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Divinas tetas

Alice analisou seu reflexo de perfil, com a minúcia de quem assiste um fio de cabelo crescer,

examinando o aspecto achatado e retilíneo do tórax. E passou para a fita métrica para ter

certeza: 0,7 mm de diferença. Anotou em um caderninho. Ponto de partida: 77 centímetros.

Atualmente: 78 cm (aprox.). Alvo: 95 cm.

Era o décimo dia consecutivo de experiência, um dia marcante, porque marcos arredondados

são importantes. Se ela aumentou 1 cm em 10 dias e queria aumentar 18 cm o diâmetro do

peito, só o que precisava era de 180 dias de disciplina, ou seja, 6 meses. Considerando que

começou o projeto no início de abril, em outubro já poderia comprar sutiãs novos tamanho G

de Grande Conquista.

Na faculdade, todas as colegas tinham entrado debaixo da faca, ou estavam na fila. As mais

ricas já chegavam com o peito farto (presente de formatura do Ensino Médio), as de classe

média economizavam para logo fazer (era o sonho de todas desde pequenas).

Coincidentemente, todas tinham o mesmo complexo e agora que tantas amigas próximas

faziam, pôr silicone parecia um próximo passo tão natural e iminente quanto descolorir o

cabelo e usar cropped.

No intervalo, discutia-se o preço dos médicos, relatavam-se os pormenores, analisavam-se os

benefícios do formato de cada prótese:

- Então, o que o médico me disse é que a de gota é mais natural, mas eu acho a redonda mais

bonita, a minha é essa, olha.

Na semana em que já estavam recuperadas, elas voltavam triunfantes. O peito ainda inchado e

dolorido da operação; ímã para o olhar. Uma regata, de repente, tornava-se sinal de

provocação. - Você viu que a Vitória só está usando decote ultimamente?

- Ai, para que isso, né? Pode pôr silicone, mas não precisa ficar esfregando na cara dos outros.
- Quando eu pôr eu não vou fazer isso.

Em três anos de curso, Alice assistiu ao desfile inúmeras vezes: o retorno triunfante depois de

alguns dias de recuperação. Ainda sem poder levantar os braços, a nova peituda perguntava

com os olhos brilhando de orgulho:

- Quer ver como ficou?!

E lá marchavam para o banheiro, onde as próximas candidatas se colocavam em círculo em

torno da atração principal, que tirava a blusa e ouvia os elogios de que ficou super natural,

grande, mas não exagerado, nem vulgar, a cicatrização nem se nota e ia ficar lindo com o

vestido do baile de formatura. Assim como não se critica desenho de tatuagem, não se fala

que os mamilos ficaram vesgos.

Alice também participava do ritual e imaginava-se logo no centro do círculo. Como o resto de

suas compleições, era pequeno o peito; o tamanho do sutiã era a origem do complexo. Não

que ela se importasse com os comentários dos moleques idiotas que a zoavam no

Fundamental; era para ela e por ela, e ela nasceu com esse valor absoluto de que é preciso que

seus peitos preencham e esgarcem o tecido da blusa para se sentir bem. Assim são as cirurgias

plásticas: não são para os outros, o primeiro sexo, são para nós nos sentirmos bem: um

transplante de autoestima.

Economizava a bolsa de estagiária para pagar os quinze salários mínimos que tinha cotado

para fazer com o Doutor Eduardo Pacheco e se recuperar até a formatura da faculdade. Tudo

pelo seu sonho... mas era difícil. O Doutor Eduardo Pacheco só parcelava no cartão de crédito

e ela não tinha um limite tão alto, nem os pais pareciam dispostos a se privar para apoiar a

empreitada.

Foi despretensiosamente que se deparou com as palavras que mudariam sua vida para sempre,

passando casualmente pelo seu feed: “Comer muita soja pode aumentar as mamas dos

homens?” *click*
O artigo em si era sobre alimentação vegetariana, alertando contra os perigos de comer soja –

a principal (e frequentemente única) fonte de alimentação sem carne. O grão possuía

isoflavona, que atua tal como o estrogênio no corpo feminino – justamente o hormônio que

aumenta as glândulas mamárias. As palavras mágicas: aumenta as glândulas mamárias.

Entrou naquele estágio de concentração de alguém determinado a cavoucar até o resultado da

página 10 do Google, buscando (e encontrando) artigos que reiteravam a ligação entre

aumento dos seios e soja. Ora!!! Por que não comer soja para aumentar o peito?! Se era capaz

de criar peitos em homens, por que não aumentaria o das mulheres? Como ninguém pensou

nisso antes?

A eufórica se preparou para ser a própria cobaia. E assim como se faz o Projeto Verão e o

Projeto Rapunzel, a coisa toda precisava de um nome, não só para si, mas porque, se desse

certo, poderia ser a obsessão de toda uma geração. Ele precisaria ser curto, gerar uma conexão

instantânea com o público-alvo, formar uma boa hashtag... talvez algo em inglês, para ser

mais universal... boobs... chest... CHESTER! Projeto Chester!

A metodologia era genial. Consistia em ingerir soja em todas as refeições. Trocou o feijão por

soja, passou a tomar café com leite de soja, trocou o queijo branco por tofu e até a carne de

verdade às vezes dava lugar à esponjosa proteína texturizada de soja. Logo ela estaria não só

com as glândulas mamárias aumentadas, mas muito mais feminina de forma geral, graças à

isoflavona.

Antes mesmos dos primeiros resultados, compartilhou suas ideias. De início, recebeu muito

hate. As pessoas estranhavam, parecia frescura: ela precisou esclarecer que não era dessas

pessoas radicais que ficam julgando os outros por causa de comida, como os insuportáveis

vegetarianos ou, pior, veganos: ela só queria comer melhor que os outros e conseguir atingir

uma versão superior de seu próprio corpo de uma forma que nenhuma outra pessoa foi capaz.
Passou a postar no TikTok e no Instagram sua jornada. Não era mania de grandeza, era

vontade genuína de compartilhar o conhecimento com os outros e democratizar o acesso aos

peitões. E ela explicava com paciência: Assim como o Chester foi geneticamente selecionado

– e é alimentado durante toda a vida – para ter mais peito, o Projeto Chester, por meio da

ingestão de soja, estimula a produção natural do estrogênio para aumentar naturalmente o

tamanho das mamas, por meio da alimentação. E vocês adivinham qual é o principal grão que

alimenta o Chester? Isso mesmo.

Havia desconfiados do que parecia óbvio demais. Se era assim tão fácil, por que as pessoas

não descobriram antes? Na ponta da língua: porque o mercado de silicones é muito lucrativo

para os médicos e a indústria farmacêutica prefere manter as pessoas ignorantes sobre

alternativas naturais para continuar vendendo próteses, remédios e pomadas necessários para

a cirurgia. As pessoas são mesmo muito ingênuas de não perceber isso.

Aqueles 7 milímetros, quase 1 cm, em um único mês, já anunciava o seu triunfo: soy

influencer. De biquíni, levantou o celular de frente ao espelho e ensaiou o melhor ângulo.

Contra fatos não há argumentos.

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