Revista da Sociedade Brasileira Para Estudo da Dor 2006 – Abr/Mai/Jun – 7
(2): 749 UM INIMIGO INTIMO NOSSO DE CADA DIA – A DOR Por: Moisés Tractemberg (Bacharel em Filosofia, Médico e Psicanalista)
A dor ocupa um lugar central na preocupação dos médicos e demais
profissionais da área de saúde. Ela é um sinal de lesão anatômica ou alteração funcional do organismo, quando o registro destas afecções alcança os centros sensoriais do cérebro com uma intensidade e quantidade de estímulos nervosos superiores a capacidade do Eu para administra-los e descarrega-los, produzindo-se a vivência consciente desagradável que qualificamos de dor. A dor, portanto, só existe através do seu registro psíquico consciente, e possui a propriedade de ocasionar uma diminuição ou perda de interesse pelas demais funções do indivíduo. Uma outra fonte de vivências dolorosas, que rouba energias das demais funções da mente, é a dor psíquica. Esta se apresenta na vida cotidiana, nas situações de conflitos, perdas de objetos valorizados, lutos, e nos estados depressivos. O ser humano doente costuma apresentar um amálgama das duas situações. E é muito freqüente a “somatização” de estados mentais dolorosos, convertidos em sintomas ou doenças psicossomáticas que trazem alívio para o sofrimento psíquico. Em sentido oposto, os profissionais da saúde que utilizam a hipnose conhecem o meio de eliminar por sugestão a dor de uma afecção orgânica suprimindo a representação psíquica consciente da mesma. O fator compaixão que nos integra como membros de uma família, sociedade e de toda a humanidade, também se constitui em causa de dor psíquica quando presenciamos ou nos chegam notícias de injustiças, atrocidades e genocídios. Os currículos das faculdades de Psicologia que ignoram, ou mesmo minimizam, as contribuições da psicanálise para a compreensão profunda e holística do sofrimento, são um exemplo de distorção no cuidado de uma boa formação destes profissionais. Por outro lado, os médicos, seja qual for a sua especialidade, exercem um contato psicoterapêutico com seus pacientes no momento do encontro a dois, durante a anamnese e nas demais etapas do tratamento. A grande maioria, entretanto, não sabe disso, nem conhece o significado do que seja transferência/contratransferência psicológica, que ocorre inevitavelmente na dinâmica de todo ato clínico. E ignora por que a maioria dos currículos da formação em Medicina reserva um escasso tempo, ou nenhum, aos estudos de Psicologia Médica. Por isso, costumam derivar aos psicólogos as tarefas da resolução das patologias mentais, e aos anestésicos e analgésicos e resolução das síndromes de dor “física”. Esta posição se apóia numa filosofia dualista e cartesiana do ser humano, que o concebe dividido em corpo e espírito, com propriedades antagônicas entre si. O que fica excluído na prática médica da maioria destes colegas, em especial dos cirurgiões, é o conhecimento integrado e holístico do ser humano, no qual o adoecer de um órgão ou sistema é ao mesmo tempo compreendido como uma afecção dolorosa de todo conjunto corpo-mente. Em síntese, as nossas faculdades de Medicina foram projetadas para formas médicos com uma concepção fragmentada do ser humano, em vez de médicos com uma concepção humanista. Os estágios e residências nas diferentes especialidades visam uma maior profundidade e extensão dos conhecimentos numa determinada areada Medicina, recortando do todo uma parcela privilegiada pelo interessado. A solução “milagrosa” para esta crise da Medicina atual chama-se interdisciplinares entre as especialidades. Chamo de milagrosa no sentido de idealizada, pois não atende aos requisitos de uma concepção holística do ser humano, que implica uma visão corpo- mente como uma unidade essencial. Esta concepção holística deve apoiar-se num tripé de conhecimentos fundamentais em Psicologia Médica, Medicina Psicossomática e Psicoterapia Médica.