religiosas, pouco me preocupei com minha conversão. Tenho certeza de que elas não
passavam de sombra, de nuvens fugidias: v. 4.
Não, Senhor, não quero abandonar as práticas de piedade que celebro com os irmãos, em
vossas assembléias. Mas que compreenda, para viver, que antes de tudo, quereis a misericórdia e o
conhecimento de vós acontecendo em meu coração.
Resumo e reflexão
Retornemos ao Senhor que nos feriu, disseram hipocritamente os que ouviam as ameaças
dos profetas, e ele nos curará.
Não foi apenas o tribunal romano que condenou Jesus, mas também o sinédrio, nata do
poder religioso dos judeus. Há religiosos e religiosos...
Quero misericórdia e não sacrifícios.
SOFONIAS 3,8-13
O Canto na vida
Sofonias ( = Javé guarda ou protege) traz em seus escritos alguns dados pessoais, mas o
mais interessante é saber que exerceu o profetismo nos dias de Josias (Sf 1,1), que por sinal reinou
nos anos 640-630 aC. Antes desse monarca, sentaram-se no trono Manasses e Amon, que foram
maus, principalmente o primeiro: 2Rs 21,1-26. A corrupção e a maldade campeavam.
Com Josias surge um raio de esperança: mais liberdade, restauração moral e religiosa (2Rs
22-23), e até mesmo a reconquista do esplendor davídico-salomônico. Sofonias relata seu tempo.
Neste contexto está o Canto, por sinal, carregado de esperança e de otimismo.
Divisão
Introdução
Exposição do tema: projetos divinos: v. 8.
Corpo
Deus santifica e chama os povos: vs. 9-10.
Purificação do povo: v. 11.
Assistência e proteção ao Resto: vs. 12-13b.
Conclusão
Paz e repouso aos chamados: v. 13c.
Recursos literários
Sofonias não é dado a hipérboles ou a linguagem requintada, rebuscada. É claro e objetivo,
usando vocabulário sóbrio e prático. Suas imagens, contudo, são ricas, as comparações vivas,
originais, coloridas. Revela, ainda, muita emoção e envolvimento no que escreve. Com facilidade
usa o ritmo e as pessoas pronominais. Não faltam lances poéticos refinados, usando assonâncias,
aliterações: 1,10ss.
O Canto não é exceção. Coloca as palavras nos lábios do Senhor, faz com que ele fale.
Esperar-se-ia um escrito calamitoso, partindo do v. 1. Mas de imediato a tempestade amaina, se
desfaz, criando uma agradável sensação no leitor. O início do Canto fala em furor, cólera
inflamada, terra consumida pelo fogo. Porém, tudo termina em repouso imperturbável.
Notas exegéticas
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Esperai-me, esperai-me, palavra do Senhor, no dia em que eu me levantar para dar
meu testemunho, porque é minha decisão, reunir nações e reinos, a fim de derramar sobre
eles meu furor e toda a indignação da minha cólera inflamada, pois o fogo do meu zelo
consumirá a terra inteira.
O Profeta acabara de condenar Jerusalém, a cidade manchada e opressora, e os seus chefes,
comparados a animais ferozes, os falsos profetas e sacerdotes: Sf 3,1ss. Esperou-se inutilmente
que Jerusalém tirasse lição do que acontecera no Reino do Norte. Então, que aguardasse o furor da
ira divina: seria punida como os demais povos, e por meio de um deles. Todavia, o fogo devorador
do zelo divino, mais que destruidor, é purificador.
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Então, eu haverei de dar aos povos lábios puros, para todos invocarem o nome do
Senhor e o servirem, lado a lado, com igual dedicação.
Os muros separatórios (Ef 2,14) que dividem os povos devem cair: todos poderão servir o
Senhor em igualdade de condições. Para tanto é necessário terem os lábios purificados por Javé.
Não haverá mais a Babel do desencontro espiritual: Gn 11,1ss.
10
De além dos rios da Etiópia virão os meus adoradores, os meus filhos espalhados me
trarão seus sacrifícios.
O Canto começou com a terrível ameaça de condenação universal. Agora se abre para a
salvação d todos. Sofonias mostra nisso, seu parentesco teológico com Isaias que também vai além
das fronteiras de Israel: Is 2,2-4; 11,10. Jerusalém se torna o centro religioso e a mãe de todos os
povos: Sl 86 (87). Os adoradores na diáspora cerram fileiras com todos os povos para adorar o
Senhor.
11
Naquele dia, não terás de envergonhar-te de tuas obras, dos pecados cometidos, pelos
quais tu me traíste, porque, então, eu tirarei do teu meio os teus soberbos e arrogantes
fanfarrões; e não mais te orgulharás sobre este Monte santo, que é meu, diz o Senhor.
12
Em teu meio deixarei um povo humilde e modesto, que porá sua esperança no nome
do Senhor. O resto de Israel não fará mais injustiça.
As atenções se voltam para os israelitas, carentes também de conversão. Os que confiavam
só em si mesmo, os soberbos e orgulhosos, os que se sentiam garantidos, porque lá estava o
templo (Jr 7,2-4), serão substituídos pelos que põe a própria segurança em Javé. São os chamados
anawin, os pobres, os humildes, os que confiam acima de tudo no Senhor, único bem que
possuem.
13
nem mentiras falará; e não mais se haverá de encontrar em sua boca uma língua
enganadora. Pois, serão apascentados e repouso encontrarão e não haverá ninguém que os
possa perturbar.
O novo povo, humilde e modesto, será adornado de outras virtudes, como a justiça, a
veracidade. É o chamado “Resto de Israel”, do qual se falara: Sf 2,3. Estes serão conduzidos como
ovelhas, encontrando paz e repouso. Repetem-se as idéias e o ambiente do Sl 22 (23).
Ensinamentos
Sf 1,14-18 fala no célebre dia do Senhor, dia de ira, de cólera, de devastação. Essa passagem
foi fonte de inspiração para inúmeros artistas, através dos séculos. Ficou, porém, marcado o
aspecto macabro do dia. Em poucas palavras, ele retrata a vitória de Javé sobre o mal.
A seguir, dirige-se ao povo infiel, fazendo apelo à conversão, do contrário será tratado como
os demais. De imediato, porém, faz presente um pequeno grupo, o dos que cumprem os preceitos
divinos: Sf 2,1-3. Estes serão poupados.
Os últimos versículos de nosso Canto fazem referências precisamente a esse grupo, pois é o
que procura o Senhor, cumpre os preceitos, procura a justiça, é pacífico e veraz. Resto de Israel,
então (Sf 3,13), passou a indicar o pequeno punhado de pessoas que fazem própria a vontade de
Deus, que coloca nas mãos do Senhor, a própria causa. Não confiam no poder, na riqueza, na força
do mal, mas em Javé.
Resto de Israel é a porção dos que manterão viva a semente da salvação prometida pelo
Senhor. São aqueles com os quais Javé conta, em seus planos. Os que não se dobram aos diversos
interesses, às diversas correntes, segundo o mudar do vento.
Oração

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89
Como todos, sou fruto de uma época, Senhor. Cresci, certo de que além de amor, sois um
Deus terrível. Com isto assimilei dicotonomicamente o “nós” e os “outros”. Nós, os “bons”, e os
outros...
É certo que nós, os bons, teríamos determinados privilégios. Os outros continuariam sendo
os outros, sem tantos direitos, com a condição complicada. Como tais, seriam objeto de vosso
furor, de vossa indignação destruidora: v. 8. Teríamos, na pior das hipóteses, certas proteções,
certos protetores.
Não sem certa resistência fui acatando, com o tempo, que sois o Pai que dá a todos os povos
lábios puros para invoca-lo (v. 9 ), chamando-os de todos os quadrantes: v. 10.
Hoje, Senhor, mais que todos, por tantas graças que me são dadas, peço que tireis de meu
coração a soberba, a arrogante fanfarronice. Que jamais coloque minha segurança, a não ser em
vós: v. 11. Que eu faça parte do Resto de Israel, não abrigando a injustiça, a língua mendaz: vs.
12-13. Que no final da caminhada, encontre em vós o repouso, desfrutando com todos os irmãos,
da paz (v. 14), a paz duradoura que só vosso Filho nos dá, a paz do vosso Cristo.
Resumo e reflexão
Deus quis dar aos povos, lábios puros para que todos invoquem o nome do Senhor!
A tradição judaica afirmava que os pagãos seriam tratados com rigor, enquanto que eles,
com misericórdia.
Vinde, caminhemos à luz do Senhor!
LUCAS 1,46-55
O Canto na vida
O conhecido “Magnificat” é uma das composições poéticas do Evangelho da Infância: Lc 1-
2. Após a Anunciação e enfrentando sérios problemas (Dt 22,23-24), Maria exulta, vendo
confirmados os sinais dados pelo anjo: Lc 1,36. Alguns críticos puseram em dúvida a autoria
mariana do Cântico, afirmando ser ele de Isabel.. Tais afirmações foram logo contestadas. Isto não
significa que a Virgem o tenha necessariamente composto, embora não haja argumentação forte
que o negue, nem mesmo a simplicidade da adolescente, que era Maria na ocasião. Ele deve ter
sido composto bem antes do ano 90 dC. e seguramente era bem conhecido por muitas
comunidades cristãs. Alguém que carrega sérios problemas, Maria, entre os quais, a possibilidade
de ser apedrejada (Dt 22,23-24), exalta o Senhor por ver comprovados os planos divinos. O Canto
tanto pode ser considerado Hino (1o. Vol. pág. ), como Ação de Graças em forma hínica: 1 o. Vol.
pág. . Como acontece atualmente, o Cântico de Nossa Senhora deve ter animado as celebrações
litúrgicas das primeiras comunidades cristãs.
Divisão
Introdução
Exaltação e engrandecimento ao Senhor: vs. 46-47.
Corpo
Celebração da condescendência divina que exaltou Maria: vs. 48-50.
Deus se faz presente pela misericórdia e pelo poder em prol dos fracos: vs. 51-53.
Conclusão
Deus cumpre o prometido ao povo: vs. 54-55.
Recursos literários
Como não poderia deixar de ser, o Magnificat foi objeto de muitos estudos. Os minimalistas
reduzindo ao ínfimo qualquer qualidade do Cântico; os maximalistas exaltando-o como
insuperável obra prima, artística, teológica. Aqueles acham que a Poesia é uma colcha mal cerzida
de retalhos ou de passagens vétero-testamentárias, ou uma quase cópia do Canto de Ana: 1Sm 2,1-
10. Na verdade Lc 1,52-53 parece corresponder mais a 1Sm 2,4-7. Em si, o fato do Magnificat
trazer explícita ou implicitamente muitas passagens do Antigo Testamento não é desdouro. Além
de ser o modo judeu de argumentar, é possível encontrar engenho e sabedoria no Canto.
As qualidades da Poesia Mariana não podem ser avaliadas pela dignidade de Maria, a
eventual cantora. Realmente falta maior originalidade, linguagem elaborada, fantasia criativa,
contraste de movimentos e cores, isto é, tudo o que é próprio de uma obra artística. São muitas as
referências ao Antigo Testamento, e se nota que a Autora quis apenas exaltar, louvar, sem maiores
preocupações estilísticas. É mais do gênero popular. Exalta e louva, agradecendo, porque era o que
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90
vivia num momento tão singular. Primeiro Maria fala de si mesma (Lc 1,46-50); depois, de Deus
(Lc 1,51-53), e finalmente de Israel: Lc 1,54-55.
A Virgem reconhece que o Senhor fez nela maravilhas. Todavia, seu Canto não envereda
para um possível individualismo. Com ampla visão histórico-salvífica, nele inclui logo Javé,
doador de tantas graças, assim como o grande beneficiado: o povo e seus pobres e desamparados.
Assume grandes dimensões: os descendentes de Abraão. Então, no Canto são encontráveis três
lances: louvor, memória e futuro. Isto, por um grande presente dado na ocasião.
Notas exegéticas
46
A minha alma engrandece ao Senhor,
47
e se alegrou o meu espírito em Deus, meu Salvador, (Ver 1Sm 2,1; Is 61,10)
O Hino começa com um paralelismo, recurso muito apreciado pelos judeus, tanto na forma
como no conteúdo: “a minh’alma = meu espírito”; “engrandece = exulta”; “Senhor = Deus, meu
Salvador.” Aqui, como é usual em hebraico, “alma” e “espírito”, estão por “eu”. É um modo
elegante e delicado de se usar a primeira pessoa, próprio dos semitas. A Poesia dedica especial
atenção à obra salvadora do Senhor, seja em prol de Maria, seja em prol do povo em geral.
48
pois, ele viu a pequenez de sua serva, desde agora as gerações hão de chamar-me de
bendita. (Ver 1Sm 1,11)
Deus já contemplara do céu a Virgem, cumulando-a de graças, nela fazendo-se presente,
como presente estava o Espírito: Lc 1,28.35. Maria fora transformada em sacrário do Filho. Ela
rejubila porque se viu livre, ou ao menos acima de sérios problemas. Podemos imaginar, entre
outros, o de ter sido destinada à vida conjugal, embora tivesse propósitos de virgindade (Lc 1,34),
ou ainda, o de estar grávida sem o concurso de José: Dt 22,23-24. Agora,, o sinal dado pelo anjo se
confirma (Lc 1,36), e ela se sente chamada a contemplar as coisas de Deus, a refletir as coisas do
alto, como lhe era usual: Lc 1,29; 2,19.51. Poderia até ser chamada de “bendita”, pelo fato de se
tornar mãe, sonho de toda judia, como afirmam alguns: Gn 30,13.
49
O Poderoso fez por mim maravilhas e Santo é o seu nome! (Ver Sl 110 (111),9)
A partir de agora vai se compreendendo melhor o porquê será Maria exaltada: o Senhor fez
nela grandes coisas. Na ordem pessoal: fora plenamente agraciada, o Senhor estava com ela e lhe
fora concedida a maternidade messiânica: Lc 1,28ss. Porém, todo este enriquecimento tinha uma
função salvífica: por ela chegava à humanidade o prometido Salvador: Lc 1,68ss. Deus é chamado
Poderoso; aquele que se serve de seu poder para elevar, para salvar. O nome dele é santo, isto é,
ele próprio é a santidade: Lc 11,2.
50
Seu amor, de geração em geração, chega a todos que o respeitam. (Ver Sl 102
(103),13.17)
Depois de usar a 1a pessoa, Maria passa a falar de Deus. Amor divino é misericordioso e
durável. Misericordioso por sempre pensar na salvação humana, não obstante tanta infidelidade
por parte da humanidade: Rm 5,6-8. Durável, porque permanece de geração em geração.
51
Demonstrou o poder de seu braço dispensou os orgulhosos.
(Ver Sl 88 (89),10; Is 51,9ss) Deus que libertara o povo com mão forte e braço estendido (Dt
5,15) e o mantivera através das vicissitudes históricas, começa agora a desbaratar Satã e seus
asseclas. O plano de Deus, perturbado pelo pecado, será restaurado por Cristo que chegara. O
Criador se revela, assim, poderoso. Quebrava-se o orgulho que levara a humanidade ao pecado:
Gn 3,5.
52
Derrubou os poderosos de seus tronos e os humilde exaltou. (Ver Jo 12,19)
A Jesus fora prometido um trono: Lc 1,32. Com sua vida pública passa a anunciar o Reino
de Deus: Mt 4,17. Logo ficou claro que tinham lugar especial nesse Reino, os marginalizados: Lc
4,17-21. Os que confiavam em si, os orgulhosos e poderosos seriam dele excluídos, em benefício
dos que punham sua confiança em Deus: Lc 6,20-26. É de se notar a força do paralelismo
antitético, que por sinal, repete-se no versículo seguinte.
53
De bens saciou os famintos e despediu, sem nada, os ricos. (Ver Sl 106 (107),9; 1Sm
2,5)
Deus não se deixa corromper com dons, como acontece com o ser humano: Ecl 7,7. Nos
palácios os grandes eram atendidos, comprando favores com preciosos presentes: Is 1,23. Os
pobres, nada podendo oferecer, ficavam entregues à própria sorte. Só lhes restava confiar em Javé,
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91
pois como tais, eram ordinariamente dispensados pelos grandes. No reino messiânico as coisas
invertem: Sl 71 (72),12-13. E Jesus concretizou a profecia, acolhendo de modo especial os que
não tinham lugar nem vez: Lc 4,17ss.
54
Acolheu Israel, seu servidor, fiel ao seu amor,
55
como havia prometido aos nossos pais, em favor de Abraão e de seus filhos, para
sempre. (Ver Sl 97 (98),3; Is 41,8-9; Mq 7,20)
A humilde jovem judia dirige seu olhar ao povo a que pertencia: Israel. Sabia o quanto o
Senhor era fiel à palavra dada: Jo 1,14. Tudo o que fora prometido no Primeiro Testamento, de
modo especial a partir de Abraão, se concretizava. Não só em benefício de Israel, mas no de todos
os povos: Gn 12,3. Todavia, tendo o Canto todo presente, se observa que Israel, aqui, vai além da
concepção puramente racial: trata-se dos famintos, dos humildes: vs. 51-53.
Ensinamentos
Sem dúvidas, o Magnificat busca freqüentemente recursos ou subsídios no Primeiro
Testamento e isto está longe de ser um mal. É o mínimo que se esperaria de um judeu crente: ter
sempre presente nos lábios e no coração a Palavra de Deus. Buscando tais passagens e
concatenando-as umas às outras, se não cria propriamente uma poesia de alcantilados recursos
literários e artísticos, ao menos traz uma visão nova das coisas, uma releitura do Antigo
Testamento. Isto não passou desapercebido pelas primeiras comunidade cristãs que logo
valorizaram o Hino.
E não foi somente em virtude da Autora ou pretensa Autora e sim, pelos reais valores que
contém. As passagens da Antiga Aliança, que em seus lugares originais poderiam até ser vagas,
tomam novos sentidos e forma, assim como propiciam outros ensinamentos, no Cântico.
Compreende-se que estavam relacionados àquele preciso momento: o Messias chegava e já se
sabia como, quando, onde, por que modo, por que meio.
Maria, em parte os repetiu. Mas não foi pura repetição, uma vez que não dizia a mesmíssima
coisa. Antes, possivelmente um hagiógrafo do Antigo Testamento vislumbrou o que aconteceria na
plenitude dos tempos. Agora é a Mãe do Messias, repleta do Senhor, quem aplica e interpreta o
que fora profetizado. É um modo de se ensinar, refletir e orar as Escrituras.
O Hino de Maria nos revela o fio condutor da história da salvação: a misericórdia divina
acompanha os passos humanos nem sempre fiéis ao Senhor. Quantas vacilações, quantas
infidelidade e até mesmo retrocessos. Todavia a promessa permanece. Este amor agora fica mais
claro: na plenitude dos tempos alguém é agraciada pelo Senhor e com isto o plano divino se torna
mais viável, mais legível.
Deus tudo acompanha, tudo conduz com amor, até à chegada de Cristo. Ele é entre nós a
grande maravilha operada pelo Senhor. O Canto, no fundo é cristológico. Então, as palavras
marianas, oriundas quase todas elas do Antigo Testamento, no seu significado profundo, são as
primeiras mensagens da Nova Aliança.
Oração
Sois santo, meu Senhor e meu Deus todo poderoso (v.49), e olhando a humildade de vossa
serva (v. 48), a fizestes com especial carinho, cumulando-a de graças, nela operando maravilhas
(v. 49), para que nos trouxesse o Salvador. Se ela o engrandece e exulta em vós, ó Salvador (vs.
46-47), a ela eu me uno para engrandecer-vos, como me uno a todas as gerações para proclamá-la
bendita: v.48.
Sim, Pai, por meio dela manifestastes vossa misericórdia que se estende para sempre sobre
aqueles que o temem (v.50), mostrando vosso poder, o poder de vosso braço, dispersando os
soberbos que a todos oprimiam (v.51) e acolhestes, por meio de vosso Filho, os humildes que
serão elevados: v. 52. Saciastes-nos de bens, Pai, por ela dando-nos Jesus (v.53) e em vossa
misericórdia vos lembrastes de nós, beneficiando-nos para sempre, a nós, que pela fé, somos
descendentes de Abraão: vs. 54-55.
Resumo e reflexão
Maria exalta a Deus por ter sido agraciada e por ter dado à humanidade o Messias.
Minha fronte se reergue em Deus e minha boca se ri dos inimigos. Cantou Ana, após o
nascimento do tão esperado filho: 1Sm 2,2.
A misericórdia divina se estende para sempre.
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92
LUCAS 1,68-79
I Canto na vida
Como o Canto de Maria, também o de Zacarias faz parte do Evangelho da Infância: Lc 1-2.
O velho sacerdote exulta pelo nascimento e pela circuncisão do filho. Esta era feita geralmente
pelo pai, que no momento rezava: “Bendito quem nos santificou pelos seus preceitos e nos
mandou introduzi-lo (o filho) na aliança de nosso pai Abraão.” O Canto é de Ação de Graças (1 o.
Vol. pág. ) com acentos hínicos: 1o. Vol. pág. Seu lugar mais lógico seria logo depois de Lc 1,65,
terminada a circuncisão. Assim se compreenderia a reação dos vizinhos e ouvintes que queriam
saber o futuro do menino: Lc 1,65-66.
Ao que parece, o Canto existiria antes do texto evangélico, mas fazendo parte de uma fonte
histórica e não de um possível hinário. Lucas o teria incluído em sua obra, tomando-o da fonte na
qual constava também o v. 67. Mais complicado é saber se a fonte é protocristã, com adaptações,
ou se é de comunidades ligadas ao Batista. Deve ser de origem judeo-cristã.
Divisão
Introdução
Exaltação ao Deus de Israel: v. 68a.
Corpo
Motivos de exultação: Deus visita e liberta o povo: vs. 68b-69.
Chegada da salvação predita pelos profetas: vs. 70-72.
Libertos dos inimigos, é possível servir ao Senhor em santidade: vs. 73-75
Missão de João: o menino será profeta do altíssimo e precursor: v. 76.
João dará ao povo o conhecimento da salvação: v. 77.
Conclusão
O Messias iluminará todos os povos: vs. 78-79.
Recursos literários
Num canto de ação de graças, Zacarias agradece a visita de Deus, assim como agradece o
dom do filho e as graças que o cumulavam. Bendiz rapidamente o Senhor Deus de Israel (v. 68a),
passando de imediato a falar do motivo de sua exaltação: o Criador se fazia presente no meio do
povo: vs. 68b-75. Reserva alguns versículos para falar da missão do neonato: vs. 78-79. Volta,
finalmente a atribuir ao Messias os dons concedidos a todos.
Na primeira parte do Canto (vs. 68-75), Zacarias aborda temas gerais encontráveis no Antigo
Testamento. Compreende quem conhece o enredo no qual a história está situada. Deus de Israel é
louvado mas não se sabe, ainda, o motivo preciso. Tudo fica bem mais claro a partir do v. 76.
Falando do menino (segunda parte: vs. 76-77), é como se trouxesse para o presente todos os
profetas, até mesmo o juramento feito por Abraão. Tudo o que fora dito então, era para a
compreensão do momento histórico eu se vivia.
Notas exegéticas
68
Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque a seu povo visitou e libertou;
Deus é bendito por visitar o seu povo. Visitar e libertar estão praticamente como uma única
ação. A visita do Senhor é sempre salvífica. O termo usado é bastante conhecido e carregado de
gratas recordações. A grande experiência de visita foi quando da libertação do Egito: Ex 3,16.
Depois, aos primeiros deportados para a Babilônia (2Rs 24,10-16), Jeremias escreve prometendo
também visita libertadora: Jr 29,10. Finalmente, às vésperas do grande retorno dos cativos, e agora
por meio do servo de Davi, acontecerá nova visita: Ez 34,11-24. O povo seria visitado e ao mesmo
templo remido. O versículo alude de modo misterioso a visita que acontecia. Tudo ficará mais
claro a partir do contexto geral e do que será dito a seguir.
69
e fez surgir um poderoso Salvador na casa de Davi, seu servidor,
70
como falara pela boca de seus santos, os profetas desde os tempos mais antigos,
O texto original fala em surgir ou suscitar “um chifre de salvação’. Chifre é sinônimo de
poder, e na linguagem apocalíptica passou a simbolizar reis e reinos: Dn 7,8. Zacarias anuncia a
chegada do esperado Messias, o poderoso Salvador da casa de Davi. Cumpriu-se a profecia de
Nata; 2Sm 7,12-16.
71
para salvar-nos do poder dos inimigos e da mão de todos quantos nos odeiam.
72
Assim mostrou misericórdia a nossos pais, recordando a sua santa Aliança
92
93
Zacarias antevê a vitória final sobre os inimigos, fruto da visita do Senhor. No fundo ele
começa a deixar claro o que entende por redenção (libertação) e salvação, às quais aludira: vs. 68-
69. Trata-se de uma vitória puramente política, conforme o pensamento de muitos judeus. Baseia-
se na fidelidade de Deus à palavra dada por ocasião da aliança: Dt 7,12-24. Não obstante a
infidelidade dos antepassados, o Senhor não deixou de usar misericórdia através dos tempos.
73
e o juramento a Abraão, o nosso pai, de conceder-nos
74
que libertos do inimigo, a ele nós sirvamos sem temor
75
em santidade e em justiça diante dele, enquanto perdurarem nosso dias.
Abraão justificado gratuitamente por Deus recebeu a promessa, sob juramento, de que seria
pai de um grande povo: Gn 12,1ss. Este juramento do Senhor é recordado por Zacarias. O povo
liberto poderia, então, dedicar-se desembaraçadamente ao culto divino, a uma visita de santidade.
Sem obstáculos externos e sem temor. Para os judeus a vida religiosa plena implicava libertação
de interferências de outros povos: Ex 3,12; 5,1. Até o convívio com os de fora lhes era difícil,
religiosamente falando, por causa das normas de pureza legal a serem observadas.
76
Serás profeta do Altíssimo, ó menino, pois irás andando à frente do Senhor para
aplainar o preparar os seus caminhos,
77
anunciando ao seu povo a salvação, que está na remissão de seus pecados,
Dirigindo-se ao filho, o velho e entusiasmado sacerdote em parte repete o que lhe dissera o
Anjo: Lc 1,15-17. João seria a verdadeira voz clamante ante o Senhor, abrindo-lhe os caminhos:
Mt 3,3; 11,10. O Batista, profeta do Altíssimo, seria precursor de Cristo. Por meio dele o povo
conheceria a salvação trazida pelo Salvador. Agora, “salvação” toma um sentido mais amplo e
espiritual, confrontando com o que é dito nos vs. 69.71. Ela se dá pela remissão dos pecados. Mas,
ao menos em sentido literal, é provável que Zacarias pensasse ainda na abolição deles por meio
dos ritos purificatórios, pelas abluções lustrais. A remissão propriamente dita é a revelada no Novo
Testamento.
78
pela bondade, e compaixão de nosso Deus, que sobre nós fará brilhar o Sol nascente,
79
para iluminar a quantos jazem entre as trevas e na sombra da morte estão sentados e
para dirigir os nossos passos, guiando-os no caminho da paz.
A remissão dos pecados começa pela chegada do Messias que é a visita misericordiosa do
Altíssimo. Vem ele como o sol predito por Ml 3,20, e vem para iluminar a todos: Is 60,1-2. A
expressão “nascer do alto” substitui “vir de Deus”. Por ele, os povos que estavam sentados nas
trevas receberão nova luz: Mt 4,16. Ela é a libertação completa: Rm 13,11-16.
Ensinamentos
Zacarias duvidou das palavras de Gabriel quando da anunciação: Lc 1,18. É bem verdade
que em circunstâncias semelhantes era até usual pedir um sinal dos céus: Gn 15,8; Jz 6,37; 2Rs
20,8. Porém, a narração é paralela à da anunciação de Maria e é impossível deixar de se observar o
confronto entre ambas. Maria não duvidou: apenas perguntou como aconteceria o prometido.
Este confronto fala muito, ainda mais se tivermos presente tantas outras particularidades. O
que se prometia ao experiente sacerdote (uma estéril que conceberia na velhice) não era fato único
no Antigo Testamento: Gn 18,9ss; 29,31-32; 30,22. Ao passo que a concepção virginal jamais
havia acontecido.
Todavia, bastaram poucos sinais para que o velho sacerdote readquirisse a confiança, a fé
plena. O Canto de Zacarias é uma profissão de fé pela qual se descobre Deus dirigindo a história,
cumprindo misericordiosamente as promessas em benefício da humanidade. Feliz e justamente
orgulhoso, sentia-se, de modo especial por meio do filho, um elo importante nessa corrente de
tanta fidelidade e amor por parte de Javé.
Oração
Como o piedoso Zacarias eu vos bendigo, Senhor Deus de Israel (v. 68), pois como fizestes
no passado, visitais o vosso povo, dando-nos o esperado Salvador, rebento da casa de Davi: v. 69.
Não obstante tantas ingratidões de nossa parte, lembrastes-vos de vossa aliança, sendo
misericordioso: v. 71. Está entre nós o prometido pelos profetas: v. 70.
Dai-nos, então, servir-vos sem temor em santidade e justiça todos os nossos dias: vs. 73-75.
Que nos deixemos guiar pelo menino que nos prepara o cominho ao vosso Filho: v. 76. Que todos

93
94
os povos conheçam a salvação (v. 77), que todos, pela presença de Cristo, sejamos iluminados pela
luz que nos guia ao caminho da paz: v. 78.
Resumo e reflexão
Zacarias louva a Deus porque a promessa do Primeiro Testamento se realizava e vê no filho
o precursor do Messias.
O velho Simeão com felicidade deu sua vida como encerrada quando contemplou o esperado
Salvador: Lc 2,29-30.
Bendito o Senhor Deus de Israel que a seu povo visitou e libertou.
LUCAS 2,29-32
O Canto na vida
A Poesia se faz presente no Evangelho da Infância com os cantos de Maria (Lc 1,46-55), de
Zacarias (Lc 1,68-79), e agora, com Simeão. O Autor é apresentado pelo Evangelista: Simeão,
venerando ancião, justo e inspirado pelo Espírito Santo: Lc 2,25-26. Tem-se a impressão de que
era não só das pessoas piedosas que passavam boa parte do tempo no templo, como também, um
oráculo: observava e interpretava a vontade divina que se manifestava por meio de sinais, de
acontecimentos: 1Rs 22,5-8; 2Rs 6,21ss. Falava em nome de Deus.
O Canto teria sido composto por Simeão ou por outrém? Nada impede que fosse um hino
litúrgico usado pela comunidade cristã e que Lucas o incluiu em seu Evangelho. É piedosa
profissão de fé messiânica que deveria ter muita aceitação. Pode ser considerado como Hino (1 o.
Vol. pág. ) por exaltar Javé, com Ação de Graças (1o. Vol. pág. ), embora sem elementos muito
explícitos que o caracterizem.
Divisão
Palavras de satisfação e de missão cumprida: v. 29.
Certeza de ter contemplado o esperado Messias: vs. 30-31.
Messias, luz das nações e glória de Israel: v. 32.
Recursos literários
Simeão canta um cântico luminoso. Em primeiro lugar existiu um coração ensolarado pela
palavra de Deus que é luz: Sl 18 (19),12. Agora é dado aos olhos já embaçados contemplar a luz
do mundo: Jo 8,12. Finalmente é cantada a bondade divina que espanca as trevas e ilumina as
nações todas. Podia então, afirmar, que estava em condições para partir, entrando em comunhão
definitiva com Deus que é luz: Is 60,19; Ap 21,23.
A maior beleza do Canto, breve e despretensioso, é levar o leitor a um ambiente terno e
piedoso: um jovem casal conduzindo o primogênito recém-nascido ao templo onde se respira
oração e ternura. Lá, um venerando ancião tem em mãos trêmulas uma frágil e misteriosa criança.
Sente-se o céu todo velando aquele momento e graça, de salvação, preparado amorosamente desde
toda a eternidade.
Notas exegéticas
29
Deixai, agora, vosso servo ir em paz, conforme prometestes, ó Senhor.
Alguém, mesmo avançado em anos e que alimentou a fé na palavra de Deus sabe que não
viveu em vão. Fora-lhe revelado que não morreria sem antes ver o Ungido do Senhor: Lc 1,26.
Alimentou a fé abraâmica. Compreendeu que não foi iludido. Estava pronto para partir em paz,
para a paz definitiva, completa. Chama a Javé de “déspotes”, isto é, o patrão, o chefe da casa,
aquele a quem ele serviu sempre. De certa maneira, sentia que sua história continuava na história
do Menino.
30
Pois meus olhos viram vossa salvação
O que acreditou firmemente com o coração, agora constata com os próprios olhos.
Contempla quem tantos veriam sem nada descobrir de especial. Olhos não iluminados viam em
Jesus nada mais que uma simples criança. Simeão sabia que contemplava quem tantos outros
ansiaram contemplar, mas aos quais não fora dada tamanha dita: Lc 10,23-24. A Cristo é
necessário que se contemple sobremaneira com o coração.
31
que preparastes ante a face das nações:
A visão de Simeão é universal, como universal é a salvação operada por Jesus. O venerando
ancião compreendeu bem a mensagem profética (Is 40,5; 52,10), indo, portanto, além de limites
acanhados e exclusivistas de certos círculos judaicos.
94
95
32
uma Luz que brilhará para os gentios e para a glória de Israel, o vosso povo.
Praticamente luz está como sinônimo de salvação. Aonde chega uma, lá está a outra. O
Messias foi profetizado como luz das nações: Is 42,6; 49,6. Por meio de Israel estava sendo dado à
humanidade o Salvador do mundo e todos participariam dessa glória.
Ensinamentos
O justo e piedoso Simeão tinha visão ampla. Talvez a tivesse por ser justo e piedoso, e o era,
seguramente porque o Espírito Santo estava nele: Lc 2,25. Enxergava nitidamente o passado como
algo planejado por Deus. Descobriu em cada lance, em cada fato, em cada pessoa, palavras do
Antigo Testamento, o amor de Javé que se concretizava nesse momento. Tudo fora preparado: v.
31.
Agora contempla, ou melhor, tem nos braços (Lc 2,28), uma criança tão parecida com as
demais. Os pais são paupérrimos, pois oferecem o sacrifício dos que nada podiam ofertar: Lc 2,24
= Lv 12,6-8. Mas seus olhos vêem longe, seu olhar é penetrante, vai além das aparências. Tem
consciência de ter o Messias em seus braços. Podia, no momento, não discernir plenamente a
natureza de Jesus. Todavia, contemplando a salvação de todas as nações, seu coração estava
saciado.
Simeão é modelo de visão histórico-salvifica, modelo de fé, de humildade.
Oração
Sei, Senhor, dos milhares de quilômetros que intermediam nossas terras natais. Sei também,
do descompasso de templo existente entre nossos nascimentos. Mas sei ainda: nada impedia que
vossa luz chegasse a mim, vós, luz que brilha para as nações: v. 32.
Tive a oportunidade de conhecer em parte o que foi preparado ante a face das nações: v. 31.
Posso dizer que esta salvação continua a me transformar, por vossa misericórdia. Ate o momento
escolhido pelo Pai. E que então, possa bendizer-vos como Simeão: agora, ó Senhor onipotente,
podeis deixar o vosso servo ir paz, conforme a promessa que fizestes: v. 29.
Resumo reflexão
Simeão exalta o Senhor por ter contemplado a luz para as nações.
Deus permitiu a Moisés que, antes de morrer, do monte Nebo contemplasse a Terra
Prometida: Dt 34,1ss. Morreu, na verdade, contemplando o futuro.
Meus olhos viram a salvação.
EFÉSIOS 1,3-10
O Canto na vida
O Hino é parte introdutória da Epístola aos Efésios, que teria sido escrita pelos anos 62-63,
quando Paulo, prisioneiro em Roma, aguardava uma iminente libertação: Fm 22. Na ocasião o
Apóstolo gozava de liberdade vigiada, vivendo num aposento alugado, podendo exercer ao menos
parte de seus ministérios: At 28,16. Tudo isto era afirmado pacificamente até há algum tempo.
Atualmente, estudos mais aprofundados questionam a autoria paulina na Epístola. Paulo que
viveu nessa comunidade não teria escrito uma carta tão impessoal. O estilo e o pensamento
teológico de Efésios distam muito dos outros escritos reconhecidamente paulinos. Possivelmente é
de um secretário ou discípulo do Apóstolo.
Não deixa de ser interessante a interrogação se o Hino existia antes da Epístola, sendo
depois nela incorporado. É lícito imaginá-lo animando, inflamando a comunidade apostólica, por
ocasião das celebrações cristológicas. Hino que louva o Pai por aquilo que é e pelo que faz em
prol da humanidade: 1o. Vol. pág.
Divisão
Introdução
Exaltação ao Pai que do alto da todos abençoa em Cristo: v. 3.
Corpo
No Filho bem-amado, o Pai nos escolheu e nos predestinou como filhos: vs. 4-6a.
O Filho nos redime e perdoa os pecados: vs. 6b-8.
Em Cristo se conhece os arcanos divinos: v. 9.
Conclusão
Objetivo final: reunir todas as coisas em Cristo: v. 10.
Recursos literários
95
96
A Liturgia das Horas escolhe apenas uma parte (vs. 3-10) do grande Hino de Bênçãos
presenteado por Ef 1,3-14. nele se fazem presentes as três Pessoas da Trindade: o Pai que do alto
do céu nos abençoa: v. 3; o Filho que nos redime: v. 7; e o Espírito Santo, penhor de nossa
herança: v. 14. Numa visão profundamente abrangente, o céu e a terra se encontram, e no centro
está o ser humano objeto de tanto amor divino. Nesse grande arco se concentram as personagens
com os respectivos ambientes descritos no Hino: Pai, Filho, Espírito Santo, céu, e a terra onde
estão os homens e as mulheres.
O Autor abre um outro círculo, agora envolvendo a eternidade e o “tempo” nele contidos.
Antes da criação do mundo (v. 4), o Pai nos amou e no final de tudo espera, em Cristo, reunir
todas as coisas: as da terra e as do céu: v. 10. Ficam claros três movimentos ou momentos nessa
esfera: no passado, o Pai escolheu e predestinou (vs. 4-5); no presente, o Filho redime (v. 7), e o
Espírito Santo, finalmente, se torna penhor da herança futura: vs. 13-14. Desse modo, os dois
círculos (o das Pessoas da Trindade e o temporal) se sobrepõem e se completam. Este clichê dá
muita graça e elegância ao Hino.
Notas exegéticas
3
Bendito e louvado seja Deus, o Pai de Jesus Cristo, Senhor nosso, que do alto céu nos
abençoou em Jesus Cristo com bênção espiritual de toda sorte!
O Autor Sagrado começa o Cântico bendizendo e louvando o Pai. Para a Bíblia, Deus é
bendito em si mesmo, pelo que é (Dt 2,20) e por ser assim reconhecido, por tudo o que faz (Dn
2,21-22), sobremaneira pelo plano salvífico. A começar pela natureza, tudo deve exaltar as
maravilhas do Senhor (Sal 18 (19), passando depois, pelo ser humano agraciado: Sl 71 (72),17.
Deus beneficia do alto dos céus com bênçãos espirituais. No decurso do Hino são elencados
inúmeros dons santificadores operados por Cristo, terminando com o Espírito Santo, penhor de
vida eterna: vs. 13-14.
4
Foi em Cristo que Deus Pai nos escolheu, já bem antes de o mundo ser criado, para
que fôssemos, perante a sua face, sem mácula e santos pelo amor.
O Pai escolhe gratuitamente, sem levar em conta possíveis méritos: tanto que o faz antes da
constituição do mundo, e o faz em Cristo e por amor. O objetivo do amor divino é
antropocêntrico: visa à santificação do ser humano: Ef 5,25-27. A santificação da criatura humana
é o grande meio através do qual Deus se manifesta bendito.
5
Por livre decisão de sua vontade, predestinou-nos, através de Jesus Cristo, a sermos
nele os seus filhos adotivos,
6
para o louvor e para a glória de sua graça, que em seu Filho bem-amado nos doou.
A escolha do Pai, sempre por meio de Cristo, se manifesta agora como predestinação: por
livre ato da vontade divina, o ser humano é elevado e participa da natureza divina, tornando-se
assim, filho adotivo de Deus, com direito à herança: Rm 8,17.
7
É nele que nós temos redenção, dos pecados remissão pelo seu sangue. Sua graça
transbordante e inesgotável
8
Deus derrama sobre nós com abundância, de saber e inteligência nos dotando.
Na concepção grega, redentor é quem adquire um escravo, para dar-lhe alforria. Cristo
liberta com seu sangue todas as criaturas racionais. A partir desse batismo cruento opera-se um
novo nascimento (Jo 3,3-7), de que fala o v. 5. O novo nascimento implica na libertação da
escravidão do pecado, o que se dá com a graça inesgotável derramada profusamente sendo, além
disto, portadora do saber e da inteligência.
9
E assim, ele nos deu a conhecer o mistério de seu plano e sua vontade, que propusera
em seu querer benevolente,
10
na plenitude dos tempos realizar: o desígnio de, em Cristo, reunir todas as coisas: as
da terra e as do céu.
O que Deus planejara antes da constituição do mundo se torna patente e presente na
plenitude dos tempos: Cristo assume corpo: Gl 4,4. Patenteia-se a vontade salvífica do Pai. Toda a
história foi conduzida pelo divino condutor até Jesus, para que este, por sua morte redentora,
desvelasse a vontade do Pai, tornando-nos sua herança (Ef 1,11), povo de sua propriedade: Ef
1,14. Deste modo, em Cristo, como em um novo criador, tudo se reunirá no céu e na terra.
Ensinamentos
96
97
Em evidente contraste com o falso judaísmo que tributava a salvação à prática exterior da lei
(Rm 2,12-29), Paulo a coloca apenas em Cristo. No Filho se conhece a vontade salvífica do Pai,
que desde antes dos tempos quer salvar a humanidade. Em Cristo fomos escolhidos antes da
criação do mundo (v. 4), por intermédio dele fomos predestinados como filhos adotivos (v. 5), e
pelo seu sangue, obtivemos a redenção: v. 7. Enfim, foi ele quem nos deu a conhecer o mistério da
vontade divina: v. 9. O sofrimento de Cristo livremente abraçado (Fl 2,8) é o livro aberto pelo qual
se conhece o amor do Pai que, para a salvação da humanidade, não poupou seu próprio Filho: Rm
8,32.
Os poucos versículos do Hino são profundamente cristológicos. No Senhor Jesus, o Pai
opera maravilhas amorosas no coração humano. De início são aspergidas dos céus, bênçãos
espirituais de toda sorte: v. 3. Nele há a escolha para a santidade (v. 4) e a predestinação à filiação
divina: v. 5. pelo sangue de Cristo há a redenção e a remissão dos pecados (v. 7), com o dom da
sabedoria e da prudência: v. 8. Elevado a tal altura, é dado ao ser humano conhecer os arcanos da
vontade divina voltada para o bem da humanidade. A coroa de tantos dons é a completa e íntima
comunhão com Cristo para o qual convergem todas as coisas: v. 10. Sobremaneira nessa série de
enunciados, a amor desentranhado do Pai, bem como a doação total do Filho (Jo 13,1) da qual o
único beneficiado é a criatura racional.
Oração
Ensinaram-me cedo a louvar-vos e a vos agradecer. No início eram cândidos beijinhos ou
acenos de mãos ao Pai dos céus. Não me sentia na necessidade de pedir, sentia-me bem seguro,
nos braços paternos e maternos, da nada carecendo.
Depois veio a luta pela vida: tornei-me interesseiro, tomei consciência de minhas limitações.
Então me aproximava de vós só para pedir, para suplicar. Além disto, não via outros valores a não
ser o imediato e que devia conquistar com meu esforço, com minhas capacidades. Mas achei mais
fácil pedir.
Hoje reconheço ter recebido tanto: a existência na vida e na racionalidade, e antes disto tudo,
bênçãos espirituais de toda sorte: v. 3. Antes ainda fora escolhido para ser sem macula, mas santo
pelo amor: v. 4. Não existia o mundo e já estava eu predestinado para ser vosso filho adotivo: v. 5.
Em vista de meus pecados, doastes vosso Filho único (v. 6) que com seu sangue me remiu,
lavando-me de meu pecados: v. 7. Destes-me os meios para melhor conhecer vossa vontade
amorosa sempre dirigida para o meu bem: vs. 8-9.
Ciente de minha dignidade de filho, ouso rogar-vos, ó Pai: que todos os seres humanos
entrem em comunhão com Cristo nosso irmão, que nele se reunam num grande amplexo “todas as
coisas: as da terra e as do céu”: v. 10.
Resumo e reflexão
Em Cristo o Pai nos escolheu antes da constituição do mundo.
A Princesa Isabel recebeu o título de a redentora por ter assinado a libertação da escravidão
dos negros. Estes, todavia, continuam clamando por uma verdadeira e completa libertação.
Cristo remiu a humanidade com seu próprio sangue, elevando-nos à dignidade de filhos e de
herdeiros.
FILIPENSES 2,6-11
O Canto na vida
A Epístola aos Filipenses se apresenta como um complexo de três cartas reunidas
redacionalmente num único escrito. Primeira: 1,1-3a; 4,2-7.21-23. Segunda: 3,16-4,1.8-9.
Terceira: 4,10-20.
Cada vez maior é o número de exegetas que aceita terem sido elas escritas ao derredor dos
anos 54-55, quando o Apóstolo era prisioneiro em Éfeso. Se praticamente ninguém põe em dúvida
a autenticidade paulina da Epístola, o mesmo não acontece com o Hino: Fl 2,6-11. Alguns
estudiosos aceitam-no como Paulino, mas de composição anterior, e que vinha sendo usado nas
celebrações litúrgicas. Outros acham que se trata de um texto independente e até que tenha sido
alterado pelo Apóstolo.
O gênero literário é Hino Cristológico (1o. Vol. pág. ), digno de figurar, pelo grande vôo
teológico, ao lado de Jo 1,1-18.
Divisão
97
98
Introdução
Cristo é contemplado em igualdade com Deus: v. 6.
Corpo
Cristo se esvazia assumindo a condição humana e por servir: v. 7.
O Senhor se abate, tornando-se obediente até a morte de cruz: v. 8.
Jesus é exaltado por Deus acima de tudo: vs. 9-10
Conclusão
Jesus é proclamado o Senhor: v. 11.
Recursos literários
Uma série de conceitos antitéticos se sucedem dando muito colorido, muita vivacidade e
movimento ao texto, assim com mostram claramente os polos contrastantes onde acontecem os
lances teológicos:
Céu x terra Divindade x Humilhação x exaltação
humanidade
Tempo x eternidade Glória x abatimento Escravo x Senhor
Além de enriquecer a Poesia literariamente falando, o confronto desses conceitos
contrastantes darão maior realce aos mistérios cristologicos nele revelados. Mais uma vez a arte se
coloca a serviço da revelação, principalmente ao transmitir idéias tão sublimes e mistérios tão
profundos.
O Hino é todo movimento descendente e ascendente, sendo que a propulsão está nas
palavras “esvaziar” (v. 7) e “exultar”: v. 9. O clímax é atingido na glória final, no v. 11. Cristo
Jesus se esvazia de sua glória que possuía nas alturas celestiais, e de humilhação em humilhação
se faz homem, mas homem escravo, e escravo obediente, obediente até a morte maldita na cruz:
Dt 21,22-23.
Tendo atingido o nada (kneóo = esvazio, aniquilo), o Senhor é reconduzido à glória e à
exaltação das quais se privara. É o movimento ascendente no Hino. As alturas, a superfície e as
profundidades, assim como as raças todas proclamam que Jesus Cristo é o Senhor.
Notas exegéticas
6
Embora fossse de divina condição, Cristo Jesus não se apegou ciosamente a ser igual
em natureza a Deus Pai.
O versículo evoca Jo 1,1, a sublime comunhão entre o Pai e o Filho na glória. A Liturgia das
Horas traduz “morfé” por “divina condição”, levando, assim, ao mais profundo significado do
termo: identidade de natureza entre as Pessoas da Santíssima Trindade. Tal tesouro não é guardado
ciosamente pelo Filho. No versículo se vislumbra de imediato uma abertura para fora, uma
abertura ao mais humilde.
7
¨Porém esvaziou-se de sua glória e assumiu a condição de um escravo, fazendo-se aos
homens semelhante. Reconhecido exteriormente como homem,
A defasagem ultrapassa toda expectativa: o Filho, da preexistência na eternidade desce para
o tempo, desce para a história, fazendo-se homem. E quem o céu dos céus não pode conter (1Rs
8,27), assume a carne e com ela, todas limitações inerentes. Com se isto não fosse suficiente,
abraça a condição dos explorados pelos semelhantes: faz-se escravo. É o escravo que carrega,
além das conseqüências das injustiças de seu tempo, todos os pecados da humanidade: Is 53,3-5.
8
humilhou-se, obedecendo até à morte, até à morte humilhante numa cruz.
Este versículo mostra que na concepção paulina, o termo escravo supera em amplidão e em
profundidade todas as categorias que lhe são inerentes. Cristo, que não veio para ser servido e sim
para servir (Mt 20.28), assume a condição social dos explorados (Mt 11,19), sendo por isso
perseguido injustamente, chegando ao máximo da humilhação, a ponto de se fazer maldito por ter
assumido nossa maldição: Gl 3,13; Cl 2,13-14. Falando assim do Senhor, Paulo teria presente a
descrição do Servo de Javé: Os 53,1ss.
9
Por isso Deus o exaltou sobremaneira e deu-lhe o nome mais excelso, mais sublime, e
elevado muito acima de outro nome.
Fica patente a íntima conexão entre abatimento e exaltação: justamente pelo fato de ter
assumido o abatimento, o Senhor é exaltado. O nome por ele recebido não é simplesmente para
identifica-lo; na concepção bíblica há íntima relação entre o significado do nome e a missão que
98
99
seu portador exercerá no plano da salvação. No momento, apenas se diz ser um nome acima de
outro nome, mostrando que Cristo passa do ínfimo da humilhação ao máximo dos senhorios.
10
Para que perante o nome de Jesus se dobre reverente todo joelho, seja nos céus, seja
na terra ou nos abismos.
Fica patente qual é o nome que está acima de todos os nomes: o de Jesus, o Salvador, o anjo
ordenou que o Senhor assim fosse chamado: Mt 1,21. A etimologia do nome Jesus é
complementada pela redenção sangrenta do Senhor no alto da cruz. O mundo todo (céu, terra e
abismo) se prostra ante tão benéfico senhorio. Grato, reverencia genuflexo, quem reunirá e
restaurará as coisas que estão no céu e na terra: Ef 2,10.
11
E toda língua reconheça, confessando, para a glória de Deus Pai e seu louvor: “Na
verdade Jesus Cristo é o Senhor!”
Ao louvor da natureza se soma o de todas as raças que não só exaltam como também
confessam que Jesus é o Senhor, para a glória do Pai. O título “Senhor”, próprio da divindade, é
atribuído a Cristo. Todos o reconhecem Deus e Deus salvador, conforme o significado do nome de
Jesus.
Ensinamento
É importante frisar que o Hino traduz ao vivo que Cristo atingiu o ínfimo de seu abatimento
ao subir à cruz: v. 8. Por isso Deus o exaltou: v. 9. Esta afirmação “estaurológica” está em sintonia
com o pensar de Paulo que não se gloria a não ser na cruz: Gl 6,14. Ela é pregada como força
divina de salvação: 1Cor 1,17-18. Alerta aos filipenses que não se comportem como inimigos da
cruz: Fl 3,18. Diz que para se evitar tal comportamento é necessário ter os mesmos sentimentos de
Jesus (Fl 2,5) o qual se abateu e assumiu na cruz libertadora em benefício dos outros. A vida cristã,
a convivência comunitária só é possível na medida que se tem a cruz ante os olhos, na medida que
é assumida integralmente.
É próprio de Paulo confrontar o velho com o novo Adão (1Cor 15,1-22) dizendo que como
por um entrou a morte no mundo, por outro entrou a vida: Rm 5,12-21. Em consonância com este
pensamento Paulino, o Hino evoca a desobediência dos protoparentes, aos pés da árvore: Gn 3,6.
Como antídoto a esta desobediência o Apóstolo coloca a obediência do Senhor, até a morte na
árvore da cruz: Fl 2,8. Portanto, o Senhor se deforma (Is 53,2-3) para que o ser humano possa
readquirir a imagem na qual foi criado (Gn 1,27), e que perdera pelo pecado. A obediência do
Senhor, por sinal tremendamente pesada (Mc 14,36), é acatada desde toda a eternidade até a cruz
(Fl 2,8), e torna-se o caminho seguro para os que desejam se libertar do pecado de Adão, que lateja
no peito de todos.
Oração
Escrevendo minha história, de certo modo poderia plagiar, em parte, o Hino com o qual a
primitiva comunidade cristã vos louvava: “ele tinha a condição divina, mas não aproveitou a sua
igualdade com Deus”: v. 6. Vossas mãos que me plasmaram, elevaram-me igualmente à sublime
dignidade de participar da divina natureza: 2Pd 1,4.
Porém, como vós eu esvaziei-me de minha glória e assumi a condição de escravo (v. 7), mas
de maneira tão diferente, pois me deixei levar pelo pecado. De filho, transformei-me em mísero
guardião de porcos: Lc 15,11-16. Agora quero deixar minha miseranda situação, regressar ao lar
donde nunca deveria ter saído: Lc 15,17-19. E só conseguirei isto se contemplar verdadeiramente
a vossa cruz. Nela, depois de vossa morte, readquirirei via e saúde, como aconteceu com o povo
santo, quando picado pelas serpentes do deserto: Nm 21,32. Afinal, dissestes que quando elevado
atrairíeis todos a vós: Jo 12,32.
Agora compreendo vossas palavras “como Moisés levantou a serpente no deserto, assim
deve ser levantado o Filho do Homem, para que todos os que nele crerem, tenham a vida eterna”:
Jo 3,14-15. Quero, Senhor, fazer parte da legião dos que “ao nome de Jesus nosso Senhor, se
dobre reverente todo joelho, seja nos céus, seja na terra ou nos abismos”: v. 10. Rogo: “toda
língua reconheça, confessando para a glória de Deus Pai e seu louvor: na verdade, Jesus Cristo é
o Senhor”: v. 11.
Resumo e reflexão
Cristo Jesus foi obediente até a morte de cruz.
Abraão, pronto a obedecer, na última hora foi poupado de sacrificar o próprio filho Isaac.
99
100
Cristo Jesus é o Senhor.
COLOSSENSES 1,12-20
O Canto na vida
Embora seja contestada a autoria paulina, Colossenses parece ser mesmo de Paulo.
Agradecendo a Deus pelo florescimento da fé na comunidade de Colossos, Paulo escreve a
Epístola, nela inserindo o Hino (1o. Vol. pág. ), que é o ápice dogmático da carta. Todavia, ele é
menos aceito como do Apóstolo. Chega a ser considerado proto-cristão e adaptado pela liturgia e
catequese, e finalmente inserido na Epístola.
Mas não faltam os que o consideram genuinamento Paulino, ou ao menos, adaptado por ele.
Deve ter sido muito usado nas celebrações comunitárias em louvor a Cristo.
A Epístola pode ter sido escrita antes de 62, pois Colossos já decadente, foi destruída por um
terremoto naquele ano.
Divisão
Introdução
Palavras de agradecimento ao Pai pelo especial chamado: vs. 12-14.
Corpo
Cristo é o Primogênito, pois nele tudo foi criado: vs. 15-16.
Cristo a tudo preexiste: v. 17.
Cristo é a Cabeça da Igreja: vs. 18-19.
Conclusão
Céus e terra são reconciliados na Igreja: v. 20.
Recursos literários
O Autor parece mais interessado no conteúdo doutrinal do Hino que em recursos literários.
As colocações teológicas são candentes, incisivas, sem delongas ou maiores considerações. O
Hino todo é um longo período, muito ao estilo de Paulo, quando levado por ardentes arroubos.
Logicamente os pronomes relativos e as conjunções aditivas ou copulativas se multiplicam,
vinculando as diversas proposições entre si. Isto pede muita atenção ao leitor, a fim de não perder
o fluxo e a logicidade do raciocínio. Sob este aspecto, o Hino é pesado e pouco atraente, tornando-
se, todavia, um deleite aos amantes da concentração, da síntese e do raciocínio lógico.
A Liturgia das Horas divide o Hino em seis versos. O primeiro é de agradecimento ao Pai (v.
12), e os demais são exposição de motivo. O segundo é de remissão e redenção em Cristo (vs. 13-
14), enquanto que o terceiro fala de Cristo, o Primogênito de toda criatura: vs. 15-16b. O quarto
verso afirma que o Senhor a tudo subsiste (vs. 16c-17), enquanto que o quinto diz que ele é a
Cabeça da Igreja: v. 18. Finalmente o sexto conclui que tudo é reconciliado pelo Senhor: vs. 19-
20. Nota-se que o Autor escolheu com cuidado e desdobrou em duplas, conceitos mais gerais: céu
e terra, visíveis e invisíveis, tonos e poderes, principados e potestades.
Notas exegéticas
12
Demos graças a Deus Pai onipotente, que nos chama a partilhar, na sua luz, da
herança a seus santos reservada!
Na concepção do Antigo Testamento, santo é o segregado do mundo, do profano. No Novo
Testamento dá-se esse nome a todo cristão (Rm 16,2), uma vez que participa do ato santificador de
Deus: 1Pd 2,9. Aqui, porém, se diz que os colossenses, de origem pagã, são chamados a participar
da herança, o que antes era atribuído só aos judeus.
13
Do império das trevas arrancou-nos e transportou-nos para o reino de seu Filho, para
o reino de seu Filho bem-amado,
14
no qual nós encontramos redenção, dos pecados remissão pelo seu sangue.
O Pai opera a redenção e a remissão dos pecados por Cristo. Participar do reino da luz
implica antes ser libero das trevas. O dualismo luz-trevas é muito explorado nas Escrituras,
sobremaneira pelo IV Evangelho: Jo 1.4-5; Jo 3,1-21.
15
Do Deus, o Invisível, é a imagem, o Primogênito de toda criatura;
A Filipe que desejava ver o Pai, Cristo responde: Filipe, quem me vê, vê o Pai: Jo 14,8-9. Se
a natureza revela muito dos arcanos de Deus (Rm 1,19-20), muito mais o faz Jesus. Cristo é a
imagem do Pai. O contexto mostra que para Paulo, o Senhor é ainda imagem do Pai em razão de
participar da mesma natureza divina. Além de imagem, ele é também o Primogênito de toda
100
101
criatura. Bem que se pode considera-lo como tal pelo fato de preceder todo o criado. Daí ele a
tudo excede nos céus e na terra, ao visível e ao invisível. Daí sua primogenitura.
16
porque nele é que tudo foi criado, o que há nos céus e o que existe sobre a terra, o
visível e também o invisível. Sejam Tronos e Poderes que há nos céus, sejam eles
Principados, Potestades: por ele e para ele foram feitos.
Quem são os misteriosos seres nomeados por Paulo? A Bíblia não desenvolveu uma
angelologia própria, talvez para evitar distorções no culto, como aconteceu no Novo Testamento:
Cl 2,18. Todavia, a literatura religiosa judaica extra-bíblica sobre os anjos, é abundante. Parece
que o Apóstolo se refere a essa crença tão difundida no meio do povo. Mas tronos e poderes,
principados e potestades seriam realmente categorias angelicais? Ou seriam forças da natureza
personificadas, espiritualizadas? Sendo o que são, estariam do lado de Cristo ou contra ele?
Passagens como Ef 1,21-22; 2,2; 6,11-20; Cl 2,10.15 não lhes são muito favoráveis. Parece que
não é a intenção de Paulo refletir a existência ou a natureza desses seres misteriosos, e sim afirmar
que tudo está sujeito a Cristo.
17
Antes de toda criatura ele existe, e é por ele que subsiste o universo.
O versículo é breve mas rico de conteúdo: Cristo antecede todas as coisas. Portanto é delas
distinto. Além disso, não é criador distante e ignaro das criaturas, uma vez que se faz presente,
mantendo-as na existência. Não fosse essa ação do Senhor, tudo voltaria ao nada.
18
Ele é a Cabeça da Igreja, que é seu corpo, é o princípio, o Primogênito entre os
mortos, a fim de ter em tudo a primazia.
Depois de falar em céu e terra, o Hino aborda a Igreja, em consonância com 1Cor 12,12ss.
Ela é comparada a um corpo cuja cabeça é Cristo, porque não só a criou mas também a santificou,
a todos conduzindo da morte para a vida, por meio de sua Morte e Ressurreição: 1Cor 6,20.
19
Pois foi do agrado de Deus Pai que a plenitude habitasse no seu Cristo inteiramente.
20
Pois foi do agrado de Deus Pai que a plenitude habitasse no seu Cristo inteiramente.
Cristo, revelado na plenitude de sua divindade (Cl 2,9), e revelando também o Pai Invisível
(v. 15), como Deus impregna o mundo todo. Não só criando-o e mantendo-o no ser (vs. 16-17),
como também libertando-o das trevas, e conduzindo-o à luz: vs. 12-13. O Senhor restaura o
mundo e a humanidade perturbada pelo pecado. A paz é conquistada pelo sangue e pela cruz.
Termina a maldição (Gn 3,23-24) e acontece em Cristo e por Cristo a reconciliação com o Pai.
Ensinamentos
O primeiro grande ensinamento é Cristo. Não se fala tanto de suas doutrinas, mas dele
mesmo, o Filho bem-amado: v. 13. Sem maiores considerações sobre o que o Senhor disse ou
ensinou, fala sobre o que é e o que fez: imagem reveladora do Pai, participa com ele da mesma
natureza. Todavia, não se apegando ciosamente à sua igualdade com Deus (Fl 2,6), se abriu ao
mundo e à humanidade. Esta abertura significou reconcilia-la com o Pai por meio de uma
redenção sangrenta: v. 20. Então, não é só o Primogênito por natureza, porque nele tudo foi criado
(v. 16), mas também por ter adquirido a humanidade quando era escrava das trevas, remindo-a,
assim, para o Reino do Filho bem-amado: v. 13. Com tudo isto, não só o Pai se tornou visível,
como também reabriu-lhe as portas da vida eterna, antes trancadas: Gn 3,23-24.
Em tão poucos versículos Paulo aborda uma série de prerrogativas de Jesus. O Apóstolo
parece estar tão interessado em falar tudo o que sabe de Cristo que nem se dá ao trabalho de
argumentar. Deixa claro que a ação do Pai é pela mediação do Filho, pois nele tudo foi criado,
tanto nos céus como na terra, o mundo visível e o invisível: v. 16. Criador, preexistente às
criaturas e possuindo idêntica natureza de Deus Pai: v. 15. Embora não o diga explicitamente,
além da natureza divina, o Senhor é igualmente homem, pois a redenção se deu por meio do seu
sangue: v. 20. A ressurreição está implícita no escrito, pois Cristo, Primogênito entre os mortos,
ressuscitado, se torna a cabeça da Igreja, seu corpo. Deste modo, como o Filho torna-se imagem
visível do Pai invisível, a Igreja não só visualiza Cristo, como atua a santificação por ele operada.
Oração
Há tantos anos, Pai, celebro meus aniversários! Há muito tempo comemoro o dom da vida
que recebi de vossas mãos. Muitos amigos se unem a mim para celebrá-lo. Porém, de que me
valeria tudo isto, se não me fosse dado partilhar da herança dos santos, na luz (v. 12), se não me

101
102
fosse dado sair do poder das trevas e passar para o Reino de vosso Filho amado (v. 13)? E nem
sempre valorizei tamanho dom!
E pensar que por ele, para ele fomos feitos (v. 16), saber que a remissão dos pecados e a
redenção (v. 14) lhe foi tão onerosa, isto é, pelo sangue da sua cruz: v. 20. Como se isto não
bastasse, ó Pai, o Filho se fez nosso irmão primogênito (v. 15) e se tornou comunhão comigo e
com os irmãos, na Igreja, da qual somos membros, e ele e a Cabeça: v. 18. Que por intermédio
dele possamos ser membros ativos e santos de tão sublime corpo, que por meio dele, vossa
Imagem, nos seja dado contemplar-vos na vossa invisibilidade: v. 15.
Resumo e reflexão
A Jesus que dormia sereno no barco agitado pela tempestade os apóstolos clamaram:
“Senhor, salvai-nos porque perecemos”: Mt 8,25. E a tempestade se amainou.
Cristo é a Cabeça da Igreja que nos conduz do reino das trevas para o reino da luz.
I TIMÓTEO 3,16
O Canto na vida
Timóteo, de Listra, filho de pai pagão e de mãe judia (Eunice), foi discípulo de companheiro
de viagem apostólica (At 17,14ss) e de prisão de Paulo: Fm 1. Recebeu do Apóstolo missões
especiais: 1Ts 3,2-6. Poucos admitem como paulinas as Caras Pastorais, entre as quais, a Iª
Timóteo. Parece terem sido escritas décadas depois da morte do Apóstolo. Era usual atribuir-se a
um renomado autor do passado a paternidade de determinado documento, dando-lhe assim, maior
credibilidade. É o chamado recurso pseudônimo.
Na Carta são dadas orientações pastorais. Nesse contexto está inserido o Hino (1 o. Vol.
pág. ), breve mas seguramente bastante usado na liturgia. “Omologoumenos”, no início do
versículo, não excluído pela Liturgia das Horas, indica o caráter hínico e litúrgico, e tem o sentido
de proclamação uníssona do Canto ao se confessar a fé em Cristo.
Divisão
Jesus é:
 Manifestado na carne: v. 16a.
 Manifestado na divindade: v. 16b.
 Cultuado pelos anjos: v. 16c.
 Anunciado aos povos: v. 16d.
 Aceito no mundo todo: v.16e.
 Exaltado na glória: v. 16f.
Recursos literários
Nem todos os estudiosos manifestam satisfação com a disposição lógica do Hino. O v. 16f
que fala da exaltação do Senhor na glória, cronologicamente antecederia o anúncio entre os povos:
v. 16f. Todavia, é possível que seja exigência da estrutura artística querida pelo Autor. Realmente
são claros os três círculos concêntricos unindo as passagens mais relacionadas entre si, em
paralelismos antitéticos: 1o. Vol. pág. O círculo maior uniria o v. 16a ao v.16f, quando de um lado
se fala em carne e noutro, em glória. O círculo intermediário uniria os conceitos antitéticos espírito
e mundo: vs. 16b e 16e. Por último, o círculo menor colocaria em confronto anjos e pagãos (povos
e nações): v. 16c e v. 16d. Não deixaria de ser um engenhoso modo de dispor as idéias.
A Liturgia das Horas divide o Hino em três pequenos versos, cada um com dois esticos.
Estes também podem se compor entre si em paralelismos antitéticos, por sinal, recurso artístico
apreciado pelos judeus. No primeiro haveria confronto entre carne e espírito: vs. 16a e 16b. No
segundo, o paralelismo estaria entre anjos e pagãos (povos e nações): vs. 16c e 16f. Não é de se
excluir que o Poeta tivesse em mente os dois esquemas de composição: o acenado agora, e o
anterior, em círculos concêntricos.
Notas exegéticas
16a
O Senhor manifestado em nossa carne,
16b
justificado pelo Espírito de Deus.
A Liturgia das Horas inclui a palavra “Senhor”, explicitando o contexto e a crítica textual.
Diferentemente, poderia ficar a impressão que o sujeito do Hino seria “mistério da piedade” (ver o
versículo todo na Epístola) e não Cristo. Paulo, como fizera outras vezes, insiste na encarnação,
102
103
mas na encarnação humilde, no abatimento: Gl 4,4; Fl 2,5-7. Aqui, carne está por pessoa frágil,
limitada: Rm 8,3. Se carne está como sinal de limitação e fragilidade no v. 16a, logicamente
espírito anteposto antiteticamente significa algo excepcional, extraordinário, permanente. Seria o
Espírito Santo? É o que parece dizer a Liturgia das Horas. Tanto que ajunta a palavra “Deus”, no
texto. Esta interpretação é aceita por muitos. Todavia, dada a oposição à carne, parece que espírito
está a indicar a natureza divina de Jesus. Não é esta a única vez que ocorre em Paulo o confronto
entre as duas palavras com os sentidos afirmados: Rm 1,3-4. À afirmação anterior da humanidade
de Cristo se ajunta agora a da divindade.
16c
Jesus Cristo contemplado pelos anjos,
16d
anunciado aos povos todos e às nações.
A corte celeste é a primeira a se movimentar com a vinda de Jesus: desde a concepção de
Maria (Lc 1,26), passando pelo nascimento (Lc 2,13), pela tentação no deserto (Mt 4,11), pelo
Horto das Oliveiras (Lc 22,43), culminando na ressurreição: Mt 28,2. Compreende-se o que queria
dizer o Apóstolo falando que o Senhor foi mostrado aos anjos. Tamanho amor de Deus para com a
humanidade não podia ficar restrito apenas aos anjos, a um único povo ou a um pequeno grupo de
pessoas. Jesus que reservou o primeiro momento de sua vida aos judeus, povo depositário da fé
(Mt 10,5-6; 15;2-4), depois da morte enviou os seus a todos os povos: Mt 28,18-20. A todas as
nações Jesus é anunciado como o salvador e por todas é acolhido na fé.
16f
Foi aceito pela fé no mundo inteiro,
16g
e na glória de Deus Pai foi exaltado.
O Senhor que se manifestou em nossa carne, sendo por ela de certa maneira também
ofuscado, agora é exaltado na glória, glória que será sobremaneira revelada quando executará sua
função de juiz dos vivos e dos mortos: Mt 25,31ss.
Ensinamentos
O Hino é uma curta mas concisa profissão de fé, usada pela comunidade cristã em suas
celebrações litúrgicas. De imediato afirma a encarnação do Senhor no abatimento. Assumir carne é
tornar-se em tudo semelhante aos homens, menos no pecado: 2Cor 5,21; 1Pd 2,22.
Todavia ele deu sinais de que não era simplesmente homem; isto, não apenas no Tabor (Lc
9,29-35), como também por meio de palavras e obras, principalmente pelo grande amor
manifestado na cruz e pela glória da ressurreição. O Senhor que se abateu e humilhou foi exaltado.
A ele foi dado um nome acima de todos os nomes, o nome do Senhor glorificado foi anunciado
entre todos os povos; todas as nações podem confessar que Jesus é o Senhor. No céu, na terra e
abaixo da terra, incluindo os anjos, todos dobram os joelhos ao nome do Senhor Jesus: Fl 2,9-11.
Oração
Senhor Jesus! Antes da criação do mundo, os anjos vos serviam nos céus. Quando chegou a
plenitude dos tempos (Gl 4,4) foi dado a eles anunciarem o mistério a Maria (Lc 1,26-38),
tranqüilizarem José (Mt 1,18-20), participarem vosso nascimento aos pastores (Lc 2,8-15), vos
servirem no deserto (Mt 4,11), vos confortarem na agonia (Lc 22,43), testemunharem vossa
ressurreição: Mt 28,2.
Também a mim, Senhor, me fostes anunciado (v. 16d), a mim, ainda, foi dado o grande dom
de aceitar-vos pela fé: v.16e.
Que agora eu vos descubra cada vez mais em vossa carne (v. 16a),. Principalmente na pessoa
do irmão que sofre: Mt 21,31ss. Que neles eu vos descubra justificado pelo espírito: v. 16d. Que
um dia, juntamente com todos os irmãos, participe de vossa glória na qual fostes exaltado: v. 16f.
Resumo e reflexão
Jesus se manifesta na carne e na divindade.
Insuflada pelos ourives, a multidão gritou durante duas horas: “grande é Diana dos
efesinos”.
Cristo se manifestou em nossa carne perecível e foi exaltado paras sempre pelo Pai.
I PEDRO 2,21-24
O Canto na vida
O Autor da Epístola à qual pertence o Canto se nomeia “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo”:
1Pd 1,1. Teria mesmo sido escrita pelo Pescador de Betsáida ou o escrito seria pseudoepígrafo?
Por muito tempo foi aceita a autoria petrina, atualmente é difícil encontrar quem o faça. Vários
103
104
motivos são alegados, como: o pensamento nela contido é mais Paulino que petrino, o grego e o
estilo superam o que se esperaria de um escritor de língua aramaica e de pouca escolaridade.
Mesmo se contasse com a colaboração de Silvano, nem todos os problemas ficariam explicados.
O objetivo da carta é confortar os fiéis perseguidos na diáspora: 1Pd 1,1. Contudo, há
admoestações, testemunhos. O Canto que dela faz parte se aproxima dos Hinos (1 o. Vol. pág. ) no
qual se louva implicitamente o amor do Crucificado.
Divisão
Introdução
Cristo é apresentado como exemplo no sofrimento: v. 21b
Corpo
Cristo não cometeu pecado algum: v. 22.
Mesmo sofrendo injustiças, não foi vingativo: v. 23.
O Senhor carregou as nossas culpas: v. 24a-b.
Conclusão
É pelo sofrimento do Senhor que fomos curados: v. 24c.
Recursos literários
O Canto é simples, visando acima de tudo à exortação moral cristã. Possíveis pretensões
literárias não fazem parte das preocupações do Autor. Ele está interessado em colocar Cristo como
centro e paradigma, no qual os discípulos possam se espelhar. Consegue atingir o objetivo com
facilidade.
Começa o Canto com um princípio geral: Cristo padeceu e é o modelo para todos os
cristãos: v. 21. Ao derredor desta afirmação basilar, vai desenvolvendo e demonstrando os
particulares contidos na afirmação universal: era inocente e assim mesmo não reagiu aos ultrajes,
sofria sem ameaçar, carregou nossos pecados. Desta maneira, estava o Autor em condições de
terminar o Canto com uma máxima sotereológica, deixando entrever que no sofrimento de Jesus,
as nossas provações se tornam fecundas: por suas chagas fomos curados.
Notas exegéticas
21b
O Cristo por nós padeceu, deixou-nos o exemplo a seguir. Sigamos, portanto, seus
passos!
Cristo sofredor e paciente é apresentado como modelo aos cristãos que são servos de amos
perversos: 1Pd 2,18-21s. Esta mansidão do Mestre fora predita (Is 53,7), mas ela não foi
passividade; por ela ele acolheu, saneou: Mt 12,19-21. Não queria que a reação violenta
aumentasse a violência existente. Exige dos sues reação pacífica, mesmo perante as injustiças: Lc
6,22,27ss. Jesus injustiçado, mas superior à injustiça, é apresentado por Pedro como paradigma,
como guia aos cristãos. Isto não significa aceitar o sofrimento como sofrimento e nem mesmo
aceitar a injustiça. Ambos devem ser condenados. Mas o discípulo não usará o mal para combater
o mesmo tipo de mal, à violência o cristão reage como agente de paz, como pacificador.
22
Pecado nenhum cometeu, nem houve engano em seus lábios.
Nem seria de se alegar que não é justo sofrer sem culpa (1Pd 2,18), pois o Mestre também
padeceu sem ter cometido pecado algum: Jo 8,46. A razão alegada não é para levar o cristão a uma
servil submissão, à alienação, seja ela qual for. O motivo é mais amplo e profundo: ele deve ser
superior ao mal, como Cristo o foi.
23
Insultado, ele não insultava; ao sofrer e ao ser maltratado, ele não ameaçava
vingança; entregava, porém, sua causa Àquele que é justo juiz.
Perante as injustiças e violências o discípulo não usará a reação proposta pelo mundo, e sim
a de Jesus. Este, podendo vingar-se, não o fez: Mt 26,51-53. A proposta de Cristo pode ser
desconcertante, mas é a que constrói, a que põe fim à proliferação do ódio: Mt 5,38-48. O
julgamento cabe ao Pai (Rm 12,19), e assim fez o Senhor: deixou tudo nas mãos daquele que é
rico em misericórdia: Ef 2,4ss.
24
Carregou sobre si nossas culpas em seu corpo, no lenho da cruz, para que, mortos aos
nossos pecados, na justiça de Deus nós vivamos. Por suas chagas nós fomos curados.
Em primeiro lugar aparece a doutrina do sofrimento vicário predito em Is 53,5-6.8. O
Senhor fez-se maldito em nosso lugar: Gl 3,13. Com isso, não só livrou os seus da maldição e da
morte, como deu-lhes a verdadeira vida: Cl 2,9-15. O sofrimento e a morte de Cristo não foram
104
105
em vão: foram redentores. Assim o sofrimento sem revide, sem vingança do discípulo, poderá ser
igualmente redentor num mundo marcado pela injustiça e pela violência. É a grande contribuição
do cristão na construção do mundo.
Ensinamentos
É pacífico que toda ação produz reação. A reação comum a um ato violento ou injusto é a da
revolta, a do revide. Este modo de pensar e de ser, tão divulgado, mostrou até agora, que não traz
solução alguma. As revoluções dos injustiçados que apelaram para a violência os levaram para
injustiças não menores. A tentação de se usar a mesma linguagem dos violentos sempre foi grande.
Não que o Canto proponha uma resignação servil, ou a impassividade ante a maldade. Não se
canoniza a injustiça.
Pedro deve ser compreendido dentro da mensagem cristã. O pacífico não é alguém inerte,
alienado, não é alguém apenas de boa índole; ele é e deve ser também pacificador: Mt 5,4-7. Isto
implica criar a paz, criar a justiça. Mas não revidando ao modo do injusto, do opressor. Firme
contra o mal, denunciando-o, assim como anunciando o bem, principalmente pelo testemunho.
Sem levar ao opressor o mesmo mal de que está sofrendo. Deve ter visão da eficácia do
sofrimento redentor que não deve ser assumido como sofrimento, e sim como sofrimento que
liberta. Firme contra o mal, mas paciente e misericordioso como o Senhor em relação ao pecador.
Sem dúvida é uma proposta diferente da do mundo, é uma proposta difícil. Mas é a chaga
que cura, e não a força que apenas fere: 1Pd 2,24.
Oração
Quanto me foi dito que por mim padecestes e me éreis apresentado como exemplo: v. 21.
Não sei até que ponto compreendia, no início, mas tenho consciência até que ponto estes
ensinamentos exigiam de mim. Diziam-me que éreis bom, principalmente com os pecadores, com
os humildes, que não havia falsidade em vossos lábios, ou pecado em vosso coração: v. 22. Isto
me auxiliava e me incentivava a amar-vos mais, com toda minha sinceridade infantil.
Porém confesso que ficava desapontado sabendo-o todo poderoso, mas que, insultado, não
insultáveis, que maltratado, não destruíeis: v. 23. Tinha ímpeto de ser vingativo em vosso nome e
por vós. E este espírito do mundo crescia em mim: pagar o mal com a mesma moeda.
Cresci! Compreendi que carregáveis não só o instrumento da maldição, como também as
minhas culpas: v, 24. Todavia, quando pessoalmente injustiçado, não compreendia ou não queria
compreender a eficácia do sofrimento assumido como assumistes.
Hoje, num mundo tão injusto e agressor, sei que sou chamado a seguir mais de perto os
vossos passos, a imitar os vossos exemplos: v. 21. Não me é fácil, pois o espírito do mundo
penetra em meu peito. Que eu compreenda que é por vossas chagas que fui curado: v. 24. Que eu
compreenda que devo carregar em meu corpo estas chagas fecundas que carregastes. E com, visão
redentora!
Resumo e reflexão
Cristo insultado não insultava e nem ameaçava com vingança.
Davi teve chance de vingar-se de Saul, na caverna de Engadi. Poupou-lhe, dizendo: dos
ímpios sai a impiedade. Minhas mãos jamais estarão conta ti: 1Sm 24,14.
Por tuas chagas nós fomos salvos.
APOCALIPSE 4,11;5,9-10.12
O Canto na vida
Por uma porta aberta no céu (Ap 4,1) João vê e ouve o que não seria dado a olhos e ouvidos
humanos contemplar e escutar (1Cor 2,9): o Pai assentando no trono de glória, o Cordeiro
imolado (Ap 5,6), assim como exaltações latrêuticas à divindade: Ap 4,8. Vem a seguir o Hino (1 o.
Vol. pág. ) cantado pelos que formavam a corte celeste. Ele faz parte do Apocalipse, livro escrito
pelo ano 100. Esta belíssima Poesia à divindade era digno de animar não só a liturgia celeste, mas
também a eclesial, pois o mundo todo é uma exaltação ao Criador e ao Redentor.
Divisão
Introdução
Exaltação ao Pai pela criação e subsistência das coisas: v. 4,11.
Corpo
Exaltação ao Cordeiro pela onerosa redenção universal: v. 5,9.
105
106
Povos e nações são transformados em sacerdotes e reis: v. 5,10.
O Cordeiro é digno de louvor como o Pai: v. 5,12.
Conclusão
Céu e terra se unem em doxologia final: vs. 5,13-14.2
Recursos literários
O Hino, de per si, sublime, e de altíssima piedade deve ser lido no contexto profético, rico
de elevações, de mistérios, e de dramaticidade. Através da porta celestial aberta, João ouve uma
voz já conhecida (Ap 1,10) que o convida a subir a um cenário divino: Ap 4,1. Arrebatado por
extraordinária iluminação espiritual, de início vê um trono no céu e “alguém” de fulgurante
aspecto, nele sentado. Personagens estranhas fazem corte, a seguir ouvem-se vozes que, dia e noite
exaltam latreuticamente o Senhor: Ap 4,2-8, Nesse ínterim 24 anciãos louvam a Deus. É quando
começa o Hino: Ap 4,10-11.
Tem novamente lugar a prosa que fala de um livro sigilado e que deveria ser aberto, obra
executável apenas pelo Cordeiro imolado: Ap 5,1-7. A prosa cede novamente lugar ao Hino e são
as palavras de louvor ao Cordeiro porque ele tomou o livro em suas mãos: Ap 5,8-10. O último
versículo do Canto são exaltações de milhares de vozes ao Senhor: Ap 5,11-12.
O Hino começa exaltando quem está no tono, rodeado pelos seres que compõem a corte
celestial. Pelos diversos elementos fornecidos pelo contexto é fácil descobrir que se trata de Deus
Pai. Este alguém, além de tudo é criador. A partir daí o Hino se torna cristológico: o cordeiro
imolado, sem a menor sombra de dúvida é Cristo crucificado e ressuscitado. É bela e saborosa a
alternância entre canto e prosa, formando um todo digno de rica celebração litúrgica. Belíssima,
ainda, a variedade de lances que se sucedem: personagens, lugares e situações distintos, não
faltando descrições que prendem a atenção até de leitores menos interessados.
Notas exegéticas
4,11
Vós sois digno, Senhor nosso Deus, de receber honra, glória e poder!
Quatro seres vivos estranhamente alados e repletos de olhos (Ez 1,1; Is 2-3) proclamam dia e
noite a santidade de Deus: Ap 4,8-9. Agora são 24 anciãos que se prosternam (no original o verbo
está no futuro, tendo em vista o drama da cruz que aconteceria), em sinal de adoração: Ap 4,10.
Tudo o que é devido a Deus toca-lhe por direito e com exclusividade: glória, honra e poder. A isto
se ajunta o título de “senhor”, indicativo da divindade. Esta afirmação é feita na pequena ilha de
Patmos a 75 km de Éfeso, um dos centros de irradiação do culto idolátrico ao imperador. Afinal,
só Deus é quem tudo criou. O fato de estar sentado no trono evoca de imediato não só a realeza do
Senhor (Dn 7,4), mas também suas atribuições de juiz: 1Rs 22,19.
5,9
Porque todas as coisas criastes, é por vossa vontade que existem e subsistem porque
vós mandais. Vós sois digno, Senhor nosso Deus, de o livro nas mãos receber e de abrir suas
folhas lacradas! Porque fostes por nós imolado; para Deus nos remiu vosso sangue dentre
todas as tribos e línguas, dentre os povos da terra e nações.
O versículo é dedicado ao Cordeiro que tomou o livro da mão direita de quem se senta no
trono. Depois disto é cantado o Hino. De antemão são atribuídas ao Cordeiro as prerrogativas
divinas. O livro que ele toma é escrito por dentro e por fora (Ap 5,1), trata-se dos longos rolos de
pergaminho escritos nas duas faces e usados pelos judeus: Ez 2,9-10. Para João, “livro” está no
lugar de uma mensagem benéfica e salvífica de Deus à humanidade: Ap 1,3.11; 10,2.0-11. Mas
essa mensagem estava vedada por sete selos. Portanto, são o que contrariam o plano salvador de
Deus. Trata-se do mal que poderia ser vendido apenas por Cristo. Essa ação do Cordeiro lhe é
onerosa e cruenta, mas leva a uma libertação ampla e universal. As mensagens estão figuradas na
saída dos judeus do Egito, onde não faltou um cordeiro imolado, sinal de vida: Ex 21,21ss. Mas
nesta altura não se pode olvidar o Cordeiro igualmente imolado por ter assumido as culpas da
humanidade: Is 53,4ss. Resumindo, o versículo mostra que o plano salvador do Pai se
concretizaria na obra redentora de Cristo.
5,10
Pois fizestes de nós, para Deus, sacerdotes e povo de reis, e iremos reinar sobre a
terra.

2
- Estes versículos não estão no texto da Liturgia das Horas.
106
107
Em Ex 19,10 e em força da aliança o povo se torna consagrado e reino sacerdotal tendo um
relacionamento mais íntimo com Deus. Deste modo, são mediadores entre a divindade e as demais
nações. Esta idéia volta em 1Pd 2,5-9. O Apocalipse a evoca duas vezes: Ap 1,6 e Ap 5,10, É
fundamental no escrito de João, que entre o Pai e a humanidade não se reconheça outra mediação
a não ser a do Cordeiro imolado. O relacionamento com o Pai e os redimidos é mais imediato, sem
outras interferências. Forma-se, assim, de todas as línguas e tribos um povo especial com missão
igualmente especial na terra: exercer o reinado de serviço.
5,12
O Cordeiro imolado é digno de receber honra, glória e poder, sabedoria, louvor,
divindade!
O que se falou anteriormente do Pai (Ap 4,11) é agora atribuído ao Cordeiro imolado. São os
mesmos atributos, porém, acrescidos por outros quatro, perfazendo um total de sete. A Liturgia das
Horas enumera apenas seis. No original os predicados devidos ao Cordeiro são: poder, riqueza,
sabedoria, força, honra, glória e louvor. Até mesmo o número sete tem aqui sua razão de ser, pois é
sinônimo de totalidade.
5,13
E todas as criaturas que estão no céu, na terra, debaixo da terra e no mar, e tudo o que
aí se encontra, eu as ouvi dizer: “Ao que está sentado no trono e ao Cordeiro, o louvor e a
honra, a glória e o poder para sempre”.
5,14
Os quatro Seres vivos respondiam “Amém”. E os Anciãos se prostraram e adoraram!
Estes versículos não estão na Liturgia das Horas. As criaturas que habitam no céu, na terra e nas
águas, e até as dos abismos exaltam tanto ao Pai Eterno como ao Cordeiro imolado. O paraíso se
une a este hino latrêutico.
Ensinamentos
A melhor compreensão do Apocalipse exige do leitor a mobilidade de João, que às vezes se
coloca antes e às vezes depois de Cristo. Sendo diferentes os pontos de colocação, é normal que os
significados sejam igualmente enriquecidos com idéias novas. Colocando-se antes do advento do
Senhor, mostra como era o plano divino de salvar a humanidade. O Pai tinha em sua mão direita
um livro (Ap 5,1), símbolo da vida especial que queria dar ao ser humano. Este plano, porém,
estava impedido por sete selos que ser algum, tanto do céu como da terra ou dos abismos, podia
rompe-los. Tal drama provocou pranto abundante no agraciado João. Eis que surge o Leão de
Judá, a Raiz de Davi; a ele coube receber o livro e executar o projeto eterno: Ap 5,2-7. Com razão
se dirá que os nomes dos redimidos estão escritos no livro de vida do Cordeiro, desde as origens
do mundo: Ap 13,8.
O Leão de Judá ou Raiz de Davi é logo adiante chamado de “Cordeiro imolado”. Embora
imolado ele está de pé. Com isto o Vidente fala de Cristo Crucificado, sim, mas igualmente
glorioso. Não só os sinais da redenção permanecem mesmo depois da ressurreição (Jo 20,27), mas
os seus frutos também são para sempre: Hb 9,14. Além disso, o Cordeiro é todo poderoso (sete
chifres; chifre, sinônimo de poder, e sete, indicativo de totalidade), bem como onisciente (sete
olhos, vê tudo, tudo conhece): v. 6. Dentro deste contexto cristológico todo voltado para o bem da
humanidade, tem maior realce a mensagem de louvor do Cordeiro imolado, e ao Pai doador de
tanta graça.
Oração
Contemplar as coisas criadas, chegando daqui a vós, ó Criador, é um passo lógico, não
havendo impedimento no coração. Reconhecer que tudo é fruto de vossa vontade: v 11. Mas a
mim, e é graça vossa, me foi dado descobrir que tudo em vós, não somente existem, como
subsistem. Incluo-me nesta maravilha, uma vez que em vós “vivemos, nos movemos e somos”: At
17,28.
Então, em sintonia com o universo todo quero, com palavras e vida proclamar solenemente
“vós sois digno, Senhor nosso Deus, de receber honra, glória e poder: v. 11. No vosso amor de
Criador e de Pai, desde todo o sempre, planejastes maravilhas para nós. Enviastes vosso Filho,
digno de receber o livro e de executar vosso plano de amor. Foi ele quem rompeu e continua
rompendo toda sorte de selos que tentam impedir a redenção. Foi ele quem me redimiu com o
próprio sangue: v. 9.
Hoje, Cordeiro imolado, mantém-se em pé, pois por mim ressuscitou. Cordeiro imolado
repleto de poder e de sabedoria em meu favor: v. 6. Sim, por isso me sinto chamado a santificar o
107
108
mundo, a participar do reinado de serviço. Ao vosso Filho e meu irmão, poder, riqueza, sabedoria,
honra, glória e louvor: v.12. Com todas as criaturas que estão no céu, na terra e debaixo da terra e
no mar, e com tudo o que eles contém, eu clamo: “Àquele que se assenta no trono e ao Cordeiro,
os louvores, a honra, a glória e o poder pelos séculos. Amém.”: vs. 13-14.
Resumo e reflexão
O Pai é exaltado pela obra criadora e o Cordeiro imolado, pela ação redentora.
Pregando aos atenienses. Paulo lhes recordava que vivemos, nos movemos e somos em
Deus, assim como participamos da estirpe divina: At 17,28.
Senhor no s remiu com seu sangue.
APOCALIPSE 11,17-18; 12,10b-12a
O Canto na vida
As primeiras palavras do Cântico o identificam: é de Ação de Graças: 1 o. Vol. pág.
Possivelmente tenha sido composto ao derredor do ano 100 quando da redação do Apocalipse
donde procede. Embora retrate o culto celeste, poderia alimentar as celebrações litúrgicas das
primeiras comunidades cristãs pelo seu alto teor de religião e piedade. O agradecimento é pelo
evento do reino messiânico e pela nova ordem instaurada. É atribuído ao Evangelista João, o que
não é aceito por muitos estudiosos.
Divisão
Introdução
Agradecimento ao Pai por ter assumido o poder: v.11,17.
Corpo
A ira do Senhor julga as nações e recompensa os seus servos: v. 11,18
Chegada do Reino de Deus e precipitação do Acusador: v. 12,10.
Vitória dos irmãos por meio do sangue de Cristo: v. 12,11.
Conclusão
O céu e seus habitantes cantam e exultam: v. 12,12a.
Recursos literários
O Cântico deve ser saboreado em si e no contexto onde se localiza. A primeira parte (Ap
11,17-18) está no Setenário das Trombetas, depois do toque dado pelo anjo. Anunciara, então, o
cumprimento do Reino de Deus e de Cristo no mundo: Ap 11,15. É a redenção operada por Jesus.
Ante essa inaudita obra do amor divino, os anciãos celestiais iniciam a grande celebração. Esta
primeira parte do Canto é seguida de versículos narrativos que falam da abertura do templo celeste
e da visão da mulher e do dragão: Ap 11,19-12,9.
A segunda parte (Ap 12,10b-12a) é ainda liturgia celestial. Pertence ao longo proêmio do
Setenário das Taças. As duas partes do Canto, embora distanciadas no texto, formam um todo
harmonioso, quer na descrição, quer na liturgia que se desenvolve no céu. Em sucessiva retomada,
depois de agradecer a Deus pelos propósitos salvadores, a Poesia recorda primeiro a rebeldia de
muitos e depois a fidelidade dos eleitos: Ap 11,17-18. Não só os maus são vencidos, mas também
aqueles que os incitaram à maldade. A vitória se deu não só pelo sangue do Cordeiro, como
também pela palavra e pelo testemunho dos eleitos. Fazendo eco à ação de graças do início do
Cântico, convida-se o céu todo a exaltar o grande feito.
Terminada a narração do toque das quatro primeiras trombetas (Ap 8,2-12), o Autor fala de
uma águia que do alto do céu clama por três vezes “ai”: Ap 8,13. Cria-se, assim, um supense sobre
o que vem a seguir. Após os toques das duas trombetas seguintes, a situação da humanidade é
assustadora: Ap 9,1-11,14. Contrastando com os “ai” gritados em altas vozes pela águia, surge, ao
toque da sétima trombeta, o delicioso canto na corte celestial.
O Escritor Sagrado é envolvente.
Notas exegéticas
11,17
Graças vos damos, Senhor Deus onipotente, a Vós que sois, a Vós que éreis e sereis;
porque assumistes o poder que vos pertence, e enfim tomastes posse como rei! 3
Ap 1,8 proclama o Senhor como : “Aquele que é que era e que vem”. Esperar-se-ia, no lugar
de vem, o verbo ser no futuro, isto é, será. Esta alteração é intencional e demonstra a ação divina

3
- A Liturgia das Horas segue uma versão mais livre, neste versículo.
108
109
na história. Fazendo eco ao que se disse anteriormente, são dadas graças ao que é, que era, e que
começou a reinar. Isto, por ter assumido o poder (enfatizado, no original): o grande. A
compreensão deste versículo supõe que se esteja a par do que foi narrado antes. Nas seis primeiras
trombetas João falara de modo simbólico sobre a Antiga Aliança, começando pela queda dos anjos
(Ap 8,7-13), queda do ser humano (Ap 9,1-12), conseqüência do pecado, limitação da antiga
revelação e término do culto judaico: Ap 9,13-11,14. Agora, na sétima trombeta, é o momento da
intervenção divina. Daí o canto de ação de graças. O Reino de Deus se manifesta em Cristo.
11,18
As nações se enfureceram revoltadas, mas chegou a vossa ira contra elas e o tempo
de julgar vivos e morto, e de dar a recompensa aos vossos servos, aos profetas e aos que
temem vosso nome, aos santos, aos pequenos e aos grandes.
João, no Setenário das Trombetas (Ap 8,2011,19), com a costumeira linguagem simbólica
teceu considerações sobre a história da salvação, como dissera pouco antes. Agora são anunciadas
a Paixão e a Ressurreição, em virtude das quais é dado ao Senhor o império do mundo: Ap 11,15.
Todos os servos são recompensados: os do Primeiro Testamento, em vista do sofrimento redentor
de Cristo (Ap 7,3-8). E os do Novo Testamento, vindo de todos os quadrante da terra (Ap 7,9), isto
é, os que em vida banharam suas vestes no sangue do Cordeiro: Ap 7,14. É a vitória de Cristo
sobre Satã e seus asseclas. A ira do Senhor, negativa para os maus, é vitória e prêmio para os bons,
assim como as dez pragas foram funestas para os egípcios e benfazejas para os hebreus: Ex 7,14-
12,34.
12,10b
Chegou agora a salvação e o poder e a realeza do Senhor e nosso Deus, e o domínio
de seu Cristo, seu Ungido. Pois foi expulso o delator que acusava nossos irmãos, dia e noite,
junto a Deus.
O ser humano, criado em santidade, era um verdadeiro sinal no céu, tendo sob os pés toda a
natureza: Gn 1,28. É o que evoca simbolicamente Ap 12,1. Mas a serpente tentadora o leva ao
pecado (Gn 3,1ss), sendo ambos precipitados na terra (deserto), pois o Dragão também se rebelara
anteriormente: Ap 12,2-9. Isto é celebrado no céu em voz forte: manifestar-se-ia o poder e a
realeza divina pela salvação oferecida à humanidade e com a vitória sobre o Acusador: Jó 1,6; Zc
3,1.
12,11
Mas o venceram pelo sangue do Cordeiro e o testemunho que eles deram da
Palavra, pois desprezaram sua vida até a morte.
A vitória dos judeus se dá, acima de tudo, pelo sangue redentor do Cordeiro imolado (Ap
1,5-6), pois é nesse sangue que as vestes são alvejadas: Ap 7,14. Todavia, não faltam os
testemunhos de muitos servos fiéis que chegaram ao martírio, tanto no Antigo (Ap 6.9-11), como
no Novo Testamento.
12,12
Por isso, ó céus, cantai alegres e exultai e vós todos os que neles habitais!
Os céus exultam não pelo fato da precipitação do Demônio e de seus anjos (Ap 12,9), mas
porque o ser humano excluído da vida eterna (Gn 3,13-14) e exilado no deserto, lá ficaria só por
um período determinado: Ap 6,12-17. A pátria de origem voltaria a abrir-lhe as portas no meio da
exultação de toda a corte celeste.
Ensinamentos
O grande objetivo do Apocalipse é revelar Jesus Cristo (Ap 1,1), especialmente no momento
culminante de sua vida e de sua missão: Paixão, Morte e Ressurreição. O conteúdo da mensagem
da sétima trombeta é o chamado mistério de Deus (Ap 10,7), o qual consiste na instalação do
Reino Messiânico, quando se dará o julgamento último e definitivo do Pai. Este julgamento
universal é ambivalente: exterminar os que destroem a terra, assim como recompensar os santos,
grandes e pequenos: Ap 11,18. Por meio da salvação cruenta operada pelo Cordeiro (Ap 12,11),
inicia (é este o sentido do verbo no aoristo ingressivo) o reino messiânico. É compreensível que a
liturgia celeste celebre este grande feito: salvação para a humanidade, realeza, poder e domínio de
Cristo, o ungido. Com a Paixão e Ressurreição começou também a vitória contra a Serpente do
Paraíso Terrestre.
Oração
Não só criastes e elevastes o ser humano, Senhor, mas com paciência divina aguardastes a
plenitude dos tempos quando enviaríeis o vosso Filho para nos salvar. Ante a iminência deste
tempo, a corte celeste vos exalta e eu me junto a ela para render-vos graças, a vós, Deus
109
110
onipotente, por terdes começado a reinar: v. 17. Insufladas pela pertinaz Serpente, as nações se
enfureceram, revoltadas mas, vossa ira, ao mesmo tempo que as julgou, assim como aniquilou os
que destroem a terra, recompensou os vossos servos, os que temem o vosso nome: v.18. Quero vos
agradecer ainda, ó Pai, pelo vosso reino de poder e de salvação, e pelo domínio de vosso Filho
derrotando o Acusador que tantos males causou ao vosso plano de amor: v. 10.
Uno-me a todos os habitantes do céu, cantando alegre (v. 12), pelo sangue do Cordeiro que
levou tantas testemunhas vossas à vitória: v. 11. Que esse mesmo sangue redentor que alveja as
vestes dos justos (Ap 7,14) purifique o meu coração para poder apresentar-me dignamente ante
vossos olhos, hoje e sempre.
Resumo e reflexão
Louvor àquele que é, que era, e que vem.
S. Agostinho meditando a encarnação de Jesus como conseqüência do pecado, exclamou,
extasiado: “ó feliz culpa!...”
Chegou agora o domínio de Cristo, o Ungido de Deus.
APOCALIPSE 15,3-4
O Canto na vida
Ap 15,3 chama de cântico de Moisés e do Cordeiro à composição litúrgica que é estudada.
Trata-se de um Hino de louvor a Deus: 1 o Vol. pág. Cantado pelos que venceram a Besta, era
acompanhado por cítaras, cantores e músicos que estavam de pé, como o Cordeiro (Ap 5,6), sobre
o mar de vidro (Ap 4,6), agora misturado com fogo: Ap 15,2. Os misteriosos personagens que
exaltam o Senhor são, seguramente, os mesmos de Ap 14,1, mártires do Antigo Testamento.
O Hino pertence ao escrito atribuído a João: Ap 1,1.4.9. Ao que parece, é de um discípulo da
escola joanina, oriunda da pregação do Apóstolo.
Divisão
Introdução
Palavras de exclamação ante a grandeza das obras divinas: v. 3a.
Corpo
Justiça e verdade se identificam com os caminhos do Senhor: v. 3b.
A santidade do Senhor exige temor e glorificação: v. 4a-c.
Conclusão
As nações se prostrarão ante o julgamento divino: v. 4d.
Recursos literários
O Apocalipse é um florilégio de idéias oriundas do Primeiro Testamento. Com arte e
sabedoria o Autor escreve sua obra, cravejando-a com referências explícitas ou implícitas oriundas
da Antiga Aliança. Arte e sabedoria estão de tal maneira presentes que um leitor menos avisado
não percebe tão ricas e deliciosas “ingerências” ou “incursões”. O Hino que se estuda, embora
brevíssimo, é interessante exemplo do que se afirma: “como são grandes e admiráveis vossas
obras”(Sl 91 (92), 6... “vossos caminhos são verdade, são justiça”: Sl 144 (145),17. “Quem,
Senhor, não haverá de temer-vos?”: Jr 10,7. “As nações toda hão de vir perante vós...: Sl 85
(86),9. Nem por isso a estrutura da pequena Poesia fica abalada ou carente de originalidade. Ao
contrário, apresenta-se como um todo lógico, entrosado, propiciando grande deleite.
O Hino como tal está perfeitamente inserido no plano do Apocalipse, e se destaca no bloco
central da obra: o Setenário das Taças: Ap 12,1-22,5. E a manifestação do sinal “grande e
maravilhoso” (Ap 15,1), coroa de outros menos grandiosos: Ap 12,1.3. Internamente ele consta de
duas idéias com movimentos diferentes: uma ascendente, que vai das obras maravilhosas ao Deus
onipotente: v. 3. A outra, descendente, do Deus santo, acessível a todas as nações: v. 4. Breve, mas
delicioso Hino de louvor a Deus.
Notas exegéticas
3
Como são grandes e admiráveis vossas obras, ó Senhor e nosso Deus onipotente!
Vossos caminhos são verdade, são justiça, ó Rei dos povos todos do universo!
O versículo não se refere às obras criadas como pode parecer, embora elas, de per si,
justifiquem toda exaltação a Deus. Refere-se a algo bem mais sublime. Anteriormente o Autor
falara de um grande sinal, a mulher que representava a humanidade criada em santidade: Ap 12,1.
O segundo é o Dragão vencido pelo Senhor: Ap 12,3ss. Finalmente o “sinal grande e
110
111
maravilhoso...”: a Paixão de Cristo: Ap 15,1. Por isso, os vencedores da Besta, isto é, os mártires
do Antigo Testamento exaltam os caminhos do Senhor ante a previsão da Paixão redentora,
conforme predição da Sétima Taça: Ap 16,17ss.
4
Quem, Senhor, não haveria de temer-vos, e quem não honraria o vosso nome? Pois
somente vós, Senhor, é que sois santo! As nações todas hão de vir perante vós, e protradas
haverão de adorar-vos, pois vossas justas decisões são manifestas!
Os horizontes do versículo se tornam mais universalistas; os benefícios do Senhor chegam a
todos os povos. Por isso mesmo, o Hino anteriormente chamado como “Cântico de Moisés” é
igualmente “Cântico do Cordeiro”: Ap 15,3. Cântico de Moisés por evocar a grande libertação da
escravidão do Egito (Ex 15,1ss), Cântico do Cordeiro porque, pelo novo êxodo, liderado agora por
Cristo, todos os povos encontrarão a liberdade. Ambos os benefícios são cantados pelos mártires
do Antigo Testamento, pelo já acontecido e pelo que aconteceria. À semelhança do versículo
anterior afirma-se que justas são as decisões divinas.
Ensinamentos
Era próprio dos judeus o contemplar as obras da criação e ouvir a linguagem das criaturas
falando à humanidade: Sl 8. Preferiam, porém, refletir a atuação salvífica de Deus na história,
sobretudo a vocação e libertação do povo, e de modo especial, a aliança selada nas faldas do Sinai.
O Primeiro Testamento todo é prova do que se afirma. O Hino não foge à rega. Os vencedores da
Besta (seguramente os mesmos personagens do Antigo Testamento conforme Ap 6,9-10; Ap 14,1-
5), exaltam em primeiro lugar o Senhor que liberta o povo eleito da escravidão do Egito. Por isso,
entoam o Canto de Moisés (Ap 15,2) porque, embora sejam os cantores da Antiga Aliança, são
favorecidos pelo futuro sacrifício de Cristo. Mártires em prol da lei e dos profetas que
testemunharam Cristo, beneficiaram-se dos frutos da Paixão, participando antecipadamente da
vida de Deus. A Paixão não só revela o grande amor do Pai para com a humanidade, como
também faz com que o nome divino seja honrado. As nações todas, justamente pelo drama do
Calvário se prostrariam em adoração ao Senhor. Com isto se cumpre o que disse Jesus: “quando
eu for elevado da terra, atrairei todos a mim”: Jo 12,32.
Oração
Não sei com que critério, meu Deus, pretensos intérpretes vossos afirmavam, com toda a
segurança, ser isto e não aquilo a vossa vontade. Tudo lhes era tão claro e evidente. E como
procuravam me convencer!
Mais tarde, porém, fui constatando que havia muita gratuidade, que as coisas não eram
assim fáceis. Depois, em contato maior com vossa palavra, algo me ficou claro: é vossa vontade a
salvação de todos... não quereis a morte do pecador , e sim, que se converta e viva. Esta é a vossa
grande vontade. Para tanto não poupastes o próprio Filho.
Perante tão sublime revelação, sou levado a clamar: “como são grandes e admiráveis vossas
obras, ó Senhor: : v. 3. Jamais nos abandonastes à própria sorte; sempre estivemos presentes em
vosso coração. Verdadeiramente “vossos caminhos são verdade, são justiça”: v. 3. Quem pode
permanecer indiferente a tanto amor? “Quem não honraria o vosso nome?”: v. 4. Não quero
permanecer alheio à devida homenagem, ao devido agradecimento. “As nações todas hão de vir
perante vós e prostradas haverão de adorar-vos”: v. 4. Reverentemente grato vos confesso:
“vossas justas decisões são manifestas”: v. 4.
Resumo e reflexão
Entre as obras do Senhor, o propósito de salvar a humanidade pela Paixão ocupa lugar de
destaque.
Os deuses do Panteão pagão, vindo à terra, vieram para se divertir às custas dos seres
humanos. Cristo, não!
Quem não honraria o vosso nome, Senhor?
APOCALIPSE 19,1-2a.5-6
O Canto na vida
Várias personagens participam da liturgia celestial cantando o Hino (1 o Vol. pág. ): Ap 19,1-
2a.5-7. No início é como uma voz forte como a de multidão imensa, e a seguir, parece ser a de
muitos: Ap 19,3. Os 24 anciãos conhecidos (Ap 4,4), e os 4 seres vivos (Ap 4,6), participam
também da movimentada celebração: Ap 19,4. À voz do trono junta-se outra como a de multidão
111
112
imensa: Ap 19,6. É de se ter presente, todavia, que a Liturgia das Horas não traz na íntegra o texto
original; obedecendo critérios próprios, seleciona apenas alguns versículos.
Divisão
Introdução
Motivação para se exaltar o nosso Deus: vs. 1-2.
Corpo
Grandes e pequenos são convidados ao louvor: v. 5.
Deus toma posse do seu reino: v. 6.
Conclusão
Convite de glorificação ao Senhor: v. 7.
Recursos literários
O Hino é de grande movimentação litúrgica. As diversas personagens se sucedem dando
bastante plasticidade cênica à celebração que acontece no céu. Existem vozes uníssonas de grande
multidão, às quais se somam as dos anciãos (v. 4), como a conclamação vinda do trono: v. 5. Tudo
é coroado pelo estrondoso ruído de uma incomensurável multidão: v. 6. As participações corais do
Hino são enriquecidas com prostrações e reverentes atitudes de adoração. Nas diversas vezes que
ocorre a palavra “aleluia”, pode-se pensar em participação comunitária na imponentes celebração
celestial.
Mesmo omitindo os vs. 2b-4, como faz a Liturgia das Horas, o Hino é uma contextura
regular e prolicromática. Após a conclamação inicial em que se tributa salvação, glória e poder a
Deus, dons que dele promanam, os versos se alternam entre colocações de atributos divinos e de
convites de exaltação:
“... são verdade e justiça os juízos do Senhor”: v. 2.
“Celebrai o nosso Deus...”: v. 5.
“De seu reino tomou posse...”: v.6.
“Exultemos de alegria...”: v. 7.
Esta bela alternância de atributos e motivações de louvor se encerra com a explicação final
que será melhor compreendida no término da obra: a Esposa do Cordeiro está pronta para as
núpcias: v. 7.
Notas exegéticas
1
Aleluia. Ao nosso Deus a salvação, honra, glória e poder!
2a
Pois são verdade e justiça os juízos do Senhor.
A salvação, a glória e o poder são tributados a Deus por voz celestial, forte como a de uma
multidão. Razão: a grande prostituta foi julgada. A identificação da prostituta causou admiração ou
estupor ao próprio João: Ap 17,6. E evidente que se refere a uma cidade (Ap 18,2ss), e a uma
cidade anteriormente santa, Jerusalém que abandonara seu Divino Esposo, entregando-se a seus
amantes, a ponto de crucificar o Filho de Deus: A 11,8. As decisões divinas são verdadeiras e
justas, uma vez que Jerusalém terrestre, a que matava seus profetas (Mt 23,37), será substituída
pela nova, a Igreja. Deus se faz presente pela salvação que opera no seio da humanidade, pela
especial manifestação de sua glória (Ex 40,34-35), manifestando, deste modo, o seu poder que
beneficia os seres humanos.
5
Celebrai o nosso Deus, servidores do Senhor! E vós todos que o temeis, vós os grandes
e os pequenos!
Os servidores e tementes do Senhor, grandes e pequenos, são convidados a louvar a Deus.
Tais servidores são os que não se entregaram ao serviço ou ao culto à Besta. Ao contrário,
receberam o sinal de Deus (Ap 7,3) em oposição a outros grandes e pequenos portadores da marca
da Besta: Ap 13,16.
6
Aleluia. De seu reino tomou posse nosso Deus onipotente!
O reino que competia a Deus por direito é por ele agora solenemente instalado por meio de
algo muito sublime, predito anteriormente, e que aconteceria em breve: a Paixão: Ap 16,17-21.
7
Exultemos de alegria, demos glória ao nosso Deus!
Ante tudo o que aconteceria, justifica-se o convite à alegria, à exultação e à glória a Deus. O
Cordeiro imolado desde a criação do mundo (Ap 13,8), com o manto tinto de sangue (Ap 9,13),

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realizará suas núpcias. A Esposa, isto é, a Igreja, está pronta para as especiais núpcias que serão
seladas com o sangue de Cristo.
Ensinamentos
Em seu escrito, João se propõe revelar Jesus Cristo, e não propriamente trazer revelações
outras, como ordinariamente é afirmado: Ap 1,1. O que há de mais excelso no Senhor será por ele
descrito: o momento culminante do projeto do Pai. Passando pelo Antigo Testamento reevoca as
principais etapas da história da salvação, e principalmente demonstra que em Cristo se cumpriam
as diversas profecias, de modo especial Daniel, Zacarias... Tudo se dirige para o ponto culminante
da vida do Senhor, do qual depende a sorte da humanidade: Paixão, Morte, Ressurreição.
No início acena, para depois retomar o tema, aprofundando-o, e o faz sempre ligando-o ao
número 7 (indicativo de totalidade) de cada setenário: Ap 3,14-22; Ap 8,1; Ao 11,15-19. As
referências à Paixão são cada vez mais incisivas e crescentes. Depois da sétima taça (Ap 16,17ss),
se fala da destruição de Babilônia, ou a Jerusalém que se prostituiu. Ao judaísmo arcaico e
desviado, sucedia uma nova ordem de coisas. Com a Paixão de Jesus chega o dia do Senhor,
terrível para uns, mas salvador para outros. Daí a razão de ser de Hino tão solene. A partir da
Paixão e Ressurreição se concretiza cada vez mais o enlace entre o Cordeiro e sua Esposa, a
Igreja. Até a chegada do dia definitivo.
Oração
Não sei se fruto de ensinamentos familiares, ou levando por imperiosa necessidade, comum
a todo ser humano, cedo percebi que vos agradecia, ó Pai do Céu. No início eram agradecimentos
do tamanho de meu mundo infantil: pelos pais, pelo alimento, pelos brinquedos.
Mais tarde compreendi que se devia dar “ao nosso Deus, a salvação, honra, glória e
poder”: v. 1. Foi um passo grande, bem o sabeis, ó meu Senhor, quando entendi que vossos juízos
são verdade e justiça: v. 2. Nem sempre me foi fácil vos louvar assim, principalmente quando
meus interesses imediatistas ficavam feridos. Afinal, vossos juízos são verdade e justiça (v. 2), e
que custaram tanto ao vosso Filho.
Por isso, mesmo que muita coisa contrarie meus interesses tão mesquinhos e limitados,
quero celebrar-vos juntamente com os vossos servidores, grandes e pequenos (v. 5), tentando
descobrir vosso plano de justificação e de salvação: v. 2.
Quantas vezes pedi, em minhas orações: “venha a nós o vossos Reino”. Pela Paixão e
Ressurreição de vosso Filho, tomastes posse desse tão suspirado Reino que já está entre nós: v. 6.
Por tamanha dádiva, exultamos de alegria e damos glória a vosso nome: v. 7.
Pai Celestial, que eu me deixe purificar cada vez mais no banho do sangue redentor de vosso
Filho, e me apronte condignamente para as núpcias com o Divino Cordeiro: v. 7.
Resumo e reflexão
Pela imolação do Cordeiro, Deus onipotente tomou posse do seu Reino.
Aos discípulos que pleiteavam um lugar de destaque no Reino do Céu, Jesus lhes mostra que
nele, o maior é o que serve os menores.
Exultemos de alegria, demos glória ao nosso Deus.
ÍNDICE DOS CÂNTICOS
Êxodo 15,1-6.8-13.17-18............................................
Deuteronômio 32,1-12................................................
1 Samuel 2,1-10..........................................................
1 Crônicas 29,10-13....................................................
Tobias 13.2-11.13-14b.15-18......................................
Judite 16,1-2.13-15.....................................................
Provérbios 9,1-6.10-12................................................
Sabedoria 3,1-9...........................................................
Sabedoria 9,1-6.9-11...................................................
Sabedoria 10,17-21.....................................................
Sabedoria 16,20-21.26; 17,1.......................................
Eclesiástico 14,22; 15,3-4.6b......................................
Eclesiástico 31,8-11....................................................
Eclesiástico 36,1-7.13-19............................................
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Eclesiástico 39,17-21..................................................
Isaias 2,2-5..................................................................
Isaias 9,1-6..................................................................
Isaias 12,1-6................................................................
Isaias 26,1-4.7-9.12.....................................................
Isaias 33,2-10..............................................................
Isaias 33,13-16............................................................
Isaias 38,10-14.17-20..................................................
Isaias 40,1-8................................................................
Isaias 40,10-17............................................................
Isaias 42,10-16............................................................
Isaias 45,15-25............................................................
Isaias 49,7-13..............................................................
Isaias 61,6-9................................................................
Isaias 61,10-62,5.........................................................
Isaias 62,4-7................................................................
Isaias 63,1-5................................................................
Isaias 66,10-14a..........................................................
Isaias 66,10-14a..........................................................
Isaias 66,10-14a..........................................................
Isaias 66,10-14a..........................................................
Jeremias 7,2-7.............................................................
Jeremias 14,17-21 ......................................................
Jeremias 17,7-8...........................................................
Jeremias 31,10-14.......................................................
Lamentações 5,1-7.15—17.19-21..............................
Ezequiel 36,24-28.......................................................
Daniel 3,26-27.29.34-41.............................................
Daniel 3,52-57............................................................
Daniel 3,57-88.56.......................................................
Habacuc 3,2-4.13a.15-19...........................................
Oséias 6,1-6................................................................
Sofonias 3,8-13..........................................................
Lucas 1,46-55.............................................................
Lucas 1,68-79.............................................................
Lucas 2,29-32.............................................................
Efésios 1,3-10.............................................................
Filipenses 2,6-11........................................................
Colossenses 1,12-20...................................................
1a. Timóteo 3,16..........................................................
1a. Pedro 2,21-24........................................................
Apocalipse 4,11; 5,9-10.12.........................................
Apocalipse 11,17-18; 12,10b-12a...............................
Apocalipse 15,3-4.......................................................
Apocalipse 19,1-2a.5-7...............................................
CONTACAPA
Cantavam as comunidades judaicas, quer no templo, quer no recesso dos lares, quer nos
campos de batalha ou de colheita, quer caminhando pelo deserto, quer pelas vozes dos profetas
que anunciavam e denunciavam. Cantavam as primeiras comunidades cristãs em suas primeiras
celebrações litúrgicas. Meditava-se Deus agindo salvificamente na história, sobremaneira por
meio de Cristo. Muitos desses cânticos chegaram a nós, enriquecendo a liturgia cristã.
Comentados e refletidos, estão neste IV Volume, levando todos a assumir o passado, viver o
presente, e projetar o futuro na celebração celestial.

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