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investigação e
justiça penal colaborativa
Comitê Científico
(ORGANIZADORES)
Modernas técnicas de
investigação e
justiça penal colaborativa
1ª edição
LiberArs
São Paulo - 2015
Modernas técnicas de investigação e justiça penal colaborativa
© 2015, Editora LiberArs Ltda.
ISBN 978-85-64789-75-1
Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho
Revisão Ortográfica
Os organizadores
Revisão técnica
Cesar Lima
Editoração e capa
Fabio Costa
ISBN 978-85-64783-75-1
CDD 340
CDU 34
Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio,
das páginas que compõem este livro, para uso nãoindividual, mesmo para fins didáticos,
sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura.
Foi feito o depósito legal.
PREFÁCIO
Carlos Eduardo Machado.......................................................................................... 7
PARTE I
NOVAS TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO
EM DIREITO PENAL ECONÔMICO
APRESENTAÇÃO
MODERNAS TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO
E JUSTIÇA PENAL COLABORATIVA
Eduardo Saad-Diniz ................................................................................................. 11
APRESENTAÇÃO
JUSTIÇA PENAL COLABORATIVA
Fábio Casas .................................................................................................................. 65
CRIMINALIDADE EMPRESARIAL
E PROBLEMAS NO ESTABELECIMENTO
DE UMA CULTURA DE COMPLIANCE NO BRASIL
Gustavo de Carvalho Marin................................................................................... 69
O CRIMINAL COMPLIANCE COMO FERRAMENTA DE CONTENÇÃO
DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO CORPORATIVO
Theuan Carvalho Gomes da Silva ....................................................................... 81
O CRIMINAL COMPLIANCE E OS SISTEMAS
DE WHISTLEBLOWING
Hélder Lacerda Paulino .......................................................................................... 91
CRIMINALIDADE INFORMÁTICA
E JUSTIÇA PENAL COLABORATIVA
Fernando Andrade Fernandes / Jéssica Raquel Sponchiado. .............. 101
PARTE II
PROGRAMAS DE COLABORAÇÃO:
CRIMINAL COMPLIANCE E ACORDO DE LENIÊNCIA
APRESENTAÇÃO
PROGRAMAS DE COLABORAÇÃO:
CRIMINAL COMPLIANCE E ACORDO DE LENIÊNCIA
Rodrigo de Souza Costa ....................................................................................... 113
7
honra poder auxiliá-los franqueando um democrático espaço de publicação para
acesso irrestrito e gratuito em plataforma digital.
Cumpre registrar, ademais, os merecidos agradecimentos aos nossos mem-
bros, ao Ministério Público Federal e aos nossos patrocinadores, em sua grande mai-
oria constituída por escritórios de advocacia criminal, pelo imprescindível apoio.
Sem tal colaboração, o Grupo Brasileiro da AIDP certamente não teria meios de ga-
rantir efetividade à missão estatutária de promover o estudo do Direito, a difusão
dos conhecimentos jurídicos e o desenvolvimento da produção de seus associados.
Por fim, merece especial destaque a dedicada atuação do professor Eduardo
Saad-Diniz, cujo empenho mobilizou a participação massiva dos jovens penalistas
no Seminário e culminou por concretizar esta publicação.
8
PARTE I
EDUARDO SAAD-DINIZ
Prof. Dr. Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP
Coordenador do núcleo de jovens penalistas do Grupo Brasileiro da AIDP
11
A discussão torna-se ainda mais complexa se pensada a partir das transforma-
ções da economia mundial, em que os delitos transcendem as fronteiras e trazem
problemas de aplicação transnacional das leis penais. Neste novo cenário de especi-
alização do Sistema de Justiça Criminal brasileiro, a atuação do criminalista substi-
tui-se gradativamente por uma perspectiva de prevenção e gerenciamento do risco
penal, no que se convencionou chamar “Justiça Penal Colaborativa”. No lugar de sim-
plesmente defender a inocência frente ao processo penal, conduz-se a investigação
por novas abordagens do regime de informações na Justiça Penal, com consequên-
cias nem sempre desejáveis às liberdades pessoais. Novas leis de caráter penal,
como a “Nova Lei do CADE” (Lei 12.529/2011), a Nova Lei de Lavagem de Dinheiro
(Lei 12.683/2012), as novas figuras de associação criminosa e colaboração premi-
ada (Lei n. 12.850/2013) e até mesmo a “Nova Lei anticorrupção” (Lei
12.846/2013) fazem refletir este mesmo cenário.
O principal problema trazido por este novo cenário consiste na crescente ante-
cipação da persecução penal já no ambiente empresarial, gerando certa flexibiliza-
ção dos instrumentos processuais com incidência bastante apelativa dos canais de
denúncia (whistleblowing systems) e na interpretação extensiva das práticas de Jus-
tiça Penal colaborativa, como na celebração de programas de prevenção às infrações
econômicas – criminal compliance – e os acordos de leniência.
No Brasil, a discussão criminológica ainda não se ocupou propriamente destas
questões e tem oferecido poucos resultados para fundamentar a crítica a estas trans-
formações do direito penal econômico. As opções de política criminal, no âmbito le-
gislativo e judicial, vêm como mera reação a crises internacionais e contingências
domésticas, sem maior preocupação em justificar suas posições. Pior ainda, o debate
dogmático segue sem referências, ainda absorto em estéreis discussões da “mo-
derna” dogmática jurídico-penal que pouco ou nada dizem respeito aos reais víncu-
los existentes entre a regulação do funcionamento dos mercados e o direito penal
econômico. A oportunidade de reunir os jovens penalistas em Simpósio Científico
pode efetivamente requalificar o debate nacional, se ao final estivermos efetiva-
mente mobilizados em torno de novas práticas e extrair delas novas formas de pro-
dução de conhecimento.
12
O DIREITO AO SILÊNCIO
EM FACE DO INSTITUTO
DA DELAÇÃO PREMIADA
1. Introdução
1 PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil – Evolução Histórica. 2 ed. São Paulo: RT, 2004, p.
100.
2 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada: um braço da justiça penal
negociada. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 10, n. 60, p.32-66, jun./jul.
2014
3 ESTELLITA, Eloisa. A Delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes:
algumas reflexões à luz do devido processo legal. In Boletim do Ibccrim nº 202, setembro de 2009, p. 2.
13
Em decorrência do avanço desse instituto na legislação brasileira, muitas ques-
tões têm sido suscitadas na doutrina e na jurisprudência.
Concentraram-se os esforços neste trabalho na avaliação dos limites de convi-
vência entre o instituto da delação premiada e a garantia processual do direito ao
silêncio, notando-se o crescimento vertiginoso do tema e o incremento de sua im-
portância para as transformações do Direito Penal desde a última década do século
XX.
Não há pretensão de selar-se aqui, de forma minuciosa, essa discussão. É de ex-
trema importância, assim, que ainda sejam analisadas de maneira mais aprofundada
as perspectivas dogmáticas e também as político-criminológicas que foram delinea-
das pela importação desses novos conceitos para nosso ordenamento.
2. Direito ao silêncio
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 5º, LXIII, que uma pessoa
presa ou que esteja sendo investigada ou processada penalmente tem o direito de
permanecer em silêncio, não estando obrigada a se autoincriminar, a não ser que
assim deseje.4
O direito ao silêncio, refletido na disposição constitucional referida, decorre da
manifestação de uma garantia maior, expressa no brocado nemo tenetur se detegere,
cujo conteúdo principiológico prevê, grosso modo, que o sujeito passivo não pode
sofrer nenhum prejuízo jurídico por deixar de colaborar com uma atividade proba-
tória da acusação. Ou seja: não pode recair sobre o imputado presunção de culpabi-
lidade ou qualquer outro tipo de consequência negativa no processo tão somente
por ele não cooperar ativamente com o processo investigatório. 5
São duas as justificativas para tal proteção constitucional. A primeira, vinculada
a uma ótica formal, tem relação com a necessidade de imposição do devido processo
legal, de modo a reforçar outras garantias previstas, como o contraditório e a ampla
defesa. A segunda, por sua vez, relaciona-se a uma óptica material, sendo uma ex-
pressão clara do direito de personalidade e até mesmo do Direito Natural, tendo em
vista que conflitaria com seu teor obrigar um sujeito a agir no sentido de limitar sua
liberdade e sua dignidade, valores essenciais dos indivíduos por sua própria natu-
reza. Manter-se em silêncio seria um direito natural à autoproteção.6
4 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 100.
5 GRINOVER, Ada Pellegrini. Interrogatório do réu e direito ao silêncio. Ciência Penal, Rio de Janeiro, v. 3,
n. 1, 1976, p 26; TUCCI. Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São
Paulo: Saraiva. 1993. p. 392.
6 SAAD, Marta. Direito ao silêncio na prisão em flagrante. In: PRADO, Geraldo (Coord.); MALAN, Diogo
(Coord.). Processo penal e democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República
de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 426.
14
É especialmente nos Estados Unidos, que o direito ora tratado foi muito desen-
volvido, o que se justifica pelo reflexo da evolução do pensamento iluminista na sua
sociedade, marcada pela valorização das liberdades individuais e pela consagração
do liberalismo político. Tendo isso em vista, a trajetória jurisprudencial é suficiente
para destacar a sua consolidação.7
No caso Griffin v. California, julgado em 1893, pacificou-se o entendimento de
que o Ministério Público não poderia fazer, durante o julgamento, qualquer tipo de
alusão ao silêncio do acusado de forma a prejudicá-lo.8 Nesse sentido, firmou-se que
seria inconstitucional a aplicação de penalidade ao agente em decorrência do gozo
do direito ao silêncio.
Já no caso Bram v. United States, de 1897, a Suprema Corte determinou que, em
sede do interrogatório policial, declarações obtidas via promessas ou meios enga-
nosos seriam proibidas por macular a espontaneidade do agente. 9 Entretanto, não
se esgotaram as controvérsias a respeito das possibilidades práticas de manifesta-
ção do direito ao silêncio do investigado, pois a postura das autoridades policiais se
coloca como fator condicionante desse aspecto.
Somente na década de 1960, diante da pressão por uma resposta judicial eluci-
dativa, é que a justiça norte-americana buscou novas maneiras de tratar do tema. 10
Miranda v. Arizona, em 1966, gerou uma repercussão paradigmática no país, alte-
rando expressivamente a forma com que o direito ao silêncio passou a ser aplicado.
A Suprema Corte daquele país determinou que a polícia, a partir de então, seria obri-
gada a notificar ao acusado, em ambientes de interrogatório, sobre o seu direito ao
silêncio, já que, essencialmente, esses já são coercitivos. Ademais, criou-se, em de-
corrência deste julgamento, as Miranda rules, que são um conjunto de normas que
regulam mais precisamente a aplicação desse direito nos Estados Unidos. 11
Sem embargo, ao mesmo tempo que os Estados Unidos possuem um histórico
de desenvolver garantias como a do direito ao silêncio e muitas outras, têm também
– e, prima facie, paradoxalmente – um precedente consolidado de utilizar a justiça
de colaboração, na qual se verifica uma inclinação acentuada à abdicação de caras
liberdades individuais.
7 QUEJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir provas contra si mesmo: o princípio nem tenetur sine
detegere e suas decorrências no processo penal. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012. pp. 31 e ss.
8 DIAS NETO, Theodomiro. O direito ao silêncio: tratamento nos direitos alemão e norte-
americano. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 5, n. 19, jul./set. 1997, p. 194.
9 Ibidem. p. 195.
10 Ibidem. p. 196.
11 Ibidem. p. 197
15
Como consequência disso, o entrave patente entre a convalidação das garantias
processuais modernas, entendidas como marcas do vigente Estado Democrático de
Direito, e as medidas relacionadas à cooperação do investigado, assumidas em vir-
tude do desfecho conclusivo do processo investigativo, incita questionamentos a
respeito dos limites entre ambas. À baila, portanto, são trazidas as barreiras norma-
tivas, políticas e éticas a serem vencidas pelos pressupostos que justificam a prática
de premiação, pelo Estado, aos delatores.
Apesar dos entraves de aceitação enfrentados, que ganham o centro do pre-
sente trabalho nas linhas seguintes, considerando especialmente o contexto brasi-
leiro, o instituto parece ter se inserido na realidade jurídica atual de forma defini-
tiva, como já previa o filósofo alemão Rudolf Ihering.
Manifestada nos idos de 1870, essa colocação demonstra um dos principais de-
safios de hoje para a aplicabilidade da delação premiada: a ausência de uma regula-
mentação homogênea e clara a respeito da matéria, fator que gera problemas de se-
gurança jurídica em sua aplicabilidade prática.
A realidade hoje enfrentada pela delação premiada é reflexo de que o Direito
brasileiro não incorporou os princípios de uma lógica de barganha, presentes no
sistema de common law.
Prova disso é a proeminência da obrigatoriedade da ação penal pelo Ministério
Público, resultado de uma opção legislativa que indica um processo penal distante
de um sistema negocial e, portanto, intolerante à transação e abdicação de liberda-
des individuais.13
De início, há que se ater ao exame do limite ético que a delação premiada tan-
gencia. Muitas vezes, rechaça-se a ideia do benefício concedido ao delatorpela pos-
sibilidade de o Estado contar com o auxílio de um criminoso para desvendar crimes
de média e alta complexidade e, ainda, por isso, favorecê-lo.
Por outro lado, a crítica também se direciona ao fato de o Estado, a fim de solu-
cionar uma investigação de forma mais facilitada, compactuar com a traição do de-
lator para com seus companheiros. Nas palavras dos mais críticos, o Estado estaria,
assim, privatizando a atividade investigatória, delegando-a aos colaboradores dire-
tamente envolvidos nos crimes investigados. Por esse motivo, poder-se-ia dizer que
a delação só deveria ser empregada nos crimes graves, de modo a existir proporci-
onalidade em face ao objetivo almejado.
12IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 23. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 73
13 ESTELLITA, Eloisa. A Delação premiada para a Identificação dos demais Coautores ou Partícipes:
Algumas Reflexões à Luz do Devido Processo legal. In Boletim do Ibccrimnº 202, setembro de 2009., p.3.
16
No mais, tendo em vista a posição sensível na qual se encontra o delator, é ní-
tido que existe espaço para que se aja com intensa arbitrariedade a fim d obter in-
formações. Valer-se de prisões cautelares para coagir o acusado a realizar a delação
é um exemplo de como a aplicação desse instituto pode ser distorcida para incitar a
feitura de termos de colaboração.
Analisando a delação premiada sob um enfoque processual, importante desta-
car que as palavras do colaborador, reduzidas a termo, devem sempre ser balizadas
por outros meios de prova a fim de se formar a convicção do julgador, ou seja, a
demonstração de sua idoneidade depende de outras provas – de preferência docu-
mentais.14 Atribuir ao discurso do delator um valor pleno seria retroceder aos tem-
pos em que a pressão física e psicológica era utilizada para facilitar a confissão que,
por si só, já embasava todo conjunto probatório de um processo penal marcado pela
inquisitoriedade.
Ainda, sob esse enfoque, a delação pode trazer consigo, se homologada, um ju-
ízo prévio de culpabilidade por parte do órgão julgador, já que o magistrado, ao ho-
mologar seu termo, de certa forma, compactua com as informações fornecidas, de
modo a atestar antecipadamente a veracidade dos fatos que levam à identificação
dos demais corréus. Desse modo, vale o questionamento sobre a imparcialidade do
magistrado, homologador da delação, no ato de julgar os demais envolvidos na prá-
tica criminosa: no ato da homologação não estaria embutida uma prévia sentença
condenatória contra os corréus?
De ordem prática, os problemas enfrentados são muitos. A regulamentação es-
parsa e não uniforme apresenta problemas para a segurança jurídica dos delatores,
que se tornam vulneráveis quando se valem do instituto.
A Lei nº 12.850/2013 determina que a delação precisa ser feita perante um
membro do Ministério Público ou da Polícia, ser ratificada pelo Parquet, e, posteri-
ormente, homologada por um juiz. Nela, o delator deve relevar a existência de uma
situação criminosa, de modo a fornecer dados relevantes, inclusive sobre o seu en-
volvimento na prática investigada, a fim de colaborar com a Justiça. A depender do
grau de seu auxílio e comprometimento, diante das investigações, o juiz determina,
na fase final do processo, se ao colaborador será concedido o perdão judicial, a di-
minuição da pena ou a conversão da pena em medidas restritivas de direito.
Dessa forma, indaga-se a insegurança do delator até que o acordo com o Estado
seja homologado, pois há um ato colaborativo que apenas em momento processual
muito posterior é recompensado – ou não – com a concessão dos benefícios.15
A regulamentação de certa forma precária sobre a delação premiada contribui
para que o tema se construa de acordo com a casuística, fator que caracteriza
enorme insegurança jurídica e que transmite a sensação de uma mera incorporação
14 BECHARA, Fabio Ramazzini. Colaboração Processual: legalidade e valor probatório. In Boletim Ibccrim
nº 2269, abril de 2015, p. 2.
15 CARLI, Carla Veríssimo de. Delação premiada no Brasil: do quê exatamente estamos falando? Boletim
IBCCRIM, São Paulo, v. 17, n. 204, p.16-18, nov. 2009; PINTO, Ronaldo Batista. A colaboração premiada
da Lei n° 12.850/2013. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v. 10, n. 56,
p.24-29, out./nov. 2013
17
de um instituto estrangeiro, sem qualquer adaptação de ordem formal e material
para melhor adequação à congruência de nosso Direito. 16
Ademais, nos casos relacionados aos crimes de organizações criminosas, a mera
redução da pena – e não a concessão do perdão judicial – traz o risco ao beneficiário
de, se preso, sofrer represálias dos demais membros do grupo. Trata-se aqui, funda-
mentalmente, de uma questão criminológica a ser considerada: as condições do
cumprimento da pena pelo delator são mais um ponto polêmico das consequências
práticas desse instituto.
18
trigésimo segundo ponto, não há esse pressuposto, o que implica em um reconheci-
mento tácito da prescindibilidade da abdicação do direito ao silêncio para se valer
do instituto em questão.
Diante desse cenário, suscita-se se realmente deve ser imposto ao delator que
confesse as suas condutas criminosas, tendo em vista as violações e impactos que o
desprezo ao direito ao silêncio podem ter para a futura estruturação do Processo
Penal brasileiro, lembrando que a incorporação da delação premiada é o início de
uma tendência irrefreável conforme exposto anteriormente.
A lógica do sistema não deve ser a de impor a autoincriminação que, se não
praticada, levará ao acusado a penas privativas de liberdade severas, sem perspec-
tivas de qualquer benefício que atenue a sua condição. Ao contrário, o acusado deve
ter a possibilidade de optar de uma forma realmente espontânea por exercer ou não
o seu direito ao silêncio, quando da prática da delação premiada.
5. Conclusões
Essas são algumas das muitas dificuldades apresentadas pela aplicação do novo
instituto da delação premiada, abordadas no presente artigo tendo em vista as limi-
tações quanto à sua extensão.
Ressalta-se que a falta de uma legislação coesa e precisa é a principal fragilidade
a ser enfrentada, tendo em vista que abala a própria segurança jurídica ao deixar
que a prática amolde os contornos desse instituto.
Na ausência de uma legislação una a respeito dos critérios formais do instituto,
é a prática judiciária que vem arbitrando seus critérios e mecanismos de eficácia.
A autoridade dada à atividade judiciária, em termos de delação, gera um grande
risco de que possíveis arbitrariedades culminem em violações a liberdades indivi-
duais caras a qualquer Estado Democrático. Os magistrados têm exigido como um
dos requisitos da delação o ato confessional, sem que isso esteja determinado em lei
e em grave afronta ao direito ao silêncio e à própria sistemática garantista do pro-
cesso penal brasileiro imposta pela Constituição.
Conforme tratado no presente estudo, a delação premiada deve estar, realça-
se, amparada pela legalidade e administrada em relação à limitação de seu valor
probatório e ao seu uso, restringido à criminalidade mais complexa e grave, de modo
a ser possivelmente um mecanismo de apoio defensivo aos acusados ou condenados
que voluntariamente venham a prestigiá-la.
Assim, deixa-se o alerta de que a realidade prática enfrentada possa desviar a
delação premiada para um modelo ultrapassado, inquisitorial, em que o acusado
seja considerado como detentor de uma verdade absoluta, a ser obtida a qualquer
custo, de modo alcançar a verdade real que respalde a condenação já preestabele-
cida pela sua condição de réu no processo.
19
UM CONTRIBUTO AOS ESTUDOS SOBRE A RESPON-
SABILIDADE PENAL DAS PESSOAS JURÍDICAS
1. Notas introdutórias
21
cada vez mais complexas, encontra alguns obstáculos nos paradigmas do Direito Pe-
nal clássico, especialmente na imputação da responsabilidade penal – tanto objetiva
quanto subjetiva.
Conforme adverte Jesús-Maria SILVA SÁNCHEZ, os problemas dogmáticos que
se apresentam à criminalidade de empresa em face dos paradigmas clássicos da te-
oria geral do delito estão sendo superados na práxis judicial, entretanto, sem um
correlato suporte sólido por parte da doutrina 1.
Em um momento social em que são revelados grandes escândalos envolvendo
empresas nacionais, multinacionais e a própria Administração Pública, é primordial
o estudo das teorias contemporâneas sobre a responsabilidade penal das pessoas
jurídicas em face dos dogmas do Direito Penal clássico, com o fim de delinear os
limites para a concepção de uma culpabilidade própria para os entes coletivos.
1 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de Ciências
criminal da pessoa jurídica - uma perspectiva do direito brasileiro. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, vol. 11, Julho/1995.
4 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica - Breve estudo crítico.
5 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: RT, 1999.
6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas penas alternativas - Análise político-criminal das alterações da Lei
9.714/1998, São Paulo: Saraiva, 1999.
7 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, 3. ed., São Paulo:
23
vontade em sentido psicológico no ato da pessoa jurídica. Tal concepção de culpabi-
lidade seria incompatível com a própria natureza da pessoa jurídica 8.
Assim, a pretensão de punir as pessoas jurídicas seria um mero argumento po-
lítico-criminal do auge da delinquência econômica.
Dos argumentos elencados, acredito que o princípio da culpabilidade é o pro-
blema central na responsabilidade penal das pessoas jurídicas, haja vista a necessi-
dade de incidir um juízo de reprovação ética a justificar a aplicação de qualquer es-
pécie de pena.9
À vista disso, devemos ampliar os estudos de teorias que viabilizem a aplicação
da responsabilidade penal das pessoas jurídicas à luz dos princípios e garantias de
um Estado Democrático de Direito.
8 TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade e responsabilidade penal da pessoa jurídica. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, vol. 86, Setembro/2010.
9 PRADEL, Jean. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas no direito francês: ensaio de resposta a
algumas questões chave. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 24, Outubro/1998.
10 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de
la criminalidad de empresa. Tradución realizada por Daniela Bruckner e Juan Antonio Lascurain Sánchez.
Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales, Madrid, tomo XLI, fasc. 1, 1988.
24
princípios tradicionais do ordenamento jurídico penal; e o segundo, um direito pe-
nal para as pessoas jurídicas, o qual vigora critérios distintos de imputação penal,
flexibilizando direitos e garantias constitucionais.
Acredito haver um único Direito Penal, formado por um núcleo de princípios e
garantias – o qual se inclui o princípio da culpabilidade. Os direitos e garantias fun-
damentais de um Estado Democrático de Direito devem incidir igualmente em face
das pessoas físicas e jurídicas.
Nesse diapasão, o brocardo nulla poena sine culpa expressa a impossibilidade
de responsabilização penal objetiva, de forma que a culpa deve ser pressuposto de
toda espécie de pena, aplicadas tanto às pessoas físicas quanto às pessoas jurídicas,
em conformidade com o princípio da culpabilidade.
Nesse sentido, todo modelo de responsabilidade penal objetiva, que defende a
imputação penal sem a demonstração de culpa, deve ser afastado do ordenamento
jurídico brasileiro.
11TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico. Tradución realizada por García Arán.
Barcelona, PPU, 1993.
25
Vale dizer que a culpabilidade por defeito de organização apresenta um modelo
de responsabilidade por omissão imprópria, o qual a pessoa jurídica é responsável
pelo fato ilícito quando, podendo e devendo evitar, não o fez.
12 TORRÃO, Fernando. Societas Delinquere Potest? Da Responsabilidade Individual e Colectiva nos “Crimes
de Empresa”. Coimbra: Almedina. 2010.
13 DIAS, Jorge de Figueiredo. Breves considerações sobre o fundamento, o sentido e a aplicação das penas
em Direito Penal Económico. Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários. Coimbra: Coimbra
Editora, vol. I, 1998.
14 FARIA COSTA, José de. A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos (ou uma
reflexão sobre a alteridade nas pessoas colectivas, à luz do direito penal). Direito Penal Económico e
Europeu: Textos Doutrinários. Coimbra: Coimbra Editora, vol. I, 1998.
26
Nesse contexto, entende ser aceitável que em certos domínios delimitados ao
homem individual, as pessoas coletivas possam substituir-se como centros ético-so-
ciais de imputação jurídico-penal.
Na medida em que há características comuns às pessoas físicas e às pessoas
jurídicas, deve-se admitir a aplicação dos princípios do Direito Penal tradicional por
analogia ao ente coletivo, com as alterações que se revelarem necessárias.
Nesse esteio, a partir do raciocínio inverso àquele que justifica a inimputabili-
dade em razão da idade (na imputabilidade formal o Direito Penal ficciona a inexis-
tência de uma liberdade, e por isso se diz que o menor não ascende à discursividade
penal), a contrario sensu, poderia o Direito Penal expandir o que os órgãos das pes-
soas jurídicas assumem como vontade própria, criando uma culpa própria e autô-
noma das pessoas jurídicas.
Atribui-se ao Direito Penal a possibilidade de expandir o âmbito da punibili-
dade criminal das pessoas jurídicas, ampliando um agir comunicacional, não restrin-
gindo a responsabilidade penal ao domínio da comunicabilidade da pessoa física,
considerando os entes coletivos como centros de imputação jurídico-penal.
Entretanto, não me parece a melhor expressão (e o melhor raciocínio) ampliar
ou expandir a consciência e culpa das pessoas jurídicas.
Eventual raciocínio analítico deve buscar parâmetros de culpa próprios do ente
coletivo, isto é, desenvolver uma culpabilidade autônoma inerente à pessoa jurídica,
considerando que a grande discussão em torno do tema é a existência ou não de
culpa nas infrações praticadas pelas pessoas jurídicas, e não o alcance da culpa co-
letiva.
15 Superior Tribunal de Justiça, REsp 989.089/SC, 5ª T., j. 18.08.2009, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima.
16 Superior Tribunal de Justiça, REsp 564.960/SC, 5ª T., j. 02.06.2005, rel. Min. Gilson Dipp.
27
O grande problema enfrentado na criminalidade empresarial é a individualiza-
ção das condutas ilícitas que estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não
permitirão a imputação da responsabilidade penal individual.
É irracional exigir a responsabilização das pessoas físicas para legitimar a res-
ponsabilidade penal das pessoas jurídicas. A responsabilização criminal das pessoas
jurídicas foi justamente instituída a fim de solucionar a dificuldade de identificar os
agentes internos responsáveis pela conduta delitiva praticada no âmbito das empre-
sas.
Ao condicionar a responsabilização das pessoas jurídicas à identificação dos in-
divíduos que cometeram a infração, encontraríamos o mesmo problema que inicial-
mente buscamos solucionar.17
Portanto, devemos desvincular a responsabilidade das pessoas jurídicas dos
atos das pessoas físicas, considerando o ente coletivo apto a cometer um crime me-
diante um critério próprio de culpa.
8. Notas conclusivas
Até o presente momento nosso ordenamento jurídico não está apto para reco-
nhecer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.
Os estudos doutrinários e os precedentes jurisprudenciais são recentes, e ine-
xiste legislação processual penal que viabilize a aplicação da responsabilidade penal
das pessoas jurídicas em conformidade com os direitos e garantias fundamentais de
um Estado Democrático de Direito.
A aplicação do referido instituto exige o desenvolvimento de alguns conceitos
tradicionais do Direito Penal, a exemplo da culpabilidade.
Nos crimes empresariais, além das intenções e ações particulares deste ou da-
quele sócio, pode existir uma vontade criminosa coletiva e comum, devendo a cul-
pabilidade das pessoas jurídicas ser pensada a partir dos pressupostos do Direito
Penal clássico.
A culpa das pessoas singulares deve ser transmitida, no que couber, às pessoas
coletivas por meio de uma “equivalência funcional”, haja vista que a culpabilidade
das pessoas jurídicas não representa uma reprovabilidade distinta das pessoas físi-
cas.
Em suma, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas deve ser o quão igual
possível à responsabilidade penal individual, baseada num modelo de culpabilidade
própria e não a mera imputação da culpa alheia, não exigindo, necessariamente, a
imputação individual dos agentes internos da empresa.
17O Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre o tema, ocasião em que reconheceu a possibilidade
de responsabilidade penal da pessoa jurídica de forma isolada, desvinculada da pessoa física, nos casos
de crimes ambientais, contrariando a jurisprudência, até então unânime, do Superior Tribunal de Justiça.
RE 548.181/PR, j. 30.10.2014, rel. Min. Rosa Weber.
28
BIBLIOGRAFIA
29
A ATUAÇÃO DO PARTICULAR EM
COLABORAÇÃO COM A
PERSECUÇÃO PENAL:
EXERCÍCIO DA ADVOCACIA E DIREITOS
FUNDAMENTAIS.
O direito penal empresarial vem assumindo um viés cada vez mais preventivo.
Tal característica está diretamente ligada aos bens jurídicos supraindividuais que
esta espécie de crime atinge, pois quanto mais cedo lançar mão de seus controles,
maior a possibilidade de sucesso em poupá-los do dano.
Em atenção a esta tendência, nos últimos anos, a vertente empresarial do Di-
reito Penal caracterizou-se pelo estímulo a autorregulação privada, meios de incen-
tivo a colaboração do particular com o Estado, firmando bases sobre existência de
deveres de cuidado e as vantagens dessa troca entre particular e Estado.
Assim, a ideia de empenhar esforços na elaboração de mecanismos de controle
que dificultem a ocorrência, no ambiente empresarial, de situações criminógenas
parece desejável tanto ao Estado, que evita o dispêndio da persecução penal e pro-
porciona uma tutela mais efetiva aos bens jurídicos, quanto a empresa, que evita a
estigmatização e os prejuízos causados pela persecução criminal, dentre tantos ou-
tros objetivos.
Nesse sentido, vêm ganhando destaque os programas de criminal compliance1,
que têm por característica, ao contrário do direito penal tradicional, realizar um
controle ex ante de uma possível conduta criminosa, atuando mediante uma análise
dos controles internos e medidas que podem prevenir a persecução penal da em-
presa.2
12.683/2012 no mercado de seguros. Revista de Estudos criminais, São Paulo: Sintese, n.54, ano XII, 2014.
p. 165.
31
No Brasil, a legislação atinente ao tema não se manteve alheia à tendência, op-
tou, pois, por vincular os deveres de compliance a prevenção do crime de lavagem
de dinheiro e inseri-la no contexto de regulação do mercado financeiro. A lei
12.683/12 trouxe dispositivos em que se criou uma série de deveres impostos ao
particular de regulação e prevenção (arts 10 e 11, lei 12.683/2012), que serão ob-
jeto de análise mais demorada ao longo deste trabalho.
A lei Anticorrupção trouxe dispositivos que preveem responsabilidade gené-
rica da pessoa jurídica pelos atos praticados no seu âmbito (art 2º, lei 12.843/2013)
3, o acordo de leniência, e o decreto que a regulamenta, Decreto n. 8420/2015, traz
uma série de disposições acerca dos programas de integridade (art 41) e seus refle-
xos na responsabilidade da pessoa jurídica.
Por sua vez, ainda no que se refere a mudança na forma do controle estatal so-
bre a atividade empresarial e ao papel do particular em cooperação com a atividade
persecutória do Estado, não mais de forma preventiva, porém, repressiva, a lei de
Organização Criminosa (lei 12.850/13) tratou da colaboração da particular com a
Justiça Criminal através do instituto da colaboração premiada. Cada uma a sua forma
reforçando importância da atuação do particular.
A maior aproximação com os fins preventivos do Direito Penal e o papel de cres-
cente destaque assumido pelo particular na persecução criminal, no entanto, não
deixa indenes os direitos fundamentais ligados ao exercício da persecutio pelo Es-
tado. A prevenção gera uma antecipação da intervenção estatal na atividade crimi-
nógena, que começa a preterir mesmo a investigação, uma vez que a atuação do par-
ticular passa a ser regulado em momento anterior pelo Estado, embora de forma
mais sutil, sem o envolvimento do aparato repressivo.
Outrossim, a questão que se coloca oportunamente é: como ficam os direitos
fundamentais numa situação limítrofe, como esta, em que não se tem o Estado con-
cretizando a persecutio, mas o particular colaborando a fim de evitar a persecução
criminal? Há limites para atuação do ente privado em termos de políticas crimais de
prevenção?
Este trabalho tem por objeto tratar a especificamente o direito fundamental a
assistência do advogado no âmbito preventivo do Direito Penal, como reflexo da am-
pla defesa, e a (im)possibilidade de imposição a este do dever de colaborar com o
Estado, a exemplo do dever imposto genericamente pela lei da Lavagem de Dinheiro.
A primeira premissa que deve ser fixada nesse sentido é a de que a assistência
jurídica por advogado é um direito fundamental que deve se concretizar não apenas
na forma de advocacia contenciosa, como também na esfera da advocacia de pre-
venção ao litígio judicial.
Para melhor seguir no tema, diferenciamos os momentos de atuação do advo-
gado: o de advogado de representação contenciosa, seja judicial ou extrajudicial,
como aquele que defende ou presta consultoria como instrumentos para litígios ju-
diciais ou extrajudiciais ou para determinação da situação jurídica do cliente; e o
3 Ibidem, p. 166.
32
advogado de operações, caracterizado como “aquele que colabora com seu conheci-
mento jurídico para consolidar operações financeiras, comerciais, tributárias ou si-
milares, sem que essa atividade tenha relação direta com um litígio, ou processo.” 4
A postulação perante o Judiciário ou fora dele, mas para o contencioso adminis-
trativo ou judicial, não suscita grande controvérsia, estando fundada a representa-
ção por advogado nas garantias expressa e constitucionalmente previstas de Con-
traditório e Ampla Defesa, bem como amplo acesso ao Judiciário. No que se refere
ao dever de sigilo do advogado face a empreitada criminosa, por envolver direta ou
indiretamente a persecução criminosa, fica resguardado este em seu exercício pro-
fissional.
O artigo 133 da Constituição Federal traz o advogado como figura indispensável
a administração da Justiça, o que apenas reforça a relevância de sua atuação, ainda
que em situação pré-conflituosa. Não há que se negar o direito a Ampla Defesa, nesta
hipótese, uma vez que o Estado, embora não esteja intervindo diretamente, está de
alguma forma atuando em prol da persecução penal.
Como exemplo é possível citar a hipótese de o advogado ser procurado por cli-
ente para prestar orientação sobre a conveniência de uma delação premiada. Neste
caso, embora não esteja em pauta a advocacia contenciosa, “não se trata de consul-
toria para realização de transação financeira ou engenharia de negócios, mas do ofe-
recimento de informações para desenvolvimento de estratégia processual ou para a
delimitação do contexto jurídico no qual se desenvolve determinada operação”.5
A razão de ser desta maior liberdade conferida ao exercício da advocacia está
lastreada na necessidade que o advogado tem de obter tanto mais informações
quanto possível de seu cliente a fim de lhe assegurar a melhor defesa que puder.
Portanto, está ligada ao exercício da Ampla Defesa, na vertente da defesa técnica. Se
assim não fosse, sendo exigível do advogado a comunicação às autoridades compe-
tentes das atividades suspeitas de que tem conhecimento, estaria prejudicado o
exercício do direito a Ampla defesa, fundamental. Bottini reforça o argumento da
seguinte forma:
33
possibilidade de prejuízos futuros. A exemplo do advogado tributarista que é con-
tratado por uma empresa para traçar estratégia fiscal pautada em meios lícitos (eli-
são fiscal), com o objetivo de economizar no pagamento de tributos e tal manobra
seja considerada pela autoridade administrativa fraudulenta. 7 Ou ainda, se o mesmo
profissional fosse chamado para transformar uma situação previa de fraude em um
programa de elisão fiscal. Tem este advogado o dever de comunicação?
A atuação do advogado nos programas de compliance bem reflete essa zona li-
mítrofe do exercício da consultoria. A questão não é de todo simples, tendo em vista
que a diversidade de finalidades da empresa ao adotar um programa de compliance
também pode converter-se em fazer dele um manto de proteção, um “programa de
fachada”8, no qual o advogado somente atua como garantidor da isenção de respon-
sabilidade da empresa.
Ao mesmo tempo, o advogado tem o dever, decorrente de sua ética profissional,
de não permitir que a compliance fique relegada a um programa de exoneração de
responsabilidade da empresa e vitimização dos seus próprios empregados 9. Tal con-
flito se expressa no dever de comunicação suspeita dos advogados. Giovanni Saave-
dra sintetiza:
7 ILLG, Matias. Planejamento tributários: estamos diante de uma conduta neutra? In: LIRA, Rafael;
FRANCO, Alberto Silva (org). Direito Penal Econômico: Questões atuais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011. A dificuldade gerada pela situação é reconhecida pelo próprio Rodrigo Ríos no seguinte trecho:
“Assim, por exemplo, no âmbito do direito tributário, quais critérios devem ser usados para apartar a
atuação lídima do profissional no aproveitamento do espaço livre do sistema, não regulado, daquele ou-
tro denominado de “abuso de formas” (evasão fiscal, por exemplo)?” RIOS, Rodrigo Sanchez. Advocacia e
Lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-penal e política criminal. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
87.
8 SIEBER, op. cit, p. 313
9 Na esteira da utilização do programa de compliance como forma de autorregulação, a Portaria n. 909 de
2015, que trata dos critérios de avaliação dos programas de integridade, trouxe como um dos critérios
para concessão de redução no valor da multa a efetividade do programa (art 5º do ato infralegal).
10 SAAVEDRA, op. cit. p. 167.
34
Se assim não fosse, se se impusesse ao advogado o dever positivo de alcagueta,
da mesma forma que no processo criminal, estar-se-á esvaziando lhe a função de
consultoria. Afinal, a pessoa jurídica jamais expor-lhe-ia uma situação prévia de du-
vidosa legalidade e eventual criminalidade a fim de que tal situação pudesse ser re-
gularizada, minando parte de sua função de consultoria. Ora se o Estado não fora
capaz de investigar o crime, não parece razoável impor exatamente ao advogado,
guardião da ampla defesa na esfera técnica, o dever de fazê-lo.
Deve-se ter especial cautela para não se impor a advocacia criminal preventiva
posição de vigilância, que extrapola sua natureza. Nesse sentido, Rodrigo Rios critica
aduzindo que, na realidade, “o cerne da questão delitiva deverá se refletir na exteri-
orização normativamente desvalorada da conduta, e não na intenção (ex ante) do
autor principal.”11
Deste modo, aceitar, sem reservas, que o conhecimento da resolução delitiva
alheia seja base suficiente de imputação acessória equivaleria a instaurar uma au-
têntica “posição de garantidor genérico”, propiciando uma espécie de obrigação de
vigilância sobre a própria função desenvolvida para que esta não possa favorecer
delitos de outrem.12
Destaque-se que aqui não se pode relegar a exclusão da responsabilidade do
advogado ao nexo de evitabilidade entre a omissão e a lavagem de dinheiro, por
exemplo, pois deixar essa juízo para ser feita quando da existência de um procedi-
mento ou processo criminal seria prejudicial ao desempenho de sua função, tendo
em vista que toda situação pode ser evitada com a simples exclusão desta figura do
rol do artigo 9º da lei de lavagem.
Por fim, a terceira hipótese em relação ao exercício da advocacia versa sobre a
advocacia de operação, em que o advogado atua como gestor de negócios, ou presta
consultoria em questão não jurídica, incidem os deveres administrativos previstos
na Lei 9.163/98, uma vez que tais atividades extrapolam o âmbito daquelas previs-
tas no Estatuto da Advocacia.
Em outras palavras, enquanto a advocacia judicial, de defesa criminal, está ine-
quivocamente vinculada aos direitos fundamentais, as orientações relativas a meca-
nismos de prevenção de delitos não são tratadas com a mesma cautela, o que gera
questões como a decorrente da lei de Lavagem de dinheiro, na qual se ventila que o
advogado tenha o dever de comunicar ao Estado a ocorrência de transações suspei-
tas, estando enquadrado nos sujeitos que prestam assessoria ou consultoria nos ter-
mos do art 9º, XIV da mencionada lei.
Em termos de assessoria e consultoria, a lei 12.683/12 não está sozinha, parece
que a tendência a impingir ao advogado o dever de alcagueta, colocando em teste
todo fundamento da confiança atribuída a este na relação com seu cliente, foi pre-
visto em outros instrumentos, como o Patriot Act, o Sarbanes-Oxley Act, nos Estados
13 Art 6.3- “Os Estados-membros não são obrigados a aplicar as obrigações previstas no n. 1 aos notários,
profissionais forenses independentes, auditores, técnicos de contas externos e consultores fiscais no que
diz respeito a informações por eles recebidas de um dos seus clientes ou obtidas sobre um dos seus cli-
entes no processo de determinar a situação jurídica por conta do cliente ou no exercício da sua missão
de defesa ou de representação desse cliente num processo judicial ou a respeito de um processo judicial,
inclusivamente quando se trate de conselhos relativos à forma de instaurar ou evitar um processo judicial
, quer essas informações tenham sido recebidas ou obtidas antes, durante ou depois do processo”. (grifo
nosso)
14 Recentemente, a Corte Europeia de Direitos Humanos tratou do caso, decidindo pela licitude de
regulação da ordem dos advogados da França que flexibilizou o sigilo profissional em determinados
casos, obrigando o advogado a revelar informações de clientes envolvidos em operações financeiras
suspeitas de lavagem de dinheiro (decisão disponível em http://s.conjur.com.br/dl/decisao-corte-
europeia-direitos-humanos78.pdf. )
15 Diretiva 2005/60/CE, Resolução n. 22 do GAFI.
16 RIOS, loc. cit., p. 71. V. Nota Interpretativa a recomendação de n. 16.
36
toma conhecimento claro de que sua assessoria será usada para mascarar bens ori-
undos de infração penal. Se o profissional ainda assim agir, essa conduta perde o
caráter neutro e cria-se o risco não permitido.17
A última forma de atuação do advogado se concretiza no advogado que tem po-
deres para agir ad negotia, atuando como advogado de operação, caso em que ultra-
passa o âmbito da atividade jurídica, deixando de gozar da inviolabilidade de causí-
dico.18
A atuação do advogado e sua relação com o suposto dever de comunicação
passa também pelo sigilo profissional do advogado. Neste ponto, cabe fazer um pe-
queno aparte em relação a diferença entre a confidencialidade das comunicações
cliente-advogado e o sigilo profissional advogado-cliente, que, como a própria ex-
pressão deixa transparecer tem diferentes titulares; no primeiro caso, é um direito
do cliente e, no segundo, é um dever do advogado19. Será objeto desta análise o dever
do advogado de sigilo como mais um argumento contrário a inclusão deste no rol
pessoas que tem o dever legal de comunicar situações suspeitas a autoridade com-
petente.
A Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) determina o sigilo, autorizando ao ad-
vogado a recusa em depor como testemunha sobre fato que constitua sigilo profissi-
onal (art.7º, XIX), revelando o direito do advogado de silenciar sobre fatos que sejam
protegidos por sigilo em razão de sua profissão. O Código de Ética, por sua vez, es-
tabelece o sigilo profissional inerente a profissão, impondo seu respeito, cf. art 25.
O advogado tem o dever de custódia desse segredo, sob pena de cometer infra-
ção penal e administrativa, não sendo outra a ratio de estar isento mesmo de teste-
munhar (art 207, CPP), bem como da existência da criminalização (ainda que gené-
rica) da conduta de revelar informações prejudiciais sobre alguém, desde que estas
informações tenham sido obtidas no exercício da profissão.20
Outro argumento trazido por Bottini21 é no sentido de que, dadas as disposições
contrárias trazidas pela lei de lavagem de dinheiro e pela legislação que trata dos
deveres funcionais e éticos do advogado, em havendo conflito entre as disposições
legais expostas, deve prevalecer a regra da inviolabilidade e do sigilo, pelo princípio
da especialidade. Porquanto, somente se fosse a Lei de Lavagem expressa sobre
o dever do advogado de comunicar operações suspeitas, poder-se-ia reconhecer sua
superveniência e a relativização da inviolabilidade prevista no Estatuto da Advoca-
cia.
John; LOUREIRO, Maria Fernanda; CHOUKR, Fauzi Hassan (Org). Aspectos Contemporâneos da responsa-
bilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Federação do Comercio de Bens, Serviços e Turismo do Es-
tado de São Paulo, 2014. p. 194.
20 SCHORSCHER, Vivian Cristina. A criminalização da lavagem de dinheiro: Críticas penais. São Paulo,
2012. Tese, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 67
21 BOTTINI, op. cit. p. 5.
37
Ademais, pretender diversamente, implica modificar o papel de um ente pri-
vado, implicando-lhe deveres típicos do Estado. Ora, se não foi o Estado capaz de
exercer sua papel, não deve ficar o advogado obrigado a auxilia-lo ativamente, por-
quanto mais do que um dever ético, a questão envolve a geração da persecução cri-
minal. Assim, alterar-se-ia a essência da profissão de advogado, impactando direta-
mente na dinâmica da relação advogado cliente.22
Em última análise, exigência de comunicação do advogado macula o principio
de que o réu não deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemotenetur
se detegere). De nada adianta garantir ao cidadão o direito de não autoincriminação
e exigir do depositário legal de sua confiança a notificação às autoridades de qual-
quer irregularidade.23
Por fim, e por todos os argumentos apresentados, pode-se concluir que a ativi-
dade do advogado que atua nesta qualidade, fornecendo orientações lícitas ao seu
cliente, não deve impingir a este a obrigação de prestar informações sobre as ativi-
dades suspeitas de que tem conhecimento, desde que para estas não colabore.
O Estado é quem deve servir ao cidadão, e não o contrário. Esta premissa deve
guiar o Estado Democrático de Direito, e, assim, ver se excluído o advogado do rol
das pessoas obrigadas a prestar informações a autoridade competente.
REFERÊNCIAS
AMBOS, Kai. La aceptatión por el abogado defensor de honorários maculados: ¿ lavado de di-
nero?. Disponível em: < https://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/articulos/ a_20080521
_13.pdf> . Acesso em: 20 de maio de 2015.
GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. El rol del abogado frente al blanqueo de capitales: ¿garante del es-
tado o defensor del cliente?. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/boletim_ ar-
tigo/4674-El-rol-del-abogado-frente-al-blanqueo-de-capitales-garante-del-estado-o-defen-
sor-del-cliente>. Acesso em 10 de meio de 2014.
GRECO FILHO, Vicente. Comentários à Lei de organização Criminosa. São Paulo: Saraiva, 2014.
ILLG, Matias. Planejamento tributários: estamos diante de uma conduta neutra? In: LIRA, Ra-
fael; FRANCO, Alberto Silva (org). Direito Penal Econômico: Questões atuais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2011.
SANCTIS, Fausto Martin. Crime organizado e lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2015.
SANGUINÉ, Odone. Os direitos Fundamentais das pessoas jurídicas no processo penal. In:
VERVAELE, John; LOUREIRO, Maria Fernanda; CHOUKR, Fauzi Hassan(Org). Aspectos Contem-
porâneos da responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Federação do Comercio de
Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo, 2014.
39
AÇÃO CONTROLADA: EXISTEM LIMITES
PARA AS OPERAÇÕES POLICIAIS?1
1. Introdução
1Este texto foi escrito com inspiração na Tese de Doutorado da autora defendida na Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo em 24 de março de 2015 sob o título: Ação controlada e criminalidade or-
ganizada: os controles necessários à atividade investigativa, sob orientação do Professor Associado Mau-
rício Zanoide de Moraes.
41
direitos e garantias fundamentais dos investigados ao mesmo tempo em que asse-
gurarão a validade de seus resultados.
2 Nereu Giacomolli fala em “[...] investigação ‘à moda rambo’ (pela força, com armamento pesado, tanques
nas ruas, balões dirigíveis, v.g.), atrelada aos vestustos paradigmas investigatórios (informantes,
testemunhas, acareações, reconhecimentos, álbuns de fotografias corroídos pelo tempo, etc.)”. Ver A fase
preliminar do processo penal: crises, misérias e novas metodologias investigatórias. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2011, p. 9.
3 Nesse sentido, Antonio Scarance Fernandes afirma: “É essencial para a sobrevivência da organização
criminosa que ela impeça a descoberta dos crimes que pratica e dos membros que a compõem,
principalmente dos seus líderes. Por isso, ela atua de modo a evitar o encontro de fontes de prova de seus
crimes: faz com que desapareçam os instrumentos utilizados para cometê-los e com que prevaleça a lei
do silêncio entre os seus componentes; intimida testemunhas; rastreia por meio de tecnologias
avançadas os locais onde se reúnem os seus membros para evitar interceptações ambientais; usa
telefones e celulares de modo a dificultar a interceptação, preferindo conversar por meio de dialetos ou
línguas menos conhecidas.” Ver O equilíbrio entre a eficiência e o garantismo e o crime organizado.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 70, jan-fev/2008, p. 245. Também Vladimir Aras: “[...] tais
delitos de criminalidade difusa deixam poucos vestígios e são executados com a percepção de que é
fundamental não deixar elementos rastreáveis.” Ver Técnicas especiais de investigação. In: CARLI, Carla
de. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 404.
4 Nesse sentido, Manuel Monteiro Guedes Valente afirma que o “[...] crime organizado é um fenómeno
criminógeno, cujas estruturas operativas policiais e judiciárias e cujo ordenamento jurídico processual
penal vigente num determinado tempo e espaço se manifestam incapazes de prevenir. A prevenção das
atividades criminosas desenvolvidas pelo crime organizado é uma consequência da inadaptação e inade-
quação dos instrumentos – jurídicos e operativos – para fazer face a estruturas criminosas humanas e
materiais supranacionais. Os efeitos negativos dessas atividades escapam ao olhar humano e à transpa-
rência lícita da vida quotidiana e diluem-se suavemente por entre as estruturas organizativas privadas e
públicas legais.” Ver A investigação do crime organizado – buscas domiciliárias nocturnas, o agente infil-
trado e intervenção nas comunicações. In: VALENTE, Manuel Monteiro Guedes (coord.). Criminalidade or-
ganizada e criminalidade em massa: interferências e ingerências mútuas. Coimbra: Almedina, 2009, p. 159-
160.
42
conhecida como Convenção de Palermo. A partir desse tratado, diversos outros fo-
ram firmados com o intuito de combater a criminalidade organizada, mas ele conti-
nua sendo utilizado como paradigma para o estudo do tema.5
É comum que esses textos convencionais tragam a expressão técnicas especiais
de investigação para se referir a mecanismos que podem auxiliar no aumento da efi-
ciência no que tange à obtenção de elementos informativos para subsidiar a perse-
cução da criminalidade organizada. Na Convenção de Palermo, por exemplo, é pre-
vista a possibilidade de emprego da entrega vigiada e outras técnicas especiais de
investigação, tais como a vigilância e as operações de infiltração. 6
A tarefa de conceituar as técnicas especiais de investigação é árdua, sendo fre-
quente incluir no rol qualquer mecanismo que apresente uma especialidade em
comparação com os instrumentos de investigação da criminalidade comum. No en-
tanto, é possível apresentar algumas características comuns a elas, bem como requi-
sito para sua utilização e finalidade comum. Dentre as características estão a clan-
destinidade, a não-taxatividade, a vigilância e a dissimulação (esta última presente
apenas em algumas técnicas especiais de investigação). O requisito para sua utiliza-
ção é a investigação da criminalidade organizada e sua finalidade consiste no apri-
moramento da coleta de elementos de prova na fase inicial da persecução penal. 7
No Brasil, a Lei n.º 9.034/95 previu diversos mecanismos com o escopo de au-
mentar a eficiência da investigação das atividades orquestradas pelas organizações
criminosas antes mesmo da assinatura do tratado mencionado, dentre elas a ação
controlada. O artigo 2º, II do referido diploma legal autorizou o agente policial a dei-
xar de efetuar a prisão em flagrante nos casos em que tal postura possibilitasse a
obtenção de elementos informativos de maior qualidade e em maior quantidade,
desde que a ação delituosa permanecesse sob vigilância. Também foram introduzi-
5SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, Isabel. La criminalidad organizada. Aspectos penales, procesales, administrativos
y policiales, Madrid: Dykinson, 2005, p. 84; MACHADO, André Augusto Mendes e LOPES, Mariângela Tomé.
Meios de investigação no combate ao crime organizado. In: SCARANCE FERNANDES, Antonio et. al (coord.)
Estudos de Processo Penal. São Paulo: Scortecci, 2011, p. 88. A Convenção de Palermo foi promulgada no
Brasil pelo Decreto n.º 5.015 de 12 de março de 2004.
6 O inciso I do artigo 20 da Convenção de Palermo, introduzida em nosso ordenamento por meio do
Decreto 5.015/2004, tem a seguinte redação: “1. Se os princípios fundamentais do seu ordenamento
jurídico nacional o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em
conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adotará as medidas necessárias para
permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas e, quando o considere adequado, o recurso a outras
técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica ou outras formas de vigilância e as
operações de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater
eficazmente a criminalidade organizada.”
7 Essas características, requisitos e finalidade foram extraídas da proposta de definição genérica feita por
Hans Nilsson em conjunto com a análise do texto do artigo 20 da Convenção de Palermo. O autor definiu
técnicas especiais de investigação como: “[...] techniques for gathering information systematically in such
a way as not to allow the target person to know of them, applied by law enforcement officials for the purpose
of detecting and investigating crimes and suspects”. NILSSON, Hans G. Special investigation techniques and
developments in mutual legal assistance: the crossroads between police cooperation and judicial coop-
eration. Work product of the 125th International Training Course Visiting: Experts’ Papers. Resource Ma-
terial Series, n. 65, p. 41. Disponível em:
http://www.unafei.or.jp/english/pdf/RS_No65/No65_07VE_Nilsson2.pdf. Acesso em: 14 dez. 2014.
43
dos outros instrumentos, nomeadamente o agente infiltrado e a captação e intercep-
tação de sinais eletromagnéticos. Recentemente, a Lei n.º 12.850/13 renovou a
abordagem do tema, alargando a regulamentação dessas figuras e introduzindo al-
guns outros meios de investigação da criminalidade organizada.
Considerando o estreito objeto deste texto, deve ser concentrada atenção na
figura da ação controlada, de maneira a estabelecer as premissas necessárias para a
apresentação dos limites que devem ser aplicados nas chamadas operações polici-
ais.
É certo que a ação controlada foi criada pelo legislador com inspiração na en-
trega vigiada8, uma técnica especial de investigação. No entanto, dela acabou se afas-
tando pela destinação prática e doutrinária que lhe foi dada, fato que influencia di-
retamente nos limites que a ela devem ser aplicados. Apenas uma compreensão pro-
funda da natureza do instituto permitirá propor a adequada interpretação do artigo
8º da Lei nº 12.850/13 e esse é o escopo desse item.
Para introduzir a questão, é importante diferenciar técnicas e métodos de in-
vestigação. Com efeito, método é o conjunto de procedimentos utilizados para atin-
gir determinado fim, que pode variar de acordo com a ciência a que for aplicado, mas
que sempre gravita em torno da ideia de captar a realidade por meio de um processo
racional que resulte na obtenção de informações. 9 Por outro lado, técnica é o proce-
dimento prático por meio do qual são obtidos, registrados e classificados os dados
de uma pesquisa. As técnicas, portanto, precisam ser adequadas à coleta dos dados
necessários à investigação que está sendo realizada, de forma que a atividade inves-
tigativa seja realizada da melhor maneira possível.10 Fica claro, assim, que o método
envolve um conjunto de atos e técnicas, isto é, consiste na junção dos processos em-
pregados em uma investigação.
Destarte, para o bom emprego de um método, diversas técnicas deverão ser
utilizadas. Existe, portanto, uma relação de conteúdo e continente entre eles. En-
quanto o método serve ao objetivo da investigação, ditando os passos que devem
ser seguidos para uma pesquisa bem feita, a técnica coloca em prática a estratégia
abstratamente traçada.
8 A definição de entrega vigiada consta da alínea “i”, artigo 2º da Convenção de Palermo:” [...] a técnica
que consiste em permitir que remessas ilícitas ou suspeitas saiam do território de um ou mais Estados,
os atravessem ou neles entrem, com o conhecimento e sob o controle das suas autoridades competentes,
com a finalidade de investigar infrações e identificar as pessoas envolvidas na sua prática.”
9 Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 130.
10 FACHIN, Odília. Fundamentos de Metodologia. 5. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 31. Comparando
métodos e técnicas, a autora esclarece: “O método é um plano de ação, formado pelo conjunto de etapas
ordenadamente dispostas, destinadas a realizar e a antecipar uma atividade na busca de uma realidade;
já a técnica está ligada ao modo de realizar a atividade, fazendo-a transcorrer de forma mais hábil, mais
perfeita. O método está relacionado à estratégia, e a técnica, à tática. Para melhor entender a distinção
entre método e técnica, devemos levar em conta que o método refere-se ao atendimento de um objetivo,
enquanto que a técnica operacionaliza o método.” Ibid.
44
Transpondo esses conceitos para a teoria geral da prova no processo penal, po-
demos concluir que as técnicas são, em geral, meios de obtenção de prova,11 pois
são o instrumento pelo qual a fonte de prova é explorada a ponto de revelar elemen-
tos que podem ser levados ao processo por intermédio dos meios de prova. Mas a
ação controlada não parece ser um meio de obtenção de prova, embora isso seja
expressamente declarado no artigo 3º da Lei n. 12.850/12. Seria um método então?
De acordo com a previsão legal, a ação controlada consiste no retardamento da
atuação estatal com relação à prática delituosa cometida por membros de organiza-
ção criminosa sob a condição de mantê-la (a prática criminosa) sob vigilância poli-
cial com o escopo de efetivar a atuação policial no momento mais oportuno no que
tange à obtenção de informações para subsidiar a investigação criminal. Há uma fle-
xibilidade diante da flagrância delitiva para tentar aumentar a eficiência da investi-
gação.
Na prática, observa-se que a ação controlada, no mais das vezes, é usada para
abarcar todo e qualquer procedimento de investigação que necessite de sigilo. As-
sim, um mecanismo que foi criado com o escopo de acompanhar o iter criminoso e
postergar o flagrante acabou sendo transformado em uma espécie de inquérito po-
licial sigiloso que vem sendo chamado de ‘operação policial’. Nesse sentido, pode ser
entendida como uma estratégia de investigação que permite que os policiais façam
uma escolha entre efetuar a prisão de integrantes menos influentes e obter elemen-
tos informativos que auxiliem a persecução de todos os seus membros, notadamente
os superiores hierárquicos.12
Embora não haja uma definição sobre o que se enquadra no conceito de ‘opera-
ção policial’, o conhecimento sobre seu desenvolvimento e a conversa com alguns
agentes policiais levam à conclusão de que ela é resultado da adaptação da ação con-
trolada às necessidades da investigação criminal. Isso porque o fator tempo é indis-
pensável para a obtenção de todos os dados necessários à elucidação das complexas
cadeias de fatos envolvendo a atividade das organizações criminosas e apenas a
ação controlada permite protelar medidas ostensivas enquanto são perpetradas téc-
nicas investigativas. Assim, denominam ‘operação’ a investigação sigilosa e organi-
zada com o objetivo de identificar (i) os membros do grupo criminoso, sejam da base
operacional, sejam das lideranças; (ii) sua forma de atuação; (iii) seu patrimônio; e
(iv) eventuais servidores públicos envolvidos. Nos termos do que foi exposto neste
11 De acordo com Antonio Magalhães Gomes Filho, no clássico texto sobre a terminologia da prova, “Os
meios de prova referem-se a uma atividade endoprocessual que se desenvolve perante o juiz, com o
conhecimento e participação das partes, visando à introdução e à fixação de dados probatórios no
processo. Os meios de pesquisa ou investigação dizem respeito a certos procedimentos (em geral,
extraprocessuais) regulados pela Lei, com o objetivo de conseguir provas materiais, e que podem ser
realizados por outros funcionários (policiais, por exemplo).” Ver Notas sobre a terminologia da prova
(reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHEL, Flávio Luiz e ZANOIDE DE MORAES, Maurício. (coord.)
Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 309.
12 SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado. Procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003, p. 91-92.
Cezar Roberto Bitencourt e Paulo César Busato também se referem à ação controlada como “forma de
estratégia policial”. Ver Comentários à lei de organização criminosa: lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 145.
45
trabalho, essa estratégia policial confunde-se com o próprio conceito de ação con-
trolada, que se apresenta como algo de maior amplitude do que um mero instru-
mento da ‘operação’.
Assim, parece fora de dúvida que a ação controlada consiste em um método e
não em uma técnica, porquanto pressupõe um planejamento e envolve a utilização
de diversos meios de obtenção de prova para possibilitar a consecução de seu obje-
tivo. Por consequência, a expressão técnica especial de investigação, utilizada pelos
tratados internacionais, não define adequadamente a natureza jurídica da ação con-
trolada, já que as técnicas são apenas instrumentos para obterem-se dados.
Essa visão sistêmica do instituto é essencial para poder avaliar todos os seus
efeitos e potenciais danos aos direitos e garantias fundamentais dos imputados, so-
bretudo o direito de defesa, pois a duração indefinida de uma investigação sigilosa
perpetua uma invasão da esfera individual dos imputados sem que seja feita análise
de adequação e necessidade. Assim, um controle judicial prévio e periódico é essen-
cial para assegurar a observância das exigências legais para sua realização e, conse-
quentemente, para a validade da investigação levada a cabo em seu bojo.
13Sobre proporcionalidade e reserva legal, cf. Presunção de inocência no Processo Penal Brasileiro: análise
de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010, p. 316-317.
46
tanto, idealizamos que o requerimento de instauração de uma ação controlada diri-
gido à autoridade judicial deve ser consubstanciado em um plano estratégico for-
mulado pela autoridade policial com aprovação do Ministério Público.14
Nesse plano deverá ser apresentada uma comprovação mínima relativa a todas
as exigências que a lei faz para a utilização da ação controlada, dando especial des-
taque para a finalidade, que servirá como limite da duração da investigação. Isso
porque a limitação por meio de unidades temporais improrrogáveis não parece ser
uma boa solução diante da complexidade de uma organização criminosa. Nesse sen-
tido, é mais adequado estabelecer um limite qualitativo, ou seja, em virtude do re-
sultado obtido na investigação. Assim, a limitação da duração da investigação sigi-
losa será definida pelo grau de conhecimento obtido em seu bojo. 15
Para evitar abusos, a autoridade policial deve elaborar relatórios periódicos di-
rigidos ao Ministério Público que efetuará o controle cognitivo, isto é, fará a avalia-
ção sobre a suficiência dos elementos probatórios obtidos e informará o juízo sobre
a necessidade ou não da continuidade da investigação. A autoridade judicial chan-
celará o pedido de permanência do sigilo investigativo, sem adentrar no mérito da
suficiência dos elementos probatórios, sob pena de violação do sistema acusatório,
mas poderá solicitar esclarecimentos e, eventualmente, determinar o fim da inves-
tigação sigilosa no caso de vislumbrar a ocorrência de abusos. 16
Isto posto, é importante examinar cada uma dessas exigências que devem estar
bem delineadas no plano estratégico, em conjunto com as técnicas de investigação
que serão utilizadas para alcançar a finalidade da ação controlada.
(Art. 14 do Projeto de Novo Código de Processo Penal) que poderia realizar o controle periódico do ma-
terial probatório obtido e compará-lo com a previsão do plano estratégico de maneira a avaliar o alcance
do objetivo inicialmente proposto para a investigação. Nesse caso, o procedimento ideal teria o Ministério
Público atuando em conjunto com a autoridade policial na elaboração do plano estratégico e dos relató-
rios periódicos e o magistrado atuando como agente de controle da operação.
47
Tradicionalmente, pensa-se na prisão em flagrante como forma de intervir na
prática delituosa, mas outras formas podem ser pensadas e, consequentemente, re-
tardadas, como a prisão temporária ou preventiva, a busca e apreensão e as medidas
assecuratórias que visão ao sufocamento financeiro das organizações criminosas.
Além disso a deflagração de um processo administrativo disciplinar ou de uma fis-
calização também pode ter o efeito de fazer cessar a atividade delitiva ou, ao menos,
de tornar pública a investigação, impedindo que novos elementos de prova sejam
colhidos.
Destaque-se que a utilização do verbo ‘retardar’ passa a ideia equivocada de
inação ou omissão. Na verdade, a postergação diz respeito apenas à atuação osten-
siva das autoridades, sendo implementados mecanismos de investigação de forma
clandestina para efetivar o monitoramento da ação criminosa se atingir a finalidade
de obtenção de um melhor arcabouço probatório. Assim, enquanto perdurar a ação
controlada, diversas técnicas de investigação, especiais ou não, deverão ser realiza-
das para cumprir o desígnio legal, o que deve ser consignado no plano estratégico
inicialmente apresentado.
Tudo o que foi posto até o momento depende da existência de uma finalidade
específica, conforme disposto no artigo em análise, qual seja “[...] que a medida legal
se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informa-
ções”. Trata-se da obtenção de um ‘mínimo probatório’. A expressão foi extraída da
obra de Maurício Zanoide de Moraes, que a utiliza para aludir ao material necessário
para possibilitar a condenação de um acusado. Todavia, a ideia pode ser utilizada
também no que tange ao recebimento de uma denúncia, alterando-se apenas a carga
probatória exigida. Seria consequência do viés da presunção de inocência como
‘norma de juízo’, que pode ser sintetizado como “Suficiência do material probatório
incriminador para decidir de modo desfavorável ao imputado”.17
O investigador pode prever qual seria o material necessário para corroborar a
suspeita inicial, mas a quantidade e qualidade desses dados sofre constante modifi-
cação no decorrer da atividade investigativa. Poderá reforçar-se até ser suficiente
ao escoramento da denúncia ou poderá ser descoberto dado que refute a hipótese
inicial, deslegitimando a continuidade da ação controlada.
A definição da finalidade na prática é uma grande dificuldade para todos os en-
volvidos na investigação. Para a autoridade policial, pois deve antevê-lo com o auxí-
lio do Ministério Público;18 ao órgão ministerial, a quem incumbe formular a denún-
cia e promover o controle periódico, auxiliando na identificação da necessidade de
17 ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no Processo Penal..., p. 471-472. Apesar de não
haver um consenso sobre a definição desse material, é certo que deve ser identificado casuisticamente
por meio da combinação de critérios quantitativos e qualitativos de prova. O juiz deverá demonstrar a
constatação do “[...] mínimo probatório necessário para afastar aquele direito constitucional em todas as
decisões penais que for chamado a proferir”.
18 Sobre a necessidade da participação do Ministério Público na preparação da ação controlada: “Ora, o
juízo de avaliação da produção probatória deveria estar a cargo daquele para quem a composição proba-
tória é destinada e vai realizar o juízo de valor sobre o início ou não da ação penal, pelo que a fórmula
48
novas diligências e na definição do momento da deflagração da operação; e para o
magistrado, que deverá efetuar a autorização da ação controlada, além de prolatar
a decisão de recebimento ou rejeição da denúncia.
Apresentados o pressuposto, o meio de execução e a finalidade da ação contro-
lada, interessa apontar os requisitos exigidos pela lei como condição para sua utili-
zação: a ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada; e a cooperação
judicial internacional. Ressalte-se, desde logo, que este último é eventual, ou seja, só
será exigido no caso de operações que transcendam fronteiras. A definição de orga-
nização criminosa está esculpida no §1º do artigo 1º da Lei n. 12.850/13 19 e deve
servir de filtro rígido para a aplicação dessa forma de investigação sigilosa, sendo
necessário haver uma comprovação suficiente de que o caso se enquadra na mol-
dura legal.
Por fim, o §1º do artigo 8ª da Lei 12.850/13 exige que o retardamento da inter-
venção policial ou administrativa seja “[...] previamente comunicado ao juiz compe-
tente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Pú-
blico”. Trata-se de uma condição de legalidade da ação controlada que já menciona-
mos ao falar da necessidade de deferimento do plano estratégico. Logicamente, é
antecedente a todas as demais exigências legais. Todavia, como a análise do magis-
trado deve ter como objeto o plano no qual deverão estar consignados o pressu-
posto, o meio de execução, a finalidade e os requisitos, optou-se por tratá-la ao final
da análise do dispositivo legal.
5. Conclusão
deveria, de lege ferenda, somente admitir a realização da ação controlada, ouvido previamente o Minis-
tério Público.” BITENCOURT, Cezar Roberto e BUSATO, Paulo César. Comentários à lei de organização
criminosa..., p. 145.
19 Art. 1o Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de ob-
49
acarretar a nulidade da ação controlada e consequente impossibilidade de se utili-
zarem os elementos informativos colhidos por seu intermédio na propositura de
uma denúncia, sob pena de se configurar prova ilícita.
Nesse contexto de necessário respeito aos direitos e garantias fundamentais
dos imputados, é válido recorrer à construção doutrinária de equilíbrio entre efici-
ência e garantismo, que defende não apenas ser possível a convivência dos objetivos,
mas também postula que só será eficiente a persecução penal que assegurar os di-
reitos de seus imputados. Todavia, é indispensável alertar que, em havendo uma si-
tuação limite na qual seja preciso decidir entre continuar averiguando uma conduta
criminosa e encerrar uma restrição à esfera de direitos de um indivíduo que ultra-
passe os limites da proporcionalidade e não tenha justificação constitucional, a úl-
tima opção deve ser escolhida, sob pena de nulidade de toda a investigação.
No que tange ao procedimento para realização da ação controlada, embora o
plano estratégico ainda não esteja positivado como obrigação legal, deve ser utili-
zado na medida do possível, uma vez que traz grandes benefícios a todos os envol-
vidos na investigação. Aos imputados, proporciona segurança, e para os investiga-
dores, assegura a eficiência.
Note-se, portanto, que já existem alguns parâmetros legais para balizar as ope-
rações policiais. É necessário, apenas, que os órgãos de persecução penal e os ma-
gistrados tenham uma postura de acordo com os direitos e garantias constitucio-
nais, evitando os abusos que maculam o resultado da investigação. O uso adequado
da ação controlada protege, antes de tudo, a sociedade. Isso porque, além de repre-
sentar uma garantia contra abusos estatais, evita a impunidade em virtude da anu-
lação de investigações efetuadas em desacordo com a Constituição Federal.
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51
DA FICÇÃO À REALIDADE –
A PESSOA JURÍDICA NO PROCESSO PENAL
E O PRINCÍPIO DO NEMO TENETUR SE DETEGERE
1. INTRODUÇÃO
A noção de pessoa jurídica enquanto personalidade distinta dos seus sócios re-
monta a Idade Média. A personalidade das pessoas jurídicas é o conjunto de princí-
pios e regras que protegem a pessoa 1.
Assim, os direitos da personalidade se consubstanciam nos bens e valores es-
senciais, no seu aspecto físico e moral, e que legitimam o poder de agir em defesa.
Fundadas nesses valores as pessoas jurídicas foram e são indispensáveis ao de-
senvolvimento da humanidade, desempenhando um papel cada vez mais impor-
tante nos processos integrativos nacional e internacional.
Concomitantemente a essa evolução da pessoa jurídica dentro do contexto so-
cial, se observa a expansão da criminalidade para outros segmentos sociais como o
meio ambiente e a economia, principalmente. Sem precisar discutir os fundamentos
da expansão do Direito Penal, alcança-se como conseqüência o maior envolvimento
da pessoa jurídica nos delitos.
Considerando que uma ficção não pode sofrer sanções corporais, vasto se tor-
nou o debate sobre a possibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica,
havendo exemplos de países que alteraram suas Leis para adequar à nova realidade.
A busca por maior responsabilização penal vem, a nosso ver, desacompanhada
da discussão sobre o reconhecimento de direitos fundamentais que já são reconhe-
cidos às pessoas naturais, enquanto sujeitas às sanções penais.
Isso quer dizer que as garantias dadas às pessoas jurídicas enquanto sujeitas à
jurisdição criminal são inferiores às concedidas às pessoas físicas, ainda que esteja-
mos tratando da mesma criminosa, a exemplo da dupla imputação obrigatória nos
crimes ambientais, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça 2.
Esse desequilíbrio de garantias, muito embora criado sem a necessária funda-
mentação teórica, está relacionado a alguns direitos fundamentais que não aqueles
pertinentes à capacidade de ser parte na relação processual (i.e. garantia ao devido
1 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 140
2 Habeas Corpus nº 248073, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado pela 5ª Turma, em 01.04.2014
53
processo legal e à ampla defesa), mas a direitos que protegem o indivíduo do arbítrio
estatal (i.e. inviolabilidade de domicílio e de correspondência e o direito de não pro-
duzir provas contra si próprio).
Na medida em que a discussão sobre a possibilidade de reconhecimento de tais
direitos fundamentais às pessoas jurídicas depende de análise casuística, no pre-
sente artigo será tratada apenas o direito de não produzir provas contra si próprio
– nemo tenetur se detegere.
Assim, sem querer esgotar o debate, o presente artigo irá abordar duas ques-
tões preliminares, quais sejam: a) se há algo na natureza da garantia que a torne
inaplicável às pessoas jurídicas?; b) se há algo na natureza das pessoas jurídicas que
torne a garantia inaplicável?
Não se sabe ao certo quando o princípio do nemo tenetur teve sua origem exata.
Relatos históricos retratam que tanto nas civilizações gregas e romanas e na Idade
Média – distantes muitos séculos entre si, a tortura era considerada como meio le-
gítimo de obtenção de prova eis que ser via de instrumento para tornar exequível a
obrigação de falar.
A Talmud judaica, por outro lado, desde o século III A.C. interpretava a lei no
sentido de não se admitir que o acusado fosse compelido a depor contra si mesmo,
sob o fundamento que as severas conseqüências de uma confissão deveriam ser atri-
buídas somente a Deus3.
Segundo Pinto4, o princípio do nemo tenetur se ipsum accusare teve a sua origem
no Reino Unido, no século XVII como reação às práticas inquisitoriais dos tribunais
eclesiásticos.
Foi com o movimento iluminista no século XVIII, contudo, que o princípio se
consolidou, consubstanciando em garantia do indivíduo quando interrogado, rom-
pendo com o conceito de que o acusado também seria objeto de prova 5.
A evolução do princípio, conforme anota Cuceiro 6, levou o escopo de proteção
para além da inexigibilidade de confissão no interrogatório de forma que hodierna-
mente o princípio se põe como verdadeira cláusula de presunção de não culpabili-
dade.
Enquanto regra escrita, o princípio foi positivado pela primeira7 vez pela Virgi-
nia Declaration of Rights de 17768, sendo que apenas no ano de 1791, ganhou status
3 CUCEIRO, João Carlos. A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: Ed. RT, 2009, p. 29.
4 PINTO, Lara Sofia. Privilégio Contra a Auto-Incriminação Versus Colaboração do Argüido. Prova criminal
e direito de defesa – estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal. Org: Teresa
Pizarro Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto. Lisboa: Almedina, 2010, p.100.
5 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 8
6 CUCEIRO, João Cláudio. A garantia constitucional do direito ao silencio. São Paulo: Ed. RT, 2004, p. 29
7 Op cit., p. 74
8 in all "criminal prosecutions" no one can "be compelled to give evidence against himself."
54
de princípio constitucional, quando foi inserido na Constituição dos Estados Unidos
pela quinta emenda.
No âmbito das relações internacionais brasileiras, a garantia veio positivada no
art. 14, 3. d9, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966 e no art.
8º, 2, g10, da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa
Rica, de 1969.
O Código de Processo Penal brasileiro de 1941 prevê no seu art. 186, parágrafo
único, que o silêncio não pode ser interpretado como confissão, nem em prejuízo da
defesa.
Mais recentemente, a Constituição Federal de 1988 trouxe no seu art. 5º, LXVIII,
que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado,
sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.
9 Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes
garantias: De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
10 Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às
seguintes garantias mínimas: direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se
culpada.
11 Quinn v USA, 349 U. S. 155 (1955)
12 Emspak v USA, 349 U. S. 190 (1955)
13 Smith v. United States,337 U. S. 137 (1949)
14 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo: Saraiva, 2003, p.
54
15 Idem.
55
cooperar na investigação e apuração de delitos, bem como contra métodos proibi-
dos no interrogatório, sugestões e dissimulações, ou seja, consubstancia numa bar-
reira de proteção contra o arbítrio estatal.
A esfera de proteção do indivíduo contra o arbítrio estatal, ao menos em relação
ao sistema jurídico brasileiro parece estar bem delineada, após diversos pronuncia-
mentos jurisdicionais inclusive sobre a obrigatoriedade de submissão obrigatória
do exame de alcoolemia16.
Contudo, a construção histórica do princípio não enveredou na sua aplicação
aos entes coletivos. As razões são as mais óbvias possíveis, a imputação de respon-
sabilidade criminal às pessoas jurídicas é recente em termos legislativos e não veio
acompanhada da criação de um sistema punitivo próprio 17.
Em que pese o fato de que a lacuna não seja exclusiva do direito brasileiro, ou-
tros sistemas jurídicos já tiveram a oportunidade de preenchê-la, a exemplo do sis-
tema norte-americano.
Na jurisprudência norte-americana, o direito de não produzir provas contra si
mesmo de titularidade das pessoas jurídicas tem origem no século XVIII, no caso Rex
v. Cornelius18 a inspeção aos livros societários foram negadas por se buscarem infor-
mações contra magistrados que teriam concedidas certas licenças a que tinham po-
der discricionário, segundo as leis e costumes vigentes
Em outro caso, King v. Purnell19, em 1748, houve negativa de produção de infor-
mações dos livros da Universidade de Oxford relativamente à conduta do réu da
ação, enquanto este ostentava a qualidade de membro da instituição.
Foi somente no final do século XIX que a afirmação do privilégio contra a auto-
incriminação das pessoas jurídicas foi efetivamente afirmado. No caso Logan v
Pennsylvania R. Co.20, a Corte Suprema da Pensylvania refutou os argumentos do au-
tor da ação de que os documentos que pretendiam ser produzidos os seriam por
uma pessoa natural, a quem caberia comparecer à Corte e, eventualmente, prestar
compromisso e ser inquirida. A decisão entendeu as rules of evidence e as rules of
law for the production of writings 21 são essencialmente as mesmas quando o réu é
pessoa natural ou artificial22.
16 Recurso Especial 1.111.566, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, julgado em 23.08.2012
17 Especificamente quanto a inexistência de um sistema específico de imputação e sanção criminal
adequado à realidade dos entes coletivos, Moraes critica a Lei nº 9.605/98 – Lei de Crimes ambientais e
sustenta, eventualmente, a sua inaplicabilidade aos entes coletivos diante da lacuna legislativa.(MORAES,
Rodrigo Iennaco de. Considerações sobre a Responsabilidade Criminal das Pessoas Jurídicas, Revista dos
Tribunais. Jul. de 2003, vol. 813, p. 447-472)
18 Rex v. Cornelius (1744) 2 Stra. 1210
19 King v. Purnell (1748) 1 W. Bl. 37, 45.
20 Logan v. Pennsylvania R. Co. (1890) 132 Pa. St. 403, 408
21 O direito norte-americano possui regras particulares para cada tipo de prova que se pretende produzir,
estabelecendo, inclusive, procedimentos incidentais e preparatórios, não sendo possível traçar uma
teoria geral da prova como se faz no direito brasileiro.
22 Em se tratando de prova testemunhal, no caso Davies v. Lincoln Nat. Bank, a testemunha que não esti-
vesse sob nenhuma ameaça não poderia se recusar a testemunhar contra seu diretor ou outro diretor da
empresa (Davies v. Lincoln Nat. Bank, 4 N. Y. Supp. 373.)
56
Contudo, a Corte Suprema dos Estados Unidos, quando do julgamento do caso
Hale v Henkel decidiu em obiter dictum que as pessoas jurídicas não são sujeitas às
garantias previstas na 5ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, em especial ao
privilégio contra auto-incriminação.
No caso, Hale, pessoa responsável pela contabilidade de uma empresa, foi inti-
mado a produzir como prova os livros e dados contábeis dessa pessoa jurídica e se
recusou a mostrá-los ao Tribunal, pois tais documentos poderiam incriminar a pes-
soa jurídica e, por esse motivo, requereu seu direito previsto na 5ª Emenda.
A questão principal do caso trata da possibilidade de Hale invocar a 5ª Emenda,
quando em verdade, estava acobertado por imunidade de jurisdição, em razão das
previsões do Immunity Act.
Em seu voto Justice Brown afirmou que se sempre que um empregado ou dire-
tor de uma corporação fosse intimado para depor perante o grand jury como teste-
munha ele pudesse se recusar a produzir os livros e documentos da companhia
como prova sob o fundamento de que poderiam incriminá-la, haveria um grande
insucesso em casos criminais, especialmente naqueles em que a prova principal é
documental.
Mesmo que o argumento não seja técnico, ressalta Proskauer23 que o dictum é
limitado à hipótese em que um gerente é pessoalmente intimado e não à hipótese
em que a pessoa jurídica é intimada pessoalmente.
Não se trata, ao que parece, de afirmar que as pessoas jurídicas não tenham
nenhum direito fundamental, a exemplo do previsto na 4ª Emenda à Constituição
dos Estados Unidos que trata da ilegalidade das buscas e apreensões sem fundamen-
tação, Justice Brown, no mesmo obiter dictum, estendeu às empresas o conceito de
pessoa previsto no texto constitucional24.
Alguns poucos anos após o julgamento de Hale v Henkel, a Suprema Corte ame-
ricana se debruçou novamente sobre o tema quando julgou o caso Wilson v United
States, que representou a oposta situação do precedente, ou seja, a companhia foi
intimada a produzir livros e registros contábeis perante do grand jury.
Não obstante, Wilson, gerente da companhia, alegou que a prova não poderia
ser produzida, pois a mesma poderia incriminá-lo. A Corte Suprema então decidiu
que a proteção contra a auto-incriminação da pessoa do gerente era limitada aos
seus registros pessoais e não àqueles registros da companhia que ele eventualmente
escreveu ou assinou e que estejam em sua posse, mesmo 25 que esteja sendo acusado
pelos mesmos fatos.
23 Complementa ainda Proskauer referindo que Justice Brown, mais adiante em seu voto, faz uma
segregação entre a pessoa humana e a pessoa jurídica, indicando que pelo fato das companhias gozarem
de privilégios especiais e autorizações governamentais os privilégios corporativos devem vir
acompanhados das responsabilidades corporativas. (Proskauer, Joseph M. Corporate Privilege against
Self Incrimination. The Virginia Law Register, Vol. 17, No. 6 (Oct., 1911), Virgina Law Reviw, pp. 417-425
24 A conclusão do Justice Brown não foi seguida pelo Justice Harlan, que entendeu não serem as pessoas
jurídicas sujeitas a qualquer das garantias fundamentais, sejam as previstas na 4ª Emenda, sejam as
previstas na 5ª Emenda.
25 Especificamente com relação aos livros e registros corporativos, a Corte Suprema entendeu que o poder
conforme a Constituição da República. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. Vol, p. 108-109. No mesmo
sentido, Pontes de Miranda observa que não só o ente humano tem personalidade, ou seja, não só ele é
pessoa. Outras entidades podem ser sujeitos de direito; portanto, ser pessoa, ter personalidade. A tais
entidades, para não se confundirem com as pessoas-homens, dá-se o nome de pessoas jurídicas, ou mo-
rais, ou fictícias, ou fingidas (Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, t. I,
Campinas, Bookseller, 1990, p. 20)
29 idem
30 MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
58
a exemplo do previsto no art. 5º, LXI, da CF/88, podem ser titularizados pelos entes
coletivos.
Sustentando uma interpretação inclusiva das pessoas jurídicas no texto consti-
tucional, Bastos e Martins 32 ressaltam que a CF disse menos do que pretendia, de
forma que interpretá-lo de forma literal levaria à conclusão absurda de que este só
beneficiaria as pessoas físicas33.
Ademais, em muitas hipóteses a proteção última ao individuo só se dá por meio
da proteção que se confere às próprias pessoas jurídicas, a exemplo do direito de
propriedade.
Adotando outra perspectiva, Moraes34 argumenta que se às pessoas jurídicas é
garantido direito à existência, este de nada adiantaria se fosse possível excluí-las de
todos os seus demais direitos. Dessa forma, os direitos enumerados e garantidos
pela Constituição são de pessoas físicas e jurídicas, pois tem direito à existência, a
segurança, a propriedade, a proteção tributaria e aos remédios constitucionais.
A Corte Suprema brasileira 35, por sua vez, ao julgar a ação cautelar nº 2.395,
decidiu estar superada qualquer interpretação que limite às pessoas naturais os di-
reitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, afastando ato do Po-
der Executivo que, em prejuízo de pessoa jurídica de direito público e violando o
devido processo legal, a incluiu em cadastro negativo de devedores.
Mesmo que a doutrina e a jurisprudência brasileiras, por um lado, não tenham
evoluído na discussão sobre os limites e a natureza do princípio do nemo tenetur e
sua compatibilidade com as pessoas jurídicas, por outro, se buscou consolidar um
conceito de personalidade jurídica que garante status de pessoa equiparado às pes-
soas naturais, com as devidas e pertinentes ressalvas, mas apto a titularizar direitos
fundamentais.
O sistema legal brasileiro não é claro quanto aos direitos e garantias fundamen-
tais da pessoa jurídica. Ao analisar alguns aspectos do sistema jurídico norte-ameri-
cano foi possível entender que garantias existem, mas obedecem a uma lógica pró-
pria, inclusive quanto à concessão de imunidade de jurisdição quer a réus pessoas
físicas, quer pessoas jurídicas.
32 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários À Constituição do Brasi. 2º Volume. Ed.
Saraiva, 1989. p. 5
33 FERREIRA e ALVES destacam que a jurisprudência se consolidou (súmula nº 227 do STJ)
59
Aproximando a questão para a realidade brasileira, embora precedentes da
Corte Suprema americana do início do século passado afirmem que os entes coleti-
vos não são sujeitos do princípio do nemo tenutur, essa conclusão não deve ser ado-
tada por empréstimo.
Analisando a natureza jurídica dos entes coletivos, frente ao rol de direitos fun-
damentais já consagrados pela doutrina e jurisprudência nacionais, bem como a na-
tureza jurídica do princípio, que transcende o caráter individual para se pôr como
verdadeira cláusula de defesa contra o arbítrio estatal, há compatibilidade a fim de
permitir sua invocação em nosso sistema jurídico.
A Corte Suprema brasileira, em decisão liminar de seu então Presidente, Min.
Celso de Mello, nos autos do habeas corpus nº 77.70436, afirmou que a garantia con-
tra auto-incriminação se trata de direito público subjetivo, revestido de expressiva sig-
nificação político-jurídica, que impõe limites bem definidos à própria atividade perse-
cutória exercida pelo Estado e que essa prerrogativa jurídica, na realidade, institui um
círculo de imunidade que confere, tanto ao indiciado quanto ao próprio acusado, pro-
teção efetiva contra a ação eventualmente arbitrária do poder estatal e de seus agen-
tes oficiais.
Uma vez entendida pela compatibilidade entre o princípio e a pessoa jurídica
dentro do sistema jurídico brasileiro, ainda deverá ser objeto de discussão os limites
em que a pessoa jurídica poderá invocar o direito de não produzir provas contra si.
Ao que parece claro é que nos crimes ambientais onde a pessoa jurídica pode
se ver processada criminalmente, o princípio possa ser invocado sem qualquer tipo
de restrição, contudo merece maior reflexão outras vertentes.
6. CONCLUSÃO
36 Habeas corpus nº 77.704, Rel. Min. Syney Sanches, decisão liminar publicada em 31.07.98
60
Ao responder a segunda pergunta, foi possível concluir que a doutrina nacional
e até mesmo o STF se posicionaram no sentido de que a personalidade concedida
pela Lei às pessoas jurídicas garante no mesmo nível de igualdade, ressalvadas al-
gumas incompatibilidades naturais, acesso a todo o rol de garantias fundamentais
previsto na CF/88.
Apesar da questão no âmbito do direito brasileiro ainda não ter chegado a essa
profundidade de discussão, quer pelos movimentos legislativos tendentes a ampliar
o rol de crimes que podem ser praticados pelas pessoas jurídicas, quer pelo aumento
sistemático dos pedidos de cooperação, em breve os Tribunais brasileiros serão pro-
vocados a decidir sobre os limites das garantias fundamentais atribuíveis às mes-
mas.
61
PARTE II
JUSTIÇA PENAL
COLABORATIVA
APRESENTAÇÃO
FÁBIO CASAS
Mestrando em Direito Penal pela UERJ.
Pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de
Direito Penal Económico e Europeu da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal.
Diretor Tesoureiro do Grupo Brasileiro da AIDP. Advogado
1 Mais especificamente, além deste, a saber: Áustria, Bélgica, Canadá, Egito, Espanha, Estados Unidos,
Finlândia, França, Grécia, Hungria, Índia, Israel, Itália, Iugoslávia, Japão, Países Baixos, Polônia, Portugal,
Repúblicas Democrática e Federal da Alemanha, Romênia, Suécia, Suíça, Taiwan, Tchecoslováquia,
Turquia e União Soviética. Embora não tenha enviado um representante para o Colóquio, o Brasil
colaborou fornecendo um riquíssimo panorama sobre a situação do direito penal econômico no país à
época. Elaborado pelo Prof. Dr. Nilo Batista e escrito em francês, língua oficial da AIDP, o relatório
nacional brasileiro pode ser encontrado na Revue Internationale de Droit Penal – Conception et principes
du droit penal economique et des affaires y compris la protection du consommateur – Actes du Colloque
International tenu à Freiburg-en-Brisgau, République Féderale d'Allemagne, 20-23 septembre 1982. Vol.
54 - Toulouse: Editions Erés, 1983. p. 157 e ss..
65
Por fim, como de costume, antes da cerimônia de encerramento, foi discutido e
votado o projeto de resoluções para subsidiar as deliberações do XIII Congresso In-
ternacional, sediado pela capital egípcia em 1984.
2. Não bastasse, por si só, a relevância histórica do marco propositivo formu-
lado pelos ilustres membros da AIDP nos idos da década de 1980, cumpre dar relevo,
em razão de sua notável atualidade, a alguns detalhes percucientemente registrados
por dois insígnes catedráticos conimbricenses então presentes ao evento.
Assegurando a representação portuguesa, na impossibilidade de os Professores
Eduardo Correia e Jorge de Figueiredo Dias o fazerem, os Drs. José de Faria Costa e
Manuel da Costa Andrade, em suas Notas a propósito do Colóquio Preparatório da
AIDP, testemunharam não ter sido “difícil suscitar o consenso dos participantes […]
em torno das razões a que deve, em primeira linha, imputar-se o cada vez maior
interesse pelo direito penal económico”2.
A par do “aumento explosivo de normas incriminatórias e sancionatórias de ilí-
citos em matéria econômica”3, foram declinados outros três motivos determinantes.
Tratam-se, em suma, de constatações verificadas nos âmbitos filosófico-cultural, po-
lítico e, naturalmente, econômico.
Quanto ao primeiro dos aspectos, percebeu-se uma dupla demanda social ori-
entada, basicamente, pelos vetores da igualdade e da solidariedade: por um lado,
uma verdadeira colisão envolvendo “a reivindicação cada vez mais generalizada
duma igualdade real entre os cidadãos” e “a experiência de um direito penal que
prende os pequenos e deixa fugir os grandes” - ou seja, “um sistema penal que, sob
uma ideologia igualitária, distribui diferencialmente a criminalização e a impuni-
dade, tanto em sede legislativa, como de reacção formal”; já por outro, o desenvolvi-
mento, pela ideia de solidariedade, de “um novo ethos, axiológico e político, aos com-
portamentos desviantes em matéria de ordenação económica, até então valorados,
no consciente coletivo, como meros Kavaliersdelikte”.
Politicamente, destacou-se a “superação do modelo liberal no que respeita às
relações entre o Estado e a Sociedade, o Direito e a Economia”, confrontando-se os
governos contemporâneos com a necessidade crescente de multiplicar suas injun-
ções sobre a vida econômica. Daí “a mobilização praticamente quotidiana das reac-
ções criminais para tentar induzir conformidade”.
Por derradeiro, apontou-se ter sido decisivo o impacto da crise econômica ex-
perimentada naqueles anos, o que teria imprimido força aos argumentos a favor da
criminalização de condutas economicamente nocivas. Face a isso, os efeitos da crise
teriam despertado “no domínio específico do direito penal económico um efeito ho-
mólogo ao da reivindicação law and order no plano do direito em geral”.
2 ANDRADE, Manuel da Costa, COSTA, José de Faria. Sobre a concepção e os princípios do direito penal
econômico – Notas a propósito do Colóquio Preparatório da AIDP (Freiburg, Setembro de 1982) in Direito
penal económico e europeu: Textos doutrinários, vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 347.
3 Idem. Para evitar constantes interrupções remissivas, adianta-se, desde logo, terem sido as seguintes
transcrições não identificadas, mantidas entre aspas, retiradas da mesma obra, p. 348-349, respeitando-
se a grafia e os destaques do original.
66
3. De forma sintética, poderíamos resumir o diagnóstico retratado no item an-
terior como sendo fruto do amadurecimento social face à seletividade penal, da fa-
lência do liberalismo econômico e de uma expectativa transformadora, ingenua-
mente positiva, do direito penal na esfera econômica.
Passadas mais de três décadas, aquela realidade europeia não muito se difere
da nossa atual.
Com efeito, os anseios sociais por severas punições à chamada criminalidade do
colarinho branco têm se acentuado. A opinião pública vem manifestando, ao menos
desde o espetaculoso julgamento da Ação Penal 470, pelo Supremo Tribunal Fede-
ral, uma consciência crítica aguda com relação a casos de corrupção, desvio de re-
cursos públicos, fraude a licitações e, sobretudo, à impunidade de tais práticas. Aos
olhos da população, ainda que sob inegável influência midiática, julgamento exem-
plar de grandes empresários e políticos e penas elevadas seriam a solução para os
problemas hodiernamente atravessados pelo Brasil.
A essa questionável tendência de manejo do direito penal em prol de “um
mundo melhor”, agregue-se um período nacional de fortes abalos econômicos e po-
líticos, recentemente marcado pela mais alta cotação do dólar, até hoje, desde a cri-
ação do Plano Real, pelo intento de ressuscitar a Contribuição Provisória sobre Mo-
vimentação Financeira, pelo anúncio de uma reforma ministerial acompanhada de
corte de gastos federais, além de suspeitas e escândalos de corrupção, investigações
oficiais e ações penais envolvendo as cúpulas política e empresarial do país.
Em meio a esse plexo conjuntural, abre-se um fértil campo para aquelas aspira-
ções político-criminais amparadas em movimentos de demanda por ordem, segu-
rança e penalização denunciadas nas Notas subscritas por José de Faria Costa e Ma-
nuel da Costa Andrade.
São, enfim, sinais dos tempos a merecer redobrada vigilância por parte dos es-
tudiosos das ciências jurídico-penais e, sobretudo, dos defensores de rígidos limites
ao exercício do poder punitivo pelo Estado.
4. Não por acaso os quatro papers ora reunidos na segunda parte desta publi-
cação dedicam-se ao enfrentamento de questões de considerável recência. Oriundas
de inovações legislativas ocorridas no último lustro, as controvérsias abordadas si-
tuam-se em terrenos sensíveis do direito penal econômico.
De fato, do contato com tradicionais institutos da dogmática penal, exsurgem
pontos de choque a exigir atitudes de compatibilização ou superação teóricas, mui-
tos deles incidindo sobre zonas de tensão em que convergem, de um lado, anseios
por uma maior efetividade sistêmica e, de outro, a observância de inafastáveis ga-
rantias penais e processuais.
Com base exatamente nessa premissa reflexiva, os trabalhos a seguir enfren-
tam, cada qual em extensão e profundidade específicas, os impactos causados pelo
novel panorama de normas de direito e processo penal, mesmo quando adrede-
mente embaladas em rótulos de proposições de natureza administrativa, muitas de-
las praticamente traduzidas e transpostas de ordenamentos jurídicos estrangeiros
para o nosso.
67
Ganham espaço, nesse campo de análise, novos debates ainda pouco enfrenta-
dos com solidez, como é o caso dos desafios de compatibilização dos programas de
criminal compliance à realidade jurídica brasileira, mormente quando utilizado
como mecanismo voltado à determinação da autoria delitiva; da necessidade de re-
gulamentação da prática do whistleblowing, bem como o seu convívio com os impe-
rativos da não auto-incriminação e seus reflexos nas causas excludentes da ilicitude
quando do compartilhamento de informações sigilosas; e de relevantes questiona-
mentos envolvendo as crescentes preocupações com a gestão da informação nesse
novo contexto social e corporativo e a tensão instaurada a partir da adoção de um
modelo de justiça penal colaborativa.
5. Em tais questões concentra-se, em brevíssima síntese, a contribuição ora
ofertada à comunidade jurídica pelos acadêmicos e jovens penalistas Gustavo de
Carvalho Marin, Theuan Carvalho Gomes, Helder Lacerda Paulino, Jéssica Rachel
Sponchiado e Fernando Andrade Fernandes, estes últimos em esforço conjunto. Que
suas linhas sejam lidas hoje, amanhã e daqui a três ou mais décadas, servindo, quiçá,
de fonte de inspiração às novas gerações!
68
CRIMINALIDADE EMPRESARIAL
E PROBLEMAS NO ESTABELECIMENTO
DE UMA CULTURA DE COMPLIANCE NO BRASIL
* Todas as citações retiradas de trabalhos elaborados em língua estrangeira foram livremente traduzidas.
1 AGRAWAL, Anup; SAHIBA, Chadha. Corporate governance and accounting scandals. Journal of Law and
Economics, vol. XLVIII, The University of Chicago, Outubro de 2005, p. 371-372. Ulrich Sieber analisa a
recente e maior profusão dos compliance programs como resposta aos escândalos envolvendo
criminalidade econômica nos contextos norte-americano e europeu, mencionando expressamente a
bancarrota de empresas como WorldCom, Enron, Parmalat e Flowtex. Mais adiante, afirma o autor
também que a Sarbanes-Oxley impulsionou a proliferação destes programas de cumprimento, na medida
em que determinou a responsabilidade da direção das empresas por infrações, a publicação de
modificações fundamentais no status financeiro das companhias, a criação de instrumentos de auditoria
e de controle interno da informação, a publicação atualizada de modificações fundamentais na situação
financeira das empresas, além do estabelecimento de canais de comunicação anônimos para notificação
e elucidação de delitos (hotlines). SIEBER, Ulrich. Programas de compliance no direito penal empresarial:
um novo conceito para o controle da criminalidade econômica. Trad. Eduardo Saad-Diniz. OLIVEIRA,
William Terra de et al. Direito penal econômico: estudos em homenagem ao professor Klaus Tiedemann.
São Paulo: LiberArs, 2013, p. 291 e 297.
69
americano2, de proporções drásticas e globais3, deu ensejo à publicação em 2011 da
Dodd-Frank Wall Street Reform and Customers Protection Act, voltada a uma mais
profunda normatização do mercado financeiro e também à criação de novos deveres
às companhias atuantes no setor.
A dimensão dos escândalos financeiros norte-americanos e as consequentes
propostas de regulação jurídica transcendem as fronteiras dos Estados Unidos, algo
potencializado pela influência e impacto dos fatos ocorridos e decisões tomadas na-
quele país por sobre as demais economias nacionais4. Esse conjunto de fatores faz
com que as tendências da experiência norte-americana, e em grande medida tam-
bém europeia, tenham impulsionado novos questionamentos acerca de modelos
adequados de se domesticar juridicamente mercados cada vez mais autônomos e
2 A crise de 2008 expôs o déficit de informação por parte das autoridades acerca da transparência do
setor financeiro e da real situação dos agentes econômicos que nele atuam. Em vez de incrementarem
seus negócios para financiar o processo produtivo e comercial, elaborando mecanismos de
gerenciamento de riscos que permitissem o custeio de inovações no “setor real da economia”, o mercado
financeiro – monetário, de crédito e bolsas de valores – se expandiu em sentido contrário, lastreado em
títulos agenciados por investidores. Neste sentido, a tolerância ao risco aumentou exponencialmente em
face da perspectiva de ganhos, fazendo aumentarem também as especulações e operações de curto prazo,
as quais, por sua vez, desenvolviam-se em um cenário pouco regulamentado e desvinculado de uma base
econômica real. Daí o surgimento de “bolhas de ativos”: aumentando-se a demanda por residências,
igualmente aumentava-se o preço dos imóveis, o que proporcionava um fomento do crédito, cuja
quantidade ofertada, a seu turno, era diretamente proporcional à demanda, ocorrendo este processo de
modo livre de maiores exigências legais ou econômicas. Em consequência, proliferaram-se operações
com títulos duvidosos, que não transpareciam a série de riscos acarretados nas transações, algo
potencializado ainda pela crença questionável no sucesso perene daquele mercado e da economia
estadunidense considerada em sua integralidade. O subsequente aumento da inadimplência conduziu a
um excedente na oferta de crédito, reduzindo o valor dos títulos sobrevalorizados, fator que levou a
vultosos desfalques financeiros por parte das instituições que haviam concedido crédito com base
fragilizada, deflagrando assim a crise e provocando uma reação em cadeia que atingiu inclusive os
mercados da economia real. FARIA, José Eduardo. O Estado e o direito depois da crise. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 22-24.
3 “No epicentro do problema estava a montanha de títulos de hipoteca ‘tóxicos’ detidos pelos bancos ou
comercializados por investidores incautos em todo o mundo. [...] No fim de 2008, todos os segmentos da
economia dos EUA estavam com problemas profundos. A confiança do consumidor despencou, a
construção de habitações cessou, a demanda efetiva implodiu, as vendas no varejo caíram, o desemprego
aumentou e lojas e fábricas fecharam. Muitos dos tradicionais ícones da indústria dos EUA, como a
General Motors, chegaram perto da falência, e um socorro temporário das montadoras de Detroit teve de
ser organizado. A economia britânica estava igualmente com sérias dificuldades, e a União Europeia foi
abalada, mesmo com níveis desiguais [...]”. HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo.
Trad. João Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 10 e 13.
4 Renato de Mello Jorge Silveira e Eduardo Saad-Diniz destacam que os dispositivos da Sarbanes-Oxley
5 MAYNTZ, Renate. Financial market regulation in the shadow of the sovereign debt crisis. MPIfG. Discus-
sion Paper 13/11. Max Planck Institute for the Study of Societies: Colônia, set. 2013. Disponível em: <
www.mpifg.de/pu/mpifg_dp/dp13-11.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2015.
6 Endereçando a questão sob o prisma da necessidade de responsabilidade individual de executivos das
instituições financeiras pelos resultados lesivos da crise, cf. QUIGLEY, Robert. The impulse towards indi-
vidual criminal punishment after the financial crisis. Virgina Journal of Social Policy and the Law, 15 mai.
2014.
7 Gunther Teubner enumera uma série de casos a partir dos quais se pode constatar esta ampliação da
tal qual delineada por Sérgio Salomão Shecaira, segundo quem ela “é uma disciplina que oferece aos
poderes públicos as opções científicas concretas mais adequadas para controle do crime, de tal forma a
servir de ponte eficaz entre o direito penal e a criminologia, facilitando a recepção das investigações
empíricas e sua eventual transformação em preceitos normativos”. SHECAIRA, Sérgio Salomão.
Criminologia. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 52. A fundamentação político-
criminal do direito penal, no entanto, compromete o fechamento operativo do sistema jurídico,
atribuindo papel de demasiada relevância a uma política criminal cujo conteúdo se mostra de difícil
delimitação concreta, aumentando os riscos de expansão punitiva e de condicionamento do direito penal
a questionáveis racionalidades políticas. SAAD-DINIZ, Eduardo. Inimigo e pessoa no direito penal. São
Paulo: LiberArs, 2012, p. 90-91. De todo modo, a construção teórica de Shecaira segue tendo capacidade
de rendimento para explicar as transformações de perspectiva sobre a empresa e suas interrelações com
o direito penal.
9 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas. In: OLIVEIRA, William terra
de; LEITE NETO; Pedro Ferreira; ESSADO, Tiago Cintra; SAAD-DINIZ, Eduardo. Direito penal econômico:
estudos em homenagem aos 75 anos do Professor Klaus Tiedemann. São Paulo: Editora LiberArs, 2013,
71
O predomínio global de uma lógica de eficiência alocativa e a escala transnaci-
onal dos problemas penais lançam dúvidas sobre a capacidade dos Estados nacio-
nais de organizarem por si o funcionamento dos mercados, inclusive no que con-
cerne ao controle da criminalidade de empresa. Disso decorre a busca de uma maior
simetria de informações por meio do direito penal, bem como a imposição aos agen-
tes econômicos de deveres de colaboração com autoridades estatais, ao que se rela-
ciona ainda uma cada vez maior internalização pelos ordenamentos jurídicos naci-
onais de international legal standards de criminalização. A instabilidade dos com-
portamentos econômicos em cenários de desregulamentação e desconfiança impul-
siona movimentos de expansão das normas penais, mas também induz o estabeleci-
mento de mecanismos “do tipo comply or disclosure” pelas companhias, voltados à
prevenção dos delitos cuja incidência no cotidiano empresarial é mais significativa 10.
Daí serem rediscutidas as possíveis interações entre Estado e empresas no ge-
renciamento de riscos relacionados ao cometimento de delitos no âmbito corpora-
tivo: a preservação do sistema econômico guarda direta relação com a difícil redu-
ção da instabilidade gerada por comunicações disfuncionais 11, que colocam as auto-
ridades defronte o problema do momento e forma de intervenção mais apropriados,
em escalas nacional e internacional. Um efetivo livre comércio, nesta linha, depen-
deria do estabelecimento bem definido das “regras do jogo”, o que demandaria ainda
o delineamento de uma espécie de “governança global” caracterizada pela imposi-
ção de determinadas restrições à liberdade de atuação empresarial12.
p. 350. A atuação transnacional de empresas, nas quais se concentra uma considerável quantidade de
riquezas, conduz ao surgimento de novas modalidades de exercício do poder corporativo que mitigam a
soberania dos Estados e descentralizam a organização social, causando também problemas com
frequentes reflexos na seara penal. SHECAIRA, Sérgio Salomão; SARCEDO, Leandro. A responsabilidade
penal da pessoa jurídica no projeto de novo Código Penal (projeto de lei do Senado nº 236/2012). In:
CHOUKR, Fauzi Hassan; LOUREIRO, Maria Fernanda; VERVAELE, John (org.). Aspectos contemporâneos
da responsabilidade penal da pessoa jurídica, vol. II. São Paulo: Fecomércio-SP, 2014, p. 13 e ss.
10 SAAD-DINIZ, Eduardo. Fronteras del normativismo: a ejemplo de las funciones de la información en los
programas de criminal compliance. Revista da Faculdade de Direito, v. 108, 2013, p. 416-417 e 421-424.
11 Tercio Sampaio Ferraz Junior trabalha a noção de poder econômico contextualizando-o na sociedade
de consumo, atribuindo a ele um sentido de “gestão orgânica”: o poder econômico não mais pertence a
uma pessoa física individualizada, sendo mais próximo de “um modo eficiente de organização nesse
grande círculo do consumo”; ou seja, uma maneira de racionalização da organização, de modo a capacitá-
la ao gerenciamento de um processo consumista circular. Este ciclo, pautado na ética do resultado, separa
as práticas econômicas da racionalidade jurídica, fazendo aumentar a distância entre o formalismo do
direito e a tecnocracia do poder econômico. Neste contexto, em que as fórmulas jurídicas podem
apreender qualquer conteúdo, o direito econômico corre o risco de se tornar manipulável a favor da
lógica própria da economia, conduzindo o poder econômico a uma posição de quase absoluta
independência em relação ao direito formal. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Poder econômico e gestão
orgânica. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio; SALOMÃO FILHO, Calixto; NUSDEO, Fabio (org.). Poder
econômico: direito, pobreza, violência, corrupção. Barueri-SP: Manole, 2009, p. 24-26.
12 HARVEY, David. A brief history of neolibealism. Nova York: Oxford University Press, 2005, p. 80. Renate
Mayntz utiliza o termo governança referindo-se a “todas as instituições designadas para a resolução
deliberada de problemas coletivos, independentemente do caráter privado ou público dos atores
envolvidos e do modo hierárquico ou horizontal da interação (propositada) entre eles”. O termo
“instituições”, neste universo teórico, compreende tanto os agentes como os regimes regulatórios
envolvidos, refletindo uma distinção interna à teoria da governança realizada por Mayntz – mais
especificamente entre (i) a “arquitetura (ou estrutura) da governança”, focada nos atores envolvidos,
além (ii) dos “instrumentos da governança”, meios de intervenção voltados à consecução das finalidades
72
2. Criminal compliance e a incipiente experiência brasileira
almejadas. MAYNTZ, Renate. The architecture of multi-level governance of economic sectors. MPIfG. Dis-
cussion Paper 07/13. Max Planck Institute for the Study of Societies: Colônia, set. 2013, p. 6. Disponível
em: <http://www.mpifg.de/pu/mpifg_dp/dp07-13.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2015.
13 A regulação estritamente privada concentra suas atenções na figura do indivíduo (homo oeconomicus),
colocando o conteúdo das normas em função da avaliação de que o comportamento depende das
possibilidades de obtenção de lucro. Já o segundo modelo compreende os instrumentos puramente
estatais de regulação como indutores de crescimento econômico por meio da reafirmação de expectativas
pelo Estado. SAAD-DINIZ, EDUARDO. El sentido normativo de los programas de compliance en la acción
penal n. 470 – el Caso “Mensalão”. Law and Forensic Science, v. 6, Dez. 2013, p. 104-105.
14 Sieber sustenta que “a corregulação [...], em referência ao conteúdo organizado no espaço de liberdade,
mostram insuficientes para os fins de regulação pretendidos, condicionando a consecução das finalidades
preventivas a uma maior complexidade normativa sobre o comportamento empresarial, tendo em vista
que “as normas de conduta orientam as relações interpessoais pelas próprias mediações normativas”.
SAAD-DINIZ, Eduardo; SILVA, Bruna Castro e; BARBOSA, Leonardo Peixoto. Modificações estruturais do
sistema penal antilavagem: um novo lugar para a teoria das normas penais? Boletim IBCCRIM, São Paulo,
n. 230, p.8-9, jan. 2012. Sieber define também alguns elementos estruturais que acabam por definir o
73
A crescente preocupação com a criminalidade empresarial e as mudanças de
perspectiva a respeito das responsabilidades da empresa delinearam o cenário ade-
quado à difusão de uma “cultura de cumprimento normativo” no meio corporativo.
Nesta “cultura de compliance” se integram tanto a internalização pelas empresas de
deveres de vigilância, como também “medidas positivas de formação”, cujo objetivo
é a inocuização de práticas coletivas potencialmente propícias ao cometimento de
delitos16. Tal efeito parece ser a faceta privada de uma cada vez maior harmonização
das ordens jurídicas nacionais, cujo propósito é a evitação de que países constituam
paraísos jurídico-penais que favoreçam a atuação de uma criminalidade transnacio-
nal, inclusive aquela cuja atuação se dá no âmbito corporativo 17. A cultura de com-
pliance e a crescente padronização regulatória da atividade empresarial são, des-
tarte, consequências de um direito penal inserido em dinâmicas econômicas globa-
lizadas, convocado a reforçar a busca por uma maior estabilidade em mercados ca-
racterizados pela incerteza acerca do comportamento dos agentes econômicos18.
2013, p. 192-193.
17 Trabalhando o assunto, embora sem relacionar aos programas de criminal compliance, SILVA
SÁNCHEZ, Jesús María. Expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades
postindustriales. 3. ed. Madrid: Editorial B de F, 2011, p. 92-93. Com foco na internacionalização da
“política criminal contra a corrupção” como contraponto à formação de paraísos penais, afirmam Ana
Isabel Pérez Cepeda e Carmen Demelsea Benito Sánchez: “O processo de globalização da economia
propicia práticas corruptas no comércio internacional como consequência da existência de assimetrias
ou diferenças que se produzem a qualquer nível econômico, político, social ou jurídico, que são
aproveitadas pelas empresas para alcançar os fins propostos ao amparo das mesmas. Também é evidente
que a globalização gera um espaço econômico carente de uma regulação efetiva e, paralelamente, a
ausência de uma resposta uniforme. Os delinquentes e empresas se aproveitam de que, diante de formas
similares de criminalidade econômica, continua havendo distintos níveis de reprovação social, de
repressão penal e gravidade das penas”. PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel; BENITO SÁNCHEZ, Carmen Demelsa.
La política criminal internacional contra la corrupción. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, ano 19, n. 89, mar.-abr., 2012, p. 15-16.
18 SAAD-DINIZ, Eduardo. Nova lei de lavagem de dinheiro no Brasil: compreendendo os programas de
criminal compliance. Revista Digital do Instituto dos Advogados Brasileiros, Rio de Janeiro: IAB, ano IV, n.
18, abr.-jun., 2013, p. 101-102. Disponível em: <http://www.iabnacional.org.br>. Acesso em: 02 jul. 2015.
Sobre a criminalidade econômica e seu desenvolvimento de acordo com as novas condições sociais
oriundas da globalização, cf. FRANCO, Alberto Silva. Globalização e criminalidade dos poderosos. In:
PODVAL, Roberto (org.). Temas de direito penal econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 235-277.
74
No entanto, o Brasil lida com desafios de governança bastante distintos daque-
les enfrentados em outros contextos jurídico-econômicos, como o estadunidense,
influenciador de grande parte dos trabalhos produzidos sobre governança corpora-
tiva. Fatores histórico-institucionais e graus distintos de proteção dos investidores
conduzem a significativas diferenças entre as estruturas de propriedade estaduni-
dense e brasileira: por um lado, as companhias norte-americanas, em sua maioria,
têm uma base acionária difusa e contam com uma separação clara entre propriedade
de ações e controle de gestão; de outro, as empresas brasileiras caracterizam-se em
sua maioria por uma estrutura de propriedade mais concentrada, sendo comum a
figura do acionista controlador que atua como executivo central ou indica alguém
de confiança para tanto. Logo, se nos Estados Unidos a grande preocupação é fazer
com que decisões sejam tomadas com vistas à consecução do interesse da maioria
dos acionistas, o maior desafio brasileiro ainda é mitigar a concentração de poder
por meio de alternativas ao conflito entre acionistas controladores e minoritários 19.
Ademais, companhias brasileiras tampouco costumam atingir os mesmos padrões
de transparência financeira que empresas estrangeiras, e comitês internos de audi-
toria ainda são pouco comuns20.
A cultura de compliance no Brasil, destarte, ainda se mostra relativamente inci-
piente21, apesar de o país demonstrar sinais recentes de estar trilhando novos cami-
nhos em matéria de governança. O primeiro passo neste sentido se deu no âmbito
da Bolsa de Valores de São Paulo a partir de 2001, com medidas como a criação da
iniciativa Novo Mercado, a introdução de um cargo de ombudsman e a atribuição de
maior transparência às atividades desenvolvidas na Bolsa22. Já o direito antitruste
brasileiro tem como marco inicial de suas preocupações com compliance a edição da
Portaria SDE nº 13/2004, por meio da qual foram definidas diretrizes para formação
de Programas de Prevenção de Infrações à Ordem Econômica (PPI) e se buscou in-
centivar sua implementação por empresas23. Em 2012, a Nova Lei de Lavagem de
19 SILVEIRA, Alexandre Di Miceli da. Governança corporativa no Brasil e no mundo: teoria e prática. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2010.
20 Com base em dados empíricos e dando maiores detalhes sobre o diagnóstico da governança
corporativa no Brasil, cf. BLACK, Bernard S.; CARVALHO, Antonio Gledson de; GORGA, Érica, The
corporate governance of privately controlled Brazilian firms. Revista Brasileira de Finanças, 2009, v. 7, n.
4, p. 385-428.
21 LORENZI, Antonio Guilherme de Arruda; PROCOPIUCK, Mario; QUANDT, Carlos Olavo. Governança
corporativa: a situação das empresas brasileiras em relação às melhores práticas. Revista Brasileira de
Estratégia, Curitiba, v. 2, n. 2, mai.-ago., 2009, p. 117. Tal pesquisa, no entanto, foi realizada em momento
anterior à edição de atos normativos como a nova Lei de Lavagem de Dinheiro e a Lei Anticorrupção, as
quais, como analisado nos parágrafos subsequentes, alteraram em grande medida a autorregulação
regulada no Brasil.
22 Maiores detalhes destas mudanças no mercado de capitais brasileiro em MAGLIANO, Raymundo.
Mercado de capitais, poder econômico e regulação. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio; SALOMÃO
FILHO, Calixto; NUSDEO, Fabio (org.). Poder econômico: direito, pobreza, violência, corrupção. Barueri-
SP: Manole, 2009, p. 10-16; SAAD-DINIZ, Eduardo. Fronteras del normativismo... op. cit., p. 425-426.
23 O reconhecimento do Programa de Prevenção de Infrações à Ordem Econômica como válido e efetivo
pela autoridade administrativa poderia implicar mitigação das sanções administrativas aplicáveis no
caso de condenação por infrações à ordem econômica. As recomendações da Secretaria de Direito
Econômico encontravam-se especialmente no artigo 4º, alíneas “a”, “b”, “c” e “d” da Portaria SDE nº
13/2004. Cf. SAAD-DINIZ, Eduardo; SILVA, Bruna Castro e; BARBOSA, Leonardo Peixoto. Modificações
75
Dinheiro reforçou o paradigma da autorregulação regulada ao impor a determina-
dos agentes econômicos deveres de controle interno de suas atividades, bem como
de comunicação ao Estado de operações financeiras potencialmente destinadas ao
branqueamento de capitais24. Mais recentemente, voltando a utilizar mecanismos de
incentivo, a nova Lei Anticorrupção definiu a existência de programas de compliance
e a cooperação com as investigações como alguns dos critérios de mensuração da
punição administrativa aplicável a pessoas jurídicas 25.
Não obstante o cenário de aparente empolgação coletiva com a difusão dos pro-
gramas de compliance – seja em decorrência de determinações legais ou de impulsos
mercadológicos –, permanece pouco claras as condições de adaptabilidade da reali-
dade brasileira à austeridade regulatória característica desta nova cultura organiza-
cional26.
estruturais do sistema penal antilavagem... op. cit., nota 8. Esta possibilidade de atenuação punitiva
acabou revogada pela Portaria SDE nº 48/2009. Mais recentemente, no Plano Plurianual (2012-2016), o
Governo Federal brasileiro fixou como uma de suas metas a “Revisão dos programas de leniência e de
compliance, incentivando a adesão dos agentes econômicos a esses programas com vistas a tornar mais
efetiva a prevenção de infrações à ordem econômica”.
24 A nova Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 12.683/2012) conduz os penalistas ao problema do
de 2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 323 e ss.
26 Neste sentido, com especial ênfase sobre as políticas de prevenção à lavagem de dinheiro, SAAD-DINIZ,
responsabilidades no âmbito da empresa, o que acaba por reduzir o montante gasto com processos; (ii)
aumento das oportunidades de negócio, na medida em que a procedimentalização preventiva do
comportamento empresarial incrementa a confiança e atrai investimentos; (iii) possível ganho de
agilidade em procedimentos licitatórios, em especial se os editais correspondentes preveem a existência
destes instrumentos; (iv) maior possibilidade de atrair mão-de-obra com maior qualificação profissional;
(v) ganho reputacional por meio do comprometimento com standards internacionais de respeito a
direitos humanos no âmbito corporativo; (vi) melhorias em gestão; e (vii) maiores possibilidades de
76
tiva” parece prescindir de discussões prévias elementares a respeito de sua conve-
niência: qual o conteúdo e os reais propósitos de tal “ética” veiculada nas regras de
compliance? A padronização e a rigidez regulatória da cultura de compliance, deli-
mitada por parâmetros legais internacionais e também por exigências difusas dos
agentes de mercado29, não acabariam por prejudicar uma necessária conformação
do conteúdo destes mecanismos e de seus graus de austeridade às peculiaridades
do ambiente de cada país30?
A fixação de standards de comportamento empresarial – ainda que na forma de
“recomendações”31 – desconsideram também a existência de estruturas corporati-
vas desiguais, relegando a um segundo plano as dificuldades de pequenas e médias
empresas em arcar com os altos custos que envolvem a criação e contínua manuten-
ção de programas de cumprimento. Empresas destes portes são comumente dota-
das de características que não apenas dificultam a adoção de mecanismos de crimi-
nal compliance, mas influenciam a própria capacidade de elas e seus executivos ob-
servarem os deveres legais: a limitação de recursos financeiros; a instável necessi-
dade de resolver problemas praticamente diários, minando as possibilidades de pla-
nejamento de longo prazo; o predomínio da informalidade internamente à empresa
e na relação desta com clientes e terceiros; a dificuldade de se entrar ou permanecer
em mercados nos quais práticas ilícitas se equivalem a condições de sobrevivência32.
Os impactos desta uniformização regulatória no cenário brasileiro podem ser esti-
mados se conjugados a dados empíricos segundo os quais as atividades das cerca de
9 milhões de micro e pequenas empresas do país correspondem a aproximadamente
27% do produto interno bruto nacional33.
mitigação punitiva em casos de responsabilização por atos ilícitos, facilitando ainda a individualização de
responsabilidade de dirigentes. SAAD-DINIZ, Eduardo. A criminalidade empresarial e a cultura de
compliance. Revista Eletrônica de Direito Penal AIDP-GB, ano 2, v. 2, n. 2, dez. 2014, p. 116.
29 Marcella Blok, embora partindo de uma perspectiva comparativamente mais otimista, constata que
práticas de mercado têm aumentado a exigência por empresas de que seus parceiros comerciais e
terceiros adotem instrumentos de compliance. Segundo ela, “as empresas ou órgãos públicos que não
possuem uma área forte de compliance perdem credibilidade perante as partes interessadas
(stakeholders) e cada vez mais perdem oportunidades no mercado, principalmente no financeiro”. BLOK,
Marcella. A nova lei anticorrupção e o compliance. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n. 65, jul. 2014, p. 26 (arquivo digital).
30 LAUFER, William S.; ROBERTSON, Diana C. Corporate ethics initiatives as social control. Journal of Busi-
Econômico (OCDE), Organização das Nações Unidas (ONU) e Banco Mundial acerca do conteúdo de
programas empresariais de prevenção de práticas corruptas – embora as considerações iniciais do
documento busquem considerar a particularidade das pequenas e médias empresas, e argumente
também não ter a pretensão de fixar qualquer espécie de standard. Cf. OCDE; UNODC; WORLD BANK.
Anti-Corruption ethics and compliance handbook for business. Disponível em: <https://www.unodc.org>.
Acesso em: 05 jul. 2015.
32 Cf. UNIDO; UNODC. Corruption prevention: to foster small and medium-sized enterprise development,
v. II. Viena, 2012, p. v-vii e 2. Disponível em: <https://www.unodc.org>. Acesso em: 05 jul. 2015.
33 Conclusões de pesquisa publicada em 2014 pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(SEBRAE), com dados atualizados até o ano de 2011. SEBRAE. Participação das micro e pequenas
empresas na economia brasileira. Brasília, 2014, p. 31-32. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br>.
Acesso em: 05 jul. 2015.
77
Iniciativas de procedimentalização de uma “ética corporativa” introduzem e
mantêm uma ordem artificial na empresa, assegurada pela formalização de normas
e práticas consideradas aceitáveis, pela introdução de regras comportamentais que
têm na ordem jurídica um arquétipo inicial, além de mecanismos cujo propósito é
assegurar que funcionários terão comportamento conforme. A imposição desta or-
dem artificial, em substituição ou suplementação a uma ordem natural composta
por fatores culturais e relacionais, produz um risco de desequilíbrio entre as duas
modalidades de controle social. Isso, por sua vez, conduz a questionamentos acerca
de quem, afinal, zela pelo equilíbrio entre as duas ordens sociais, bem como quem
se coloca na posição de mediar as diversas tensões daí decorrentes entre corporação
e indivíduos. Uma confiança excessiva em mecanismos formais de controle corpo-
rativo, neste sentido, poderia não apenas sugerir um histórico de desvios, mas ser
reflexo de uma cultura corporativa autocrática e meramente coercitiva 34.
A internalização de padrões regulatórios internacionais, inclusive interna-
mente à empresa, desconsidera também que o delito não necessariamente faz do
agente uma pessoa “moralmente desestruturada”, dado que determinados fatores
podem levá-lo a não dispor das condições concretas necessárias ao cumprimento
integral do dever – ainda que pretendesse conduzir-se conforme a norma ou tivesse
conhecimento do que sua prática envolvia 35. No contexto brasileiro, esta hipótese se
corresponde principalmente à “dependência econômica” de alguns setores e pla-
yers36, mas também envolve especificidades da relação da população latino-ameri-
cana com a legalidade que não se confundem com as estruturas sociais dos países
considerados de primeiro mundo, nos quais os standards de comportamento em-
presarial foram estabelecidos ou que detêm maior influência sobre as organizações
internacionais.
Tal construção teórica está longe de criar uma categoria de indivíduos menos
virtuosos que outros, tampouco se tratando de interpretar as ilegalidades latino-
americanas como meros produtos históricos de dominação das elites locais. O ponto
34 LAUFER, William S.; ROBERTSON, Diana C. Corporate ethics initiatives as social control… op. cit., p.
1033.
35 SAAD-DINIZ, Eduardo. Posfácio - Sobre imputação das ações neutras e dever de solidariedade no
direito penal brasileiro. In: RASSI, João Daniel. Imputação das ações neutras e o dever de solidariedade no
direito penal brasileiro. São Paulo: LiberArs, 2014, p. 245.
36 SAAD-DINIZ, Eduardo. A criminalidade empresarial e a cultura de compliance... op. cit., p. 117. No
37 Tal processo decorre, em parte, da relação desigual entre os indivíduos e a lei, especialmente em
virtude da percepção social de que esta é aplicada também desigualmente, de modo menos rígido a quem
detém poder político ou econômico. Bernardo Sorj e Danilo Martuccelli, no entanto, esclarecem que esta
variante cultural da população latino-americana influencia a identidade local a ponto de permear as
práticas dos mais distintos segmentos sociais, alcançando ricos e pobres em suas relações entre
particulares e com o Estado. Cf. SORJ, Bernardo; MARTUCCELLI, Danilo. O desafio latino-americano:
coesão social e democracia. Trad. Renata Telles. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 157-162.
Sobre como estruturas sociais fragilizadas influenciam uma forma própria de o indivíduo latino-
americano se relacionar com a legalidade, cf. BATAILLON, Gilles. A propósito de ¿Existen individuos en el
sur?, de Danilo Martucelli. Soc. Econ., Cali, dez. 2011, n. 21.. Disponível em:
<http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1657-
63572011000200012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 06 jul. 2015. A crítica ao viés formalista de
concepções abstratas do dever possui uma capacidade de rendimento que transcende as debilidades do
compliance na criminalidade empresarial do dito terceiro mundo, alcançando talvez com maior impacto
as discussões sobre o desenvolvimento da liberdade e as condições para o cumprimento do dever
naquelas situações de maior vulnerabilidade e miserabilidade. Sobre isso, a partir de uma crítica
filosófica, cf. SAFATLE, Vladimir. Grande hotel abismo: por uma reconstrução da teoria do
reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 61-80.
38 Mencionando estes interesses e elencando outros que teriam sua proteção incrementada pelos
programas de compliance, SIEBER, Ulrich. Programas de compliance no direito penal empresarial... op.
cit., p. 295 e ss.
39 Com especial ênfase nos mecanismos de justiça penal colaborativa e as práticas de reverse
whistleblowing, LAUFER, William S. Corporate prosecution, cooperation, and the trading of favors. Iowa
Law Review, v. 87, n. 2, mar. 2002, p. 643 e ss.
79
em vez de interpretá-lo como mecanismo ex ante de gerenciamento preventivo de
riscos criminais40.
Todas estas inquietudes, aliadas às dúvidas acerca da real efetividade preven-
tiva dos programas de cumprimento41, talvez despertem a necessidade de novas dis-
cussões sobre este súbito protagonismo que parece ter ganhado a “cultura de com-
pliance” no Brasil como alternativa quase indiscutível. Modelos consistentes de go-
vernança corporativa podem até desempenhar um papel preventivo relevante, mas
quaisquer proposições precisam ter em consideração as especificidades institucio-
nais, sociais e econômicas de uma dada realidade. Tais variantes, por sua vez, con-
dicionam a conformação de uma criminalidade empresarial de características espe-
cíficas – no caso, latino-americana –, e deveriam também orientar respostas adapta-
das a esta. O risco é de que o entusiasmo na propagação da cultura de compliance
esconda possíveis fragilidades nos prognósticos que a impulsionaram, prejudicando
a busca de formas de regulação jurídica possivelmente mais adequadas às dinâmicas
sociais e aos problemas penais propriamente brasileiros.
40 SAAD-DINIZ, Eduardo. O sentido normativo dos programas de compliance na APn 470/MG. Revista dos
Tribunais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 102, v. 933, jul. 2013, p. 163.
41 LAUFER, William S. Illusions of compliance and governance. Corporate governance, v. 6, n. 3, 2006, p.
242 e ss.
80
O CRIMINAL COMPLIANCE
COMO FERRAMENTA DE CONTENÇÃO
DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL
NO ÂMBITO CORPORATIVO
THEUAN CARVALHO GOMES DA SILVA1
Mestrando em Direito pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
1. INTRODUÇÃO
1 Mestrando em direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Bacharel
em direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF). Pesquisador do Núcleo de Estudo e Pesquisa em
Aprisionamento e Liberdades (NEPAL). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(IBCCRIM) e ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Advogado criminalista.
contato@theuan.com.br
81
pansão do direito penal em eventual intervenção penal – missão precípua da dog-
mática penal no contexto pós-criminologia crítica e de deslegitimação das teorias
declaradas da pena.
A proposta irá analisar, num primeiro momento, as finalidades que se tenta
atribuir a pena, passando pelas suas teorias legitimadoras e deslegitimadoras. Num
segundo momento, buscar-se-á a compreensão do que é a chamada expansão do di-
reito penal, recortando como objeto essa expansão dentro do âmbito das corpora-
ções e como como isso distorce a teoria do delito. Por fim, num terceiro momento
será analisado o instituto do criminal compliance como possível forma contenção do
direito penal, para além de promover boas práticas de governança e integridade.
2 Nesse sentido: “La pena tiene pues una función sin que tenga que producir algo psico-socialmente.
Incluso cuando a un hecho y a su punición les siga inmediatamente el siguiente hecho, la pena há cum-
plido su función, en tanto en cuanto el siguiente hecho sea precisamente eso, el siguiente hecho, esto es,
defraudación por su parte no ya de alguna expectativa privada, sino de uma expectativa que todavía
forma parte de la configuración social. No debe entenderse claro está la sucesión de hecho y pena como
si pudiese añadirse un Derecho penal cualquiera a uma sociedad también cualquiera, y como si la confi-
guración de esta sociedad estuviese entonces tanto tiempo garantizada, em tanto le siga una pena a todo
lo que signifique jurídico-penalmente un quebrantamiento de la norma. No se trata de la identidade de un
Derecho penal que permanece fiel a sí mismo, sino de la identidad de la sociedad que ha diferenciado el
Derecho penal como sistema parcial. Por ello, la expectativa ante defraudación se reacciona tiene que ser,
con independencia ya del Derecho penal, una expectativa social, pues de otra forma no armonizan socie-
dad y Derecho penal”. In: JAKOBS, Gunther. Dogmática de derecho penal y la configuracion normativa
de la sociedade. Espanha: Thomson Civitas, 2004. p.75/76
3 Nesse sentido: “La teoría penal aquí defendida se puede resumir, pues, como sigue: la pena sirve a los
fines de prevención especial y general. Se limita en su magnitude por la medida de la culpabilidad, pero
se puede quedar por debajo de este límite en tanto lo hagan necesario exigencias preventivoespeciales y
a ello no se opongan las exigencias mínimas preventivogenerales”. In: ROXIN, Claus. Derecho penal:
parte general. Tomo I Fundamos. La Estructura de la teoria del delito.Espanha: editora Civitas, 1997. p.
103
82
tipificar outras; e perseguir alguns indivíduos e não perseguir outros (criminaliza-
ção secundária)4. Com isso, resta claro que o direito penal atende a interesses polí-
ticos ao taxar o que é crime e quem é o criminoso.
É isso que faz com que os criminólogos sempre desconfiem do exercício do po-
der de punir, ainda que seja no âmbito das grandes corporações, mitigando a seleti-
vidade primária. A desconfiança deve permanecer, seja por questão de coerência,
seja para se evitar o que Maria Lúcia Karam chamou de “esquerda punitiva”. 5
As principais finalidades que se tenta atribuir a pena parece não se verificar
após uma análise crítica. A prevenção geral negativa (intimação) é indemonstrável
na prática, e, portanto, não pode ser usada como argumento científico, já que não é
possível medir o índice de não cometimento de delitos por pessoas que tiveram
medo de futura sanção – até porque, no limite, se admitiria até mesmo a pena de
morte, caso a intimação pela sanção resultasse na diminuição dos delitos. Por con-
seguinte, dentro de uma sociedade em que a taxa de impunidade dos crimes de ho-
micídios é de 92%6, a prevenção geral positiva também não parece ser argumento
suficiente, pois não há dúvidas de que matar é moralmente reprovável, ainda que as
expectativas do descumprimento dessa norma em 92% dos casos não seja reestabe-
lecida. O que também reforça a ausência de qualquer intimação, já que a regra é a
impunidade – isso sem se considerar a cifra oculta.
A teoria de prevenção especial não encontra melhor sorte. A prevenção especial
negativa (neutralização) parece não levar em conta os crimes que continuam sendo
praticados dentro das prisões e de dentro das prisões 7. Já a prevenção especial po-
sitiva é abalada quando nos deparamos com o dado de que 47,4%8 dos presos no
Brasil são reincidentes, tendo a “terapêutica penal” falhado em cerca de metade dos
casos em que foi aplicada.
Em sendo assim, com vista à contenção do poder de punir, o aporte teórico da
teoria agnóstica ou negativa da pena defendida por Zaffaroni parece ser o mais ra-
zoável dentro do contexto latino-americano que estamos inseridos:
4 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2011. p. 13.
5 KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/a-
esquerda-punitiva-por-maria-lucia-karam/ Acesso em: 01 jul. 2015.
6 Nesse sentido: “O índice de elucidação dos crimes de homicídio é baixíssimo no Brasil. Estima-se, em
pesquisas realizadas, inclusive a realizada pela Associação Brasileira de Criminalística, 2011, que varie
entre 5% e 8%. Este percentual é de 65% nos Estados Unidos, no Reino Unido é de 90% e na França é de
80%.” Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública. Relatório Nacional da Execução da Meta 2:
um diagnóstico da investigação de homicídios no país. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público,
2012. 78 p. il.. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp
_FINAL.pdf Acesso em: 13/07/2015 p. 22
7 As facções que se organizaram dentro dos presídios brasileiros são o mais claro argumento contra
Sílva Sánchez aponta que a globalização promove uma espécie de política cri-
minal supranacional, orientada para flexibilização e relativização de princípios ado-
tados pelo direito penal clássico, como resposta aos ilícitos próprios do contexto de
globalização que os mercados vivenciam atualmente. Para tanto, o autor espanhol
identificou uma necessária distinção entre direito penal de primeira e segunda ve-
locidade. No primeiro, em que se prevê aplicação de sanções penais privativas de
liberdade, as garantais dogmáticas historicamente construídas dentro de um con-
texto de direito penal mínimo para a contenção do poder de punir estariam garan-
tidas. No segundo, por outro lado, tais garantias seriam relativizadas, notadamente
porque as sanções aplicadas seriam de outras espécies que não a privativa de liber-
dade, em decorrência da ficção jurídica da pessoa jurídica12.
9 ZAFFARONI, Eugenio Raul. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal parte general.
Buenos Aires: sociedade anônima editora, 2002. p. 28
10 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:
sociedades pós-industriais. Vol. 11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002 p. 149
13 Ibidem 2002 p. 96.
84
A expansão do direito penal para a tutela desses novos bens jurídicos, agora
difusos e não mais individuais, em sendo assim, têm trazido problemas no que con-
cerne a aplicação das estruturas tradicionais da teoria do delito, que foi construída
historicamente pensada para os casos de crimes dolosos de ação, de comportamento
individual de uma única pessoa (ou algumas em conluio), com dolo direto de pri-
meiro grau, sendo o crime de resultado e de mão própria 14. Contudo, não é o que
vemos quando se fala em criminalidade econômica ou do colarinho branco, o que
provoca “distorções” nas estruturas da teoria do delito:
14 SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 20, n. 99, p.327-356, nov./dez. 2012, p. 328
15 Ibidem, p. 328/329
85
necessária revisitação, a atribuição de autoria ganha destaque. Num primeiro mo-
mento, a teoria do domínio do fato (domínio de organização) se apresentou como
possível solução, contudo, tem sido combatida e rejeitada majoritariamente. 16 Por
outro lado, os crimes de infração de dever permitem conduzir um tratamento uni-
tário nas imputações e atribuições de autoria para os crimes praticados em âmbito
corporativo. Sílva Sánchez destaca a importância do desenvolvimento da doutrina
do garante no direito penal econômico:
16 Ibidem.
86
tativas com empresas que possuam programas de criminal compliance implementa-
dos, afim de se verificar sua efetividade para se evitar crimes dentro da empresa.
Por outro lado, Ulrich Sieber cita levantamento feio pela PricewaterhouseCoopers na
Alemanha e aponta dados animadores a respeito do potencial de promoção da ética
corporativa nas empresas com programas de criminal compliance,
4. BREVES CONSIDERAÇÕES
17SIEBER, Ulrich. Programas de compliance no Direito Penal Empresarial: um novo conceito para o
controle da criminalidade econômica. Trad. Eduardo Saad Diniz. In. SAAD-DINIZ. (org.) Direito Penal
Econômico: estudos em homenagem aos 75 anos do Professor Klaus Tiedemann. São Paulo: Liber Ars,
2013. p. 310
87
teórica que se optou para analisar o direito penal no âmbito das corporações econô-
micas.
2. A expansão do direito penal em decorrência da globalização dos mercados
fez nascer aquilo que Sílva Sánchez chamou de “Política Criminal Supranacional”.
Com isso, a criminalização de bens jurídicos difusos se tornou necessidade imposta
pelos mercados.
3. Dentro desse contexto, a teoria do delito vem passando por distorções. A atri-
buição de autoria de crimes praticados em empresas enfrenta dificuldades. Em
sendo assim, os programas de criminal compliance se apresentam como uma forma
de racionalizar eventual intervenção penal, já que lastreado na infração de dever –
o que traz maior racionalidade para o direito penal econômico.
4. Ainda, no que pese não termos no Brasil dados concretos da criminologia
econômica a respeito das empresas que possuem programas de compliance e do seu
grau de efetividade, os dados estrangeiros são animadores, e permitem concluir que
a promoção da ética e das boas práticas de governança tem sido exitosas no âmbito
corporativo.
REFERÊNCIAS
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2011.
______. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC/Lumen Ju-
ris, 2005.
88
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I Fundamos. La Estructura de la teoria
del delito.Espanha: editora Civitas, 1997.
______. Teoría del delito y derecho penal económico. Revista Brasileira de Ciências Crimi-
nais, São Paulo, v. 20, n. 99, p.327-356, nov./dez. 2012.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal parte ge-
neral. Buenos Aires: sociedade anônima editora, 2002.
89
O CRIMINAL COMPLIANCE
E OS SISTEMAS DE WHISTLEBLOWING
Introdução
1. O compliance empresarial
1 KUHLEN, Lothar. Cuestiones Fundamentales de Compliance y Derecho Penal. In: KUHLEN, Lothar et al.
Compliance y Teoría del Derecho Penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 51.
2 KUDLICH, Hans. ¿Compliance mediante la punibilidad de asociaciones? In: KUHLEN, Lothar et al.
Compliance y Teoría del Derecho Penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 283.
3 SIEBER, Ulrich. Programas de compliance em direito penal empresarial: um novo conceito para o
controle da criminalidade econômica. In: OLIVEIRA, William Terra de (Org.) et al. Direito Penal
Econômico: estudos em homenagem aos 75 anos do Professor Klaus Tiedemann. São Paulo: LiberArs,
2013, p. 291.
92
só, seria inapta à execução de uma adequada diligência regulatória do setor empre-
sarial.
Diante desse quadro, o Estado delega a gestão e o controle de riscos às empre-
sas, mas não o faz de forma absoluta, senão de modo legalmente controlado4. Assim,
a autorregulação regulada em compliance divide-se em dois campos de atuação, a
saber, um objetivo e outro subjetivo 5. O campo de atuação objetivo corresponde à
legislação criada pelo Estado, por meio da qual são assentadas estruturas de incen-
tivo ou vinculação à implementação de programas de gestão de riscos pelas empre-
sas6. O campo de atuação subjetiva, por sua vez, compreende os programas empre-
sariais de cumprimento, que satisfazem duas finalidades: (a) transladar a regulação
estatal às situações de riscos que ocorrem nas organizações empresariais, de modo
a estabelecer controles preventivos, antecipando-se à situação de descumprimento
normativo; e (b) informar aos membros da corporação como se comportar, a fim de
que haja o cumprimento da legislação estatal7, evitando-se, portanto, responsabili-
zações e sancionamentos. Essa nova forma de regulação estatal - representada pelo
modelo da autorregulação regulada em compliance - parte da ideia de cooperação
entre o ente privado e o setor público. Em realidade, o atrativo para que as organi-
zações empresariais estabeleçam programas de compliance está na limitação dos
riscos jurídicos de responsabilizações por descumprimentos da legislação estatal no
exercício de suas atividades econômicas8.
2. Os sistemas de whistleblowing
4 GÓMEZ MARTÍN, Víctor. Compliance y derechos de los trabajadores. In: KUHLEN, Lothar et al.
Compliance y Teoría del Derecho Penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 126.
5 RAHAL, Carla. Criminal compliance: instrumento de direito comparado útil e legítimo de proteção cor-
porativa no direito brasileiro. In: MALAN, Diogo; MIRZA; Flávio (Coord.). Advocacia criminal, direito de
defesa, ética e prerrogativas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 87.
6 SIEBER, Ulrich. Op. cit., p. 229.
7 ALONSO GALLO, Jaime. Los Programas de Cumplimiento. In: DÍAS-MAROTO Y VILLAREJO/RODRÍGUEZ
MOURULLO Estudios sobre las reformas del Código Penal. Civitas Thomson Reuters, Cizur Menor, 2011,
p. 151.
8 PRITTWITZ, Cornelius. La posición jurídica (en especial, posición de garante) de los compliance officers.
In: KUHLEN, Lothar et al. Compliance y Teoría del Derecho Penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 216.
Aliás, ainda com relação aos riscos jurídicos de responsabilização da empresa, importante destacar que
os programas de compliance, num sentido geral, começaram a ser utilizados na década de 1980 pelas
empresas americanas (não o setor do criminal compliance, que é uma realidade mais recente); e já na
década seguinte era público o benefício de sua implementação na limitação de referidos riscos: em abril
de 1990 o jornal The Washington Post publicou um artigo com o convincente título “os programas de
cumprimento podem ajudar as empresas a evitar o processamento”, em que se descrevia a adoção cada
vez mais comum de tais programas pelas corporações empresariais, o que possibilitava que as mesmas,
por atuação própria, identificassem a realização de ilícitos em sua organização e os denunciassem às
autoridades, evitando, assim, sua responsabilização: ALONSO GALLO, Jaime. Op. cit., p. 148.
9 GOMEZ MARTÍN, Víctor. Op. cit., p. 126.
93
isto é, a pessoa que “assopra o apito”, delatando a irregularidade perpetrada. Mas o
termo não é aplicável a qualquer informante, senão àquele que possui uma relação
com a organização empresarial objeto das irregularidades, como, por exemplo, os
empregados atuais e anteriores de uma corporação que denunciam atos ilícitos con-
cernentes às atividades empresariais, realizados pela própria organização ou por
seus membros, ante seus superiores, às autoridades ou a terceiras pessoas 10. Tam-
bém o delator que exerce qualquer função de controle, investigação ou delação está
excluído do conceito, ou seja, resta fora da classificação de whistleblower, aquele
profissional que cumpre obrigação vinculada ao seu cargo de informar aos diretores
da empresa que empregados da organização cometeram irregularidade 11.
Dividem-se os sistemas de whistleblowing em interno e externo. No whistle-
blowing interno, o meio de recebimento e gerenciamento das informações e dela-
ções pertence à própria entidade empresarial em que se operou a conduta infor-
mada, enquanto que, no whistleblowing externo, a participação da ocorrência de ili-
citudes no âmbito da atividade econômica da corporação é feita perante pessoas
alheias à estrutura corporativa.
10 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Whistleblowing: Una aproximación desde el Derecho Penal. Madrid: Marcial
Pons, 2013, p. 20.
11 Idem.
12 NIETO MARTÍN, Adán. Problemas fundamentales del compliance y el Derecho Penal. In: KUHLEN,
Lothar et al. Compliance y Teoría del Derecho Penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 47.
13 Idem.
94
cebida às autoridades seria ainda mais vantajosa. Primeiro, porque mediante tal evi-
tar-se-ia as depreciações que uma investigação pública poderia causar. A divulgação
de irregularidades levadas a efeito na entidade empresarial sempre causa dano à
imagem da organização, ainda mais quando não se tiver elucidado o que realmente
se passou, existindo apenas especulações midiáticas, o que produz desprestígio. De-
pois, porque quem investiga teria sempre o benefício de poder construir a “reali-
dade” de acordo com sua conveniência14.
É possível identificar ao menos três diferentes classes de investigações corpo-
rativas internas. Em função de seu objeto, as investigações internas das entidades
empresariais distinguem-se umas das outras conforme se refiram a ilícitos penais, a
infrações extrapenais, ou a descumprimentos contratuais15.
Interessa-nos a primeira categoria dessa divisão. De acordo com alguns auto-
res, tal consistiria em um movimento de privatização do processo penal, pois a em-
presa ao orientar sua investigação de modo a contribuir com o Estado no esclareci-
mento de um fato criminoso operado em seu interior, exerceria uma atividade de
persecução penal16. Nesse sentido, é colocada a indagação acerca dos limites dessa
atividade exercida pela organização empresarial e dos direitos dos empregados
nesse procedimento. NIETO MARTÍN, por exemplo, é da opinião que a investigação
empresarial interna como “antessala” do processo penal deveria conter direitos e
garantias similares17.
Diante da confirmação, pelas investigações internas, da credibilidade da infor-
mação recebida, diversificam-se as respostas institucionais, conforme esteja o ato
denunciado consumado ou em curso18. Na última hipótese, a reação deve ser no sen-
tido de impedir a continuidade da conduta denunciada, seja pelos próprios meios ou
recorrendo-se às autoridades, sob pena de, no caso de inércia e consumação do ato,
os diretores e representantes, além da própria organização, correrem o risco de se-
rem responsabilizados19. Em contrapartida, se o ato estiver consumado ou se já se
tiver obtido êxito em evitar sua consumação, total ou parcial, há de se verificar se a
entidade foi vítima das irregularidades descobertas ou se, ao revés, beneficiou-se da
conduta ilícita de seus diretores e empregados ou se lesionou terceiros 20. No pri-
meiro caso, a entidade não será responsabilizada, já que é vítima, podendo, portanto,
optar por não transmitir a informação às autoridades 21. No entanto, na segunda hi-
pótese, o reporte da irregularidade às autoridades poderá significar, para além da
abertura de um procedimento contra seu diretor ou empregado, a responsabilização
14 Ibidem, p. 48.
15 ESTRADA I CUADRAS, Albert; LLOBET ANGLÍ, Mariona. Derechos de los trabajadores y deberes del
empresario: conflicto en las investigaciones empresariales internas. In: SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María
(Director); MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel (Coordinadora). Criminalidad de empresa y Compliance.
Barcelona: Atelier, 2013, p. 201.
16 NIETO MARTÍN, Adán. Op. cit., p. 46.
17 Ibidem, p. 48.
18 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Op. cit., p. 139.
19 Idem.
20 Idem.
21 Idem.
95
da própria empresa, por não ter exercido o devido controle sobre seus subordina-
dos22. Nesse sentido, coloca-se a questão acerca da exigibilidade de que a organiza-
ção assuma o compromisso de se autodenunciar, ou seja, debate-se se o direito de
não se autoincriminar (nemo tenetur se detegere) abrange as pessoas jurídicas.
Algumas Constituições, como é o caso da Carta espanhola (art. 24), trazem a
previsão de referido princípio de modo tão abrangente que possibilita sua aplicação
às pessoas jurídicas. Não é o caso brasileiro, no qual a Constituição em seu artigo 5º,
LXIII parece não coadunar com tal abrangência, já que apenas faz alusão à figura do
preso. Contudo, alguns juristas brasileiros, no âmbito da Lei Anticorrupção (Lei
12.846/2013) defendem a aplicação desse princípio às pessoas jurídicas. É que con-
sideram tal lei como sendo substancialmente de conteúdo penal 23, malgrado seu tí-
tulo administrativo dado pelo legislador, fazendo-se, então, aplicáveis os princípios
do direito penal, assim como do direito processual penal, dentre os quais o que ga-
rante a não autoincriminação.
De acordo com tal entendimento, então, no caso de a empresa confirmar, pela
investigação interna, a existência de ilicitudes ocorridas, no âmbito de sua organiza-
ção, que possam dar ensejo à sua responsabilização, estaria liberada, pelo princípio
processual penal do nemo tenetur se detegere, a não transmitir tal informação às au-
toridades. No entanto, há quem argumente que esse entendimento vai de encontro
à razão justificante da implementação dos procedimentos internos de denúncia,
bem como da própria razão de ser da autorregulação regulada 24. RAGUÉS I VALLÉS
argumenta que se o Estado estabelece em lei a obrigação de que as empresas orga-
nizem códigos de condutas internos e adotem medidas eficazes de prevenção e des-
cobrimento de ilicitudes é porque quer, justamente, que as próprias organizações
empresariais contribuam no esclarecimento de fatos, cuja persecução interessa ao
Estado, tanto pela necessidade de reprovar o ato, como pela pretensão de compen-
sação da vítima25. Dessa feita, o descobrimento, pela entidade, de uma ilicitude ocor-
rida em seu âmbito, cuja informação e provas não sejam repassadas ao conheci-
mento das autoridades, seria um comportamento oposto às pretensões dessa nova
forma regulatória do meio empresarial26. Nessa linha, RAGUÉS I VALLÉS argumenta
que o “pacto” entre o setor público e privado existente no modelo da autorregulação
regulada somente funcionará se ambos os setores trabalharem de modo a cumprir
seus compromissos: o poder público somente dispensaria proteção jurídica, frente
a represálias trabalhistas ou reclamações de outro tipo, se o empregado houvesse
previamente esgotado as possibilidades internas de denúncia; e à empresa caberia
o compromisso de gerir a informação recebida não apenas com o interesse privado
22 Idem.
23 Acerca do caráter penal da Lei 12.846/13, conferir: SCAFF, Fernando; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge.
A Lei Anticorrupção é substancialmente de caráter penal. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2014-fev-05/renato-silveira-fernando-scaff-lei-anticorrupcao-carater-
penal>. Acesso em: 02/02/15.
24 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Op. cit., p. 140.
25 Idem.
26 Idem.
96
de, ao acessar em primeira mão a denúncia, conseguisse-se evitar o risco de dano à
imagem que uma denúncia externa direta provocaria; mas, principalmente, com o
interesse público de se verificar o que realmente aconteceu, ajuntar provas e assistir
ao Estado na persecução e punição dos responsáveis pelas irregularidades levadas
a efeito em seu âmbito de atividade27. Cumpre que se questione a legitimidade des-
ses compromissos.
27 Ibidem, p. 158.
28 Ibidem, p. 147.
29 MASCHMANN, Frank. Compliance y Derechos del trabajador. In: KUHLEN, Lothar et al. Compliance y
artigo 153 CP, que implica a participação do segredo a um número indeterminado de pessoas.
97
porque se está a transmiti-lo a quem também tem a obrigação de não divulgá-lo31.
Não obstante, a dificuldade na aceitação desse entendimento encontra-se na cons-
tatação prática de que quando uma informação integra um processo judicial em
maior ou menor medida ganhará o conhecimento público: há a presença das partes
e seus advogados, além dos servidores do Judiciário, o que já constitui um número
significativo de conhecedores da informação, o suficiente para se considerar violada
a legítima expectativa de reserva da vítima 32.
Ressalve-se, todavia, que apesar de haver tipicidade na conduta de revelação
de segredo, há a possibilidade de que essa conduta venha a ser justificada, isto é, a
conduta típica reveladora pode ser albergada por uma causa de justificação. Para
tanto, faz-se necessário que se satisfaçam as condições para a incidência das exclu-
dentes de ilicitude, como a legítima defesa e o estado de necessidade 33.
Nesse sentido, para a configuração da legítima defesa, o primeiro elemento a
ser preenchido é a exigência de ser atual ou iminente a injusta agressão que se quer
deter, de modo que fica afastada a possibilidade de aplicação dessa excludente de
ilicitude à hipótese de denúncia de fatos já finalizados, devendo, pois, tratar de in-
formação que diga respeito a condutas delituosas iminentes, permanentes ou conti-
nuadas34. Também é necessário a utilização do meio menos lesivo ao alcance para se
impedir o progresso da agressão ilegítima, o que faz derivar duas exigências: (a) o
sujeito deve primeiro esgotar as possibilidades internas de denúncia, sempre que a
estas se possa atribuir, ex ante, uma idoneidade suficiente como meio para se fazer
cessar a injusta agressão, que, se fracassadas, deve denunciar preferencialmente
ante às autoridades que diretamente à opinião pública; e (b) a revelação de dados
ou documentos cujo sigilo é tutelado pelo direito penal só poderá ser feita no ato de
denúncia quando imprescindível na conferição de credibilidade à mesma, pondo fim
à agressão em andamento35.
Enfim, no que toca à excludente de ilicitude do estado de necessidade, o ele-
mento de abertura a ser preenchido é a atualidade do perigo. Há ainda os requisitos
da proporcionalidade e da necessidade do meio empregado. O primeiro, demanda
que o bem a ser salvo seja de igual ou superior valor ao sacrificado. O segundo, tra-
zido pelo Código Penal brasileiro por meio da expressão legal “nem podia de outro
aplicá-la à situação de whistleblowing externo com relevância penal, isso porque sua configuração, se-
gundo o pensamento majoritário, no Direito Penal brasileiro, limitaria sua incidência ao funcionário pú-
blico no exercício de suas funções. Em relação à causa de justificação do exercício regular de direito, sua
aplicação também encontra dificuldades, pois se torna necessário identificar o direito de quem denuncia
uma irregularidade e os limites desse direito diante dos deveres de confidencialidade que encontram
tutela penal.
34 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Op. cit., p. 208.
35 Idem.
98
modo evitar”, contém duas exigências: (a) a ação típica realizada para evitar a lesão
de um bem jurídico deve ser a via menos lesiva ao alcance do sujeito, o que requer
que se ministre a denúncia primeiro pelas vias internas da empresa, quando possam
ser consideradas, por um juízo ex ante, como meio idôneo de salvação do bem jurí-
dico em perigo, que, se fracassadas, a denúncia ante as autoridades deve ser prefe-
rida àquela feita diretamente aos meios de comunicação ou ao público em geral; e
(b) a revelação de dados sigilosos tutelados pelo direito penal somente pode ocorrer
quando imprescindível a tornar verossímil a denúncia, fazendo-a surtir efeito36.
Conclusão
100
CRIMINALIDADE INFORMÁTICA E JUSTIÇA PENAL
COLABORATIVA
1 Professor Assistente Doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Graduação em
Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP, Brasil (1984 – 1987).
Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Brasil, (1989 – 1992) Doutorado
em Direito pela Universidade de Coimbra, UC, Portugal (1997 – 2000). Pós-Doutorado em Direito pela
Universidade de Salamanca, USAL, Espanha (2011 – 2011). Áreas de pesquisa: Criminologia, Política
Criminal e Direito Penal.
2 Graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais – UNESP. Bolsista de Iniciação Científica pela FAPESP nos períodos de 2011-
2012 e 2012-2013. Mestranda pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade
de Ciências Humanas e Sociais – UNESP. Áreas de pesquisa: Criminologia, Política Criminal e Direito
Penal.
101
de que o Direito Penal protege a vigência da norma 3, o sistema social passa por pres-
sionar o subsistema jurídico-penal para que este englobe novas condutas típicas que
contrariam a normalidade dos comportamentos em uma dada sociedade. Assim, o
Direito Penal passa a proteger a vigência de novas normas oriundas de novas valo-
rações dada a configuração atual da sociedade.
Neste sentido, ao analisar-se o fenômeno da globalização pode-se perceber uma
irritação, notadamente entre os subsistema politico, econômico e o jurídico-penal,
sendo que o subsistema econômico acaba por pressionar os outros subsistemas
para que acompanhem os comandos da abertura de mercado, de não limitação de
fronteiras, controle de fluxo de pessoas e, no caso específico deste trabalho, de con-
trole da tecnologia da informação.
As exigências e pressões que o subsistema econômico realiza perante os outros
subsistemas são evidentes na medida em que se analisa a necessidade de interven-
ção penal perante as novas condutas que afetam a liberdade individual. Dentre estas
novas condutas tem-se, principalmente, aquelas realizadas no âmbito da internet.
Quando se trata da importância da informação no tempo presente e se passa a
analisar as repercussões do assunto na configuração da sociedade atual, quase sem-
pre se põe em evidência o indiscutível desenvolvimento que este meio experimen-
tou nos últimos tempos, principalmente em razão dos inumeráveis avanços tecno-
lógicos. Chega-se a falar de uma verdadeira “sociedade da informação”, conside-
rando-se que os processos de troca de informação interferem diretamente no rela-
cionamento interpessoal e, pois, certamente afetam também as condições de convi-
vência social.
Ademais deste aspecto do desenvolvimento exponencial da informação, um ou-
tro aspecto que deve ser também considerado, pois interfere igualmente na confi-
guração da sociedade, refere-se à democratização verificada em relação a este meio.
Em uma análise de cunho decididamente sociológica, se pode, sem dúvida, afirmar
que a informação foi um dos recursos que mais se democratizou nos últimos tempos,
tendo em vista o amplo acesso que foi disponibilizado aos diversos seguimentos que
compõem a sociedade atual.
Deve-se advertir aqui que não são desconhecidas e que são compartilhadas to-
das as críticas que podem ser formuladas a respeito dos efeitos dos avanços tecno-
lógicos na configuração da sociedade, em especial no que se refere á inegável con-
tribuição que eles deram para o aumento da concentração de poder, tendo em vista
que o controle dos recursos da técnica, incluídos aqueles que se referem ao domínio
da informação, se encontram centralizados nas mãos de poucos 4, gerando todo tipo
de consequências, também as relacionadas às desigualdades no campo econômico.
3 JAKOBS, Günther. ?Cómo protege el derecho penal y qué es lo que protege? Contradicción y prevención;
protección de bienes jurídicos y protección de la vigencia de la norma. In: Los desafios del derecho
penal en el siglo XXI. Libro homenaje al Professor Dr. Günther Jakobs. ARA Editores, p. 150.
4 Os exemplos aqui são vários, porém os mais salientes são os representados pelas grandes corporações
que manuseiam os recursos na área do processamento de dados, seja em relação aos meios utilizados
(hardware: Intel, Apple), seja em relação às técnicas utilizadas para esse processamento (software:
Microsoft).
102
Outro ponto a ser destacado refere-se ao fato de que, por certo, esta democra-
tização do acesso à informação tem um evidente objetivo econômico, uma vez que
não só está sujeito a custos para que esse acesso se efetive como também – e mais
importante – torna o usuário cativo desses custos.
Porém, ao lado das críticas deve ser reconhecido que realmente houve uma am-
pliação da possibilidade de acesso das pessoas aos recursos tecnológicos, incluídos
aqueles relacionados à informação, como bem demonstram os recursos de telefonia
móvel e as conexões com a rede mundial de computadores.
Ora bem, isso pressupõe uma análise mais detalhada sobre o reflexo desse pro-
cesso de democratização no valor da informação, de modo a também por esta via
possibilitar que se avalie qual é a sua relevância, e deste modo permitir um posicio-
namento mais claro acerca da questão se deve ou não ser ela objeto de tutela jurí-
dica, e em caso afirmativo acerca de qual se configura como sendo a melhor técnica
de tutela.
Em um primeiro momento se pode chegar à conclusão de que o mencionado
processo de expansão do acesso gerou um menoscabo da informação, refletindo no
seu valor e, portanto, tornando menos necessária a sua tutela jurídica e, inclusive,
tornando desnecessário o rigor desta tutela.
Pois bem, este é o ponto verdadeiramente essencial para uma melhor compre-
ensão a respeito do papel do direito, e também do direito penal, na sociedade, par-
ticularmente no que se refere aos “novos” entes, cuja pertinência da tutela jurídica
se questiona.
Ou seja, analisada numa perspectiva individual, ou mesmo na perspectiva da
sociedade, porém não como um valor em si, mas sim como reflexo de algum outro
valor, por exemplo, o patrimônio, poder-se-ia pensar que houve uma depreciação
do valor da informação, com reflexos diretos no que se refere a menor necessidade
da sua tutela jurídica e com muito mais razão no que se refere à circunstância de não
ser ela passível de uma tutela penal.
Obviamente não é disto que se trata, devendo ser a informação analisada no
que ela representa em si mesma, como um valor intrínseco. Neste sentido não pode
restar dúvidas a respeito do caráter essencial da informação para a configuração da
sociedade atual.
Deve ser analisado também o argumento, por vezes carregado de conteúdo ide-
ológico, no sentido de que a tutela penal da informação seria justamente um instru-
mento pensado pelas estruturas de poder, por meio do qual se viabilizaria o controle
da informação, indo, pois, em sentido contrário do apontado processo de democra-
tização do seu acesso. Ou seja, revela-se bem natural identificar tutela jurídica da
informação, particularmente aquela de natureza penal como sendo um instrumento
de poder, que resulta em limitações ao seu uso, afetando diretamente a liberdade.
Ora bem, uma argumentação deste tipo deve ser necessariamente submetida a
um juízo de ponderação sob pena de se descambar na mais absoluta ingenuidade
axiológica e epistemologia.
103
De fato, obviamente uma circunstância que sempre vem à tona quando se ana-
lisa o manuseio de instrumentos de poder, deles sendo expressão o Direito e espe-
cialmente o Direito Penal, se refere aos efeitos que o seu uso projeta nas liberdades
individuais. Neste sentido, às mais das vezes a análise não é submetida a uma pon-
deração pendendo a balança imediatamente para a tutela das liberdades individu-
ais, sem se levar em conta que essa mesma liberdade pode ser vulnerada quando
não analisada na perspectiva da proteção das condições essenciais para que ela seja
desfrutada em sociedade. Ou seja, não se pode por em dúvida que o desfrute das
liberdades individuais, mesmo analisado no sentido mais personalista possível, re-
quer algumas condições mínimas que são dadas pela configuração da sociedade.
Portanto, há que se estabelecer uma ponderação entre o valor que a informação
representa para a fruição da liberdade individual e o valor das condições essenciais
para que ela seja desfrutada em sociedade.
Em uma perspectiva hegeliana, tem-se que no Direito se objetiva a vontade ge-
ral, e a caracterização do injusto seria o modo de negação do Direito. 5 De acordo com
Hegel, no crime são negados não apenas o aspecto particular da absorção da coisa
“na minha vontade, mas também o que há de universal e infinito no predicado do
que me pertence, e isso sem que haja mediação da minha opinião.” 6 Apresenta-se,
assim, o campo de domínio do Direito Penal.
Nesta perspectiva Hegeliana, o crime seria, portanto, a violação do direito en-
quanto direito e a “manifestação desta negatividade é a negação desta violação que
entra na existência real: a realidade do Direito reside na sua necessidade ao recon-
ciliar-se ela consigo mesma mediante a supressão da violação do direito”. Esta su-
pressão da violação dar-se-á pela aplicação da pena.7
A violação do Direito enquanto Direito presente no crime é negativa em relação
à vontade da vítima e da sociedade. Todavia, no que se refere àquele que praticou o
delito, esta violação do Direito apresenta um lado positivo. A pena procura anular
este lado positivo que pertence à vontade do agente para assim suprimir a violação
que ocorreu perante ao Direito. Desse modo, tem-se a restauração da validade do
Direito pela aplicação da pena.
Michael Pawlik explica que:
5 PAWLIK. Michael. O passo mais importante da dogmática da última geração? reflexões para a
diferenciação entre injusto e culpabilidade em direito penal. In: Teoria da ciência do direito penal,
filosofia e terrorismo. Organização e tradução Eduardo Saad-Diniz. São Paulo: LiberArs, 2012, p. 97.
6 HEGEL, Georg Wihelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo:
104
Para esta linha de pensamento, “a existência de injusto merecedor de pena de-
pende de que o autor seja indiferente a um momento concreto da existência da li-
berdade alheia”.9 O autor de um delito acaba por posiciona-se contra o respeito às
exigências de colaboração de sua comunidade jurídica. Tem-se, assim, que o eixo do
Direito Penal estaria em torno de que o autor não está disposto a cumprir, segundo
uma determinada ordem social, os deveres de colaboração oriundos de seu status
de cidadão. Dessa forma, tem-se que “o comportamento merecedor de pena é um
injusto do cidadão.”10 Para Pawlik:
9 Ibid., p. 101-102.
10 PAWLIK. Michael. O passo mais importante da dogmática da última geração? reflexões para a
diferenciação entre injusto e culpabilidade em direito penal. In: Teoria da ciência do direito penal,
filosofia e terrorismo. Organização e tradução Eduardo Saad-Diniz. São Paulo: LiberArs, 2012, p. 101-102.
11 Ibid.
12 PAWLIK. Michael. Teoria da Ciência do Direito Penal, filosofia e terrorismo. Org. e Trad. Eduardo
13 SAAD-DINIZ, Eduardo. Fronteras del normativismo: a ejemplo de las funciones de la información en los
programas de criminal compliance. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, v. 108, p.415-441, jan./dez. 2013.
14 BERCOVICI, Gilberto; SOUZA, Luciano Anderson de. Intervencionismo econômico e Direito Penal
Mínimo: Uma equação possível. In: Direito penal econômico: estudos em homenagem aos 75 anos do
Professor Klaus Tiedemann. São Paulo: LiberArs, 2013, p. 13.
15 A Lei 12.737 introduziu os Artigos 266 e 298 no Código Penal, assim como o Artigo 154 A e B, no mesmo
Código.
16 SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. O Direito Penal e a Propriedade Privada: A racionalidade do
Alamiro V. S. Netto acrescenta sobre os artigos 154 A e 154 – B, Código Penal: Ainda que exista causa de
aumento derivada de prejuízo econômico, a razão da lei parece ser muito menos uma proteção do patri-
mônio em si, e muito mais, a garantia de comunicações, segredos industriais ou comerciais, informações
sigilosas e programas de computador. Cria-se, assim, um tipo eventualmente pluriofensivo, no qual a di-
mensão econômica, embora possa estar presente em alguns casos, não é o objeto jurídico-essencial. SAL-
VADOR NETTO, Alamiro Velludo. O Direito Penal e a Propriedade Privada: A racionalidade do sistema
penal na tutela do patrimônio. São Paulo: Atlas, 2014, p 95.
107
e corporativo. A confiança é um fenômeno coletivo, social 17 que baseia todo o sis-
tema de troca, produção e circulação capitalista. A estrutura normativa da sociedade
protege esta base da confiança social, e se esta for rompida no que tange à quebra
das normas que tutelam a informação pode-se comprometer toda uma estrutura so-
cial-econômica.
Em termos processuais penais também há o que se preocupar, pois a partir do
momento em que se estabelece a tutela penal da informação, criam-se normas que
contém esta proteção, e não se pode utilizar as informações advinhas da violação
destas normas como provas contra os atos (corruptos, por exemplo) realizados em
empresas e no sistema financeiro, pois poderão ser consideradas provas obtidas por
meios ilícitos, já que são decorrentes de delitos informáticos.
Pode-se citar como um caso prático em que todas estas preocupações estão en-
volvidas o que ocorreu perante o Banco HSBC/Suíço. Esta unidade do Banco HSBC
fora denunciada pela ocultação e dissimulação de valores e investimentos, o que ge-
rou investigações criminais relacionadas a diversos crimes, como lavagem de di-
nheiro e sonegação fiscal, em vários países, como Inglaterra, Espanha, Itália, Bélgica,
Grécia, e até mesmo empresas brasileiras.18 O caso ficou emblemático com a partici-
pação do funcionário de informática do HSBC, Hervé Falciani, o qual por meio do
acesso aos dados informáticos das transações bancárias denunciou a operação de
ocultação e dissimulação dos investimentos que ali ocorriam.
Pois bem, verifica-se a necessidade de se ter uma regulamentação específica
para os casos em que envolvam os procedimentos de whistleblowing, como ocorreu
com o caso do Banco HSBC/Suíço, e também para a colaboração premiada e os pro-
gramas de compliance, no que se refere ao acesso às informações que poderão ser
utilizadas nestas formas de justiça colaborativa, pois não se pode permitir que, sem
uma regulação específica sobre o acesso às informações, utilize-as de forma que vi-
ole as normas penais que as tutelam. Pois caso estas informações sejam advindas de
violações de dados ou sistemas informáticos são, também, frutos de delitos, conta-
minando as provas a serem utilizadas no Processo Penal, e negando o próprio Di-
reito. Isto não pode ser permitido com respeito à legislação penal e processual penal,
assim como aos princípios político-criminais que regem a valoração das normas pe-
nais.
Bibliografia
17 BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. O Capital e suas metamorfoses. São Paulo: Editora da Unesp, 2012,
p. 62.
18 Acrescenta-se: ocultação e a dissimulação de aproximadamente US$ 120 bilhões em investimentos por
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109
PARTE II
PROGRAMAS DE COLABORAÇÃO:
CRIMINAL COMPLIANCE E ACORDO DE LENIÊNCIA
APRESENTAÇÃO
PROGRAMAS DE COLABORAÇÃO:
CRIMINAL COMPLIANCE E ACORDO DE LENIÊNCIA
113
Mais recentemente, no décimo sétimo Congresso que teve sede em Pequim,
China, em 2004 a corrupção seus delitos correlatos e sua influência nas relações eco-
nômicas internacionais constituíram-se na temática que foi objeto de debate na Se-
ção dois e o financiamento do terrorismo foi discutida na segunda sessão do décimo
oitavo Congresso em Istambul, Turquia, em 2009.
Da mesma forma, o Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Pe-
nal, fundado em 1974 por Heleno Cláudio Fragoso, acompanhando as aspirações e
os debates da associação também pautou seus eventos com a temática da criminali-
dade econômica, culminando com a realização do 1o. Simpósio Científico dos Jovens
Penalistas do Grupo Brasileiro da AIDP, evento que gerou a publicação que ora se
apresenta.
A inserção dos programas de colaboração como o criminal compliance e os
acordos de leniência, objetos da derradeira parte deste volume, complementam com
maestria a reflexão sobre os limites que as respostas penais podem dar frente à com-
plexidade inerente à criminalidade econômica.
Mais do que isso, a publicação desses artigos demonstra aquilo que é um traço
característico da produção científica realizada no âmbito da Associação Internacio-
nal de Direito Penal: a preocupação com a reflexão prática e propositiva, que encara
os desafios impostos pela realidade.
Dentro desse espírito, a delação premiada, que ganhou novos contornos a partir
da reengenharia promovida pela Lei n.º 12.850/2013, o acordo de leniência, mol-
dado de acordo com os ditames da Lei n.º 12.846/2013 e o criminal compliance in-
tegram esse necessário rol de reflexão que é ofertado pelos artigos que ora se se-
guem.
114
A PRÁTICA DE WHISTLEBLOWING COMO
UM MECANISMO DE CRIMINAL COMPLIANCE
1. Introdução
2. Criminal Compliance
115
Diante da complexidade das relações econômicas, o Estado passa a delegar cer-
tas funções de controle e prevenção às companhias privadas que possuem melhor
conhecimento e técnicas para realizarem o monitoramento de suas atividades.
Uma questão nebulosa em relação aos whistleblowers encontra-se na legitimi-
dade de uma política criminal que incentive as denúncias e sua relação com os valo-
res que definem um modelo de sociedade em que se respeitam as liberdades, onde
o dever de promover a persecução dos delitos é responsabilidade estatal (RAGUES
I VALLÈS, 2013).
Críticas apontam que o whistleblowing estaria relacionado com práticas pró-
prias de sistemas totalitários que exercem um forte controle sobre os cidadãos, ou-
tras relacionadas ao fenômeno mais amplo da autorregulação (RAGUES I VALLÈS,
2013), como exemplos dessa preocupação existem os casos de França e Alemanha
que, após a instauração dos programas de compliance exigidos pela Lei Sarbanes-
Oxley, nas empresas subsidiárias americanas na Europa, afirmaram que sua cultura
e normas não permitiriam um instituto tão similar ao utilizado durante os regimes
totalitários que possuíam os “contribuintes não oficiais” que trabalhavam como um
sistema de vigilância e controle da população (RAUHOFER, 2007).
Os programas de compliance e as novas formas de regulação para a prevenção
da criminalidade econômica surgem, especialmente, como uma reação aos grandes
escândalos, WorldCom, Enron e Parmalat, por exemplo. Compliance, do verbo inglês
to comply representa o ato de cumprir, realizar, satisfazer ou agir em conformidade
com uma regra ou comando de regulamentos, políticas e procedimentos destinados
a mitigar os riscos operacionais inerentes às atividades empresariais e de institui-
ções (SAAVEDRA, 2011), ou seja, uma postura preventiva ética e de boa governança
corporativa a ser observada (SOUZA e FERREIRA, 2013; SAAD-DINIZ, 2012; COSTA
e ARAÚJO, 2014).
Phillip Wellner (2005) afirma que os programas de compliance são mecanis-
mos internos implementados pelas companhias com o objetivo de detectar e preve-
nir condutas criminais dentro das corporações. Tal implementação deve ser propor-
cional aos riscos de infração criminal e razoável entre os interesses de segurança e
os objetivos financeiros e econômicos (BUONICORE, 2012), com o objetivo de agre-
gar valor para a empresa.
De acordo com Ulrich Sieber (2013), o conteúdo dos programas de compli-
ance teria o objetivo de proteger os valores econômicos da empresa, promovendo
uma estrutura transparente que respeitasse o direito laboral dos empregados, a se-
gurança do consumidor, a proteção universal dos direitos humanos e os interesses
de todos os stakeholders.
3. A prática de whistleblowing
116
figura está muito vinculada com o movimento de defesa dos direitos civis, da inca-
pacidade das empresas e da administração em conter novos riscos e escândalos
econômicos e políticos (RAGUES I VALLÈS, 2013).
A expressão foi utilizada para fazer referência àqueles que denunciam um de-
terminado feito ilícito e, em contextos jurídicos, o termo whistleblower caracteriza
aqueles, atuais ou antigos, membros de uma determinada organização, pública ou
privada, que denunciam práticas ilícitas, ou pouco éticas, realizadas dentro da orga-
nização, aos superiores ou responsáveis (RAGUES I VALLÈS, 2013).
A posição do whistleblower como membro da organização é fundamental para
determinar a proteção que ele receberá. Ele, necessariamente, será um indivíduo
que não possui grandes poderes e que confia nas estruturas da organização. Whistle-
blowing pode ser definido como a denúncia de certo comportamento que esteja em
desacordo com as estruturas de governança estabelecidas na empresa (RAUHOFER,
2007).
A noção de whistleblowing é composta por quatro elementos: o membro da or-
ganização que “assopra o apito”; a denúncia da irregularidade reportada (não se
confunde com reportar uma má conduta, pois abrange má administração, corrup-
ção, assédios ou outras violações legais que envolvam a organização); o indivíduo
ou o grupo de pessoas que estão cometendo as violações e, por último, a pessoa ou
entidade que recebe a denúncia (SAMPAIO, 2012).
Existem duas possibilidades de whistleblowers: os internos que comunicam a
situação irregular aos representantes da própria empresa, enquanto os externos
efetuariam as denúncias perante terceiros, como autoridade ou meios de comunica-
ção. Ambos se enquadram em um firmamento de um ideal programa de compliance,
pois as denúncias exercem uma função preventiva sintomática (SILVEIRA, 2014).
Para a Organização Transparência Internacional (2013), os whistleblower pos-
suem um papel essencial no combate à corrupção, fraudes, má administração e ou-
tras irregularidades que ameacem a saúde, segurança, integridade financeira, o
meio ambiente, o ordenamento jurídico e os direitos humanos. O direito de reportar
uma irregularidade é entendido como uma extensão natural do direito de liberdade
de expressão, interligado com os princípios da transparência e integridade, relacio-
nados com uma boa governança.
117
A denúncia possui algumas características específicas, como o fato do denunci-
ante não desempenhar funções específicas de controle e que o fato denunciado te-
nha sido realizado nas atividades cotidianas da empresa (RAGUES I VALLÈS, 2013).
O legislador não pode impor aos cidadãos condutas que possam gerar represálias
pessoais, razão pela qual o autor Ramon Ragués I Vallès (2013) entende que a im-
posição do dever de denúncia deveria acontecer no caso de feitos mais graves, com
notável interesse social e nos casos em que a persecução resulte especialmente com-
plicada e os deveres de denúncia seriam extendidos a pessoas próximas de onde os
delitos foram cometidos.
O medo da reação adversa da própria organização é uma barreira de difícil su-
peração com recursos meramente jurídicos (RAGUES I VALLÈS, 2013). A expectativa
do benefício trazido aos denunciantes pode ter maior força de persuasão que os ris-
cos das represálias. A empresa deve criar mecanismos que garantam a segurança e
o anonimato do denunciante, uma vez que nem sempre espera-se que o colaborador
sinta-se confortável e seguro ao expor uma denúncia abertamente, razão pela qual
recomenda-se um canal externo de denúncias que garante transparências, sigilo e
anonimato (COIMBRA e MANZI, 2010).
De um ponto de vista jurídico-penal cabe à empresa que, de acordo com seus
protocolos de compliance, dê resposta às denúncias que recebam, agindo como uma
primeira instância ao instaurar uma investigação interna que possibilite confirmar
a veracidade das informações e encontrar provas necessárias para, após, adotar me-
didas trabalhistas, cíveis ou penais (RAGUES I VALLÈS, 2013).
De acordo com uma pesquisa realizada pelo escritório britânico Freshfields
Bruckhaus Deringer, na qual foram ouvidos mais de 2500 gerentes de grandes cor-
porações com origem nos EUA, Reino Unido, Hong Kong, Alemanha e França, 12%
dos participantes declararam já ter feito denúncias sobre irregularidades nas com-
panhias onde atuam e 42% considerariam fazer se encontrassem problemas. Entre-
tanto, 44% dos profissionais ouvidos afirmaram que suas empresas não possuem
uma política de denúncias internas ou não comunicaram a existência desta aos fun-
cionários. Em apenas 7% das empresas a prática de denúncias é vista como um tema
importante para a organização, ao passo que 40% dos participantes consideram que
suas empresas desencorajam de forma direta ou indireta a prática de denúncias. A
conclusão encontrada foi de que devido à complexidade dos problemas que levam
às denúncias, como má gestão financeira, corrupção ou atividades criminosas, e os
riscos envolvidos para a reputação da companhia, a adoção de procedimentos de
denúncia é um assunto que deveria ser discutido nos conselhos (ARCOVERDE,
2014).
118
tanto funcionários públicos, como privados. Por um lado busca-se impedir qualquer
represália no âmbito laboral e, por outro, pune a quem adotar tais medidas (RAGUES
I VALLÈS, 2013).
De acordo com o United States Sentencing Comission 2014 Federal Sentencing
Guidelines Manual, uma empresa deverá promover uma cultura organizacional que
encoraje uma conduta ética e um comprometimento do compliance com relação à
lei. Tal programa de compliance e ética será implementado e cumprido de forma a
prevenir e detectar condutas criminosas. A organização deverá dar publicidade ao
sistema de compliance e proporcionar mecanismos que permitam o anonimato e
confidencialidade dos trabalhadores e agentes que possam reportar condutas cri-
minais sem medo de retaliações.
A Sarbanes-Oxley Act elevou, de forma detalhada, à condição de dever diver-
sas medidas de prevenção das empresas, valendo-se da responsabilidade direta do
conselho diretivo da empresa no âmbito do compliance, da publicação recente de
alterações essenciais da situação financeira, da elaboração de diretrizes éticas, da
criação de comissões de auditoria e de controles internos de informação, assim
como o estabelecimento de hotlines autônomas (SIEBER, 2013).
Aprovada após os escândalos Enron e WorldCom, em 2002, apostou-se nas
denúncias contra as fraudes em corporações por duas vias: a) pela obrigação de es-
tabelecer canais específicos de denúncias dentro das empresas que permitam aos
funcionários, confidencial ou anonimamente, fazer chegar aos comitês de auditoria
informações importantes sobre irregularidades contábeis ou financeiras; b) a pre-
visão de sanções penais para aqueles que adotem represálias contra os funcionários
que tenham realizado denúncias, assim como medidas de proteção, como indeniza-
ção por danos, reincorporação ao cargo e pagamentos de custas processuais (RA-
GUES I VALLÈS, 2013).
As normas penais constantes da lei Sarbanes-Oxley possuem as caracterís-
ticas de um direito penal simbólico, voltado às consequências, com nítido caráter
preventivo-pragmático. A premissa é a confiabilidade no mercado, ou seja, a instru-
mentalização do sistema repressor no sentido de manter, nos agentes econômicos,
a expectativa de veracidade acerca das notícias contábeis veiculadas pelas empresas
(SILVEIRA e NETTO, 2006).
Entretanto, o pequeno número de denunciantes que se beneficiaram das
medidas de proteção levaram as autoridades a optar por uma nova forma de estí-
mulo: as recompensas econômicas. A Lei Dodd-Frank, traz em sua Seção 922, a re-
gulação referente à proteção do whistleblower. De acordo com esta lei, whistleblo-
wer significa o indivíduo que fornece informação relativa à violação de regras esta-
belecidas por regulação. É ainda estabelecido um prêmio para aquele que volunta-
riamente prover informações que levem a aplicação da lei, no valor de não menos
que 10% e não mais que 30% do que for coletada em sanções monetárias impostas
na ação ou relativas a esta.
A concessão do prêmio não ocorrerá: a) se o whistleblower for, ou tiver sido
ao tempo da denúncia, um funcionário de uma agência reguladora, do departamento
119
de Justiça, de um Conselho de Supervisão de Assuntos Contáveis das Companhias
Abertas e de alguma organização de cumprimento de leis; b) a qualquer whistleblo-
wer que tenha sido condenando criminalmente em algum caso relacionado ao caso
denunciado; c) ao whistleblower que obtenha a informação através de uma auditoria
realizada; d) se o whistleblower não cooperar de acordo com o esperado pelas auto-
ridades.
De acordo com a lei Dodd-Frank nenhum empregador poderá suspender,
ameaçar, perseguir, importunar, assediar o funcionário que tenha realizado alguma
denúncia. Com esta nova regulação, aumentaram os casos de denúncias (RAGUES I
VALLÈS, 2013).
No plano desenvolvido pela OCDE (2011) contra a corrupção, a proteção
para o whistleblower aparece como prioridade, uma vez que o risco de corrupção é
aumentado em ambientes em que a denúncia da irregularidade não é apoiada e pro-
tegida, tanto no setor público, como no privado. Encorajar e facilitar a prática do
whistleblowing pode ajudar, inclusive, as autoridades a monitorar as práticas de
compliance e detectar violações às leis anticorrupção. O manual preocupa-se em evi-
tar retaliações e discriminações e em prestar assistência no caso de processos cíveis
e criminais, como por difamação. Tal proteção só é considerada efetivamente imple-
mentada com consciência, comunicação e treinamento. Uma legislação clara e estru-
turas institucionais devem garantir a proteção daqueles que tenham o interesse de
denunciar irregularidades e ações suspeitas.
Para a ONG Transparência Internacional (2013), a proteção aos whistleblo-
wer deve ser integral, sua confidencialidade, segurança e direitos preservados. Cum-
pre ressaltar que aquele que fizer uma denúncia, sabidamente falsa, poderá ser res-
ponsabilizado profissionalmente. Em casos mais urgentes, que envolvam o interesse
público, o whistleblower terá proteção para realizar a denúncia para entidades ex-
ternas como sindicatos, mídia e organizações civis.
De acordo com o manual do FCPA, Foreign Corrupt Practices Act, de 2012,
a assistência e a informação de um whistleblower que saiba de violações pode ser
uma arma poderosa na aplicação das leis e no combate aos crimes econômicos.
120
Não existe um modelo único de compliance a ser adotado, variando de acordo
com a estrutura e a administração da empresa, razão pela qual “a transparência de
funções e a proibição e prevenção de práticas ilícitas são as pedras de toque de um
programa de compliance efetivo” (COSTA e ARAÚJO, 2014; SAAD-DINIZ, 2013).
A lei nº 12.846/13, nova lei anticorrupção, foi produzida sob o influxo de um
movimento internacional de combate às práticas de corrupção, fortalecido a partir
da Convenção Interamericana contra a Corrupção e a Convenção Penal sobre Cor-
rupção do Conselho da Europa (SOUZA, 2014). A nova lei segue as legislações es-
trangeiras que buscam dar soluções aos problemas vividos em crises mundiais,
como a “americana FCPA e o britânico Bribery Act, que com o forte impulso de enti-
dades internacionais (OCDE) dão o tom para um novo momento de regulação em-
presarial: a chamada auto-regulamentação regulada (SCAFF e SILVEIRA, 2014).
Estabeleceu a responsabilidade empresarial administrativa e civil por atos de
corrupção e, embora não cuide de matéria penal, trouxe previsão semelhante
(COSTA e ARAÚJO, 2014) no artigo 7º da lei que versa sobre a dosimetria das san-
ções que podem ser aplicadas traz que serão levados em consideração “a existência
de mecanismos e procedimento internos de integridade, auditoria e incentivo à de-
núncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no
âmbito da pessoa jurídica”.
O fundamento da legitimação da culpabilidade das organizações e seus efeitos
nos enunciados legais repercutiram diretamente na relevância jurídica dos progra-
mas de compliance, sobretudo nas penas (SIEBER, 2013). As investigações corpora-
tivas tem o objetivo de cooperar com o poder público e, assim, permitir que a em-
presa se beneficie dos incentivos que a lei e a prática das autoridades oferecem para
reduzir sua exposição às sanções diretas e indiretas decorrentes de atos de corrup-
ção praticados em seu benefício (MADRUGA e FELDENS, 2014).
No Brasil, ainda não existe uma regulamentação clara sobre a prática de
whistleblowing, porém, existem alguns projetos de lei que tem como objetivo criar
programas de recompensa para aqueles que denunciarem crimes. A exemplo dos
Estados Unidos, o Brasil vem demonstrando preocupação com o tema, foram apre-
sentados projetos legislativos que versam sobre a criação de mecanismos para re-
compensar as pessoas que comuniquem às autoridades os crimes praticados contra
a administração pública (BREIER e SOUZA, 2014).
A discussão e novos estudos são necessários para o amadurecimento da figura
do whistleblower no Brasil, possibilitando um melhor entendimento de sua atuação
no país. A cultura brasileira carrega valores coletivos, baseada nas inter-relações e
lealdade pessoal (SAMPAIO, 2012), de forma que se pode imaginar que a prática não
se consolide nas empresas no Brasil. Entretanto, práticas de compliance bem estru-
turadas tendem a aproximar os funcionários dos valores éticos da empresa.
6. Considerações Finais
121
(SOUZA e FERREIRA, 2013). Representa “o reconhecimento de que a persecução
penal e as penas regulatórias por violações após as ocorrências das mesmas não são
suficientes” e que esperar pelo dano não é mais uma opção, sendo necessário “iden-
tificar os canais de risco e tentar endereçar os canais de risco e tentar endereçar o
problema antes que ele se torne uma catástrofe” (COSTA e ARAÚJO, 2014).
Orienta-se por meio da programação de uma série de condutas que estimulam
a diminuição de riscos da atividade, uma vez que sua estrutura é pensada para in-
crementar a capacidade comunicativa da pena nas relações econômicas ao combinar
estratégia de defesa da concorrência leal e justa com estratégias de prevenção de
perigos futuros (SAAD-DINIZ e SILVEIRA, 2012).
As novas funções penais de informação e a capacidade de interação funcional
entre o direito penal com outros domínios do direito, especialmente o mercado de
capitais, recomendam o aperfeiçoamento dos sistemas de segurança da informação
e a proteção de dados nas organizações empresariais (SAAD-DINIZ, 2013).
Entretanto, ao compliance não interessam os complexos debates do direito pe-
nal econômico sobre a lesividade e ofensividade de uma ou outra conduta. Tem-se
que o cumprimento de seus programas deve se dar em um caráter preventivo dos
crimes (SILVEIRA, 2014).
Há de se admitir que se o Mercado, a Política e novas regulações jurídicas de-
fendem a utilização do direito penal em novos campos, este deverá impor seus limi-
tes (SILVEIRA, 2014). Os novos mecanismos de criminal compliance passam a ser
pensados, também, como uma redução de custos através de um controle prévio re-
alizado internamente na corporação.
Dessa forma, ainda que um tema recente no Brasil espera-se que o instituto seja
amplamente estudado e que possa ser aplicado da melhor forma possível em nossa
realidade, com limites bem estabelecidos, não só como uma forma de redução de
multas, mas como uma nova consciência de ética corporativa.
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OS PROGRAMAS DE CRIMINAL COMPLIANCE COMO
INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DO EMPREGADO NA
RESPONSABILIDADE PENAL EMPRESARIAL1
MATHEUS DE ALENCAR
Graduando do curso de Direito da FCHS Unesp/Franca
1. Introdução
1 Este paper foi elaborado tendo como base a pesquisa de mesmo título elaborada pelo mesmo autor com
financiamento (bolsa IC) da FAPESP – Processo nº 2013/06895-0.
125
2. A política criminal de responsabilidade empresarial
126
rídica legalista francesa, atribuindo responsabilidade à empresa a partir da transfe-
rência para ela da culpabilidade de uma pessoa física (SILVA SÁNCHEZ, 2013b,
pp.21 e ss.).
Neste modelo, os requisitos para a responsabilização penal da pessoa jurídica
são: (a)existência de infração penal; (b)cometida por decisão do representante legal
ou contratual da pessoa jurídica ou de um órgão colegiado seu, uma vez que, se a
responsabilidade penal tem como suporte uma intervenção humana, esta só poderia
ser de agente da empresa, além de que a conduta punível precisa ser realizada por
ato decisório – já que o que se pune é justamente a decisão da pessoa jurídica –,
então o autor é qualificado, não abrangendo a figura de empregados subalternos
(PRADO, 2001, p.38); e, por fim, que esta infração penal cometida por decisão de
autor qualificado seja (c)no interesse (vantagem de qualquer natureza – política,
moral etc.) ou benefício (favor, ganho, proveito econômico) da entidade, pois se o
autor da conduta atuar em nome próprio ou de terceiro, a empresa não entra como
responsável (PRADO, 2001, p.39).
O modelo é duramente criticado pelo fato de que não cria um critério de culpa-
bilidade autônomo das empresas, uma vez que, se há a identificação do agente qua-
lificado que pratica a conduta delituosa, há uma tendência de ampliação excessiva
da responsabilidade penal porque só se exige a prova do interesse ou benefício da
empresa com a conduta para responsabilizá-la penalmente, assim admitindo uma
espécie de “responsabilidade objetiva” das empresas.
Enfim, a (3)responsabilidade penal plena ou “responsabilidade própria” da pes-
soa jurídica, segundo ABANTO VÁSQUEZ (2010, p.191, trad. livre), pressupõe inici-
almente:
127
Atualmente a produção legislativa ocidental tem se inclinado para este modelo
de responsabilização de empresas, não só nos países de tradição jurídica da common
law, mas também em países de herança romano-germânica, sendo exemplo recente
a legislação chilena (Ley Nº 20.393, de 2009) (BACIGALUPO, 2011, pp.103-104).
De qualquer modo, a responsabilidade penal empresarial, em ambos modelos,
não atenta contra o “ne bis in idem”, visto que a corporação é juridicamente uma
personalidade distinta das dos indivíduos que atuam em seu interior. Ao mesmo
tempo, é tido que a responsabilidade deve ser cumulativa, ou seja, a responsabili-
dade penal da empresa e dos indivíduos não se opõem, sendo este procedimento
chamado de “dupla imputação” (SHECAIRA, 2011, p.98). Estas considerações terão
enorme importância ao se analisar os programas de criminal compliance como ins-
trumento de proteção do empregado.
3. Os programas de compliance
128
ética empresarial exposta pelo código de ética e conduta (COIMBRA e MANZI, 2010,
pp.84-86); e o (d)sistema de sanções, aqui tido como também essencial, pois ele será
o que garantirá a efetividade do conteúdo imposto pelo programa de compliance
dentro da empresa, devendo, obviamente, observar as limitações de ordem consti-
tucional e trabalhista na sua aplicação (ALENCAR, 2014, p.150).
Dentro da visão de compliance como autorregulação da empresa, a defesa de
sua implementação está relacionada ao fato de ele apoiar na obtenção do padrão de
governança corporativa, mitigando riscos, incentivando a transparência, dando
mais segurança e diminuindo custos das empresas a partir da prevenção de proble-
mas. Tal como a própria boa governança, ainda que altere os custos de transação da
atividade empresarial, um programa de compliance bem gerenciado agregaria valor
à empresa (SILVEIRA e SAAD-DINIZ, 2012, p.308). Contudo, seus objetivos não se
resumem a dar lucro a partir do ganho de reputação no mercado e prevenir contra
prejuízos oriundos de ações estatais. Em verdade, eles se referem a assuntos diver-
sos, de regras complementares de direito trabalhista e regras nas relações de con-
sumo à proteção universal dos direitos humanos (SIEBER,2013, pp.291 e ss.). En-
tretanto, a maior parte dos objetivos se refere à prevenção de uma grande quanti-
dade de delitos empresariais. Assim é dito que as finalidades de um programa de
compliance “cuidam primordialmente do impedimento dos delitos” (SIEBER, 2013,
p.295), motivo pelo qual ao compliance que atua na área criminal dá-se o nome de
Criminal Compliance.
Para garantir a efetividade das medidas preventivas dos programas de criminal
compliance, é especialmente significativa a cooperação entre o sistema de regulação
interno da empresa e o sistema estatal de prevenção à criminalidade econômica
(SIEBER, 2013, pp.291 e ss.). Assim, o Estado legisla no sentido de exigir a imple-
mentação de compliance por parte das empresas em um sistema de corregulação
(“autorregulação regulada”) que busca a cooperação entre os setores público e pri-
vado para melhor prevenir a criminalidade na esfera das corporações. Nos ordena-
mentos modernos que preveem esse tipo de sistema de corregulação há exigências,
(1)em relação às empresas, que elas se regulamentem de modo a prevenir interna-
mente os atos indesejados (por meio dos programas de compliance), tendo como ato
essencial o fornecimento de certas informações aos agentes reguladores; enquanto,
(2)por parte do Estado, além de receber e processar as informações no sentido de
buscar evitar a infração das normas (crimes), ele terá que (a)conceder vantagens às
empresas que cumpram os procedimentos e ainda assim sejam surpreendidas com
a ocorrência de infrações no seu interior, principalmente quando houver a autode-
nunciação e (b) por outro lado sancionar as empresas que não cumpram os proce-
dimentos da lei, em um claro sistema “carrot and stick” (LAUFER, 1999, p.1382).
Neste contexto, os programas de criminal compliance ganham relevância incon-
testável na prevenção dos crimes ocorridos no interior das corporações, deste modo
se tornando os próprios instrumentos de organização da empresa para evitação dos
delitos e da sua responsabilização nos modelos de responsabilidade penal empresa-
129
rial por “fato próprio” (SILVA SÁNCHEZ, 2013b, p.31). O problema maior se apre-
senta na esfera das responsabilidades individuais, concomitantes à corporativa. Ha-
veria correção e justeza na aplicação dos programas de compliance caso a intenção
fosse impedir a ocorrência do ato ilícito por meio da execução de regulamentos in-
ternos adequados à prevenção, deixando a empresa em incessante conformidade
com as leis e por isso evitando a responsabilidade penal. Quem, pelo contrário, to-
mar em consideração o objetivo de compliance como somente evitar a responsabili-
dade, independente de como se faça isso, corre o risco de cair em erro conceitual e
em situações indesejáveis de indeterminação dos mecanismos de responsabilização.
Como exemplo, pode haver uma situação, bem citada por ROTSCH (2012), em que
uma estratégia de compliance dirigida de forma singular e parcial pode eximir a res-
ponsabilidade penal da direção empresarial, em especial por meio da delegação de
funções. A responsabilidade, por sua vez, dilui-se pela empresa, deixando rastros e
sendo transferida aos trabalhadores subordinados. Assim, evitar a responsabilidade
se transformaria em transferir a mesma, o que não pode ser o objetivo real dos pro-
gramas de compliance. Portanto, um conceito de compliance dirigido a evitar a res-
ponsabilização penal deve tomar em consideração a empresa em sua totalidade, tra-
balhando para evitar a responsabilidade penal indiscriminadamente.
Em face disso, as questões que se põem a seguir são: (1)em que medida estes
programas de compliance cumprem o que se espera deles na legislação penal e
(2)como eles podem encontrar legitimidade para o direito criminal. Para resolver
esta problemática é que é levantada a hipótese de os programas de criminal compli-
ance servirem de instrumento de proteção do empregado na responsabilidade penal
empresarial.
130
criminais autônomas e plenas das pessoas jurídicas, sendo eles os elementos que
descaracterizariam a desorganização das empresas.
Contudo, por outro lado, William S. Laufer questiona as “ilusões de compliance
e governança” ao analisar a conjuntura mais ampla da criminalidade econômica. Ba-
seando-se em análises de evidência empírica o autor questiona se o incentivo estatal
à transparência, governança corporativa e a adesão a compliance veio a diminuir de
fato a criminalidade das empresas como um todo. Desde esta perspectiva, seria im-
possível concluir se os programas de compliance são realmente efetivos a longo
prazo desde uma perspectiva global, sendo que na ausência de evidência empírica
concreta não é possível garantir se eles reduzem ou não os desvios na sociedade:
131
dústrias, interpretados com as reconhecidas limitações típicas de estatísticas des-
critivas. Assim, preocupações importantes como (a)definir a natureza do problema
ou (b)moldar a variável que justifique a efetividade de um programa de compliance
não são resolvidas com essas pesquisas empíricas, muito em função de uma série de
preconceitos de amostragem, limitações de design e suposições causais insuportá-
veis que limitam seu valor.
É em função desta problemática que se propõe que compliance tenha como ele-
mento legitimador não somente a prevenção de delitos, algo que é aparentemente
possível a depender do contexto, mas principalmente a proteção do empregado.
Deste modo compliance se justificaria como instituto jurídico não só pela sua capa-
cidade de prevenção, mas também pela capacidade de organização das empresas e
proteção dos empregados na responsabilidade penal empresarial.
Para concretizar a função de proteção do empregado, um programa de compli-
ance se valeria, além da sua organização típica focada na prevenção de delitos (e não
na transferência de responsabilidades criminais dentro da corporação), também de
mecanismos específicos visando este fim.
Assim, os mecanismos2 de proteção do empregado aqui levantados se dividem
em:
2 O rol de mecanismos aqui elencado é exemplificativo. Os aqui apontados são somente aqueles
observados como resultado deste trabalho, sendo possível traçar mais, desde que tendo como referência
o norte interpretativo da proteção do empregado. Cada um dos mencionados mecanismos foi
devidamente desenvolvido no trabalho de referência: ALENCAR, Matheus de. Os programas de criminal
compliance como instrumento de proteção do empregado na responsabilidade penal empresarial.
FAPESP/IC – Processo nº 2013/06895-0. Franca/SP, 2014.
132
controle estabelecidos no programa de compliance no que se refere à obtenção de
conhecimento de delitos na atuação da empresa e à transmissão da informação ob-
tida a seus superiores a fim de que se corrijam as condutas defeituosas ou os estados
de situações perigosas constatadas (SILVA SANCHEZ 2013a, p.104), deste modo li-
mitando também sua responsabilidade criminal e diminuindo as chances de que ele
ocupe a posição de bode expiatório;
2) Evitar a irresponsabilidade organizada na empresa, ou seja, aquelas si-
tuações em que a imputação individual fica comprometida pela própria organização
ou desorganização da empresa (ABANTO VÁSQUEZ, 2010, p.177), terminando rele-
gada aos membros mais frágeis e fungíveis das corporações. Para isso se situa a res-
ponsabilidade no âmbito da pessoa jurídica responsável pelo delito, independente-
mente de comprovação de uma responsabilidade individual, tornando a empresa o
destinatário principal do dever jurídico da organização e não somente o empregado,
mantendo-se a dupla imputação, mas sem o concurso necessário entre a pessoa ju-
rídica e uma pessoa física. Restariam bem definidos autores e responsáveis e, na
falta de organização, é imputada a empresa de qualquer modo, evitando irresponsa-
bilidades organizadas.
133
tratar de um direito fundamental tal qual o do empregador de defender sua própria
posição jurídica (MASCHMANN, 2013, pp.156-157), estando o princípio materiali-
zado por limitações concretas ao direito do empregador de pedir informações, pro-
tegendo o empregado contra o uso de uma possível declaração sua como prova con-
tra si mesmo;
4) Proteção do whistleblower3, que se dá por meio de (I)proteção dos funci-
onários que relataram uma situação de má conduta ou colaboraram com auditoria
ou investigação (“whistleblower protecion”), para reforçar a oportunidade de todos
denunciarem, incluindo as exigências de que (i)o whistleblower não possa ser lici-
tamente demitido por determinado período de tempo após a denúncia (sendo um
ano no direito alemão) (MASCHMANN 2013, p.166), dando-lhe a chamada “estabili-
dade”, em situação análoga à das gestantes; e (ii)a proibição do chamado “mobbing”,
por meio de uma “presunção temporalmente limitada” de que se o empregado é pre-
judicado em sua posição de trabalho no mesmo período em que não pode ser licita-
mente demitido, estas medidas são entendidas como motivadas pela denúncia e por
isso anuláveis (MASCHMANN 2013, p.167); (II)criação de linha internas de denún-
cia anônima de anomalias (hotlines), de modo que possam informar a pressão de
superiores hierárquicos para o cometimento de delitos por parte de seus subordi-
nados, protegendo-os com a “whistleblower protection”, tornando possível desobe-
decer e não incidir nem em responsabilidade penal, nem em desemprego;
3Os whistlebowers são funcionários incentivados a delatar atitudes que ofendam preceitos estabelecidos
nos programas de compliance. São os “tocadores de apito” ou “denunciantes cívicos” de más condutas.
134
tes para almoço por empregados ou a concessão de subsídios ou convite a consumi-
dores, dentre outras condutas de interesse criminal (SIEBER, 2013, pp.306 e ss.).
Neste caso específico, previne-se que o empregado extrapole os limites da aceitação
permitida, delimitando no código de conduta o que pode e o que não pode ser aceito,
evitando a responsabilização frente aos delitos em que há aceitação e o ofereci-
mento de benesses. Isso incluirá, principalmente, o treinamento dos funcionários
para que seja conhecido detalhadamente cada tipo penal relacionado à atuação da
empresa e este tipo de situação, como, por exemplo, os tipos relacionados à prática
de suborno.
7) Repressão a um possível ambiente incitador de crimes dentro da em-
presa para beneficiá-la, conforme ocorre frequentemente na prática (TIEDE-
MANN, 1995), por meio das diretrizes valorativas traçadas por compliance que in-
duziriam a empresa a manter um ambiente de respeito à ética e às leis. Para isso, é
essencial que o código de ética e de conduta seja bem redigido e a postura dos supe-
riores hierárquicos deve ser indubitável no sentido de não restar dúvida sobre a
empresa não querer delitos na sua atividade. Ao mesmo tempo, o treinamento dos
funcionários para assentar esses valores no âmbito de sua atividade laboral é essen-
cial nestes casos, pois somente com treinamento é possível desconstruir conceitos
pré-estabelecidos e construir uma cultura organizacional que aspire manter deter-
minados padrões éticos. Este mecanismo seria essencial na medida em que evitasse
os delitos decorrentes de previsões gerais como o alcance de certas metas. Aliado
aos demais que tratam da proteção contra delitos decorrentes de ordens diretas,
protegeria os empregados de maneira razoável. Por fim, cita-se que um último ponto
de interesse dos empregados seria o direito de participação de representantes seus
na redação dos códigos éticos (NIETO MARTÍN, 2013a, p.35), consolidando compli-
ance como instituto democrático.
135
mas, quanto no sentido de as empresas amarrarem a própria margem de discricio-
nariedade de atuação de seus funcionários e, consequentemente, delas mesmas. Na
mesma linha é lembrada a necessidade de adequação constitucional do sistema,
tanto nas regulações partindo do Estado quanto nas regulações das empresas mani-
festadas pelos programas de compliance concretamente, de modo a garantir que
uma regulação de compliance seja legítima em face do ordenamento jurídico de um
país e adequada a cada realidade. Deste modo, se a proteção do empregado legitima
compliance em face do direito como um todo, o respeito à constituição legitima com-
pliance em face dos ordenamentos jurídicos nacionais.
5. Conclusão
136
de compliance atinja sua legitimidade em face do ordenamento jurídico de cada país
ele deverá (3)respeitar os preceitos constitucionais fundantes de dito ordenamento
jurídico. Deste modo, não podem, em nome de uma pretensa prevenção a crimes, as
regulações de compliance infringirem normas fundantes de uma Constituição em
matéria de responsabilidade penal empresarial ou de garantias constitucionais in-
dividuais de ordem trabalhista, pessoal, processual e penal. Somente assim os pro-
gramas de compliance poderão se adequar a cada realidade concreta.
Enfim, com a implementação dos mecanismos de proteção do empregado, com-
pliance pode vir a ser importante ferramenta na prevenção de delitos, na proteção
do empregado e na proteção de garantias fundamentais individuais e de defesa das
corporações. Um programa de compliance direcionado à proteção do empregado é
dotado de mais credibilidade, eficiência, legitimidade e transparência. Desta forma,
o alcance da norma penal poderia finalmente estar restrito de modo legítimo e sufi-
ciente em matéria de direito penal empresarial.
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139
A FUNÇÃO DO ACORDO DE LENIÊNCIA NA LEI
12.846/2013 E A FINALIDADE DA PUNIÇÃO DA
EMPRESA POR ILÍCITOS PRATICADOS CONTRA A AD-
MINISTRAÇÃO PÚBLICA*
1. Introdução
2.1. Competência
*Apresentação realizada no I Simpósio Científico dos Jovens Penalistas do Grupo Brasileiro da Associação
Internacional de Direito Penal – “Novas técnicas de investigação e Justiça Penal Colaborativa em direito
penal econômico”. Rio de Janeiro, Brasil, 29 de maio, 2015.
141
Do lado oposto, a Controladoria Geral da União argumenta que a competência
incumbe a si mesma nos termos da lei, muito embora o Ministro Valdir Moysés Si-
mão tenha declarado à imprensa que a Controladoria está aberta para a participação
do Ministério Público no processo de negociação 1.
Contra a competência prevista pela lei de que a Controladoria Geral da União e
as demais Controladorias e Corregedorias celebrem acordos de leniência, os repre-
sentantes do Ministério Público argumentam que tais organismos de controle per-
tencem ao Poder Executivo, sendo seus chefes nomeados em cargos de confiança.
Faltaria, portanto, a devida garantia de imparcialidade em suas decisões 2.
1 TALENTO, Aguirre. “Ministro afirma nã o poder abrir mã o de acordo com empresa”. Folha de São Paulo,
São Paulo, 03.03.2015.
2 LIVIANU, Roberto. “A impunidade nã o está à venda”. Folha de São Paulo, São Paulo, 20.03.2015.
3 OLIVEIRA, Mariana.“Rodrigo Janot defende que acordo de leniência só seja feito com aval do MP”. G1,
procurador junto ao Tribunal de Contas da União critica as pedaladas fiscais do governo e a cultura de
segredo do BNDES em torno das operações do banco”. Revista Época, online, 21.05.2015. Disponível em:
http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/05/julio-marcelo-de-oliveira-o-governo-tentou-chamar-
maca-de-abacate.html. Acesso em: 22.05.2015.
5 CARVALHO, Mario Cesar. “Procurador da Lava Jato quer revisã o de leis”. Folha de São Paulo, São Paulo,
15.03.2015.
6 “CGU abre processo administrativo contra mais cinco empresas envolvidas na Lava Jato”. Portal da
Paulo, 16.04.2015.
142
discurso do Ministro-Chefe da Controladoria Geral da União, Valdir Moysés Simão 8,
tem se alinhado claramente com o posicionamento do Advogado-Geral da União,
Luis Inácio Adams, segundo o qual a empresa não necessita apresentar novas provas
para celebrar o acordo, bastando que se abra e ofereça todas as informações de que
disponha9.
8 “Foco da CGU é na prevenção e no combate à corrupção, afirma ministro”. Portal da Controladoria Geral
da União, online, 07.05.2015. Disponível em: http://www.cgu.gov.br/noticias/2015/05/foco-da-cgu-e-
na-prevencao-e-no-combate-a-corrupcao-afirma-ministro. Acesso em: 22.05.2015.
9 TALENTO, Aguirre. “Para Adams, empresa nã o precisa dar provas novas para obter leniê ncia”. Folha de
Policy in the Era of Deferred Prosecutions, and What That Means for the Purposes of the Federal Criminal
Sanction. American Criminal Law Review, vol. 51, 2014, pp. 29-31.
11 TALENTO, Aguirre. “Para Adams, empresa nã o precisa dar provas novas para obter leniê ncia”. Folha de
São Paulo, Sã o Paulo, 25/03/2015. No mesmo sentido, o discurso da Presidente Dilma Roussef - cf.
“Petista diz que pessoas, e nã o firmas, devem ser punidas”. Folha de São Paulo, São Paulo, 28.01.2015.
143
além de um desvio do propósito originário da lei. As consequências de uma genera-
lização da leniência seriam a perda da capacidade de prevenção de crimes e a comu-
nicação, para a sociedade, de que certas empresas serão sempre poupadas pelo po-
der público, não importa o que fizerem 12.
4. Conclusão
Em minha opinião, é preciso tomar certo cuidado para que não se confundam
os verdadeiros propósitos da nova lei anticorrupção. No caso da lei 12.846/2013,
não existe um conflito real entre punição justa e efeitos colaterais da sanção, como
sugere a argumentação de órgãos do Ministério Público. Simplesmente porque não
estamos falado de uma responsabilidade penal da pessoa jurídica, e, sim, somente,
de uma via administrativa de responsabilização. Nesse contexto, a sanção não pos-
sui função retributiva alguma, mas apenas preventiva, não cabendo, portanto, falar
em “impunidade”.
Naturalmente, existe alguma perda quando se faz um acordo, pois, afinal de
contas, a medida da sanção faz parte do cálculo preventivo. Porém, é preciso que
sejamos honestos na avaliação desse cálculo tendo em vista a realidade criada pela
nova legislação. Temos um executivo equipado suficientemente a ponto de investi-
gar com profundidade e julgar com justiça os ilícitos praticados por pessoas jurídi-
cas contra a administração pública?
Também não podemos esquecer que nenhuma empresa sai completamente
ilesa de um acordo de leniência, especialmente as grandes empresas. Isso porque
ela não tem controle sobre qual será o montante exigido como reparação dos danos,
muito menos sobre os riscos de credibilidade no mercado a partir das investigações.
Sem a intenção de fechar o debate, penso que uma pergunta essencial no to-
cante à prevenção diz respeito aos destinatários dessa prevenção. Devemos tratar
empresas como organizações autônomas, com papel e função social muito além do
que gerar lucro ao proprietário? Em caso afirmativo, a partir de que momento po-
demos distinguir a empresa como ator social e não apenas como atividade econô-
mica, sujeita a risco individual de alguns particulares? Porque se existe razão para
tratar uma empresa como destinatária da comunicação preventiva, o dilema que se
apresenta consiste na legitimidade de se eliminar um ator do jogo apenas para mos-
trar aos outros que o crime não compensa. Uma empresa que deixa de existir sim-
plesmente porque seu maior contratante é o governo, serve de exemplo, sem dúvida,
para a organização das demais. Porém, ela mesma não sobrevive para aprender a
lição.
12Cf. opiniões em CARVALHO, Mario Cesar. “Procurador da Lava Jato quer revisã o de leis”. Folha de São
Paulo, Sã o Paulo 15.03.2015; LIVIANU, Roberto. “A impunidade nã o está à venda”. Folha de São Paulo, São
Paulo, 20.03.2015.
144
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEI ANTICORRUPÇÃO
E AS SUAS CONTRIBUIÇÕES À
JUSTIÇA PENAL COLABORATIVA
1 Graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista – “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais – UNESP, Mestre em Direito pela pela Universidade Estadual Paulista – “Júlio
de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP .
2 Graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (Faculdade de Direito de Ribeirão Preto-
FDRP/USP, 2008-2012, Bolsista CNPq). Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialização
em Vitimologia pela Universidade de Sevilha, Espanha (2014).
3 Graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista – “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais – UNESP (Bolsista de Iniciação Científica pela FAPESP, 2011-2012 e 2012-
2013). Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista – “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade
de Ciências Humanas e Sociais – UNESP.
4 Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto/USP e mestranda na área de Direito
en Estados Unidos, en 1877, una norma que sancionó penalmente el suborno del funcionario público ex-
tanjero. La Foreign Corrupt Practices Atc fue promulgada después de destapara un escándalo de corrup-
ción tras el descubrimiento de que una empresa norteamericana fabricante de aviones garantizaba los
pedidos de Gobiernos de estados extranjeros mediante el soborno de sus funcionarios.” CERINA, Giorgio
145
As diretrizes internacionais acabam por influenciar o ordenamento jurídico pe-
nal pátrio, traçando enunciados preventivos para a regulação dos delitos de corrup-
ção, realidade ainda mais presente no dia-a-dia da Administração Pública, tendo em
vista a atual conjuntura política e as formas de governo existentes6.
Neste sentido surgem as preocupações dos organismos externos de controle 7 –
Nações Unidas, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico 8 e Or-
ganização dos Estados Americanos – para com os delitos de corrupção, que tem por
D. M. Corrupción y cohecho. El derecho penal español de iure condito y iure condendo. In: FÁBIAN
CAPARÓS, Eduardo A.; PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupción. Salamanca:
Ratio Legis, 2010. p.79.
6 Discorrendo acerca do modelo “welfare state keynesiano”, Claus Offe acaba por demonstrar alguns
dos problemas criados pela burocracia e de que forma ela não só engessa o sistema, como acaba por
gerar problemas como os narrados por MALET VÁSQUEZ, Mariana. Aproxinación al fenómeno de la
corrupción y las formas de enfrentarlo.Revista de Ciencias Penales, Montevideo,n. 2, p. 287-317,
1996, ou seja, a corrupção que possibilita o desengessamento do sistema: “Uma outra fraqueza
inerente ao WEK reside nos limites do modo legal-burocrático, monetarizado e profissional da
intervenção. Esses limites se tornam particularmente claros nas áreas de serviços personalizados de
atendimento ou ‘organizações de administração de pessoas’, tais como escolas, hospitais,
universidades, prisões e departamentos de serviço social. Mais uma vez, a forma de intervenção gera
uma quantidade maior de problemas do que ela é capaz de solucionar.” OFFE, Claus. Problemas
estruturais do estado capitalista. Tradução de Barbara Freitag. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1984. p. 381. Tecendo um paralelo, é possível vislumbrar muito da problemática apontada por Claus
Offe na CPI das ONGs, criada pelo Requerimento nº 201/2007 do Senado Federal, tendo por objetivo
a analise do repasse de recursos federais para ONGs e OCIPs no período de 1999 até 30 de abril de
2009. ARRUDA, Inácio. Relatório final da CPI das ONGs. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2010.
Disponível em:<http://www.senado.gov.br/atividade/Materia/getPDF.asp?t=83242&tp=1>. Acesso
em: 09 jul. 2015. É preciso salientar que as estratégias e apontamentos de Claus Offe estruturam -se
em um modelo causal e não funcionalista.
7 “La corrupción es un fenómeno social en extremo complejo, cuya presencia se pierde en la noche de los
tiempos, que no se puede entender al margen del origen y de la evolución del Estado; hoy, en un mundo cada
vez más globalizado, es una manifestación que cobra especiales dimensiones. Este fenómeno es entendido
por el Convenio Civil sobre la Corrupción de Estrasburgo, del 4 de noviembre de 1999, como ‘…el hecho de
solicitar, ofrecer, otorgar o aceptar, directa o indirectamente, un soborno o cualquier otra ventaja indebida
o la promesa de una ventaja indebida, que afecte el ejercicio normal de una función o el comportamiento
exigido al beneficiario del soborno, de la ventaja indebida o de la promesa de una ventaja indebida’ (art. 2°).
La Comunidad de Naciones ha hecho ingentes esfuerzos para promover la adopción de instrumentos que
ayuden a combatir ese cáncer mundial – aunque debe entenderse que la mejor manera de adelantar la lucha
internacional en su contra es la persecución por parte de los estados nacionales –, fruto de lo cual son múl-
tiples convenciones o pactos internacionales sobre la materia.” VELÁSQUEZ VELÁSQUEZ, Fernando. Otra
vez la corrupción judicial.El Colombiano, Bogotá, 30 out. 2013. Disponível em:
<http://perso.unifr.ch/derechopenal/assets/files/tribuna/tr_20131108_01.pdf> Acesso em: 09 jul.
2015.
8 Ainda sobre as Convenções internacionais, pontual a reflexão deJean Pierre Matus Acuña: “Una ca-
racterística del conjunto de las convenciones y tratados que regulan los ‘crímenes de trascendencia in-
ternacional’ que no constituyen ‘crímenes de derecho penal internacional’ ni son parte de un ‘derecho
penal supranacional’, es que en general sus normas no son ‘autoejecutables’ (self'executing)., sino obli-
gaciones internacionales de diferente intensidad (según la clasificación de Virally: ‘invitaciones a obser-
var comportamientos’, ‘obligaciones de desarrollo discrecional’, ‘obligaciones generales no concretadas’,
y ‘obligaciones concretas’), que en todo caso se encuentran necesitadas de implementación por parte de
los Estados suscriptores,conforme a su propio sistema jurídico.” MATUS ACUÑA, Jean Pierre. La política
criminal de los tratados internacionales. Ius et Praxis, Talca, v. 13, n. 1, 2007. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.4067/ S0718-00122007000100010>. Acesso em: 09 jul.2015.
146
objetivo a implementação de diretrizes regulamentadores no âmbito da prevenção,
criando, o que se poderia chamar de um a Política Criminal 9 internacional10.
Ao pensar em uma Política Criminal internacional 11 é preciso vislumbrar o de-
senho proposto pelas Regulamentações internacionais 12. As Convenções “anti” e
“contra” os delitos de Corrupção buscam prevenir a ocorrência de tais condutas, de
modo a estabelecer recomendações, de cunho político-criminal, para a elaboração
de estratégias regulamentadoras junto aos Estados signatários. A Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção traça também estratégias de cunho administra-
tivo, como a elaboração de um código de conduta dos funcionários públicos previsto
no artigo 8 e as diretrizes para uma política de boa governança dispostas no artigo
9, tendo como finalidade a construção de estratégias preventivas para o enfrenta-
mento da corrupção. Outra medida é a criação de uma maior fiscalização dos setores
privados, que recomenda a adoção de medidas capazes de prevenir a corrupção de
modo a melhorar as normas contábeis e de auditoria no setor privado, e quando for
necessário, prever sanções civis, administrativas ou penais eficazes, proporcionais
e dissuasivas caso tais medidas não sejam cumpridas pelo setor privado. Também
existem indicações de natureza material penal como (1) as indicações de criminali-
zação da corrupção de funcionários nacionais diferenciando tais delitos dos delitos
cometidos por funcionários públicos estrangeiros ou funcionários de organizações
9 Para um estudo mais acurado acerca da Política CriminalB: ROXIN, Claus. Politica criminal y
sistema del derecho penal. 2. ed. Tradução de Francisco Muñoz Conde. Buenos Aires: Hammurabi,
2002.
10 Cabe ressalvar que em 1977, foi promulgada nos Estados Unidos da América a Foreign Corrupt Pratices
Act, com o objetivo de criminalizar o pagamento de suborno pago por empresas norte americanas a
funcionários estrangeiros, sendo este o primeiro documento a registrar um posicionamento acerca da
adoção de uma Política Criminal preventiva no que diz respeito à Corrupção.
11 Acerca do que denomina política criminal globalizada no âmbito do Direito Penal econômico, assim
pontua Renato de Mello Jorge Silveira: “Mas seria de se perguntar se isso implicaria em se buscar uma
política criminal globalizada para o Direito Penal Econômico. É claro que as metas da globalização
intentam a abolição dos chamados paraísos fiscais, trabalhando, assim, por maiores facilidades em
repatriação de dinheiro de origem obscura e de condições para extradições. Afirma-se, contudo, pela
dificuldade, senão impossibilidade, de se falar em uma política criminal unitária para as questões da
globalização. Ela é um dos fatores mais importantes, senão o mais importante, do desenvolvimento e da
expansão da criminalidade em termos mundiais, mas o dilema ainda perdura.” E continua: “Meios
eletrônicos, a rede internacional de computadores, detalhes variados dos novos mercados, acabam por
ampliar a gama do problema. Mais que nunca, majoram-se os problemas. O Direito Penal Econômico,
antes limitado a um espectro mais restrito, suplanta fronteiras e tece acordos internacionais, visando sua
tutela. A insegurança global roga por maiores formas de proteção.” SILVEIRA, Renato de Mello Jorge.
Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006, p.
57-60.
12 Acerca do delineamento das Convenções internacionais assim pontua Shigeru Kochi: “Para luchar
contra la corrupción dentro de un contexto nacional pueden adoptarse una serie de mecanismos que
pueden incluir la reforma del Estado, el fortalecimiento de las instituciones gubernamentales, la promo-
ción de la participación del sector privado y la sociedad civil, entre otras alternativas más. Las medidas
que se pudieran tomar en un contexto internacional buscan apoyar o complementar a los mecanismos
nacionales y también tratan de prevenir, controlar y erradicar la transnacionalización de la corrupc ión
especialmente después de entrar a un periodo de globalización económica.” KOCHI, Shigeru. Diseñando
convenciones para combatir la corrupción: la OCDE y la OEA a través de la teoría de las relaciones
internacionales. America Latina Hoy, Salamanca, n. 31, p. 97, ago. 2002.
147
internacionais; (2) a criminalização da malversação ou peculato, apropriação indé-
bita ou outras formas de desvio de bens cometidos por um funcionário público; (3)
a incriminação do tráfico de influências, do abuso de funções e o enriquecimento
ilícito; (4) a incriminação do suborno no setor privado bem como a malversação ou
peculato de bens também no setor privado; (5) a incriminação da lavagem de pro-
duto de delito e seu encobrimento; (6) a obstrução da justiça no caso de uso de força
física, ameaças ou intimidação, ou a promessa, o oferecimento ou concessão de be-
nefício para induzir alguém a prestar testemunho falso ou atrapalhar o testemunho,
ou no caso de se agir da mesma maneira com a finalidade de atrapalhar o cumpri-
mento dos deveres funcionais de qualquer funcionário da justiça; (7) a regulamen-
tação da responsabilidade das pessoas jurídicas, seja no âmbito penal, civil ou admi-
nistrativo, desde que em conformidade com o ordenamento interno e sem prejuízo
da responsabilidade penal das pessoas físicas que tenham cometido o delito. Em
certa medida, o ordenamento jurídico-penal brasileiro já consagra tais diretrizes,
sendo que no que diz respeito aos delitos de corrupção, o tipo penal previsto na le-
gislação pátria está em conformidade com a orientação da Convenção.
Voltando ao plano da construção de uma Política Criminal internacional no que
diz respeito ao combate da corrupção, a mesma encontra-se atrelada ao fenômeno
da globalização13 e da transnacionalidade. A economia não conhece fronteiras, assim
como as relações humanas e também, de certo modo, a política. Os Estados estão em
constante interação e a economia não é um fenômeno local, mas sim global. Deste
modo, é possível vislumbrar a preocupação com a criação de uma Política Criminal
internacional. Entretanto, esta Política Criminal deve considerar as especificidades
dos Estados, de modo que, a opção por um modelo preventivo faz se adequado e
útil14.
que diz respeito aos delitos de corrupção, assim: “con todo, las últimas décadas del siglo pasado han
introducido elemento nuevo: um notable aumento y simplifucación en le traslado de personas, bienes y
servicios de um país a outro o, si se prefiere, ‘la inexorable integración de los mercados, de los estados-
nación y de las tecnologias e um nivel nunca antes presenciado, de forma que permite a las personas, a
las empresas y a los Estados-nación llegar al mundo más lejos, de forma más rápida, más profunda y más
barata que nunca y de manera que permite al mundo llegar más lejos, más rápido y más barato que
148
De um outro lado, é preciso o fato de que os ordenamentos jurídicos dos Esta-
dos signatários das Convenções nem sempre possuem a mesma sistemática. Cada
ordenamento jurídico segue uma diretriz traçada por sua própria Constituição, as-
sim, direitos e garantias são delineados a partir dos ditames constitucionais. Deste
modo, ao se construir uma Política Criminal internacional, as Convenções devem ter
como pano de fundo não apenas um caráter generalista frente aos ordenamentos,
mas também como este caráter generalista pode possibilitar a prevenção de delitos,
como no caso a corrupção, sem confrontar-se com princípios constitucionais.
Pode-se acrescentar a esta contextualização internacional sobre o tema da cor-
rupção que este se tornou um assunto de importância global, apesar de ser um pro-
blema que marca a evolução da história mundial, em especial a história de socieda-
des como a brasileira, as quais possuem resquícios da época colonial e de seus as-
pectos segregantes.
Todavia, esta relevância que o tema da corrupção tem apresentado no âmbito
global acaba por refletir-se na configuração atual do Direito Penal. O subsistema ju-
rídico-penal está inserido no sistema social o qual ao lado do subsistema econômico,
do político e do cultural pressionam e irritam o subsistema jurídico-penal no sentido
de que este ofereça respostas aos problemas estruturais globais.
Autores como Renato de Mello Jorge Silveira questionam até que ponto pode-
se afirmar ser legítima a intensa expansão penal e político-criminal que ocorre, na
configuração da sociedade atual, diante das opções de criminalização e das formas
de combate à corrupção, tanto pública quanto privada.
Com esta expansão penal e político-criminal, enquanto reflexo no subsistema
jurídico-penal das irritações entre os diversos sistemas, corre-se o risco de serem
flexibilizadas diversas garantias individuais, notadamente no que refere aos princí-
pios político-criminais clássicos os quais demarcavam a função da dogmática penal
enquanto um meio limitador da intervenção penal abusiva por parte do Estado.
Pois bem, como uma das formas de limitação desta expansão penal e político-
criminal problemática em torno das exigências internacionais contra os atos de cor-
rupção, tem-se a criação de políticas criminais de natureza preventiva para que se
evite a intervenção penal futura, ao mesmo tempo em que se procura uma forma de
resguardar ao Direito Penal sua atuação enquanto “última ratio”. Como bem aponta
Renato de Mello Jorge Silveira, as noções principiológicas básicas de limitação do
Direito Penal não podem, de qualquer modo, ser dispensadas. E seria de suma im-
portância uma mudança de hábitos, e não uma desenfreada inflação penal, para que
se evite a perda de referenciais mínimos de Justiça.15
Ora, estes apontamentos que caminham em torno da criação de políticas de na-
tureza preventiva à corrupção cabem também às grandes corporações, pois perante
nunca a las personas, a las empresas y a los Estados’. Nos referimos normalmente a ello com la ‘globali-
zación’.” CERINA, Giorgio D. M. Corrupción y cohecho. El derecho penal español de iure condito y iure
condendo. FÁBIAN CAPARÓS, Eduardo A.; PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios dobre co-
rrupción. Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 77.
15 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A ideia penal sobre a corrupção no Brasil: Da seletividade pretérita à
expansão de horizontes atual. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. RBCCRIM, n. 89, 2001, p. 424.
149
este cenário descrito sobre as Convenções Internacionais e suas influências nos or-
denamentos jurídicos internos, tem-se a tentativa de criação de bons cidadãos cor-
porativos por meio da adoção de Políticas Criminais Preventivas.
A ideia de bons cidadãos corporativos relaciona-se com a preocupação de uma
corporação em relação à cidadania, aos aspectos éticos, legais, econômicos, sociais
e ambientais. Entretanto, muito difícil verificar corporações enquanto bons cidadãos
em uma sociedade global voltada à maximização do lucro a qualquer custo.
No que tange às Políticas Criminais Preventivas, e notadamente àquelas que
procuram compartilhar a efetividade de corporações enquanto bons cidadãos, tem-
se a necessidade de analisar o fenômeno da corrupção por meio de controles inter-
nos e medidas preventivas à persecução penal de uma empresa ou instituição finan-
ceira, apresentando-se, assim, os programas de integridade, como o criminal com-
pliance. Todavia, estes programas não estão isentos às críticas, com serão demons-
tradas no decorrer deste trabalho.
A Lei anticorrupção enquadra-se neste contexto, pois é oriunda de uma série de
exigências internacionais em torno da normatização de regras internas de transpa-
rência e combate à corrupção. Essas exigências estão ligadas à tentativa de evitar
maiores prejuízos econômicos ao mercado, em uma escala global, e prejuízos sociais
que os atos de corrupção podem gerar aos Estados e a sua atividade econômica. Pas-
sar-se-á, portanto, a analisar os programas de integridade, com destaque ao criminal
compliance, e suas relações com a Lei Anticorrupção, neste cenário político-criminal
preventivo.
16SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Fundamentos del derecho penal de la empresa. Montevideo: B. de F., 2013.
p.192.
17WELLNER, Philip A. Effective compliance programs and corporate criminal prosecutions. Cardozo Law
150
Os códigos de conduta devem estabelecer “os valores da organização em sinto-
nia com a sua visão e a sua missão, refletindo a sua cultura e sua filosofia de atuação,
ou seja, a personalidade da organização19”.
As medidas autorreguladoras de compliance referem-se à adoção de medidas
de vigilância que se integram com medidas positivas de formação relacionadas com
a neutralização de fatores sociais ou dinâmica de grupo favorecedoras de feitos ilí-
citos, assim como incentivar culturas que fidelizem os trabalhadores ao Direito, aos
valores ético-sociais e à proteção dos bens jurídicos 20.
As práticas de compliance envolvem a adoção de códigos de conduta, regu-
lações voluntárias e precisam ser constantemente reavaliadas. Desenvolver um pro-
grama de compliance e seu treinamento, mas não financiá-lo, bem como não investir
em funcionários especializados que buscam executar o programa de forma cuida-
dosa torna o programa contraproducente21.
Por muito tempo a função da empresa foi somente a maximização dos lucros,
porém, “na nova cultura corporativa, a ética passou a ser considerada como fator
relevante nas decisões empresariais e das organizações em geral 22”. Desta forma, um
programa “check the box” não é suficiente para garantir um bom cumprimento,
sendo necessário que se promova um comprometimento geral com os valores éti-
cos23. Um conceito de compliance dirigido à prevenção da responsabilidade penal
deverá levar em consideração a empresa em seu conjunto, todos os seus trabalha-
dores, e não somente a cúpula diretiva24.
Empresas são encorajadas a gastar quantias generosas com programas de com-
pliance e boa governança sem que haja evidências empíricas de sua eficácia 25. Cabe,
portanto, ao Estado determinar limites para que seja possível a incorporação de pro-
gramas realmente efetivos e que não sejam apenas uma forma de evitar sanções pe-
nais, buscando a proteção e o desenvolvimento social e econômico frente à atuação
delituosa nas empresas26. Sistemas de informantes, adequadamente executados,
19COIMBRA, Marcelo de Aguiar (org). MANZI, Vanessa Alessi (org). Manual de compliance preservando a
boa governança e a integridade das organizações. São Paulo, Atlas, 2010. p.84.
20SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Fundamentos del derecho penal de la empresa. Montevideo: B. de F., 2013.
p.193.
21BIEGELMAN, Martin T; BIEGELMAN, Daniel R. Building a world-class compliance program: best practices
and strategies for success. Hoboken, N.J.: John Wiley & Sons, 2008. p. 03.
22COIMBRA, Marcelo de Aguiar (org). MANZI, Vanessa Alessi (org). Manual de compliance preservando a
boa governança e a integridade das organizações. São Paulo, Atlas, 2010. p.12.
23WELLNER, Philip A. Effective compliance programs and corporate criminal prosecutions. Cardozo Law
2012. p.07.
25LAUFER, William S. Where is the moral indignation over corporate crime? In: BRODOWSKI, Dominik; DE
LA PARRA, Manuel Espinoza de los Monteros; TIEDEMANN, Klaus (ed.). Regulating corporate criminal
liability. Heidelberg: Springer, 2014.p. 27.
26SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo:
151
com a participação da direção da empresa e a avaliação imparcial dos dados contá-
beis da empresa, dentre outras práticas, tem por objetivo evitar os programas “de
fachada”27.
27SIEBER, Ulrich. Programas de compliance em direito penal empresarial: um novo conceito para o controle
da criminalidade econômica. In: OLIVEIRA, William Terra de; LEITE, NETO, Pedro Ferreira; ESSADO,
Tiago Cintra; SAAD-DINIZ, Eduardo (orgs.). Direito penal econômico: estudos em homenagem aos 75 anos
do Professor Klaus Tiedemann. São Paulo: LiberArs, 2013. p.p.313.
28 Segundo Juarez Tavares, a política criminal em um cenário econômico neoliberal tem como caracterís-
tica quatro aspectos principais: (i) um contexto de privatização de setores estratégicos da administração,
tornando-se tênue a separação entre Estado e iniciativa privada, o que inclui a segurança, ensejando
ainda que as políticas securitárias conservem o delito como forma de preservarem a si mesmas; (ii) uma
mais intensa repressão à chamada criminalidade “de rua”; (iii) uma ampliação da orientação preventiva
dos mecanismos penais; e (iv) um incremento da abrangência e variedade das punições, sejam estas pe-
nais ou extrapenais. TAVARES, Juarez. A globalização e os problemas de segurança pública. In: HOLLENS-
TEINER, Stephan (org.). Estado e sociedade civil no processo de reformas no Brasil e na Alemanha. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 59 e ss. Analisando as críticas de Tavares ao modelo neoliberal de política
criminal, bem como as especificando de acordo com as particularidades da criminalidade empresarial e
dos programas de compliance relacionados, cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo.
Los programas de criminal compliance: el ejemplo de la nueva ley de blanqueo de capitales en Brasil. In:
SABADINI, Patricio Nicolás (dir.); SAAD-DINIZ, Eduardo (coord.). Derecho penal y globalización. Resisten-
cia: Con Texto Libros, 2014, p. 141 e ss.
29 “Na hipótese de insuficiência das normas de sanção, o reforço das normas de conduta condiciona-se
pelo incremento da finalidade preventiva com base no aumento da complexidade das próprias estruturas
normativas. Isso porque as normas de conduta orientam as relações interpessoais pelas próprias
mediações normativas”. SAAD-DINIZ, Eduardo; SILVA, Bruna Castro e; BARBOSA, Leonardo Peixoto.
Modificações estruturais do sistema penal antilavagem: um novo lugar para a teoria das normas penais?
Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 230, p.8-9, jan. 2012.
30 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; DINIZ, Patrícia Dittrich Ferreira. Compliance e Lei Anticorrupção nas
152
relação a suas atividades, bem como a compartilharem informações com autorida-
des competentes; ou, no mínimo, proporcionam incentivos jurídico-econômicos
para tanto31, possibilitando a mitigação da responsabilidade que seria cabível no
caso de não serem implementados quaisquer mecanismos preventivos que possibi-
litassem o desenvolvimento de mecanismos de justiça penal colaborativa.
Neste contexto, e nisso se relacionando mais com a instituição de mecanismos
de compliance, a Lei Anticorrupção prevê a existência de programas de integridade
e a comunicação espontânea da prática de irregularidades como fatores de diminui-
ção da penalidade administrativa32. Ademais, tal Lei busca incentivar a colaboração
por parte empresas por meio da possibilidade de celebração de acordo de leniência
entre a autoridade e a pessoa jurídica 33. No entanto, tal modelo caracteriza-se por
diversos problemas, alguns mais em virtude de características em geral mais co-
muns em instrumentos de justiça penal colaborativa, outros mais relacionados a dé-
ficits de técnica e sistematicidade legislativa no contexto brasileiro 34.
Nesta nova fase do gerenciamento de riscos relacionados à corrupção, em
grande medida caracterizada como “privatização da luta contra a corrupção” 35,
corre-se o risco frequente de o indivíduo ser relegado a uma posição de segundo
plano, em situação fragilizada se comparada à magnitude dos múltiplos interesses –
empresas que cometem alguma das infrações previstas no ato normativo em questão, afirmando-se como
dois destes parâmetros: “VII - a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações; VIII - a
existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de
irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.
33 Neste sentido, a Lei nº 12.846/2103 dispõe em seu artigo 16 que: “A autoridade máxima de cada órgão
ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela
prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo
administrativo, sendo que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais envolvidos na
infração, quando couber; e II - a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito
sob apuração. [...] § 2o A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica das sanções
previstas no inciso II do art. 6o e no inciso IV do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da
multa aplicável”.
34 Comparando o acordo de leniência na Lei Anticorrupção e o instituto similar presente a experiência
antitruste brasileira (Lei nº 12.529/2011), Thiago Marrara afirma que “No tocante aos benefícios [...] as
diferenças entre a lei concorrencial e a lei de combate à corrupção empresarial são gritantes. Muitas
dessas diferenças, em verdade, representam falhas graves da legislação e que podem sepultar a
atratividade da leniência nessa esfera”. MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo
administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes. Revista Digital de
Direito Administrativo, Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, v. 2, n. 2, p.
521.
35 A corrupção deixou de ser encarada como problema exclusivo do funcionalismo público, passando a
predominar uma nova perspectiva no âmbito das políticas públicas no sentido de maior atribuição de
deveres também às empresas no manejo institucional dos problemas relacionados a práticas corruptas.
NIETO MARTÍN, Adán. La privatización de la lucha contra la corrupción. In: ARROYO ZAPATERO, Luis;
NIETO MARTÍN, Adán (dir.). El derecho penal económico en la era compliance. Tirant lo Blanch: Valencia,
2013, p. 192.
153
estatais, econômicos, políticos e relacionais – que frequentemente compõem nego-
ciações conduzidas entre Estado e empresas no âmbito de acordos discutidos em
meio a investigações criminais. Daí as críticas de William S. Laufer à recorrente prá-
tica de reverse whistleblowing, mediante a qual empresas realizam investigações in-
ternas e oferecem ao Estado provas da de ilícitos praticados por seus funcionários,
sem que isso esteja acompanhado do consentimento destes. Tais indivíduos acabam
por figurar como bodes expiatórios de corporações que buscam a mitigação da pu-
nição por atos ilegais que podem inclusive ter ocorrido com o aval explícito ou im-
plícito de seus órgãos de direção 36; ou, alternativamente, terem decorrido de uma
série de comunicações oriundas de uma matriz anônima que dificulta a identificação
precisa e individualizada de sua origem37.
Além destes problemas, pouca ou nenhuma garantia há de que os riscos de cap-
tura das entidades públicas também não se estendam às autoridades concretas res-
ponsáveis pela celebração de acordos, algo que depende muito mais de complexas
estruturas comunicativas do que da idoneidade moral de indivíduos. Afinal, o poder
econômico das empresas continua a ser determinante em suas relações com as au-
toridades reguladoras, sendo imprevisível que as imputações tenham alcançado os
indivíduos que efetivamente eram responsáveis pela prática conforme a estrutura
corporativa. Neste mesmo sentido, tampouco derivam dos acordos celebrados
quaisquer garantias de comportamento futuro conforme os standards regulativos38
– algo relevante em um cenário de economia globalizada, em que empresas de um
mesmo grupo econômico atuam em países com níveis distintos de suscetibilidade à
corrupção.
No caso da lei brasileira, a fragilidade do indivíduo no contexto dos mecanismos
de justiça penal colaborativa da Lei Anticorrupção é perceptível no âmbito do
acordo de leniência, passível de ser realizado de acordo com esta Lei apenas por
pessoas jurídicas. Destarte, as imunidades e mitigações punitivas não alcançam as
pessoas físicas, tampouco abrangem infrações (penais ou extrapenais) previstas em
uma série de outras leis, cujo conteúdo não raro guarda relação direta ou indireta
com os comportamentos abrangidos pela Lei Anticorrupção39 – algumas delas sendo
aplicáveis apenas a pessoas físicas (responsabilidade penal), enquanto que outras
também a pessoas jurídicas (responsabilidade administrativa).
36 LAUFER, William S. Corporate prosecution, cooperation, and the trading of favors. Iowa Law Review, v.
87, n. 2, mar. 2002, p. 643 e ss.
37 Cf. TEUBNER, Gunther. The anonymous matrix: human rights violations by “private” transnational ac-
tors. The Modern Law Review, Oxford: Blackwell Publishing, 2006, n. 69.
38 LAUFER, William S. Illusions of compliance and governance. Corporate governance, v. 6, n. 3, 2006, p.
242 e ss.
39 O que frequentemente se questiona, neste sentido, é que a ausência de efeitos penais e civis na
154
Deste problema específico do modelo brasileiro parecem decorrer alguns ris-
cos que despertam atenção. Nas hipóteses em que as empresas vislumbrarem um
perigo apenas minimizado de responsabilização da pessoa jurídica com base em ou-
tros diplomas normativos, ou em que a empresa vislumbrar agregação de valor à
sua reputação em virtude de tornar públicas eventuais infrações cometidas em eu
cerne, estaria delineado um cenário bastante propício à perpetração de reverse
whistleblowing, situação na qual o indivíduo (funcionário) seria colocado em deli-
cada situação jurídica40. Já nos casos em que o risco de responsabilização da pessoa
jurídica por outras leis for mais iminente, parece se configurar um cenário mais ten-
dente a que empresas deixem de buscar composição com os poderes públicos, espe-
cialmente se a publicização da infração e a celebração do acordo se mostrarem
pouco interessantes economicamente em comparação com os problemas reputaci-
onais deles decorrentes – o que acabaria por minar os próprios propósitos mais nu-
cleares dos mecanismos de justiça colaborativa.
Considerando as práticas de mercado e a dinâmica corporativa no contexto de
uma economia globalizada, na qual indivíduos desempenham um papel cada vez
menos decisivo, a adoção irrefletida de standards internacionais de comportamento
empresarial parece ter a aptidão de causar não apenas algum engessamento econô-
mico41, mas a fragilização do indivíduo em meio aos complexos jogos de interesses
que integram os mecanismos de justiça penal colaborativa, lançando ainda mais dú-
vidas sobre a já discutível figura de um “bom cidadão corporativo” enquanto ideal
regulativo para a atividade empresarial. O caráter recente da Lei Anticorrupção e as
inseguranças advindas de seus dispositivos tornam necessário não apenas verificar
empiricamente o comportamento decisório a ser adotado pelas instituições respon-
sáveis por interpretá-la, mas também realizar uma análise crítico-reflexiva das in-
terrelações a ocorrerem entre Estado, corporações e indivíduos no contexto desta
que parece ser uma nova etapa da política institucional brasileira relacionada às
práticas de corrupção.
40 “Mas nenhuma destas indagações pode ter maior importância para a legitimação dos programas de
compliance que (d) os mecanismos de intensiva verificação da aplicação dos direitos fundamentais”.
SAAD-DINIZ, Eduardo. Fronteras del normativismo: a ejemplo de las funciones de la información en los
programas de criminal compliance. Revista da Faculdade de Direito, v. 108, 2013, p. 439.
41 Nesta perspectiva, cf. SAAD-DINIZ, Eduardo. A criminalidade empresarial e a cultura de compliance.
155
A DELAÇÃO PREMIADA EM SEU ASPECTO
DOGMÁTICO E O REFLEXO DA ATUAÇÃO DOS MEIOS
DE COMUNICAÇÃO NO INSTITUTO.
1. Introdução
1POZZEBON, Paulo Moacir Godoy. As ciências humanas. In. POZZEBON, Paulo Moacir Godoy. (Org.).
Mínima metodológica. Campinas, SP: Editora Alínea, 2004. p. 29.
157
net e da ampliação da circulação da informação, esta se tornou também uma merca-
doria no sistema capitalista vigente, e a forma como ela é transmitida tornou-se cru-
cial para o modo como essa informação é assimilada e processada pela sociedade
civil.
Pode-se afirmar que os meios de comunicação integram o que Althusser cha-
maria de aparelhos ideológicos do Estado. Tais não se confundem com o aparelho
repressivo do Estado. Na teoria marxista o aparelho do Estado compreende o go-
verno, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões, entre outras,
que constituem o que se chama de aparelho repressivo do Estado. Repressivo indica
que essa aparelhagem em questão atua por intermédio da violência (ao menos em
situações limites). Os aparelhos ideológicos de Estado designaria outra feição da
aparelhagem, configuram-se como certo número de realidades que se apresentam
ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. Se-
riam elas: a religião (o sistema das diferentes Igrejas), a escola (o sistema das dife-
rentes escolas públicas e privadas), a família, os sindicatos, a informação (a im-
prensa, o rádio, a televisão, os meios de comunicação em geral), entre outras que se
pode apontar. Enquanto constata-se que a aparelhagem repressiva estatal pertence
inteiramente ao domínio público, a maior parte dos aparelhos ideológicos de Estado,
em sua aparente dispersão, remete ao domínio privado. Em sua maioria, não pos-
suem estatuto público, e que são simplesmente instituições privadas. Como mar-
xista consciente Gramsci já respondera a esta situação. A distinção entre o público e
o privado é uma distinção intrínseca ao direito burguês e válido nos domínios su-
bordinados aonde o direito burguês exerce seus poderes. O domínio do Estado lhe
escapa, pois este está além do direito. O Estado, que é o Estado da classe dominante,
não é nem público nem privado, ele é ao contrário a condição de toda a distinção
entre o público e o privado. Com relação aos aparelhos ideológicos de Estado, pouco
importa se as instituições que os constituem sejam públicas ou privadas, o que im-
porta é seu funcionamento. Instituições privadas podem perfeitamente funcionar
como aparelhos ideológicos do Estado. O que os distingue dos aparelhos repressivos
é que o segundo trabalha através da violência, enquanto o primeiro funciona através
da ideologia. Todo aparelho do Estado seja ele repressivo ou ideológico funciona
tanto através da ideologia como da violência, mas com uma diferença muito impor-
tante, que impede que se confundam os aparelhos ideológicos com os repressivos.
A aparelhagem repressiva funciona predominantemente através da repressão, in-
clusive física, e secundariamente através da ideologia, não existindo aparelho uni-
camente repressivo. Um exemplo disso é o exército e a polícia que funcionam tam-
bém através da ideologia, tanto para garantir sua própria coesão e reprodução,
como para divulgar os valores por eles propostos. Do mesmo modo, mas inversa-
mente, deve-se dizer que a aparelhagem ideológica funciona principalmente através
da ideologia, e secundariamente através da repressão, seja ela bastante atenuada,
dissimulada, ou até mesmo simbólica, não existindo aparelho puramente ideológico.
158
Desta forma, a Escola, a Igreja, os meios de comunicação, moldam por métodos pró-
prios de sanções, exclusões, seleções, não apenas seus funcionários, mas também
suas ovelhas2.
Entretanto, dado esse novo poder assumido pelos meios de comunicação, visu-
aliza-se uma cada vez maior independência dessas instituições privadas do Estado.
Funcionando de modo a atuar na sociedade civil ainda de modo ideológico, mas de
modo cada vez mais distantes dos objetivos do Estado e cada vez mais próximos de
seus próprios objetivos. É o proceder da detenção do “poder”, intentando mantê-lo
a qualquer custo. Como colocaria Foucalt, a verdade não existe fora do poder ou sem
poder. A verdade é deste mundo: ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e
nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de
verdade, sua “política geral” de verdade: os tipos de discursos que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distin-
guir os enunciados verdadeiros dos falsos, o modo como se sanciona uns e outros;
as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade, o
estatuto daqueles que detém o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro 3.
Ou seja, quem detém o poder detém a verdade. Quando possui-se um aparelho que
labora com a informação, como os meios de comunicação, dar mais poder para essas
instâncias é dar mais força para elas dizerem o que é verdade e o que não o é. A
diferença é que na contemporaneidade, apesar da confusão que se faz entre o pú-
blico e o privado, os meios de comunicação se destacam como instituição privada
que recebeu o poder-dever de fiscalizar a atuação estatal. Quando os seus interesses
colidem, atualmente, esse aparelho ideológico já não mais opera como parte do Es-
tado, ele funciona como ente extra-estatal, já que detém poder para isso. Mas agora
com um “poder” mais incisivo, o poder de dizer o que é verdade, quem está com a
verdade, manipulando as informações.
Dessa maneira, pelo menos em ambiente pátrio, observa-se um fenômeno que
cada vez mais se destaca: o confronto entre meios de comunicação e Estado. Com o
primeiro influenciando em como a sociedade civil absorve a atuação estatal, por in-
termédio da comunicação, do discurso, através daquilo que elege como verdade. Os
meios de comunicação de massas tornaram-se a forma pela qual a sociedade civil
conhece o que ocorre ao seu redor, sem perceber, muitas vezes, que se trata de ins-
tituições privadas que defenderão seus interesses e a manutenção de seu poder. As-
sim, através da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, os meios de co-
municação de massas desenvolveu um método um tanto quanto peculiar de trans-
mitir a informação e de atuar no corpo social, direcionando seus expectadores por
meio de suas “verdades construídas”.
2 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado
(AIE). Trad. Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985,
2ª Edição. p. 67-70.
3 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
159
Não se quer dizer com isto que existe um embate entre Estado, governo e meios
de comunicação. O que se coloca é que os meios de comunicação de massa hoje pos-
suem uma independência do Estado que nunca antes na história possuiu. E, em cer-
tas situações, constroem suas próprias verdades naquilo que os interessa, principal-
mente quando entra em confronto com os interesses do Estado4. Atua na maior parte
das vezes de modo maniqueísta, apresentando apenas duas possibilidades para
tudo que se apresenta, de modo radical, transformando em preto ou branco uma
multiplicidade de cores e possibilidades que apresentam-se na realidade.
Transportando tais considerações para o núcleo do presente estudo, cada vez
mais percebe-se o protagonismo que os meios de comunicação de massas intenta
em exercer nas questões jurídicas mais em foco no país. Desde as coberturas sensa-
cionalistas que são feitas em atos criminosos até as mesas que se propõe a discutir
de modo um pouco mais sério o que acontece no plano jurídico do país, os meios de
comunicação de massas já detectou o papel de destaque que o Poder Judiciário pos-
sui na contemporaneidade e como que as questões jurídicas estão cada vez mais em
evidência no país.
Desse modo, e para utilizar da linguagem da Teoria Sistêmica, nota-se uma cres-
cente e plena irritação entre os sistemas político, jurídico e de transmissão da infor-
mação. Como coloca Frederico Figueiredo, a eticização do debate político também
merece atenção especial, pois determina a forma como a política criminal se mostra
na prática. Segundo as regras do jogo político, seus atores devem, na medida do pos-
sível, atingir os mais diversos apelos sociais, e aqui devem ser incluídos também os
exclusivamente emocionais. É essa referência bem sucedida que pode garantir a es-
ses atores a (re) eleição. Esse apoio fundamental para o êxito político tende a ser tão
mais fácil segundo a apresentação de soluções viáveis para a satisfação dessas ne-
cessidades sociais. À primeira vista, essa parece ser uma tarefa de difícil execução:
a complexidade da constelação social exigiria logicamente solução do mesmo modo
complexo. Mas o importante nesse cenário não é tanto como as situações de conflito
social se configuram de fato, mas, sobretudo como elas aparecem na esfera pública,
uma esfera pública ancorada nos meios de comunicação de massas. Basta, assim,
que os problemas sociais sejam apresentados de forma simplificadora e tão mais
simples serão suas soluções. Surge aqui outro problema na perspectiva política. En-
quanto a imagem é dicotômica, perdura a possibilidade da alternativa, a existência
do outro. No contexto do populismo, a alternativa, o outro, corresponde exatamente
ao limite de manipulação da lealdade das massas, quer dizer, ao fim do mecanismo.
Essa alternativa é, entretanto, tão aparente quanto à democracia estabelecida nes-
ses termos. O outro é de antemão bloqueado através do recurso mais ou menos
4Observa-se, por exemplo, o que ocorreu com a proposta do governo do Estado brasileiro de uma maior
regulamentação dos meios de comunicações, objetivando evitar excessos (que ocorrem com frequência)
na transmissão de informações. Rapidamente a proposta foi rechaçada pelos meios de comunicação de
massas através do argumento da censura e da liberdade de imprensa, pois tal regulamentação significa a
diminuição dos seus poderes. Esse rechaço funcionou e a proposta foi” engavetada”, demonstrando o
poder que hoje possuem os meios de comunicação. Quit custodiet ipsos custodes?
160
consciente ao preconceito (a violência dos aparelhos ideológicos). Quando no de-
bate político se opõe o bem e o mal, o inimigo ao cidadão, o outro a nós, já se está
tacitamente decidido (pelo bem, pelo cidadão ou por nós) e a política se encerra
como tal pra se tornar uma grande, mas quase sempre, desinteressante encenação.
O recurso à chamada moral popular impede, assim, a continuidade do discurso po-
lítico genuíno. A representação do mal, do inimigo ou do outro implica a reflexão do
processo e colocar em xeque essa própria qualificação5.
Quando se observa a questão da delação premiada em ambiente pátrio, não há
como não enxergar o destaque que se dá ao instituto pelos meios de comunicação
de massa. O novo inimigo público número um, a corrupção, é o mal a ser extirpado
do corpo social e a delação premiada se tornou uma das formas de se combater esse
mal. Assim como em suas novelas, os meios de comunicação de massas elegem ini-
migos e heróis, explorando-os ao extremo, evidenciando-os o tempo todo, e mani-
pulando suas formas e atuações de modo a atingir o máximo em seus interesses.
Diga-se que, no sentido processual, a Delação Premiada se caracteriza quando
um acusado, tendo admitido a prática criminosa, revela que outro indivíduo também
o ajudou de qualquer forma. Em linhas gerais, trata-se da denúncia que tem como
propósito discorrer às autoridades o cometimento do delito e, quando existente, re-
velar os coautores e partícipes, com ou sem resultado concreto, para assim, a depen-
der da circunstância, receber do Estado em troca um benefício que pode consistir
em diminuição de pena, ou, até mesmo, em perdão judicial 6. Muito utilizado nas le-
gislações referentes ao Direito Penal Secundário, esse instituto dogmático haveria
de ser uma espécie de exceção, usado apenas quando não houvesse outra alternativa
para se imputar crimes a esses agentes. Como se sabe, a criminalidade econômica
detém crimes de grande complexidade, que desafiam a estrutura da imputação e,
muitas vezes, age nos pontos cegos dos conceitos dogmáticos, furtando-se da res-
ponsabilização, mesmo quando o crime é evidente. A delação premiada aparece
como forma pela qual o Estado realiza uma espécie da barganha com um dos acusa-
dos, que delata seus demais comparsas no intuito de receber redução de pena ou até
mesmo o perdão judicial, como já supraexposto.
Entretanto, cumpre ressaltar que a própria prática da delação em si já car-
rega um desvalor. E obviamente surge a questão de se o Estado deve incentivar a
prática da delação exatamente pela questionável carga moral que ela carrega por si
só. Não pretende-se aqui fazer qualquer juízo de valor acerca da existência do insti-
tuto em si, ou o que ele acarreta. O que se intenta é chamar a atenção para como que
os meios de comunicação de massa laboram em suas construções discursivas com o
instituto. A delação premiada nada mais é do que uma das saídas, talvez nem de
longe a melhor, encontradas pelo sistema jurídico para dar respostas às irritações
5 FIGUEIREDO, Frederico. Política criminal populista: para uma crítica do direito penal instrumental. Re-
vista Brasileira de Ciências Criminais n. 70, jan.-fev. de 2008. Ano 16. Ed. Revista dos Tribunais. P. 119,
120.
6 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 8. ed. rev., atual. e ampl. São
161
que vinham sendo feitas. O uso dela, a ampliação dos crimes de perigo, a mesma
ampliação no campo dos delitos omissivos, a responsabilização criminal das pessoas
coletivas, o aumento das normas penais em branco, entre tantas outras, nada mais
são do que alternativas encontradas para prevenir a criminalidade que vêm mu-
dando sua feição, do esquema padrão de delitos comissivos, dolosos e de resultado,
para crimes de outras características, crimes omissivos, culposos e de perigo. Essa
alteração na estrutura criminal impulsionou o sistema jurídico a fornecer alternati-
vas aptas a lidar com esse novo padrão. A delação premiada é um deles.
O problema radica no ponto de que forma os meios de comunicação de mas-
sas vem construindo verdades ao redor desse instituto, e de que modo ele vem
sendo enxergado por essa estrutura ideológica e sendo transferida para a sociedade
civil. O que se nota é que de instituto que fornece novos indícios, muitas vezes vici-
ados por um imputado que procura de qualquer forma amenizar sua situação, pas-
sou-se a delação premiada a configurar quase que uma confissão em nome de ter-
ceiro. A maneira com a qual os meios de comunicação noticiam o conteúdo das de-
lações rapidamente faz com que a sociedade civil pense que aquilo que o delator diz
consubstancia-se na mais pura verdade, e que nomes que ele lista estão sim envol-
vidos com o crime sem a mínima ponderação real acerca da responsabilidade que
isso acarreta para todos os envolvidos.
Sabe-se muito bem das consequências do envolvimento dos meios de comuni-
cação em massa na questão criminal. Como aponta Sérgio Shecaira, há inúmeros
exemplos de como uma cerimônia degradante, que em grande parte das vezes acon-
tece antes mesmo de um processo criminal ser iniciado, pode atingir a identidade
de alguém. Por certo ainda está na mente de muitas pessoas das consequências ad-
vindas da irresponsável cobertura de um episódio jornalístico, ocorrido há algum
tempo em São Paulo, em que os donos de uma escola infantil foram ferozmente cru-
cificados pela imprensa de todo o país por uma acusação que não tinha qualquer
base material. Foram presos, sua escola depredada, suas honras atingidas, suas re-
putações destruídas, suas fotos publicadas nas capas dos jornais com manchetes
sensacionalistas. Qual foi o resultado desse prejulgamento? Processualmente nada
aconteceu. Não houve sequer denúncia contra os acusados. Mais de cinco anos de-
pois do episódio, a Folha de São Paulo publicou que os seis acusados de abuso sexual
contra crianças, no episódio que ficou conhecido como Escola Base, ainda não con-
seguiram reconstruir suas vidas, arrasadas pela irresponsabilidade da polícia e da
imprensa. Ninguém recebeu qualquer tipo de indenização pelos danos que sofre-
ram. Passados mais alguns anos, começaram a aparecer as primeiras indenizações.
Os jornais Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo, a revista Isto É, a Rede Globo
de Televisão e o Governo paulista foram obrigados a reparar os danos morais e ma-
térias sofridos pelos donos e pelo motorista da Escola Base. Os valores das conde-
nações, no entanto, não obstante vultuosos, jamais conseguirão apagar da vida des-
sas pessoas o gosto amargo deixado pela experiência de terem sido acusados sem
162
julgamento, de terem sido estigmatizados em uma cerimônia que provavelmente se
configurou como a mais degradante de todas suas vidas7.
É sob essa perspectiva que se preocupa-se com a forma com a qual os meios de
comunicação de massas estão lidando com a delação premiada. De instrumento pre-
mial de grande questionabilidade para confissão em nome de terceiro, a mídia pa-
rece reforçar seu caráter ideológico através da cobertura dos crimes envolvendo o
novo inimigo número um da sociedade. Isso acaba por refletir no modo como as pró-
prias instâncias de controle, com seus agentes inebriados pelas informações apre-
sentadas, lidam com o recebimento de uma delação. Também é preocupante o modo
como a própria sociedade civil observa o fenômeno, jogando o princípio da presun-
ção de inocência à completa inoperatividade. Apesar das expectativas cognitivas so-
ciais estarem abaladas e a busca por segurança ser a mais vistosa já presenciada não
são motivo para alterar-se a forma com a qual estabelecemos o modelo acusatório
do processo penal pátrio e nem razão para que alguém torne-se um criminoso ape-
nas porque alguém o delatou em um esquema premial.
Tendo em vista o que foi apresentado até aqui, fica evidente a busca progressiva
por segurança por meio de um aparato social pervertido, em que a legislação penal
se apresenta enquanto solução mais rápida, deixando, contudo, seu caráter instru-
mental de proteção efetiva, para assumir um papel simbólico 8, comunicando, não o
Estado-juiz, nem mesmo o indivíduo em conflito com a norma, mas a própria socie-
dade, que anseia por “ordem”. Dessa forma, Silva Sánchez, citando Beckett, atribui
aos meios de comunicação a responsabilidade pelo maciço apoio popular às postu-
ras de enrijecimento governamental frente à criminalidade.
Com relação à mudança focal da comunicação no direito penal, Silva Sánchez
apresenta uma sociedade de agentes passivos, que tendem a se identificar como ví-
timas e, diante de tal insegurança, tomam a “espada do Estado contra o delinquente
desviado” como “espada da sociedade contra a delinquência [em especial] dos po-
derosos”9. De igual forma, esta sociedade tenderá a reduzir o rol de riscos juridica-
mente permitidos, já que seus efeitos poderão atingir toda a coletividade de forma
difusa. Assim, uma das causas da expansão penal que se vê nos últimos tempos de-
corre de uma não afetação direta das vítimas, mas de um sentimento muito maior
de ofensa coletiva.
Historicamente, a busca por igualdade entre as partes do processo desenvolveu
um modelo garantista (ainda que imperfeito) de sistema acusatório em que o Es-
tado-juiz se encontra afastado do Estado-acusador (papel exercido pelo Ministério
Público). Atualmente, o que se vê é uma crítica ao desequilíbrio em favor do acusado,
7 SHECAIRA, Sergio Salomão. Criminologia. 3 ed. rev., atual. e ampl.São Paulo: Editora Revista dos Tri-
bunais, 2011. p. 313-314.
8 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal. Tradução: Luiz Otavio de Oliveira Rocha.
SP, Revista dos Tribunais, 3ªed revista e atualizada, 2013, p.29 e ss.
9 Ibidem, p.65.
163
que possui informações assimétricas e recursos ilimitados que garantirão sua de-
fesa. Diante desta propagandeada assimetria, defende-se cada vez mais um processo
com menos garantias10, sem abrir-se mão de penas mais severas. Se quanto ao di-
reito penal material vemos diversas “legislações do medo”, que criam novos tipos
penais questionáveis e enrijecem penas; no direito processual, vê-se a criação de
novos institutos, aparentemente úteis, sem a devida preocupação de um filtro cons-
titucional.
Diante deste contexto cultural, compreende-se a necessidade de introdução de
um instituto como a delação premiada, bem como o otimismo que a cerca. Mas existe
um outro panorama importante a ser observado, o ordenamento jurídico em que
este é inserido. A delação premiada foi instituída pela lei n.12.850/2013, que refor-
mulou o conceito de organizações criminosas. Desta forma, a delação é prevista em
casos que haja a possibilidade de se obter informações sobre (art.4º): a) os demais
coautores e partícipes da organização criminosa e as infrações penais cometidas; b)
a estrutura hierárquica e a divisão de tarefas; c) a prevenção de novas infrações pe-
nais decorrentes dessa organização; d) a recuperação total ou parcial do produto ou
do proveito das infrações penais praticadas; e) a localização de eventual vítima com
sua integridade física preservada.
Não se pretende com o presente trabalho analisar diversas críticas que se fazem
com relação a este instituto, em especial com relação à atuação do Ministério Pú-
blico, que define quais informações são ou não relevantes para a concessão do
acordo, enquanto o código de processo entende que a valoração das provas é ativi-
dade exclusiva do juiz natural. Embora extremamente necessário este debate, a pre-
sente análise se restringirá a observar a delação premiada em harmonia com demais
institutos penais.
Conforme já foi dito, a delação premiada foi inserida no ordenamento jurídico
por meio da lei que dispõe sobre organizações criminosas. Como observa Renato de
Mello Jorge Silveira, as alusões ao crime organizado e às “organizações criminosas”
são muito mais típicas e recorrentes no âmbito jornalístico que no científico, razão
pela qual falta ainda a tal instituto uma definição consensual11.
Igualmente criticável enquanto uma “legislação do medo”, as definições de or-
ganização criminosa evoluíram ao longo da história moderna até o presente mo-
mento em que recaem sobre os crimes econômicos. Com base em argumentos de
combate à macrocriminalidade organizada enquanto ameaça real ao Estado demo-
crático de direito, vê-se tais crimes como um sistema de usurpação de poder político
e econômico a formar um poder paralelo, que se alimenta do sistema por meio de
suas garantias e privilégios12.
10 Ibidem, p.71
11 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Organização e associação criminosa nos crimes econômicos: re-
alidade típica ou contradição em terrmos? In: Direito penal econômico: estudos em homenagem aos
75 anos do Professor Klaus Tiedemann. Org: William Terra de Oliveira, Pedro Ferreira Leite Neto, Tiago
Cintra Essado, Eduardo Saad-Diniz. SP: Editora LiberArs, 2013, p.161.
12 Ibidem, p.163 e ss.
164
Contudo, embora não se possa negar a necessidade de prevenção e enfrenta-
mento às práticas criminosas organizadas, em especial a criminalidade econômica,
o que se vê atualmente é uma banalização do instituto, sendo esta aplicada em di-
versos contextos em que nada houve além de crime em coautoria, dentro de uma
estrutura organizacional lícita. Ou seja, se para que se configure uma organização
criminosa é necessária uma estrutura minimamente complexa, com divisão clara de
tarefas, com fim último de praticar delitos, os crimes cometidos dentro de empresas
e aparatos estatais não poderão ser assim compreendidos, tendo em vista que sua
razão social transcende os delitos eventualmente consumados ou tentados. Todavia,
não é assim que se tem operado as investigações. Conforme observa Renato de Mello
Jorge Silveira, apesar de todos os requisitos para que se configure uma organização
criminosa, é comum os órgãos administrativos e judiciais lançarem utilizarem de tal
tipificação, para, ainda que não se comprove a efetiva “criminalidade organizada”,
poder-se, na fase de investigação, usufruir dos institutos próprios desta. Assim, con-
forme observa Silveira, a elevação do percentual de imputações de delitos de qua-
drilha ou bando se deve muito mais à uma distorção no instituto criminal do que
uma efetiva transformação das práticas delituosas 13.
Conforme ainda destaca Silveira, a lei n.7.960/89 permite a prisão temporária
em diversos casos, embora taxativos, durante a fase investigatória, com fim de im-
pedir possíveis perturbações na colheita de provas, dentre os quais se encontra os
casos em que se investigam delitos cometidos por quadrilha ou bando 14. Ainda po-
demos citar os mecanismos específicos da nova lei de lavagem de dinheiro, como a
apreensão e alienação antecipada, além de, em seu art.9º, incluir em coautoria uma
série de agentes que possuam algum grau de responsabilidade sobre a legalidade
dos bens ou valores “branqueados”.
Nas palavras do professor Silveira, a criminalidade econômica é, por natureza,
uma criminalidade organizada (devido a sua complexidade e sofisticação), porém
nem todo delito econômico é passível e merecedor de um tratamento mais duro por
parte da Justiça. Citando Volk, Silveira destaca que há uma verdadeira relação de-
moníaca entre a vagueza do conceito e uma tendência cada vez mais simbólica do
direito penal15. Nas palavras de Antônio Alberto Machado, o atual positivismo jurí-
dico [ao menos aparentemente] tenta se apartar do conteúdos axiológicos trazidos
historicamente pelo direito, imaginando-o como uma expressão normativa pura e
simples, não existindo nada além da manutenção de uma dita ordem sem indagação
valorativa “se é justo ou injusto”16.
Assim, fica evidente que o instituto da delação premiada se insere em um con-
texto jurídico-dogmático extremamente delicado, em que diversos institutos garan-
165
tistas se encontram desestabilizados por uma legislação fruto de demandas popula-
res de “justiça exemplar”, além de uma praxe viciada, que utiliza da mídia para le-
vantar novos heróis nacionais, justiceiros do processo.
Em particular, um cenário em que o Ministério Público pode obter, na fase in-
vestigatória, a prisão preventiva dos acusados, a apreensão de bens e o estabeleci-
mento de acordos de delação premiada é por demais criticável se considerado que
o acordo pode ser considerado inapto para a obtenção de novas provas, importando
apenas enquanto uma “confissão” coercitiva, a exemplo do que se obteve em outras
legislações do pânico, como a Prevention of Terrorism Act, do Reino Unido, que veio
a gerar os grandes escândalos conhecidos por Guildford Four e Maguire Seven, dois
grupos, cujos membros eram de origem irlandesa, acusados injustamente por aten-
tados terroristas em Londres, cujas principais provas consistiam na confissão obtida
em delações e acordos de leniência assinadas sob forte coação. Após mais de uma
década cumprindo pena de reclusão, comprovou-se a inocência de todos os conde-
nados, além dos abusos cometidos na fase investigatória. Dessa forma, não se pre-
tende aproximar os institutos ao malfadado “direito penal do inimigo”, mas demons-
trar o quão arriscado pode ser o empoderamento não-democrático de órgãos inves-
tigatórios frente uma sensação de pânico coletivo.
4. Apontamentos finais
Diante de todo o exposto, pode-se concluir que a opinião pública gera uma
grande pressão, não apenas na criação de institutos processuais, como, igualmente,
nos processos em que tais instrumentos são aplicados. Ao que se vê, a mídia é pro-
fícua na criação de “justiceiros” e “heróis nacionais”, cujo dever é confirmar a “sen-
tença sumária” em um procedimento administrativo sem contraditório.
Quanto a isto, vê-se que em muitos países o acesso a informação durante o pro-
cesso é bastante amplo, embora o mesmo não ocorra durante a fase de investigação,
tendo em vista a segurança dos investigados, bem como dos próprios trabalhos17.
Enquanto modelos louváveis, destaca Lemonde que o modelo inglês garante a liber-
dade de divulgação de informações até que haja um suspeito oficial. Caso algum ve-
ículo de mídia divulgue dados que comprometam o andamento das atividades da
justiça, são previstas diversas multas e sanções penais. Igualmente, é tipificado o
delito de “escandalizar a corte”, que diz respeito a críticas quanto a atuação de qual-
quer um dos envolvidos no julgamento (juízes, jurados, promotores, advogados, tes-
temunhas, vítimas ou réus)18, com a previsão de pena de prisão e multa sem limite
determinado. Outro exemplo citado por Lemonde é a Alemanha, em que todos os
dados podem ser divulgados, exceto o nome do réu, até que seja realizada a primeira
condenação judicial. Porém, o mais relevante quanto a disciplina germânica acerca
da matéria diz respeito ao controle da fonte. As únicas figuras com autorização para
17 Conforme defendido por LEMONDE, “não se pode caçar com um tambor”. Justiça e Mídia, In: Processos
penais na Europa, p.728.
18 Ibidem, p.731 e ss.
166
dar informações sobre o caso são o juiz do caso e o Promotor-chefe do Ministério
Público19.
Assim, a mídia exerce papel elementar a realização da Justiça enquanto controle
da atuação do poder estatal, porém somente se encontra em conformidade com seus
fins se se mantiver neutra e não interferir previamente nas decisões que busca con-
trolar. Outra observação feita por Lemonde, a lei tem poderes e deve regular as re-
lações entre mídia e judiciário, sem que estas determinações se tornem excessivas,
o que tornaria tal regulação meramente simbólica e inaplicável (como é o caso da
legislação francesa). Entende, portanto, que especial papel exerceriam as regulações
profissionais administrativas (códigos profissionais de ética), que, por outro lado,
são frequentemente citadas nos debates, porém na praxe se mostraram inertes 20.
Bibliografia
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167