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CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E ENSINO
Campina Grande
2018
BRUNA MARIA DE SOUSA SANTOS
Campina Grande
2018
S237e Santos, Bruna Maria de Sousa.
A educação brasileira entre a asfixia e a resistência : política de
significação dos movimentos “Escola sem partido” e “Professores contra o
Escola sem partido” / Bruna Maria de Sousa Santos. - Campina Grande,
2018.
133 f. : il. color.
CDU 37.014.5(043)
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO BIBLIOTECÁRIO GUSTAVO DINIZ DO NASCIMENTO CRB - 15/515
A todos os professores
entrincheirados na mesma resistência.
AGRADECIMENTOS
Mais uma vez, e de modo mais intenso, a Análise do Discurso veio me inquietar,
envolvendo-me na pesquisa sobre essa trama equívoca que é a linguagem. Nessa inquietação,
tantos outros se inquietaram comigo – e se assim não fosse, não teria o suporte necessário para
realizar este empreendimento que toma a forma de uma Dissertação. Por isso, agradeço de modo
especial ao meu bom Deus por Sua presença que fala em mim, capacitando-me diariamente e
sacudindo para longe meus medos e angústias.
Agradeço a Washington Farias, orientador querido, a quem respeito e admiro
profundamente pela competência, sensibilidade e entusiasmo com o campo das discursividades.
Sou grata, sobretudo, pelo aprendizado que me proporcionou na escrita deste trabalho ao me
mostrar, na teoria e na prática, que a (minha) falha é o lugar do (meu) possível.
Agradeço ao admirável Marco Antônio Costa por compor nossa banca examinadora,
fazendo avançar esta pesquisa com seu olhar incisivo, sempre atento aos sentidos. De igual
modo, agradeço à Evandra Grigoletto, referência em Análise do Discurso, que, tão gentilmente,
honra a mim e a meu trabalho com seu gesto de avaliação e contribuição.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino (POSLE) e a todos
os professores nele envolvidos, que me concederam a oportunidade de testemunhar, durante
esses dois anos, a força do docente pesquisador que, mesmo em tempos sombrios, teima em
(r)existir. Aproveito para agradecer aos meus colegas de turma, também professores/aprendizes
inspiradores.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES,
pela bolsa de mestrado concedida para a realização da pesquisa.
Agradeço a meu amado Arthur (Tutu), que soube, como ninguém, compreender
minhas ausências e meus silêncios, oferecendo, despretensiosamente, todo o apoio e incentivo
que eu precisava.
Sou grata também aos meus irmãos e melhores amigos, Breno e Jéssica, meus caçulas
amados que são tudo aquilo que eu sou. Cada um, a seu modo, sempre cuidando de mim e
compartilhando meus sonhos, planos e realizações.
Agradeço, por fim, aos meus sempre tão amados pais, Marcone e Aparecida,
entusiastas da minha vida acadêmica. Eu sou porque vocês foram antes. Obrigada pela presença
fortalecedora em cada passo dessa caminhada, obrigada por acreditarem e confiarem em mim.
RESUMO
This dissertation brings to light the contemporary ideological struggle around the imaginary of
national education. We take as representatives of this conflict the movements Partyless School
(MPS) and Teachers Against Partyless School (MTAPS) whose discourses are based on
different politics of signification, putting into play different senses for education, the subject-
apprentice and the subject-teacher. Our hypothesis is that the MESP's discourse is characterized
by a politics of asphyxiation of the education subjects and their educational contents, reducing
the possibilities of subjectivation and signification in the school space, since it prohibits certain
themes, contents and teaching practices in the classroom, on grounds of their "ideological
contamination". The speech of the MPCESP, on the other hand, follows a politics of resistance,
producing effects which resist the asphyxiation, allowing the subjects and the senses of
education to circulate in polysemic spaces of signification. Based on these hypotheses, we seek
to understand the discursive processes (asphyxiation and resistance) that characterize these
confronting politics of signification. This work is anchored by the general framework of
Pêcheux’s Discourse analysis theory and methodology, taking as theoretical and analytical
references the reflections on sense and silence (ORLANDI, 1993); and the discursive
theorizations on resistance (PECHEUX, 1990; ORLANDI, 2016). Our corpus was composed
of two files, with File I referring to the MESP speech, and File II to MPCESP's speech. We
assigned three snippets to each that illustrate how the movements represent: (1) the educational
contents, (2) the subject-apprentice and (3) the subject-teacher. The significant materialities of
the snippets are composed of texts, images and videos made available on the Social Networks
of the movements (Facebook), websites, blogs, as well as on the YouTube video sharing
platform. Our analysis contemplated the description-interpretation of the effects engendered by
the discursive processes of asphyxiation and resistance. Based on this analysis, we could verify
that the MESP’s politics of asphyxiation works in a way that suffocates the education subjects
and their educational contents through the imposition of local silence (censorship) and hate
speech. In this suffocation, knowledges about educational discursive formations update to
having traditional and technicist tendencies, prevailing senses linked to morality/religiosity and
preparation for the job market. As for MPCESP's politics of resistance, we observed the
production of effects that reinsert the imaginary of education in the political spectrum, through
a polemical discursivity (ORLANDI, 2013) that displaces the MESP discourse, surfacing
resistance points inscribed in an educational discursive formation of progressive tendencies,
which is tied to the senses of an engaged and political education.
direitos (humanos, políticos, sociais) possam ser assegurados a todos os cidadãos, respeitando
suas diferenças e especificidades. Por essa razão, temas como sexualidade, deficiência, raça,
religião, cultura, gênero etc. – fatores relacionados às práticas de segregação, violência e
preconceito – foram incluídos no currículo escolar com a finalidade de uma formação
democrática. A educação brasileira, desse modo, passou a se inscrever em uma rede de sentidos
de filiações progressistas. É preciso evidenciar, no entanto, que essa inscrição não se deu a
partir de um consenso na sociedade, mas foi o cerne de disputas e confrontos, estabilizando-se
de forma tensa no contexto educacional.
As forças de oposição à perspectiva progressista, filiadas a diferentes posições
ideológicas, mantiveram-se nessa disputa tensionando o imaginário de educação e sociedade
brasileira, articulando-se e ganhando, gradualmente, expressividade na conjuntura
contemporânea1 através de uma forte onda conservadora2 vinculada às esferas política,
religiosa, midiática, jurídica e de parte da sociedade civil. Essa onda conservadora apresenta o
traço característico de reacionarismo às políticas inclusivas e de ampliação de direitos que,
mesmo de forma vacilante, vinham-se afirmando na vida nacional, desde o período de
redemocratização (MIGUEL, 2016).
Nos últimos anos, foi possível observar a atuação do conservadorismo em diferentes
pautas da política brasileira, incluindo os protestos pró-impeachment de 2015, que
corroboraram com o golpe parlamentar responsável por destituir Dilma Rousseff da presidência
da república em 2016 (SOUZA, 2016). No âmbito da educação, a onda conservadora é
representada, dentre outras vozes, pelo Movimento Escola sem Partido (MESP), que contesta
o debate em sala de aula referente a temas atravessados por questões políticas e socioculturais,
como orientação sexual e identidade. Segundo o movimento, a abordagem pedagógica dessas
temáticas se caracteriza como um processo de doutrinação ideológica “de esquerda” que
pretende destruir os princípios morais e religiosos das famílias tradicionais brasileiras. Há,
desse modo, uma tomada de posição com relação à moralidade e à religião, em detrimento da
politização do espaço escolar através do tratamento de problemáticas sociais que remetem à
inclusão e valorização da diversidade.
Esse discurso de filiações conservadoras e religiosas obteve grande visibilidade,
sobretudo a partir do ano de 2014 quando Projetos de Lei (PL) inspirados nas propostas do
1
Segundo Miguel (2016), a onda conservadora de que falamos, estabeleceu-se no contexto sociopolítico brasileiro
a partir dos anos 2010.
2
Entendemos o conservadorismo segundo Botelho e Ferreira (2010, p. 11), como um “movimento consciente de
oposição ao movimento “progressista”, ou ao pensamento liberal-burguês”.
13
3
https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com
4
https://www.facebook.com/contraoescolasempartido
14
Devemos mencionar que os sentidos produzidos pelo MESP e pelo MPCESP, embora
antagônicos, não se constituem em relação de antítese, isto é, não são simetricamente opostos,
mas estabelecem uma correlação mais complexa em que cada discurso obedece a uma política
de significação distinta. Sobre essa noção, podemos explicitá-la5 como sendo o jogo que está
na base de todo processo discursivo pela divisão dos sentidos, dirigindo-os ideologicamente.
Pensando na dimensão política e histórica do sentido e sua tensão constitutiva entre “o que
significa e o que não significa” (ORLANDI, 1993, p. 93), podemos precisar que a política de
significação é a própria política do dizer que direciona certos sentidos e apaga outros, afetando
seus modos de constituição no jogo das formações discursivas.
Examinando, pois, as políticas de significação dos discursos em análise, observamos
que a discursividade do movimento Escola sem Partido funciona a partir de uma política que
“dirige” os sentidos por meio do silêncio local (ORLANDI, 1993), isto é, a partir da interdição
da significação, tendo em vista que censura sentidos ligados a um imaginário do processo
educacional enquanto prática política, controlando/determinando o modo como os sujeitos da
educação podem significar-se. Nos movemos, então, em direção à hipótese de que o discurso
do MESP funciona a partir do que propomos chamar de uma política de asfixia dos sujeitos e
dos sentidos, dada sua inscrição na ordem do calar pelo sufocamento do político, da polissemia.
Quanto ao discurso do MPCESP, presumimos que seu funcionamento se submete a uma política
de resistência à asfixia da educação, através da tentativa de reafirmar o caráter político e
polissêmico do processo de ensino-aprendizagem.
Buscando compreender os funcionamentos acima delineados, nossa pesquisa parte do
seguinte questionamento: Qual o modo de funcionamento das políticas de asfixia e de
resistência no contexto da disputa pelos sentidos sobre a educação brasileira? Em função desse
questionamento, definimos como objetivo geral de nosso estudo compreender os processos de
asfixia e resistência que caracterizam as políticas de significação em confronto.
Como objetivos específicos, pretendemos analisar o funcionamento dos processos
discursivos de asfixia e resistência descrevendo seus efeitos e mecanismos de produção de
sentido em relação aos três eixos delimitados: (1) Objetos de ensino; (2) Sujeito-aprendiz; e (3)
Sujeito-professor. Pensando na noção de Formação Discursiva (FD), definida por Pêcheux
(1975 [2014, p. 147]) como “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de
uma posição dada numa conjuntura dada, [...] determina o que pode e deve ser dito”,
mobilizamos o conceito para nossa escrita, definindo tais eixos como sendo (1) O que (não)
5
Explicitamos tal noção pautando-nos nos estudos orlandianos sobre as relações entre silêncio e sentido.
15
pode/deve ser ensinado na escola; (2) Quem o aprendiz (não) pode /deve ser; e (3) Quem (não)
pode/deve ensinar.
Pretendemos, ainda, discutir sobre o modo como os efeitos engendrados pelos
processos de asfixia e resistência se inscrevem no interdiscurso, identificando as filiações
político-ideológicas onde cada política de significação se vincula.
Para tanto, lançamos mão dos princípios e procedimentos da Análise do Discurso
(AD), inscrita no campo das ciências da interpretação, por considerar a relação dos sentidos
com o simbólico, num movimento que oferece abertura à falha, aos deslizamentos, aos sentidos
outros – espaço profícuo à interpretação. O quadro teórico geral da pesquisa está ancorado nos
pressupostos da AD pecheuxtiana, que toma o discurso como objeto específico, sendo
compreendido como “efeito de sentido entre locutores” (ORLANDI, 2013, p.21). O escopo da
análise, a partir dessa filiação teórica, é compreender os processos de significação e descrever
as condições sócio-histórico-ideológicas pelas quais emergem os sentidos e sujeitos enquanto
efeitos de linguagem.
De modo mais específico, mobilizaremos conceitos e questões do campo discursivo
referentes às relações entre sentido e silêncio (ORLANDI, 1993), para compreender os efeitos
de interdição/censura produzidos no discurso do MESP. Também levaremos em conta as
modalidades de funcionamento subjetivo (PÊCHEUX, 1975 [2014]), de modo a identificar as
posições construídas no confronto entre os movimentos. Por fim, nos apoiaremos na teorização
discursiva sobre a resistência (PÊCHEUX, 1990; ORLANDI, 2016), para interpretar as formas
e os gestos de resistência que atingem as posições-sujeito inscritas na FD a partir da qual
enuncia o MPCESP.
Partindo da compreensão de que os discursos são a materialidade específica da
ideologia e que esta prescreve práticas concretas dos sujeitos, a pesquisa aqui desenvolvida
sinaliza para as possíveis implicações de ordem política que essa movimentação nas redes de
filiação do discurso educacional poderá acarretar para a prática educacional brasileira.
Buscamos contribuir, ainda, para a compreensão das determinações linguístico-históricas a
partir das quais reemerge a discussão sobre o papel da escola, do aprendiz e do professor no
processo de ensino-aprendizagem.
Este trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro, apresentamos nosso
referencial teórico, abordando conceitos e categorias concernentes às relações entre o discurso,
o silêncio e o político, de modo a oferecer sustentação teórica para a compreensão da divisão
constitutiva do sentido (e do sujeito) e do funcionamento das políticas de significação do MESP
e do MPCESP. É importante mencionar que a teoria discursiva a qual nos filiamos não está
16
6
O arquivo, em AD, constitui um “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão”
(PÊCHEUX, 1994 [2014, p. 59]), reunidos pelo analista de modo a observar o funcionamento de determinado
processo discursivo.
17
Eni Orlandi
Considerando que a questão central deste estudo está na compreensão das políticas de
significação que orientam os funcionamentos dos discursos do MESP e do MPCESP, neste
capítulo, buscamos retomar pressupostos basilares do campo da Análise do Discurso, de forma
a compreender a dimensão política dos sentidos (e dos sujeitos), sua natureza dividida, e o modo
como são dirigidos ideologicamente. Para tanto, empreendemos um percurso teórico a fim de
observar as relações entre língua e ideologia, sujeito e sentido; silêncio e sentido e, por fim, o
político no (do) discurso.
das pressões promovidas pelos opositores ao seu Regime. Foi quando Napoleão passou a se
apropriar do termo ideologia de maneira pejorativa, associando-a a uma espécie de doutrina
fantasiosa, perigosa à ordem.
Em Marx e Engels (1965), na obra A ideologia alemã, o sentido de ideologia também
aparece imbuído de carga negativa, sendo ela uma espécie de mascaramento da realidade
necessário à dominação de classes. Nessa concepção marxista, a ideologia figura sob a forma
de “aparência social”, como um espelho que reflete a realidade de maneira invertida. Essa
aparência social evidencia, segundo os autores, o pleno funcionamento da ideologia ao inculcar
valores, regras e normas da classe dominante, determinando o que os membros de uma
sociedade podem ou não fazer, mantendo, assim, a classe dominada sob condições de submissão
e exploração.
Na esteira da tradição marxista de base materialista, Althusser (1974), em Ideologia e
Aparelhos Ideológicos do Estado, apresenta, na segunda parte da obra, uma nova abordagem
para a questão, pensando-a não a partir de uma concepção negativa, mas entendendo-a como
elemento inerente às práticas sociais. Nessa perspectiva, passa a refletir sobre a ideologia a
partir de uma tese central e duas específicas. Iniciemos pelas específicas: a) “A ideologia
representa a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência”
(ALTHUSSER, 1974, p.77).
Diferente de Marx e Engels (1965), o filósofo passa a refletir sobre a ideologia não
mais com base na classe dominante, mas a partir de uma “ideologia em geral” buscando definir
sua estrutura e funcionamento. Nesse sentido, pensa a instância ideológica como mecanismo
que promove a relação imaginária entre o homem e o real. Fazendo um jogo entre ilusão e
alusão, o autor admite que, mesmo não correspondendo à realidade (ilusão), a ideologia
promove sua alusão que, de acordo com a intepretação de cada indivíduo, integra a
representação, sempre imaginária, do real.
Essa atuação da ideologia, no entanto, requer uma existência específica, uma vez que,
segundo o autor, não se trata de uma instância espiritual, transcendente ou metafísica, o que
oferece margem para a sua segunda tese: b) “A ideologia tem uma existência material”. De
acordo com essa tese, a ideologia existe nas práticas e, por essa razão, possui existência
material. Isso significa que a ideologia prescreve práticas de sujeitos que agem segundo suas
representações da realidade. É nesse ponto em que Althusser (1974, p. 91) chega a uma síntese
da segunda tese, introduzindo a noção de sujeito como categoria essencial para a existência da
ideologia: “1- Só existe prática através e sob uma ideologia; 2- Só existe ideologia através do
sujeito e para sujeitos”. Desse modo, o sujeito passa a ser considerado como categoria
19
constitutiva de toda ideologia, uma vez que esta possui existência material nas práticas
exercidas por – e para – sujeitos.
A partir dessas proposições, o autor apresenta sua tese principal: a ideologia interpela
os indivíduos como sujeitos. Conforme essa tese, é pela interpelação que o indivíduo se insere
em práticas reguladas por aparelhos ideológicos, transformando-se e reconhecendo-se como
sujeito que tem sua existência a partir de si. Esse reconhecimento é resultado da atuação da
ideologia, dissimulada pela produção da evidência de uma existência espontânea dos sujeitos:
Como todas as evidências, incluindo as que fazem com que uma palavra “designe uma
coisa” ou “possua uma significação” (portanto incluindo as evidências da
“transparência” da linguagem), esta “evidência” de que eu e você somos sujeitos – e
que esse fato não constitui um problema – é um efeito ideológico, o efeito ideológico
elementar (ALTHUSSER, 1974, p.95).
Esse efeito ideológico, assim, dissimula o funcionamento da ideologia, uma vez que a
evidência de sermos sempre já sujeitos (de direito, livres, etc.) apaga o fato de que, para o
sermos, estamos sob os efeitos de interpelações ideológicas reguladoras de todas as nossas
práticas. Desse modo, a ideologia passa a ser concebida não como ocultação ou mascaramento,
mas como produção de evidências que permitem aos sujeitos significar o mundo e, a um só
tempo, significar-se.
Como um desdobramento da reflexão althusseriana, Pêcheux (1975 [2014]) inaugura
a teoria materialista dos processos discursivos, na qual a ideologia passa a ser observada através
de sua materialização na língua, isto é, a partir do discurso7. O modo como a ideologia funciona
na língua, por meio do discurso, é explicitado por Pêcheux (1975 [2014]) a partir da segunda
tese althusseriana que traz à tona o trabalho ideológico na produção de evidências. O autor
chama atenção para o fato de que Althusser (1974), ao explicar a evidência do sujeito como
origem de si, acaba por aproximá-la à evidência dos sentidos, quando toca na questão da
“transparência” da linguagem, aquilo que faz com que uma palavra possua uma significação
específica, como se os sentidos fossem estáticos e imutáveis.
Partindo dessa aproximação entre os efeitos de evidência dos sujeitos e dos sentidos,
Pêcheux (1975 [2014, p. 140]) endossa que “a questão da constituição do sentido se junta à da
constituição do sujeito [...] na figura da interpelação”. Por essa razão, ao significar, o sujeito se
significa. Sujeito e sentido, assim, constituem-se mutuamente, pela ideologia, por sua
encarnação na língua, pelo discurso. Nessa mútua constituição, a evidência do sujeito dissimula
7
O discurso, nessa perspectiva, constitui o ponto de articulação entre língua e ideologia. É no (e pelo) discurso
que a ideologia opera na língua. Por essa razão, compreende-se que “a materialidade específica da ideologia é o
discurso e a materialidade específica do discurso é a língua” (ORLANDI, 2013, p. 17).
20
a interpelação ideológica, produzindo nos sujeitos a impressão de que o seu dizer vem de seu
interior, de sua subjetividade. Isso explica a ilusão de alguns que acreditam falar de lugares
neutros, fora da ideologia, como é o caso do MESP, que afirma não sofrer coerções ideológicas
de nenhuma ordem.
A evidência do sentido, por sua vez, naturaliza a relação palavra-coisa, apagando o
caráter material do processo de significação, isto é, tornando transparente um sentido que não
é evidente, mas, constituído a partir da inscrição dos sujeitos em formações ideológicas8 que,
no plano da linguagem, são representadas pelas formações discursivas (FD), definidas como
aquilo que, “a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, [...] determina o que pode e
deve ser dito” (PÊCHEUX, 1975 [2014, p. 147]).
Essa produção de evidências está na base do funcionamento daquilo que Pêcheux e
Fuchs (1975 [2014]) chamaram de esquecimentos. Conforme os autores, o esquecimento nº 1 é
da ordem do inconsciente, e dissimula a interpelação ideológica, sendo responsável por produzir
a evidência do sujeito como causa de si mesmo. Já o esquecimento nº 2 é da ordem da
enunciação, onde o sentido se produz como evidente, apagando o fato de sua dependência à
uma FD. Nas palavras dos autores, “o sentido de uma sequência só é materialmente concebível
na medida em que se concebe esta sequência como pertencente necessariamente a esta ou aquela
formação discursiva” (PÊCHEUX; FUCHS, 1975 [2014]).
Assim, é pela inscrição em determinada formação discursiva que os sentidos fazem
sentido, por meio de um sistema de evidências experimentadas na/pela língua. Por essa razão,
lembra-nos Pêcheux (1975 [2014, p. 146]) que os sentidos das palavras, expressões,
proposições etc., não são pré-estabelecidos, mas determinados “pelas posições ideológicas
colocadas em jogo no processo sócio-histórico”. Isso significa que os sentidos são determinados
pelas FD nas quais os sujeitos se inscrevem. Constata-se, desse modo, que a ideologia é
condição para a significação. É nessa perspectiva que concebemos o sentido não como
conteúdo, mas como efeito de um trabalho ideológico produzido no interior das diferentes FD.
O mesmo ocorre para o sujeito que, pelo processo de interpelação, identifica-se com
determinada formação discursiva, reconhecendo-se e subjetivando-se nesse espaço.
Essa constituição da subjetividade, todavia, não é estável, mas aberta aos deslizes, às
falhas, no interior de um jogo contraditório e, ao mesmo tempo, constitutivo. Por esse motivo,
o sujeito é heterogêneo, mutável e dividido. Apesar dessa feição contraditória, existe, no
8
Por formação ideológica compreende-se “um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são
nem ‘individuais’ nem ‘universais’, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito
umas em relação às outras” (HAROCHE et al., 1971 apud BRANDÃO, 2004, p. 47).
21
entanto, uma “ilusão” que faz com que essa subjetividade pareça imóvel, cristalizada, criando
um efeito de identidade. Essa ilusão é produto de um imaginário ideológico que garante a
unidade dos processos identitários, para que o sujeito se identifique como “ocupante” de
determinadas posições e senhor de certos sentidos. É a necessidade de pertencimento a
determinados lugares ideológicos que faz transparecer o efeito da unidade das identidades.
Desse modo, o movimento da identidade se dá na relação entre unidade imaginária e dispersão
real. A identidade do sujeito é, assim, um efeito do trabalho ideológico.
É nesse sentido que falamos de um efeito-sujeito – o sujeito do discurso – resultante
do processo de interpelação que pressupõe, segundo Henry apud Pêcheux (1975 [2014, p. 198])
“um desdobramento constitutivo do sujeito do discurso, de forma que um dos termos representa
o ‘locutor’, ou aquele a que se habituou chamar o ‘sujeito da enunciação’ [...] e o outro termo
representa ‘o chamado sujeito universal’”, ou a forma-sujeito, que, em poucas palavras, é o
sujeito do saber de determinada formação discursiva. A identificação ocorre quando o locutor
se vê representado na forma-sujeito de uma FD, constituindo-se, nesse processo, enquanto
sujeito do discurso. Esse processo, no entanto, é complexo e contraditório, podendo assumir
diferentes modalidades, a saber, identificação, contra-identificação e desidentificação
(PÊCHEUX, 1975 [2014]).
No processo de identificação, há uma superposição, ou recobrimento, entre o sujeito
da enunciação e o sujeito universal, refletindo o “bom sujeito”, aquele que espelha,
“cegamente”, a forma-sujeito da FD na qual está inscrito. Não há questionamentos, apenas
consentimento. Na segunda modalidade, a contra-identificação, existe uma relação mais tensa
do locutor com a forma-sujeito. Nesse caso, sua tomada de posição reflete contestação, dúvida,
revolta, em relação aos sentidos que o sujeito universal lhe oferece. Desse modo, o “mau
sujeito” se contraidentifica com a FD a ele imposta, produzindo, assim, um contradiscurso. Na
desidentificação, o que ocorre é um trabalho, uma transformação-deslocamento da própria
forma-sujeito, através de um “desarranjo-rearranjo” entre formações discursivas.
Esta última modalidade foi retomada mais à frente por Pêcheux num exercício de
autocrítica e reconhecimento de que, embora desidentificado com determinada formação
discursiva, o sujeito não está livre do inconsciente e da ideologia. O assujeitamento continua
pela identificação desse sujeito com uma nova FD, “o que não supõe o ‘apagamento’ total dos
saberes com os quais ele está se desidentificando” (GRIGOLETTO, 2005, p. 65). Veremos
exemplos desse processo, especialmente, nas análises sobre o discurso do MPCESP, no qual
esse duplo movimento de (des)identificação é evidenciado.
22
estabelece a diferenciação entre silêncio e implícito, demonstrando que este apenas remete o
não-dito ao dito, diferentemente daquele que é, em si, a condição para a produção do dito, mas
também do não-dito e daquilo que pode vir (ou não) a significar.
Se nos fazemos entender em nossa interpretação da abordagem orlandiana sobre o
silêncio, estará claro que este é próprio princípio da significação por atravessar a materialidade
das palavras, colocando em evidência o fato de que os sentidos sempre podem ser outros. Nessa
perspectiva, o silêncio é a indicação de um todo significativo. Por essa razão, a autora o define
como silêncio fundador, espaço onde se sustenta um horizonte de sentidos, com múltiplas
possibilidades de significação.
Sendo assim definido, como a condição do dizível (dos sentidos possíveis), o silêncio,
na categoria de matéria histórica significante, integra a constituição de sujeitos e sentidos, uma
vez que em seu continuum abrem-se as possibilidades de significar e significar-se.
Paralelamente à noção de silêncio fundador, Orlandi (1993, p. 14) define “os modos
de se apagar sentidos, de se silenciar e de se produzir o não-sentido onde ele se mostra algo que
é ameaça”. Esses modos de instaurar um não-sentido, ou simplesmente, o silenciamento, a
autora denomina de política do silêncio que se define como o apagamento necessário de
sentidos possíveis, mas indesejáveis, quando enunciamos em uma situação discursiva
específica. Nessa política, o silêncio encontra duas diferentes formas de existência, sendo elas
o silêncio constitutivo e o silêncio local.
O silêncio constitutivo é o da ordem da produção de sentido, designando "o mecanismo
que põe em funcionamento o conjunto do que é preciso não dizer para poder dizer" (ORLANDI,
1993, p. 76). Ele trabalha nos limites das formações discursivas, estabelecendo o que deve ou
não ser dito e determinando a exclusão de certos não-ditos. O silêncio constitutivo, nessa
medida, estabelece recortes sobre o que se diz e o que não se diz. Dessa maneira, se diz "x" para
não se dizer "y", delimitando o sentido que se deve descartar.
No silêncio local, tem-se, efetivamente, a interdição do dizer. Essa forma do silêncio
constitui uma manifestação mais explícita do silenciamento em que a relação do sujeito com o
"dizível" é alterada na medida em que o "dizer possível" é transformado em "dizer devido",
excluindo, nesse movimento, os dizeres proibidos. Esse é o caso da censura que, como assinala
Orlandi (1993, p. 78), “não é um fato circunscrito à consciência daquele que fala, mas um fato
discursivo que se produz nos limites das diferentes formações discursivas que estão em
relação". Nessa perspectiva, a censura instaura uma produção de sentidos proibidos,
delimitando a inscrição do sujeito em determinadas formações discursivas. Desse modo, a
25
identidade do sujeito é drasticamente afetada, dada a proibição de que ele ocupe diferentes
lugares discursivos que possam fazê-lo produzir sentidos não autorizados.
É pensando nessa relação entre linguagem e censura que a autora introduz a noção de
língua-de-espuma definida como uma língua em que os sentidos não ecoam. Uma língua falada
pelas expressões totalitárias que trabalham o poder de silenciar, impedindo que sentidos e
sujeitos se desdobrem. No contexto brasileiro, explicita a autora, essa língua foi falada pelos
militares no período ditatorial que se instalou no país em 1964.
A língua-de-espuma, ao calar os sentidos, instaura um trabalho de asfixia, pois
interdita, manifestadamente, a possibilidade que o sujeito possa circular em diferentes espaços
de significação por meio das formações discursivas. O sujeito, assim, é destinado a ocupar “o”
lugar e não um lugar, dentre muitos possíveis. A rarefação do sentido, nessa perspectiva, é a
consequência da imposição de uma única forma de significar a sociedade, o que Orlandi (1993)
denomina de narcisia social.
A autora assinala, no entanto, que “se há um silêncio que apaga [os da instância da
política do silêncio], há um silêncio que explode os limites do significar [o silêncio fundador]"
(op. cit., p. 87). E, nessa dinâmica, o silêncio fundador proporciona um contínuo de significação
que, mesmo na censura, torna possível ao sujeito discursivo produzir sentidos, “fazendo
significar, por outros jogos de linguagem, o [...] que lhe foi proibido" (op. cit., p. 89), abrindo
espaço para o que a autora chama de retórica da resistência.
Desse modo, o sujeito responde ao silêncio local da censura através do silêncio
fundador, produzindo outros sentidos a partir de outras regiões do dizer. Em outras palavras, o
não-sentido (o proibido) acaba por ser dito de uma outra forma, exatamente pela movência dos
sentidos e suas sempre novas formas de significar.
É importante sinalizar que, embora esse estudo tenha se debruçado sobre o fato
histórico-linguístico da censura exercida pelo autoritarismo do regime militar, a autora chama
atenção para o fato de que pensar a censura em sua interface com o silêncio possibilita alargar
a noção para compreender “qualquer processo de silenciamento que limite o sujeito no percurso
dos sentidos” (op. cit., p. 13). É nessa compreensão que observamos o funcionamento da
censura no interior da política de asfixia do MESP através da interdição de sentidos que
atribuem à educação um caráter plural e democrático. Essa interdição, diferente da ditadura,
não se impõe pelo autoritarismo de um regime totalitário, mas pelas relações de força
simbolizadas no (pelo) discurso.
Partindo dessas considerações que problematizam o dizer e o calar, podemos concluir
que o silêncio é, ele mesmo, sentido, atravessando a multiplicidade de significações e, ao
26
mesmo tempo, podendo desempenhar a imposição do silenciamento. Ele está presente no calar
e no dizer: há uma relação necessária entre palavras e silêncio. É nessa reflexão que irrompe a
questão da política de significação, dado que o sentido se constitui na tensão entre o que
significa e o que não significa, entre o dito e o “a significar”, de forma que, nesse jogo, os
sentidos se dirigem a uma direção e não a outra, num tensionamento que atesta sua dimensão
política, isto é, dividida.
Nas palavras de Orlandi (1993, p. 111), o “silêncio está na base da divisão dos sentidos,
tendo consequências que se inscrevem na política do dizer”, isto é, na política de significação,
pelo fato de que seu funcionamento se dá entre o mesmo e o diferente, entre a paráfrase e a
polissemia, produzindo os efeitos contraditórios que emergem da relação entre o dito e o não-
dito.
marca o traço caraterístico da pluralidade humana constituída por esse duplo aspecto da
igualdade/distinção. Em outro texto, a autora explica esse raciocínio afirmando que
Se não fossem iguais, os homens não poderiam compreender uns aos outros e os que
vieram antes deles, nem fazer planos para o futuro, nem prever as necessidades
daqueles que virão depois deles. Se não fossem distintos, sendo cada ser humano
distinto de qualquer outro que é, foi ou será, não precisariam do discurso nem da ação
para se fazerem compreender (ARENDT, 2017, p. 217).
É nesse sentido que igualdade e distinção são relativas, sendo o discurso e a ação 9
atividades políticas que revelam a distinção entre os homens. Nessa distinção, a autora afirma
que o sujeito jurídico se realiza na política “na forma de direitos iguais que os absolutamente
diferentes garantem uns aos outros. Essa garantia voluntária e essa outorga do direito à
igualdade jurídica reconhecem a pluralidade dos homens” (ARENDT, 2008, p. 146).
A pluralidade, dessa forma, é atestada na política que, por sua vez, só existe entre os
homens por meio do discurso e da ação. Quando perguntado sobre “quem é”, o homem se revela
tanto por suas palavras como pelos seus atos, distinguindo-se dentre os demais. Ação e discurso,
nessa medida, estão intimamente relacionados. Sem o discurso, lembra a autora, a ação perderia
seu caráter revelador, e ao mesmo tempo, o seu sujeito. Ela deixaria de ser ação, uma vez que
esta só se torna significativa por meio da palavra na qual o sujeito “se identifica como ator,
anuncia o que faz, fez e pretende fazer” (ARENDT, 2017, p. 221). Por outro lado, o discurso,
sem a ação, exerce um papel secundário de meio de comunicação ou de emissão de sons que
acompanham uma ação que poderia ser realizada silenciosamente.
É preciso, nesse ponto, efetuar um distanciamento necessário entre a perspectiva
discursiva, a qual nos filiamos, e a arendtiana, quanto às noções de discurso e sujeito. Em AD,
não consideramos esse vínculo constitutivo entre discurso e ação, mas entre discurso, língua e
ideologia. Nessa perspectiva, o discurso é concebido enquanto prática simbólica, efeito de
sentido entre locutores. O sujeito, por seu turno, não é um indivíduo dotado de intenções, mas
afetado pela ideologia e pelo inconsciente, atravessado pela falta, pela contradição.
Retornando ao conceito de política arendtiano, destacamos, ainda, o resgate da
tradição grega quando a autora define a política como liberdade. O sentido de liberdade, nesse
contexto, relaciona-se, em uma conotação positiva, a “um espaço que só pode ser produzido
por muitos, onde cada qual se move entre iguais” (ARENDT, 2006, p. 18). O exercício da
9
Para Arendt (2017, p. 09), a ação é a atividade política por excelência caracterizada por ser a “única atividade
que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria”, correspondendo “à condição
humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na terra e habitam o mundo”. A
pluralidade, citada pela autora, é a condição específica de toda a vida política, no entanto, não é sinônimo de
alteridade, caracterizando-se pelo duplo aspecto igualdade/distinção.
28
política, desse modo, é o próprio exercício da liberdade que considera a pluralidade humana,
na coexistência com o diferente, presumindo movimentos de convergências/associações e/ou
divergências/disjunções.
Esse espaço comum, que é a liberdade de Aristóteles e de Arendt, pode ser aproximado
à cena comum pensada por Rancière (1996). Essa cena comum está na base da definição de
política rancieriana que corresponde, em uma primeira instância, ao “conflito em torno da
existência de uma cena comum” (RANCIÈRE, 1996, p. 39). Sob essa ótica, a política pressupõe
uma disputa que compreende os sujeitos e a situação a partir da qual enunciam. Buscando
compreender o caráter litigioso da política, o autor apresenta a noção de desentendimento,
concebido como uma situação de tomada de palavra em que os interlocutores se entendem e, a
um só tempo, desentendem-se. Para explicitar esse conceito, Rancière (1996, p. 11) elucida que
O desentendimento não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto.
É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas não entende a
mesma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o
nome de brancura.
entre o dissenso e o consenso, entre o eu e o outro. Retornando a Corten (1999), dessa vez
quando o autor fala sobre o político, podemos identificar em seus escritos esse mesmo lugar de
tensão onde se embatem forças políticas. Na definição do autor, o político é entendido como
representação que compreende “a cena das forças políticas construídas pelo discurso”
(CORTEN, 1999, p. 37). Nesse sentido, o político é, ele mesmo, a cena produzida pelo discurso
em sua circulação.
A exemplo de Cazarin (2013), aproximamos essa noção de cena de representação do
político à cena discursiva de interlocução proposta por Maingueneau (1989), definida como
prática social em que os sujeitos realizam um ritual de linguagem. Essa cena discursiva é
tomada como lugar de tensão e confronto (INDURSKY, 2002), uma vez que, nesse ritual,
jogam as diferentes formações discursivas, os diferentes gestos de interpretação10.
Essa acepção do político enquanto cena discursiva é bastante produtiva para a AD,
uma vez que elege o discurso como lugar de representação onde relações de força se
estabelecem na disputa entre diversas versões sobre um mesmo objeto. Nessa perspectiva, o
litígio de que fala Rancière (1996) está, também, presente no político através do confronto, das
relações de força simbolizadas no/pelo discurso. O político, assim concebido, é o resultado “da
trama de diferentes processos discursivos atravessados pelo interdiscurso e recortados por
diferentes formações discursivas” (INDURSKY, 2002, p. 117).
Nesse prisma, o político pode ser atestado “no fato de que os sentidos têm direções
determinadas pela forma da organização social que se impõem a um indivíduo ideologicamente
interpelado” (ORLANDI, 2012, p. 34), isto é, inscrito em determinada FD. A Análise do
Discurso, desse modo, permite observar a textualização do político nas diferentes manifestações
de linguagem.
O político, em uma última definição, é a própria divisão. Os sentidos e os sujeitos
afetados pela língua e pela ideologia, são constitutivamente divididos: “divididos em si e entre
si” (ORLANDI, 2014, p. 27). Divididos em si porque sempre podem ser outros, e divididos
entre si porque, quando significam, entram em disputa com os demais sentidos, incluindo
aqueles que se deseja silenciar. Concluímos, assim, que a linguagem é, também, política, vez
que os sentidos, sempre cindidos em sua constituição, são dirigidos politicamente (inscrevem-
se numa política de significação), pressupondo o litígio.
Partindo desses pressupostos teóricos, embasamos nossa compreensão sobre o sentido
em sua dimensão política, buscando compreender o modo como os processos de significação
10
Ao aproximar as noções de interpretação e de gesto, Orlandi (2012) busca considerar “a interpretação como
prática simbólica, uma prática discursiva que intervém no mundo, que intervém no real do sentido” (p. 25).
31
2. DISPOSITIVO ANALÍTICO
Eni Orlandi
Diz Pêcheux (1969 [2014, p. 76]) que “um discurso é sempre pronunciado a partir de
condições de produção dadas”. Daí a inviabilidade de tomá-lo como um elemento fechado em
si, sendo necessário referi-lo ao “conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido
das condições de produção” (ibid, p. 78). Assim, é preciso estabelecer relações entre o discurso
analisado e o já dito, ou seja, é necessário demarcar suas filiações de sentido na cadeia do
interdiscurso, a partir de condições de produção específicas. Tais condições são definidas pelo
autor como um mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto de discurso. Em outros
termos, como aponta Orlandi (2014), as condições de produção (CP) funcionam como um
objeto simbólico que traz a reboque os sujeitos e a situação, levando em conta a memória do
dizer.
A autora ainda salienta que as CP podem ser consideradas em seu sentido restrito,
referente às circunstâncias da enunciação, e num sentido lato, que corresponde à exterioridade
constitutiva (interdiscurso e conjuntura sócio-histórica, política e ideológica). Pensadas desse
modo, as CP integram a constituição do discurso, e não apenas o seu contexto de produção.
Neste tópico, em particular, apresentamos as condições de produção dos discursos do
MESP e do MPCESP em seu sentido lato. Nas análises propriamente ditas, faremos menção às
circunstâncias da enunciação das sequências discursivas sob observação (sentido restrito das
CP). Seguindo essa organização, descrevemos, a seguir, as condições sócio-históricas, políticas
e ideológicas a partir das quais os discursos dos movimentos são produzidos, evidenciando seus
lugares de filiação na complexa rede do interdiscurso.
11
Miguel Nagib é procurador do estado de São Paulo e coordenador/fundador do Movimento Escola sem Partido.
12
Entendemos por base conservadora ou bancada conservadora o grupo de parlamentares brasileiros vinculados a
partidos e frentes parlamentares mobilizadas a combater o avanço de pautas referentes à conquista/manutenção de
direitos sociais ligados a grupos minoritários, como homossexuais, negros, mulheres etc. Essa base busca
conservar o modelo da família tradicional e os princípios religiosos enquanto pedras angulares da política e da
organização social.
13
Trechos retirados do artigo escrito por Sandro Guidalli para o Portal Fé em Jesus e reproduzido no site do MESP.
35
14
Em novembro de 2017, o senador Magno Malta retirou o PL de tramitação no Senado por uma questão
estratégica: tendo o relator do Projeto, Cristovam Buarque (Partido Popular Socialista, PPS), apresentado relatório
por sua rejeição, o PL possuía poucas chances de ser aprovado. Sendo assim, o senador optou por tirá-lo de
tramitação e aguardar sua aprovação na Câmara dos Deputados para que chegasse com mais força ao Senado
Federal. Ver declaração do senador sobre o assunto em: https://www.youtube.com/watch?v=M6YkTTangyQ.
36
15
Ver em http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,congresso-eleito-e-o-mais-conservador-desde-1964-
afirma-diap,1572528
37
política, reivindicando seu direito à terra e ao trabalho. Outro avanço importante trazido pela
CF/88 foi a criminalização do racismo e da tortura como crime inafiançável e não anistiável,
conquistas imprescindíveis para a manutenção dos direitos humanos e sociais.
Em se tratando de educação, a Constituição Cidadã propiciou a luta contra as
desigualdades e a universalização dos direitos, ganhando uma forte aliada em 1996 com a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que garantia, no
âmbito educacional, a valorização das diferenças, o apreço à tolerância, incluindo, em 2013, a
diversidade étnico-cultural. Seguindo essa perspectiva, os Parâmetros Curriculares Nacionais
(1997) apresentam para o Ensino a noção de Temas Transversais, firmando o compromisso de
“uma prática educacional voltada para a compreensão da realidade social e dos direitos e
responsabilidades em relação à vida pessoal, coletiva e ambiental” (BRASÍLIA, 1997, p.15).
Tais temas deveriam atravessar o ensino das disciplinas, contemplando, entre outras questões,
o tema da orientação sexual, entendida como natural e inerente à vida e à saúde, necessitando
ser abordada em sala de aula para tratar de temáticas como as relações de gênero 16 e o respeito
a si e ao outro, de modo a superar “tabus e preconceitos ainda arraigados no contexto
sociocultural brasileiro” (op. cit., p. 287).
Desde então, temas como sexualidade, raça e cultura se consolidaram nos documentos
oficiais e diretrizes educacionais como tópicos necessários à educação e formação de cidadãos.
Contudo, em 2014 – na conjuntura conservadora antes descrita – o tema da sexualidade na
educação foi revisitado num grande debate nacional em função das metas estipuladas pelo Plano
Nacional de Educação (PNE) que versavam sobre a redução das desigualdades e a valorização
da diversidade, trazendo à baila a questão das relações de gênero.
O tema foi vetado do PNE (2014/2024) como resultado da pressão de bancadas
conservadoras e religiosas que se opuseram a abordagens pedagógicas do que passaram a
chamar de “ideologia de gênero”, na concepção de que o trabalho com esse conteúdo em sala
de aula tinha apenas a finalidade político-ideológica de deturpar “os conceitos de homem e
mulher, destruindo o modelo tradicional de família” (CARVALHO, 2015)17. A partir desse
momento, os Projetos de Lei inspirados no MESP passaram a acrescentar às suas formulações
a proibição do ensino da “ideologia de gênero” nas escolas.
16
Na perspectiva do documento, as relações de gênero abarcam questões concernentes à sexualidade, a identidade,
bem como à violência de gênero.
17
Ver em http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2015-12-26/exclusao-de-genero-do-plano-nacional-de-
educacao-e-retrocesso-diz-educador.html
38
Em 2017, o mesmo debate foi levantado com a votação da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) que passa a nortear as aprendizagens essenciais à formação do estudante da
Educação Básica. Nesse contexto, MESP, bancada conservadora e intelectuais de direita, como
o professor Olavo de Carvalho, encabeçaram uma forte campanha para retirar do texto da
BNCC qualquer referência às questões de gênero e orientação sexual, obtendo êxito e fazendo
com que o Conselho Nacional de Educação (CNE) removesse do documento trechos que
fizessem menção a esses temas. Além da interdição às menções a gênero, o documento
aprovado incluiu orientações sobre ensino religioso nas escolas.
Vale constar que o MESP continuou a criticar a presença da “ideologia de gênero” nas
escolas, afirmando que a simples retirada da temática no documento não impediria que a mesma
estivesse nas salas de aula. Mantiveram, assim, os esforços para invisibilizar, no âmbito escolar,
problemáticas sociais concernentes não só às relações de gênero, mas aos avanços dos direitos
de minorias sociais.
Com o avanço das vozes conservadoras na conjuntura brasileira, incluindo a voz do
MESP, tornou-se visível o entendimento de que a garantia dos direitos humanos funciona como
“uma fórmula que concede proteção indevida a pessoas com comportamento antissocial”
(MIGUEL, 2016, p. 592). Nesse cenário, os interesses de minorias como mulheres, negros e
população LGBT 18 voltaram a ser cada vez menos representados e até mesmo questionados, o
que evidencia um processo contemporâneo de recuo na história da nossa democracia.
Esse refluxo democrático tem atravessado o discurso do MESP por meio de um
constante combate ao que chamam de “imposição do politicamente correto”. O assunto trouxe
à tona a obrigatoriedade do respeito aos direitos humanos na redação do Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM). Segundo o edital do certame, o candidato que desrespeitasse os direitos
humanos teria sua redação anulada. O MESP, então, que há algum tempo já se posicionava
contra a determinação, moveu uma ação civil pública em outubro de 2017 alegando que a norma
não apresentava critério objetivo, mas um caráter de policiamento ideológico que coibia a
manifestação do livre pensamento19. O argumento foi aceito pelo Supremo Tribunal Federal,
que suspendeu a regra em questão. Marcou-se, nesse sentido, a possibilidade de sujeitos
ingressarem no Ensino Superior defendendo a interdição aos direitos do outro, do diferente –
reflexos de uma memória ditatorial que ressoa no discurso do MESP e de seus apoiadores.
18
Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
19
Ver em https://g1.globo.com/educacao/enem/2017/noticia/justica-suspende-regra-que-zera-redacao-do-enem-
com-desrespeito-aos-direitos-humanos.ghtml
39
20
Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=uy4vMMbuv7w;
https://www.youtube.com/watch?v=MO5zpjnmZLQ; https://www.youtube.com/watch?v=BlAksR5b-q8.
21
Entendemos essa noção pela ótica de Künzli (1995, p. 66) segundo o qual o fundamentalismo é um movimento
de retorno à origem, à tradição. É “a tentativa fanática de uma compensação [...] da ‘perda de Deus’ na nossa
modernidade desencantada, desmitologicizada”.
40
surgido no final dos anos 1970 e responsável por eleger candidatos republicanos como Ronald
Reagan e Bush (pai e filho), foi caracterizado por um programa de “rearmamento moral”
contrário à “legislação dos Estados que permitem o aborto e a emancipação das mulheres em
geral, contra manifestações públicas e os direitos dos homossexuais, contra as leis que afetam
a autoridade dos pais [...]” (SCHLEGEL, 2009, p. 105).
O retorno desses sentidos de perseguição à esquerda e combate aos direitos das
minorias se atualizam na conjuntura contemporânea brasileira, e marcam a crescente dominação
do conservadorismo e do fundamentalismo na esfera sociopolítica, alastrando-se para o campo
educacional através do discurso do MESP e sua política de asfixia que interdita, censura e
restringe os sujeitos e os sentidos sobre a educação nacional. Contudo, como elucida Pêcheux
(1975 [2014]), se há dominação, há, também, resistência. Acrescentamos, com Orlandi (1993),
que a resistência aparece onde trabalha a censura. E é sobre a resistência ao discurso do MESP
que trataremos nas linhas que seguem.
22
Parte desses manifestos está reunida em dossiê organizado pelo site Marxismo21. Link para acesso:
https://marxismo21.org/escola-sem-partido/
41
23
Frente Nacional Escola Sem Mordaça, Frente Nacional contra o Projeto ESP, entre outras.
24
Alguns desses textos estão reunidos no site do movimento Professores contra o Escola sem Partido, disponível
em: <https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/documentos/>. Além dos textos do professor
Penna estão outras referências importantes como a dissertação da professora Fernanda Pereira de Moura,
apresentada, em 2016, ao Curso de Mestrado Profissional do Programa de Pós-graduação em Ensino de História
do Instituto de História da UFRJ, que analisa os Projetos de Lei do tipo Escola sem Partido observando-os enquanto
“mecanismos de contenção que agem em conjunto com os mecanismos de imposição (ensino religioso e moral e
cívica) contra os avanços da laicidade do estado e da secularização da cultura (MOURA, 2016, p. 05).
42
25
Ver em: https://www.facebook.com/moveducacaodemocratica/videos/1916943675232308/
43
ensino (RAO); 2’) Resistência à asfixia do sujeito-aprendiz (RAA) e, 3’) Resistência à asfixia
do sujeito-professor (RAP).
É importante elucidar o fato de que, como defende Grigoletto (2002), os recortes que
realizamos não equivalem ao procedimento de segmentação utilizado na linguística, como se o
discurso pudesse ser dissecado, ou compartimentado para se chegar à sua compreensão. O
recorte é, sobretudo, uma porção indissociável do processo discursivo em sua relação com a
memória do dizer, tornando-se o observatório da produção discursiva.
Descritos os procedimentos analíticos da pesquisa, passemos ao nosso gesto de
interpretação que busca compreender a produção dos sentidos no interior da disputa que
tensiona o imaginário sobre a educação nacional, colocando em jogo a política de asfixia do
MESP e a política de resistência do MPCESP.
46
Eni Orlandi
3.1. A asfixia dos objetos de ensino: o que (não) pode/deve ser ensinado
26
Alguns exemplos: Você sabe o que é ideologia de gênero?, escrito por Felipe Aquino; Identidade de gênero e a
crise de identidade sexual, escrito pelo padre Rafael Solano; Ideologia de gênero, organizado por Ives Gandra e
Pedro Carvalho; Famílias em perigo: o que todos devem saber sobre a ideologia de gênero, e-book escrito por
Marisa Lobo, entre outros.
47
em vídeos27 que circulam na internet, entre outras materialidades, que popularizaram o termo
alertando para os males promovidos pela “ideologia de gênero”, como, por exemplo, a
“destruição” da família tradicional. As vozes que alertam sobre o tema são constituídas,
majoritariamente, por lideranças religiosas e conservadoras. Entre elas, está o advogado
argentino José Rafael Scala que publicou o livro Ideologia de Gênero: neototalitarismo e a
morte da família, lançado no Brasil em 2011. De acordo com o advogado, as ideologias
constituem um feixe de ideias orientadas por um princípio sempre falso, ilusório, que se impõe
por meio do sistema educacional e da publicidade.
Sob esse ponto de vista, produz-se sentidos sobre a ideologia na condição de embuste,
enganação, aproximando-se da perspectiva napoleônica que a concebeu como doutrina
fantasiosa perigosa à ordem, e da visão de Marx e Engels (1974) que a definiram enquanto
realidade invertida, mecanismo de alienação. Vista por esse ângulo, a expressão ideologia de
gênero se justificaria pelo argumento de que há uma imposição de uma falsa teoria cujo
princípio básico é o de que
o sexo seria o aspecto biológico do ser humano, e o gênero seria a construção social
ou cultural do sexo. Ou seja, que cada um seria absolutamente livre, sem
condicionamento algum, nem sequer o biológico -, para determinar seu próprio
gênero, dando-lhe o conteúdo que quiser e mudando de gênero quantas vezes quiser
(SCALA, 2012).
27
Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=7jyereeXn2A; https://www.youtube.com/watch?v=CD8hh85C9A
I; https://www.youtube.com/watch?v=KtjXD2PbHTc&t=60s; https://www.youtube.com/watch?v=GmLEg9QP9
LE; https://www.youtube.com/watch?v=xdLYvuJHuR8; https://www.youtube.com/watch?v=7l348rFl7_o;
https://www.youtube.com/watch?v=ir-bFmGZgB8.
28
Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=F-8BxIIhdrA
48
29
Estudos que emergiram com o desdobramento da Segunda Onda do Movimento Feminista, iniciada na década
de 60. À época, estudiosas passaram a problematizar a desigualdade entre os gêneros a partir de publicações como
Le deuxième sexe, de Simone Beauvoir (1949) e Sexual politics, de Kate Millett (1969).
49
Além do termo “ideologia de gênero”, trazemos à baila duas outras noções mobilizadas
no discurso do MESP, recorrentemente marcadas em relação de antagonismo: doutrinação e
neutralidade. No site do movimento, é possível encontrar inúmeras referências ao que chamam
de doutrinação ideológica nas escolas, como a que destacamos a seguir:
É fato notório que, nos últimos 30 anos, um número cada vez maior de professores e
autores de livros didáticos vem-se utilizando de suas aulas e de suas obras para
doutrinar ideologicamente os estudantes, visando à formação e propagação de uma
mentalidade social favorável a partidos e organizações de esquerda. Sob o pretexto de
transmitir aos estudantes uma “visão crítica” da realidade, esses professores e autores
se prevalecem da liberdade de cátedra, da cortina de segredo das salas de aula, da
imaturidade, da inexperiência e da falta de conhecimento dos alunos para impingir-
lhes a sua própria visão de mundo, quase sempre identificada com a perspectiva
marxista (ESCOLA SEM PARTIDO, 2018).
de lei elaborado por Miguel Nagib30, ao qual fizemos referência no capítulo anterior. Sua
proposição é a de incluir entre as diretrizes e bases da educação nacional o Programa Escola
sem Partido que, em linhas gerais, consiste em uma proposta educacional defensora de um
ensino pretensamente neutro.
O Projeto é constituído por nove artigos que dispõem sobre i) os princípios que o
MESP procura instituir para a educação; ii) a proibição de atividades pedagógicas que possam
entrar em conflito com as convicções morais e religiosas dos pais; iii) deveres do professor; iv)
afixação de cartazes na escola que exponham tais deveres, e, por fim, v) a criação de um canal
de denúncias anônimas para delações de possíveis práticas de doutrinação.
Um fator importante a mencionar sobre o Projeto é o acréscimo de uma série de novos
princípios educacionais, além da ocultação daqueles já consolidados pela LDB e pela
Constituição Federal, como a pluralidade de concepções pedagógicas; valorização do
profissional da educação escolar; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as
práticas sociais; e o direito de ensinar, pesquisar, divulgar a arte, a cultura e o saber31. Dentre
os princípios acrescentados pelo Projeto, estão a neutralidade política, ideológica e religiosa
do Estado; liberdade de consciência e de crença; reconhecimento da vulnerabilidade do
educando como parte mais fraca na relação de aprendizado; e direito dos pais a que seus filhos
recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
Esse duplo movimento de acréscimos e retiradas de princípios educacionais já sinaliza,
de pronto, para a política de asfixia do discurso do MESP, uma vez que silencia sentidos que
politizam e pluralizam o espaço escolar e, a um só tempo, restringe o processo educacional,
condicionando-o à neutralidade e a valores morais e religiosos das famílias. Retornaremos a
esses princípios e demais artigos do Projeto ao longo das análises, de modo a observar o
processo discursivo de asfixia dos objetos de ensino e dos sujeitos da educação (professor e
aprendiz). Por ora, dirigimos nossa atenção à asfixia dos objetos de ensino, recortando do PL
as a SD.
SD1: Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e
ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que
30
Tal anteprojeto tem passado por diversas reformulações desde que veio a público, circulando por meio da internet
(nos sites e páginas do Facebook do MESP) e nos debates sobre os PL. Embora tenha sofrido algumas mudanças
textuais, o anteprojeto conservou as proposições do MESP, reproduzindo, quase que integralmente, o teor de suas
primeiras versões.
31
Dos princípios da educação nacional presentes na LDB, ainda foram excluídos do PL: igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola; respeito à liberdade e apreço à tolerância; coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; gestão democrática do
ensino público; garantia de padrão de qualidade; valorização da experiência extra-escolar e consideração com a
diversidade étnico-racial (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013).
51
valores religiosos e morais. Assim, o efeito de neutralidade produzido pelo MESP na proibição
da “doutrinação” e respeito às “convicções dos pais” funciona de modo a silenciar e interditar
uma maneira específica de se pensar a educação. Determina-se, desse modo, o que não
pode/deve ser ensinado: temáticas que tensionem os saberes do cristianismo e do
conservadorismo, como por exemplo, a temática da homossexualidade. Logo, o que pode/deve
se constituir enquanto objeto de ensino fica subordinado à moral e à religião cristã, produzindo
o efeito fundamentalista de primazia do religioso sobre o laico, da moral familiar sobre o
processo educacional. Esse funcionamento marca o que Wolff (2007, p. 76) chama de
“esquecimento da política em proveito da moral”, onde não se espera da prática política boas
ações concernentes a valores democráticos, mas boas ações em matéria de moral. Assim, a luta
política contra as discriminações, cede lugar à luta em favor da moralidade, como é possível
observar na SD2, recortada do artigo 1º do PL 7.180/2014 que acrescenta aos princípios da
educação o
sobre a presença de temas como orientação sexual, religião e gênero na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC).
SD3: Quando, por exemplo, o currículo, ou um professor, por sua própria iniciativa,
utiliza seu cargo e o espaço da sala de aula para defender que ninguém nasce
homem... e que as pessoas se tornam... nem homem, nem mulher... e isso é uma
construção cultural [...] e dessa premissa decorrem outras consequências de
natureza moral, de natureza moral. E consequências, conclusões que se chocam
com alguns princípios fundamentais da moralidade cristã. Então, ao promover
esta visão dentro do sistema educacional, o Estado está deixando de ser neutro em
relação à moralidade cristã e, portanto, está ferindo o princípio da laicidade do Estado
que é um princípio constitucional (NAGIB, 2017a).
32
Entendemos a moral como um conjunto de saberes de determinada formação discursiva, produzindo um efeito
de universalidade para os sujeitos e os sentidos. Por isso, a moral “expressa a tentativa de manter o mesmo, o
desejável, e conter o diferente, o indesejável” (GRANTHAM, 1999, p. 213). Com relação às questões de gênero e
sexualidade, há, no interior da Formação Discursiva Cristã, a determinação moral de que o gênero é definido pelo
sexo biológico e que a única configuração legítima para as relações afetivas e sexuais é o par homem e mulher.
Qualquer outra forma de existência do sujeito que se insurja a essa ordem é considerada pecaminosa, passível de
punição. Por essa razão, a ideia de aceitação da diversidade de gênero é interditada no interior da FD Cristã, e,
portanto, censurada no discurso mespiano.
54
SD4: O Estado pode fazer uma política contra homofobia usando os meios de
comunicação. O Estado tem uma verba bilionária para isso. Ele vai fazer propaganda
na televisão porque ninguém é obrigado a assistir essas propagandas. Na sala de
aula é diferente porque o pai é obrigado a colocar o filho na escola (NAGIB, 2017b).
SD5: [...] essa nefasta ideologia de gênero, esse lixo que atrasa o Brasil e que faz as
nossas crianças aqui emburrecerem porque enquanto aqui a gente fica aprendendo
esse tipo de besteira, na Coreia do Norte, no Japão, os alunos lá estão com doze anos
de idade, fazendo contas que os nossos universitários não fazem. Então, senhor
presidente, temos, sim, que aprovar essa lei, colocá-la adiante pra acabar com esse
tipo de besteira e ensinar que na escola é lugar de aprender matemática, física,
biologia para que sejam bons profissionais e boas pessoas em suas casas porque
uma família que não tem problema, ela é rentável ao Estado (BOLSONARO, 2016).
A SD5 foi recortada de uma fala do deputado federal do estado de São Paulo, Eduardo
Bolsonaro, em uma Comissão de Educação, realizada na Câmara dos Deputados. As
formulações dessa SD colocam em jogo uma suposta divisão entre conteúdos ideológicos e
conteúdos neutros, a qual redunda num processo de restrição/redução dos sentidos dos objetos
de ensino e numa concepção de escola como lugar de instrução de conteúdos “não
55
SD6: [...] Gente, o que é importante aqui? Entrou aqui a palavra gênero, no sentido
de diversidade sexual, quando o Plano Nacional de Educação, né, vetou, vetou o
termo gênero. Ou seja, o Congresso Nacional, ao votar a lei, o Plano Nacional de
Educação, proibiu o uso dessa teoria, da ideologia de gênero. Que todo mundo já
conhece. Que é tão nefasta para as crianças. Que deixa as crianças perturbadas.
Essa ideologia que diz que criança não nasce menino, nem menina. Então, assim, a lei
proibiu. E o MEC, né, por intermédio do presidente da república agora, por um
decreto, está enfiando goela abaixo dos brasileiros essa ideologia de gênero. [...]
Ministro, tome pulso nessa situação. Revogue. Consiga que o presidente da
república altere esse decreto. Revogue, extirpe do decreto esse artigo 25, inciso II
porque isso é ilegal, é imoral e afronta a vontade soberana do povo (KICIS, 2017).
33
O intradiscurso corresponde ao eixo horizontal do dizer, é o “eixo da formulação, isto é, aquilo que estamos
dizendo naquele momento dado, em condições dadas” (ORLANDI, 2013, p. 33). No eixo vertical, está o
interdiscurso, lugar onde se estratificam todos os dizeres já ditos, formando, assim a possibilidade do dizível.
58
em funcionamento estabelecendo os sentidos que não podem, nem devem se fazer presentes no
ensino, num movimento que escamoteia, abafa e interdita os sentidos ligados à diversidade e
pluralidade sexual e de gênero no âmbito educacional.
Como pudemos sublinhar no decorrer das análises até aqui empreendidas, o processo
discursivo de asfixia dos objetos de ensino, constitutivo do discurso do MESP, ocorre pelo viés
da restrição/redução desses objetos, bem como pela interdição de sentidos ligados aos domínios
do político e do sociocultural, como as questões sobre diversidade e sexualidade.
Note-se que o gesto de interpretação do MESP lança mão de uma analogia entre a
Síndrome de Estocolmo e a relação doutrinador-doutrinado, produzindo o efeito de
equivalência entre os sentidos de sequestrador e professor e entre vítima e aprendiz. Desse
34
Ver em http://www.escolasempartido.org/sindrome-de-estocolmo)
60
modo, projeta-se uma imagem do professor como “sequestrador intelectual” e o aprendiz como
a vítima do sequestro, mas que se recusa a admitir sua situação de subordinação. O fato de o
aluno defender seu professor e negar que haja uma prática doutrinária de sua parte, evidencia,
segundo o MESP, a intensa ligação afetiva que o refém desenvolve por seu algoz, apoiando-o
sem se dar conta de sua prática abusiva.
Essa evidência do aluno-vítima, no entanto, apaga o fato de que tal sujeito é fruto de
determinações sócio-históricas e de que pode identificar-se ou não com o discurso do professor
sem que para isso submeta-se a um processo de “doutrinação ideológica”. Contudo, identificar-
se com a posição do professor, nesse discurso, equivale a ser doutrinado. O sujeito-aprendiz,
portanto, é despojado de sua autoria, sendo representado como uma espécie de reprodutor do
discurso do professor, transformando-se em vítima do crime que o MESP pretende combater:
o “sequestro” ideológico.
Ainda sobre a vitimização e desresponsabilização do aprendiz, retornamos ao PL
“Escola sem Partido” de modo a evidenciar a produção desses efeitos em seu Artigo 2º, que
dispõe sobre os princípios da educação nacional.
SD8: Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios: [...] V -
reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação
de aprendizado (BRASÍLIA, 2015).
35
Essa relação de paráfrase entre os documentos é admitida por Miguel Nagib em Audiência pública da Comissão
Especial do projeto de lei ESP, na Câmara dos Deputados, 14/2/2017. Ver em:
https://www.youtube.com/watch?v=jwGErV-1zUo&feature=youtu.be
61
SD9: Os pais têm direito de dar a seus filhos, perdão, a que seus filhos recebam a
educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas convicções. Meus filhos,
minhas regras. [...] O estudante tem direito de... a que seu conhecimento da realidade
não seja manipulado pela ação dos seus professores [...]. Liberdade de ensinar
significa... liberdade de ensinar do professor... a liberdade que o professor tem de
ensinar alguma coisa, um determinado conteúdo... o conteúdo para o qual ele está
habilitado. Ele fez um curso de matemática e está habilitado para ensinar matemática.
É disso que se trata. Esta é a liberdade do professor. É liberdade de ensinar alguma
coisa. A coisa para a qual ele se preparou (NAGIB, 2017c).
como uma espécie de autoria do outro, origem, lugar de “criação” daquele por quem se é
responsável, remetendo a uma memória bíblica da gênese humana. Assim como Deus fez o
Homem à Sua imagem e semelhança, de modo análogo, o MESP constrói para os pais o lugar
do Criador, sujeito universal da FD cristã, projetando para o filho uma réplica dessa posição.
Há, desse modo, um recobrimento entre as posições projetadas para os pais, filhos e a forma-
sujeito cristã, o que evidencia um processo de identificação plena, colocando o aprendiz na
posição do “bom-sujeito”, isto é, aquele que reproduz o discurso dos pais terrenos e do Pai
Celeste.
É, portanto, valendo-se da posição de autor do outro que Nagib enuncia uma sentença
bastante recorrente no discurso do MESP: “Meu filho, minhas regras”. Essa formulação
estabelece uma relação interdiscursiva com um enunciado do discurso feminista – “Meu corpo,
minhas regras” –, retomando, contraditoriamente, uma memória de resistência e luta pela
autonomia do corpo feminino, e deslocando-a para o discurso do MESP na reivindicação pelo
direito a uma educação moral e religiosa dos filhos que esteja alinhada às convicções familiares.
Marca-se, dessa forma, uma substituição de corpo por filho que sinaliza um deslocamento de
FD. Nesse deslocamento, os sentidos passam a derivar: diferente do enunciado feminista, não
há na formulação produzida pelo MESP o efeito de domínio de si, empoderamento, mas de
propriedade do outro – dos filhos.
Outro aspecto relevante na SD é o fato de que, ao se referir ao sujeito-aprendiz, o
discurso do MESP não o toma como estudante (exceto em um único trecho), mas como filho.
Fala-se, portanto, da posição de pai, tomando como sinônimos aluno e filho, e dissolvendo,
assim, a esfera pública (posição social de aluno) na esfera privada (posição social de filho),
fazendo prevalecer convicções particulares (morais e religiosas) no âmbito público que é a
escola.
Ainda sobre a formulação “Meu filho, minhas regras”, é importante notar que o uso
dos pronomes possessivos produz o efeito de um sujeito-aprendiz enquanto posse, na medida
em que estabelecem uma relação entre o possuidor (pais) e a coisa possuída (filhos). Na mesma
formulação, ainda é possível observar uma cadeia de “paráfrase plausível” (PÊCHEUX, 2006)
textualizada em dizeres como: Meu filho segue minhas regras; Meu filho segue minhas
convicções religiosas e morais; Meu filho deve seguir minhas regras; Meu filho deve seguir
minhas convicções religiosas e morais; etc. Esses são dizeres possíveis que encontram eco na
formulação “meu filho, minhas regras”, produzindo o efeito de obrigatoriedade de que o
estudante esteja alinhado às convicções de seus pais. Dito de outra forma, tais formulações
atestam a produção de um efeito que projeta o imaginário de estudante como um prolongamento
63
do núcleo familiar. O sujeito-aprendiz, desse modo, é destituído, mais uma vez, de sua autoria,
figurando enquanto posse e projeção das convicções paternas. Legitima-se, assim, o sentido
permitido, isto é, quem o estudante pode e deve ser: reprodutor do discurso dos pais, com seus
valores e convicções.
Evidenciamos, portanto, o funcionamento de um discurso autoritário com relação às
formas de subjetivação do estudante, uma vez que “não há reversibilidade possível no discurso,
isto é, o sujeito não pode ocupar diferentes posições” (ORLANDI, 1993, p. 81), nem no espaço
escolar, nem no familiar. Funcionando pela imposição, a afirmação da autoridade dos pais sobre
os filhos é, pois, contraditoriamente simétrica à suposta doutrinação do professor. Esse viés
autoritário asfixia o sujeito-aprendiz, por interditar que este exerça a função-autor encarregada
de colocar, imaginariamente, o sujeito na origem do seu dizer, atribuindo-lhe responsabilidade
pelo que diz (ORLANDI, 2012). O aprendiz, nessa medida, é destituído de qualquer
responsabilização sobre seu modo de interpretar a si e ao mundo. Sua posição fica aprisionada
a um espaço de repetição, condenado a reproduzir as convicções dos pais e a assimilar os
conteúdos.
36
A posição do educador, na rede de memória educacional progressista, é caracterizada por sua politicidade e
criticidade. O educador é entendido como um interventor no processo educacional, de modo a construir, com o
aprendiz, o conhecimento necessário para promover a transformação da sociedade. A essa posição, é negada a
mera instrução e a neutralidade, uma vez que “ensinar exige compreender que a educação é uma forma de
intervenção no mundo” (FREIRE, 1996, p. 61). Essa posição é atacada no discurso do MESP, uma vez que
pressupõe, ao fazer pedagógico, pensar a política, questionar as relações de poder e os processos de exclusão e
desigualdade.
64
37
É o que observaremos nas análises das SDs 13, 14, 15, 16 e 17.
38
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GeZl6gLykYk
39
Disponível em: http://escolasempartido.org/educacao-moral/415-professor-nao-e-educador
65
função “esclarecer” a comunidade escolar sobre os limites do fazer docente e sobre a liberdade
de consciência do aluno.
Iniciemos nosso gesto analítico a partir do primeiro processo de asfixia que restringe
a identidade do SP, interditando a possibilidade de que este se inscreva na posição de educador.
SD10: É preciso que alguém se toque e deixe de dizer [...] que o professor educa.
Isso não é verdade, e se for verdade é uma desgraça. Quem educa é a família. E
os professores? Ensinam história, geografia, matemática, língua nacional, que é
a tarefa deles. Eu conheço pessoas quase analfabetas, sem instrução, que são muito
bem-educadas. Conheço. E conheço pessoas com curso superior que são de uma má
educação tremenda. Insuportável. Então, educação e instrução não é a mesma coisa
(MOREIRA, 2013).
SD11: Quem diz o que é moral ou imoral é o padre ou o pastor. É o pai e a mãe.
Não é o funcionário público. O funcionário público só faz aquilo que a lei determina.
[...] Burocrata não faz sermão. Burocrata aplica a lei. O professor é um burocrata.
Ele transmite aos alunos o conteúdo do currículo. Aquilo que está escrito e que foi
aprovado pelas autoridades competentes. Não lhe cabe dizer aos filhos dos outros o
que é certo e o que é errado em matéria de moral (NAGIB, 2017d).
A fala de Miguel Nagib foi recortada da mesma situação enunciativa da SD9, na qual
se realizava uma audiência pública que promovia o debate sobre o PL “Escola sem Partido”.
Na SD em destaque, o dizer de Nagib produz um jogo de imagens autorizadas e desautorizadas
a falar sobre moral aos filhos “dos outros”, isto é, aos filhos das famílias cristãs, as quais o
MESP se coloca como representante. Nesse sentido, de um lado, está a posição ocupada pelas
famílias e líderes religiosos, posições autorizadas a dizer o que é certo e o que é errado em
matéria de moral. Por outro lado, está a posição do professor/funcionário público/burocrata que
não é autorizada a tratar de questões morais com “os filhos dos outros”, por não estar inscrita
no espaço da religião, nem da família, mas do funcionalismo público. Nas palavras do
coordenador do MESP, quem diz o que é moral ou imoral é o padre, o pastor, o pai e a mãe,
não é o funcionário público.
Nesse jogo de imagens construído no discurso do MESP, a relação do sujeito-professor
com o dizível é alterada por meio da censura: a ele não é permitido enunciar dizeres, sentidos,
ligados à moral. É importante pontuar que a moral a que se refere o MESP está diretamente
ligada à “moral sexual”, como frisado ipsis litteris na justificativa do próprio PL inspirado nas
proposições do movimento. Desse modo, é possível interpretar que a interdição de que o
professor fale sobre moral faz referência indireta às abordagens pedagógicas sobre gênero e
sexualidade.
67
Ainda no plano do poder dizer, a formulação Não lhe cabe dizer [...] o que é certo e o
que é errado permite evidenciar o funcionamento da estrutura negativa como um vestígio da
interdição de sentidos não autorizados a esse sujeito, representado enquanto burocrata que faz
aquilo que a lei determina, aplica a lei e transmite aos alunos o conteúdo do currículo.
Silenciam-se, assim, outras posições para o SP. Desse modo, o dizer possível se torna o dizer
devido que exclui, obrigatoriamente, o sentido proibido de que o professor ocupe a posição
designada aos pais e líderes religiosos.
Constrói-se, assim, uma cena em que pais e religiosos estão para a moral, assim como
o sujeito-professor está para as leis e os conteúdos. É nessa medida que a censura intervém,
impedindo que o SP trabalhe a sua história de (e com os) sentidos, identificando-se, ou não,
com o imaginário de professor que trate de questões morais em sala de aula. Esse sentido, no
entanto, é interditado no discurso do MESP para que não ganhe densidade histórica,
legitimidade, ou “força identitária” no interdiscurso e na realidade social.
Nesse jogo de (des)autorização do dizer é onde reside a restrição da identidade e
consequente asfixia do professor, dado que não há possibilidade de deslocamento, apenas
repetição. Sua identidade é engessada no discurso do MESP, transitando entre as posições de
instrutor e burocrata. Outras possíveis posições para esse sujeito, sobretudo as posições
identificadas com o professor-educador, são proibidas e desqualificadas no interior desse
discurso, como é possível observar na próxima análise. Para tanto, retornamos à materialidade
do PL 867/2015, o Projeto Escola sem Partido, que propõe a afixação de um cartaz contendo
seis “deveres” do professor.
§ 1º. Para o fim do disposto no caput deste artigo, as escolas afixarão nas salas de aula,
nas salas dos professores e em locais onde possam ser lidos por estudantes e
professores, cartazes com o conteúdo previsto no Anexo desta Lei, com, no mínimo,
70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura, e fonte com tamanho
compatível com as dimensões adotadas (BRASÍLIA, 2015).
O PL, no entanto, apresenta esses deveres no próprio corpo do texto, em seu artigo 4º,
não anexando o cartaz, que pode ser encontrado na página do Programa Escola sem Partido no
Facebook.
anticomunismo foi um dos pontos predominantes do movimento de 64, assim como nos
protestos contra o governo Dilma Rousseff, em 2015, como evidenciado nas análises
empreendidas por Indursky (2016).
Outro ponto de articulação entre as conjunturas dos golpes de 64 e 2016 foi o discurso
da moralidade e da religiosidade enquanto elementos basilares para a estrutura social brasileira.
Conforme narra Dreifuss (1981, p. 298), na ocasião da Marcha conservadora de 64, o General
Nelson de Mello, ex-ministro da Guerra de João Goulart e participante da Articulação Civil-
Militar, fez um pronunciamento que não só falava à multidão, mas também sobre ela: "Nós
estamos presentes nesta demonstração a favor da consciência cristã do Brasil. Este é um dia
decisivo para a existência do Brasil. Nós temos fé nas Forças Armadas; nós temos fé na
Democracia". A defesa à “consciência cristã” é também sustentada no discurso do MESP, como
pudemos evidenciar em análises anteriores, servindo como justificativa para impor sua política
de asfixia que atualiza a memória de 64 pela perseguição às políticas de esquerda e culto à
moralidade e religiosidade.
O verde e o amarelo ostentados no cartaz, portanto, marcam uma posição conservadora
com relação à sociedade e, de modo mais específico, com relação à educação, fazendo retornar,
sob forma de um pré-construído, a discursividade produzida tanto nos protestos pró-
impeachment, quanto nos eventos que marcaram a Marcha da família com Deus pela liberdade,
evidenciando o combate à esquerda e a imposição do moral e do religioso. Um outro aspecto
relevante a se mencionar é o caráter coercitivo do cartaz que se mostra pela própria função que
ele assume: a de advertir sobre os “deveres do professor”, fazendo-se impor uma série de
proibições à prática docente. As proibições/interdições se materializam nas estruturas negativas
“não se aproveitará”, “não favorecerá, nem prejudicará”, “não fará, nem incitará”, “não
permitirá”, obedecendo uma mesma ordem sintática em que o adjunto adverbial de negação
antecede o verbo, remetendo a uma mesma estrutura oracional presente na memória bíblica dos
Dez Mandamentos: “não matarás”, “não furtarás” etc.
A relação entre a Lei de Deus e a “Lei” do MESP transcende, ainda, a organização
sintática, fazendo irromper no plano simbólico, um efeito que faz soar como pecaminosas as
práticas docentes reprovadas pelo movimento. Mas, quais pecados seriam esses, segundo o
MESP? Tentaremos explicitá-los, chamando atenção para os “deveres” nº 1 e 340.
40
A escolha por analisar apenas esses dois “deveres” se justifica pelo fato de que, os “deveres” 2 e 4 já são
princípios éticos da profissão docente, não apresentando neles a proposta do MESP. O “dever” 5, por sua vez, trata
da problemática que já discutimos com as análises da SD9. Já o “dever” 6, é apenas uma reiteração dos outros.
70
possível retirar cinco sequências discursivas que permitem observar os efeitos de e intimidação
e demonização já mencionados. As duas primeiras (SD13 e SD14) textualizam os efeitos de
intimidação a partir do recorte de um artigo41 escrito por Miguel Nagib, publicado no site do
MESP, e de uma imagem veiculada na página do Facebook do mesmo movimento. As três
últimas sequências são imagens publicadas nas páginas do Facebook do MESP (SD15 e SD16)
e do coordenador do movimento, Miguel Nagib (SD17) que constroem uma representação
específica do professor-educador enquanto um ser maléfico e sombrio, evidenciando os efeitos
de demonização.
Iniciemos pelo processo de intimidação, evidenciado nas SDs 13 e 14, a seguir.
41
Disponível em: http://escolasempartido.org/sindrome-de-estocolmo-categoria/647-mensagem-de-fim-de-ano-
do-coordenador-do-escola-sem-partido-ao-militante-disfarcado-de-professor
72
Schmitt (2008), pode ser descrita como uma discriminação entre amigos e inimigos, segundo a
qual, os amigos são representados pelas posições do MESP, dos pais e alunos (designados de
vítimas); e os inimigos, pela posição dos “professores militantes”. Os vestígios dessa oposição
podem ser observados a partir de formulações como “se elas (vítimas/alunos) não se
acovardarem ou se omitirem, você vai receber tantas intimações...”; “De minha parte
(Nagib/MESP), continuarei me esforçando para que molestadores empedernidos como você
sejam expelidos do sistema”; “Que seus alunos não caiam na sua conversa e os pais deles
estejam sempre de olho em você”. Elabora-se, desse modo, uma cena de antagonismo onde se
produz a intimidação que busca amordaçar, censurar o inimigo.
Como elucida Orlandi (1993, p. 110), a censura põe em jogo a identidade social do
indivíduo e sua relação com o Estado por meio do princípio da autoria, remetendo “à
responsabilidade do sujeito (autor) quanto ao que ele diz”. Nesse sentido, o sujeito é
responsabilizado pelo seu dizer, diante da lei. É por essa via que a censura irrompe no dizer de
Nagib, responsabilizando o “professor militante” quanto ao seu dizer/fazer pedagógico,
atribuindo-lhe caráter ilegal e remetendo-o, assim, à responsabilização de seu dizer/fazer, a
partir do aparelho jurídico punitivo.
Chega-se, assim, às ameaças de processos judiciais, de denúncias e, até mesmo, de
desemprego, como é possível verificar em formulações como “você pode acabar tomando um
processo nas costas”, “calcule o risco a que você está se expondo”, “professores com o seu
perfil passarão a encontrar cada vez mais dificuldade para arrumar emprego nas escolas
particulares”, “Se você soubesse como é fácil, no Brasil, processar outra pessoa, ficaria
bastante preocupado”, “você vai receber tantas intimações que...”. Note-se que as estruturas
destacadas em negrito como “se você soubesse... ficaria bastante preocupado”, produzem um
efeito de ameaça e intimidação ao inimigo que se pretende calar. Mas, o dizer de Nagib vai
além: ele não pretende apenas amedrontar/calar a posição do “professor militante”, mas a
“expelir do sistema”. Nessa medida, censura e ódio caminham juntos.
Ao teorizar sobre o ódio, Glucksmann (2007, p. 50) enuncia que este se constitui
enquanto uma “sede fundamental de destruir”. O desejo de que o inimigo seja expelido,
eliminado, desse modo, configura essa sede de destruição, também presente na fala de Bia Kicis
(SD1) pela ordem/súplica de que a “ideologia de gênero” fosse extirpada do Decreto nº 9.005/17
e da própria escola. Podemos evidenciar, portanto, o funcionamento de um discurso de ódio na
tentativa de não apenas calar o inimigo, representado como o “professor militante”, mas de
aniquilá-lo. Um funcionamento que também pode ser observado nos discursos totalitários,
como no fascismo e no nazismo.
73
É importante mencionar que o discurso de ódio “entoa uma fala articulada, sedutora
para um determinado grupo, que articula meios de opressão” (SCHÄFER, LEIVAS e SANTOS,
2015, p. 147). Nesse sentido, ainda apoiado na discriminação entre amigos e inimigos, o
discurso do MESP se direciona aos pais dos alunos a partir de uma fala atrativa por instaurar
um estado de alerta nos pais e de ameaça aos professores, produzindo mais efeitos de
intimidação e, ao mesmo tempo, instigando o ódio a esses sujeitos, como é possível verificar
na SD14.
segregação ao colocar em polos opostos amigo e inimigo (SCHMITT, 2008), convocando pais
a enfrentarem professores.
Os efeitos de intimidação até aqui analisados atestam o funcionamento coercitivo do
discurso de ódio presente no dizer do MESP, pondo em cena a construção de uma rivalidade
entre os pais e a posição-sujeito do professor, caracterizado como militante disfarçado. Essa
posição é “atacada” nesse discurso na tentativa de sufocá-la, via ameaça e coerção.
Nas sequências discursivas que analisaremos adiante, o sufocamento ocorre pela
demonização do sujeito-professor não identificado com o imaginário docente construído pelo
MESP, representado, nesse discurso como uma figura sombria, vampiresca, intensificando e
instigando o ódio e, até mesmo, a violência a essa posição, de modo a apagá-la, silenciá-la.
sujeitos são retratados “doutrinando” clandestinamente seus alunos “no segredo da sala de
aula”. O ambiente, igualmente sombrio, apresenta ainda a figura do que parece ser um boneco,
simulando a posição do sujeito-aprendiz, destituído de rosto, cabisbaixo e imobilizado por uma
camisa de força.
Um primeiro gesto analítico dessa materialidade nos remete às análises das SDs 7 e 8,
a partir das quais o estudante é representado enquanto um sujeito replicador, desprovido da
função de autoria, sem “face” própria, assim como na figura. Esse sujeito, em situação de
vulnerabilidade, encontra-se preso, não podendo movimentar-se, nem sair da posição em que
foi colocado. A ele cabe apenas a opção de deixar-se doutrinar pelos “militantes”. Esse retrato,
por si só, produz o efeito de demonização do professor, colocando-o numa posição
maquiavélica e agressiva de doutrinador, ao mesmo tempo que incita o ódio dos pais contra os
professores, sujeitos que, pela cena construída, violentam seus filhos, privando-os de liberdade.
Os dizeres enunciados pelas figuras sombrias sintetizam três temas recorrentes no
discurso mespiano – gênero (“ideologia de gênero”), politicidade/neutralidade da educação e a
relação escola/família –, remetendo, cada um a seu modo, à posição construída para o
“professor militante”, representado enquanto um sujeito que doutrina moral, ideológica e
politicamente os aprendizes.
Na formulação “ninguém nasce homem ou mulher”, retoma-se o enunciado “Ninguém
nasce mulher, torna-se mulher”, da feminista e filósofa estruturalista Simone de Beauvoir,
deslocando-o de uma discussão teórica sobre gênero enquanto construção sociocultural, para
dar-lhe outro sentido, o de doutrinação sobre a sexualidade e a identidade de gênero dos
estudantes, fazendo referência às práticas pedagógicas que abordam tais temáticas. Há, desse
modo, um efeito de distorção sobre o debate de gênero nas escolas, representado enquanto
prática doutrinária de sujeitos sombrios e mal-intencionados.
Já a formulação “Diga: fora Temer” evidencia a prática de doutrinação político-
partidária que o MESP atribui aos professores “militantes”, marcando para esses sujeitos uma
posição “de esquerda”, contrária ao governo de Michel Temer, produzindo o efeito de que os
militantes/doutrinadores são “esquerdistas”. Temos, aqui, um outro efeito de deturpação que
estigmatiza uma posição política específica para o professor, interditando-a pelo viés da
desqualificação.
No terceiro dizer (Seus pais não sabem nada. Nós sabemos o que é bom para você!),
o MESP traz à tona a relação escola-família, produzindo efeitos de rivalidade entre essas
instâncias ao construir uma cena de confronto entre pais e professores (Seus pais x Nós, os
professores) potencializada por uma provocação (Já olhou o material didático do seu filho
76
hoje?) que incita à fiscalização quanto aos conteúdos ministrados, reforçando uma atmosfera
de desconfiança a práticas doutrinárias com relação à política, gênero e sexualidade. Instaura-
se, desse modo, um discurso de suspeição sobre a atividade docente e uma espécie de embate
entre pais e professores, alimentando a divisão e contenda social pelo recurso ao discurso de
ódio, que se sustenta pela “arte de conservar, nutrir, ampliar uma cólera” (GLUCKSMANN,
2007, p. 55).
Seguindo a narrativa do ódio produzida no discurso do MESP, observamos, na SD16,
mais um efeito de demonização que visa asfixiar a posição do educador, enquadrando-a numa
representação vampiresca que subtrai sua feição humana, transformando-o em um monstro
sanguinário, uma ameaça social.
SD16: “Professor vampiro”
aderiu à campanha para instalação dessa CPI, compartilhando a imagem representada na SD16
em sua página do Facebook.
A figura em análise reproduz a imagem de um vampiro, uma figura ameaçadora, de
olhos arregalados e sangue escorrendo pelos lábios. Essa criatura, representando o chefe da
militância disfarçada de docência (expressão indicada na postagem), convoca seus iguais a
combaterem a instalação da CPI a partir dos dizeres: Atenção vampirada! Agora é todo mundo
contra a CPI da doutrinação! – palavras destacadas em vermelho que remetem ao sangue das
vítimas, retratadas no discurso do MESP como sendo os estudantes.
A imagem vampiresca se vale do uso político da memória do medo, ativando sentidos,
no interdiscurso, referentes ao terror, o que provoca um efeito de repulsa aos professores ditos
doutrinadores. É preciso lembrar que esse “sujeito doutrinador”, objeto do discurso de ódio,
não é o indivíduo em si, mas um grupo social, posições-sujeito identificadas com a forma-
sujeito educadora progressista, ou “de esquerda”, como nomeia o MESP. Produz-se, desse
modo, o que Silva et al. (2011) chamam de vitimização difusa, que é resultado de um ataque
de ódio, o qual não permite distinguir nominal ou numericamente suas vítimas, atingindo, direta
ou indiretamente, toda a categoria docente.
O ódio, desse modo, dirige-se aos professores, tendo em vista “expelir do sistema”
aqueles não identificados no discurso do MESP. A asfixia, nesse caso, se realiza via efeito de
demonização do professor-educador, retirando-lhe a qualidade humana, denegrindo e
violentando a posição onde ele se inscreve. Esse ódio, no entanto, não é produzido
arbitrariamente, mas possui raízes históricas, que podem ser evidenciadas a partir da análise da
SD 17.
SD17: “Vampiro com estaca”
Michel Pêcheux
ritual, acrescentando que esse entendimento “supõe o reconhecimento de que não há ritual sem
falha, desmaio ou rachadura” (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 17]). É nesse ponto em que é possível
articular linguagem e revolução, linguagem e irrupção do irrealizado, através da figura da
interpelação ideológica: a tomada de “uma palavra por outra”, movimento que designa a
metáfora, evidencia, também, o ponto de ruptura do ritual no lapso ou no ato falho. Dessa
compreensão, decorre a definição discursiva de resistência:
Não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens; não repetir as litanias ou
repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige silêncio; falar sua língua como uma
língua estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido das palavras e
das frases; tomar enunciados ao pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e
desestruturar o léxico jogando com as palavras (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 17]).
nesses moldes que a interpelação ideológica ocorre em nossa conjuntura, e se é nas rachaduras
da interpelação/individuação que a resistência emerge, Orlandi (2016) conclui que
42
Sobre esse deslocamento no modo de individuação, a autora reflete sobre os sujeitos que rompem com a ordem
jurídica, individuando-se pela falha do Estado. É o caso, por exemplo, dos pichadores, chamados “delinquentes”.
83
Esses objetos implicados nas lutas ideológicas de movimento constituem aquilo que
Pêcheux (1991 [2014]) vai chamar de objetos de paradoxo lógico, ou objetos paradoxais, por
apresentarem a propriedade de, a um só tempo, serem antagônicos e idênticos entre si. Tais
objetos “existem como relações de forças historicamente móveis” (PÊCHEUX, 1991 [2014],
p. 97), funcionando como unidades divididas. No caso do confronto discursivo entre o MESP
e o MPCESP, a educação constitui um objeto paradoxal, que, ao mesmo tempo, é representado
pelos movimentos de modo idêntico e antagônico, dado que os sentidos atribuídos à educação
significam diferentemente nesses discursos, dividindo-se entre a despolitização (neutralidade)
e a politização, entre a religiosidade e a laicidade, entre o social e o individual.
Nessa perspectiva, pensamos a política de significação do MPCESP como o lugar de
uma resistência circunscrita à luta ideológica de movimento em torno da educação. Nessa luta,
o discurso do MPCESP resiste à política de asfixia do MESP, produzindo choques de
deslocamento que reinscrevem o imaginário educacional no campo do político. Chegamos,
assim, à definição do que propomos chamar de Política de Resistência do MPCESP: um
processo discursivo que trabalha de modo a conter a Política de Asfixia do MESP, produzindo
pontos de resistência aos efeitos de i) despolitização dos objetos de ensino, ii) esvaziamento da
função-autor do sujeito-aprendiz e de iii) restrição e demonização do sujeito-professor.
4.1. A resistência à asfixia dos objetos de ensino: o que (não) pode/deve ser ensinado.
43
É importante pontuar que, embora essas textualidades tenham sido produzidas por instituições e associações não
vinculadas diretamente ao MPCESP, suas posições, identificadas com a forma-sujeito educadora/progressista,
coincidem com a posição do movimento. Por essa razão, tomamos tais materialidades como representativas da
política de resistência à asfixia do MESP.
84
dos objetos de ensino e um efeito de reiteração dos sentidos já legitimados pela legislação
vigente, que evidenciam o caráter político do processo de ensino-aprendizagem. Vejamos como
esses efeitos são produzidos.
Logo de início, chamamos atenção para o fato de que, por se constituir enquanto um
contradiscurso, o dizer do MPCESP é marcado pela regularidade de evocar a presença de seu
opositor, realçando a posição daquele contra quem se luta (PÊCHEUX; WESSELIUS, 1973
[1977]). Exemplos dessa regularidade podem ser observados nas cinco SD que integram esse
recorte analítico, através de referências ao nome e à posição do movimento Escola sem Partido.
Nessa retomada do discurso antagônico, é possível observar o funcionamento da
resistência na produção de um deslocamento que faz derivar o sentido de doutrinação
construído pelo MESP. Como nos fala Pêcheux (1982 [1990, p. 17]), o gesto de “mudar,
desviar, alterar o sentido das palavras e das frases”, constitui um modo de resistir. No dizer em
destaque, discutir aspectos como sustentabilidade, igualdade de gênero, diversidade de
orientações sexuais não constitui doutrinação partidária, do contrário: essas temáticas são
defendidas na SD18 como aquilo que pode/deve ser ensinado, uma vez que abarcam a dimensão
política, destacada como critério para que haja educação: não se faz educação sem dimensão
política. Destacamos, aqui, o funcionamento da negação que, conforme Lagazzi-Rodrigues
(1999, p. 129), “produz diferentes lugares discursivos, diferentes posições de sujeito, diferentes
fatos”. Nesse sentido, assumimos que a negação possui um duplo funcionamento no qual
produz-se uma posição, rejeitando outras. A estrutura negativa, desse modo, funciona nessa
formulação num movimento de mão dupla que rejeita a despolitização dos objetos de ensino,
reafirmando, ao mesmo tempo, seu caráter político.
44
Moção de repúdio elaborada em Assembleia Geral Ordinária, durante o X Encontro de Pesquisa em Educação
em Ciências (ENPEC), no dia 26/11/2015 pela Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências
(ABRAPEC) e a Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio). Disponível em:
http://abrapecnet.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2015/12/Escola-sem-partido.pdf.
85
Por outro lado, a prática doutrinária é designada, no dizer em análise, como o ato de
limitar a discussão em sala de aula acerca da diversidade de ideias, valores e atitudes
existentes na sociedade brasileira. Nesse deslocamento, produz-se uma inversão que marca
outro ponto de resistência: aqui, o agente doutrinador não é o professor, mas o MESP, por conter
a diversidade (de ideias, valores e atitudes), contendo, em consequência, o sentido outro.
Evidencia-se, assim, uma tomada de posição inscrita em uma FD progressista que
produz um imaginário de educação política, aberta à polissemia dos sujeitos e dos sentidos por
significar os objetos de ensino como espaços que privilegiam a diversidade. Aqui, é importante
pontuar que “toda tomada de posição implica um gesto de resistência” (GRIGOLETTO; DE
NARDI, 2016, p. 280), tendo em vista que, ao se identificar com determinada posição, os
sujeitos e os sentidos, necessariamente, resistem a tantas outras. Nessa tomada de posição, o
MPCESP resiste à posição do MESP, marcando para si um lugar autointitulado contrário ao
Escola sem Partido (Movimento Professores contra o Escola sem Partido), ou, como veremos
na SD19, contrário à Escola com Mordaça.
SD19: Nós da Frente Goiana pela Escola sem Mordaça, formada por sindicatos de
trabalhadores da educação, movimentos sociais e coletivos de luta, defendemos que
a educação e a escola devem formar cidadãos através do debate sobre
diversidades culturais, de gênero e sexualidade, além de questões políticas e
sociais. A Lei da Mordaça quer na verdade impedir a livre organização social,
ameaçando o próprio direito constitucional de liberdade, pensamento e expressão,
bem como eliminando a autonomia de trabalho do professor45.
45
Manifesto de repúdio à Lei da Mordaça, Frente Goiana por uma Escola sem Mordaça. Disponível em:
http://sintef.org.br/wp/wp-content/uploads/2016/08/Manifesto-de-Rep%C3%BAdio-%C3%A0-lei-da-
morda%C3%A7a.pdf.
86
(PAYER, 2006, p. 64) sobre o “real propósito” do MESP que, segundo o movimento, seria o
de minar a possibilidade de um trabalho docente de qualidade; esvaziar a educação de sua
função social (SD18); impedir a livre organização social; ameaçar os direitos constitucionais
da liberdade, pensamento e expressão; e eliminar a autonomia do professor (SD19).
Os verbos em destaque que (d)enunciam, imaginariamente, a “verdade” sobre o MESP
fazem referência a ações coercitivas de censura (minar, esvaziar, impedir, ameaçar e eliminar),
uma censura que, conforme formulado nas SD18 e SD19, impõe-se à qualidade e autonomia
do trabalho docente, à função social da educação, à livre organização social, aos direitos de
liberdade, pensamento e expressão. Tal censura é denunciada nesse discurso por afetar
diretamente a posição do professor-educador, na qual o MPCESP se inscreve. Nesse sentido, a
denúncia à censura irrompe no dizer em análise como um gesto de resistência que, além de
marcar o antagonismo ao MESP, reafirma a posição-sujeito do MPCESP.
A própria designação “Lei da Mordaça” que aparece na SD19, fazendo referência aos
Projetos de Lei Escola sem Partido, evidencia uma escolha lexical que produz esse efeito da
denúncia de que há, nos PL, uma tentativa de amordaçar, isto é, censurar os professores, bem
como a função política e social do processo de ensino-aprendizagem. Em contraposição a essa
censura, o movimento toma para si o título de Escola sem Mordaça, reafirmado sua posição de
resistência.
É preciso lembrar que o efeito de denúncia também é produzido no discurso do MESP,
mas a partir de outro funcionamento, o da asfixia, que denuncia a “doutrinação” de modo a
silenciar/sufocar a posição do professor educador/progressista, ou silenciar os sentidos que
politizam o imaginário sobre a educação nacional, ao passo que, no discurso do MPCESP, a
denúncia aparece como um gesto de resistência a esse silenciamento, um gesto que (d)enuncia
quando o MESP impõe seu silêncio.
Na SD20, a resistência à asfixia dos objetos de ensino se realiza a partir de um
deslocamento dos sentidos produzidos pelo MESP referentes à imposição da moral familiar
sobre aquilo que pode/deve ser ensinado. Nesse deslocamento, o MPCESP representa os
objetos de ensino enquanto elementos não subordinados às convicções familiares, mas às
demandas sociais.
SD20: Se uma família não aceitar a justiça social, por exemplo, não considero justo
e adequado a moral familiar se sobrepor à missão da educação escolar. Se a família
tiver uma postura discriminatória, por exemplo, a moral familiar deve ser
enfrentada e não pode se sobrepor à educação escolar. A família precisa ser
considerada como parte da sociedade. Mas não pode ser maior do que o todo
(CARA, 2018).
87
SD21: Quando se diz [...] "homofobia não é tema da sala de aula", quanto
sofrimento isso não vai gerar pra alunos que inclusive vão sair da escola, deixar de
aprender por conta disso? Quando você coloca que racismo não é tema da sala de
aula, quantos alunos não vão continuar sofrendo racismo? E isso vai gerar um
ambiente no qual uma grande parcela da nossa sociedade não vai ter condições de
88
aprender o que quer que seja. Então, essa neutralidade, quando você, o professor,
como se o professor só pudesse transmitir conhecimento, ele deixaria que a sala de
aula se tornasse um espaço onde todos os piores elementos da nossa sociedade sejam
reproduzidos. Se o aluno faz, então, um comentário de ódio voltado ao outro.
Racismo! Ele faz um comentário racista. Dentro da lógica do Escola sem Partido,
o professor teria que falar "olha, esse comentário é impertinente porque tá
atrapalhando a nossa transmissão do conhecimento, então, por favor, parem com isso
senão vocês vão ser penalizados". Como pensa o educador? Esse, quando você vê um
caso de homofobia, de machismo, de racismo, você não vai parar a sua discussão de
história, de geografia, sociologia, matemática, física, pra trabalhar esses temas.
Aquilo ali é um tema, se você é um educador. [...] Você vai pegar aquele caso de
racismo e tentar entender historicamente porque na nossa sociedade, hoje, e essa é
uma decisão democrática, nós não aceitamos o racismo como uma prática. E isso é
importante na formação de todos os alunos que estão em sala de aula na criação desse
espaço democrático. E com relação a essas temáticas, não pode existir neutralidade.
A nossa Constituição, todos os documentos que nós assinamos internacionalmente,
eles garantem que a educação, ela deve combater as formas de desigualdade, inclusive
a de gênero. E ela deve formar pra uma educação democrática. [...] Com relação a
isso, não há neutralidade. O professor deve mobilizar os valores do diálogo com a
diferença, convívio democrático, espaço público. Esses são valores que o professor
mobiliza, deve mobilizar em sala de aula, sim (PENNA, 2017c).
46
Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=nNw91eltCCw.
89
Por outro lado, o enunciador aponta para aquilo que não pode estar presente no ensino:
a neutralidade. No dizer de Penna, manter-se neutro frente a manifestações de intolerância que
podem ocorrer, inclusive, na própria sala de aula, significa reproduzir a desigualdade. Há, aqui,
a produção de um deslocamento com relação ao discurso do MESP: o sentido de neutralidade
não se refere à justiça, mas, do contrário, à perpetuação das injustiças. Produz-se, assim, um
efeito de rejeição à neutralidade (“não pode haver neutralidade”) que põe em funcionamento
um gesto de resistência: o que pode e deve se fazer presente na escola (a política a e diversidade)
se coloca, no dizer de Penna, como sendo aquilo que resiste à asfixia do MESP (a neutralidade
que reproduz a desigualdade). Emerge, assim, o confronto entre politização e neutralidade,
imaginários sobre a educação que sustentam as posições dos movimentos antagônicos.
Outra oposição evidente na SD21 diz respeito à construção de uma cena onde figuram
as representações do instrutor e do educador. Nessa cena, a fala de Penna põe em funcionamento
um jogo de imagens que evidencia o confronto entre essas posições-sujeito, trabalhando, em
consequência, o embate entre as FD nas quais elas se inscrevem. Novamente, o confronto
politização x neutralidade é destacado de modo a problematizar o discurso do MESP e, a um
só tempo, apresentar um ponto de ruptura a ele, fazendo emergir a resistência. Um exemplo
desse funcionamento pode ser observado na formulação como se o professor só pudesse
transmitir conhecimento. Aqui, a forma verbal no subjuntivo somada a expressão “como se”
produz um efeito que remete ao plano hipotético, ao não realizado. Assim, numa paráfrase da
mesma formulação, seria possível dizer: Como se o professor pudesse apenas transmitir
conhecimento, descolado das dimensões políticas e sociais, mas não pode. Nega-se e, portanto,
resiste-se à posição de instrutor e ao imaginário de um ensino destituído de sua feição política,
fazendo irromper o confronto politização x neutralidade.
A resistência à asfixia dos objetos de ensino aparece, ainda, na SD21, pela produção
de um efeito de aliança entre o discurso oficial do Estado e o do MPCESP, como podemos
evidenciar no trecho: A nossa Constituição, todos os documentos que nós assinamos
internacionalmente, eles garantem que a educação, ela deve combater as formas de
desigualdade. É interessante notar que, ao se colocar enquanto “nós”, o enunciador evidencia
um recobrimento entre a sua posição e a posição oficial do Estado, no que se refere à esfera
educacional, evocando a Constituição e os documentos oficiais. É importante lembrar que a
chamada Constituição Cidadã é marcada por uma memória de resistência à ditadura e à
desigualdade, filiando-se à FD educacional progressista. Identificando-se, pois, com a
discursividade constitucional, o dizer em análise legitima sua posição de resistência à
desigualdade. Assim, as formas de desigualdade são colocadas nesse discurso como objetos de
90
ensino que devem ser problematizados em sala de aula, de modo a construir caminhos para a
sua superação.
Na SD22, o tema do combate à desigualdade é também trazido à tona no dizer do
professor Penna por meio de um debate orientado pela temática da “Democracia Radical”. O
debate, organizado pelo MPCESP, textualiza-se na forma de um podcast publicado no blog
“Sobre História”47. A SD em destaque nos chama a atenção por apresentar dois diferentes
movimentos de resistência: a resistência à asfixia dos objetos de ensino e uma outra resistência
que se desloca do embate direto com o MESP, trazendo à tona uma oposição entre a escola
existente e a escola que vai se lutar para construir.
47
Ver em: http://www.sobrehistoria.blog.br/podcast/pcesp2-democracia-radical/
91
ilusão de que a coletividade tudo pode realizar, o MPCESP busca construir uma
cultura/educação/escola democrática que combata todas as desigualdades.
Ainda na SD22, destacamos o gesto de resistência que se desloca do embate direto
com o MESP, produzindo uma outra oposição entre a Escola que existe e a Escola que vai se
lutar para que seja. Nesse embate, o enunciador produz um efeito de distanciamento entre a
posição do MPCESP e a posição na qual a “Escola existente” se inscreve (Então não é "Ah, a
gente tá defendendo a escola que existe”. Não!), produzindo, em contrapartida, o efeito de
proposição de um novo ainda em elaboração: a gente tem que construir ainda muita coisa.
Nesse sentido, a escola que se quer, ainda irrealizada, é projetada no espaço equívoco do vir a
ser. A resistência do MPCESP, desse modo, irrompe não apenas pelo efeito de politização dos
objetos de ensino, mas na proposição de um outro imaginário de educação a ser construído:
uma educação democrática que combata todas as formas de desigualdade.
Como pudemos evidenciar, a resistência à asfixia dos objetos de ensino irrompe no
discurso do MPCESP por meio de gestos de resistência à despolitização, que reinscrevem a
educação no campo do político, produzindo uma abertura dos sentidos sobre o imaginário
educacional, em contraposição ao fechamento e a univocidade evidenciada no discurso do
MESP. Passemos, agora, ao processo de resistência à asfixia do sujeito-aprendiz.
SD23: Então, quando um professor, um educador, ele fala que o aluno não é uma
folha em branco não existe nenhuma tentativa de hierarquizar as capacidades críticas
de ninguém, comparar a do aluno com outros alunos, ou entre o aluno e professor.
Existe uma tentativa de dizer que o aluno é capaz de fazer críticas, ele é capaz de
92
entender a realidade na qual ele convive e que a escola tem um papel importante nessa
discussão (PENNA, 2017d).
Note-se que o dizer em análise estabelece uma disjunção entre quem o aluno não é e
quem o aluno é. Destacamos, inicialmente, a designação sobre quem esse sujeito não é: uma
folha em branco. Essa metáfora, trazida no dizer de Penna, constitui uma formulação inscrita
na rede de memória educacional progressista, que reverbera no discurso de educadores,
produzindo o efeito de rejeição ao imaginário do aprendiz enquanto um sujeito despossuído de
determinações sociais, culturais e ideológicas que orientam seu modo de interpretar a si e ao
mundo. Por essa metáfora, assim, resiste-se ao imaginário do aprendiz não-autor.
Por outro lado, o estudante é projetado como um sujeito de densidade histórica,
trazendo para a escola, saberes e sentidos próprios da sociedade na qual está inserido e, desse
modo, não pode/deve ser uma folha em branco. Esse imaginário do aluno encontra eco em
correntes pedagógicas progressistas como a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire (1996),
que concebe o reconhecimento da autonomia do estudante como um imperativo ético para a
escola e o professor. Produz-se, assim, o efeito de autoria do sujeito-aprendiz como alguém que
pensa por si mesmo.
O mesmo efeito de autoria pode ser observado na SD24, retirada de um artigo escrito
pelo colunista Contardo Calligaris, publicado na Folha de São Paulo e compartilhado na página
do Facebook do MPCESP.
SD24: Sou contra doutrinação, de todo tipo. Justamente por isso, parece-me bom que
os professores proponham conteúdos diferentes do que os pais já pensam e já tentam
impor às crianças. Sem isso, ir para a escola para o quê? Aluno bom é o que critica
a casa graças ao que aprende na escola, e a escola graças ao que aprendeu em
casa (CALLIGARIS, 2016).
professor/escola, mas, embora afetado por essas instâncias, constitui-se enquanto um sujeito
crítico, autor do próprio dizer. Nesse deslocamento, família e professor/escola, figuram como
instituições não antagônicas, mas complementares na formação do bom aluno: um sujeito
crítico e autônomo.
O efeito de criticidade e autonomia do sujeito-aprendiz ainda pode ser visualizado na
SD25, recortada de uma publicação do site do MPCESP intitulada “7 perguntas e respostas
sobre o Escola sem Partido”.
SD26: Ao mesmo tempo que o discurso do “Escola Sem Partido” ataca e cria uma
campanha de ódio aos professores, ele também atinge os alunos, que têm muito a
dizer sobre a escola onde estudam e a sociedade onde vivem. Ao tratá-los como
“audiência cativa” nas escolas, ou como “presas indefesas” da tão falada mas nunca
explicada “doutrinação ideológica”, as vozes desses alunos são caladas. Dizer que
os estudantes só se engajam politicamente porque professores os manipulam é evitar
94
SD27: O Programa Escola Sem Partido tem uma visão limitada da docência. Encara-
se o professor como um profissional, meramente, transmissor do conhecimento aos
alunos, não levando em conta a reflexão, a crítica, a dúvida e o questionamento. A
docência não se resume somente à transferência de conhecimento e reprodução
padronizada de livros didáticos. Professores são também educadores e, por isso, não
têm apenas um papel mecânico como profissão, mas, sim, a capacidade de educar
jovens e transformar a sociedade em que vivemos (UNIVERSIDADE DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO, 2016).
SD28: Vão seguir existindo, sim, professores com diferentes ideologias, diferentes
pontos de vista, em todas as escolas do Brasil. E vão existir, sim, professores com
liberdade pedagógica, se utilizando de todo e qualquer método e falando de todo e
96
qualquer assunto porque isso é um princípio pra garantir qualquer condição mínima
pra educação (BOMFIM, 2017).
como parte integrante, representando o professor não pelo predicativo de monstros, mas como
profissionais confiáveis, qualificados para intervir em casos de discriminação. Seu dizer de
valorização ao professor, assim, é formulado do lugar da sociedade e do lugar do educador. Há,
portanto, a produção de um efeito de aliança entre MPCESP e sociedade que evidencia um
recobrimento de posições, o que nos parece ser uma estratégia discursiva que produz o efeito
de identificação entre povo e MPCESP.
Nesse sentido, a partir do uso desse nós, que traz a reboque as posições antagônicas do
MESP e do MPCESP, o dizer em análise resiste à asfixia do sujeito-professor através da
denúncia ao efeito de demonização engendrado no discurso do MESP e da inversão desse efeito
que faz deslizar a posição de monstros para profissionais de credibilidade. Uma palavra por
outra(s), um gesto de resistência.
Seguimos a análise com a SD30, constituída por um cartaz publicado na página do
Facebook do MPCESP em resposta aos “deveres do professor”. Aqui, observamos diferentes
gestos de resistência que se articulam de modo a ressignificar essa materialidade, produzindo
os efeitos de (re)afirmação e valorização do professor-educador.
99
As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens; não repetir
as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige silêncio; falar sua
língua como uma língua estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o
sentido das palavras e das frases; tomar enunciados ao pé da letra; deslocar as regras
na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as palavras (PÊCHEUX, 1982 [1990,
p. 17]).
100
SD31: A serenidade que bate quando o aluno entende que direitos humanos não é
"coisa de esquerdalha".
SD32: Minha reação quando meu aluno entende que candomblé não é coisa do
demônio.
SD33: Como eu me sinto quando o aluno entende que violência de gênero é um
problema estrutural.
104
Note-se que, pelo modo como as orações estão formuladas, a estrutura “quando o
(meu) aluno entende” se repete, como numa cadeia parafrástica, na qual o complemento ao
verbo entender vai assumindo diferentes sentidos filiados a uma mesma rede de memória
progressista. Produz-se, assim, um efeito de contentamento do educador quando o aluno
entende que os direitos humanos devem ser defendidos por todos, independentemente de sua
filiação político-ideológica (SD 31); que o candomblé é uma religião como qualquer outra (SD
32); e que a violência de gênero é um problema que está na base de nossa formação social (SD
33). A posição do educador, desse modo, se reafirma nesse discurso, quando o aluno entende,
de modo democrático, as diferenças socioculturais.
Por essa representação política do sujeito-professor, nega-se, portanto, o pré-
construído do discurso do MESP, no qual a diversidade é interditada. Ao negar esse pré-
construído, o discurso do MPCESP faz trabalhar, pelo humor, outros saberes e sentidos que se
inscrevem na FD educacional progressista, onde é produzido o entendimento de que “qualquer
discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever” (FREIRE, 1996, p. 35).
Como pudemos evidenciar, a resistência à asfixia do sujeito-professor irrompe no
discurso do MPCESP pelos efeitos de (re)afirmação da posição de educador e rejeição à posição
do burocrata/instrutor, bem como à posição que desumaniza o professor
(monstro/aproveitador/sequestrador). Há, portanto, uma tomada de posição do movimento pela
valorização da identidade profissional do educador, como forma de resistência a sua restrição e
demonização.
O investimento analítico que empreendemos neste Capítulo pôde ilustrar o
funcionamento de uma discursividade polêmica que refuta, contesta, desloca e joga com o
discurso antagônico, de modo a resistir à asfixia que se impõe. De modo mais específico, no
Recorte RAO, verificamos o processo de resistência aos efeitos de despolitização dos objetos
de ensino, por meio da reiteração dos valores e princípios preconizados pela Constituição e pela
LDB, que realçam o caráter político do processo educacional. Observamos, ainda, a produção
de efeitos de rejeição à neutralidade, significada, nesse discurso, como mecanismo de
reprodução das desigualdades.
Pelo Recorte RAA, pudemos observar uma construção discursiva da posição do
aprendiz enquanto um sujeito autor de si, autônomo e responsável pelos sentidos que produz.
Um sujeito de densidade histórica, que tem muito a dizer. O efeito de um estudante folha em
branco é denunciado no discurso do MPCESP como meio de calar questões e demandas
estudantis.
105
Com o Recorte RAP, foi possível verificar a defesa da posição política do educador,
que teima em (r)existir frente à asfixia materializada na imagem do instrutor/burocrata ou do
sequestrador/monstro. Essa (r)existência se produz, ainda, pelo efeito de denúncia à
demonização do sujeito-professor, e pelo efeito de valorização da identidade profissional do
educador.
Retornando à epígrafe que abre este Capítulo, diríamos que o discurso do MPCESP
fala quando o MESP exige silêncio, jogando com as palavras, “formando sentido do interior do
sem-sentido” (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 17]), implicando, nesses deslocamentos, gestos de
resistência à asfixia. Essa resistência, de modo geral, faz recordar a política esquecida pelo
MESP, produzindo o efeito de politização do imaginário educacional.
106
Por que não estabelecer uma necessária "intimidade" entre os saberes curriculares
fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por
que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos
dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso?
Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que
ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los
aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos (FREIRE, 1996, p. 17) (GRIFO
NOSSO).
Temos, assim, que a resistência que irrompe no discurso do MPCESP já produzia seus
efeitos na pedagogia freireana, atualizando-se nessa rede de memória, de modo a conter a
asfixia pela reiteração de uma (r)existência democrática, pluralista e crítica da educação
brasileira.
Feitas essas considerações, caminhamos para o efeito de fecho de nosso gesto
analítico, que é, também, um gesto de linguagem, e, por isso mesmo, incompleto. Por essa
razão, abre-se a novas leituras e interpretações, constituindo uma via, dentre tantas outras
possíveis, para refletir sobre o discurso político-educacional contemporâneo.
Nessa reflexão que empreendemos, o batimento entre descrição e interpretação nos
possibilitou contribuir para a compreensão do modo como as discursividades do MESP e do
MPCESP se inscrevem na luta ideológica de movimento em torno da educação nacional,
tensionando, assim, um espaço antes assentado sob filiações progressistas. Entre a asfixia e a
resistência, o imaginário sobre a educação tem sido trabalhado na/pela linguagem, e pudemos
evidenciar esse funcionamento pela reflexão sobre silêncio, sentido e resistência.
Não poderíamos, todavia, concluir nosso gesto analítico sem tomar posição, ou tomar
partido, frente aos sentidos que se colocam na conjuntura contemporânea sobre o imaginário
110
REFERÊNCIAS
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Editorial Presença, 1979.
ARENDT, H. O Que é Política? Trad. Reinaldo Guarany. 6.ed. Rio de Janeiro: Bertrand
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SOUZA, J. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de
Janeiro: LeYa, 2016.
ANEXOS
ANEXO
DEVERES DO PROFESSOR
III - O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará
seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.
V - O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação
moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
VI - O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam
violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.
123
JUSTIFICAÇÃO
48
http://escolasempartido.org/component/content/article/2-uncategorised/484-anteprojeto-de-lei-
estadual-e-minuta-de-justificativa
124
pelos próprios estudantes contra seus colegas. Em certos ambientes, um aluno que
assuma publicamente uma militância ou postura que não seja a da corrente dominante
corre sério risco de ser isolado, hostilizado e até agredido fisicamente pelos colegas.
E isso se deve, principalmente, ao ambiente de sectarismo criado pela doutrinação;
15 - Ora, se cabe aos pais decidir o que seus filhos devem aprender em
matéria de moral, nem o governo, nem a escola, nem os professores têm o direito de
126
usar a sala de aula para tratar de conteúdos morais que não tenham sido previamente
aprovados pelos pais dos alunos;
Note-se por fim, que o projeto não deixa de atender à especificidade das
instituições confessionais e particulares cujas práticas educativas sejam orientadas
por concepções, princípios e valores morais, às quais reconhece expressamente o
direito de veicular e promover os princípios, valores e concepções que as definem,
exigindo-se, apenas, a ciência e o consentimento expressos por parte dos pais ou
responsáveis pelos estudantes.”
Deputado IZALCI
PSDB/DF
ESP.MFUN.NGPS.2015.03.18
128
“Art. 3º...........................................................................
.......................................................................................
XIII – respeito às convicções do aluno, de seus pais ou
responsáveis, tendo os valores de ordem familiar
precedência sobre a educação escolar nos aspectos
relacionados à educação moral, sexual e religiosa,
vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no
ensino desses temas.” (AC)
JUSTIFICAÇÃO
Fonte: Página do Facebook do movimento Escola sem Partido. Disponível em: https://pt-
br.facebook.com/escolasempartidooficial/. Acesso em 10 de maio de 2018.
Fonte: Página do Facebook do movimento Professores contra o Escola sem Partido. Disponível em: https://pt-
br.facebook.com/contraoescolasempartido/. Acesso em 10 de maio de 2018.
131
Fonte: Site do movimento Escola sem Partido. Disponível em: http://www.escolasempartido.org. Acesso em 10
de maio de 2018.
132
Fonte: Site do movimento Professores contra o Escola sem Partido. Disponível em:
https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/Acesso em 10 de maio de 2018.