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Existem regras de interpretação?

Perguntei-me sobre isso durante muito tempo, pois Lacan pretendia que sim. Ele
diz isso em seu escrito: "A direção d o tratamento...". Entretanto, tais regras, ele não as
forinulav:~,sob pretexto de que exigiriam desenvolvimentos que não poderiam ser con-
densados naquela ocasião.
Mas, se não havia regras da interpreta~ão,é porque a interpretação seria uma
técnica. Eu teria de bom grado pensado isso no começo, quando não praticava a psica-
nálise e lia Lacan, mas a prática me demoveu dessa idéia. Penso que a interpretação não
é uma técnica. Lamento isso. Lamento porque se fosse uma técnica eu poderia ensiná-la.
A interpretação não é uma técnica. é, digamos, uma ética.
Esse termo "regra", como chegou a Lacan? Suponho que lhe tenlia vindo de Iles-
cartes, que escrevera seu primeiro grande texto - o qual deixou inacabado; não foi pul~li-
cado até sua morte - sob o título: "Regras para a direção do espírito". A palavra "direção"
encontra-se nele, palavra que Lacan emprega em "Direção d o tratamento...". É isto que ine
faz pensar que foi isso que lhe inspirou a idéia de que haveria regras de interpretação.
Na seqüência, ele não recolocou esse tipo de projeto de idéias sobre o ofício. S~ipo-
nho que seja por isso que a interpretação psicanalítica, a arte da interpretaçâo, isto não
se ensina. Não existe matema da interpretação.
Lacan já nos explicava isso eni sua "Direção d o tratamento...':, atribuindo ã interpre-
taçâo freudiana - refiro-me à de Freud, ao modo como Freud interpretava - uma certa
dose de mântica. Mântica, e não matema. O que é isso que chamamos de niântica? É
uina arte divinatória. Se a psicanálise fosse mântica, ela seria da ordem da astrologia, da
cartomancia, da quiromancia - que consiste em ler as linhas da mão -, de oniromancia
- que consiste em ler os sonhos. Ainda que a interpretação freudiana tenha certa dose
de mântica, a psicanálise, no entanto, não é nada disso.
O psicanalista lê, mas não nos astros, não nas linhas da mão, nem nas borras de
café, nem em bolas de cristal; ele lê no que se diz. Ler no que se diz, ler o que se diz,
supòe uma transmutação da fala, na medida em que a fala, como tal, é precisamente
isto onde não se lê o que ela diz, conforme o exprime Lacan. A interpretação supõe a
transmutação da fala ein escrita. Por exemplo, é impossível jogar com a homofonia sem
se referir à ortografia, ao bom modo de escrever. A homofonia só é possível se o que se
pronuncia da mesma forma, escreve-se de modo diferente.
Depois da homofonia, a gramática. Ela também só se sustenta a partir de regras.
Aquele que interpreta invertendo sujeito e objeto, por exemplo, supõe que o inconscien-
te conhece as regras gramaticais.
Homofonia, gramática, Lacan acrescenta a lógica. Mas ela também só s e sustenta
pelo escrito. Ela não está de modo algum sujeita ao princípio de contradição. Ela se
sustenta. ela consiste em detrimento dos paradoxos que a assaltam e dos q u i s mostrou
tirar o vigor.
Homofonia, gramática, lógica, são os meios da interpretação, seus instrumentos,
mas isto ainda não diz nada sobre a interpretação conio intenção, como atípica, como
posição d o interpretante.
Para cada um, sua prática da interpretação é estritamente correlativa 2 noção que
se formou a partir do inconsciente. Inconsciente e interpretação caminham lado a lado.
Quando vocês dizem como interpretam, ao mesmo tempo dize111 que noção CIO incons-
ciente vocês têm. Sua prática interpretativa mostra exatamente em que ponto da elucida-
ção do inconsciente vocês estão.
Inclusive, esses dois termos são igualmente suspeitos. O inconsciente é um termo
que não agradava a Lacan, que ele manteve somente porque era recebido. Ele teria
preferido substituí-lo pelo de falasser Lparlêtrel. A interpretação não é um termo menos
suspeito; ele veio de uma estrutura clínica, a da paranóia.
Há, na análise, uma dinâmica paranóica, que estende a interpretação a tudo o
que se faz e se diz. Vocês não podem mais com isso. Seu paciente interpreta, interpreta
tudo, se vocês não colocam limites, se vocês não dirigem sua paranóia, se vocês não a
atenuam.
As pessoas se fascinam com uma interpretação ou outra, mas é preciso estar atento
ao meio em que se produzem. Na psicanálise, reina uma atmosfera interpretativa.
'Y.tmosfera, atmosfera! Será que tenho cara de atmosfera?"', como dizia Arletty.
Bom, na análise, tudo o que se faz e diz é susceptível de ter outro sentido, quer dizer,
está prestes a ser interpretado. A condição da interpretação propriamente dita é operar a
neutralização d o que não é ela. Para que haja interpretação, é preciso neutralizar tudo o
que não seja a interpretação propriamente dita. Como neutralizar isso? Pela regra, preci-
samente, pelo retorno invariável d o niesmo, pela repetição d o insignificante.
Estamos reunidos sob o comando da interpretação lacaniana. Isto supõe que te-
mos a idéia de que ela é diferente da interpretação freudiana.
A interpretaçâo freudiana é essencialmente uma tradu~So.Freud a inventou em
relação ao sonho, e a partir daí ela se estendeu a todas as formações do inconsciente.
Dócil à histérica, como diz Lacan, Freiid chegou a ler por nieio dela os sonhos, os lapsos,
os chistes como alguém decifra uma mensagem cifrada.
Há toda uma parte da doutrina da interpretação em Lacan que consiste em for-
malizar a decifração dessas mensagens cifradas, sob o registro d o discurso do Outro. E
a interpretação seria então uma \:ia de retorno da mensagem sob uma forma invertida.
Na análise, será que é preciso eximir-se de decifrar mensagens cifradas? Miiilia
opinião é que não; pois é isto que instala a atmosfera interpretativa, sem a qual, efetiva-
mente, não há experiência analítica.
Mas a interpretação lacaniana, entretanto: se diferencia disso pela seguinte razão:
Freud interrompe sua interpretaçâo no momento em que descobre o senticlo sexual
dessa mensagem inconsciente cifrada. A meu ver, o que constirui propriamente a in-
terpretação lacaniana é que ela vai além do sentido sexual; ela aponta para. adiante, na
direção da inexistência da relação sexual. O que veio de diferente entre a interpretação
freudiana e a lacaniana, é que a primeira se satisfaz com o sentido sexual, coni a sexuelle
Bedsutung, e a segunda aponta, indica a nào-relação sexual.
Digo aponta, indica, pois sâo expressões que remetem ao uso que Lacan faz do
termo apofântica. É um termo que ele arranca de Aristóteles. onde o logos apophantikos
é aquele que na proposição pode ser verdadeiro ou falso. Lacan toma emprestado esse
terino, mas para convir ao uso que dele faz Heidegger: é apofântico o logos que mostra,
que ilumina: que revela aquém d o verdadeiro e d o falso, e que não comporta nenhuma
demanda, particularmente demanda de consentimento.
A interpretação não é uma questão, não é um "talvez"; é a afirmação de um "há",
e na extremidade, de um "não há". Trata-se menos de mostrar alguma coisa d o que de
uma ausência, que é de estrutura: o impossível de dizer.
O que distingue propriamente a interpretação Iacaniana? Ela é lacaniana na iiiedi-
da em que mostra o impossível de dizer, ela o torna sensível.
A interpretação freudiana é tradução em termos sexuais. A interpretação lacaniana
não é tradução, mas revelação, ela ergue o véu sobre o que é impossível de dizer, ela Iè
o-que-não-se-pode-dizer, para além do recalque.
Então. será que existem regras para essa interpretaçào? Se houvessem regras, tal-
vez pudessem ser as seguintes.
Primeiramente, não opor obstáculo ao impossível de dizer, conversando, interpre-
tando rapidamente, traduzindo depressa. Segunda: criar o inconsciente pela interpreta-
ção. Mais o inconsciente é interpretado, diz Lacan, mais ele se confirma como incons-

Op@o Lacaniana no 56/57 69 Julho 2010


ciente. O inconsciente é uiii fato, iras ele é suportado pelo que na análise o produz.
Portanto, "ousar dizer!", não ser esmagado pelo supereu da erxatidâo. O intérprete é aqui
criador.
Terceira: reconduzir o sentido ao gozo, quer dizer, na interpretação, revelar o que
o sentido deve ao gozo. Para falar a verdade, ele Ilie deve tuclo: só produz sentido o que
faz gozar.
Quarta regra: dar lugar ao aleatório. Uma interpretaçào nào conhece seus efeitos
previamente. Ela não abole o acaso. A interpretação lacaniana é um lance de dados, que
é preciso jogar quando convém, e para isso não há regras.
Em quinto lugar, um analista cleve ser; por sua fase mais profunda, uin inestre
não apofântico, mas apofático - liá apenas unia letra de diferença qiie segue uiiia via -;

negativa. Se ele mantém o silêncio, é porque nenlium predicado convém ao real. A via
que conduz ao real é uma via ripofática, isto é, negativa. O gozo d o qual falamos não
teiii outro signo na análise senão o silêncio d o analisante, e só rompe o silhcio para
torná-lo manifesto, a cada MZ.
Em sexto lugar: à parte isso, há as histórias, as Iiistórias nas q~iaiso falasser está
emaranliado, embrulhado - o falasser é essencialmente eiiiba~içadopor histórias. É pre-
ciso interpretar? É preciso reduzi-las ao sintoma que as suporta. As liistórias sâo sempre
as mesmas, é preciso reduzi-las à sua repetição.
Em sétimo lugar: Iiá uma direção da interpret;iyào. Ela se dirige sempre à repetição,
para distinguir nela o que ela evita. O evitatiiento não é o recalque, n i o é a forclusào
- exceto, evidentemente, quando se trata de forclusão -, é o limite de estrutura que se
iiiipõe ao saber.
Como atingir esse limite? Aqui, seiii dúvida, o termo interpretação não é tiiais o
que convéiii. É isto (aplausos).

Traduçáo: Teresinha N. Meirellesdo Prado

Terio piililicadu em Ia Quse frcudienne. (72): 133-136,cin no\-emlxo de 2009 Inrervcnção em 10 de iiiciia de 2009 no
Con,yrrsso da NSL sohie a inieiprcla(àa I;icaniana. Este ieala foi rsiahelccido, ecliiado e corrigido pela iedafio. em siis
edicia
. original. carn a conlril>uido de Pascale F:iri. Transcrirào de F. Henri e >i. lalib<iis(publicado com ;i amável auia-
rizaso de Jacqiics-Alain Miller. nào relido [pelo auror),
1 N:T: Referi-ncia ;i uma cena da filme Hôtel du A'ord. uin diálogo enrre os personagens representados pclos aiares Lauis
Jouret e Adeily: ='Preciso mudar de atmosfera'- "Seri que ariho c a n de almosfera?'

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