Você está na página 1de 22

6 A CIDADE MEDIEVAL

6 DA CIDADE MEDIEVAL À CIDADE BARROCA OU RENASCENTISTA

6.1 Os Fatores Geradores do Feudalismo

Os principais fatores responsáveis pela formação do feudalismo podem ser divididos em


estruturais e conjunturais. Dentre os primeiros devemos destacar as dificuldades de reposição
da mão de obra escrava para trabalhar nas grandes propriedades agrícolas e nas cidades,
devido ao término das guerras de conquista durante a expansão do império romano, além do
repúdio à escravidão decretado pelos primeiros imperadores romanos que adotaram a nova
religião.
O fenômeno da ruralização foi outro fator estrutural, caracterizado pelo êxodo da população das
cidades que, por falta de segurança, refugiava-se nas vilas, buscando maior proteção contra as
pestes que assolavam Roma e, principalmente, os ataques de inimigos atraídos pela riqueza
acumulada nas maiores cidades do império.
O isolamento progressivo das cidades e vilas romanas, decorrente da falta de segurança das
estradas sujeita a contínuos ataques dos invasores e de toda a sorte de malfeitores, marcou o
término de quase todo o comercio regional e fez com que as vilas passassem a ser unidades de
produção voltadas para o consumo local.

„‟Assim quanto a Roma e às cidades que colonizara ou governara: a


população que nelas existia se reduziu; suas atividades tornaram-se
restritas; suas vidas ficaram cada vez mais sujeitas à invasões , contra
as quais já não se podiam defender; as próprias estradas que outrora
lhes haviam dado segurança e riqueza tornavam agora mais fácil o
caminho da conquista bárbara.‟‟ (MUNFORD, 2004, p.269)

Fig. 46: Vila de Adriano, Tivoli, Itália


A presença dos invasores germânicos também contribuiu para a formação do feudalismo, ao
tornar conhecido seu sistema econômico, baseado no escambo, sistema de trocas que
caracteriza uma economia natural e uma sociedade rigidamente estratificada, dividida entre
guerreiros, homens livres e escravos com um sistema político fundamentado no individualismo
tribal e na inexistência de um estado agregador.
Entre os fatores conjunturais podemos destacar as diversas invasões sofridas pelo império a
partir do enfraquecimento do poder agregador de Roma, dentre elas as invasões germânicas
que tinham como alvo principal as cidades maiores, a procura dos espólios e resgates,
obrigando a população a se refugiar no campo, migrando para as vilas e núcleos urbanos
menores que, além de não despertarem a cobiça dos invasores, eram mais fáceis de defender.
Essa situação agravou-se com o domínio exercido pelos muçulmanos no mediterrâneo e na
península Ibérica, isolando a Europa do resto do mundo; com as invasões dos normandos e
com os ataques de povos aguerridos como os godos, visigodos e os Vikings que realizaram
sucessivos ataques ao Ocidente, tendo como alvos a França, a Itália, a região de Lorena, a
Borgonha, a Espanha e o próprio império Bizantino.

Fig. 47: Ilustração de barco vicking


O modo de produção da economia medieval, ao apoiar-se num regime de servidão, criava entre
os servos o desinteresse de aumentar a produção, já que a maior parte dos resultados do seu
trabalho era entregue ao senhor feudal. Assim, o regime de servidão contribuiu para que a
economia medieval fosse de baixa produtividade, principalmente entre os agricultores que, ao
abandonar as práticas agrícolas desenvolvidas pelos romanos, passaram a explorar a terra com
técnicas cada vez mais rudimentares1.
O modo de produção feudal, estruturado na alta idade média, deu os primeiros sinais de
esgotamento a partir do século XII, dando lugar a um pré-capitalismo comercial, mais adequado
à reativação do comércio regional; ao crescimento do poder político-econômico dos mercadores
e da burguesia em ascensão, enriquecida com o aumento da demanda de bens, serviços e
mercadorias, decorrente do crescimento da população européia e, a partir do século XV, o
século das grandes descobertas marítimas e da abertura de novos mercados.
A falta de relações comerciais entre os feudos e a baixa produtividade da economia não
poderiam atender às necessidades crescentes de consumo da população européia, que
recomeçara a crescer, recuperando-se das baixas populacionais produzidas pelas pestes e
pelos ataques de normandos e bárbaros que duraram até o século XI.
Nem mesmo a peste negra, que atingiu a Europa no século XIV, teve força para deter o ritmo
de crescimento da população2.

Fig. 48: Ilustração da Peste Negra

1
Durante a maior parte do período feudal esses e outros conhecimentos permaneceram trancados a sete
chaves nas bibliotecas dos mosteiros sendo sua aplicação restrita às propriedades da Igreja, a principal
guardiã dos saberes dos séculos anteriores.
2
Segundo MUNFORD (2004, p.285) a peste negra que assolou a Europa durante vinte anos, por vezes
matando mais da metade da população de uma cidade, causou apenas uma recessão temporária no
ritmo de crescimento da população.
.
As cidades, fortificadas por novas muralhas e por uma população civil melhor preparada para
defendê-la com o apoio de combatentes treinados desestimulou os invasores, fazendo com que
um novo clima de segurança voltasse a reinar, propiciando o aumento das atividades
econômicas pela retomada do comércio regional.

Fig. 49: Carcassone, Sulda França

A ampliação das relações econômicas entre as diferentes regiões passou a exigir a adoção de
normas comuns de comércio e, conseqüentemente, o fim do isolamento dos feudos, que de
uma forma geral regulavam e taxavam as atividades econômicas de forma diferenciada criando,
inclusive, suas próprias moedas.
Esse novo cenário da economia trouxe consigo um verdadeiro renascimento urbano, marcado
pelo surgimento de novos núcleos e pela recuperação dos existentes. Assim o êxodo das
cidades, deu lugar a um forte movimento contrário, conduzido por uma burguesia fortalecida
com a expansão das atividades econômicas e caracterizado pela perda de poder dos senhores
feudais, pela diminuição da influência das guildas na economia e, finalmente pela formação dos
estados nacionais.
As guildas eram corporações de ofício que lembravam os antigos “colégios romanos”, mas
enquanto estes se limitavam a atuar como um sistema de mutua proteção, as guildas além
dessa função, tinham o poder de estabelecer normas de funcionamento para os diversos
ofícios, regular o trabalho das oficinas, controlar a quantidade e a qualidade dos produtos e fixar
seus preços.

Nelas havia três níveis da hierarquia: mestres, jornaleiros e aprendizes. A duração da


aprendizagem era de sete anos, em geral e seu custo era assumido pelos pais do jovem
apendiz que entrava na oficina. A progressão do aprendizado se dava, oficialmente, pela
apresentação ao cabo de sete anos de um trabalho que demonstrava as habilidades
fundamentais absorvidas pelo aprendiz. Obtendo êxito nessa prova o aprendiz se tornava um
jornaleiro, continuando a trabalhar na oficina por cinco a dez anos, até provar estar preparado
para produzir uma “obra prima”, condição essencial para tornar-se um mestre

Com a expansão da demanda provocada pelo aumento da população européia e pelas


descobertas marítimas que abriam novos mercados, o rígido controle exercido pelas guildas
passou a representar um freio às atividades dos mercadores.

Fig. 50: Ilustração de uma guilda

A reação da burguesia emergente às guildas, assim como à inexistência de normas gerais para
o comércio inter e supra - regional estimulou o surgimento de uma aliança, no mínimo curiosa,
entre os comerciantes, contrariados nos seus interesses, os camponeses, empobrecidos pela
ganância dos senhores feudais e as casas reais, da Europa, interessadas em exercer o direito
divino da realeza, com os objetivos de criar os estados nacionais, destruir o feudalismo e limitar
o poder das guildas.
O primeiro objetivo era fundamental para criar um ambiente comercial favorável na medida em
que acabava com a diversidade de taxas, regulamentos e moedas própria do feudalismo. O
segundo e o terceiro objetivo permitiram acabar com os abusos próprios do feudalismo e
aumentar a produção, eliminando as restrições impostas pelas guildas.
A realeza contou com o apoio financeiro dos comerciantes para formar exércitos capazes de
derrotar os senhores feudais que se opusessem a formação dos estados nacionais,
paralelamente os comerciantes passaram a controlar parte da produção artesanal, fornecendo
pequenos teares aos camponeses que passaram à competir com as oficinas têxteis,
controladas pelas guildas.
A qualidade inferior dessa produção não era um problema para sua comercialização já que os
novos mercados, abertos com as descobertas marítimas, garantiam e ampliavam a demanda
por produtos de menor qualidade e baixo custo.
O crescimento das atividades comerciais a nível local, regional e intercontinental trouxe
mudanças importantes na estrutura urbana das cidades, notadamente naquelas que tinham nas
funções comerciais e portuárias sua principal atividade econômica e nas que assumiram o
papel de capital dos novos estados nacionais.

6.2 Mudanças no Tamanho das Cidades

A partir da decadência do Império Romano grande parte das cidades europeias sofreram
variações populacionais importantes acompanhadas por alterações no tamanho da área
urbanizada. Primeiramente, o perímetro diminuído diminuiu, adaptando-se à contração
populacional, para num segundo momento voltar a crescer de forma ininterrupta até a idade
moderna ao assumir as novas funções urbanas que passariam a desempenhar.
Capitais como Paris, Roma, e centros comerciais importantes como Veneza e Milão sofreram
um rápido crescimento populacional e territorial ignorando, os limites impostos pelas muralhas
de proteção, ultrapassando-as para depois voltar a construí-las adiante, sempre que se
fizessem necessárias.
Essas mudanças aconteceram em etapas, a primeira, decorrência direta da decadência do
Império, caracterizou-se pelo êxodo de grandes contingentes populacionais das cidades. Nessa
etapa que se estende do século III ao XI as cidades não só perderam população, como
diminuíram de tamanho em função da insegurança resultante do ataque de inimigos agravada,
muitas vezes, pela inexistência de muralhas de proteção, descartadas durante os dois séculos
em que vigorou a “paz romana”.
As cidades que conseguiram se fortificar, para protegerem-se dos bárbaros passaram a ocupar
uma área muito menor do que a que a anterior. Bordéus, quando da construção das muralhas,
teve a área urbana reduzida a um terço do tamanho a que chegara anteriormente e Autun,
fundada por Augusto, passou de uma cidade com 200 ha de área urbana a uma aldeia
ocupando apenas 10ha.
Em Nimes e Arles, na Provença, as arenas dos anfiteatros romanos foram totalmente ocupadas
por edificações, transformando-as em pequenas cidades medievais que usavam as paredes de
alvenaria dos antigos anfiteatros como muralhas de proteção.

“Em Nimes, o antigo anfiteatro foi transformado pelos visigodos em numa


pequena cidade, com dois mil habitantes e duas igrejas: depois de fechadas as
entradas do teatro, as grossa paredes de alvenaria serviram como baluartes. E,
embora as muralhas de Arles tivessem sido reconstruídas por Teodorico,foram
de novo arruinadas na luta entre Carlos Nartelo e os árabes: depois disso,
também o anfiteatro de Arles serviu de fortaleza, e dentro cresceu uma pequena
cidade medieval, mais congestionada que a maior parte, como ainda nos mostra
uma estampado século XVII; isso porque os prédios da quela pequena colônia
não foram destruídos até o começo do século XIX.” ( MUNFORD, 2004, p.272)

A partir do século VIII até o XI, a falta de segurança aumenta com os constantes ataques dos
vikings, excelentes marinheiros, que utilizavam os rios como vias de penetração para seus
ataques às cidades e aos camponeses, espalhando o terror por toda a Europa. Nem as
pequenas cidades e aldeias estavam mais a salvo, o que fez com que o processo de
ruralização perdesse força e a população, espalhada pelo campo ou em torno de núcleos
urbanos de menor expressão, num movimento inverso, iniciasse um movimento de retorno para
as cidades com um maior poder defensivo.

“Entretanto, a partir do século VIII até o XI as sombras se adensaram; e o antigo


período de violência e terror tornou-se pior com as invasões dos sarracenos e
dos vikings. Todos procuravam a segurança. Numa ocasião em que todo acaso
poderia ser um mal acaso, em que todo momento poderia ser o último momento,
a necessidade de proteção dominava todas as outras preocupações. O
isolamento já não garantia a segurança.‟‟ (MUNFORD, 2004, P. 273)

As cidades com melhor estrutura defensiva passaram a oferecer proteção à própria cidadela
onde se encastelava o senhor feudal, cujo poder diminuía progressivamente. As populações
das cidades em que isso acontecia começavam a contestar os desmandos e as injustiças
cometidas pelos senhores feudais.
A condição de servidão, passando de pai para filho, sobrevivia em função da proteção que os
senhores feudais davam à cidade, contratando exércitos de mercenários, construindo muralhas
e cidadelas.
Em inúmeras cidades, entretanto, os senhores feudais perderam grande parte de seu poder
devido a falta de recursos para dar essa proteção. A baixa produtividade da agricultura e a
extrema pobreza dos servos não permitia o aumento dos impostos para pagar o soldo dos
mercenários que protegiam a cidade e manter os luxos a que os senhores estavam habituados,
cada vez mais endividados junto a uma burguesia enriquecida pelo aumento das atividades
comerciais e manufatureiras, transformada em credora capaz de negociar o fim de inúmeras
regalias da classe dominante.
As cidades em que isso ocorreu, como veremos adiante, passaram a ser chamadas de cidades
livres e pela força ou pela de negociação conquistaram entre outros privilégios o direito de livrar
da condição de servidão aqueles que ali trabalhassem por um período de um ano, justificando o
antigo ditado “o ar da cidade liberta”.
Essas foram as condições que marcaram o início do segundo período de construção da cidade
medieval, entre os séculos XI e XIII, com o ressurgimento e ampliação das atividades
artesanais e comerciais, somado ao aumento da produtividade do campo devido a crescente
utilização das antigas práticas agrícolas romanas que, durante séculos, permaneceram
esquecidas nas bibliotecas dos mosteiros.
Todos esses fatores tornaram possível o rápido aumento das populações urbanas de cidades
como Paris, Veneza, e Milão que, entre outras, ultrapassaram os 100.000 habitantes no fim do
século XII, sendo que Paris iria atingir 240.000 habitantes um século mais tarde. Esse
crescimento generalizado foi acompanhado pelo surgimento de um grande número de novas
cidades, como na Alemanha que, em 300 anos, foram criadas cerca de 2.500 cidades. Como
ensina Lewis Munford; “Em poucos séculos , as cidades da Europa recapturaram grande parte
do terreno que a desintegração do Império Romano havia perdido”.

6.3 A Estrutura Urbana Medieval

As mudanças sofridas pelas cidades em busca de maior segurança não se limitaram à


construção de muralhas nem à diminuição de tamanho. Dentro da própria área urbana
ocorreram mudanças importantes. Em Roma, por exemplo, o mercado, anteriormente localizado
no Fórum foi transferido, entre os séculos VIII e XII, para a colina Capitolina, posição muito mais
defensável contra ataques.
As cidades medievais caracterizavam-se pela elevada taxa de ocupação do solo, decorrente da
necessidade de abrigar a população dentro da área protegida pelas muralhas. Como o alto
custo desse sistema defensivo inviabilizava cercar grandes áreas, o crescimento da população
dava-se pelo aumento da densidade demográfica e pela verticalização das edificações.
Outra característica urbanística das cidades medievais, principalmente aquelas que tinham na
defesa sua maior preocupação, era a acomodação das ruas e edificações à topografia, tendo
como resultado traçados viários tortuosos, repletos de becos e vielas, As ruas estreitas,
algumas dando passagem a uma só pessoa por vez, serviam tanto para desorientar o inimigo,
como para atraí-lo à emboscadas.

Fig. 51: Traçado Tortuoso

Da mesma forma que nas cidades gregas a cidade medieval preservou a escala humana assim
como um equilíbrio estratégico com o campo, cuja produção era comercializada na praça do
mercado e no comércio que, como as oficinas, localizavam-se perto dos portões da cidade.
O mosteiro, a igreja, a praça do mercado, o castelo fortificado, as oficinas dos artesãos e as
muralhas, com seus diversos portões eram alguns dos equipamentos típicos da cidade
medieval.
O ritmo de crescimento da cidade medieval, erguida à sombra do castelo feudal era lento e se
porventura a área urbanizada ultrapassasse às muralhas, ocupando inclusive o “Pomeriun”3 ,
eram construídas novas muralhas e assim, sucessivamente.

Fig. 52: Castelo Bodiam, Catedral de Colônia e Mosteiro Medieval

O traçado viário em grade ou ortogonal também era adotado, principalmente nas cidades que
exerciam funções portuárias ou de entreposto comercial, já que esse traçado, além de facilitar à
circulação das carroças carregadas de mercadorias, inspirava maior segurança aos mercadores
e visitantes.
O mesmo traçado também era encontrado nas cidades-bastiões, erguidas em locais
estratégicos para a proteção de outras cidades e seus territórios. A trama viária regular e a
disposição dos quarteirões reproduziam a organização espacial dos acampamentos militares,
de forma a facilitar a mobilização das tropas em caso de ataque.

3
O Pomerim era uma faixa que circundava as muralhas por dentro e por fora das cidades. Criada pelos romanos para
ajudar na defesa da cidade, nela era proibida construir qualquer tipo de edificações que pudessem servir de abrigo
para os inimigos em caso de ataque.
6.4 A Maior Conquistas da Cidade Medieval

As cidades medievais foram palcos de importantes modificações na relação servo / senhor, pois
nelas os burgueses, através da força ou da negociação, conseguiram diminuir os privilégios do
senhor feudal, inclusive libertar da própria condição de servidão todos aqueles que, durante um
ano, trabalhassem numa Cidade Livre.
Negociando ou lutando contra o poder do senhor feudal, os burgueses conquistaram inúmeras
vantagens políticas, econômicas e sociais, fazendo com que as cidades cumprissem um papel
duplo perante a história, pois tendo surgido em decorrência da falta de segurança, e sob a
proteção do senhor feudal, tornaram-se com o empoderamento de seus cidadãos, responsáveis
pelo enfraquecimento do feudalismo, contribuindo para a formação dos primeiros estados
nacionais.
Com o enfraquecimento do poder feudal as cidades passaram à regular-se por normas próprias,
muitas delas criadas por associações profissionais, as Guildas, dotadas de autodisciplina e
auto-regulação que controlavam a maior parte das atividades econômicas desenvolvidas nas
cidades.

6.5 O Caso de Veneza

Fig. 53: Imagem aérea de Veneza, Itália


Enquanto o desenvolvimento de Viena, Gênova, Paris e Florença deu origem à cidades
medievais típicas, Veneza constituiu uma notável exceção.

A diferença de Veneza não se restringia aos seus canais no lugar de ruas, criados devido à
singularidade do sítio onde foi implantada, mas também de que, inversamente às outras
cidades, sua atividade comercial não foi interrompida em nenhum momento, mesmo durante a
dominação do Mediterrâneo pelos árabes.

Fig. 54: Canais de Veneza, Itália

Na realidade a cidade, ainda hoje preserva, ainda que de forma singular, as características
típicas de uma cidade medieval, inclusive as muralhas eficientemente substituídas pelas águas
do Adriático, cujo fundo lodoso e a pequena profundidade dificultavam qualquer tentativa de
invasão.
Veneza possuía seis unidades de vizinhança, as paróquias, onde residiam os magistrados.
Com essa divisão evitava-se a concentração da classe dominante no centro da cidade, ainda
que esse continuasse a ser o palco dos festejos e feiras que mobilizavam toda a cidade.
Veneza tornou-se um dos primeiros exemplos de adoção de um zoneamento funcional como
instrumento de controle urbanístico, localizando o cemitério da cidade na Ilha de Tercello, a
área industrial e a produção de pólvora na ilha do Arsenal, a produção de vidro na ilha de
Murano e, finalmente, já no século XIX, as atividades recreativas na ilha do Lido.
Os canais de Veneza, por outro lado, constituíam um exemplo magnífico de um sistema viário
hierarquizado, contribuindo inclusive para as idéias propostas por Colin Buchanan (1907-2001)
ao escrever o clássico Traffic in Towns, em 1963.
6.6 A Cidade Celestial

“A Roma cristã encontrou uma nova capital, a Cidade Celestial; e um novo laço
cívico, a comunhão dos Santos. Ali estava o protótipo invisível da nova cidade”.
(MUNFORD, 2004, p. 267)

A enorme importância da igreja na vida medieval fez com que Lewis Munford dedicasse, no
melhor do seu estilo, no início do capítulo X do livro a Cidade na História à “cidade celestial”,
que teria surgido das cinzas do império romano:

“No quinto século, o sangue vital se esvaía das veias abertas de Roma e as
mãos que outrora tinham agarrado um império já não podiam manter
firmemente segura qulquer parte dele. Quando os dedos se relaxaram, as
partes tombaram. Entretanto a agonia foi um processo lento e, no meio da
decadência urbana, brotava uma nova vida, como as sementes brotam no lixo,
num monturo em fermentação. A nova visão religiosa que tornava possível essa
vida dava um valor positivo a todas as ligações e derrotas que os povos
romanizados tinham experimentado: convertia a doença física em saúde
espiritual, a pressão da fome no ato voluntário do jejum, a perda de bens
mundanos em maiores perspectivas de salvação celestial”. (MUNFORD, 2004,
p. 267)

Na “Cidade Celestial” o mosteiro tornou-se uma nova cidadela e nele, como afirma Munford, “as
finalidades ideais da cidade medieval foram postas em ordem”:

“Também foi ali que o valor prático da restrição, da ordem, da regularidade, da


honestidade e da disciplina interior foi estabelecido, antes que tais qualidades
fossem passadas à cidade medieval e ao capitalismo pós-medieval, sob a
forma de invenções e práticas de negócios: o relógio, o livro de contabilidade, o
dia ordenado”. (MUNFORD, 2004, p. 271)

Fig. 55: Mosteiro em Mont Saint Michel, Normandia, França


O mosteiro, ao preservar os livros da literatura clássica, escritos em papiros, copiando-os
pacientemente em pergaminhos, muito mais resistentes, foi certamente a instituição que
estabeleceu a ponte principal entre o mundo clássico e o medieval, permitindo que grande parte
da cultura clássica chegasse até nós.

6.6 A Contribuição do Período Medieval à Arquitetura

A partir do século IV a religião católica torna-se hegemônica na Europa, conferindo um grande


poder à Roma, sede do papado. A doutrina cristã prega o abandono da arte clássica, tida como
pagã por representar valores tidos como pagãos. A condenação da arte clássica teve como
consequência a destruição de templos e antigos prédios públicos construídos pelos gregos e
romanos, ou o seu reaproveitamento para o exercício de outras atividades. Ao longo desse
processo, lentamente, um novo estilo começou a surgir, impregnado de sentimento religioso e
obediente aos dogmas da Igreja.

Fig. 56: Catedral de São Marcos, Veneza, Itália

No oriente, entretanto, o cristianismo que tinha como capital espiritual Bizâncio, criou uma
estética própria, que ficou conhecida como Estilo Bizantino.
6.6.1- Arquitetura românica (1000 – 1100)

O estilo românico, forjado na Alta Idade Média, dominou a arte cristã do ocidente europeu,
enfrentando a influência Greco – Romana para tornar-se a expressão artística da presença dos
mouros em território europeu, das cruzadas, das ordens religiosas, da luta contra o poder papal
e da disputa entre reis e barões feudais.

Nessa época somente a igreja cristã e as ordens religiosas possuíam fundos suficientes para
financiar a construção de capelas, igrejas e mosteiros.

“Expressão de um tempo belicoso e inseguro, pobre em atividades


comerciais e mercantis, os edifícios da época do românico, além de
toscos, assemelham-se à fortalezas. Era uma estética da pedra bruta, de
paredes expostas quase sem reboco, com um diminuto número de
janelas e interiores geralmente sombrios”.
(http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/2005/07/14/001.htm
07/10/2010)

O estilo românico adotou muitos elementos dos estilos que o antecederam, principalmente no
caso da arquitetura religiosa. A planta baixa das igrejas românicas, por exemplo, segue o risco
da basílica cristã primitiva, dominada pela horizontalidade, entretanto, para evitar os incêndios
os telhados de madeira, foram substituídos pelas abóbodas de origem bizantina que exigiam
paredes espessas para sustentá-la.

Os materiais mais empregados nas edificações românicas eram a pedra e o tijolo e dentre as
principais características plásticas do estilo podemos citar: sobriedade, resistência, repetição
de elementos construtivos (janelas e colunas geminadas), poucas janelas fazendo com que os
interiores fossem pesados e escuros, grande espessura das paredes, consolidadas por
contrafortes ou gigantes e a consolidação dos arcos por meio de arquivoltas.
Fig 57 : Igreja em Tolouse, França

6.6.2 Arquitetura Gótica

O estilo gótico estendeu-se por 400 anos (1.100 até 1.500) e celebrizou-se, juntamente com o
estilo Românico, por terem sido adotados nas magníficas catedrais européias, que se
multiplicaram por toda a Europa Ocidental devido ao poder da Igreja Católica e da religião
cristã.

A disseminação desses templos resultou também da competição entre as cidades enriquecidas


pela “revolução comercial”, transformação econômica que deu seus primeiros passos ao redor
dos séculos XI e XII tendo como conseqüência a ressurreição da vida urbana. Cada cidade da
Europa Ocidental tratou de erguer uma catedral cuja torre fosse a mais alta possível, para
melhor atrair o olhar protetor de Deus e para celebrar a superioridade e excelência das suas
corporações de ofícios em comparação com as das cidades vizinhas.

O gótico, originalmente, foi um estilo marcadamente francês, penetrando na Alemanha


posteriormente, enquanto a Itália manteve-se fiel ao antigo estilo clássico.

As principais características da arquitetura gótica foram o verticalismo, a invenção do arco


quebrado ou ogival e da abóbada de arcos cruzados. Notabilizou-se ainda por empregar
magníficos vitrais nas igrejas para ensinar religião a uma população, em sua grande maioria,
analfabeta.
Fig 58 : Catedral de Notredame, Paris, França

6.7 A Cidade Barroca ou Renascentista .

O fim do feudalismo seguido pela formação dos Estados Nacionais ocorreu por volta do
século XII, com o início de um novo sistema econômico, social e político que se
consolidou durante os séculos XV a XVII, marcado pelo início do capitalismo em sua
forma mercantilista. A atividade comercial, função fundamentalmente urbana, torna-se o
principal motor da economia a frente das atividades agrícolas e artesanais.

O poder político dos senhores feudais, em permanente conflito, enfraquece passando a


ser exercido tanto pela Igreja que consegue manter a influência adquirida na alta idade
média, como pelas casas reais que se aliam à burguesia, enriquecida pela expansão do
comércio e aos camponeses, na formação dos Estados Nacionais.

Nesse novo contexto, em que o trabalho assalariado substituiu as relações de servidão,


a cidade renascentista ou barroca começa a tomar forma, com as capitais, sedes da
realeza e das cortes, crescendo mais que as demais cidades suplantando, inclusive,
núcleos urbanos com importantes atividades comerciais.

Pode-se dizer que não existiu propriamente uma “cidade da renascença” e sim que
determinadas cidades, durante esse importante período da história sofreram
transformações estruturais.
No século XIX o Renascimento era tido como o fim do longo período de trevas que
caracterizava a Idade Média tinham dado lugar a uma valorização e reinterpretação da
antiguidade clássica, notadamente da cultura Greco-Romana.

A importância das conquistas culturais e artísticas da alta e baixa idade média só veio a
ser reconhecida um século depois.

6.7.1 Transformações na Estrutura Urbana

A estrutura urbana de boa parte das cidades medievais, até o século XVI, adotava o
partido radiocêntrico. O lento crescimento da população urbana durante séculos não
exigia a expansão da área urbana e, quando esta se mostrava imprescindível, se dava
mediante a incorporação das edificações construídas fora do perímetro das muralhas à
área urbana protegida, através da construção de sucessivas muralhas defensivas.

É bem verdade que esses núcleos raramente sofriam expansões de mais de 800 metros
a partir do centro devido ao alto custo de construção das muralhas, alem do medo de
que o crescimento excessivo pudesse fomentar a cobiça dos inimigos.

Outro fator que desestimulava a expansão urbana era a dificuldade de obtenção de


alimentos e de água para uma população numerosa demais, numa época em que a falta
de segurança das estradas e o isolamento das cidades reduzira, drasticamente, a
atividade comercial e os excedentes da produção rural, decorrente do regime de
servidão.

O crescimento das cidades também era contido e regulado pelas ordenações municipais
e, de forma indireta, pelas Guildas que controlavam a maior parte das atividades
econômicas determinando aqueles que podiam morar na cidade ocupando-se de
atividades produtivas.

A partir do século XVI, o domínio do uso da pólvora e da fabricação de canhões mais


potentes que já não explodiam ao serem disparados, provocou uma revolução nas
técnicas militares, ampliando o poder de fogo dos exércitos.

As muralhas, principal meio de defesa das cidades, até então construídas com tijolos,
tiveram que se modernizar para poder conter os avanços da artilharia, adotando um
novo desenho em estrela além de utilizar pedras como principal material de construção.
O desenho em estrela, também utilizado nas fortalezas, dificultava o impacto direto dos
projeteis, além de dividir os atacantes evitando ataques em bloco.

O alto custo das muralhas tornou-se um inibidor do crescimento horizontal das cidades,
cuja expansão passou a ser feita através da verticalização de suas edificações,
aumentando a densidade populacional já elevada da cidade medieval.

Da mesma forma como ocorreram com as cidades helenísticas e romanas, as da


renascença encontraram nas normas hipodâmicas, com seus eixos viários longos e
amplas perspectivas uma orientação segura para os seus traçados.

Leon Battista Alberti (1404-1472) foi o tratadista mais conhecido dessa época,
estabelecendo os fundamentos teóricos da arquitetura e do urbanismo renascentista em
seu tratado “De re aedificatoria” (1485), considerado o mais importante tratado de
arquitetura após a obra “Dez Livros sobre a Arquitetura”, escrita pelo arquiteto romano
Vitrúvio, no terceiro ou segundo século antes de nossa era.

Entre os séculos XVI e XVIII as estruturas urbanas renascentistas chegaram a sua


forma definitiva, num contexto em que imperavam uma nova base econômica – o
capitalismo mercantilista, uma nova organização política – o Estado Nacional e,
finalmente uma nova ideologia mecanicista.

Pela primeira vez, em muitos séculos, a religião, o comércio e a política passaram a


seguir caminhos separados, o localismo medieval deu lugar ao centralismo barroco e o
absolutismo divino foi substituído pelo absolutismo do Estado Nacional, concentrado nas
mãos do soberano.

Essas mudanças, no plano físico, se dão através da remodelação das estruturas


urbanas, seja pela obsolescência de elementos do passado, como as muralhas e o
aparato defensivo, seja pela pelas mudanças de uso ocorridas nas edificações de
complexos monásticos “expropriados ou obsoletos”(ZUCONI,2009,p 30).

„‟Arquivos e depósitos, quartéis e sedes de departamentos militares,


penitenciárias e asilos complementarão a longa lista de atribuições
não religiosas que ocuparão os velhos monastérios e que irão
substituir a função original. ”(ZUCONI,2009,p 30).
Com a descoberta de uma série de escritos e monumentos produzidos na era clássica, o
pensamento e a arte do passado passaram a ser novamente valorizados, principalmente
no que se refere à filosofia grega e à arquitetura greco-romana, recuperada por
tratadistas do porte de Leon Batista Alberti.

A Renascença foi um período de grandes transformações econômicas, sociais e


culturais a ponto de ser considerado o início da idade moderna, criando uma concepção
do homem que perdura até hoje.

Os símbolos da nova ordem barroca foram a rua larga e reta, a ininterrupta linha
horizontal, desenhada pelas cumieiras dos telhados, a utilização do arco redondo e a
repetição de elementos uniformes, buscando uma melhor fixação visual desses
elementos.

O desenho geometrizado da cidade barroca bem como os projetos de renovação urbana


passaram a ter na avenida seu principal elemento de transformação. As vizinhanças e
os bairros, inversamente, deixaram de ser preponderantes na constituição da nova
cidade. Segundo MUNFORD: “O espaço vital do plano barroco, era tratado como uma
sobra, depois que a avenida determinava a forma do lote de moradia e a profundidade
do quarteirão”.

A organização das funções urbanas não mais moldava a nova cidade que passava a
obedecer às vontades de governantes despóticos que valorizavam rebuscadas formas
geométricas, muitas vezes incompatíveis com a topografia do sítio urbano e com os
valores culturais e paisagísticos existentes e assim todos os recursos urbanísticos eram
utilizados para realçar o poder dos governantes que, a frente de seus exércitos
desfilavam pelas largas avenidas recém abertas.
TÓPICOS PARA DISCUSSÃO

1 Os movimentos de redução e expansão da área urbanizada que ocorreram nas


cidades durante a idade média podem ser o ponto de partida para a discussão de temas
como crescimento horizontal e vertical, densidades demográficas e taxas de ocupação e
sua relação com a infraestrutura e com a qualidade de vida.

2 Ao falarmos sobre o papel emancipador das cidades livres sem relação à servidão
podemos discutir o papel da cidade como lócus privilegiado das transformações
políticas, sociais e culturais.

3 Ao falarmos da qualidade do espaço urbano e da intrincada estrutura viária das


cidades medievais que tanto encanta os urbanistas contemporâneos e a todos que tem
a oportunidade de conhecê-las podemos discutir a qualidade espacial das cidades
contemporâneas e o que podemos aprender com elas.

Você também pode gostar