Você está na página 1de 2

Quem monta este quebra-cabeças?

Em 2018, dois filmes com temática similar ganharam espaço em festivais importantes de cinema:
um em Sundance, outro em Cannes. Um é dos EUA, outro francês; aquele foi pensado para a TV,
este para o cinema. Ambos entraram recentemente no circuito comercial brasileiro e têm em comum
o fato de terem mulheres em suas direções. Consegue adivinhar? Falo de O Conto (The Tale),
dirigido por Jennifer Fox, e de Inocência Roubada (Les Chatouilles) dirigido por Andrea
Bescond e Eric Metayer.
Os dois filmes tiveram a coragem de tratar de algo delicado: abuso infantil, pedofilia e estupro de
vulnerável. Em O Conto, a documentarista Jennifer começa a investigar uma redação que havia
escrito quando tinha 13 anos, recuperando as relações que tinha à época e procurando detalhes sobre
si. Já em Inocência Roubada, a dançarina Odette revive episódios de abuso por meio de sessões de
terapia e números de dança.
Outro ponto que estes filmes têm em comum é o fato de serem baseados na biografia das suas
diretoras. Se por um lado esta nota autobiográfica confere aos filmes uma crueza dolorosa –
podendo até desencadear um gatilho, dependendo da vivência da espectadora –, por outro implica
que o assunto foi tratado com a devida sensibilidade e seriedade.
Por mais que o assunto pareça pesado, é preciso abordá-lo. A partir do momento em que a pedofilia
existe e faz parte da realidade de um grande número de pessoas, é essencial que isto seja discutido,
sobretudo porque o silenciamento, neste caso, serve para acobertar agressores.
Se tratamos de abuso infantil apenas sob o signo do tabu, acabamos por negar, às crianças em
situação de vulnerabilidade, a possibilidade de pedir ajuda, justamente porque o seu depoimento
seria deslegitimado ou visto como fantasia. Isto se transpõe não apenas na dinâmica das relações
familiares, mas também em políticas públicas: atualmente no Brasil o que se tem é um vazio
estatístico que dificulta o próprio diagnóstico do problema.1
Contudo, mais do que utilidade pública, O Conto e Inocência Roubada são filmes feitos na
linguagem e medida adequadas para tratar do assunto com profundidade, e a vivência e a
perspectiva das diretoras é o que faz com que sejam únicos.
Diferente de Lolita (perspectiva de um pedófilo) ou de Spotlight (terceiros interessados em
investigar e punir agressores), O Conto e Inocência Roubada são filmados sob a lente de pessoas
que sofreram o abuso: a opção é contar a histórias destas personagens. O estupro não é tratado de
forma escancarada, expondo os corpos das vítimas; nem romantizado; tampouco tratado com a

1 Fonte: MORI, Letícia. BBC Brasil. Levantamento revela caos no controle de denúncias de violência sexual contra
crianças. 21. fev. 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43010109>. Acesso em: 24. jun.
2019.
objetividade de um pesquisador ou serventuário da justiça: é uma violência marcante na vida de
uma pessoa, que influencia de forma significativa na construção da personalidade.
Ao dar voz a mulheres adultas que sofreram violência sexual quando crianças, as personagens saem
do papel clássico de vítima: passivo, que tudo suporta sem contra-ataque ou resposta. Cada uma
com as suas peculiaridades, a perspectiva é de mulheres adultas, que tem as suas próprias vidas,
revendo um passado doloroso, que precisa ser trabalhado. Elas revisitam as pessoas que eram na
infância e, mais do que sublimar em arte episódios de um trauma, nos deixam assistir a um processo
de ressignificação fundamental para continuar vivendo depois. É uma ferramenta não só para
denunciar a violência, mas para lidar com ela depois que ela já ocorreu e é preciso juntar os
caquinhos. Sem dúvidas, trazem para quem assiste sentimentos muito mais valiosos do que o mero
desconforto.

Você também pode gostar