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Martinez de Pasqually
Apesar de geralmente tomarmos a maçonaria atual por uma ordem tradicional com um
sistema coerente, nem sempre foi assim. Desde a medievalidade, as guildas de artesãos
vinham recebendo e auxiliando refugiados das mais diversas naturezas – pensadores,
alquimistas, templários – e, ao longo do tempo, as corporações operativas absorveram a
bagagem e tradição de diversas correntes culturais e filosóficas, de forma que as antigas
associações de artistas e pedreiros foram lentamente se transformando em algo
completamente novo, abandonando o antigo ofício pela prática especulativa e filosófica
que culminaria em focos da Renascença, do Humanismo, da Alquimia, do Iluminismo e
do Livre-Pensamento.
Se, por um lado, enxergamos nisso uma riquíssima bagagem cultural coletivamente
construída, por outro, foram as posteriores reuniões, como o Convento de Wilhelmsbad
e a Convenção de Lyon que deram (de maneira anacrônica) à Tradição Maçônica uma
coerência e integridade que os próprios maçons, em sua época, não conheceram. Ser um
maçom em pleno séc.XVIII, por exemplo, significava estar simultaneamente cercado de
ideais libertários (Rousseau) e conservadores (Burke), céticos (Voltaire) e místicos
(Cagliostro), onde o culto à Razão e ao Espírito se entrelaçava de maneira por vezes
conflituosa, e forças de interesse político se misturavam com a simbologia dos pedreiros
e a filosofia alquímica – tudo isso meio a referências herméticas, ritos de cavalaria e
juramentos de vingança templária contra o Antigo Regime.
Podemos dizer, de certa forma, que pairava uma sombra sobre a verdadeira essência ou
finalidade original da Ordem, que em alguns países já começava a ser infiltrada e
manipulada por grupos conspiratórios de interesse político e econômico. É neste cenário
que Joachim delaTour, vulgo Martinez de Pasqually, apresenta-se às Lojas francesas com
um sistema filosófico e metafísico envolto em aspectos pitagóricos e operativos que
desencadeia um alvoroço nas potências francesas. Suas práticas, teúrgicas e ritualísticas,
restauravam o significado perdido da simbologia e dividiam opiniões. Conquistou, dos
que presenciaram os resultados de suas operações, a lealdade e fidelidade para o início de
um complexo trabalho cerimonial de uma das mais sérias e reservadas fraternidades
iniciáticas da História – a Ordem dos Cavaleiros Maçons Elus Cohen. Atraiu igualmente
o ódio dos materialistas conspiradores e revolucionários, que colocaram em cheque sua
iniciação e foram rebatidos com uma patente maçônica emitida pelo próprio Charles
Stuart – Rei da Escócia, Irlanda e Inglaterra – no nome de seu pai. Diante disso, recebeu
o reconhecimento do Oriente da França para abrir Templos e dar início aos trabalhos de
sua Maçonaria Espiritual.
O Sistema
O que Martinez de Pasqually realmente estava fazendo era desvelar aos maçons a filosofia
teúrgica propagada por suas próprias simbologias e alegorias, aos poucos perdida pelos
membros da instituição. Para Pasqually, a instituição maçônica não é senão a face externa
de uma gnose universal que a transcende e engloba. Por isso, o legado Martinezista é
também interpretado como uma espécie de Restauração – porque estes ensinamentos não
deixavam de ser essencialmente os mesmos da Escola Pitagórica e da Tradição Cátara
(como bem coloca o historiador maçônico Robert Ambelain em "História e Doutrina")
que haviam se tornado alheios aos irmãos que, sem profundidade filosófica e inclinação
espiritual (como infelizmente ainda ocorre), tinham sua simbologia e ritualística
transmitida adiante por mero costume e hábito, como se sua mera perpetuação fosse um
fim em si, em vez de buscarem o entendimento profundo daqueles códigos velados do
Renascimento Espiritual.
A Causa Primeira é o Deus Puro Incognoscível, o Fogo Incriado que emana, a partir de
si, Causas Segundas à sua imagem e semelhança (como rios que partem da mesma
nascente, ou chispas que se desprendem de um fogaréu). Estas essências permanecem
livres para se apartarem, individualizando-se, ou permanecerem absortas na grande
orquestra da Harmonia Universal. A hierarquia angélica, observada por este ponto, não é
senão uma comunhão de Vontades voltadas para o Alto – a grande orquestra de espíritos
virginais (que não caíram) recebendo e transmitindo abaixo e adiante a Luz do Uno de
acordo com suas próprias gradações e postos, agindo como um só Corpo da mesma
maneira que o oceano, apesar de uno, é composto de inúmeras gotículas. Quaisquer
semelhanças com a Cabala Cristã não é mera coincidência.
Deus é bom porque é Deus ou o é por ser bom? Nem uma coisa e nem a outra. Deus e a
Lei Divina são uma única e mesma coisa, a Fonte Una de todo o Amor, Vontade,
Sabedoria e Atividade. As almas que não se entregam como Causa Segunda (como
músicos da orquestra regida pelo Uno) tornam-se, elas mesmas, Causas Primeiras (como
se abandonassem o maestro para criar suas próprias melodias) e assim ingressam no
caminho amargo da Individuação. Este conjunto de seres no caminho da Individualização
obrigatoriamente se apartam da comunhão divina, como que por uma consequência fatal
de Leis rígidas e imutáveis (daí a Queda dos Espíritos Lucíferos, a qual pretendemos
ainda esclarecer).
Da mesma forma que um músico que contrariasse a harmonia de sua sinfonia veria seu
instrumento soando de maneira dissonante e desafinada, a emanação do Ego como Causa
Primeira (em vez de como Causa Segunda guiada pela Sabedoria Celeste) aparta
imediatamente da realidade divina como uma Lei Inexorável. Isso se dá porque a Vida
Angélica é um eterno receber e doar movendo-se em uníssono em torno do Eixo Central
(o Fogo do Uno com sua infinita Luz-Vida-Amor).
Estes seres precisam ser de alguma forma religados, reintegrados ao Seio da Divindade –
mas não podem fazê-lo pois, por terem modificado profundamente sua natureza (antes
um puro doar, uma Força Centrífuga agora interiorizada como Ego Centrípeto), o mesmo
e único Fogo Divino que é, nos Anjos, fonte Doce de Luz e Amor, neles atuaria de
maneira corretora e purificadora, como um remédio amargo, tornando-se um Fogo Ímpio
de Angústia e Cólera. Inferno e o Paraíso não seriam senão o mesmo e único Seio da
Divindade, experimentado de acordo com o estado daquele que o adentra. Poderíamos
exemplificar isto com a situação de alguém que, isolado em um quarto escuro,
subitamente fitasse uma chama de vela – sua visão será ofuscada e, sua retina, queimada
– só que esta agressiva reação não se deve à natureza própria da luz, senão à condição
daquele que com ela entra em contato.
Como a própria comunhão com a divindade se tornaria, para estes seres, um Mundo
Tenebroso de Angústia e Cólera, fez-se necessário que fossem levados à mais profunda
separação da Vida Divina. Para isso, o Universo não-divino, material, regido pela
Astralidade e pelos Elementos, foi delimitado para dar livre-manifestação aos entes
individuados, servindo-lhes de escola de experiências para seu aperfeiçoamento moral e
espiritual, bem como lançando entre eles e o Mundo Luminoso um “fio de ariadne”, uma
“escada de Jacó” – ponte para a Religação e Reintegração dos Seres. Para o Martinismo,
bem como para o Catarismo e para a Gnose Cristã, este é o entendimento espiritual acerca
da origem do Mundo Criado, a relação desta Região Dialética com a trajetória da alma,
seu encarceramento, suas lutas e sofrimentos para o aperfeiçoamento e sua final vitória
sobre as paixões e retorno à Luz – o Drama da Vida, representado nos Arcanos e nos
Mistérios.
As Operações Cohen
Dentro deste esboço de esquema teogônico, o homem cumpre um duplo-papel
fundamental. Se o Verbo comunica sua Vontade, Amor, Sabedoria e Atividade
diretamente à Hierarquia, aos Serafins, Arcanjos, Anjos, e assim sucessivamente de séfira
em séfira, então a Reintegração dos Espíritos Lucíferos (separados e individualizados)
também demandaria, por sua vez, a emanação de uma nova hierarquia, situada entre os
anjos e os entes caídos apartados, capaz de entrar em comunhão com os primeiros para
reestabelecer e religar estes últimos. Assim diz-se que o Arquétipo do Homem é colocado
espiritualmente no Centro da Criação, como Ponte entre estes mundos cingidos. O Adão
Primordial, em seu envolvimento com os espíritos lucíferos, passa também sua própria
queda, de forma que o homem individual traz consigo uma constituição Tripla, por ser
ligado, por Três Princípios, a estas Três Realidades – ligado às estrelas e aos elementos,
segundo o corpo; ligado à Sophia Celeste (A Sabedoria Divina) e ao Mundo da Luz,
segundo à fagulha divina em si; e, por fim, ligado à região das trevas, ao Mundo
Tenebroso e ao Astral através de seu Desejo e Imaginação. Por isso, o homem sempre é
um mago, quer queira ou não, porque está em relação permanente com estes três mundos
e realidades, quer o faça responsável e conscientemente, quer simplesmente siga sendo
inconscientemente dirigido pelo Invisível, influenciando-o e sendo por este influenciado.
Em sua obra Tratado de Reintegração dos Seres, nosso mestre diz, com suas próprias
palavras, que “O mau pensamento se chama espiritualmente mau intelecto, assim como
o engendramento do bom pensamento se chama bom intelecto. É por estas espécies de
intelectos que os espíritos bons e maus se comunicam com o homem e lhe fazem reter
uma impressão qualquer, conforme ele usa do seu livre-arbítrio para rejeitar ou aceitar o
mal ou o bem, à sua vontade. Os maus pensamentos são engendrados pelo mau espírito,
assim como os bons pensamentos são engendrados pelo bom espírito; cabe ao homem
rejeitar uns e aceitar outros.”
Tendo entendido isso, podemos tratar da grande confusão que permeia o uso do termo
“Martinismo”, que é por vezes utilizado como referência ao ensinamento de Pasqually,
por vezes ao de seu discípulo Saint-Martin e, de fato, os ensinamentos de Martinez de
Pasqually e Louis-Claude de Saint-Martin não diferem essencialmente em sua metafísica,
cosmogonia e objetivo final, senão nos métodos para a realização da Grande Obra.
Os Elus Cohen entravam limpos e banhados em seus oratórios; removiam todos os objetos
metálicos; traçavam com giz círculos concêntricos com os nomes divinos e angélicos;
posicionavam as velas de cera nos pontos cardeais; incensavam o ambiente e realizavam
suas complexas prostrações e invocações ao Alto, bem como o exorcismo ritualístico da
influência astral inferior. Com o tempo, Louis-Claude de Saint-Martin, um dos principais
discípulos de Pasqually, percebia a grande dificuldade que muitos iniciados tinham em
provocar as manifestações visíveis, e que, movidos tão fortemente pelas aparições e
práticas externas, deixavam de atentar para o principal: cultivar em si a pureza e a
regeneração interior necessária para a comunhão com a Vida Angélica – o que era
justamente a meta principal e original.
Isso levou Louis-Claude a criticar sua antiga escola por estar “mais preocupada com a
Ciência dos Espíritos do que com a da Alma”. Com o tempo, Saint-Martin sustentou a
posição de que as manifestações astrais, o psiquismo e os transes alterados de consciência
seriam contraprodutivos, levando o candidato à fascinação pela experiência e a desviar-
se da Via Interior. Para Louis-Claude, se pudermos unir-nos à Vida Angélica em Amor,
Vontade, Sabedoria e Atividade, hemos de receber dela, em seu próprio tempo, as
intuições, inspirações e comunicações que sejam propícias à nossa Regeneração.
http://www.rosacruzaurea.org.br/
https://fraternidademartinista.wordpress.com/