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(2022-2023)
Programa
I – Liberalismo
1 – Constitucionalismo
2 – Romantismo
3 – Anticlericalismo
II – Regeneração
1 – Ciência e Felicidade
2 – Geração de 70
3 – Positivismo
III – Decadência
1 – Camões
2 – Republicanismo
3 – Pessimismo
Pág.
– O Panorama 8
– Bibliografia 27
Constituição Politica da Monarchia Portugueza,
decretada pelas Cortes Geraes Extraordinarias e Constituintes,
reunidas em Lisboa no anno de 1821
TITULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAES DOS PORTUGUEZES
CAPÍTULO ÚNICO
ARTIGO 1
A Constituição politica da Nação portugueza tem por objecto manter
a liberdade, segurança, e propriedade de todos os Portuguezes.
2
A liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não
manda, nem a deixar de fazer o que ella não prohibe. A conservação
desta liberdade depende da exacta observancia das leis.
3
A segurança pessoal consiste na protecção, que o Governo deve dar
a todos, para poderem conservar os seus direitos pessoaes.
4
Ninguém deve ser preso sem culpa formada, salvo nos casos e pela
maneira declarada no artigo 203 e seguintes. A lei designará as
penas, com que devem ser castigados, não só o Juiz que ordenar a
prisão arbitraria e os officiaes que a executarem, mas tãobem a
pessoa que a tiver requerido.
5
A casa de todo o Portuguez é para elle um asylo. Nenhum official
publico poderá entrar nella sem ordem escrita da competente
Autoridade, salvo nos casos e pelo modo que a lei determinar.
6
A propriedade é um direito sagrado e inviolavel, que tem qualquer
Portuguez, de dispôr á sua vontade de todos os seus bens, segundo
as leis. Quando por alguma razão de necessidade publica e urgente,
for preciso que elle seja privado deste direito, será primeiramente
indemnizado, na forma que as leis estabelecerem.
7
A livre communicação dos pensamentos é um dos mais preciosos
direitos do homem. Todo o Portuguez pode conseguintemente, sem
dependencia de censura previa, manifestar suas opiniões em
qualquer materia, comtanto que haja de responder pelo abuso desta
liberdade nos casos e pela forma que a lei determinar.
9
A lei é igual para todos. Não se devem portanto tolerar privilegios do
foro nas causas civeis ou crimes, nem commissões especiaes. Esta
disposição não comprehende as causas, que pela sua natureza
pertencerem a juizos particulares na conformidade das leis.
11
Toda a pena deve ser proporcionada ao delicto, e nenhuma passará
da pessoa do delinquente. Fica abolida a tortura, a confiscação de
bens, a infamia, os açoites, o baraço e pregão, a marca de ferro
quente, e todas as mais penas crueis ou infamantes.
12
Todos os Portugueses podem ser admitidos aos cargos publicos, sem
outra distincção que não seja a dos seus talentos e das suas virtudes.
18
O segredo das cartas é inviolavel. A Administração do correio fica
rigorosamente responsavel por qualquer infracção deste artigo.
19
Todo o Portuguez deve ser justo. Os seus principaes deveres são
venerar a Religião; amar a patria; defendella com as armas, quando
fôr chamado pela lei; obedecer á Constituição e ás leis; respeitar as
Autoridades publicas; e contribuir para as despesas do Estado.
Título II
DA NAÇÃO PORTUGUEZA, E SEU TERRITORIO, RELIGIÃO,
GOVERNO E DYNASTIA
CAPÍTULO ÚNICO
ARTIGO 20
A Nação portuguesa é a união de todos os Portuguezes de ambos os
hemisferios.
O seu território forma o Reino-Unido de Portugal Brasil e Algarves, e
compreende:
I. Na Europa, o reino de Portugal, que se compoem das provincias do
Minho, Trás-os-Montes, Beira, Extremadura, AlemTejo, e reino do
Algarve, e das Ilhas Adjacentes, Madeira, Porto Santo, e Açores:
25
A Religião da Nação portugueza é a catholica apostolica romana.
Permitte-se comtudo aos extrangeiros o exercicio particular de seus
respectivos cultos.
29
O Governo da Nação portugueza é a monarchia constitucional
hereditaria, com leis fundamentaes que regulem o exercicio dos tres
poderes politicos.
30
Estes poderes são legislativo, executivo, e judicial. O primeiro reside
nas Cortes com dependencia da sancção do Rei. O segundo está no
Rei e nos Secretarios d’Estado, que o exercitão debaixo da autoridade
do mesmo Rei. O terceiro está nos Juizes.
Cada um destes poderes é de tal maneira independente, que um não
poderá arrogar a si as attribuições do outro.
31
A dynastia reinante é da serenissima casa de Bragança. O nosso Rei
actual é o senhor D. João VI.
Archivo Popular (volume I - 1837)
TINTA DE ESCREVER
Muitas são as receitas para fazer tinta. Entre ellas as seguintes merecem
a preferencia. Infunda-se em 1 libra e meia de agua da chuva ou de rio pura, 3
onças de galhas de boa qualidade peladas e cortadas em pedacinhos; exponha-
se por dois dias ao sol, ajunte-se 2 onças de vitriolo de boa côr e pulverisado;
misture-se tudo mexendo com hum páozinho de figueira, e exponha-se de novo
por dois dias ao sol; ajunte-se entào 1 onça de gomma arabia, clara e luzidia em
pó, e 1 onça de casca de roman. Ferva-se tudo a fogo brando, e engarrafe-se.
Outra - Huma libra de nozes de galha, 6 onças de caparrosa verde, 6
onças de gomma arabia e 4 canadas de cerveja ou de agua. Pisão-se as galhas
em hum gral, infundem-se рог vinte e quatro horas em agua quente sem ferver,
e ajunta-se ao mesmo tempo a gomma arabia moida que se dissolve, e
finallmente ajunta-se a caparrosa ou vitriolo verde pulverisado. Côa-se por huma
peneira de crina.
Outra que se faz em huma hora - Tome-se 1 onça de vitriolo romano,
outro tanto de gomma arabia, e 1 onça e meia de nozes de galha pisadas; deita-
se tudo em 10 onças de vinho branco ou de vinagre. Dentro de huma hora pode
empregar-se. Convém aquecer o liquido hum pouco ao lume.
Nº 26 - Sabbado, 23 de Setembro
ANEDOCTAS
Hum ministro de bastante influencia na corte dizia a hum moço abbade,
que lhe dirigía continuos elogios: "Vós os pretendentes, em quanto tendes que
pedir, sois mui prodigos de louvores; mas em vos apanhando servidos, só vos
lembrais de nós para nos desacreditar. - Oh! não receeis que comigo tal
aconteça: eu sempre tenho que pedir.”
Huma senhora, que nao passava por mui bem casada, perguntou a
huma sua amiga de que meios se servia ella para viver tão bem com seu
marido. - “Fazendo tudo o que lhe agrada a elle, lhe respondeo a amiga, e
soffrendo com paciencia o que me nao agrada a mim.”
Cap. III
Não: plantae batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra,
macadamisae estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de
Icaro, para andar a qual mais depressa, éstas horas contadas de uma vida
toda material, massuda e grossa como tendes feito ésta que Deus nos deu
tam differente do que a hoje vivemos. Andae, ganha-pães, andae; reduzi
tudo a cifras, todas as considerações d'este mundo a equações de interêsse
corporal, comprae, vendei, agiotae. No fim de tudo isto, o que lucrou a
especie humana? Que ha mais umas poucas de duzias de homens riccos. E
eu pergunto aos economistas-politicos, aos moralistas, se ja calcularam o
número de individuos que é forçoso condemnar á miseria, ao trabalho
desproporcionado, á desmoralização, á infamia, á ignorancia crapulosa, á
desgraça invencivel, á penuria absoluta, para produzir um ricco? Que lh'o
digam no Parlamento inglez, onde, depois de tantas commissões de
inquérito, ja deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender
ao diabo, o número de corpos que se tem de intregar antes do tempo ao
cemiterio para fazer um tecelão ricco e fidalgo como Sir Robert Peel, um
mineiro, um banqueiro, um grangeeiro - seja o que for: cada homem ricco,
abastado, custa centos de infelizes, de miseraveis.
Logo a nação mais feliz não é a mais ricca.
Cap. IX
Tenho pena de nunca ter visto o Junot nem o Maneta, as duas
primeiras notabilidades que ouvi aclamar como taes e cujos nomes
conhecí... Ingano-me: conheci primeiro o nome de Bonaparte. E lembra-me
muito bem que nunca me persuadi que elle fosse o monstro disforme e
horroroso que nos pintavam frades e velhas n'aquelle tempo. Imaginei
sempre que, para excitar tantos odios e malquerenças, era necessario que
fosse um bem grande homem.
Desde pequeno que fui jacobino; ja se ve: e de pequeno me custou
caro. Levei bons puchões de orelhas de meu pae por comprar na feira de
San'Lazaro, no Porto, em vez das gaitinhas ou dos registos de sanctos, ou
das outras bogigangas que os mais rapazes compravam... não imaginam o
quê... um retrato de Bonaparte.
Foi 'inguiço' - diria uma senhora do meu conhecimento que accredita
n'elles: foi inguiço que aínda se não desfez e que toda a vida me tem
perseguido.
Quem me diria quando, por esse primeiro peccado politico da minha
infancia, por esse primeiro tractamento duro, e - perdoe-me a respeitada
memoria de meu sancto pae! - injustissimo, que me trouxe o mero instincto
das ideas liberaes, quem me diria que eu havia de ser perseguido por ellas
toda a vida! que apenas sahido da puberdade havia de ir a essa mesma
França, á patria d'esses homens e d'essas ideas com quem a minha
natureza sympathysava sem saber porquê, buscar asylo e guarida?
Cap. XIII
Frades... frades... Eu não gósto de frades. Como nós os vimos ainda
os d'este seculo, como nós os intendêmos hoje, não gósto d'elles, não os
quero para nada, moral e socialmente fallando.
No ponto de vista artistico porêm o frade faz muita falta.
Nas cidades, aquellas figuras graves e sérias com os seus habitos
tallares, quasi todos picturescos e alguns elegantes, atravessando as
multidões de macacos e bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de
alcatruz que distinguem a peralvilha raça europea - cortavam a monotonia
do ridiculo e davam physionomia á população.
Nos campos o effeito era ainda muito maior: elles characterizavam a
payzagem, poetisavam a situação mais prosaica de monte ou de valle; e tam
necessarias, tam obrigadas figuras eram em muitos d'esses quadros, que
sem ellas o painel não é ja o mesmo.
Alêm d'isso o convento no povoado e o mosteiro no êrmo animavam,
amenizavam, davam alma e grandeza a tudo: elles protegiam as árvores,
sanctificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solemnidade.
O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os
substituiram.
[…]
Porque o barão é o mais desgracioso e estupido animal da creação.
[…]
O barão é pois usurariamente revolucionario, e revolucionariamente
usurario.
Por isso é zebrado de riscas monarchico-democraticas por todo o
pêllo.
Este é o barão verdadeiro e puro-sangue: o que não tem estes
characteres é especie differente, de que aqui se não tracta.
Ora, sem sahir dos barões e tornando aos frades, eu digo: que nem
elles comprehenderam o nosso seculo nem nós os comprehendémos a elles.
[…]
Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não comprehender, a
nós, ao nosso seculo, ás nossas inspirações e aspirações: com o que
falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma
necessidade, uma coisa infallivel e sem remedio. Assustou-se com a
liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao
despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro
modo lhe não servia nem o servia.
Nós tambem errámos em não intender o desculpavel êrro do frade,
em lhe não dar outra direcção social; e evitar assim os barões, que é muito
mais damninho bicho e mais roedor.
[…]
Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruinas,
os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos
frades - não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser.
António Feliciano de Castilho, Felicidade pela Agricultura, 1849
Advertencias
2
Com estas reflexões não pretendemos desapprovar a subordinação das mulheres a seus maridos
nos termos em que a prescrevem os nossos livros sagrados; só não queremos que esta
dependencia se converta em escravidão; que a legitima auctoridade marital degenere em tyrannia.
Eva, diz um Padre da Egreja commentando o Genesis, não foi formada da cabeça de Adão, para
que não tivesse a presumpção de o-querer dominar; nem tão pouco foi formada dos pés do
homem, para que por elle não fosse considerada como serva; foi-o de uma costella, a íim de que
se entendesse, que era destinada a ser sua companheira.
Carthagineses e Gallos se-estabeleceu, que, onde de parte a parte
recrescessem rasões de queixa fossem arbitros, por Carthago os seus
magistrados, pelas Gallias as suas mulheres?
“Mas” vos-segrederão alguns com maligno sorriso “conhecem ellas
o grande jogo da politica? fazem idea do que seja a ordem publica? com
quem o aprendeu a sua roca, para lho-ensinar?” Não, homens honrados,
ellas não sabem a politica; e eis-ahi uma das grandes vantagens que nos
levam para eleitoras; mas a ordem publica, se a não sabem, adivinhal-a-
hão, que para isso entre seus filhos e domesticos são rainhas de
pequeninos reinos: essa roca, alvo do epigramma ingrato e insolente, é o
seu sceptro; e póde ser, que ácerca da felicidade commum da aldea, da
freguezia, e da provincia, lhes-haja ella dito muito mais nas caladas dos
serões d’inverno, que á maior parte dos nossos eleitores cortesãos a
lampada parisiense entre os baralhos de cartas e os montes d’oiro. Mas
concedamos-lhes, que nossas esposas, nossas mães, e nossas filhas,
nunca jámais até agora pensaram sobre os negocios do Estado, como vos
elles dizem: por isso mesmo, por isso mesmo, lhes-deveis restituir mais
depressa o seu usurpado e imprescriptivel direito de votação; porque essa
indifferença, se ‘nellas existe, é mais uma calamidade; pois são as
educadoras da geração, que nos-ha-de succeder. Concedamos ainda
mais, que o precioso affecto da liberdade é; n’ellas quasi nullo; de quem é
a culpa? d'ellas? não; mas de nós outros, que a poder de escravidão lho-
adormentámos. Restitui ás Mulheres o seu quinhão legitimo de liberdade;
e vereis como ella se-consolida sobre fundamentos d’amor, mais que
duplicados.
Que miserrima contradicção é esta, que onde para a herança da
coroa a lei salica não governa, onde á mulher se-reconhece aptidão para o
cargo supremo do Estado, se-lhe-denegue para votar como cidadan em
mandatarios dos communs interesses!
De uma coisa podeis vós estar certos, ó deputados, e é; que as
eleições, em que ellas entrassem, por menos acertadas que a sua
inexperiencia as-produzisse, não dariam (porque era impossivel) mais
vergonhosos resultados, que todas quantas á sua revelia havemos feito, e
que para vergonha nossa lá ficam registadas na historia.
Oh! se o humilde Portugal estava ainda guardado para dar do fundo
do seu abismo tão altas lições, tão esplendidos exemplos á Europa e ao
Mundo!... uma Representação Nacional, genuina, e insofismada!... um
Clero sabio, virtuoso, paternal!... a Mulher investida na plenitude dos seus
destinos sociaes!...
No dia, em que a patria cingisse por suas mãos trez coroas tão
magnificas, morreriamos felizes. Teriamos vivido uma eternidade de
bemaventurança.
Dezembro de 1848.
Código Civil Português (1867)
Art. 7.º:
A lei civil é igual para todos, não faz distinção de pessoa nem de sexo, salvo os
casos expressamente enumerados.
Art. 22:
Perde a qualidade de cidadão portuguez:
4.º A mulher portugueza que casa com estrangeiro, salvo se não for por esse
facto naturalisada pela lei do paiz de seu marido. Dissolvido porém o matrimonio,
póde recuperar a sua antiga qualidade de portugueza, cumprindo com o disposto
na 2.ª parte do n.º 1.º deste artigo.
Art. 138:
As mães participam do poder paternal, e devem ser ouvidas em tudo o que diz
respeito aos interesses dos filhos; mas é ao pae que especialmente compete
durante o matrimonio, como chefe da familia, dirigir, representar e defender seus
filhos menores, tanto em juizo, como fóra delle.
Art. 159:
O pae póde nomear em seu testamento um ou mais conselheiros, que dirijam e
aconselhem a mãe viuva em certos casos, ou em todos aquelles em que o bem
dos filhos o exigir.
Art. 1185:
Ao marido compete especialmente a obrigação de defender a pessoa e os bens
da mulher e a esta a obrigação de prestar obediência ao marido.
Art. 1187:
A mulher auctora não póde publicar os seus escriptos sem o consentimento do
marido; mas póde recorrer á auctoridade judicial em caso de injusta recusa delle.
Art. 1192:
A mulher casada não póde estar em juizo sem auctorisação do maridos, excepto:
1.º Nas causas crime em que seja ré;
2.º Em quaesquer pleitos contra o marido;
3.º Nos actos, que tenham unicamente por objecto a conservação, ou segurança
dos seus direitos proprios e exclusivos;
4.º Nos casos em que tenha de exercer, relativamente a seus filhos legitimos, ou
aos naturaes, que tivessem de outrem, os direitos e deveres inherentes ao poder
paternal.
Art. 1966:
Não podem ser testemunhas em testamentos:
1.º Os estrangeiros;
2.º As mulheres;
3.º Os que não estiverem no seu juizo;
4.º Os menores não emancipados.
Antero de Quental
“Causas da decadencia dos povos peninsulares nos ultimos tres seculos”
(2.ª Sessão das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, 27-5-1871)
Meus Senhores:
A decadencia dos povos da Peninsula nos tres ultimos seculos é um
dos factos mais incontestaveis, mais evidentes da nossa historia: pode até
dizer-se que essa decadencia, seguindo-se quasi sem transição a um periodo
de força gloriosa e de rica originalidade, é o unico grande facto evidente e
incontestavel que n’essa historia apparece aos olhos do historiador philosopho.
Como peninsular, sinto profundamente ter de affirmar, n’uma assemblea de
peninsulares, esta desalentadora evidencia. Mas, se não reconhecermos e
confessarmos francamente os nossos erros passados, como poderemos
aspirar a uma emenda sincera e definitiva? O pecador humilha-se diante do
seu Deos, n’um sentido acto de contrição, e só assim é perdoado. Façamos
nós tambem, diante do espirito de verdade, o acto de contrição pelos nossos
pecados historicos, por que só assim nos poderemos emendar e regenerar.
[…]
Meus Senhores: a Peninsula, durante os seculos 17, 18 e 19;
apresenta-nos um quadro de abatimento e insignificancia, tanto mais sensivel
quanto contrasta dolorosamente com a grandeza, a importancia e a
originalidade do papel que desempenhamos no primeiro periodo da
Renascença, durante toda a Idade Media, e ainda nos ultimos seculos -da
Antiguidade. […]
Taes temos sido nos ultimos tres seculos: sem vida, sem liberdade,
sem riqueza, sem sciencia, sem invenção, sem costumes. Erguemo-nos hoje a
custo, hespanhoes e portuguezes, d’esse túmulo onde os nossos grandes erros
nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos
embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo
de que regiões lúgubres e mortaes chegámos ressuscitados! Quaes as causas
d’essa decadencia, tão visivel, tão universal, e geralmente tão pouco
explicada? Examinemos os phenomenos, que se deram na Peninsula durante
o decurso do seculo 16.º, periodo de transição entre a Idade-Media e os tempos
modernos, e em que apparecem os germens, bons e maus, que mais tarde,
desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu
verdadeiro caracter. Se esses phenomenos forem novos, universaes, se
abrangerem todas as espheras da actividade nacional, desde a religião até á
industria, ligando-se assim intimamente ao que ha de mais vital nos
povos - estarei auctorisado a empregar o argumento (n’este caso,
rigorosamente logico) post hoc, ergo propter hoc, e a concluir que é n’esses
novos phenomenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadencia
da Peninsula.
Ora esses phenomenos capitaes são tres, e de tres especies: um
moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do
Catholicismo, pelo concilio de Trento. O segundo, o estabelecimento do
Absolutismo, pela ruina das liberdades locaes. O terceiro, o desenvolvimento
das Conquistas longiquas. Estes phenomenos assim agrupados,
comprehendendo os tres grandes aspectos da vida social, o pensamento, a
politica e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal
revolução se operou, durante o século 16.º, nas sociedades peninsulares. Essa
revolução foi funesta, funestissima. Se fosse necessária uma contraprova,
bastava considerarmos um facto contemporaneo muito simples: esses tres
phenomenos eram exactamente o opposto dos tres factos capitaes, que se
davam nas nações que lá fora cresciam, se moralisavam, se faziam
intelligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilisação. Aquelles
tres factos civilisadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou
pela Philosophia: a elevação da classe media, instrumento do progresso nas
sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a
industria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar ás
nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho á força, e o
commercio á guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, appelando para o
exame e a consciencia individual, é rigorosamente o opposto do Catholicismo
do concilio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um
crime contra Deos: a classe media, impondo aos reis os seus interesses, e
muitas vezes o seu espirito, é o opposto do Absolutismo, esteiado na
aristocracia e só em proveito d’ella governando: a industria, finalmente, é o
opposto do Espirito de conquista, antipathico ao trabalho e ao commercio.
Assim, em quanto as outras nações subiam, nós baixavamos. Subiam
ellas pelas virtudes modernas; nós desciamos pelos vicios antigos,
concentrados, levados ao summo grau de desenvolvimento e applicação.
Baixavamos pela industria, pela politica. Baixavamos, sobre tudo, pela religião.
Da decadencia moral é esta a causa culminante! O Catholicismo do
concilio de Trento não inaugurou certamente no mundo o despotismo religioso:
mas organisou-o d’uma maneira completa, poderosa, formidavel, e até então
desconhecida. N’este sentido, póde dizer-se que o Catholicismo, na sua forma
definitiva, immobilizado e intolerante, data do seculo 16.º. As tendencias,
porém, para esse estado vinham já de longe; nem a Reforma significa outra
coisa senão o protesto do sentimento christão, livre e independente, contra
essas tendencias auctoritarias e formalisticas. […] É necessario, com effeito,
estabelecermos cuidadosamente uma rigorosa distincção entre christianismo e
catholicismo, sem o que nada comprehenderemos das evoluções historicas da
religião christã. Se não ha christianismo fóra do gremio catholico (como
asseveram os theologos, mas como não pode nem quer aceitar a razão, a
equidade e a critica), n’esse caso teremos de recusar o titulo de christãos aos
lutheranos, e a todas as seitas saidas do movimento protestante, em quem
todavia vive bem claramente o espirito evangelico. Digo mais, teremos de negar
o nome de christãos aos apostolos e evangelistas, por que n’essa epoca o
catholicismo estava tão longe do futuro, que nem ainda a palavra catholico fôra
inventada! É que realmente o christianismo existio e póde existir fóra do
catholicismo. O christianismo é sobre tudo um sentimento: o catholicismo é
sobre tudo uma instituição. Um vive da fé e da inspiração: o outro do dogma e
da disciplina. Toda a historia religiosa, até ao meado do século 16.º, não é mais
do que a transformação do sentimento christão na instituição catholica. A Idade-
Media é o periodo da transição: ha ainda um, e o outro aparece já. Equilibram-
se. A unidade vê-se, faz-se sentir, mas não chega ainda a soffocar a vida local
e autonomica. Por isso é tambem esse o periodo das Igrejas nacionaes. As da
Peninsula, como todas as outras, tiveram, durante a Idade-Media, liberdades e
iniciativa, concilios nacionaes, disciplina propria, e uma maneira sua de sentir
e praticar a religião. D’aqui, dois grandes resultados, fecundos em
consequencias beneficas. O dogma, em vez de ser imposto, era aceito, e, n’um
certo sentido, criado: ora, quando a base da moral é o dogma, só pode haver
boa moral deduzindo-a d’um dogma aceito, e até certo ponto criado, e nunca
imposto. Primeira consequencia, de incalculavel alcance. O sentimento do
dever, em vez de ser contradito pela religião, apoiava-se n’ella. D’aqui a força
dos caracteres, a elevação dos costumes. Em segundo logar, essas Igrejas
nacionaes, por isso mesmo que eram independentes, não precisavam oprimir.
Eram tolerantes. Á sombra d’ellas, muito na sombra é verdade, mas tolerados
em todo o caso, viviam Judeus e Moiros, raças intelligentes, industriosas, a
quem a industria e o pensamento peninsulares tanto deveram, e cuja expulsão
tem quasi as proporções d’uma calamidade nacional. Segunda consequencia,
de não menor alcance do que a primeira. Se a Peninsula não era então tão
catholica como o foi depois, quando queimava os Judeus e recebia do Geral
dos Jesuitas o santo e a senha da sua politica, era seguramente muito mais
christã, isto é, mais caridosa e moral, como estes factos o provam.
[…]
E a nós, hespanhoes e portuguezes, como foi que o catholicismo nos
annullou? O catolicismo pesou sobre nós por todos os lados, com todo o seu
peso. Com a Inquisição, um terror invisivel paira sobre a sociedade: a hipocrisia
torna-se um vicio nacional e necessário: a delação é uma virtude religiosa: a
expulsão dos Judeus e Moiros empobrece as duas nações, paralisa o
commercio e a industria, e dá um golpe mortal na agricultura em todo o Sul da
Hespanha: a perseguição dos christãos novos faz desapparecer os capitaes: a
Inquisição passa os mares, e, tornando-nos hostis os indios, impedindo a fusão
dos conquistadores e dos conquistados, torna impossivel o estabelecimento
d’uma colonisação solida e duradoira: na America despovoa as Antilhas,
apavora as populações indigenas, e faz do nome de christão um symbolo de
morte: o terror religioso, finalmente, corrompe o caracter nacional, e faz de duas
nações generosas, hordas de fanaticos endurecidos, o horror da civilisação.
Com o Jesuitismo desapparece o sentimento christão, para dar logar aos
sophismas mais deploraveis a que jámais desceu a consciencia religiosa:
methodos de ensino, ao mesmo tempo brutaes e requintados, esterilisam as
intelligencias, dirigindo-se á memoria, com o fim de matarem o pensamento
inventivo, e alcançam alhear o espirito peninsular do grande movimento da
sciencia moderna, essencialmente livre e creadora: a educação jesuitica faz
das classes elevadas machinas inintelligentes e passivas; do povo, fanaticos
corruptos e crueis: a funesta moral jesuitica, explicada (e praticada) pelos seus
casuistas, com as suas restricções mentaes, as suas subtilezas, os seus
equivocos, as suas condescendencias, a infiltrar-se por toda a parte, como um
veneno lento, desorganisa moralmente a sociedade, desfaz o espirito de
familia, corrompe as consciencias com a oscilação continua da noção do dever,
e aniquila os caracteres, sophismando-os, amolecendo-os: o ideal da educação
jesuitica é um povo de crianças mudas, obedientes e imbecis, realisou-o nas
famosas Missões do Paraguay; o Paraguay foi o reino dos ceus da Companhia
de Jesus; perfeita ordem, perfeita devoção; uma coisa só faltava, a alma, isto
é, a dignidade e a vontade, o que distingue o homem da animalidade! Eram
estes os beneficios que levavamos ás raças selvagens da America, pelas mãos
civilisadoras dos padres da Companhia! Por isso o genio livre popular decaío,
adormeceu por toda a parte: na arte, na litteratura, na religião. Os santos da
epoca já não tem aquelle caracter simples, ingenuo dos verdadeiros santos
populares: são frades beatos, são jesuitas habeis. Os sermonarios e mais livros
de devoção, não sei porque lado sejam mais vergonhosos; se pela nullidade
das idêas, pela baixeza do sentimento, ou pela puerilidade ridicula do estylo.
Em quanto á arte e litteratura, mostrava-se bem clara a decadencia n’aquellas
massas estupidas de pedra da architectura jesuitica, e na poesia convencional
das academias, ou nas odes ao divino e jaculatorias fradescas. O genio
popular, esse morrêra ás mãos do clero, como com tanta evidencia o deixou
demonstrado nos seus recentes livros, tão cheios de novidades, sobre a
Litteratura portugueza, o snr. Theophilo Braga. Os costumes saidos d’esta
escola sabemos nós o que foram. Já citei a Arte de Furtar, os Romances
picarescos, as Farças populares, o Theatro hespanhol, os escriptos de D.
Francisco Manoel e do Cavalleiro de Oliveira. Na falta d’estes documentos,
bastava-nos a tradição, que ainda hoje reza dos escandalos d’essa sociedade
aristocratica e clerical! Essa funesta influencia da direcção catholica não é
menos visivel no mundo politico. Como é que o absolutismo espiritual podia
deixar de reagir sobre o espirito do poder civil? O exemplo do despotismo vinha
de tão alto! os reis eram tão religiosos! Eram por excellencia os reis catholicos,
fidelissimos. Nada forneceu pelo exemplo, pela auctoridade, pela doutrina, pela
instigação, um tamanho ponto de apoio ao poder absoluto como o espirito
catholico e a influencia jesuitica. N’esses tempos santos, os verdadeiros
ministros eram os confessores dos reis. A escolha do confessor era uma
questão de Estado. A paixão de dominar, e o orgulho criminoso de um homem,
apoiava-se na palavra divina. A theocracia dava a mão ao despotismo. Essa
direcção via-se claramente na politica externa. A politica, em vez de curar dos
interesses verdadeiros do povo, de se inspirar d’um pensamento nacional, traía
a sua missão, fazendo-se instrumento da politica catholica romana, isto é, dos
interesses, das ambições d’um estrangeiro. D. Sebastião, o discipulo dos
jesuitas, vai morrer nos areaes de Africa pela fe catholica, não pela nação
portugueza. Carlos 5.º, Filippe 2.º, poem o mundo a ferro e fogo, por que? pelos
interesses hespanhoes? pela grandeza de Hespanha? Não: pela grandeza e
pelos interesses de Roma! Durante mais de 70 anos, a Hespanha, dominada
por estes dois inquizidores coroados, dá o melhor do seu sangue, da sua
riqueza, da sua actividade, para que o Papa désse outra vez leis á Inglaterra e
á Allemanha. Era essa a politica nacional d’esses reis famosos: eu chamo a
isto simplesmente trair as nações.
Tal é uma das causas, se não a principal, da decadencia dos povos
peninsulares. Das influencias deletereas nenhuma foi tão universal, nenhuma
lançou tão fundas raizes. Ferio o homem no que ha de mais intimo, nos pontos
mais essenciaes da vida moral, no crer, no sentir – no ser: envenenou a vida
nas suas fontes mais secretas. Essa transformação da alma peninsular fez-se
la em tão intimas profundidades que tem escapado ás maiores revoluções;
passam por cima d’essa região quasi inaccessivel, superficialmente, e deixam-
na na sua inercia secular. Ha em todos nós, por mais modernos que queiramos
ser, há la occulto, dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um
fanatico ou um jesuita! Esse moribundo que se ergue dentro em nós é o inimigo,
é o passado. É preciso enterral-o por uma vez, e com elle o espirito sinistro do
catholicismo de Trento.
[…]
Que é pois necessario para readquirirmos o nosso lugar na civilisação?
para entrarmos outra vez na communhão da Europa culta? É necessario um
esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado.
Respeitemos a memoria dos nossos avós: memoremos piedosamente os actos
d’elles: mas não os imitemos. Não sejamos, á luz do seculo 19.º, espectros a
que dá uma vida emprestada o espirito do seculo 16.º. A esse espirito mortal
opponhamos francamente o espirito moderno. Opponhamos ao catholicismo,
não a indifferença ou uma fria negação, mas a ardente affirmação da alma
nova, a consciencia livre, a contemplação directa do divino pelo humano (isto
é, a fuzão do divino e do humano), a philosophia, a sciencia, e a crença no
progresso, na renovação incessante da humanidade pelos recursos
inexgotaveis do seu pensamento, sempre inspirado. Opponhamos á monarchia
centralisada, uniforme e impotente, a federação republicana de todos os grupos
autonomicos, de todas as vontades soberanas, alargando e renovando a vida
municipal, dando-lhe um caracter radicalmente democratico, porque só ella é a
base e o instrumento natural de todas as reformas praticas, populares,
niveladoras. Finalmente, á inercia industrial opponhamos a iniciativa do
trabalho livre, a industria do povo, pelo povo, e para o povo, não dirigida e
protegida pelo Estado, mas espontanea, não entregue á anarchia cega da
concorrencia, mas organisada d’uma maneira solidaria e equitativa, operando
assim gradualmente a transição para o novo mundo industrial do socialismo, a
quem pertence o futuro. Esta é a tendencia do seculo: esta deve tambem ser a
nossa. Somos uma raça decaída por ter rejeitado o espirito moderno:
regenerar-nos-hemos abraçando francamente esse espirito. O seu nome é
Revolução: revolução não quer dizer guerra, mas sim paz: não quer dizer
licença, mas sim ordem, ordem verdadeira pela verdadeira liberdade. Longe de
appellar para a insurreição, pretende prevenil-a, tornal-a impossivel: só os seus
inimigos, desesperando-a, a podem obrigar a lançar mão das armas. Em si, é
um verbo de paz, porque é o verbo humano por excelencia.
Meus senhores: ha 1800 annos appresentava o mundo romano um
singular espectáculo. Uma sociedade gasta, que se aluia, mas que, no seu
aluir-se, se debatia, lutava, perseguia, para conservar os seus privilegios, os
seus preconceitos, os seus vicios, a sua podridão: ao lado d’ella, no meio d’ella,
uma sociedade nova, embrionaria, só rica de ideas, aspirações e justos
sentimentos, sofrendo, padecendo, mas crescendo por entre os padecimentos.
A idea d’esse mundo novo impoe-se gradualmente ao mundo velho, converte-
o, transforma-o: chega um dia em que o elimina, e a humanidade conta mais
uma grande civilisação.
Chamou-se a isto o Christianismo.
Pois bem, meus senhores: o Christianismo foi a Revolução do mundo
antigo: a Revolução não é mais do que o Christianismo do mundo moderno.
Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, As Farpas
– Chronica mensal da politica, das letras e dos costumes
Maio de 1871